massapê

62
massapê 2013 Priscilla Menezes

Upload: priscilla-menezes

Post on 07-Mar-2016

213 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

 

TRANSCRIPT

Page 1: Massapê

massapê

2013

Priscilla Menezes

Page 2: Massapê

Para Francisca Jarina Antunes de Menezes

Page 3: Massapê

1: rio de janeiro – ouro preto – catas altas – belo horizonte – salvador – recife – olinda – fortaleza – massapê

2: valença – massapê

Page 4: Massapê

1

Page 5: Massapê

Lembro da minha avó dizendo que, quando criança, gostava de ficar deitada na terra olhando para o céu de

Massapê.

Page 6: Massapê
Page 7: Massapê
Page 8: Massapê
Page 9: Massapê

O sertão é dentro. É um mover das águas do corpo, o globo ocular versus o chão duro versus o couro frágil do

topo da cabeça versus o fôlego cravado nas pernas. Teus pés já andaram sobre o seco, na lama rara, no mangue

sobre as raízes altas e enfim no sal do mar. Refaço teu caminho pelo avesso, do fim para o princípio. Nascida

nesse solo de calores, muito mais tarde tu andarias pelo meu quintal à procura de pequenos caracóis, com

vontade de sentir o calor de uma vida sob o pés. Teu cabelo, uma natureza onde transbordavam nuvens,

catedrais, agouros, manchas de cor, um imenso bestiário. No teu cabelo navegavam teus filhos, os de carne

embalados pela tua voz e os de tinta retorcidos em teus dedos aparentados com tudo que caminha para o interior

da terra.

Page 10: Massapê
Page 11: Massapê
Page 12: Massapê
Page 13: Massapê
Page 14: Massapê
Page 15: Massapê

Eu me gasto contra os dias, a barriga dividida em dois: parte incontido apetite, parte esmerado jejum. Eu queria

recobrir a estrada da minha voz e ao mesmo tempo me calar sem fim, em plena e silenciosa devoção. E nada

mais que um descaso à lógica, aos cuidados e ao tempo conhecido. Contra o tempo, eu me desmonto. Deixo os

braços pelo chão e dou às pernas um galope desordenado, um passo delirante. Vou atrás de um gesto sóbrio que

perfure minha vida. Exato como o golpe final de uma tourada: os chifres do bicho perfurando a carne de um

homem vivo, esse tipo de elegância.

Page 16: Massapê
Page 17: Massapê
Page 18: Massapê
Page 19: Massapê
Page 20: Massapê

O ar denso da manhã recente revela a vocação sombria de toda terra. Tudo é desterro, todo chão leva ao exilo.

Depois os dias passam banais, entre feiras, engarrafamentos, almoços a quilo, bolhas no pé. Sento-me em uma

igreja e temo pela minha vida, o canto gregoriano arranhado no cd me enjoa, meus ossos se desmontam, e eu

invento uma oração que é assim: bendita face deformada de Deus, besta de mil cabeças, sei que não é teu

onisciente olho que me acompanha, mas tua enorme boca voraz. Sei que deveria fazer minhas preces diante da

janela. O mundo infindável lá fora, esse altar maior. Agradeço pelas boas coincidências, pelas noites mal

dormidas, pela sujeira, e pela enorme compaixão. Te peço apenas que me deixe estar à altura do meu caminhar,

solene e agreste, como esse chão.

Page 21: Massapê
Page 22: Massapê
Page 23: Massapê
Page 24: Massapê
Page 25: Massapê
Page 26: Massapê
Page 27: Massapê
Page 28: Massapê
Page 29: Massapê
Page 30: Massapê
Page 31: Massapê

Estranhos sonhos me devoram, durmo sozinha com uma fera dentro. Equilibro os pesadelos nos ombros a cada

dia. Me lavo com o sabão e me purifico no sol bruto da manhã. Mas não escapo do apetite que me revira as

escamas, a penugem, as tripas mais profundas. Arde a inquietude nos meus olhos. Me multiplico em vinte, sou

o menino que vende bala no trem, sou a senhora que faz o sinal da cruz quando passa pelo cemitério e tosse na

hora do amém, sou o vendedor de caranguejos, sou a mulher misteriosa que se embriaga sozinha pelos bares.

Receio as viagens noturnas, temo um assalto, um deslize qualquer. Mas me embriago de coragem travando uma

batalha silenciosa entre os ossos das minhas costelas.

Page 32: Massapê
Page 33: Massapê
Page 34: Massapê
Page 35: Massapê
Page 36: Massapê
Page 37: Massapê
Page 38: Massapê
Page 39: Massapê
Page 40: Massapê
Page 41: Massapê
Page 42: Massapê
Page 43: Massapê
Page 44: Massapê

Em Massapê, tudo é calor e mansidão. O céu quase tomba, pesa. Nuvens maravilhosas dançam um balé

lentíssimo. Quando visito a casa da moradora mais antiga da cidade, sinto que estou num lugar muito especial. O

acaso foi minha fortuna, o que me trouxe a esse instante precioso. Dona Maria de Lourdes nunca conheceu

minha avó, não há lembrança qualquer da minha família , mas ganho de presente a vida de Maria: nunca estudou

porque preferia brincar, não casou porque não era seu destino, passou o resto de seus dias cuidado de sua irmã

que não tem a luz dos olhos, é devota de todos os santos e nunca mexe em nada da casa, quer deixá-la do jeito

que seus pais a fizeram. Quando peço para fotografá-la, diz que não se acha bonita e não gosta de fotos, mas que

aceita posar pra mim com uma condição: virar-se de costas.

Page 45: Massapê
Page 46: Massapê
Page 47: Massapê
Page 48: Massapê
Page 49: Massapê
Page 50: Massapê
Page 51: Massapê

2

Page 52: Massapê
Page 53: Massapê
Page 54: Massapê
Page 55: Massapê
Page 56: Massapê

Um choro retido umedecendo o avesso da pálpebra. Farejava o passado como um incêndio ao longe. A saudade

lhe visitava as pernas, capturando seu equilíbrio, em ondas. Nas noites acendia velas para espantar os demônios

de dentro da sua cabeça. Às vezes se deitava no chão do casebre, as janelas fechadas, seu peito tremendo como

uma terra traiçoeira, a dor visitando os olhos, escorrendo pelos dedos que marcavam paredes com uma tinta

estranha. Fazia uns desenhos do fundo do mar, esse que nunca conheceu nem pela superfície. Nos primeiros

dias, achou que ia enlouquecer. E enlouqueceu. Bebeu cachaça do gargalo desafiando homens brutos no boteco,

deixou-se violar, foi espancada, regozijou na lama, acordou despida em estranhas camas. Andou nua pela cidade

de manhã, era Godiva sem segredo. Depois decidiu trancar-se durante dias em seu quarto, uma quarentena.

Tremeu de amor, chorou de ternura, soluçou diante de sua grossa solidão. Ninguém poderia a conhecer, nada

chegaria perto de seu coração emaranhado. Depois os dias se acalmaram, abandonou o quarto, lavou a louça suja,

deixou os lençóis ao sol. Já não precisava combater as feras com pontapés, acolheu cães em sua casa, dava-lhes

leite, água e dormia com eles nas noites de lua cheia. Sentiu seu ventre crescer, temeu ter engravidado de algum

desastre, mas depois notou que tinha engordado, que suas carnes recobriam seus ossos com mais firmeza, mais

vigor. Não achou ruim, quis ficar ainda maior, e ficou. Trocou suas roupas antigas por grandes panos de algodão

que amarrava ao modo das gregas. Para combinar, prendia os cabelos grossos no topo da cabeça, e fazia para si

joias de cascas de besouro, ossos, dentes de onça, cogumelos ressecados, espinhos reluzentes. E então deixou de

sentir vontade de se marcar por mãos estranhas, de fazer a língua arder com bebidas fortes, criou rituais diários,

pequenas liturgias que sustentavam seus dias. Tomava banho de lama escura, alimentava cobras na boca, cobria

Page 57: Massapê

seu rosto de mariposas - e a máscara durava apenas um instante - costurava mantos enormes com os quais

recobria o telhado onde se deitava para descansar e tentar acostumar os olhos com o sol. Então decidiu que era

hora de abrir o baú. Depois de dias, encarou de novo aquela imagem, a mulher que havia guiado sua direção até

ali. Viu que o pequeno espelho que tinha herdado agora havia se quebrado em muitos. Espalhou os cacos pelo

chão e se encarou. Era anêmona, moeda, um olho, um pedaço de nariz, um cabelo que cai no rosto, um colar de

contas, um mamilo escuro, pedaço de orelha nua, olhos aguados, boca dilatada, era saliva, era as dobras de um

braço, era um pé cansado, era carne recobrindo osso, era pele opaca e constante, era espasmo, era provisória e

fraca, era uma torre. Achou também um batom carmim com o qual decidiu enfeitar a cidade a redor, deixando-a

menos ocre, mais feroz. Um oratório que ocupou um canto de sua casa, diante do qual gostava de dançar. Então

se lembrou da estrada, os muitos dias sob a chuva e o caminho até ali. Entendeu que era preciso guardar parte de

seu tesouro apenas para si e que não haveria agouro para lhe dar direção, que nenhuma voz do passado a

definiria e o caminho seria sua escolha. O oráculo, seus próprios pés. Então foi possível rir. Lavou-se no rio. A

água passava e nada tinha solidez. Era meio-dia e subitamente o mistério era uma enorme alegria e então foi

alegre até o fim.

Page 58: Massapê
Page 59: Massapê
Page 60: Massapê
Page 61: Massapê
Page 62: Massapê

massapê

2013