materialidades de práticas de vigilância: como suas...
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Materialidades de práticas de vigilância: como suas curtidas no Facebook constroem um candidato político1
Maíra M. Moraes2
Universidade de Brasília
Resumo
Durante uma pesquisa para o estado da arte e do conhecimento sobre as práticas de marketing político no Brasil, identifiquei que os estudos acadêmicos sobre o tema compreendem a internet e a mídia social apenas como meio de comunicação, reduzindo a análise sobre a abrangência e influência desses atores nas relações sociais, incluindo sua dimensão político-eleitoral. Para além da sociabilidade virtual, as redes sociais integram práticas de vigilância que resultam em representações de valores e ideias do arranjo social da cultura do consumo. Uma das materialidades dessas práticas pode ser a criação da persona de um candidato político. Neste artigo, apresento uma metodologia para uso dos dados de usuários do Facebook e como ela foi utilizada para pautar as estratégias de comunicação durante a pré-campanha das eleições municipais em 2016 em uma capital brasileira.
Palavras-chave: Legibilidade; Mídia, Rede Social; Campanha Eleitoral. Introdução
De início, é importante registrar que a expressão “candidato político” no título deste artigo pode
ser substituído por qualquer produto ou serviço configurados por valores e ideias do arranjo social da
cultura do consumo, ou melhor, bens de consumo que comunicam categorias culturais e valores,
recursos sociais, materiais e simbólicos mediados pelos mercados e consumidores (DOUGLAS;
ISHERWOOD, 2004). A escolha pelo “candidato político”, isto é, qualquer cidadão interessado em
concorrer a um processo eletivo, é resultado de uma provocação, do que Peirano (2014) chama
acionamento do “instinto etnográfico”: “tudo o que nos surpreende, que nos intriga, tudo o que
estranhamos nos leva a refletir e a imediatamente nos conectar com outras situações semelhantes que
conhecemos ou vivemos” (p. 378).
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 02 - Comunicação Consumo e Identidade: materialidades, atribuição de sentidos e representações midiáticas do 7º Encontro de GTs de Pós-Graduação - Comunicon, realizado nos dias 10 e 11 de outubro de 2018. 2 Maíra M. Moraes é doutoranda em Comunicação e Sociedade na Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Pesquisa as relações de poder implicadas no enquadramento de notícias e como as realidades são construídas por meio de narrativas dominantes. E-mail: mairamoraesrp@gmailcom.
Foi assim que durante uma pesquisa para o estado da arte e do conhecimento sobre as práticas
de marketing político no Brasil, em especial o olhar sobre a construção social do mercado em Castilho
(2013; 2014), identifiquei que estudos acadêmicos sobre o tema compreendem a internet e a mídia
social3 apenas como meio de comunicação4, reduzindo a análise sobre a abrangência e influência desses
atores nas relações de consumo, isto é, nas relações sociais dos produtos políticos e eleitorais. A partir do início do século XXI, e mais ainda de sua segunda década, o marketing político e o mercado eleitoral, que lhe é correlato, começam a sofrer a concorrência de novas tecnologias da comunicação política derivadas do uso intensivo da internet e das chamadas redes sociais (das quais os principais representantes no Brasil atualmente são o Facebook, o Twitter, o Myspace, o Linkedin, o Flickr e o Orkut)5. (CASTILHO, 2013, p.15) e (CASTILHO, 2014, p.87)
Invariavelmente, a mídia social é referenciada com características diferentes das tradicionais,
principalmente no que se refere à descentralização da produção e distribuição de conteúdo, além de
possibilitar a segmentação de público, não possível nos meios de massa. Mas, ainda assim, o olhar
analítico para esses meios refere-se mais ao campo da comunicação sob a luz de teorias do meio, da
recepção, do newsmaking, entre outras.
O que proponho aqui é de outra dimensão, busco produzir reflexões sobre práticas de
legibilidade e controle (SCOTT, 1998) e de como a mídia e as redes sociais, enquadram-se nesse
conjunto de procedimentos, cálculos e táticas que permitem instituições – para além do Estado -
exercerem uma forma complexa de poder (FOUCAULT, 1979), da sociedade disciplinar para a
sociedade de controle (DELEUZE, 2004, p. 220). Aqui, a materialidade dessas práticas refere-se à
produção de uma pesona6 alinhada com o imaginário de eleitores com e alto potencial de elegibilidade
em um pleito, no caso do Brasil, em eleições diretas, evento chamado constantemente pela mídia de
“festa da democracia”.
3 Utilizo o termo “rede social” denotando as redes virtuais. Temos aqui as redes sociais virtuais como grupos ou espaços específicos na Internet, que permitem partilhar dados e informações, sendo estas de caráter geral ou específico, nos mais diversos formatos: textos, arquivos, imagens fotos, vídeos etc. Mídias sociais significam a produção de muitos para muitos, a descentralização da produção e veiculação de informações. O Facebook caracteriza-se por ambos os papéis. 4 Assumo a definição de meio de comunicação de Luiz C. Martino: meio como tecnologia, comunicação como processo de experiência. (MARTINO, 2014, p. 05) 5 Grifo da autora. Utilizo o itálico nas palavras estrangeiras, comuns ao vocabulário digital. 6 O conceito vindo da psicologia analítica de Jung tem sido cada vez mais utilizado no planejamento de comunicação de instituições e indivíduos que buscam se apresentar ao mundo por meio de uma máscara agradável aos seus consumidores, criando vínculos, identificação e consumo de um produto, marca, serviço etc.
Por isso, olho para o Facebook ¾ a rede social com maior número de usuários cadastrados
mundialmente ¾ pelas lentes das práticas de vigilância e do modo como essas práticas têm, por meio
da opacidade de um lado e legibilidade de outro, integrado o cotidiano das pessoas como uma extensão
de entretenimento, mas cujo fim é transformar em ativos comercializáveis os registros de
comportamentos de seus usuários.
Para demonstrar meu argumento, descrevo como alguns comportamentos dos usuários na rede
social Facebook são monitorados, os tipos de dados que geram e como são comercializados pela
empresa por meio de sua ferramenta de anúncios. Importante ressaltar que, o que descrevemos neste
trabalho difere das práticas eticamente questionadas da empesa Cambridge Analytica, denunciada
recentemente por utilizar informações sensíveis e individualizadas dos usuários. Este estudo analisa
dados de tendências de comportamento de grupos a partir de registros realizados na rede social, sem
acesso a informações individuais. Além disso, no caso da Cambridge Analytica, a empresa capturou
registros por meio de aplicativos disponibilizados na rede social que chegavam a recolher dados
pessoais como números de telefone e endereços de e-mail, assim como informações compartilhadas
em conversas de mensagens privadas. A coleta não-autorizada era possível devido a política de
privacidade da ferramenta entre os anos de 2007 e 2014, que permitia acesso irrestrito de dados de
usuários por parte de desenvolvedores de aplicativos externos. Em abril deste ano, em resposta à crise
gerada pelas denúncias da Cambridge Analytica, o Facebook restringiu a integração desses aplicativos
e publicou a Política de Dados (2018), respondendo perguntas como: (1) que tipo de informações
coletamos; (2) como usamos essas informações e (3) como essas informações são compartilhadas.
Aqui localizo a dimensão da legibilidade. Em “Seein like a state”, James Scott (1998) elabora
o conceito de legibilidade como uma “tentativa de um estado de tornar a sociedade legível, de organizar
a população de tal maneira que fiquem simplificadas as funções básicas do estado de tributação,
conscrição e prevenção de rebelião”7 (p. 02). Como respostas a essas demandas, no objetivo de tornar
territórios “legíveis” e simplificados para os administradores, desenvolveram-se ferramentas de
governo como planejamento urbano, padronização de medidas, criação de sobrenomes permanentes,
entre outras estratégias. Por meio dessas tipificações, uma sociedade anteriormente opaca, torna-se
7 Tradução da autora. “[…] as a state's attempt to make a society legible, to arrange the population in ways that simplified the classic state functions of taxation, conscription, and prevention of rebellion.”
acessível aos gestores que constroem seus saberes e suas práticas mediados por objetos constituídos
simbolicamente por banco de dados, estatísticas e pesquisas quantitativas.
Nessa linha, Vitorino (2017), professor de marketing político e eleitoral da Escola Superior de
Propaganda e Marketing, afirma que o Facebook é o maior banco de dados acessível no mundo.
Segundo ele, “governos podem ter mais dados armazenados, mas o Facebook é o único que qualquer
pessoa, com um cartão de crédito, pode ter acesso”.
Apresento a seguir, o passo a passo do que Vitorino chama de “pesquisa de afinidade de
público” realizada com dados de usuários fornecidos pelo Facebook, , metodologia de tratamento de
informações utilizada durante o período pré-eleitoral de 2016 para entender, com base em
comportamentos de consumo dos usuários, com quais grupos certos candidatos teriam mais
proximidade para assim, construir realidades por meio de discursos e práticas de planejamento de
comunicação: a persona o candidato, sua narrativa junto ao eleitorado. O resultado apresentado neste
artigo, foi utilizado para orientar a campanha de um pré-candidato ao cargo de prefeito do Rio de
Janeiro. Tive acesso às informações por no período, fazer parte de uma equipe terceirizada de produção
de conteúdo da pré-campanha entre julho de 2015 e janeiro de 2016.8
É grátis e sempre será
Se à primeira vista o Facebook é uma rede social digital de amigos e compartilhamento de
informações, por trás da amigável interface visível nas telas de computadores e dispositivos móveis
encontra-se um circuito complexo de pessoas, empresas, capitais e algoritmos que constroem novas
realidades de poder institucional e econômico, negociados em dimensões do real ao virtual.
Farei uso do simbolismo de números para esclarecer o parágrafo anterior. No primeiro trimestre
de 2017, a plataforma chegou à marca 1,94 bilhão de usuários9, um crescimento de 17% em
comparação com o mesmo período do ano anterior. Em 2017, foi avaliada como a 9ª marca mais valiosa
do mundo em termos financeiros (EXAME, 2017) e em 2018 os ganhos financeiros continuam
aumentando. Mas o que faz esse modelo de negócio tão lucrativo em um momento histórico em que
expressões como pobreza, crise e dívida se tornam cada vez mais naturalizados?
8 A autorização para uso dessas informações foi possível com o meu comprometimento em não divulgar o nome do pré-candidato, informações partidárias e projetos políticos. 9 Um caminho para entender a potência de poder do Facebook como empresa, o número de usuários hoje equivale a um quarto da população mundial, hoje calculada em 7,2 bilhões de pessoas.
Seu principal ativo são os usuários, ou melhor, as informações que imprimem ou deixam rastros
a cada movimentação, a cada clique, compartilhando e trocando experiências produtificadas em textos,
arquivos, imagens, vídeos e até sentimentos. Um caminho para se compreender o crescente número de
inscritos na rede pode ser encontrado na economia da dádiva. Fazer parte da rede insere-se na lógica
ritualística de estabelecimento e manutenção de relações sociais. Na cultura do consumo participar ou
não participar do ritual diz respeito a estar incluído em maior ou menor grau em um conjunto de
relações sociais.
Nas conclusões de “Ensaio sobre a dádiva”, Mauss (2003) sugere que as sociedades
industrializadas, poderiam beneficiar-se ao reconhecerem um modelo de prática social baseado em
dádivas e doações, como as trocas de presentes das sociedades arcaicas: uma prática social menos
utilitarista e mais voltada para os vínculos entre os seres humanos, a construção de uma “moral de
grupos”, “moral da dádiva-troca” (p. 297). Mauss entende que a obrigatoriedade da troca é a base para
um sistema que tenderia a se estabilizar, destaca que nas sociedades que ele buscava compreender, os
indivíduos eram “menos sérios e tristes”, “mais generosos, mais dadivosos” do que os indivíduos das
sociedades contemporâneas a ele. Identifica que aquelas progrediram pela capacidade de substituírem
guerras e isolamento pela capacidade de estabelecer trocas e alianças, estabilizando essas relações a
partir do encadeamento entre dar, receber e retribuir.
A interface com que o Facebook se apresenta aos usuários das redes sociais, baseia-se na lógica
do sistema de dádiva, reforçada pelo manifesto “é grátis e sempre será”, mas a sustentação desse
sistema só é possível na coexistência e engendramento de outras lógicas, como a do capital, do lucro e
da vigilância.
O compartilhamento do comportamento cotidiano por parte do usuário, incorporado na
dinâmica da dádiva permite a criação de moedas de troca que torna rentável o modelo de negócio dessa
rede social.
Da lógica do capital
Quando meios como o jornal e rádio iniciaram sua estruturação dentro de modelos empresariais
¾ no Brasil datou entre as décadas de 1950 e 60 ¾ o aumento dos investimentos em publicidade em
seus espaços “permitiu que os maiores jornais se tornassem independentes das assinaturas ou da venda
avulsa” (CASTILHO, 2013, p. 67). Contexto semelhante configura as relações comerciais da mídia
social: quanto mais usuários, mais clientes em potencial para empresas anunciantes, que pagam por
anúncios publicitários dentro da plataforma.
E o que leva anunciantes para o Facebook?
Um primeiro fator é o contínuo aumento mundial do consumo de meios de acesso à internet e
a expansão do serviço. No Brasil, por exemplo, dados do PNAD (2015) indicaram que em 2016, 92,1%
dos domicílios brasileiros acessaram a internet por meio do telefone celular, enquanto 70,1% dos
domicílios o fizeram por meio do microcomputador. Em 2014, o acesso à internet (80,4% dos
domicílios) por meio do celular também foi predominante em relação ao uso do computador (76,6%
dos domicílios).
Outro fator é por tratar-se de um investimento mais acessível do que as mídias tradicionais, pois
é possível fazer investimentos de menor valor e com maior impacto bastando segmentar o público alvo.
Ferramentas como Facebook e Google, que são os líderes de audiência na internet, permitem ao
anunciante manter investimentos mensais calculados e com um retorno sistemático. Diferente de
anúncios em redes de televisão ou rádio que exigem um investimento maior, inclusive na produção das
peças a serem veiculadas, sem controle de segmentação.
A possiblidade de segmentar o investimento e o conteúdo são as principais narrativas dos
profissionais de comunicação digital que defendem o investimento nos novos canais e formatos
digitais. A mídia social, por exemplo, oferece a possibilidade de atingir públicos muito específicos,
segmentados por idade, sexo, escolaridade, profissão e mesmo por preferências cultuais ou locais
frequentados. A publicidade convencional ou off-line, é baseada no perfil demográfico, no Facebook
é comportamental. Para tornar esses anúncios mais eficientes, o Facebook precisa fornecer aos seus
anunciantes detalhes precisos sobre o perfil de seus usuários ¾ muito além de perfil dos espectadores
em determinados horários em um canal de televisão ¾, possibilitando um retorno mais eficaz e legível
do dinheiro anunciado.
Para chegar a esse quadro detalhado sobre os usuários, a ferramenta não faz uso apenas de
informações que habitualmente são coletados por empresas de pesquisas como nome, idade, local de
residência, em quem pretende votar ou em quem jamais votaria. A hierarquia da programação (1) coleta
de dados, (2) armazenamento e (3) processamento algorítmico permitem, além do registro de
comportamento, a produção de uma inteligência na organização dos dados. E esses processos vão além
do ambiente do Facebook, incluem também o comportamento em aplicativos de propriedade da
empresa, como Instagram e WhatsApp, além de sites e serviços on-line que usam o Facebook como
login de cadastro.
Em resumo, quando uma pessoa ser cadastra na rede ela dá a permissão para que suas
informações sejam utilizadas pela empresa. Cada comportamento conectado (por vezes desconectado
também) e armazenado é oferecido aos anunciantes, ou melhor, para qualquer pessoa com cartão de
crédito.
Na prática, qual a materialidade dessas informações?
Sociedade algorítmica
Mesmo antes do acontecimento midiático da Cambridge Analytica, Vitorino (2017) afirmava
em seus cursos de marketing político, que costumam lotar as salas da Escola Superior de Propaganda
e Marketing (ESPM) de publicitários, assessores de comunicação, políticos e candidatos, que o fato do
Facebook coletar dados em toda movimentação on-line e por vezes off-line é o que o tem transformado
em um dos mais completos bancos de dados para o planejamento de campanhas políticas e eleitorais.
Por um lado, o monitoramento permite manter a ferramenta atraente ao usuário. Estratégias
como “o tempo que você passa lendo uma publicação é medido para que conteúdos similares ao que
você passou mais tempo visualizando seja oferecido com mais frequência” (VITORINO, 2017),
resultam em um usuário mais tempo conectado e quanto mais tempo conectado, mais dados
armazenados, mais ativos para a empresa e mais interesse de anunciantes em seus espaços virtuais.
Além disso, o sistema também lista cookies que o Facebook armazenou no seu navegador ¾ arquivos
que registram os passos de navegação sobre tempo que o usuário permaneceu em cada página, a
sequência de cliques, as informações registradas em formulários on-line, entre outras informações.
Um recurso muito utilizado pelos usuários é o botão “sentimento/atividade” em que a pessoa
pode registrar, a partir de categorias pré-definidas como ele está se sentindo, o que está comprando, o
que está fazendo, o que está lendo, o que está assistindo, o que está jogando, o que está bebendo, para
onde está viajando, entre outros.
Dessa forma, um usuário que curte páginas sobre viagem ou que dá check-in em diversos locais,
pode ser impactado com algum tipo de anúncio sobre turismo ou de estabelecimentos comerciais das
regiões onde frequenta. A troca de status de relacionamento também é uma informação comercial. Para
um usuário que trocou seu status para casado, anúncios de empresas de decoração, pacotes de lua de
mel e temas correlatos. Para além de uma plataforma de relacionamento é uma rede difusa de pessoas
mediada e regulada por registros. Quanto mais informações registradas, mais sofisticadas tornam-se as
possibilidades de cruzamento de dados e categorias de informações a serem oferecidas a qualquer
pessoa ou instituição que pague pelo serviço que se constitui de quadros – veremos a seguir – que
permitem mapear, classificar, ler e simplificar um grupo de pessoas. O produto é da ordem da
generalização, da criação de categorias e de objetos que, legíveis, servem de suporte para manejar
eventos para a construção de novas narrativas, novas realidades. Mas todo esse esforço de legibilidade
é resultado de uma política de opacidade, pois os algoritmos de vigilância não são divulgados pela
empresa e mesmo empreendimentos de pesquisadores como o Share Labs10 referem-se à rede social
como uma “caixa-preta”. O que acontece dentro das paredes invisíveis desta complexa máquina algorítmica que medeia a comunicação de bilhões de pessoas é um tipo de mistério, uma caixa preta [...] Nesses muros invisíveis, em cada momento os algoritmos estão decidindo quais informações aparecerão em nossa infosfera, quantos e quais dos seus amigos verão suas postagens, que tipo de conteúdo se tornará parte de sua realidade e o que será censurado ou excluído. (SHARE LABS, 2016)
Além das informações que contam com a iniciativa do usuário em compartilhar, outras fontes
são usadas para legibilidade de consumidores em potencial. São diversas as estratégias de controle de
mobilidade e movimento. O Facebook armazena informações sobre os computadores, celulares e
tablets utilizados para entrar no endereço do site com seus protocolos, assim como as datas e horários,
os navegadores utilizados e operadora, no caso de acesso por rede móvel.
Esse panorama, incompleto é necessário dizer, transforma cada indivíduo cadastrado na rede
em um ativo cujo valor é incalculável. Como?
Eleitores legíveis, persona elegível
Como mídia social, o Facebook tem ferramenta de interface dedicada aos interessados em
realizar anúncios de forma segmentada dentro da rede social. Para isso, oferece ao anunciante inúmeras
possibilidades de cruzamento de dados de seus grupos para que o investimento tenha seu potencial de
10 Equipe de investigação baseada na Iugoslávia. Definem-se como um laboratório investigação de dados para exploração de diferentes aspectos técnicos das intersecções entre tecnologia e sociedade. “Estamos exploração das estradas de fronteira eletrônica; escondido. Estradas invisíveis e águas profundas de fluxo de informação para melhor entender as formas novas e emergentes de riscos relacionados à privacidade, neutralidade de rede e ameaços de segurança”. (SHARE LABS, 2016)
retorno ampliado. Há, inclusive, uma plataforma de ensino chamada Blueprint que traz aulas gratuitas
sobre como “aproveitar melhor” as ferramentas que o Facebook oferece para negócios.
Com um cartão de crédito registrado é possível ter acesso à base de dados da rede social repleta
de informações sobre comportamentos de usuários e, a partir dessas informações, determinar grupos
ou microgrupos para serem impactados por meio de uma comunicação que pode ser um anúncio, uma
enquete, um vídeo, um artigo até mesmo uma foto, que ganha o status de “patrocinado” na visualização
do usuário.
O material que apresento a seguir, refere-se ao uso destas informações para fins de planejamento
de campanha eleitoral, ou melhor, no manejo das informações disponibilizadas pela ferramenta de
anúncios, com o objetivo de identificar públicos com mais afinidade com um pré-candidato à prefeitura
do Rio de Janeiro. Nesse contexto, afinidade é o identificar-se com um grupo social, compartilhando
valores, não necessariamente relações de vizinhança, mas de relações de convivialidade mesmo à
distância. Relações mediadas por texto, imagens, sons.
O mapeamento de grupos de afinidades permite ao candidato político e aos seus assessores
desenhar a persona adequada para certos grupos. Segundo Vitorino (2017), compreender o grau de
afinidade do candidato com diversos grupos de públicos contribui para o desenho e planejamento do
projeto eleitoral, compreendido em seis frentes: (1) candidato, (2) mensagens e bandeiras, (3) canais
de comunicação, (4) público-alvo, (5) exposição e (6) audiência.
O planejamento sobre o candidato ¾ também chamado de marca ¾ responde a perguntas como
“quem ele será na campanha?”. Nessa frente de trabalho são definidas qual o vocabulário mais
adequado para usar junto aos seus eleitores, para estabelecer uma comunicação coerente e padronizada
ao longo da campanha.
No caso das mensagens e bandeiras, o desenho do conteúdo responde a questões como “o que
o candidato tem a dizer?” e “o que as pessoas querem ouvir do candidato?”. “Assim como na persona
do candidato, é preciso ter coerência também na mensagem para não cair em contradição. Mantenha
em toda a comunicação a ‘espinha dorsal’ da mensagem”. (VITORINO, 2017)
Os canais são utilizados para facilitar que tanto a marca do candidato quanto suas mensagens
cheguem ao eleitor. São classificados por (1) canais próprios, plataforma de campanha digital; (2)
canais paralelos, indicados para mobilização e; (3) ferramentas externas, redes acessórias, utilizadas
para disseminar conteúdo, gerar relacionamento e aproximação do eleitor com o candidato. “Para um
uso eficiente dos canais é necessário conhecer seu público a fundo para poder adequar o discurso ao
eleitor: o que eles gostam, qual é sua linguagem, quais horários costumam estar on-line, quais são
suas, lutas, ideologias, regiões, entre outras informações comportamentais”. (VITORINO, 2017)
No que se refere à exposição, marqueteiros afirmam que quanto mais próxima a data da eleição,
menos destaque espontâneo nas mídias é dado para os candidatos, por isso é importante planejar ações
de exposição ao longo do período de pré-campanha e campanha. As ações de exposição incluem
participação em eventos, realização de livestream11 em redes sociais como o Facebook, Periscope e
Instagram.
Para completar o planejamento de ações da pré-campanha ou campanha, Vitorino (2017) lança
a pergunta “como levar o eleitor até as plataformas?”. A busca da audiência, assim como todas as
frentes de ações anteriores, requerem dos estrategistas um quadro legível sobre os eleitores,
classificados e analisados de acordo com as variáveis definidas pelos especialistas de comunicação
política que, para além dos dados demográficos, encontraram em ferramentas como o Facebook
informações antes não possíveis de serem “capturadas” sobre eleitores (ou consumidores, dependendo
da perspectiva de análise).
A seguir, apresento o resultado de uma pesquisa de afinidade realizada com dados acessíveis
do Facebook, para um pré-candidato ao cargo de prefeito do Rio de Janeiro, em seguida descrevo
alguns usos dessas informações na criação de personas criadas para a concorrência do pleito, em 2016.
Pesquisa de afinidade de públicos no Facebook
Para iniciar a coleta de informações no Facebook são necessárias quatro fases preliminares.
A primeira é o levantamento de grupos de interesse (macro segmentação). Essas informações
são definidas com base em coleta de informações com o candidato e equipe assessora. No caso
analisado, definiu-se o recorte: família, funcionalismo, gênero, políticos cariocas, preferência política,
profissão, região, religião e visão de justiça. Em resumo, todos os usuários do Facebook, que
identificam a cidade do Rio de Janeiro como residência e que curtiram alguma página na rede social
que se refere a qualquer um dos temas faz parte da amostragem da pesquisa.
11 Plataforma de streaming de vídeo que permite a seus usuários assistir e transmitir vídeos ao vivo.
O segundo passo é a definição de públicos dentro dos grupos (microssegmentação). Estas
informações são refinadas pelo estrategista que detalhou cada variável dentro de cada grupo, por
exemplo, no grupo família, novos filtros foram indexados como: casados, com filhos, interesse em
família, novo emprego, recém-casados, recém-mudados, recém-noivados, solteiros. No grupo
funcionalismo, foram relacionados os filtros: funcionários públicos em geral, Guarda Civil Municipal
do Rio de Janeiro (GCM/RJ), Governo do Estado do Rio de Janeiro e Prefeitura Municipal do Rio de
Janeiro. Em preferências polícias, os filtros variavam entre Aécio e PSDB, Dilma, Lula e PT. Esse
trabalho de microssegmentação é realizado com todos os grupos de interesses mapeados anteriormente.
Esses filtros definem para quais usuários o Facebook mostrará o anúncio do candidato em
questão (produzidos em diversos formatos como vídeo, fan page, artigos e link para sites). Veiculado
o anúncio na rede social já é possível fazer uma análise sobre quais são os públicos que estão
apresentando as melhores performances, ou seja, mais curtidas. A base de análise é a coluna de custos:
os públicos com menores custos de curtir, são os mais próximos de alinhamento com o candidato.
Outras informações também são mostradas na ferramenta como o quanto os anúncios estão causando
de envolvimento, quantidade de compartilhamentos, de cliques, de curtidas na página, de curtidas no
post.
Mas as conclusões extraídas desta pesquisa vão além das métricas disponibilizadas pelo
Facebook. A questão “quais são os públicos com maior afinidade com o candidato?” é respondida por
meio de cruzamento de informações como (1) qual o potencial de pessoas que curtiram páginas sobre
Lula e que também curtem páginas sobre o candidato; (2) quantas pessoas que são solteiras e com
filhos curtem páginas sobre o candidato; (3) estudantes ou professores, qual o público com mais
afinidade com o candidato; e (4) outras variáveis a serem criadas pela equipe estratégica.
Para chegar a essas respostas mais duas fases são necessárias. Após a definição dos públicos
dentro dos grupos, inicia-se a fase técnica chamada “set up”, uma atividade operacional, em que um
profissional com competências no uso do Facebook for business, realiza o passo a passo para criação
de uma campanha dentro da ferramenta. Em seguida realiza-se o “set up da campanha” quando se
aciona o sistema para que a ferramenta configure os dados de acordo com os objetivos definidos. O
Facebook fornece diversas opções de campanhas que de acordo com a finalidade buscada, como
cliques no site, conversão dentro do site, visualização de vídeo e envolvimento com publicação.
No caso da pesquisa de afinidade, as variáveis trabalhadas são (1) “curtidas na página”, novos
fãs adquiridos na página por meio dos anúncios; e (2) “alcance”, número total de pessoas que viram o
anúncio. Quanto o menor alcance e maior o volume de curtidas, chega-se à identificação dos grupos
com mais afinidade junto ao candidato, chamados de “engajadores” e “disseminadores” (gráfico 1).
Em termos financeiros, quanto maior afinidade, menor o investimento financeiro necessário para
converter uma curtida na página do candidato.
Gráfico 1 Qual o público de maior afinidade com o pré-candidato?
Com o resultado dos conjuntos de anúncios sobre o pré-candidato, os grupos foram
posicionados de acordo com os quadrantes:
Gráfico 2 Públicos e grau de afinidade com o pré-candidato
O grupo localizado no quadrante “engajadores” é lido pelos planejadores de comunicação como
um público com potencial de impactar outros grupos quando o tema estiver relacionado ao candidato,
sua campanha e seu projeto político. Apesar de serem considerados um grupo numericamente pequeno
(baixo alcance) comparado aos quadrantes à direita, têm força de proteção à imagem do candidato e
requerem baixo investimento para mobilização digital. Em casos de crise de imagem, por exemplo,
podem ser impactados com anúncios para que se mobilizem e repliquem informações para influenciar
opiniões em suas redes de sociabilidade, presenciais ou digitais.
Segundo Vitorino (2017), o principal foco do trabalho será voltado para os grupos classificados
como “dissemidadores”. São grupos de pessoas numericamente maior (alto alcance) e com alta
conversão de curtidas nos anúncios realizados. O perfil destes grupos pauta decisões sobre a narrativa
a ser utilizada pelo pré-candidato. Se, de acordo com estudos paralelos identificar-se que os votos
femininos serão decisivos nas eleições, o candidato analisado precisaria trabalhar narrativas de
aproximação com os grupos femininos já que sua afinidade é maior com o público masculino (gráfico
2). Para isso, materiais de divulgação, propostas de campanha, agenda de eventos e outras ferramentas
seriam construídas buscando afinidade com o segmento.
Um exemplo de orientação dada ao pré-candidato com base no quadro de afinidade foi a
mudança de discurso sobre Eduardo Paes, prefeito em exercício no período. Quando a candidatura se
transformou em um projeto político do pré-candidato, esse começou a fazer constantes críticas à gestão
de Paes tanto na mídia quanto em seus canais próprios e redes sociais. Mas a pesquisa de afinidade
mostrou que ambos tinham mais proximidade do que o esperado (gráfico 2). A postura crítica ao
governo em exercício afastava os “disseminadores”, grupo de afinidade importante para viabilizar sua
candidatura. Situação semelhante foi identificada com Marcelo Crivella e, nesse contexto, novas
narrativas foram elaboradas para os materiais e discursos do pré-candidato e outros personagens foram
incluídos na dimensão das críticas.
As práticas de gestão de projetos atentam para a limitação de recursos como tempo, dinheiro e
pessoas. Engajado nessa lógica, o estrategista da pré-campanha definiu os públicos posicionados nos
quadrantes inferiores como não prioritários. No inferior direito, os grupos poderiam ser acionados em
casos de crise, impactados com narrativas de defesa, mas não diretamente ligadas ao político e sim a
algum tema que o vincule positivamente. No inferior esquerdo, um público pequeno, mas sem
aderência, só seria alvo de iniciativas da campanha se houvessem “tempo, dinheiro e recursos
sobrando” (Vitorino, 2017).
Considerações finais
Em "Postscript sobre as Sociedades de Controle", escrito em 1990, Deleuze prevê uma forma
de poder que não se baseia mais na produção de indivíduos, como na sociedade disciplinar, mas na
modulação de indivíduos. Para ele, os indivíduos seriam desconstruídos em dados numéricos, divididos
e administrados através de bancos de dados (DELEUZE, 2004).
Nessa linha crítica, o que busquei neste artigo foi olhar as redes sociais, para além de seu papel
midiático e sob sua forma de instrumento de controle capaz de transformar nossa sociabilidade em
números, modulações de pixels e bytes capazes de serem legíveis, empacotados e comercializados. Mas
essa dinâmica requer a construção de uma narrativa de opacidade, “o marketing é agora o instrumento
de controle social” (idem, p. 224). As recentes descobertas sobre o uso não autorizado de informações
de usuários de redes sociais para fins comerciais e eleitorais é uma face desse contexto.
Ao mesmo tempo, a metodologia que trago preserva a identidade dos usuários aproximando
seus resultados da coleta em grupos focais, conforme estudos comparativos durante a pré-campanha
demonstraram.
Planejar e construir a imagem de um candidato político por meio de dados fornecidos por
ferramentas como a de anúncios do Facebook - e outras mídias sociais como o Instagram e mesmo o
Google Adwords - são estratégias que tendem a se ampliar nos próximos anos, principalmente pela
redução de recursos nas campanhas brasileiras após a restrição de doação de empresas, desde o ano de
2016. Na iniciativa aqui apresentada, por exemplo, foram investidos R$720,00 e informações similares
a estas eram identificadas pelos estrategistas em grupos focais que costumam custar pelo menos dez
vezes mais.Outras inúmeras análises são possíveis com os mesmos dados extraídos para este estudo e
periodicamente o Facebook implementa novas funcionalidades tanto para registras hábitos dos
usuários, quando em formatos para oferecer legibilidade aos interessados em pagar por estas
informações.
Referências bibliográficas
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