masculino e feminino na obra literária

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X FEMININO E MASCULINO NA OBRA LITERÁRIA DE MÁRIO LAGO Getúlio Nascentes da Cunha Resumo: Apesar de ser mais conhecido como ator e compositor além de militante político ligado ao PCB, Mário Lago foi também autor de memórias, poesias, contos e romances, que se encontram hoje um pouco esquecidos. A proposta do trabalho é retomar a importância de Mário Lago enquanto escritor, buscando entender como ele representava os papéis masculinos e femininos em seus textos. Mário Lago foi um autor profundamente inserido em seu tempo, com grande vivência do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro. Partindo da ideia de representação e de gênero, buscaremos discutir sua percepção do papel de homens e mulheres, enfatizando certa visão trágica que perpassa seus textos, principalmente quando envolve as relações afetivas Palavras-chave: Masculinidades. Femilinidades. Mário Lago. Mário Lago é certamente mais conhecido pelo público em geral como ator. Sua presença em novelas de rádio e de TV, em filmes e no teatro, lhe deram notoriedade nacional e reconhecimento. Alguns talvez se lembrem dele também com compositor de “Ai que saudades da Amélia”. Sem se darem conta de que além desta, que foi certamente sua música de maior sucesso, ele compôs mais de 100 músicas, principalmente sambas, sua grande paixão musical. Poucos devem lembrar de Mário Lago como militante político, simpatizante do Partido Comunista Brasileiro, do qual se aproximou no início dos anos 1930 influenciado por colegas da Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro (Velloso, 1998, 215). Sua simpatia pelo Partido Comunista Brasileiro se estendeu por boa parte de sua vida 1 , caracterizando uma intensa participação social em todas as atividades que desenvolvia. É assim que acaba sendo preso em 1932, 1937, 1948, 1949, 1964 e novamente em 1968, gerando inclusive uma das ironias típicas da escrita de Mário Lago: Quando fui preso em 68 (o Ato começava sua devastação), fui encontrar esse sargento servindo no Caetano de Faria, promovido a capitão, comandante de tropa de choque, e o rápido diálogo que travamos foi meio piada de revista: – O senhor não muda, hein, seu Mário? Virou, mexeu, tá preso. – Nem o senhor. Virou Mexeu, tá prendendo. (LAGO, 2001, 40) Aqueles que se interessam pela história do Rio de Janeiro entre o final dos anos 1920 e a década de 1950, pela sua boemia, sua vida noturna e cultural, o Carnaval, seus teatros, sua vida cotidiana, certamente leram ou ouviram falar de seus dois livros de mémória: Na rolança do tempo e Bagaço de beira-estrada. Junto com Reminiscências do sol quadrado, suas memórias sobre sua prisão em 1964, foram um belo exemplo de memorialística. 1 No final dos anos 1980 se aproximou do PT apoiando a candidatura de Lula no segundo turno da eleição

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Artigo sobre os papeis masculinos e femininos na literatura

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

FEMININO E MASCULINO NA OBRA LITERÁRIA DE MÁRIO LAGO

Getúlio Nascentes da Cunha

Resumo: Apesar de ser mais conhecido como ator e compositor além de militante político ligado ao PCB, Mário Lago foi também autor de memórias, poesias, contos e romances, que se encontram hoje um pouco esquecidos. A proposta do trabalho é retomar a importância de Mário Lago enquanto escritor, buscando entender como ele representava os papéis masculinos e femininos em seus textos. Mário Lago foi um autor profundamente inserido em seu tempo, com grande vivência do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro. Partindo da ideia de representação e de gênero, buscaremos discutir sua percepção do papel de homens e mulheres, enfatizando certa visão trágica que perpassa seus textos, principalmente quando envolve as relações afetivas Palavras-chave: Masculinidades. Femilinidades. Mário Lago.

Mário Lago é certamente mais conhecido pelo público em geral como ator. Sua presença em

novelas de rádio e de TV, em filmes e no teatro, lhe deram notoriedade nacional e reconhecimento.

Alguns talvez se lembrem dele também com compositor de “Ai que saudades da Amélia”. Sem se

darem conta de que além desta, que foi certamente sua música de maior sucesso, ele compôs mais

de 100 músicas, principalmente sambas, sua grande paixão musical.

Poucos devem lembrar de Mário Lago como militante político, simpatizante do Partido

Comunista Brasileiro, do qual se aproximou no início dos anos 1930 influenciado por colegas da

Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro (Velloso, 1998, 215). Sua simpatia pelo Partido

Comunista Brasileiro se estendeu por boa parte de sua vida1, caracterizando uma intensa

participação social em todas as atividades que desenvolvia. É assim que acaba sendo preso em

1932, 1937, 1948, 1949, 1964 e novamente em 1968, gerando inclusive uma das ironias típicas da

escrita de Mário Lago:

Quando fui preso em 68 (o Ato começava sua devastação), fui encontrar esse sargento servindo no Caetano de Faria, promovido a capitão, comandante de tropa de choque, e o rápido diálogo que travamos foi meio piada de revista: – O senhor não muda, hein, seu Mário? Virou, mexeu, tá preso. – Nem o senhor. Virou Mexeu, tá prendendo. (LAGO, 2001, 40)

Aqueles que se interessam pela história do Rio de Janeiro entre o final dos anos 1920 e a

década de 1950, pela sua boemia, sua vida noturna e cultural, o Carnaval, seus teatros, sua vida

cotidiana, certamente leram ou ouviram falar de seus dois livros de mémória: Na rolança do tempo

e Bagaço de beira-estrada. Junto com Reminiscências do sol quadrado, suas memórias sobre sua

prisão em 1964, foram um belo exemplo de memorialística.

1 No final dos anos 1980 se aproximou do PT apoiando a candidatura de Lula no segundo turno da eleição

2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

Bem menos conhecida e quase que esquecida, já que nunca foram reeditadas é sua obra de

ficção, curta, mas significativa. Um livro de poemas políticos, O povo escreve a história nas paredes

(disponível na internet no site de comemoração dos 100 anos do autor); um livro infantil, O

mostrinho medonhento, de bastante sucesso; o livro de contos, No rabo da noite; o romance,

Manuscritos do heróico empregadinho de bordel; e dois livros com histórias curtas, poemas, frases,

Meia porção de sarapatel e 16 linhas cravadas.

A proposta central do presente texto é perceber as diversas masculinidades e representações

do feminino presentes nos livros Rabo da Noite e Manuscrito do heróico empregadinho de bordel,

nos socorrendo quando for necessário das demais obras do autor. Os dois foram publicados pela

Civilização Brasileira, o primeiro em 1977 e o segundo em 1979. Vale lembrar que o final dos anos

1970, quando Mário Lago já estava com mais de 60 anos, concentra boa parte de sua produção

literária imprensa e toda ela na Civilização Brasileira.

Apesar da consolidação inegável dos estudos de gênero no Brasil, não é possível ainda

deixar de ter a percepção de que eles ainda estão focados mais nas mulheres e nos homossexuais,

com pouca preocupação com questões voltadas para as masculinidades, em especial quando se

pensa numa masculinidade heterossexual. Poucos estudos focam essas questões, ainda que o “o

conceito [gênero] também abriu espaço analítico para se questionar as próprias categorias de

homem e de mascunilidade, bem como de mulher e de feminino” (Matos, 2008, 337)

O livro Manuscrito do heróico empregadinho de bordel, pode ser lido de várias formas. A

orelha escrita por Ariel Krivochein Marques enfatizava sua característica de retrato do Rio de

Janeiro, lugar onde se passa parte da história. Uma outra forma de ver a narrativa é como um retrato

da violência do Regime Militar brasileiro do pós-64. O suposto manuscrito, teria sido entregue a

Mário Lago por uma desconhecida, ele imagina ser uma prostituta, que o recebeu no aeroporto com

instruções de entregá-lo diretamente a Mário.

A mulher não é capaz de dar maiores informações sobre a origem do manuscrito, diz apenas

que o recebeu das mãos de “um pinta”2 que embarcava pra o estrangeiro (Lago, 1979, 10). a

primeira reação de Lago ao receber o pacote é de suspeita, afinal “coisas bem estranhas acontecem

nos tempos que vivemos. Aquele rolo podia conter documentos comprometedores e, saída a

mensageira, chegarem os homens que me incriminariam por estar com aquilo entre as mãos” (Lago,

1979, 11). Ao ler o título manuscrito do heróico empregadinho de bordel, o medo muda, passou ao

de ser pego pela família e associado àquela figura, afinal, empregado de bordel tinha que ser um

2 Pinta é gíria para cara, pessoa. www.dicafacil.com/2011/09/05/girias-de-carioca, acesso em 30/04/2013

3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

“frescalhote”. Decide esconder o manuscrito e só retoma a ele num dia em que perde o sono e se

põe a ler.

O manuscrito era na verdade o relato da fuga de um militante de esquerda, que avisado na

rua de que seria preso, resolve fugir, sem retornar nem mesmo em casa para se despedir, pegar

roupas ou o que fosse. Perambula pela cidade por dias a procura de um lugar onde pudesse se

esconder, até que encontra um antigo conhecido que o leva para o interior de São Paulo onde passa

anos escondido em várias situações diferentes, sendo a última delas um bordel. Lá, na tentativa de

ajudar o travesti, dono do lugar, se propôs a trabalhar, originando o título do manuscrito. Mas a

coisa não dá certo, afinal, os fregueses, assim como Mário achavam que empregadinho de bordel

tinha necessariamente de ser homossexual, gerando um atrito que o leva a deixar mais uma vez seu

esconderijo, só que agora com a decisão de deixar o país.

Assim entramos nos aspectos da questão de gênero e das masculinidades apresentadas por

Mário Lago. A história não está datada, mas tudo sugere que ela se passa num tempo presente

relativamente curto, Mário recebeu o manuscrito no exato momento em que seu personagem

resolveu sair do país3, portanto estamos em algum ponto entre 1978 e 1979. As perambulações do

personagem duraram alguns anos, o que remete seu início para meados da década, momento em que

o governo militar voltou suas atenções para o PCB, que tinha ficado fora da luta armada (Gaspari,

2003, 405). Portanto, nosso personagem era certamente um militante do PCB.

Importante aspecto dos estudos das masculinidades, é sua divisão entre masculinidades

hegemônicas e masculinidades subalternas. Isto leva a construções em que parte das identidade

masculinas são construídas a partir de sua relação com os padrões de masculinidades dominantes. É

o caso dos homens homossexuais e/ ou de referências a eles que aparecem ao longo do texto. Há

uma clara desqualificação seja pelo Mário autor, seja pelo personagem autor do manuscrito,

daqueles que se apresentam como não portando uma masculinidade nos moldes da esperada.

Estamos diante de uma total rejeição da homossexualidade masculina, que faz com que a

convivência ou mesmo o simples contato com um homossexual seja visto como desabonador e

comprometedor. Depois de algumas especulações irônicas sobre quem seria o autor do manuscrito,

Plínio Marcos ou Josué Montello, e descartados os dois por incompatibilidades no estilo e no tema,

vem a interrogação “Que interesse eu poderia ter pela confidências de um frescalhote”? (Lago,

3 Em nenhum momento do texto o autor do manuscrito diz seu nome, e ao longo de sua narrativa, movido pela necessidade de se esconder, ele vai assumindo novas identidades, procedimento comum entre aqueles que se viram na clandestinidade.

4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

1979, 13) e segue afirmando nunca ter negado conversa aos que encontrou pelos “randevus” (sic)

do Manque e da Lapa,

mas que algum deles, aproveitando-se de uma intimidade passada, chagasse ao descaramento de vir perturbar meus sessenta e tantos anos com suas revelações, e mandando aquilo justamente para minha casa, ah não! tenham a santa paciência, já ia um pouco além da nenhuma importância que sempre dei aos preconceitos, preferindo mesmo combatê-los. (LAGO, 1979, 14)

O que não impediu de manter a distância.

Vale aqui um parênteses. A ideia de que todo bordel tinha um homossexual entre seus

quadros era compartilhado pela polícia, em seu discurso de desqualificação da prostituição e da

legitimação de sua ação disciplinadora. Ainda assim, o assunto da prostituição masculina constituía

um tabu de tal proporções que em nenhum dos levantamentos feitos pela polícia das prostitutas que

atuavam na cidade do Rio de Janeiro aparece registrada a presença de homossexuais trabalhando

nas casas.

A rejeição é reafirmada quando o narrador passa a contar sua própria história de fuga da

perseguição dos agentes da repressão. Depois de muito caminhar sem destino certo, acaba entrando

em um cinema da Cinelândia procurando um lugar onde pudesse descansar um pouco as pernas

antes de retomar sua caminhada. É quando sente a presença de um homem que já havia visto fora

do cinema. a primeira sensação é de medo, a sensação de que tudo tinha sido em vão e que o fim

chegara, havia sido descoberto e seria preso, ou coisa pior ali mesmo. Mas o que ocorreu foi sentir

uma mão em sua coxa que deslizava em direção à barriguilha (braguilha) da calça. E sua reação foi

de total recusa:

Eu estava cansado, estava, arrebentado até não sei onde e em profundo desânimo por ainda não me haver ocorrido um local onde encontrasse segurança. Esse estropiamento talvez me deixasse as ideias um tanto perturbadas, pois a verdade é que, por fração de segundo – e por que ficaria envergonhado de confessar? –, cheguei a admitir que se consentisse naquele jogo poderia ter a recompensa de uma cama, de um esconderijo mesmo, quem sabe?, após o nojo do sacrifício. (LAGO, 1979, 33)

Preferiu voltar para as ruas, para voltar a encontrar outro homossexual, tempos mais tarde,

em sua penúltima parada antes da saída do Brasil. Um amigo que há tempos vinha lhe dando

cobertura o apresenta a Fafinha, um travesti, dono de um bordel (origem do título). Sua reação se

repete, inclusive com a lembrança do ocorrido antes no cinema.

Quanto mais ouvia o tal de Fafinha minha nega falar, mais me ia irritando, tendo de volta à lembrança o acontecido naquela noite na Cinelândia. Com muito esforço me continha para não mandar-lhe a pasta na cara. Que repertório de trejeitos exibia o sem-vergonha! Vontade, mesmo, era dizer ao Custódio para irmos embora dali o mais depressa possível, pois melhor voltar para o Rio, mesmo a pé, indiferente às consequências de minha maluquice, do que continuar suportando todas aquelas frescuragens. (LAGO, 1979, 99)

5 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

Se, de fato, nosso personagem, assim como Mário, era um militante do PCB, sua rejeição a

qualquer possibilidade de contato homossexual é compreensível e faz parte da tradição do Partido4.

Uma das principais reclamações dos comunistas, presos políticos, era quanto ao comportamento dos

presos comuns. Segundo depoimento de Heitor Ferreira Lima, “viviam sujos, quase sem banhos,

exalando mau cheiro, roubando tudo que podiam [e] não possuindo qualquer reconhecimento

humano, parecendo mais animais do que gente. A pederastia, muito disseminada, se praticava à

noite, debaixo de nossas ‘camas’”. (apud Ferreira, 2011, 127-8).

O mesmo preconceito pode ser percebido no conto É..., do livro Rabo da Noite. O conto é a

história de um pai de família que acha que está prestes a morrer, já que foi ao médico e esse não

disse nada, não lhe receitou nenhum medicamento e apenas mandou que voltasse outro dia. No dia

em que teria a consulta, foi almoçar com a família e presencia uma briga entre seus dois filhos, um

menino e uma menina. O conto é excelente narrativa para se pensar as relações de gênero no Brasil,

mas o trecho que nos interessa aqui é quando o pai pensa sobre as atitudes do filho Paulinho, com

17 anos, “o dia inteiro pelos botecos, no futebol, em bacanais – [...] – com mulheres da vida e outro

tipo de gente que ele preferia não dizer porque a esposa sempre lhe merecera respeito, mas não

podia admitir num filho seu. Coisa de tarado!” (Lago, 1977, 42).

Apesar de não haver uma menção explícita a quem eram essas outras pessoas que

participavam dos bacanais, não há como deixar de pensar em homossexuais e travestis. Personagens

esses que não podiam ser mencionados próximos a uma mãe de família5.

Se há a discordância, uma sensação de desconforto, um mau estar frente à homossexualidade

como uma forma de masculinidade desviante, há uma aceitação quando ela se impõe, quando para

além dos trejeitos e das opções há uma afirmação contundente da própria masculinidade em muitos

de seus traços tradicionais: como força, coragem, bravura. É o caso pro exemplo, da admiração

demonstrada por Mário Lago em Na rolança do tempo, por Madame Satã (Lago, 1977b, 107). Mas

é também o que ocorre com Fafinha, o travesti que vai abrigar o narrador do Manuscrito. Fafinha

era dono de um cabaré, o que o levou a manter uma postura de força como estratégia para se impor

frente aos frequentadores do caberá e que não pensa duas vezes antes de responder:

Que é que você está pensando de mim, seu grosso de uma figa? Que eu sou mulher, é? sou muito homem, ouviu? Quando boto a saia entre as pernas até soldado da polícia sai correndo. (Lago, 1977b, 100)

4 James Green cita o caso em que se chegou a cogitar no “justiçamento” de dois militantes no Presídio Tiradentes, por conta de suas práticas homossexuais, que “desmoralizariam” a revolução. (Green, 2006, 106) 5 Em suas memórias, Mário relata o desconforto que foi ser abordado por um antigo colega de colégio. Desconforto causado tanto pela situação do reencontro, mas também pelo choque das diferentes masculinidades. (Lago, 1977b, 91)

6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

Apesar de estabelecerem um convívio respeitoso, o personagem não consegue deixar de ser

perguntar, por que “um sujeito tão legal, pinta de galã incrível, podendo gozar status de Rubirosa

indígena, deliciar-se naqueles remelexos e trejeitos quase asquerosos”? (Lago, 1979, 107-8). A

resposta de Regiobaldo, verdadeiro nome de Fafinha, era que tinha sido uma forra contra os pais por

conta do nome, e que fazia com que os pais não merecessem respeito. Seu comportamento seria

uma forma de afrontar os pais, repetindo a lógica de que certos padrões de comportamento eram

suficientemente indignos para serem utilizados como punição aos pais.

A rejeição à homossexualidade que transparece nos texto de Mário Lago só não está

presente em relação à iniciação sexual dos meninos. No conto Rabo da noite, certamente o melhor

conto, o de maior crítica social e o mais triste dos presentes no livro de mesmo nome, Beto é um

jovem recém-casado que acaba na noite do centro do Rio de Janeiro para esperar a manhã quando

poderia ver seu filho que acabará de nascer. O primeiro de muitos acontecimentos da madrugada foi

a voz de um menino por trás de um tapume “Tá machucando, Chicão.” e a voz do Chicão, que “era

como de homem já feito”. A situação provoca revolta e nojo, mas também a de reconhecimento,

afinal “aquela conversa não era novidade para Beto, menino criado no vai do jeito que der. Em

pequeno tinha sido Chicão de muito garoto menor do que ele”. (Lago, 1977, 141-2) A iniciação

sexual ainda jovem parece ser o padrão de masculinidade aceitável e mesmo que ela ocorra numa

relação homossexual desde que sempre no padrão jovem/passivo X mais velho/ativo. Vale lembrar

que o próprio Mário relata em suas memórias suas aventuras nos bordéis da Lapa quando ainda era

estudante do Colégio Pedro II.

Ao pensar no padrão de masculinidade presentes nos textos de Mário Lago, Manuscrito do

heróico e Rabo da noite, é preciso antes de mais nada ter em mente que falamos de dois grupos

sociais bastante distintos. O narrador de Manuscrito do heróico empregadinho de bordel, apesar de

nunca ser identificado (mesmo seu nome é permanentemente mudado à medida que assume novas

identidades na clandestinidade) é um homem de classe média. Quando foi avisado de que poderia

ser preso a qualquer momento estava indo para o trabalho, tendo na mão uma pasta. Não era,

portanto, um operário. Da mesma forma, sua primeira reação foi tomar um taxi e mandar o

motorista rodar sem ter um destino certo, atitude impensável para um trabalhador de menor renda,

ainda mais quando pensamos que uma das principais realizações dos militares no plano econômico

foi o arrocho salarial (Prado & Earp, 2003, 213-6)

Já os diversos personagens dos contos de Rabo da noite, são claramente homens do povo,

trabalhadores que tinham que lidar no cotidiano com a dura realidade econômico-social. A maioria

7 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

vivendo vida nos limites da pobreza, ressaltando as posições políticas do autor, já que a maioria dos

contos podem ser lidos como denúncia social.

Apesar das diferenças entre os cotidianos dos vários homens que compõem as narrativas eles

possuem aspectos comuns. Todos eles são os provedores de suas família. Apenas no conto Rabo da

Noite, a mulher trabalhava, mas com a gravidez se fui forçada a abandonar o trabalho. O

protagonista do Manuscrito tinha companheira e filhos, mas não informação de como eles

sobreviveram com após a fuga. Mas a maioria das mulheres com as quais ele se relaciona ao longo

da narrativa, não exercia atividade fora de casa, apenas aquelas que não tinham um homem que lhes

provesse o sustento, caso da Rosalinda. Em todos os casos estamos diante de um homem que

trabalha, e trabalha duro para garantir o sustento de sua família.

Também estamos diante de homens que mesmo casados não deixam de ter relacionamentos

fora do casamento, principalmente com prostitutas. Mas chama a atenção a forma como o

protagonista do Manuscrito durante seu período de clandestinidade acaba se relacionando com

várias mulheres. É um sinal claro de uma vida sexual bastante livre, que não se prendia às amarras

do casamento. Menção à sexualidade como uma força acima das demais é frequente em relação aos

homens, não estranha, portanto, que uma prostituta só entende-se sua recusa com a expressão “Você

está precisando mesmo é de um bom garoto” (Lago, 1979, 34), sem acreditar na sua incapacidade

de pagar pela noite. No conto Rabo da noite, Beto é aconselhado a ir para o centro da cidade pois a

mulher teria um longo período de resguardo pela frente e não “daria conta do recado” (Lago, 1977,

141). E, claro, masturbação era uma prática dos tempos de criança, que não cabia a um homem

adulto, ainda que os barulhos da orgia no quarto ao lado fosse digna de figurar num quadro de

Bosch (Lago, 1979, 74)

Mas se o padrão de masculinidade implicava numa sexualidade ativa e heterossexual, cabe

salientar que a representação das mulheres feitas por Mário Lago apresenta algumas ambiguidades.

No Manuscrito, quando ele pede abrigo a uma antiga amiga de infância a primeira reação dela é

“que é que você está pensando de mim, hein?”, para em seguida, explicada a situação acresentar “É

que desde quando fiquei viúva, sabe?, nunca mais homem nenhum entrou lá em casa.” (Lago, 1977,

46-7). E para aquelas que se desviam do caminho a prostituição, ou pelo menos o direito a dizer não

aos homens parecia ser o destino previsto (Lago, 1979, 88)

Mas nos contos em vários momentos as mulheres tomam a iniciativa da sedução,

principalmente quando são jovens, como nos contos Azeredo, o Simples Azeredo e Pra quê, se não

necessário? Mas, mais indicativo desse papel ativo das mulheres é o final do conto Carossel,

8 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

quando a filha explica as razões de sua separação e fala do desejo de se casar novamente a mãe

recomenda:

– Maria, a vida é como um carrossel de parque de diversões. Já viu quantos cavalinhos para a pessoa montar? Hoje um, amanhã outro, depois um terceiro, um quarto... É muito mais divertido do que montar num cavalo só, acredite. (LAGO, 1977, 82)

Interessante é perceber que mesmo sendo mulheres do povo, poucas delas exercem atividade

remunerada fora de suas casas. Apenas Maninha do conto Rabo da noite era operária antes da

gravidez. As outras exercem atividades que podiam ser feitas na própria casa, como lavar roupa

para fora. Mas elas são essencialmente domésticas, principalmente depois de casadas, que parece

ser o destino das mulheres na representação dos texto. Caso mais sintomático disso é Nininha, do

conto Azeredo, o simples Azeredo. Namoradeira como ela só, “a moça andara aprendendo [outras

prendas] por conta própria em cursos intensivos com um mundão de namorados pelos cinemas e

esquinas do bairro ou mesmo um pouco mais longe” (Lago, 1977, 12). O que fez com que a mãe

visse na inocência de Azeredo a salvação para sua filha, que poderia assim casar e deixar de ser

falada, a Nininha-toalha.

Muitos dos personagens de Mário Lago eram trabalhadores. Trabalhadores que passam boa

parte do dia fora de suas casas e por isso têm pouco tempo para se dedicar aos filhos. A paternidade

é certamente importante aspecto da questão das formas de masculinidades. No Manuscrito, o

protagonista se refere uma única vez aos filhos. Depois de muito perambular, cansado e sujo,

usando a mesma roupa por semanas, diante do espelho vem “Inevitável a lembrança da mão da filha

me ajeitando os cabelos para a careca aparecer um pouco menos, os filhos se divertindo com minha

preocupação de elegância” (Lago, 1979, 40). Difícil avaliar se era uma relação amorosa, mas

certamente era de um pai presente.

Nos contos também aparecem várias vezes a figura paterna. Em É..., Tonho é um pai divido.

Achando-se perto da morte não quer que a última imagem dos filhos a seu respeito seja a de um pau

disciplinador, “um chato eternamente em censuras”. Sua auto imagem é a de um pau preocupado

em agradar e fazer as vontades dos filhos, mas sem descurar de chamar-lhes a atenção. Ainda assim,

a imagem do conto é de uma clara divisão de tarefas entre pai e mãe: as brigas entre os irmãos só

cessam na presença do pai, a fonte de autoridade na casa; enquanto a mãe, claramente mais

permissiva é o tempo todo cobrada por Tonho no sentido de ter maior autoridade sobre os filhos.

Também em Ursa Maior, Ursa Menor, Pedro não se negava a ficar com os filhos nos domingos

quando a mulher saia para entrega as roupas e demonstrava preocupação com sua educação, com o

cultivo de bons hábitos, preocupado que os filhos ouvissem a mãe falando palavrões. Apesar do

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pouco tempo que passava em casa, já que saia cedo e só voltava tarde da noite com os filhos já

dormindo, havia uma preocupação sincera de Pedro em relação aos filhos.

Mas em nenhum outro lugar a questão da paternidade assume cores tão dramáticas quanto

no conto Rabo da noite. O conto narra a história de um jovem casal Beto e Maninha e as muitas

dificuldades que enfrentam. Se os textos apresentam pais presentes e mesmo amorosos, isso não

chega a ponto de se perdoar a filha que “deu o mau passo”. Maninha saiu de casa contra a vontade

do pai que não queria seu casamento com Beto. Casados, logo vem a gravidez e o aumento das

dificuldades: vida no subúrbio distante, salário baixo, despesas aumentando. No dia do parto Beto

chega tarde ao hospital, depois do horário de visitas e a enfermeira não o deixa entrar, mas consente

numa visita logo pela manha.

Voltar para o subúrbio era correr o risco de perder o horário, o sofá do hospital era muito

desconfortável. Acaba sendo aconselhado pelo porteiro do hospital a ir ao centro da cidade

aproveitar a noite, já que a mulher teria longo período de resguardo. No centro da cidade ele viveria

uma noite difícil: presencia a cena de sexo entre um menino e um marinheiro. em seguida é quase

assaltado por um grupo de jovens, de cerca de 14-15 anos que viviam na rua. De repente a rua se

ilumina, era a filmagem de um filme, onde acaba ocorrendo um assalto. O suspeito é um menino

que estava próximo e que é surrado pela equipe, até descobrirem que ele era inocente. Inocente do

assunto, o que não o impediu de furtar o dinheiro daqueles que o espancavam. Também esse

menino vivia nas ruas, mas naquela semana pela menos teria dinheiro para comer. Para completar a

noite quando voltava, passava por uma batida polícia e um hotel de prostituição. Primeiro vê um

casal que se justificava com a polícia, pois era marido e mulher, mas se viam obrigados a irem ali

porque o lugar onde moravam com os filhos eram tão pequenos que não lhes dava privacidade. Por

último, ouve seu nome e reconhece sua primeira namoradinha de infância, agora uma prostituta.

Descobre que sua família, antes tão moralista não só aprovava sua condição como se aproveitava

dela, e ainda que ela conseguia na prostituição uma renda muito maior do que a sua.

Depois dessa noite onde muitas das mazelas sociais da cidade lhe foram apresentadas Beto

foi para o hospital esperar a hora da primeira mamada para poder ver sua Maninha e o filho. No

quarto pede para segurar a criança e em meio a um fluxo de lembranças estrangula o filho:

A gente mora nove num barraco só, seu delegado, de noite sente vontade enquanto aqueles caras me batiam afanei um bocado de dinheiro deles parece que perdeu a língua Beto tá tão prosa assim porque é pai me deixa de mão moço você está muchucando elezinho Beto não é assim que se segura criança pão nosso de cada dia nego vambora mão já chega ele tá chorando benzinho você não tá segurando direito nove milhas por mês quando não tem navio de camone vambora mãe já lá em casa a coisa era dura-mão vambora mãe você disse que não ia machuca me dá elezinho aqui se fosse baseado era mais legal não faça isso Beto Beto!

10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

Diante daquela realidade sem perspectiva que se lhe apresentava Beto julgou que a maior

prova de amor a seu filho era poupa-lo de viver num mundo tão cruel.

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Site de comemoração aos 100 anos de Mário Lago www.mariolago.com.br/literatura.php

Feminility and Masculinity on Mário Lago's literature

Abstract: Much knowed as an actor and a composer, as well as a political militant of Communist Party, Mário Lago was also the author of memories, poetry, short stories and novels, which are much forgotten. This work aims to take back the relevance of Mário Lago as a writer, trying to understand how femininity and masculinity appear on his texts. Mário Lago was a whiter who news quite well his society and his city, Rio de Janeiro. Using the concepts of representation and gender, we will try to show his perception of female and male social attribution, and a kind of tragic view of emotional relations between men and women. Keywords: Masculinities. Feminilities. Mário Lago.