mata da margaraça

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Parques e Vida Selvagem Outono 2008 30 REPORTAGEM Mata da Margaraça A Mata da Margaraça é a jóia da coroa da Área de Paisagem Protegida da Serra do Açor. Situada no concelho de Arganil, esta reserva biogenética fica na vertente Norte da serra da Picota, cujo ponto mais alto atinge os 1016 metros. Propriedade do Estado, sob gestão do Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade, revela os seus encantos ao visitante, faça sol ou chuva... Chove a cântaros na Fraga da Pena, mas a caminhada anima. Escondida à espera do sol estão os insectos, as aves e outra fauna... bem, quase toda! Contra a corrente, próximo da levada que se liga ao moinho, salta uma rã-ibérica. Mais difíceis de ver são outros anfíbios, como a salamandra- lusitânica, endemismo ibérico que aqui se encontra numa das suas distribuições mais a sul. O guia em cuja companhia temos o privilégio de seguir, Jorge Paiva, tira teimas: «Nem no pico do Verão vi isto seco: corre sempre água». Refere-se à Barroca de Degraínhos, que agita estas cascatas xistosas onde a água ri ao cair, alva, num lugar de sonho. Renitente, segue em busca do rio. Ao lado, há um corte por onde flui o caminho: é evidente o escasso palmo de terra sobre o xisto que domina o substrato da região. Se não houvesse bosque e esta chuva caísse na terra, esta desaparecia, ia parar ao mar, a cerca de cem quilómetros a oeste. O sítio teria para mostrar apenas rocha nua, estéril. Pé ante pé, subimos os degraus de pedra que levam a pequenos miradouros, o que permite ver árvores pouco habituais à altura da copa. Um aderno espreita-nos o caminho cheio de bagas ainda verdes e dá nota desta variante de carvalhal da região Centro onde ombreiam influências atlânticas e mediterrânicas. Jorge Paiva é botânico, professor universitário de Coimbra, hoje aposentado, e mobilizou há duas décadas o esforço que consagrou esta área protegida. Passo a passo, apresenta-nos este sítio especial que ainda foi possível conservar. Musgos e fetos sobem o trilho e falam da humidade que este bosque regenerado guarda ciosamente sob o sol. Nesta manhã de Setembro calhou-nos a chuva: ouve-se a cascata e a água despeja-se das nuvens sobre a copa do arvoredo prenhe de espécies mediterrânicas. A variedade de plantas nativas que se aconchegam neste sítio leva o visitante a outro mundo. Há ali o raro selo-de-salomão e o lírio conhecido como martagão, prevalecem azereiros e loureiros, carvalhos e medronheiros, folhados e salgueiros. A Fraga da Pena é, apesar de todas estas características, apenas uma zona-tampão: «Este local serve para merendar. Na mata não se permite», adverte Jorge Paiva. É uma forma de impedir que o lixo deixe mácula na Margaraça. Uma planta com as flores brancas em forma de guarda-chuva, o embude, ergue-se do leito da ribeira e provoca Jorge Paiva: «Sabiam que os aldeãos dantes esmagavam o rizoma desta planta para atordoar os peixes? Depois apanhavam-nos». Acentua: «É da família da cicuta. As umbelíferas são tóxicas. Até a cenoura. Nós é que não comemos essa parte». Salta ao caminho a textura singular de um Texto: Jorge Gomes. Fotos: João L. Teixeira * Reserva biogenética: rede de reservas constituída pelo Conselho da Europa com base na Convenção de Berna e que, hoje em dia, no caso dos países da União Europeia, se encontra integrada nas listas de sítios propostos para Sítios de Interesse Comunitário – rede Natura 2000. Forest of Margaraça The Forest of Margaraça is the ex-libris of the Protected Area of the Serra do Açor, in the municipality of Arganil. Its vegetation is dominated by oak and chestnut trees. This biogenetic reserve lies on the slopes on the north side of Serra da Picota. Moinho-de-água recuperado

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30 REPORTAGEMMata da MargaraçaTexto: Jorge Gomes A Mata da Margaraça é a jóia da coroa da Área de Paisagem Protegida da Serra do Açor. Situada no concelho de Arganil, esta reserva biogenética fica na vertente Norte da serra da Picota, cujo ponto mais alto atinge os 1016 metros. Propriedade do Estado, sob gestão do Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade, revela os seus encantos ao visitante, faça sol ou chuva... Forest of MargaraçaThe Forest of Marg

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Parques e Vida Selvagem Outono 2008

30 REPORTAGEM

Mata da MargaraçaA Mata da Margaraça é a jóia da coroa da Área de Paisagem Protegidada Serra do Açor. Situada no concelho de Arganil, esta reserva biogenéticafica na vertente Norte da serra da Picota, cujo ponto mais alto atingeos 1016 metros. Propriedade do Estado, sob gestão do Instituto deConservação da Natureza e da Biodiversidade, revela os seus encantosao visitante, faça sol ou chuva...

Chove a cântaros na Fraga da Pena, mas acaminhada anima.Escondida à espera do sol estão os insectos,as aves e outra fauna... bem, quase toda! Contraa corrente, próximo da levada que se liga aomoinho, salta uma rã-ibérica. Mais difíceis dever são outros anfíbios, como a salamandra-lusitânica, endemismo ibérico que aqui seencontra numa das suas distribuições mais asul.O guia em cuja companhia temos o privilégiode seguir, Jorge Paiva, tira teimas: «Nem nopico do Verão vi isto seco: corre sempre água».Refere-se à Barroca de Degraínhos, que agitaestas cascatas xistosas onde a água ri ao cair,alva, num lugar de sonho. Renitente, segue embusca do rio.Ao lado, há um corte por onde flui o caminho:é evidente o escasso palmo de terra sobre oxisto que domina o substrato da região. Se nãohouvesse bosque e esta chuva caísse na terra,esta desaparecia, ia parar ao mar, a cerca decem quilómetros a oeste. O sítio teria paramostrar apenas rocha nua, estéril.Pé ante pé, subimos os degraus de pedra quelevam a pequenos miradouros, o que permitever árvores pouco habituais à altura da copa.Um aderno espreita-nos o caminho cheio debagas ainda verdes e dá nota desta variantede carvalhal da região Centro onde ombreiaminfluências atlânticas e mediterrânicas.Jorge Paiva é botânico, professor universitáriode Coimbra, hoje aposentado, e mobilizou háduas décadas o esforço que consagrou estaárea protegida.Passo a passo, apresenta-nos este sítio especialque ainda foi possível conservar.Musgos e fetos sobem o trilho e falam da

humidade que este bosque regenerado guardaciosamente sob o sol.Nesta manhã de Setembro calhou-nos a chuva:ouve-se a cascata e a água despeja-se dasnuvens sobre a copa do arvoredo prenhe deespécies mediterrânicas.A variedade de plantas nativas que seaconchegam neste sítio leva o visitante a outromundo.Há ali o raro selo-de-salomão e o lírio conhecidocomo martagão, prevalecem azereiros eloureiros, carvalhos e medronheiros, folhadose salgueiros.A Fraga da Pena é, apesar de todas estas

características, apenas uma zona-tampão: «Estelocal serve para merendar. Na mata não sepermite», adverte Jorge Paiva. É uma forma deimpedir que o lixo deixe mácula na Margaraça.Uma planta com as flores brancas em formade guarda-chuva, o embude, ergue-se do leitoda ribeira e provoca Jorge Paiva: «Sabiam queos aldeãos dantes esmagavam o rizoma destaplanta para atordoar os peixes? Depoisapanhavam-nos».Acentua: «É da família da cicuta. As umbelíferassão tóxicas. Até a cenoura. Nós é que nãocomemos essa parte».Salta ao caminho a textura singular de um

Texto: Jorge Gomes. Fotos: João L. Teixeira

* Reserva biogenética: rede de reservas constituída pelo Conselho da Europa com base na Convenção de Berna e que,hoje em dia, no caso dos países da União Europeia, se encontra integrada nas listas de sítios propostos para Sítiosde Interesse Comunitário – rede Natura 2000.

Forest of MargaraçaThe Forest of Margaraça is the ex-libris of the Protected Area of the Serra do

Açor, in the municipality of Arganil. Its vegetation is dominated by oak and chestnuttrees. This biogenetic reserve lies on the slopes on the north side of Serra da Picota.

Moinho-de-água recuperado

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A Casa da Eira é um museu

Parques e Vida Selvagem Outono 2008

O xisto penteia a água de queda em queda

Um palmo de terra e depois xisto: «Se se derruba uma mata, a chuva leva isto tudo e fica a rocha à mostra»

Na Idade Moderna terá sido abatida grande parte da floresta autóctonedesta região, encaixada entre a serra da Estrela e a serra da Lousã__

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moinho de água. A fechadura de madeira típicana porta, o telhado rústico de lousa, as paredestradicionais de lajes de xisto.«Podemos partir daqui a pé até à Mata, é cercade quilómetro e meio».

Primeiros passosJá lá vão mais umas décadas desde a primeiravisita de Jorge Paiva à Mata da Margaraça.Nessa altura era propriedade privada.Quando o antigo dono abriu uma estrada deterra para começar a explorar a madeira,despoletou a investigação necessária para seconservar este património notável.Formada a equipa, «fez-se o levantamento dasaves, dos micromamíferos, dos anfíbios erépteis, dos briófitos e das plantas vascularespara depois se mostrar um levantamento dabiodiversidade do sítio». Foi assim que seganhou o estatuto de conservação.Na altura,falaram com os aldeões: «Uns diziam— tem boa madeira, boa castanha... Houveum que disse: Está a perguntar-me o que achoda mata? Então as meninas já viram que quandoabro a janela vejo aquele verde todo… há lámais paisagens destas no país?Era Adelino dos Prazeres, que veio a tornar-seguarda da natureza, hoje aposentado.«Fui muito auxiliado pelo povo destas aldeias.Relva Velha, Monte Frio, Pardieiros», lembra.«Com o presidente da Câmara da alturaresolvemos trazer aqui as turmas todas detodas as escolas, de todos os anos, desde a1.ª classe ao 12.º ano». Primeiro vieram osprofessores. Depois, professores e alunos. Nofim, «cada estudante fez um trabalho, umdesenho, um texto, uma poesia. Foramexpostos todos os trabalhos no átrio da Câmara:nunca foi tão visitada».O momento era singular: «O Governo estava

encostado à parede. A Câmara queria aconservação da mata e a população também»...Depois de criada a reserva foi a compra:«Deixou-se crescer. E a mata está a recuperaraquilo que ela era: o bosque nativo».

Mata vivaEstamos agora a sair do centro de interpretaçãoda Mata da Margaraça, espaço onde os visitantesfazem um apanhado dos itens mais fortes destareserva natural parcial. Vestidas as capas dechuva, seguimos o percurso e chegamos à Casada Eira, na verdade um museu.Poeta popular e guarda da natureza aposentado,morador na aldeia próxima de Relva Velha,Adelino dos Prazeres juntou ali objectos antigospara que a memória não se apagasse: utensíliosagrícolas como o malho e o gadanho, ou acandeia, as famosas colheres de pau e asgamelas, as socas, uma cozinha e um quartotípicos...Há nomes tradicionais, utilizações a desvendar.Por exemplo: «Quando o castanheiro dava boacastanha, seleccionava-se a árvore e criava-seuma mata de castanheiros; são os soutos». Mas«quando o castanheiro não dava boa castanha,era aproveitado para madeira: cortavam o troncoe depois faziam as gamelas». De um troncofazem-se várias: «Uma pequenina por dentro,sai. Faz-se outra, sai. Quanto mais grosso otronco maior a gamela», explica Jorge Paiva.Depois a árvore vai rebentar: «Quando se olhapara um castanheiro destes, parece um castiçal.Uma formação de castanheiros, cortados todos

Adelino dos Prazeres é poeta popular: na aldeia deRelva Velha Jorge Paiva lê um dos poemas

Sequiosa e rasteira, a Selaginella krausiana dispõe-secomo um telhado invertido

À vistosa flor do martagão sucedem os frutos O azereiro tem o pecíolo vermelho, diferente do loureiro

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Parques e Vida Selvagem Outono 2008

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Mata da MargaraçaCentro de InterpretaçãoCasa GrandeMata da Margaraça - Benfeita3305 - 031 Coja

Mais informaçõesTel: 235741329 ou 239 497 062Fax: 239499029 ou 235741379

HorárioSegunda a sexta-feira, excepto feriados,das 9h00 -12h30/13h30 -17h30

CONTACTOS

desta maneira não é um souto, é um castinçal».Ouve-se ainda a chuva pelo caminho e, nasentrelinhas, percebe-se que quer desandar. Parajá, vai ficando lá por cima no tecto formado pelasárvores.O trilho de terra é macio e apresenta espéciesdiferentes passo a passo.Algumas traem os menos avisados: «As folhasdos ulmeiros jovens parecem de aveleiras». Sãobem diferentes, um é árvore e a outra é «arbustomulticaule. Olhe: no ulmeiro jovem as nervurasda base não são simétricas e a folha é áspera»,esclarece.Os ulmeiros sucedem-se no trilho e dizem quenos estamos a aproximar da ribeira da Mata.Numa convivência constante há cerejeiras-bravas,castanheiros, carvalhos…A luz é escassa cá em baixo, o que precipitaoutros detalhes: «Quando a mata estácompletamente recuperada, não há ervas, nemno Verão».Mas acontecem fenómenos distintos: «Há outrasplantas que vão aparecer, as bolbosas. Comoainda temos uns dias de Novembro com sol,caídas as folhas de algumas destas árvores,naquele espaço de tempo tão curto, têm de florire dar fruto. São as outonais: Scilla autumnalis,Crocus autumnalis»…Nos países do Norte da Europa não há, sãomais frios.Na Primavera ocorre uma simetria climática:«Antes das árvores terem folhas há umas plantasque nascem e dão folha, flor e fruto, antes docarvalhal abrir as suas folhas. São as primeiras,por isso Lineu chamou-lhes Primula». Tudo paraaproveitarem o sol.

Outro azereiro, com bagas negras, prende oolhar. Uma madressilva com bagas rubraspendura-se pelos ramos.Ouvimos: «A vegetação de folha permanente dábagas vistosas. Os animais comem-nas esemeiam-nas nas fezes que dispersam. A defolha caduca — carvalhos, castanheiros, aveleiras— dá frutos castanhos, que se devem confundircom o solo para não serem todas comidas ehaver sementes para as novas árvores».Há bagas por todo o lado, mas «as árvores defolha caduca dão frutos castanhos. Têm essacor para se disfarçarem, para os javalis nãocomerem todas. Têm aqueles espinhos para seagarrarem ao pêlo dos animais e depois aocaírem dispersam a semente. Outrosdisseminadores de sementes são os esquilos eos micromamíferos».

Estes últimos têm os seus «apartamentos», dizo guia, e à porta nascem pequenos carvalhos:«Vem uma raposa, o ratito fica quieto, cor deterra, se a raposa avança, deixa a bolota eesconde-se no buraco.No caminho aberto, o nevoeiro está a subir. Notrilho os fetos Asplenium enchem o papo de luze as folhas caem. Se estivéssemos no imo damata, formariam um cálice, como uma parabólicaa amealhar luz.Quando o silêncio se impõe ouve-se a naturezarespirar.Para o nosso guia a Mata da Margaraça «é umlaboratório vivo». Para outros que a visitem éuma escola e poderá até ser um templo.Sobre um tronco caído no imo do bosquecoberto de musgo a mata sussurra e, mágica,lança um feitiço ao visitante: «Cá vieste, hás-decá voltar».

Centro de Interpretação

Socalcos típicos da região, também conhecidos como quelhadas