marx - uma filosofia da subjetividade - tertulian

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    7arx:

    Urna filosofia da

    Nicois TERTULIANDIRETOR DE ESTLDOS DA oi E DE H.-\LTES TL DES EM SCIEMCES SOCIALES (EHESS) E

    MEMBRO DO COMIT DE REDAO DA REVUE D ESTHTIQUE E DE AOrUEL M.ax

    Se a essncia do homem se identifica com a totalidade das relaes sociais,ento a realizao e a libertao do gnero humano est indissociavelmente liga-da transformao do mundo.

    Exagerando um POEICO as coisas, poderamos dizer que Marx jamais expssistematicamente seu pensamento filosfico. Seu projeto de elaborar umalgica dialtica materialista em rplica a Hegel acabou no se concretizan-do. Existe, verdade, textos filosficos - clebres - de Marx, os Manuscri-tos Filosficos de 1844 ou A ideologia alem redigido em colaborao comEngels), sem esquecer tambm o prefcio de 1859 Contribuio critica daeconomia poltica, mas difcil afirmar que os conceitos filosficos que ossustentam o de trabalho, por exemplo) estejam elaborados de maneira aca-bada e sistemtica. No encontramos, portanto, em Marx nada de compar-vel Enciclopdia das cincias filosficas ou Cincia da lgica de Hegel.Benedettto Croce, entre outros, por exemplo, sempre contestou em Marx aexistncia dc uma filosofia no sentido clssico do termo, cuja estatura sereduziria, para ele, a de um agitador social e dc um profeta revolucionrio.

    Posteriormente, no entanto, alguns de seus representantes mais conhecidosentre os quais Georg Lukcs e Ernest Bloch), defenderam a tese de que existe

    'Texto publicado pela revista Le Nouvel Observateur (out./nov. 2003) em edio dedicada a Marx KarlMarx, Le penseur du troisime millnaire? comment chapper /a marchandsation du monde) com o ttulo

    Devenons ce que nous somm es . Por ocasio do pedido de autorizao para a sua publicao naOutubro, Nicolas Tertulian nos informou que o ttulo originalmente por ele sugerido revista francesa foiUne philosophie dela subjectivit que resolvemos manter com a incluso da aluso a Marx consentida

    pelo autor. Traduo dejuarez Duayer.

    REVISTA OUTUBRO N. lO 2004 .

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    8 NICOLAS TERTULIANem Marx um pensamento filosfico com vocao universal e capaz de abarcar osdomnios do saber filosfico. O conceito marxiano de prxis tal corno ele aparecepor exemplo nas Teses sobre Feuerbach seria capaz se desenvolvido em suas nu-merosas potencialidades de estabelecer tanto urna antropologia filosfica quantourna esttica ou uma tica sem falar do pensamento poltico ou do direito.

    No faltaram tambm tentativas de reconstruir as perspectivas filosficasde Marx em um conjunto sistemtico, desde as dcadas que se seguiram asua morte e pouco tempo depois do desaparecimento de Engels. Na Itlia,Antonio Labriola um esprito brilhante que havia tido contatos com Engels(de quem admirava o Anti-Dhring , publicou antes do final do sculo En-saios sobre a concepo materialista da histria. Govanni Gentile, mais jovemque Labriola e formado na escola de Vico e do idealismo alemo, publicouna mesma poca uma obra notvel, A filosofia de Marx em que se empenha-va em mostrar, falando justamente do conceito de prxis, a enorme coern-cia especulativa do pensamento do autor das Teses de Feuerbach .

    No perodo seguinte, as iniciativas tericas de Kautsky e de Plekhanov(este ltimo autor de uma grande smula intitulada A concepo materialis-ta da histria alimentavam-se da mesma ambio mas aparecem marcadaspor srios limites. O determinismo s vezes estreito de Plekhanov no per-mite fazer justia densidade e complexidade do pensamento de Marxsobre a historia (Sartre ironizou, no sem razo, em Questes de mtodo, osimplismo de certas teses de Plekhanov). E Kautsky, em sua tendncia aassimilar o ser social ao ser biolgico corre o risco de ocultar a especificidadedas atividades teleolgicas na vida social.

    O pensamento filosfico de Marx conheceu tambm numerosas distoresque poca da Segunda Internacional, se caracterizavam especialmentepela incapacidade em reconhecer a herana hegeliana, cuja importnciapara o autor dc O Capital foi enormemente subestimada at os anos vinte.Somente com a publicao em 1923 de Marxismo e filosofia, de Karl Korsche de Historia e conscincia de classe, de Lukcs, que a profundidade dasconexes entre o pensamento de Marx e de Hegel aparece em primeiroplano. Na Itlia Anton io Gramsci reagiu com a mesma intensidade defor-REVISTA OUTUBRO N. 10 2004

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    MARX: UMA FILOSOFIA DA... 9mao mecanicista e positivista do pensamento de Marx. neste sentidoque ele desaprovou o manual Teoria do materialismo histrico de Bukharin.

    Grandes figuras do sculo XX , filsofos munidos de instrumentos neces-srios a uma conceitualizao rigorosa, chegaram concluso que, longe dese reduzir a urna simples teoria econmica, ou mesmo a uma critica da eco-nomia poltica, o pensamento de Marx est fundado sobre urna ontologiana medida em que ele havia definido as categorias como formas do ser-l

    de determinaes da existncia ) e sobre uma antropologia (com o conceito detrabalho, a grande herana de Hegel, como sua pedra angular) contendo innuce uma teoria de conjunto da subjetividade com os conceitos de objetivao,reificao, alienao e emancipao como limiares de uma fenomenologiado sujeito. Com isso se pode mostrar tambm que os conceitos de conscinciade classe e de conscincia do gnero humano a idia de gnero Gattungocupa um lugar importante nos anuscritos de 1844) permitem estabeleceruma sntese entre as exigncias histricas e as exigncias universais da condi-o humana. A profunda historicidade do pensamento de Marx que definiaa essncia do homem como a totalidade das relaes sociais portanto comouma substancia dinmica), marcou de forma decisiva os pensadores da es-cola de Frankfurt, de Max Horkheimer e Teodor W. Adorno HerbertMarcuse e Leo Lowenthal. A teoria marxiana da subjetividade, em particu-lar a tese segundo a qual os indivduos fazem a Histria, mas no em condi-es escolhidas por eles, foi urna revelao para Sartre e o levou a se afastarde Husserl e de Heidegger, sem entretanto renegar suas contribuies, e seaproximar de Marx na grande sntese da Crtica da razo dialtica.

    A fora de atrao do pensamento de Marx no raro se exerceu tambmsobre pensadores que inicialmente pertenciam a horizontes filosficos dis-tantes do marxismo. Nestes casos, a integrao de seu pensamento, enquantoconjunto homogneo de conceitos, em particular a sua teoria da subjetivi-dade, se deu atravs do confronto com correntes de pensamento heterog-neas que deram lugar influncias recprocas e alianas imprevistas. Sartre, dentre muitos, um destes exemplos. Antonio Labriola foi herbatien antesde ser marxista. Gram sci assimilou o materialismo histrico dialogando semcessar com o pensamento de Croce que dominava a Itlia na poca e omarcou bastante. Max Horkheimer, que nos anos vinte se transformou numadepto convicto do pensamento de Marx e em nome do qual fundou a teoria

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    l - NICOLAS TERTULIAN

    crtica da escola de Frankfurt, era ao mesmo tempo um fervoroso admiradorda metafsica de Schopenhauer; e tentou ainda conciliar a doutrina marxianada emancipao social com a tica da culpabilidade e da salvao pro-fessada pelo filsofo da Vontade.Herbert Marcuse foi um dos primeiros a compreender a importncia dosManuscritos de 1844 para a elaborao de uma teoria marxista da subjetivi-dade (cf. seu estudo de 1933 sobre o conceito de trabalho), mas apreendia opensamento de Marx tendo como pano de fundo influncias de Dilthey e deHeidegger. Ernest Bloch construiu ao final de sua vida uma ontologia (cf.seu livro Experimentuin mundi destinada a mostrar que o pensamento deMarx, e em particular sua filosofia cia subjetividade (Bloch fez do no ser -das Noch-Nicht-Sein - sua categoria central), est enraizada em uma teoriade conjunto das categorias do ser (a ateno principal para as categoriasde tendncia, latncia e dc possibilidade objetiva . No se pode, portanto, dei-xar de assinalar que o materialismo dialtico de Bloch (autor de um grandelivro Problema do materialismo se ressente de influencias do ltimo Schellinge de Eduard von Hartmann, pensadores que seduziram o autor deExperimentum inundi e no somente em sua juventude.ELE engendramento de si

    A influncia de Marx na filosofia do sculo XX abrange, como se v, umamplo espectro, e no faltam obras tericas que a reivindicam teoricamentepara construir uma filosofia autnoma (desde a Crtica da razo dialtica deSartre Dialtica negativa de Adorno e Experimentum inundi de Bloch), a talponto que o ncleo filosfico originrio de seu pensamento muitas vezes podeaparecer um pouco obscurecido pelos inmeros desdobramentos e interpreta-es que sofreu. Georg Lukcs se props como tarefa desenvolver os linea-mentos gerais de uma filosofia da subjetividade a partir das premissas marxianasem sua ltima grande obra de sntese, Contribuies ontologia do ser social(escrita durante os anos 1964-1970), que se seguia a sua Esttica e preparavaa Etica (da qual existem apenas as notas preparatrias). Na Frana, HenriLefebvre j havia construdo sua obra com uma ambio semelhante, desen-volvendo de modo original as anlises marxianas da prxis e da alienao eaplicando-as a territrios inexplorados (em particular vida cotidiana).REVISTA OUTUBRO N. 10 2004

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    MARX: UMA FILOSOFIA DA 1

    Marx retomou a tese de Hegel sobre o trabalho como momento decisivona constituio da subjetividade, mostrando como a totalidade das ativida-des humanas se desenvolvem a partir deste ncleo arborescente o que nospermite definir o trabalho como o fenmeno originrio ou a clula geradorada vida social). No ato do trabalho, a intencionalidade da conscincia aposio teleolgica ) se apia nas cadeias causais objetivas, utilizando-as

    para modificar a natureza e adapt-la s necessidades humanas. Trata-seportanto de uma relao de tenso dialtica entre o sujeito e o objeto queinduz a transformaes tanto no objeto quanto no sujeito. Lukcs tambmprops, no ato do trabalho, a distino entre o momento de objetivao aVergegenstndichung da qual Marx falava em seus Manuscritos de 1844, as-sociando Vergegenstndichung a Entgegenstindlic/iitng, objetivao edesobjetivao) e o momento de exteriorizao Entiusserung); o primeirotraduziria as transformaes estabelecidas no mundo dos objetos para torn-los conforme ao objetivo pretendido; o segundo, as reverberaes destasatividades na constituio da subjetividade, as qualidades especificamentesubjetivas que se exprimem no objeto criado.

    A concrescncia dos dois momentos, objetivao e exteriorizao, noexclui, portanto, a possibilidade de conflitos entre os dois momentos, pois ohomem pode ser obrigado a atos de objetivao que no correspondem aum verdadeiro desenvolvimento da subjetividade. A estaria, de acordo comLukcs, a raiz do fenmeno da alienao conceito capital dos escritos dejuventude, mas tambm da maturidade de Marx), onde a multiplicao dasatitudes e capacidades humanas induzidas pelo desenvolvimento das forasprodutivas no acompanhada de uma auto-afirmao da personalidade: amultiplicao das qualidades do sujeito funciona, neste caso, para a repro-duo de um sistema cuja lgica escapa a de uma verdadeira exteriorizaodo sujeito cujas energias esto confiscadas por objetivaes estranhas as suasnecessidades profundas.

    A vida social aparece assim, segundo M arx, como um tecido dcobjetivaes, cuja finalidade no pode ser seno a realizao da personali-dade dos indivduos, responsveis por ela. Uma verdadeira dialtica daheteronomia e da autonomia da personalidade emerge portanto cio autor deO Capital. Os que duvidam que se possa falar de uma filosofia da subjetivi-dade e de um conceito elaborado de humaniras do liomo humanos em Marx

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    12 NICOLAS TERTULIANdevem se recordar que tambm em suas Teorias sobre a mais-valia, quandoele toma a defesa de Ricardo contra o anticapitalista romntico Sismondiem uma passagem clebre do fim do terceiro captulo dc O Capital e fala datransio do reino da necessidade ao reino da liberdade, Marx evoca expli-citamente o desenvolvimento riqueza da natureza humana como um fim em si

    o desenvolvimento das foras humanas, que fim em si-mesmo ( diemenschliche Kraftenwicklung, die sich ais Seistzweck gilt.. ). Tomando a defesade Ricardo, Marx mostra que o desenvolvimento das faculdades da espciehomem aconteceu na histria s custas da maioria dos indivduos e que odesenvolvimento superior da individualidade no se com pra seno ao preo de umprocesso histrico ao longo do qual os indivduos so sacrificados . Na pginafinal de O Capital, ele faz um rpido esboo da complexidade do processo deemancipao da espcie humana indicando as etapas da passagem do reinoda necessidade ao da liberdade.

    No ltimo perodo dc sua atividade, Lukcs construiu sua interpretaoda obra de Marx escolhendo como fio condutor justamente o conceito degnero humano (enquanto que sua obra de juventude Historia e conscinciade classe se apoiava exclusivamente sobre a conscincia dc classe): aobjetivao, a exteriorizao, a alienao, a reificao (que no seno umcaso particular de alienao) e a emancipao seriam formas da subjetivi-dade que marcam a evoluo do sujeito.

    Uma grande distncia separa a interioridade mutilada e mortificada daexistncia alienada, a que se submete s exigncias impostas do exterior, dainterioridade que se desenvolve livremente at realizao de suas quali-dades mais autnticas.

    No centro das consideraes marxianas se encontra a apropriao pelohomem de sua prpria essncia. Jacques D Hondt assinalou (por ocasio deuma conferncia na EHESS) a forte presena nos textos de Marx do Sebstd Seibstheit (individuao) evocando sucessivamente a presena significa-tiva dos conceitos de afirmao de si (Sebsreltauptung ou Selbsbettigung), deproduo de si selbsterzeugung), de diferenciao de si Selbstunterscheindung),at os conceitos que exprimem o distanciamento do eu de suas exignciasmais autnticas: a alienao de si (Selbstenfremdung), o desconhecimento de si(Selbstverkennung), ou o eu vazio de sua substancia, (Selbstaushlung, expres-so polmica utilizada por Marx a propsito da alienao religiosa).REVISTA OUTUBRO N. 10 2004

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    MARX: UMA FILOSOFIA DA... 3UI Ao reino dci liberdade

    A distino formulada por Marx ao final de O Capital entre o reino danecessidade e o reino da liberdade levou Lukcs a propor na parte final desua Ontologia do ser social uma distino entre o gnero humano em si(Gattungsmiissigkeit) e o gnero humano para si (Gattungniissigkeit fiir-sich).Marx havia precisado na passagem acima mencionada que o reino da liber-dade no comea seno quando o trabalho imposto pela necessidade e pelafinalidade exterior cessa e quando ele se situa por sua prpria natureza paraalm da esfera da produo material propriamente dita .E, preciso importan-te: uma organizao social onde os indivduos associados controlam de for-ma racional a economia e a mantm sob seu controle comum (ao contrriode serem dominados por sua potencia cega ), desenvolvendo suas ativida-des em condies as mais dignas e mais condizentes a sua natureza humana ,permanece sendo, entretanto, um reino da necessidade . O verdadeiro reinoda liberdade no comea seno para alm desta esfera da pura produomaterial, l onde o desenvolvimento das foras humanas, que fim em si-mesmo , se transforma na fora motriz da Histria (mas Marx insistia emsublinhar, como antpoda das construes utpicas sobre a futura sociedade,que o reino da liberdade no pode florescer seno sobre o fundamento doreino da necessidade, assinalando que a reduo da jornada de trabalho seconstitui em sua condio fundamental ). (Pode-se assinalar que nada au-toriza a confundir a instaurao marxiana do reino da liberdade com o fimda histria ; verdade que Alexandre K ojve tentou em seu livro sobre Hegelidentificar os dois, mas nesse caso trata-se de uma fantasia extravagante,pois nada no famoso texto de Marx cauciona a idia de uma abolio dosconflitos e de uma cessao da dialtica em uma sociedade emancipada dahegemonia de classe).

    Para Lukcs, o gnero humano em si exprime as fases da sociedade ondeos indivduos desenvolvem suas capacidades a fim de responderem aos imperativos da reproduo social sob o signo da coero e das normas impostaspela organizao social reinante (agindo quase sempre sob pena de naufr-gio , bei der Strafe des Llntergangs , segundo a expresso de Marx . Os mdi-vduos ficariam restritos neste nvel a sua pura particularidadeenquanto agen-tes da reproduo social, sem chegar a transgredi-la em direo verdadei-

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    14 NICOLAS TERTULIANra autonomia de sua personalidade e auto-afirmao de suas qualidadesmais humanas. O gnero humano para si exprimiria justamente esta trans-gresso em direo ao verdadeiro crescimento da personalidade, onde odesenvolvimento das foras humanas se transforma, segundo a expresso

    de Marx, em um fim em si mesmo e onde a ao individual adquire umadimenso universal se inscrevendo no processo de emancipao humana.Lukcs utiliza o exemplo das grandes obras de arte ou de grandes aesticas ele evoca os nomes de Scrates, Jesus ou Hamlet, mas ele tambmcita os conflitos entre Antgona e Ismnia ou entre Electra e Cristemisnas tragdias de Sfocles) para ilustrar a presena da conscincia do g-nero humano para si nas objetivaes forjadas pela humanidade ao longode sua histria. Na tragdia de Sfocles, Ismnia, por sua submisso sinjunes de Creonte, exprimiria os imperativos do gnero humano em si,enquanto que Antgona, pela inflexibilidade de suas exigncias morais,exprimiria a aspirao pelo gnero humano para si. Uma ntida clivagemsepara a subjetividade que funciona para assegurar o status quo social dasubjetividade que abala a ordem estabelecida afirmando sua autonomiaafetiva e intelectual.

    A arte se revela efetivamente um terreno privilegiado para validar aconcepo rnarxiana da subjetividade. A tese do jovem Marx segundo aqual necessrio imaginar como possvel uma sociedade na qual os senti-dos sero tericos , se emancipando da tutela do ter para impor a do

    ser , foi utilizada por estudiosos da esttica que se inspiraram em seupensamento para afirmar a misso desfetichizante da arte , sua vocaopara desconstruir as alienaes que imobilizam a condio humana e libe-rar suas energias emancipatrias. Adorno insistiu sobre a importncia deuma passagem das Teorias da mais-valia, onde Marx polemiza com a con-cepo unilateral da produtividade professada por aqueles que fazem doreino do valor de troca e da mercadoria um absoluto, e onde ele relembraa existncia do trabalhador improdutivo , citando o exemplo de Milton ede seu Paraso perdido O elogio marxiano do trabalhador improdutivo emespecial dos escritores e artistas) para Adorno o smbolo de uma concep-o superior da produtividade, que reserva um lugar decisivo s ativida-des no utilitrias e abre caminho a um ethos bem diferente da metafsicado trabalho e da glorificao do trabalho .REVISTA OUTUBRO N. 10 2004

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    MARX: UMA FILOSOFIA DA... 5O g nero humano

    O pensam ento de Marx deixou um trao facilmente identificvel na filosofiado sculo XX. Ernest Bloch se apoiou no materialismo anti-mecanicista de Marxe em seu conceito de prxis para desenvolver sua oncologia do no ser (oncologiades Noc/i-NichtSein). Lukcs elaborou em sua Esttica e na Oncologia do ser socialum mtodo ontolgico-gentico de anlise dos fenmenos da conscincia quese apia no conceito marxiano de trabalho como paradigma da relao sujeito-objeto. Sartre construiu sua teoria dos conjuntos prticos e sua fenomenologia davida social (a partir do homem da necessidade ou do homem da escassez ,atravs do prtico-inerte, a existncia serial, o coletivo, at form ao do gru-po em fuso ) escolhendo os teorernas de Marx como chaves para a inteligibilidadeda Histria. Adorno partiu da inverso materialista da dialtica hegeliana ope-rada por Marx para forjar a sua dialtica negativa , que ope preeminncia daidentidade na dialtica positiva e identidade idealista entre sujeito e objetouma lgica do sistema para Adorno, numa tese evidentemente discutvel,Marx o pensador do anti-sistema ).

    No terreno da filosofia cia subjetividade, o mtodo ontolgico-gentico de-senvolvido por Luk cs permite fazer justia diversidade e heterogeneidadedas atividades do sujeito, mostrando como se pode reconstruir a partir de Marxa especificidade dos diferentes complexos sociais (da economia ao direito e poltica, at atividade esttica ou tica), indicando, por exemplo, as transi-es dialticas entre a atividade utilitria das Niitzliche, da qual falava Hegelem sua Fenomenologia do esprito), a atividade hedonista (um captulo da Estti-ca de Lukcs consagrado ao agracivel) e a atividade esttica propriamentedita. o conceito marxiano de gnero humano, onde se realiza a fuso entre aparticularidade dos indivduos e a universalidade do gnero, que permitiu aofilsofo hngaro estabelecer, por exemplo, a diferena de nvel entre o beletrismo(Belletristik) e a verdadeira literatura: as primeiras no ultrapassam a expressoda particularidade (a com preendidas as de um grupo social determinado), aopasso que a segunda faz ressoar uma voz humana de alcance universal adiferena que distinguiria, por exem plo, o teatro de Shakespeare de um a boaparte das produes do teatro elisabetiano de sua poca).As formas da subjetividade descritas por Sartrc na Crtica da razo dialticaSo analisadas segundo o princpio marxiano da relao indissocivel entre

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    6 - NICOLAS TERTULIANinterioridade e exterioridade: O homem 'mediado' pelas coisas na mesmamedida em que as coisas so 'mediadas' pelo homem . Sartre estabelece umafenomenologia da subjetividade partindo do homem condicionado pela es-cassez (ele chega a falar de sua fora esmagadora) e do homem da necessi-dade que produz perpetuamente seu prprio instrumento no ambiente daexterioridade, e descreve sucessivamente os estados da existncia prtico-inerte onde a transiucidez da prxis se dissolve na opacidade do Ser, daexistncia serial onde os indivduos, reduzidos a um estatuto molecular ,no so seno uma pluralidade de solides ele denomina este estado comoaquele do coletivo ), at o estado do grupo em fuso que se constri peladesincegrao da serialidade e onde se instauram verdadeiras relaes de

    interioridade e de reciprocidade. Raymond Aron duvidava do marxismo deSartre: sobre certos aspectos possvel que tenha tido razo (cf, seu livroHistria e dialtica da violncia), mas a inspirao marxiana desta fenomenologiada subjetividade no nos parece ser contestvel.

    A sensibilidade de Marx no que diz respeito condio humana em suauniversalidade, para alm mesmo de sua luta pela emancipao do proleta-riado, pode ser exemplificada pelo texto que em 21 de junho de 1856 eleendereou a sua esposa Jenny von Westphalen. Trata-se de uma carta deamor que pode surpreender os que vm Marx exclusivamente como o com-batente pela abolio do capital e o dirigente da Internacional (o que eleefetivamente foi em primeiro lugar): Meu amor por ti, j que ests longe,aparece como ele , gigantesco, no qual se concentra toda a energia de meuesprito e todo o carter de meu corao. Eu me sinto de novo como umhomem, porque eu experimento uma grande paixo... Mas no o amor pelohomem feuerbachiano, nem o da troca de substncia moleschottiana [Marxfaz aluso ao fisiologista italiano de origem holandesa Jacob Moleschott 1822-1895), cujo materialismo 'vulgar' foi objeto de crticas de Marx e Engelsi,nem aquele pelo proletariado, mas o am or pela bem-am ada, por ti, o que fazdo homem novamente um homem . Se poderia considerar esta carta comoum testemunho de fidelidade idia de homem integral , idia que j esta-va presente desde os primeiros escritos filosficos de M arx.

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