martinho lutero - v.1 obras selecionadas de lutero, os primordios, escritos de 1517 a 1519

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Martinho Lutero

Obras Selecionadas

Volume 1 Os Primórdios

Escritos de 1517 a 1519

Editora Sinodal Siio Leopoldo

Concórdia Editora Porto Alegre

Page 3: Martinho Lutero - V.1 obras selecionadas de lutero,  os primordios, escritos de 1517 a 1519

Edição coordenada pela Comissão Iriterli<rerana de Literiiti<rn, foriiiada pela Igreja Evangélica dc Confissão Lutermo no Brasil e Igreja EvliiipClica Liiterana do Brasil, através das editoras:

EDITORA SINODAL CONC~KLI IA EDITORA LTDA. C m a Postal 11 Caixa Postal 3230

93001 - Sdo Leopoldo - RS 90001 -Porto Alegrc - RS (0512) 92-6366 (0512) 42-2699

Coriiissão Interluterana rle I,iterUtl<i.u:

Bcrtholdo Weber Johaiinçs F. Hasenack Gerhard Grasel Martim C. Warth

Ilson Kayser Martioho L. Hoffinann

Comissão "Obras de Lutero":

Donaido Schulcr Martini C. Warlh Joacliim Fischer hlartin N. Drehcr

Tradutores:

Anncmaxie Hohn Luís M. Saidcr Ilson Kayser Martinbo L. Hasse

Walter O. Schlupp

Redapio E revisãoJi?lal: Puginafão:

Luís M. Sander Roberto Francisco

Supervisão geral: Coordenação editorial:

Ilson Kayser Editora Sinodai

,Yetninario Concórdia Biblioteca

Sumário

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Introdução Geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Debate sobre a Teologia Escolástica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Debate para o Esclareciniento do Valor das Indulgências . . . . . . . . . . . . . . . 21

Um Sermão sobre a IndulgEncia e a Graça. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

O Debatc de Heidelberg . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

Explicações do Debate sobre o Valor das Iiidulgências . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

Scrmão sohre o Poder da Exconiunháo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191

Relato do Fr. Martinlio Lutero, Agostiniano, sobre o Encontro com o Sr. Legado Apostólico em Augsburgo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199

Apelação do Fr. Martinho Lutero ao Concílio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227

Uma Breve Iiislrução sobre Como Devemos Confessar-nos . . . . . . . . . . . . . 233

Sermão sobre as Duas Espkcies de Justiça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241

Um Semião sobre a Conteinplação do Santo Solrimento de Cristo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249

Debatc e Defesa do Fr. Martinhn Lutero contra as Acusações do Dr. João Eck . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 257

Comentário de Lutero sobre a 1 3 T e s e a respeito do Poder do Papa (Enriquecido pelo Autor) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267

Comentários de Lntero sobre suas Teses Debatidas em Leipzig . . . . . . . . . . . 333

Um S e m i o sobre a Preparação para a Morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 385

Sermões sobre os Sacramentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 399

Uni Sermáo sobre o Sacramento da Penitência . . . . . . . . . . . . . . . . . 401

Uin Sermão sobre o Santo, Vencrabilíssimo Sacramento do Batismo . . . 413

Uni Semião sobre o Venerabiiíssimo Sacramento do Santo e Verdadeiro Corpo de Cristo c sobre as Irniandades . . . . . . . . . . 425

fii<licis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 447

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Apresentação

Umd temeridade, sem dúvida. Duas pequenas editoras eclesiásticas se arriscam a lançar Obras de Lutero. Mas n5o foi uma temeridade a viagem do monge agostiniano para Worms?

Quem abraçou a idéia de oferecer ao mundo de fala portuguesa as principais obras de Lutcro foi a Con~issão Intcrluterana de Literatura - um gmpo de seis pes- soas - então sob a presidência do I'. Leopoldo Hcimann que lhe deu os primeiros e importantes impulsos.

Desde o início a proposta foi a produção de uin trabailio de alto nível. Para al- cançá-lo a CIL cercou-sc da Comissão "Obras de Lutero" integrada exclusivamente por pcritos em matéria de História da lgrcja. Buscaraii-se tradutores - e como 6 difí- cil encontr&los! -que estivcsseiu à altura da dificuldade <Ia tarefa e identificados com ela. E os recursos financeiros, de onde os obteríamos? Abrirani-se portas tamb$n nesta &a. A Anerican Lutkeran Churck e a Lutkerari Ckurck Missouri Synod, par- ceiras da Igreja Evangélica de Confissão Lutcrana no Brasil e da Igreja EvangClica Luterana do Brasil respectivamcnle, e o SI. Daniel Krebs colocaram verbas à disposi- ção. E por caminhos tortos -estes maravilhosos caninhos de Deus que se entendem somente "pelas costas", como Lutero gosta de se expressar - pudemos contar tam- bém, para a rcta fmal da rcdação deste primeiro volume, com um competente redator e revisor geral.

Que nos resta dizer ainda, quando a Comissão "Obras de Lutero" inclusive nos poupou da tarefa de oferecermos detalhes t6cnicosY Resta uma coisa: o nosso agrade- cimento.

.$L&,, 7 2 CL . - São Leopoldo, julho de 1987. Pela Comissão Interluterana de Literatura

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Introdução Geral Martiiiho Lutero é um dos grandes personagens que marcaram profundamente o

curso da história moderna do Ocidente. Abalou os fundamentos medievais de seu mundo e abriu novos horizontes a seus contemnorâneos. Já foi colocado. com boas razoes, ao lado dos famosos navegadores Crist&ão Colombo e Vascn da Gama, bem como de João Gutenberg, o célebre inventor da imvrensa com t i ~ o s móveis.

Lutero era um homém profundamente religiosõ, consciente, da presença de Deus na história humana. De modo semelhante a Jacó, do qual nos faia o Antigo Testa- mento em Gênesis 32.22-30, lutou com Deus até compreendê-lo como o Senhor sobe- rano que tem amor profundo para com suas criaturas, mesmo caídas. Sua pregação da justificasão do pecador somente pela fé por causa de Jesus Cristo transformou Igreja e sociedade. Dela vieram significativas contribuiçdes para o desenvolvimento da hu- manidade. A influência de Lutero não se restringiu à vida da fé, o campo que lhe era mais familiar por tradiqão e educação. Fez-se sentir também em setores como educa- cão. volitica. economia e outros. O imnacto de sua obra sobre cultura e costumes foi . . . grande em todas as camadas da população. Já em sua época era impossivel não tomar ~os i ção frente à causa aue ele colocara no centro das reflexdes e discnssdes. Também . . 500 anos após o seu nascimento, Lutero não perdeu nada de seu significado histórico, como mostraram as solenidades comemorativas realizadas em 1983.

A produção literária de Lutero é vastissima: prédicas, interpretaçdes biblicas (sua "~rofissão" era ~rofessor vara a interpretacão da Saprada Escritura!), escritos teoló- . ~

gicos eruditos, polêmicos e-pastorais, a tradufão da ~ i b l i a para al ingiade seu povo, o alemão, pareceres sobre as mais diversas auestdes. cartas e muito mais. A edicão com- pleta de suas obras abrange mais de 100 võlumes. Porém apenas um número reduzidis- simo de seus escritos foi traduzido para a lingua portuguesa. O registro dessas tradu- sdes (até o ano de 1982) não ocupa nem sequer duas páginas. Nos países de faia ponu- guesa era praticamente impossível tomar conhecimento do pensamento profundo e ri- co deste "evangelista de Jesus Cristo".

A Comissão Interluterana de Literatura (CIL), constituída e mantida pela Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) e pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), aproveitou a oportunidade das comemoraçdes dos 500 anos do nascimento de Lutero. ein 1983. oara oromover a oublicacão de "obras selecionadas . . . de momentos decisivos da Reforma", todas elas de autoria de Lutero. Convocou um grupo assessor de qiiatro membros, a Comissão "Obras de Lutero" (COL), para pre- parar o volume Pelo Evangelho de Cristo, publicado então em 1984'. O livro possibili- ta um conhecimento consideravelmente melhor do reformador e de sua teologia. Per- - mite, igualmente, vislumbrar sua atualidade.

A CIL e a COL, no entanto, estavam cientes, desde o início, de que um volume só não é suficiente para um aprofundamento mais abrangente no pensamento de Lutero. Decidiu-se preparar uma edisão em vários volumes. O projeto elaborado pela COL prevê, no decorrer dos próximos anos, a publicapio de 12 a 14 volumes. Os dois pri-

i Marlinho I.UTERO, Pelo Evangelho de Crisro; obras selecionadas de momentos decisivos da Keforina. Porto Alegre. Concórdia; Sàa Leopoldo, Sinodal, 1984, 338 p.

O

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i~ieiros apresentam escritos de Lutero dos anos anteriores a 1520 (vol. I) e do ano de 1.520 (vol. 2) em ordem cronológica. Quer-se mostrar, desta maneira, como Lutero <Iicyou a se tornar o reformador da Igreja cristã. Os demais volumes serão temáticos, :il>tangendo obras de teologia erudita, escritos relacionados com congregasão e culto cristãos, obras polêmicas, obras sobre ética cristã (família, economia, Estado, educa- v:lo. etc.), interpretasão da Sagrada Escritura, além de sermões e cartas e um indice &*,era1 de toda a coleção. O avanso do projeto depende, naturalmente, dos recursos hu- rii:inos e financeiros disooniveis.

Apresentamos ao público o 1: volume. Foi preparado, em constante contato com ;I ( 'IL, pela COL, integrada, inicialmente, pelos professoresdr. Nestor Beck, dr . Mar- t i l i Norberto Dreher, dr. Joachim Fischer e Mário L. Rehfeldt STM. Posteriormente rtiiraram os professores dr. Martim C. Warth (após a partida de Nestor Beck para es- i~i,.los na Europa) e dr. Donaldo Scbuler (após o falecimento de Mário L. Rehfeldt). <i? inte~rantes da COL são responsáveis pela seleção dos escritos deste volume, as in- iioi~usdes, as notas de rodapé e uma primeira revisão das traduçdes. Estas últimas fo- i:iiti feitas por Martinho L. Hasse, Annemarie Hohn, Ilson Kayser, Luis M. Sander e W:ilter O . Schlupp. Como editor-geral foi contratado o dr. Luis Marcos Sander, res- ~'iuisável pela revisão e redação final de todos os textos. Executou suas tarefas com L,,! :iiide competência e dedicasão. pelo que merece os mais sinceros agradecimentos da 1 '0l2.

Quatro escritos deste volume, bem como as respectivas introduções (estas, revisa- <I:is), são publicados pela 2: vez. Já estão contidos em Pelo Evangelho de Crislo. E IIIII:I opsão consciente da CIL e da COL. Na opinião das duas comissões, o leitor e es- iiidioso deve ter à sua disposição, napresente edição, todos os escritos de Lutero sele- cionados Dara a ~ublicacão em oortueuês.

As passageni biblicas citadas nostextos foram traduridas da versâo apresentada ~ ~ c l o próprio Lutero, com apoio na versão ern português de João Ferreira de Almeida, ~>iiblicada em edição revista e atualizada (1969) pela Sociedade Bíblica do Brasil. Desta edisão foram tomadas as abreviaturas dos livros da Biblia, com exceqão dos apócrifos, inra os quais utilizamos as abreviaturas da Blblia de Jerusal4m, publicada em ediqão revista (1985) pelas Edições Paulinas. No caso das passagens biblicas citadas por Lute- ro, areferência se encontra no corpo do texto. A indica& do(s) versiculo(s)foi acres- centada por nós (Lutero indica apenas o capítulo). Quando o próprio Lutero não indi- ca onde se encontra a nassaeem citada. a referência foi colocada entre colchetes. . Quanto à numeração dos Salmos, acrescentamos entre colchetes o número da versão dç Almeida nos casos em aue ele difere da numeracão da Vuleata ítraducão da Bíblia para o latim), utilizada por Lutero. Nos casos em'que Luter; al"de ou'se reporta a Iiassagens biblicas, a referência se encontra em nota de rodapé. Quando Lutero cita ou \c refere a afirmaçdes de outros autores, sobretudo dos pais da Igreja e do direito ca- ridnico, a referência foi colocada. semore aue uossivel. em nota de rodaoé. Quanto à . . . . . iindução, em alguns casos se fez necessário acrescentar palavras ou explicaqões ao tex- to de Lutero. Quando imorescindiveis, elas foram inseridas no corpo do texto, entre ci>lcbetes. Nos demais casõs, estão em nota de rodapé. Todos os escritos foram tradu- ~ i<l»s do texto da conhecida edição de Weimar (WA). com utilização de outras versdes c iraduções a que tivemos acesso. A indicação exata da fonte se encontra em nota de i-<idapé ao titulo de cada escrito.

A Comissão Interluterana de Literatura e a Comissão "Obras de Lutero" lamen- i ; i i i i com profundo pesar o falecimento prematuro de seu colega e irmão em Cristo, M!iri<i I.. Rehfeldt, ocorrido em 13 de junho de 1985, dois meses antes de ele comple- Iiii- 50 anos de idade. Deixou com a COL, como uma espécie de testamento teológico-

histórico, as introduções assinadas neste volume com seu nome. CIL e COL prestam- lhe esta última homenagem com as palavras do Salmo 34.22, seu salmo predileto: "O Senhor resgata a alma dos seus servos, e dos que nele confiam, nenhum será condena- do,"

i Ao entregarmos aos leitores de fala portuguesa este volume, fazemos votos de que Lutero fique melhor conhecido entre nosso povo e que sua causa se torne bem evi- dente: "Que toda lingua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai." (Filipenses 2.1 1.)

Janeiro de 198'7

Pela Comissão "Obras de Lutero" Joachim Fischer

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Debate sobre a Teologia Ekcolástical

A teologia medieval oii escolástica baseava-se amplamentç no pensamento de Aristóteles (384-322 a.C.), um dos mais importantes filósofos da antiga Grécia. Era comum dizer-se que a filosofia em geral é a serva da teologia" que, sem Aristóteles, ninguém pode ser teólogo'. Formaram-se as correntes ou "escolas" dos tomistas, se- guidores do dominicano italiano Tomas de Aquino (1225-1274), dos escotistas, segui- dores do francisc;uio escocês João Duns Escoto (aproximadamente 1270-1308)4, e dos occamistas, segudores do franciscano inglês Guilherme de Occam (aproximadamente 1285-1349)5, senclo esta última corrente também chamada de "via moderna".

Na Universl lade de Erfurt. Lutero foi educado segundo os ~ad rdes filosofico- iroldgico> do o;. dmi\iiii>. ('r'ilo. p.)riiii. i.inic;,>ii a tiaar iii>ati,icii,? ;c1!11 :I iii:iiicira r., colhsti::i J c i a ~ c . lcolov~~i. COIIIC ~ r ~ i c ~ w r de ii1terprct.t;3o J:, liil~li:i, drhJc 1512, i i ~ i . . recém-fundada (1502) Üniveriidade de Wittenberg, aprofundou-se no estudo da Sagra- da Escritura. Em busca de alternativas, encontrou imvortante aiuda nos escritos de Aà.?lliiihu (353-430). hiq>o Jc lIipi,ria. ria itri;;i dc8 \<,rir. iiin J<i> iiiaior:\ pcri~;tJ\,~c. dc toda 3 ii~stnria .l;i teolozia ;ri,iS, :\~~o,t:nIi~l t,ra p;itr.lri~) .l:i l'tiivcr ,~daJc Jc i4'ilic11- herg, e seu pensamento foi de grande importância para a Ordem dos Agostinianos Ere- mitas, à qual Lutero pertenceu. A partir decritérios tomados da Bibliae de Agostinho, Lutero percebeu que a teologia estava acorrentada no cativeiro da escolástica~impossi- hilitadade articular adequadamente a questão essencial da fé cristã, ou seja, graça e jus- tificação, Deus em seu relacionamento como ser humano e vice-versa. As verdades da fé não podem ser compreendidas em toda a sua profundidade mediante a aplicaçào das re- gras dalógica filosófica. A teologia precisava ser libertada, sobretudo da "ditadura" de Aristóteles, a quem, certa vez, Lutero caracterizou como "esse palhaço que, com sua máscaragrega, tanto enganou a Igreja"6.0 metodo teológico alternativo era o do para- doxo: afirmaçdes que a lógica tradicional considerava paradoxais passaram a ser usadas oara exoressar adeauadamente as verdades cristãs.

1 ~ u i e r o tornou:se o mentor espiritual da nova maneira de fazer teologia. Conven- ceu seus colegas da Faculdade de Teologia da necessidade de substituir as matérias tra-

I dicionais po;outras, mais adequadas para conduzir os alunos ao centro da fé cristã. Em maio de 1517, escreveu a seu amigo João Lang, em Erfurt, que "nossa teologia e Agostinho progridem bem, com a ajuda de Deus, e predominam em nossa universida-

1 Disputotio conlroschhoiosficam rheologiarn, WA 1,224-8. Tiadu~ão de Walter O. Schlupp. 2 Pkilosophia onciilo theologiae. 3 Cf. a tese 43 deste escrito. 4 Um dos mais brilhantes pensadores escolásticos. Lecionou em Paris, na Inglaterra e em Ca-

Iônia (Alemanha). 5 Iniciador do norninalismo (v. nota 23 infrB) dos sécs. XIV/XY e da corrente filosófico-teo~

lógica da "via moderna". Um das mais fiéis adeptos de sua teologia foi Gabriei Biel (v. no- ta 8 infro). Occam lecionou em Paris e faleceu na Alemanha como refugiado.

6 Carta a loao 1;ang. dc 8 de fevereiro dc 1517 (WA Br 1,88,17s. - no 34).

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de. Aristóteles decai pouco a pouco e está sendo arruinado."7 Na universidade havia regularmente debates públicos sobre séries de teses formu-

ladas especialmente para essa finalidade. Quem pretendia adquirir qualquer grau aca- dêmico urecisava demonstrar sua cavacidade intelectual particioando de tal debate. Como as teses não se destinavam a publicaqão, proporcionavam a oportunidade de aoreseiitar idéias novas sem o risco de uma intervenção imediata das autoridades ecle- sksticas. Para o debate de seu discípulo Francisco Günther, pretendente ao titulo de bacharel em Estudos Bíblicos, Lutero resumiu, em 97 teses claras e radicais, sua critica a todo o sistema da teologia escolástica. As teses, redigidas entre 21 de agosto e 4 de setembro de 1517, dirigem-se sobretiido contra Gabriel Bielx e sua concepfão dr. ,apa- cidade natural do ser humano (teses 5 a 36), bem como contra a concepsão de justisa de Aristóteles e o papel do mesmo na teologia (teses 37 a 53), tratando também da re- Iasão existente entre grasa, obediência, livre arbítrio e amor (teses 54 a 97). O debate realizou-se em 4 de setembro de 1517. Sobre seu conteudo nada sabemos, mas o titulo de bacharel em Estudos Bíblicos foi conferido a Francisco Gunther por unanimidade.

Lutero mandou as teses também para Erfurt e Nurnberg. Estava ansioso para conhecer a reação de outros. Chegou a se prontificar a ir pessoalmente a Erfurt para defender publicamente seu ataque aos fundamentos da escolástica. Seus ex-professo- res, iio entanto, não lhe responderam diretamente. Como soube mais tarde, haviam comentado que Lutero era arrogante e condenava precipitadamente os que divergiam de sua teologia. Entre os jovens, porém, as criticas de Lutero foram recebidas como um ato de libertasão das verdades biblicas de seu cativeiro aristotélico-escolástico. Na evolu~ão de Lutero, as teses representam a fase da critica. São o mais importante tes- temunho escrito de seu rompimento com a escolástica e, assim, com seu próprio passa- do teológico. Ainda não aprezentam o programa de uma teologia alternativa. Entre- tanto, com as teses, Lutero removeu definitivamente os obstáculos no caminho em di- reção a uma teologia autêntica, que chega ao "interior da noz" e a "medula dos os- sosMY. Seu amigo Cristováo Scheurl, de Nürnberg, respondeu-lhe, acertadamente, em 4 de novembro daquele ano, após ter recebido as teses: "Restaurar a teologia de Cristo!"

E provável que as teses tenham sido originalmente impressas em forma de cartaz para poderem ser afixadas em Wittenberg, nos lugares destinados a esse fim. Não se conhece nenhum exemplar do original. Só nas reedições as teses estão numeradas; contam-se entre 97 e 100 teses. Os editores modernos preferem contar 97 teses.

Joachim Fischer

7 Carta de 18 de maio de 1517 (WA Br 1.99.8-10 - n o 41). 8 Aproximadamente 1410-1495. Natural da Alemanha, ocupou diversos cargos eclesiasticos,

lecionou na Universidade de Tiibingen (1484-1492) e escreveu um livro didático deteologia, de ampla divulgacâo. Seu pensamento teve grande importância para a formaçâa teológica de Lutera.

9 Carta a João Braun, vigaria em Eisenach, de 17 de marca de 1509 (WA Br 1,17,43s. - r19 5 ) .

Pelas teses abaixo responderi, em local e data a serem determinados ain- da, o mestre10 Francisco Gunther, de Nordhausen, para obtenção d o grau de bacharel em Estudos Biblicosll, sob a presidência d o reverendo padre Marti- nho Lutero, agostiniano, decano da Faculdade de Teologia de Wittenberg.

1. Dizer que Agostinho'%e excede a o atacar os hereges é dizer que Agos- tinho quase sempre teria mentido. Contra a opinião geral.

2. Isto é o mesmo que oferecer aos pelagianosl? e a todos os hereges uma oportunidade de triunfo ou mesmo uma vitória;

3. e é o mesmo que expor a o deboche a autoridade de todos os mestres d a Igreja.

4. Por isso, é verdade que o ser humano, sendo árvore má)', não pode se- não querer e fazer o mal.

5. Está errado que o desejo é livre para optar por qualquer uma de duas alternativas opostas; pelo contrario: ele não é livre, e sim cativo. Contra a opinião comum.

6. Está errado que, por natureza, a vontade possa conformar-se ao dita- me correto. Contra Duns Escoto e Gabriel Biel.

7. Na verdade, sem a graça de Deus, a vontade suscita necessariamente u m ato desconforme e mau.

8. Não se segue dai, entretanto, que ela seja má por natureza, isto é, per- tencente a o mal por natureza, conforme pretendem os maniqueusl~.

9. Mesmo assim, por natureza e inevitavelmente ela é ina e de natureza viciada.

10. Admite-se que a vontade não é livre para tender para aquilo que lhe parece bom segundo a razão. Contra Duns Escoto e Gabriel Biel.

11. Ela também não tem a capacidade de querer o u não querer o que quer que se lhe apresente.

12. Dizer isto tampouco é contra o B. Agostinho, que diz: Nada esta tan- t o dentro d a capacidade d a vontade quanto a própria vontade.

13. Absurdissima é a conseqüência de que o ser humano em erro pode amar a criatura acima de tudo e, portanto, também a Deus. Contra Duns Es- coto e Gabriel Biel.

10 A universidade conferia os títulos de bacharel, mestre e doutor. Francisco Günther já obti- vera o grau de mestre na Faculdade de Artes Liberais. uma espécie de curso básico para to- dos as estudantes.

I I Grau conferido pela Faculdade de Teologia. O bacharel cm Estudos Biblicos estava habili- tado a dar aulas sobre aBiblia.

12 Cf. a introduçâo a este escrito. 13 Adeptos do asceta britânico Pelágio (m. depois de 416), que viveu durante muito tcmpo em

Roma. Afirmou que o cristão é capaz de chegar a perfeicào através da cumprimento da lei de Deus e rejeitou a doutrina do pecado original. O pelagianismo foi virias vezes condena- do coma heresia.

14 <If Mt 7.17.

eiitrç u hcm e o mal (ou a luz e as trevas).

15

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14. Não é de estranhar que ela pode conformar-se ao ditame erroneo e não ao correto.

15. Pelo contrário, é característica sua conformar-se exclusivamente ao ditame errado e não ao correto.

16. Preferível é esta consequência: o ser humano em erro pode amar a criatura; portanto, é impossível que ame a Deus.

17. Por natureza, o ser humano não consegue querer que Deus scja Deus; pelo contrário, quer que ele mesmo seja Deus e que Deus não scja Deus.

18. Amar a Deus, por natureza, sobre todas as coisas, é uma ficção, tinia quimera, por assim dizer. Contra a opinião quase geral.

19. Também não tem validade o pensamento de Escoio a respeito do va- lente cidadão que ama a coisa pública mais do que a si mesmo.

20. Um ato de amizade não provém da natureza, mas da graça preve- niente. Contra Gabriel Biel.

21. Nada há na natureza senão atos de concupiscência contra Deus. 22. Todo ato de concupiscência contra Deus é iim mal c uma prostitui-

ção do espírito. 23. Também não é verdade que um ato de concupiscência podc ser posto

em ordem pela virtude da esperança. Contra Gabriel Biel. 24. Isto porque a esperança não é contrária ao amor, que somente busca

e deseja o que é de Deus. 25. A esperança não vem de méritos, mas de sofrimentos que destroem

méritos. Contra a prática de muitos. 26. O ato de amizade não é a forma mais perfeita de fazer o que está em

si's, nem a mais perfeita disposição para a graça de Deus, nem uma forrna de se converter e de se aproximar de Deus.

27. Ele é, 'isto sim, um ato de uma conversão já realizada, temporaltnen- te e por natureza posterior a graça.

28. "Tornai-vos para mim, e eu me tornarei para vós outros." [Zc 1.3.1 "Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós outros." [Tg 4.8.1 "Buscai e acha- reis." [Mt 7.7.1 "Quando me buscardes, serei achado de vós." [Jr 29.13s.l - Afirmar, a respeito destas e de outras passagens semelhantes, que uma parte cabe a natureza e a outra a graça, não é outra coisa que sustentar o que disse- ram os pelagianos.

29. A melhor e infalível preparação e a Única disposição para a graça é a eleição e predestinação eterna de Deus.

30. Da parte do ser humano, entretanto, nada precede a graça senão in-

16 Focere quod e n in se. no original: "fazer (tudo) o que se é capaz de fazer". Trata-se da idéia de que Deus dá sua graça a quem faz o que é capar de fazer. Essa ideia está presente tanto na teologia como na religiosidade popular da Idade Média. Fazendo o que é capaz de fazer, a ser humano prepara-se para o recebimento da graya de Deus. Segunda Tomás de Aquino, a ser humano só pode fazê-lo movido pela graça divina. Para Alexandre de Haies íoor volta de 1170-12451. natural da Inalaterra e desde a~raximadamente 1231 franciscano. . . - quem faz o que é capaz de fazer é igual a uma pessoa que abre a janela: não acende a luz no quarto nem o ilumina, mas faz com que a luz possa entrar nele para iluminá-lo.

disposição e até mesmo rebelião contra a graça. 3 1. Invencionice vanissima é a afirmação de que o predestinado pode ser

condenado separando-se os conceitos, mas não combinando-osi'. Contra os escolásticos.

32. Igualmente não resulta nada da afirmação de que a predestinação é

I necessária pela necessidade da conseqüência, mas não pela necessidade do consequentelg.

33. Falsa é também a tese de que fazer o que está em si equivale a remo- ver os obstáculos que se opõem a graça. Contra determinados teólogos.

34. Em suma, a natureza não tem nem ditame correto nem vontade boa. 35. Não é verdade que a ignorância irremediável19 exime de toda culpa.

Contra todos os escolásticos. 36. Porque a ignorância de Deus, de si mesmo e do que são boas obras

sempre é irremediável para a natureza. 37. A natureza até necessariamente se vangloria e orgulha por dentro da

i obra que, na aparência e exteriormente, é boa. I 38. Não existe virtude moral sem orgulho ou tristeza, isto é, sem pecado.

I 39. Não somos senhores dos nossos atos desde o principio até o fim, e

sim escravos. Contra os filósofos. 40. Não nos tornamos justos por realizarmos coisas justas; é tendo sido

1 L i

feitos justos que realizamos coisas justas. Contra os filósofos. 41. Quase toda a Efica de Aristóteleszoé a pior inimiga da graça. Contra

os escolá>ticos. 42. E um erro dizer que a concepção de felicidade de Aristóteles não con-

traria a d y t r i n a católica. Contra os moralistas. 43. E um erro dizer que, sem Aristóteles, ninguém se torna teólogo.

Contra a opinião geral. 44. Muito pelo contrário, ninguém se torna teólogo a não ser sem Aris-

tóteles. 45. Dizer que o teólogo que não é um lógico é um monstruoso herege, é

uma afirmação monstruosa e herética. Contra a opinião geral.

17 O que significa separar e combinar os conceitos pode ser mostrado atraves do seguinte exemplo: "Quem dorme, pode estar acordado" é uma afirmação correta "separando-se os conceitos", pois um ser humano pode dormir e estar acordado em momentos diferentes.

1 Mas é uma afirmacão errada "combinando-se os conceitos", pois ninguém pode dormir e estar acordado ao mesmo tempo.

18 "Necessidade da conseqiiência" quer dizer, neste contexto: aquilo que Deus quer, acontece I necessariamente; quem for predestinado por Deus, será necessariamente salvo. "Necessida-

de do conseqüente" quer dizer: não se pode demonstrar que delermirrada pessoa necesaa- riamente tivesse que ser predestinada por Deus.

19 Ipnoronlia invincibilir, no original. Por "ignorância irremediável" os teólogos escolásticos entendiam o fato de que obstáculos intransponiveis impedem uma pessoa de conhecer o verdadeiro e único caminho da salvaçáo, que é indicado pela Igreja de Roma. Tal ignarân-

'4 cia, diriam. não 6 pecado; conseqüentemente, exime de toda culpa. Além disso conheciam a "ignorância grave", que exime de grande parte de culpa, e a "ignorância intencional",

') ciija conreqdência é uma culpa maior.

'I 211 < ' V . a iiitio<liiyãii a csrc escrilo.

17

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46. É em vão que se forja uma lógica da fé, uma suposição sem pé nem cabeça. Contra os dialéticos recentes.

47. Nenhuma fórmula silogistica subsiste em questões divinas. Contra o cardeal Pedro d'Ailly2'.

48. Mesmo assim, não se segue dai que a verdade do artigo sobre a Trin- dade contraria as fórmulas silogisticas. Contra aqueles e contra o cardeal.

49. Se uma fórmula silogistica subsistisse em questões divinas, o artigo sobre a Trindade seria conhecido, em vez de ser crido.

50. Em suma, todo o Aristóteles está para a teologia como as trevas es- tão para a luz. Contra os escolásticos.

51. É altamente duvidoso que os latinos tenham uma opinião correta so- bre Aristóteles.

52. Teria sido bom para a Igreja se Porfiri022 com seus universal ia^^ não tivesse nascido para os teólogos.

53. As definições mais correntes de Aristóteles parecem pressupor aquilo que pretendem provar.

54. Para o ato meritório basta a coexistência da graça; do contrário, a coexistência nada é. Contra Gabriel Biel.

55. A graça de Deus nunca coexiste de forma ociosa, mas é espírito vivo, ativo e operante; nem mesmo pelo poder absoluto de Deus pode suceder que haja um ato de amizade sem que a graça de Deus esteja presente. Contra Ga- briel Biel.

56. Deus não pode aceitar o ser humano sem a graça justificante de Deus. Contra Occam.

57. Perigosa é a afirmação de que a lei preceitua que o cumprimento do preceito suceda dentro da graça de Deus. Contra o cardeal Pedro d'Ailly e Gabriel Biel.

58. Tal afirmação implica que ter a graça de Deus seria uma nova exigên- cia além da lei.

59. Tal afirmação implica também que o cumprimento do preceito pode- ria ocorrer sem a graça de Deus.

60. Ela também implica que a graça de Deus se tornaria mais odiosa do que a própria lei o foi.

61. Disso não se infere que a lei deve ser guardada e cumprida na graça de Deus. Contra Gabriel Biel.

21 1350-1420, francês. lecionou na Universidade de Paris, tendo sido mais tarde nomeado bis- po (1396 em Cambrai) e cardeal (141 1). e um dos teõlogos em cujos escritos Lutero se apro- fundou como estudante universitirio.

22 232/33-304/05, lilásafo neoplatõnico que, embora fosse inimigo do cristianismo, exerceu grande influência sobre o mesmo. Sua introduçào aos escritos lógicos de Aristoteies, rcdigi- da em grego e traduzida para o latim, no séc. VI, por Boécio, foi o ponto de partida para a controvérsia medieval sobre os universoiio (cf. a nata seguinte).

23 Conceitos gen6ricos. Na Idade Média discutiu-se a relaçào entre eles e as coisas reais e per- ceptiveis. O realismo platõnico afirmava que os conceitos genéricos existem realmente, se- parados das coisas. Segundo o realismo aristotéiico, os conceitos existem imanentes as coi- sas. Para o nominalisma, eles sao meras abstraçdes das coisas concretas, abstraçdes essas produzidas pelo raciocinio humano.

62. Portanto, quem está fora da graça de Deus peca constantemente, mesmo não matando, não praticando adultério, não cometendo roubo.

63. A conclusão a ser tirada é que essa pessoa peca por cumprir a lei de forma não espiritual.

64. Não mata, não pratica adultério nem comete roubo espiritualmente quem não se ira nem cobiça.

65. Fora da graça de Deus é a tal ponto impossivel não ser tomado de ira ou de cobiça, que nem mesmo na graça isso pode suceder de forma a cumprir perfeitamente a lei.

66. Não matar, não praticar adultério, etc. exteriormente e em ato con-

I creto é justiça dos hipócritas.

67. Não cobiçar e não se encolerizar provém da graça de Deus. I

68. Portanto, sem a graça de Deus é impossível cumprir a lei, seja de que

I maneira for. 69. Sim, por natureza, sem a graça de Deus, ela é mais transgredida ain-

da. 70. Para a vontade natural, a lei, que, em si, é boa, torna-se inevitavel-

mente má. 71. Sem a graça de Deus, a lei e a vontade são dois adversários implacá-

veis. I 72. Aquilo que a lei quer, a vontade nunca quer, a menos que, por temor

ou por amor, finja querê-lo. 73. A lei é o executor da vontade, que é superado apenas pelo "menino

que nos nasceu" [Is 9.61. 74. A lei faz abundar o pecado, porque irrita e retrai de si mesma a von-

tade. 75. Mas a graça de Deus faz abundar a justiça através de Jesus Cristo,

porque torna agradável a lei. 76. Toda obra da lei sem a graça de Deus parece boa exteriormente, mas

interiormente é pecado. Contra os escolásticos. 77. Sem a graça de Deus, a mão está voltada para a lei do Senhor, mas a

vontade está sempre afastada dela. 78. Sem a graça de Deus, a vontade se volta para a lei movida pela vanta-

gem própria. 79. Malditos são todos os que praticam as obras da lei. 80. Benditos são todos os que praticam as obras da graça de Deus. 81. Quando não entendido de forma errônea, o capitulo Falsas depe .

I dis. V2lconfirma que, fora da graça, as obras não são boas.

I 82. Não só as leis cerimoniais são leis não boas e preceitos nos quais não se vive. Contra muitos mestres.

83. Isto vale também para o próprio Decálogo e para tudo o que puder ser ensinado ou prescrito interior ou exteriormente.

24 Decreturn rnogisiri Crolioni, parte 11, causa XXXIII, questào 111, distindio V, capitulo 6 , in: Corpus iuris canonici, Graz, 1955, v . I , col. 1241. O Decreturn Grorioni é a campila~ão dr> direito can6nico feita pelo monge camaldulense Graciano pouco depois de 1140.

19

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84. A lei boa na qual se vive é o amor de Deus derramado em nossos co- rações pelo Espírito Santo2J.

85. Se fosse possível, a vontade de qualquer pessoa preferiria ser comple- tamente livre e que não houvesse lei.

86. A vontade de qualquer pessoa odeia que a lei lhe seja imposta, a me- nos que deseje que lhe seja imposta por amor a si mesma.

87. Já que a lei é boa, nâo pode ser boa a vontade que é inimiga da lei. 88. Disso se evidencia claramente que toda vontade natural é iníqua e

má. 89. A graça é necessária como mediadora que concilie a lei com a vonta-

de. 90. A graça d e Deus é dada para orientar a vontade, para que esta não

erre também ao amar a Deus. Contra Gabriel Biel. 91. Ela nâo é dada para suscitar atos com maior freqüência e facilidade,

mas por ue, sem ela, nenhum ato de amor é suscitado. Contra Gabriel Biel. 92. i. irrefutável o argumento de que o amor seria supérfluo se, por na-

tureza, o ser humano fosse capaz de um ato de amizade. Contra Gabriel Biel. 93. Perversidade sutil é dizer que fruir e usar constituem o mesmo ato.

Contra Occam, o cardeal Pedro d'Ailly e Gabriel Biel. 94. O mesmo vale para a afirmação de que o amor a Deus subsiste mes-

m o ao lado de intenso amor pela criatura. 95. Amar a Deus significa odiar a si mesmo e nada saber além de Deus. 96. Nosso querer deve conformar-se em tudo a ~ f o n t a d e divina. Contra o

cardeal Pedro d'Ailly. 97. Não só devemos querer o que ele quer que queiramos, mas devemos

querer absolutamente qualquer coisa que Deus queira.

Com isto nada queremos dizer nem acreditamos ter dito qualquer coisa que não esteja de acordo com a Igreja católica e os mestres d a Igreja.

25 Cf. Rm 5 . 5

Debate para o Esclarecimento do Valor das indulgênciasi

As 95 teses, cuja afixasão, a 31 de outubro de 1517, é comemorada anualmente conio Dia da Reforma, de modo algum tinham a intenqão de deíiagrar um movimen- to. Lutero nada mais pretendia que o esclarecimento teológico de uma questão que o envolvia como cura d'almas e que tinha implicaçdes para a piedade de seus paroquia- nos: a indulgência. A indulgência está relacionada ao Sacramento da Penitência. Na I'cnitência, esperavam-se o arrependimento do pecador, a confissão na presença de urn sacerdote, a absolvição e a satisfafáo imposta. Na satisfaqão, o pecador deveria fazer reparasão ou expiasão por causa do castigo que o pecado acarretava. Era opi- nião corrente que o pecado não só acarretava culpa, mas também castigo. Esse castigo deveria ser assumido aqui na terra ou expiado no purgatório. Na Alta Idade Média e na Idade Média Tardia desenvolveram-se, em conexão com o Sacramento da Penitên- cia e com o surgimeiito da doutrina das indulgências, doutrinas que diziam respeito a questdes de direito divino e de direito eclesiástico, ao purgatório e ao "tesouro da Igreja". Este seria formado pelos méritos excedentes de Cristo e dos santos, podendo ser usado pela Igreja para conceder indulgências a terceiros. As indulgências, surgidas no século XI, diriam respeito, inicialmente, apenas aos castigos temporais impostos pela Igreja, mais tarde; aos castigos temporais que deveriam ser purgados no purgató- rio e, iinalmente, também aos pecados de parentes já falecidos que estavam no purga- tório. As opiniões dos teólogos divergiam bastante uma da outra, e, no inicio do sécu- lo XVI, não havia a necessária clareza a respeito do assunto.

As indulgências tinham destacada importância sob o aspecto financeiro. A Cúria e o Estado papal dependiam em grande parte das rendas auferidas com a venda de in- dulgências. Muitos projetos eram financiados com a publicação de indulgências. No campo econômico, pode-se afirmar que as indulgências tinham a mesma função que, mais tarde, teriam os empréstimos. Para os fiéis, a indulgência era uma oportunidade de se protegerem do purgatório e do juizo eterno. Aqui, o desejo de salvaçâo encon- trado entre o povo vem ao encontro das necessidades financeiras da Cúria.

As criticas que Lutero tece nas 95 teses são oriundas de suas preocupaçdes como cura d'almas. bem como de seu comoromisso de. como doutor em Teologia. ter oue - . zelar pela correta doutrina e pregasã; da Igreja. suas criticas são possiveis, pois aiida não existem formulacões doamáticas acerca da questão. Por outro lado são coraiosas. . . pois têrn que enfrentar um uso muito difundidóe o interesse financeiro da Cúria Ro- mana.

e qualquer forma de indulgência; limita-a, no entanto, as penas temporais impostas

I I>i.spurario pro deciorotione virlutis indulgenliorum, WA 1,233-8. Tradução de Waltei O. Schliipp.

2 1

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pela Igreja e volta-se contra a falsa segurança provocada pela indulgência. Por trás da critica comedida encontram-se já alguns indicios para o que há de seguir-se. Nota-se isso no conceito de uenitência. Que. uara Lutero, não é o sacramento, mas arrenendi- . . mento, segundo o uso do conceito no Novo Te~tamento. Há também um novo concei- to de ministério, uois, segundo Lutero, o sacerdote só uode uerdoar cuba como decla- ração de que elajá foi perdoada por Deus. Lutero ataca a doutrina do "tesouro da Igreja" (tese 62). Algumas formulaçdes evidenciam que, formalmente, as teses já não eram apenas temas de discussão. Vejam-se as teses 42-51, que principiam com as pald- vras "Deve-se ensinar aos cristâos que...". Por tudo isso não é de admirar que a dis-

~ ~

tos. Em meados de 1518, Lutero publicou Um sermào sobre u indulgência e a pruçu,

que resume os pensamentos centrais das 95 teses de 1517. Nesse escrito, o acento é co- locado no fato de que arrependimento e penitência são algo que atinge o ser humano todo. O cristão náo deve fuair ao castieo. mas assumi-lo como cruz. As obras aue o - " . cristão deve realizar são serviço ao próximo e não devem ser entendidas conio atos em prol de seu aperfeiçoamento ou ainda como fuga aos castigos impostos por Deus e, co- mo tais, úteis ao ser humano. Neste sermão já começa a ser esboçada a opinião de que a ~rá t ica da Penitência só uoderá ser corriaida caso houver combate a doutrina da teo- logia escolástica, que indiz à ociosidade da fé.

Martin N. Dreher

Por amor h verdade e n o empenho de elucidá-Ia, discutir-se-á o seguinte em Wittenherg, sob a presidência d o reverendo padre Martinho Lutero, mes- tre d e Artes e de Santa Teologia e professor catedrático desta última, naquela localidade. Por esta razão, ele solicita que os que não puderem estar presen- tes e debater conosco oralmente o façam por escrito, mesmo que ausentes. Em nome d o nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.

1. A o dizer: "Fazei penitência"2, etc. [Mt 4.171, nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência.

2. Esta expressão não pode ser entendida n o sentido da Penitência

2 Também seria possível traduzir "arrependei-vos". No entanto, como a palavra latina p o e ~ no tem caráter jurídico-legal, é preferível que se opte por "penitência". Ao usar o conceito, tomando-o de Mt 4.17, na versão da Vulgata, Lutera já está entrando no centro da discus- são. Cf. a carta de Lutero a Staupitz (30/5/1518). WA 1,525-7.

sacramental' (isto é, d a confissão e satisfação4 celebrada pelo ministério dos sacerdoies).

3. No entanto, ela não se refere apenas a uma penitência interior; sim, a ~en i t ênc ia interior seria nula se. externamente. não oroduzisse toda sorte de mortificacões d a carne.

4. po r conseqüência, a pena perdura enquanto persiste o ódio de si mes- m o (isto é a verdadeira penitência interior), o u seja, até a entrada n o reino dos céus.

5. O papa não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daque- las que impôs por decisão própria o u dos cãnones.

6. O papa não pode remitir culpa alguma senão declarando e confirman- d o que ela foi perdoada por Deus, ou , sem dúvida, remitindo-a nos casos re- servados para si; se estes forem desprezados, a culpa permanecerá por intei- ro.

7. Deus não perdoa a culpa de qualquer pessoa sem, a o mesmo tempo, sujeitá-la, em tudo humilhada, a o sacerdote, seu vigário.

8. Os cãnones penitenciais' são impostos apenas aos vivos; segundo os mesmos cãnones, nada deve ser imposto aos moribundos.

9. Por isso o Espírito Santo nos beneficia através d o papa quando este, em seus decretos, sempre exclui a circunstância d a morte e d a necessidades.

10. Agem mal e sem conhecimento de causa aqueles sacerdotes que reser- vam aos moribundos penitências canônicas para o purgatório7.

11. Essa erva daninha de transformar a pena canônica em pena d o pur- gatório parece ter sido semeada enquanto os bispos certamente dormiama.

12. Antigamente se impunham as penas canônicas não depois, mas antes da absoivicão. como verificacão da verdadeira contricão9. . .

13. Através damorte , os moribundos pagam tudo e jáestão mortos para as leis canônicas, tendo, por direito, isenção das mesmas.

3 A Penitência é um dos sete sacramentos da Igreja Católica Romana. Ao usar a expressao "Penitência sacramental". fica evidente que Lutero não nega a Penitència, mas dá-lhe um sentido mais orofundo. a oartir da Novo Testamento ícf. tese I).

satisfacão ocorre por meio de indulgências. 5 Prescrição da modo de confessar ou expiar. 6 Sc. extrema. 7 O purgatório, um estado de penitência e purificação entre a morte e o juizo final, é, para a

doutrina católico-romana, o local para o pagamento das penas decorrentes dos pecados. Estas penas podem ser parcial ou tatalmente eliminadas pelas indulgências. No mundo cris- tào. a doutrina da purgatório surge primeiro em Origenes, no século li. Em 1517, Lutero ainda aceita a doutrina do purgatório. Mais tarde irá abandoná-la completamente.

8 Cf. Mt 13.25. 9 Nas ordens penitenciais da Igreja antiga, existentes desde os dias de Tertuliano, o pecador

tinha que fazer satisfação para alcan~ar a readmissào na comunhão eclesiástica. Após asa- tisfacão, era-lhe anunciada a absolvição e concedida readmissão. Com esta referência his- tórica, Lutcro pretende reforgar a dito na tese 8, onde afirma que as satisfações só podem sei impostas aos vivos e não aos mortos.

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14. Saúdeioou amor imperfeito no moribundo necessariamente traz con- sigo grande temor, e tanto mais, quanto menor for o amor.

15. Este temor e horror por si sós já bastam (para não falar de outras coisas) para produzir a pena do purgatório, uma vez que estão próximos do horror do desespero.

16. Inferno, purgatório e céu parecem diferir da mesma forma que o de- sespero, o semidesespero e a segurança.

17. Parece necessário, para as almas no purgatório, que o horror dimi- nua na medida em que cresce o amor]'.

18. Parece não ter sido provado, nem por meio de argumentos racionais nem da Escritura, que elas se encontram fora do estado de mérito ou de cres- cimento no amor.

19. Também parece não ter sido provado que as almas no purgatório es- tejam certas e seguras de sua bem-aventurança, ao menos não todas, mesmo que nós, de nossa parte, tenhamos plena certeza.

20. Portanto, sob remissão plena de todas as penas o papa não entende simplesmente todas, mas somente aquelas que ele mesmo impôs.

21. Erram, portanto, os pregadores de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do papa.

22. Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única pena que, segundo os cânones, elas deveriam ter pago nesta vida.

23. Se é que se pode dar algum perdão de todas as penas a alguém, ele certamente só é dado aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos.

24. Por isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibria- da por essa magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena.

25. O mesmo poder que o papa tem sobre o purgatório de modo geral, qualquer bispo e cura têm em sua diocese e paróquia em particular.

26. O papa faz muito bem ao dar remissão as almas não pelo poder das chaves (que ele não teml2), mas por meio de intercessão.

27. Pregam doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moe- da lauçada na caixa, a alma sairá voandol3.

28. Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, podem aumentar o lucro e a cobica; a intercessão da Igrejaid, porém, depende apenas da vontade de Deus.

29. E quem é que sabe se todas as almas no purgatório querem ser resga-

10 Sc. espiritual. I I O sofrimento do purgatório é um castigo de purificação imposto por Deus e não pelos seres

humanos. No emito E m l i c o ~ do debate sobre o valor dm indulgêncim ípp. IMss. da te vo- lume), Lutero dirá que no purgatório deve ser consumido o resto do velho ser humano, Pa- ra que surja a nova vida na Espirito. O medo ante o castigo desaparece, enquanto que a fé e O amor crescem.

12 Sc. para este fim. 13 Sc. do purgatório. Segundo o pesquisador católico Nicolau Paulus, o pregador dominicano

João Tetzel realmente anunciou em suas pregaçdes a frase: "Antes que o dinheiro iilinte na caixa, a alma salta do purgatório."

14 Isto é. sua aceitação.

tadas? Diz-se que este não foi o caso com S. Severino e S. PascoaliJ. 30. Ninguém tem certeza da veracidade de sua contrição, muito menos

de haver coiiseguido plena remissão. 3 1. Tão raro como quem é penitente de verdade é quem adquire autenti-

camente as indulgências, ou seja, é rarissimo. '! 32. Serão condenados em eternidade, juntamente com seus mestres,

i aqueles que se julgam seguros de sua salvação através de carta de indulgên- cia.

33. Deve-se ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indulgên- cias do papa aquela inestimável dádiva de Deus através da qual a pessoa é re-

I conciliada com Deus. 34. Pois aquelas graças das indulgências se referem somente as penas de

satisfação sacramental, determinadas por seres humanos. 35. Não pregam cristãmente os que ensinam não ser necessária a contri-

ção aqueles que querem resgatar almas ou adquirir breves confessionais~6. 36. Qualquer cristão verdadeiramente arrependido tem direito a remis-

são plena de pena e culpa, mesmo sem carta de indulgência. 37. Qualquer cristão verdadeiro, seja vivo, seja morto, tem participação

em todos os bens de Cristo e da Igreja, por dádiva de Deus, mesmo sem carta de indulgência.

38. Mesmo assim, a remissão e participação do papa de forma alguma devem ser desprezadas, porque (como disse") constituem declaração do per- dão divino.

39. Até mesmo para os mais doutos teólogos é dificílimo exaltar perante o povo, ao mesmo tempo, a liberalidade das indulgências e a verdadeira con- trição.

40. A verdadeira contrição procura e ama as penas, ao passo que a abun- dância das indulgências as afrouxa e faz odiá-las, pelo menos dando ocasião para tanto.

41. Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras de amor

15 1\., c<;riio Eipliiu(ór~rdo <Iel,iire whre o iuli>r<lacinduly?n:,m lp. I 7 5 de,ic iulunir). Luteri) A i r i "1\13 l i uni c;rir.i Iidedigiio a riipciid do. dai,. p3rCni i > u s ~ ; . ,n i~r qucele; poJsriAm ter sido libertos por seus méritos, se tivessem querido sei glorificados em grau menor. (...) Mas nessas coisas cada um creia o que quiser, para mim tanta faz." Lutero reproduz pcnsa- mentos do agostiniano João Censer von Paltz (até 1507 em Erfurt).

16 As confessionolio. "breves confessionais". eram oarte imwrtante das macas relacionadas .. . :ort. 4 prd.'ldnid;do d.,. 1iidulg6n:.a\ ~tihil.rri Oiiciii ..>mpiairc ia: pri\il?piJ adduiriradi- riiio .I< c*.wllier tini .x,iitr\r<,r. a.> qual li.i>i&ni ; ~ i v c J i h > ai.i<,ii?&;.>cr tis:iilJdc\) c..pc.iui> I > i r i a ab$ul\i;&i. Aleni dirx,. aJquiria uoid ind~lgi'n;id p.iniiia par4 \zr ii<add uma vez na vida e para a hora da morte. Os confessores indicados, quando da venda de

I uma tal bula extraordinária, tinham a autoridade de conceder dispensa também nos casos reservados ao papa e de transformar promessas especialmente severas em outras de menor peso. Alem disso, podiam autorizar a retenção de bens ilegitimamente adquiridos, de ma- trimônios entre pessoas inabilitadas devido a certos graus de parentesco, etc.

17 Cf. tese 6.

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42. Deve-se ensinar aos cristãos que não é pensamento do papal8 que a compra de indulgências possa de alguma forma ser comparada com as obras de misericórdia.

43. Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências.

44. Ocorre que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas ape- nas mais livre de pena.

45. Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.

46. Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundãn- cia, devem conservar o que é necessário para sua casa e de forma alguma des- perdiçar dinheiro com indulgências.

47. Deve-se ensinar aos cristãos que a compra de indulgências é livre e não constitui obrigação.

48. Deve-se ensinar aos cristãos que, ao conceder indulgências, o papa, assim como mais necessita, da mesma forma mais deseja uma oração devota a seu favor do que o dinheiro que se está pronto a pagar.

49. Deve-se ensinar aos cristãos que as indulgências do papa são úteis se não depositam sua confiança nelas, porém extremamente prejudiciais se per- dem o temor de Deus por causa delas.

50. Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse das exações dos pregadores de indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basilica de S. Pedro do que edificá-Ia com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.

51. Deve-se ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto - como é seu dever - a dar do seu dinheiro aqueles muitos de quem alguns pregadores de indulgências extraem ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isto fosse necessário vender a Basilica de S. Pedro.

52. Vã é a confiança na salvação por meio de cartas de indulgências, mesmo que o comissário'9 ou até mesmo o próprio papa desse sua alma como garantia pelas mesmas.

53. São inimigos de Cristo e do papa aqueles que, por causa da pregação de indulgências, fazem calar por inteiro a palavra de Deus nas demais igrejas". - .-

18 Lutero pensa ter o apoio papal ao discutir estas questdes. Na época julga poder usar a opi- nião papal contra seus adversários. Somente alguns anos mais tarde é que verá que estava enganado.

19 Pessoa caniissionada pela Igreja com a venda de indulgêi.cias. O príncipe-eleitor e arcebis- po de Mogúncia, Alberto de Hohenzollern, era comissário-mor para a província eclesiásti- ca alemã. João Tetzel, o pregador daminicano, era subcamissário.

20 Durante o periodo de sua permanência em uma localidade, o comissário era senhor absolu- to sobre a igreja e sobre as sacerdotes. Determinava quando e onde poderia ser pregada. Podia, além disso, suspender a5 indulgências especiais, proibir a confissão, sob pena de ex- comunhão, designar confessores de indulgência. - Nas teses 53-55 bate forte o caracão de Lutero: a indulgência ameaca silenciar a palavra de Deus. Unico fundamento da Igreja e da

26

54. Ofende-se a palavra de Deus quando, em um mesmo sermão, se dedi- ca tanto ou mais tempo ás indulgências do que a ela.

55. A atitude do papa é necessariamente esta: se as indulgências (que são o menos importante) são celebradas com um toque de sino, uma procissão e uma cerimônia, o Evangelho (que é o mais importante) deve ser anunciado com uma centena de sinos, procissões e cerimônias.

56. Os tesouros da Igreja21, dos quais o papa concede as indulgências, não são suficientemente mencionados nem conhecidos entre o povo de Cris- to.

57. É evidente que eles certamente não são de natureza temporal, visto que muitos pregadores não os distribuem tão facilmente, mas apenas os ajun- tam.

58. Eles tampouco são os méritos de Cristo e dos santos>\ pois estes sem- pre operam, sem o papa, a graça do ser humano interior e a cruz, a morte e o inferno do ser humano exterior.

59. S. Lourenço23 disse que os pobres da Igreja são os tesouros da mes- ma, empregando, no entanto, a palavra como era usada em sua época.

60. É sem temeridade que dizemos que as chaves da Igreja, que lhe fo- ram proporcionadas pelo mérito de Cristo, constituem este tesouro.

61. Pois está claro que, para a remissão das penas e dos casos," o poder do papa por si só é suficiente.

62. O verdadeiro tesouro da Igreja é o santissimo Evangelho da glória e da graça de Deus.

63. Este tesouro, entretanto, é o mais odiado, e com razão, porque faz com que os primeiros sejam os úItimos25.

64. Em contrapartida, o tesouro das indulgências é o mais benquisto, e com razão, pois faz dos últimos os primeiros.

65. Por esta razão, os tesouros do Evangelho são as redes com que ou- trora se pescavam homens possuidores de riquezas.

66. Os tesouros das indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje se pesca a riqueza dos homens.

67. As indulgências apregoadas pelos seus vendedores como as maiores graças realmente podem ser entendidas como tal, na medida em que dão boa renda.

68. Entretanto, na verdade elas são as graças mais ínfimas em compara-

fe é a palavra de Deus (cf. tese 62). Também nesse aspecto, Lutero julga contar com o apoio Ele espera ser possível uma reforma da Igreja de dentro para fora.

21 O tesouro da Igreja é formado pelas obras excedentes de Cristo e dos santos. Estas obras excedentes estão confiadas à administracão papal como thesourus bonorum operum. Cabe ao papa distribui-las a quem delas necessita. Lutero nega essa concepção na tese 5 8 .

22 Lufero ainda assume o conceito católico-romano dos santos e de seus méritos. 23 Diácano romano, morta na persegui~ão de Valéria (258). Segundo a lenda, ao ser intimado

pelo juiz a entregar os tesouros da Igreja, Lourenço, que era diácono, apontou para os po- bres da comunidade.

24 <'i. tese 6 . 25 C f . MI 2(l.lh.

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ção com a graça de Deus e a piedade da cruz. 69. Os bispos e curas têm a obrigação de admitir com toda a reverência

os comissários de indulgências apostólicas. 70. Têm, porém, a obrigação ainda maior de observar com os dois olhos

e atentar com ambos os ouvidos para que esses comissários não preguem os seus próprios sonhos em lugar do que Ihes foi incumbido pelo papa.

71. Seja excomungado e maldito quem falar contra a verdade das indul- gências apostólicas.

72. Seja bendito, porém, quem ficar alerta contra a devassidão e licen- ciosidade das palavras de um pregador de indulgências.

73. Assim como o papa com razão fulmina26 aqueles que de qualquer forma procuram defraudar o comércio de indulgências,

74. muito mais deseja fulminar aqueles que, a pretexto das indulgências, procuram defraudar a santa caridade e verdade.

75. A opinião de que as indulgências papais são tão eficazes ao ponto de poderem absolver um homem mesmo que tivesse violentado a mãe de Deus, caso isso fosse possível, é loucura.

76. Afirmamos, pelo contrário, que as indulgências papais não podem anular sequer o menor dos pecados veniais27 no que se refere a sua culpa.

77. A afirmação de que nem mesmo S. Pedro, caso fosse o papa atual- mente, poderia conceder maiores graças é blasfêmia contra São Pedro e o pa- pa.

78. Afirmamos, ao contrário, que também este, assim como qualquer papa, tem graças maiores, quais sejam o Evangelho, os poderes28, os dons de curar, etc., como está escrito em 1 Co 12.

79. É blasfêmia dizer que a cruz com as armas do papa, insignemente erguida29, equivale á cruz de Cristo.

80. Terão que prestar contas os bispos, curas e teólogos que permitem que semelhantes conversas sejam difundidas entre o povo.

81. Essa licenciosa pregação de indulgências faz com que não seja fácil, nem para homens doutos, defender a dignidade do papa contra calunias ou perguntas, sem duvida argutas, dos leigos.

82. Por exemplo: por que o papa não evacua o purgatório por causa do santíssimo amor e da extrema necessidade das almas - o que seria a mais jus- ta de todas as causas -, se redime um número infinito de almas por causa do funestissimo dinheiro para a construção da basilica - que é uma causa tão insignificante?

83. Do mesmo modo: por que se mantêm as exéquias e os aniversários

26 Sc. com excomunhão. 27 A teologia católica distingue entre pecados veniais e pecados mortais. Os primeiros não são

pecados no sentido lato do termo. Os segundos referem-se aos sete pecados capitais. Estes. enquanto não forem perdoados, têm como conseqüência a morte eterna, devendo, por isso, ser confessados.

28 Sc. espirituais. 29 Sc. nas igrejas.

dos falecidos]O e por que ele não restitui ou permite que se recebam de volta as doações efetuadas em favor deles, visto que já não é justo orar pelos redimi- dos?

84. Do mesmo modo: que nova piedade de Deus e do papa é essa: por causa do dinheiro, permitem ao impio e inimigo redimir uma alma piedosa e amiga de Deus, porém não a redimem por causa da necessidade da mesma al- ma piedosa e dileta, por amor gratuito?

85. Do mesmo modo: por que os cánones penitenciais - de fato e por desuso já há muito revogados e mortos - ainda assim são remidos com di- nheiro, pela concessão de indulgências, como se ainda estivessem em pleno vigor?

86. Do mesmo modo: por que o papa, cuja fortunahoje é maior que a dos mais ricos Crassos", não constrói com seu próprio dinheiro ao menos es- ta uma Basilica de São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis?

87. Do mesmo modo: o que é que o papa perdoa e concede aqueles que, pela contrição perfeita, têm direito a remissão e participação plenária?

88. Do mesmo modo: que beneficio maior se poderia proporcionar a Igreja do que se o papa, assim como agora o faz uma vez, da mesma forma concedesse essas remissões e participações 100 vezes ao dia a qualquer dos - ~ - -

fiéis? 89. Já que, com as indulgências, o papa procura mais a salvação das al-

mas do que o dinheiro, por que suspende as cartas e indulgências outrora já concedidas, se são igualmente eficazes?

90. Reprimir esses argumentos muito perspicazes dos leigos somente pela força, sem refutá-los apresentando razões, significa expor a Igreja e o papa a zombaria dos inimigos e desgraçar os cristãos.

91. Se, portanto, as indulgências fossem pregadas em conformidade com o espírito e a opinião do papa, todas essas objeções poderiam ser facilmente respondidas e nem mesmo teriam surgido.

92. Fora, pois, com todos esses profetas que dizem ao povo de Cristo: "Paz, paz!" sem que haja paz32!

93. Que prosperem todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: "Cruz! cruz!" sem que haja cruz!

94. Devem-se exortar os cristãos a que se esforcem por seguir a Cristo, seu cabeça, através de penas, da morte e do inferno;

95. e, assim, a que confiem que entrarão no céu antes através de muitas tribulações33 do que pela segurança da paz.

30 Missas e intercessdes em memária das almas dos falecidos. 31 Referência a Marco Licinia Crasso, protótipo da homem rico da Antiguidade 32 Cf. Jr 6.14; 8.11; Er 13.10.16. 33 Cf. AI 14.22.

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Um Sermão sobre a Indulgência e a Graça pelo Mui Digno Doutor Mruíinho Lutero, Agostiniano de Wittenberg

1

INTRODUÇÃO

(Veja a in t rodução ao Debale para o esclarecimento d o valor das indulgências, pp. 21s. deste volume.)

1. Em primeiro lugar, cumpre que saibam que vários novos mestres, tais como o mestre das Sentenças*, S. Tomási e seus seguidores, atribuem três oartes a Penitência. auais seiam: a contricão. a confissão e a satisfacão. Esta , . . ,

distinção, em seu conceito, dificilmente ou mesmo de forma alguma se acha fundamentada na Sagrada Escritura e nos antigos santos mestres cristãos. Mesmo assim queremos admiti-la por ora e falar ao modo deles.

2. Dizem eles que a indulgência não elimina a primeira ou a segunda par- te - a contrição ou a confissão -, mas sim a terceira, a satisfação.

3. A satisfacão também é subdividida em três oartes: orar. ieiuar. dares- , < - . mola, e isto da seguinte forma: "orar" compreende todas as obras próprias

1 Eynn Serrnon von dem Abloss undgnode durch den wirdigenn docfornn Marlinum Lufher Augusliner Izu Wilfenbergk, WA 1,243-6. Tradução de Walter O. Schlupp.

2 Trata-se de Pedro Lornbardo íca. 11W-1160). Nascido em Novara. na Lombardia. e faleci- . ~ ~~~

J > cri> Pa r#> , L.\!,IJJU, QLIC I J J U ~ . J L . ~ , em U<>I.mh.a c, p,,~r:r!.>rr!,.ntc, LYU RC.~I>L, C cru Pari>. k n i IJ3r . r Ik;iiii.,ii ii?~.s..>l:~ (l>< ,ilcdri1' JL. F I J L T ~ U3nx Lin 1151 f.>i ? . < . i . > bi.p.r Jc I'an> t,tb:rc obra. en :>~~r ; t r~ .d> ; a ! , e~~ t i r~ch I<>, S ~ l n , . ) , e i ~ cpi*v~>l:fi, p:xuIin.x\, ?4 \er - mdea e os Senfenliarurn libri I V As Senlen~os apresentam um resumo sistemático dos ca- nhecirnentos teolbgicos da época. Trata-se, basicamente. de uma compilação (Pedro usa textos de Hugo de São Vitor, Walter de Mortagnc e Pedro Abelardo), que teve grande acei- tação nas escolas, servindo de modelo para outras obras similares. Desde o séc. XIII, pas- sou a ser livro-texto oara o ensina teolbeico. Ouanto à doutrina escolástica da Penitència. ~~. ; i . a 0hi.i de I iilero 110 ,u!t,r,rri h~bil i iniriz dd I<i~,.re,~; i:ni pr r... id:.,. ".i \.. 2 deti:% .olz;ls

i I,>rna% J i \.luin<> (1225- 1274) I>.imin..;.iio. toi prci:,,,,: Ji, 1c<>li)$~3 2111 1'3:1\. Ko:na c \:q>.k'% A p r . ~ t ~ ~ r d 3 r ~ ~ l ~ ~ d ~ o r ~ l ~ ~ ; t ~ ~ ~ c n ~ ~ ~ .te .Ar~.to:?I+ c .Is>> pd!, d;a Iprc,,,, Iom13, . r#"" uni dos inair impressionantes sistemas da escolastica

3 1

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da alma, como ler, meditar, ouvir apalavra de Deus, pregar, ensinar e simila- res; "jejuar" inclui todas as obras de mortificação da carne, como vigílias, trabalho, leito duro, vestes grosseiras, etc.; "dar esmolas" abrange todas as obras de amor e misericórdia para com o próximo.

4. Para todos eles não resta dúvida que a indulgência elimina as obras da satisfação, que devemos fazer ou que nos foram impostas por causa do peca- do. Se ela de fato eliminasse todas essas obras, nada de bom restaria que pu- déssemos fazer.

5 . Para muitos foi uma questão importante - e ainda não resolvida - se a indulgência elimina mais do que essas boas obras impostas, ou seja, se ela também elimina a pena que a justiça divina exige pelos pecados.

6. Desta vez não questiono a opinião deles. Afirmo, entretanto, que não se pode provar, a partir da Escritura, que a justiça divina deseja ou exige do pecador qualquer pena ou satisfação, mas sim unicamente sua contrição ou conversão sincera e verdadeira, com o propósito de, doravante, carregar a cruz de Cristo e praticar as obras acima mencionadas (mesmo que não este- jam prescritas por ninguém). Pois assim diz o Senhor através de Ezequiel: "Se o pecador se converter e fizer o que é reto, não mais me lembrarei do seu pecado." [Ez 18.21s.; 33.14.16.1 Da mesma forma ele mesmo absolveu a to- dos estes: Maria Madalenaa, o paralítico', a mulher adúltera" etc. Gostaria de ouvir quem haveria de provar outra coisa, não levando em conta que al- guns doutores julgaram poder fazê-lo.

7. O que se encoutralé isto: Deus castiga alguns segundo a sua justiça ou os leva a contrição através de penas, como em SI 881891.31-33: "Quando seus filhos pecarem, punirei com a vara o seu pecado, mas minha misericórdia não retirarei deles." Porém a dispensa destas penas não está na mão de nin- guém a não ser de Deus somente; sim, ele não quer remiti-Ias, mas promete que as imporá.

8. Por isso não se pode dar nome algum a pena imaginária, tampouco sabe alguém qual seria ela, visto que não é este castigo nem as boas obras aci- ma mencionadas.

9. Afirmo que, mesmo que a Igreja cristã decidisse e declarasse hoje que a indulgêiicia elimina mais do que as obras de satisfação, ainda assim seria mil vezes melhor que cristão algum comprasse ou desejasse a indulgência, inas preferivelmerite praticasse as obras e sofresse a pena. Pois a indulgência iião é nem pode tornar-se outra coisa do que uma dispensa de boas obras e de Iienéficas penas, que seria melhor fossem preferidas do que abandonadas, ;tilida que alguns novos pregadores tenham descoberto dois tipos de penas: ~riedicativa,~ e satisfactorias8, isto é, umas para o aperfeiçoamento, outras pa-

4 C€. Lc 8.2. 5 Cf. Lc 5.20 .. -. ~~ ~

7 Sc. na Biblia. R As penas niedicatiuas sao impostas para a santificaçào e reflexão; as satisfatórias objetivam

ra a satisfação. Nós, porém, temos mais liberdade para desprezar (Deus seja louvado!) essa espécie de conversa do que eles têm para inventá-la. Porque toda pena, sim, tudo o que Deus impõe é útil e contribui para o melhoramen- to do cristão.

10. De nada vale dizer que as penas e as obras seriam demasiadas, que a pessoa não conseguiria realizá-las por causa da brevidade de sua vida e que, por isso, precisaria da iiidulgência. Respondo que isso não tem fundamento e é pura invenção. Porque Deus e a santa Igreja a ninguém impõem mais do que lhe é possível carregar, como também o diz Paulo: Deus não permite que alguém seja tentado acima do que pode carregarg. É grande vergonha para a cristandade ser acusada de impor mais do que podemos carregar.

11. Mesmo que ainda vigorassem as penitências fixadas no direito canô- nico, de impor sete anos de penitência para cada pecado mortal, a cristanda- de deveria deixar as mesmas de lado e nada mais impor acima do que cada um pode suportar. Como atualmente não mais vigoram estas determinações, tanto menos razão há para cuidar que se imponha mais do que cada um tem

i condições de suportar bem.

li 12. Diz-se muito bem que o pecador deve ser remetido ao purgatório ou a indulgência com a pena restante, mas dizem ainda outras coisas sem funda-

I mento e prova. I, 13. Incorre em grave erro quem pretende fazer satisfação por seus peca- i i

dos, pois Deus os perdoa a toda hora grátis, por graça inestimável, e nada de- seja em troca senão que doravante se leve uma vida boa. A cristandade, esta sim, faz exigsncias; portanto, ela também pode e deve dispensar delas e não impor nada pesado ou insuportávd.

14. A indulgência é permitida por causa dos cristáos imperfeitos e pre- guiçosos, que não querem exercitar-se resolutamente em boas obras ou não desejam sofrer. Pois a indulgência não promove o melhoramento de nin- guém, e sim tolera e permite sua imperfeição. Por esta razão não se deve falar contra a indulgência, mas também não se deve recomendá-la a ninguém.

15. Agiria de maneira mais segura e melhor quem desse algo para o edifi- cio de S. Pedro, ou o que mais é citado, por puro amor a Deus, ao invés de aceitar indulgências em troca. Isso porque é perigoso fazer semelhante dádiva por causa da indulgência e não por causa de Deus.

16. Muito melhor é a obra feita em beneficio de um necessitado do que dar para dita construção; também é muito melhor do que a indulgência con- cedida em troca. Pois, como dissemos: melhor é uma boa obra realizada do que muitas dispensas. Indulgência, porém, é dispensa de muitas boas obras, ou, senão, nada é dispensado.

Sim, e para que os ensine corretamente, atentem bem: antes de todas as coisas (sem preocupação com o edifício de São Pedro nem com a indulgência) deves dar ao teu próximo pobre, se queres dar alguma coisa. Mas se chegar o momento em que, em tua cidade, não há mais ninguém que necessite de aju-

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da (O que jamais será o caso, se Deus quiser), então deves ofertar, se quiseres, j as igrejas, altares, ornamentos, cálice, em tua cidade. E quando isso também não mais for necessário, só então - se quiseres - podes contribuir para o edifício de S. Pedro ou para alguma outra coisa. Mesmo assim, também não

I

deves fazê-lo por causa da indulgência. Pois São Paulo diz: "Quem não faz O bem sequer aos de sua própria casa não é cristão e é pior do que o descrente." ! [l Tm 5.8.1 E podes crer: quem te disser outra coisa está te seduzindo ou pro- cura tua alma em teu bolso; e se encontrasse aí alguns centavos, isso lhe seria preferível a todas as almas.

Se agora dizes: "Então nunca mais comprarei indulgências", replico: is- so eu já disse acima, que minha vontade, desejo, pedido e conselho é que nin- guém compre indulgência. Deixa os cristãos preguiçosos e sonolentos com-

' I prarem indulgência. Tu, porém, segue teu caminho!

17. A indulgência não é nem prescrita nem recomendada, mas está entre o número de coisas permitidas e autorizadas. Por isso ela não é uma obra de obediência nem é meritória, e sim uma fuga da obediência. Por isso, embora não se deva impedir ninguém de comprá-la, dever-se-iam afastar dela todos os cristãos, estimulando-os e fortalecendo-os para as obras e penas que são ai10 remitidas.

18. Se as almas são tiradas do purgatório através da indulgência, isso eu não sei e também ainda não acredito, mesmo que alguns novos doutores o afirmem. Mas não podem prová-lo, e também a Igreja ainda não decidiu so- bre o assunto. Por isso, para maior segurança, é muito melhor que ores e atues por elas, pois isto está mais comprovado e certo.

19. Sobre esses pontos não tenho dúvida alguma, pois estão suficiente- mente fundados na Escritura. Por isso também vocês não devem ter dúvida alguma, e deixem os doutores escolásticos~t serem escolásticos. Todos eles não são suficientes, com suas opiniaes, para fundamentar um sermão.

20. Ainda que alguns, para os quais esta verdade dá grande prejuízo ma- terial, agora me chamem de herege, não dou muita importância a semelhante palavrório, pois quem está a fazê-lo são alguns cérebros tenebrosos que nun- ca cheiraram a Bíblia, nunca leram os mestres cristãos, nunca entenderam os seus próprios professores e já estão quase a decompor-se em suas opiniões es- buracadas e esfarrapadas. Pois se os tivessem entendido, saberiam que não devem difamar a ninguém sem ouvi-lo e convencê-lo do seu erro. Que Deus dê a eles e a nós um entendimento correto! Amém.

10 Sc. na indulgência. I I Cf. o juizo emitido por Lutero a respeito das doutores escol&sticos nas teses 18 e 19 do De

bate de Heidelberg, p. 49 deste volume.

34

O Debate de ~eidelber~'

O capitulo geral d o s agostiiiianos alemães reunia-se d e três e m três anos , sempre n o domingo .lubilote. E m 1518, João von Staupitz2 convocou-o para o dia 25 d e abril. Nesta opor tunidade , Lutero, eleito três anos antes pa ra o carpo d e vipário distrital, de-

. visto. Essa incumbência deve ser vista como u m a distinção: ela significa que t an to Staupitz quan to a o r d i m dc 1.utero não estão dispostos a abandoná-lo. Dent ro desta perspectiva, 1.utero n ã o tem adversários iio debate realizado a 26 d e abril d e 1518. Seu jovem colega d e ordem, Leonardo Beier, defende a s teses; seus ouvintes estão dispos- tos a acompanhar sua argumentaçáo. E m carta dirigida a Espalatino,, assinada c o m as palavras "Martinus Eleuthcrius" e da t ada d e i8 d e maio d e 1518, o reformador con t a que o dcbate transcorreu d a maneira mais cordial. Seus professores occamistasd, Usin- gen e Trutvetter , não puderam acompanhá-lo, pois as teses foram, tia verdade, u m a taque a teologia destes. Tan to maiores foram os aplausos dos estudantes e dos jovens

I Disputotio Heideibergoe habito, WA 1,353-65. Tradusão de Waltcr O. Schlupp. 2 1469(?)-28/12/3524. Nasceu ein Motterwitz, perto de Leisnig, falecendo em Salrburgo.

Nobre sanão. estudou em Colôniae Leiprig, tornando-se agostiniano, em Munique, no ano de 1490. Em 1497 tornou-se prior do convento de Tubingen. Desde 1500 doctor in bibiia, foi convocado por Frederico, o Sábia, em 1503, para ser o primeiro decano da Faculdade de Teologia da Universidade de Wittenberg. Neste ano, tornou-se também vigário-geral da Congregação alenià de Observantes. No processo contra Lutero, Staupitz procurou defendê-lo onde lhe foi possivel, liberando-o. p. ex., do voto deobediência. Como estivesse sob suspeita de heresia, Staupitz renunciou, em 1520, ao cargo de vigária-geral. tornando- se pregador da corte da cardeal-arcebispo Mateus Lang, em Salrburgo, e abade do Conven- to beneditiiio de São Pedra. Desde entào, houve um distanciamento eni re la~ão a Lutero. Staupitr tem influências do tomismo e da mística alemã. Sua piedade cristocêntrica auxi- liou Lutero em seus conflitos com a penitência e a doutrina da predestinação.

3 WA Br 1 , 1 7 3 ~ ~ . Georg Burckhardt (1484-l545), nasceu em Spalt, perto de Nürnberg. Dai seu cognomc Spalatin, Espalatino. Estudou Direito em Erfurt e Wittenberg, tornando-se, apbs, sacerdote. Desde 1508 está a serviço de Frederico, o Sábia, cuja chancelaria assume em 1516. Influenciado pelo humanismo, colabora com Lutero e Melanchthon na reforma da Universidade de Wittenberg. Secretário, conselheiro e pregador de Frederico, Espalati- no gola de posicão ímpar junto ao principe-eleitor, o que lhe permite assegurar a protecão deste para Lutero. Como humanista e tradutor de obras de Lutero e Melanchthon, procu- rou. por muita tempo, intermediar entre Lutero e Erasmo. Desde I525 é pastor em Alten- Uurgo. Participando das visitacões, Espalatino teve grande influência na organização do Silprciiio Episcopado dos Senhores Teriitoriais. Teologicamente dependente de Lutero, di- vr ige dçste na doutrina eucarisiica.

4 Srgiiidixcc de (iuilhcrme de Occam (1285.1349).

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Da Teologia

Desconfiando inteiramente de nós mesmos, em conformidade com aque- le conselho do Espírito: "Não te fies em tua inteligência" [Pv 3.51, vimos hu- mildemente oferecer ao julgamento de todos os que quiserem estar presentes os seguintes paradoxos teológicos, para que assim se evidencie se estão bem ou mal tomados do divino Paulo, vaso e órgão de Cristo escolhido por exce- lência, e ainda de Sto. Agostinho, seu mui fiel intérprete.

1. A lei de Deus, mui salutar doutrina da vida, não pode levar o ser hu- mano a justiça; antes, o impede.

2. Muito menos podem levá-lo as obras dos seres humanos, muitas vezes repetidas, como se diz, com o auxílio do ditame natural.

3. Ainda que sejam sempre belas e pareçam boas, as obras dos seres hu- manos são, ao que tudo indica, pecados mortais.

4. Ainda que sejam sempre disformes e pareçam ruins, as obras de Deus são, na verdade, méritos imortais.

5. As obras dos seres humanos (falamos das aparentemente boas) não são pecados mortais no sentido de constituírem crimes.

6. As obras de Deus (falamos das que se realizam por intermédio do ser humano) não são méritos no sentido de não constituírem pecados.

7. As obras dos justos seriam pecados mortais se os próprios justos, em piedoso temor a Deus, não temessem que elas fossem pecados mortais.

8. Com maior razão são pecados mortais as obras dos seres humanos, pois ainda são feitas sem temor, em mera e má segurança.

9. Afirmar que as obras sem Cristo são certamente mortas, porém não pecados mortais, parece constituir um perigoso abandono do temor a Deus.

10. Na verdade, é dificílimo compreender como uma obra seria morta sem ser, ao mesmo tempo, pecado pernicioso ou mortal.

11. Não se pode evitar a presunção, nem pode haver verdadeira esperan- ça, se em cada obra não se temer o juizo de condenação.

12. Os pecados são realmente veniais perante Deus quando os seres hu- manos temem que sejam pecados mortais.

13. Após a queda, o livre arbitrio é um mero titulo; enquanto faz o que está em si'], peca mortalmente.

14. Após a queda, o livre arbitrio tem uma potência apenas subjetiva pa- ra o bem; para o mal, porém, sua potência é sempre ativa.

15. O livre arbítrio tampouco pôde permanecer no estado de inocência pela potência ativa, mas sim pela subjetiva; menos ainda pôde progredir em direção ao bem.

16. O ser humano que crê querer chegar a graça fazendo o que está em si

I I V. p. 47, nata 33.

acrescenta pecado sobre pecado, de sorte que se torna duplamente réu. 17. Entretanto, falar assim não significa dar motivo para o desespero,

mas para humilhar-se, e suscitar o empenho no sentido de procurar a graça de Cristo.

18. Certo é que o ser humano deve desesperar totalmente de si mesmo, a fim de tornar-se apto para conseguir a graça de Cristo.

19. Não se pode designar condignamente de teólogo quem enxerga as coisas invisíveis de Deus compreendendo-as por intermédio daquelas que es- tão feitas;

20. mas sim quem compreende as coisas visíveis e posteriores de Deus enxergando-as pelos sofrimentos e pela cruz.

21. O teólogo da gloria afirma ser bom o que é mau, e mau o que é bom; o teólogo da cruz diz as coisas como elas são.

22. A sabedoria que enxerga as coisas invisíveis de Deus, compreendendo-as a partir das obras, se envaidece, fica cega e endurecida por completo.

23. A lei provoca a ira de Deus, mata, maldiz, acusa, julga e condena tu- do o que não está em Cristo.

24. Não ohstante, aquela sabedoria não é má, nem se deve fugir da lei; sem a teologia da cruz, porém, o ser humano faz péssimo uso daquilo que há de melhor.

25. Justo não é quem pratica muitas obras, mas quem, sem obra, muito crê em Cristo.

26. A lei diz: "Faz isto", mas nunca é feito; a graça diz: "Crê neste", e já está tudo feito.

27. Poder-se-ia dizer, com razão, que a obra de Cristo é a que opera e oue a nossa é a ooerada. e. Dor conseguinte, que a obra operada agrada a . . . ~ e u s pela graça d'a obra operante.

-

28. O amor de Deus não acha, mas cria aquilo que lhe agrada; o amor do ser humano surge a partir do objeto que lhe agrada.

Da Filosofia

29. Quem quiser filosofar sem perigo em Aristóteles precisa antes tornar-se bem tolo em Cristo.

30. Assim como não faz bom uso do mal da libido quem não estiver ca- sado, da mesma forma ninguém filosofa bem se não for tolo, isto é, cristão.

31. Foi fácil para Aristóteles opinar que o mundo é eterno, pois, em sua opinião, a alma humana é mortal.

32. Uma vez aceito que existem tantas formas substanciais quanto há coisas feitas, teria sido necessário aceitar que existe o mesmo número de ma- térias.

33. De nenhuma coisa no mundo surge algo necessariamente, embora da marcria surja necessariamente tudo que surge de modo natural.

34. Sc Aristóieles tivesse conhecido o poder absoluto de Deus, ter-lhe-ia

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\iilii iiiipossivel afirmar que a matéria permanece por si mesma. 35. Nada de infinito existe pelo ato, mas por potência e matéria existe

i;iiiio quanto há de feito nas coisas, conforme Aristóteles. 36. Aristóteles critica e ridiculariza injustamente a filosofia das idéias

~>lni<iiiicas'2, que é melhor do que a sua. 37. A imitação dos números nos objetos é engenhosamente afirmada por

I'iiágorasi3, porém mais engenhosa é a participação das idéias nos objetos, ;ilirriiada por Platão.

38. A polêmica de Aristóteles contra o conceito de unidade de I';irinênidesi4 é (vênia seja dada ao cristão) dar socos no ar.

39. Se Anaxágoras" estabeleceu o infinito segundo a forma, ao que pa- iccc, ele foi o melhor dos filósofos, a despeito do próprio Aristóteles.

40. Em Aristóteles parecem ser a mesma coisa a privação, matéria, for- iiin, o objeto móvel, o objeto imóvel, ato, potência, etc.

1)emonstração das Teses Debatidas no Capítulo de Heidelberg

No ano da nossa salvação, 1518, no mês de maiol6.

Tese 1

A lei de Deus, mui salutar doutrina da vida, não pode levar o ser humu- no (i justiça; antes, o impede.

Isio está bem claro pelo que diz o apóstolo em Romanos 3.21: "A justiça ilc 1)ciis se manifestou sem a lei", o que o B. Agostinho assim explica no livro 110 L~pirito e da letra": "Sem a lei, isto é, sem a sua ajuda." Rm 5.20 diz: "A Ici entrou para que aumentasse o pecado"; e Rm 7.9: "Tendo chegado o iii~iiid;imeiito, reviveu o pecado." Por isso, em Rm 8.2, ele chama a lei de "lci da rnorte" e "lei do pecado". Da mesma forma, em 2 Co 3.6: "A letra iiiiitn." Ao longo de todo o livro Do Espírito e da letra, o B. Agostinho rela- c.ioii;t isto com qualquer lei, mesmo com a santissima lei de Deus.

I L I,iiieii, \c ieferc ò Icoria das idéias de Platao (427-348/47 a.C.). I I Aiislhlclcs, Merqflsica, 1, VI, 987b. I4 ('i . Arirthlclcs, Merqflsico I. V , 986b. 15 Aiiri(>iclev. Melqfirieo I, VIII. 989b. 10 ('I'. 1,. 37 , ,,<,IZ, 10. I1 I i i i r l < i i c tc i r rc ;,os capitiilos 9 e 14 deste escrita de Agostinho. Neles, Agostinhi~ (li, qiie a

Iri Irvii ti ~n~ur rc , referindo-5e naij sh à lei cerimonial. mas a toda Ici, tamht~ii ; i<> Ilei.<ilogi>. I , r l i i irsr. i i i g iliiiil Agorliiilii> divergc <Ic Jeraniiiio, vai ser delendidsi piir I i i i i . ~ < t . cqirciaIL ini<.iilr iiii <lircii.;rno corri Itr;,*ni«.

Muilo ~nenos podem levá-lo as obras dos seres humanos, muitas vezes re/>etidus, corno se diz, com o auxílio do ditame natural.

Tendo a lei de Deus, santa e iniaculada, verdadeira, justa, etc. sido dada por Deus para ajudar o ser humano, além de suas forças naturais, para iluminá-lo e levá-lo ao bem, e acontecendo, ainda assim, o contrário, de mo- do que o ser humano se torna pior ainda, de que forma poderá ele ser condu- zido ao beni sem semelhante auxilio, abandonado ás próprias forças? Quem iião faz o beni com auxilio alheio menos ainda o fará por sua própria capaci- dade. Por isso, em Rm 3.10s., o apóstolo chama todos os seres humanos de corruptos e inúteis, que não entendem nem buscam a Deus, mas se desviam dele todos.

Ainda que sejam sempre belas e pareçam boas, as obras dos seres hurna- nos são, ao que tudo indica, pecados mortais.

As obras dos seres humanos parecem excelentes, mas por dentro são imundas, como diz Cristo acerca dos fariseus em Mt 23.27. A eles mesmos e aos outros elas parecem boas e belas; Deus, porém, é quem julga não segun- do a fachada, mas escruta rins e coraqãolK Sem graça e sem fé, entretanto, é impossivel ter um corasão puro. At 15.9: "Purificando pela fé os seus cora- qões."

A tese é, portanto, demonstrada assim: se as obras das pessoas justas constituem pecados, como diz a tese 7, tanto mais o são as obras das pessoas ainda não justas. Mas os justos dizem em relação a suas obras: "Não entres ein juizo com o teu servo, ó Senhor, porque diante de ti nenhum ser vivente se justificará." [SI 143.2.1 O mesmo afirma o apóstolo em GI 3.10: "Os que vi- vem a partir das obras da lei estão sob a maldição." As obras dos seres huma- nos. porém, são obras da lei, e, como a maldição não é atribuida aos pecados veniais, essas obras são pecados mortais. Em terceiro lugar, Rm 2.21: "Tu, que ensinas que iião se deve furtar, furtas." O B. Agostinho explica isto as- sim: "Por sua vontade culposa é que são ladrões, ainda que, exteriormente, julguem e ensinem que outros são ladrões.""

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Ainda que sejam sempre disformes e pareçam ruins, as obras de Deus .sNo, na verdade, méritos imortais.

Que as obras de Deus sejam disformes, fica evidente através de 1s 53.2: "Ele não tem excelência nem beleza" e de 1 Rs 2: "O Senhor mortifica e vivi- lica, faz descer ás profundezas e traz de volta."" Isto significa o seguinte: o Scnhor nos humilha e nos apavora por meio da lei e da visão dos nossos peca- dos, para que, tanto diante dos seres humanos quanto diante de nós mesmos, Iiareçamos nada, tolos, maus, assim como de fato somos. Quando reconhe- ccmos e coiifessamos isto, não há em nós nenhuma excelência e beleza, mas vivemos na abscondidade2' de Deus (isto é, na confiança nua e crua em sua riiisericórdia), tendo em nós a resposta do pecado, da morte, do inferno, em conformidade com aquela palavra do apóstolo em 2 Co 6.10,9: "Como que tristes, mas sempre alegres; como que mortos, e eis que vivemos." E isto é o que 1s 28.2122 chama de obra estranha de Deus, [feita] para que ele realize sua obra [própria] (isto e, ele nos humilha dentro de nós mesmos, fazendo-nos desesperar, para nos exaltar em sua misericórdia, tornando-nos esperanço- sos), como diz Hc 3.2: "Quando ficares irado, lembrar-te-ás da iriisericórdia." Tal pessoa, portanto, desagrada a si mesma em todas as suas obras; não vê beleza alguma, mas apenas a sua própria deformidade. E mes- 1110 exteriormente ela faz coisas que parecem tolas e disformes as outras pes- soas.

Essa deformidade, entretanto, surge em nós seja através de Deus que nos nagela, seja por nos acusarmos a nós mesmos, segundo aquela palavra de 1 Co 11.31: "Se nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados pelo Se- nhor." E isto o que diz Dt 32.36: "O Senhor julgará seu povo e se compade- cerá de seus servos." Assim, pois, as obras disformes que Deus opera em nós - isto é. as obras feitas em humildade e tenior - são verdadeiramente imor-

20 O cântico de Ana é um dos salmos favoritos de Lutero. Cita I Sm 2.6 em Deservo urbilrio ("Do arbitrio cativo"), WA l8,MX)-787, e em Dos Magnifcaf Vorfeulschel und oussgelegr ("Interpretação da Mognificof"), WA 7.544-604.

21 O conceito "abscondidade" quer expressar que os verdadeiros santos jamais podem apresentar-se diretamente como tais. Eles estilo ocultos "com Cristo em Deus" (C1 3.4). WA 56,392s.: "O nosso bem está oculta, e está tilo oculto que se encontra oculto sob o seu aposto. Assim, nossa vida está oculta sob a morte, o amor a nós sob o ódio contra nós, a glória sob a desonra, a salvacilo sob a corrupcâo, o reino sob a miséria, o céu sob o inferno, a sabedoria sob a tolice, a jus t i~a sobo pecado, a poder sob a fraqueza. E, em geral, todoo iiosso sini a qii;ilquer bem sob o não, para que a fé tenha espaGo em Deus, que é o ser, bon- dade, sahciloti:! iiirtiv;i ti>ralmrnte diferente, o qual não se pode possuir ou no qual não se riode ti>ciii, :i ,>:i<> #ri ;ilc;ivl:s d;i ncgafão de todas as nossas afirmaqdes."

22 Tilo i c n i ~ i i i i i ; i i i i i . i l i i ; t t i iu c > i!\<> ilr I Siii 2.6 6 o uso da passagem de 1s 28.21 nos escritos de l i i rr io. Miiiiit.. \,r,i.... .itiili:i,. ;:li> i l \ ; i<l ; i \ ~imultaneamente. Cf. sua exposicão dor Salmos, cm 1519. i~ t#nr# ' lo i i l i i~ i~ i i < . t i l icIiirn<v ;i Si 2.<>: "Elemata e destrói. o que lhe silo obra5 estrii- iiIiii\. iii~iii i i rv i< i~ a l i cu#o~ i t ..LI,& 1311111 p#i>llrii!.'' (WA 5,63si)

tais, porque humildade e temor a Deus são todo o mériton.

As obras dos seres humanos (falamos das aparentemente boas) não são pecados mortais no sentido de constituírem crimes.

Crimes são obras que podem ser objeto de acusa$ão também perante os seres humanos, como adultérios, roubos, homicídios, calúnias, etc. Pecados mortais, porém, são obras que parecem boas, embora interiormente prove- nham de uma raiz ruim e sejam fruto de uma árvore ruim. (Agostinho, livro 4, Contra Juliano.)

As obras de Deus (falamos das que se realizam por intermédio do ser hu- mano) não são méritos no sentido de não constituírem pecados.

Eclesiastes 7.20: "Não há justo sobre a terra que faça o bem e não pe- que." Não obstante, outros24 dizem que o justo certamente peca, mas não quando pratica o bem. A estes deve-se responder: se fosse esta a intenção da passagem, por que ela gasta tantas palavras? Ou será que o Espírito Santo se deleita com a loquacidade e frivolidade? Pois esse sentido estaria mais do que suficientemente expresso da seguinte forma: "Não há justo sobre a terra que não peque." Então para que ela acrescenta "que pratique o bem"? Como se o justo fosse alguém outro, que pratica o mal. Pois unicamente o justo prati- ca o bem. Mas onde fala dos pecados não relacionados com fazer o bem, diz assim: "Sete vezes por dia cai o justo." [Pv 24.16.1 Aqui não diz: "Sete vezes por dia cai o justo, quando pratica o bem." Trata-se de um caso semelhante ao de alguém que faz cortes com uma machadinha enferrujada e cheia de dentes; mesmo que seja um bom artesão, a machadinha faz cortes ruins, dis- formes e com dificuldade. É o que ocorre quando Deus opera por nosso in- termédio, etc.

As obras dos justos seriam pecados mortais se os próprios justos, em piedoso temor a Deus, não temessem que elas fossem pecados mortais.

23 Lutero usa a conceito de mérito da forma corrente na doutrina católico-romana. Na reali- dade, porém, rompe com o esquema de mérito/demérito.

24 Aparentemente, l.utcro refere-se a Jerônimo, ao qual está opondo Agostinho.

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1\10 se evidencia a partir da tese 4. Pois confiar numa obra por causa da r ~ i i i i l sc deveria temer é dar glória a si mesmo e tirá-la de Deus, a quem se deve iciiier ein toda obra. Esta é, todavia, toda a perversão: agradar-se e desfrutar ii \ i IIICSIIIO em suas obras e adorar-se como um ídolo. Precisamente isto, po- I ~ I I I , faz quem está seguro de si e sem temor a Deus. Pois se temesse, não es- tiiria seguro; conseqüentemente, não se agradaria a si mesmo, mas se agrada- i - i : ~ em Deus.

A segunda evidência provém daquele dito do salmo: "Não entres em jui- ~ i i com o teu servo" [SI 143.21 e de S! 32.5: "Eu disse: confessarei ao Senhor cliiiira mim a minha injustiça", etc. E evidente que não se trata aqui de peca- C I O S veniais, pois aqueles" dizem que não são necessárias a confissão e a Peni- iCiicia por causa de pecados veniais. Se, portanto, são pecados mortais e se iiidos os santos oram por eles, como consta ali26, segue-se que as obras dos \;iiiios são pecados mortais. Entretanto, as obras dos santos são boas; por is- so, elas só são meritórias Dara eles elo temor aue se manifesta na humilde i~ l l i i~ssão .

A terceira evidência provém da oração do Senhor: "Perdoa-nos as nos- s:is dividas." [Mt 6.12.1 Estaé a oração dos santos; portanto, as dividas pelas qiiiiis oram são as boas obras. Mas que também neste caso se trata de pecados iiiortais, fica evidente a partir da seguinte afirmação: "Se não perdoardes os iiccados ás pessoas, também vosso Pai celeste não perdoará os vossos peca- iliis." [Mt 6.15.1 Eis que estes pecados são tais que, não perdoados, levariam :i coiidenação, se eles não Irassem sinceramente esta oração nem perdoassem ili lS o1itros.

tiiii quarto lugar, Ap 21.27: "Nada de impuro entrará no reino dos i.i.iis." Mas todo empecilho a entrada no reino é pecado mortal (ou então o licc:iil« iiiortal deve ser definido de outra maneira). Porém também o pecado vciiinl o impede, porque macula a alma e não pode subsistir no reino dos ci.iis; logo, etc.

í 'om iriaior razáo são pecados mortais as obras dos seres humanos, pois ,rir11111 .xiu ,frillr.s vem temor, em mera e má segurança.

1:si:i C , cvi<lenteincnte, uma conseqüência necessária a partir do que an- ici.viIc. I1<iis oiidc i150 há temor, não há humildade. Onde não há humildade, Ii:i ,$i i l i i . i l i ; i , csi3o prcscntcs a ira e o juizo de Deus: "porque Deus resiste aos , . ~ , I i i , i I I ~ I S " I I I'c 5.51; sim, caso cessar a soberba, não haverá pecado em lngar :iI~:~liii

Afirmar que as obras sem Cristo süo certamente mortas, porém não pe- cados rnortais, parece constituir um perigoso abandono do temor a Deus.

Pois desta forma as pessoas tornam-se seguras de si mesmas e por isto orgulhosas, o que é perigoso. Pois assim se tira de Deus constantemente a glória devida, tomando-a para si mesmo, enquanto que se deveria, com todo o empenho, apressar-se em devolver-lhe a sua glória o quanto antes possivel. Por isto a Escritura aconselha: "Não tardes em te converter ao Senhor." [Eclo 5.8.1 Se já lhe cansa ofensa quem lhe subtrai a glória, quanto mais ofensa lhe causa quem a subtrai persistentemente e com toda a tranqüilidade. Mas quem não está em Cristo ou dele se afasta, lhe subtrai a glória, como se sabe.

Na verdade, e dificílimo compreender como uma obra seria morta sem ser, ao mesmo tempo, pecado pernicioso ou mortal.

Demonstração: a Escritura não fala de coisas mortas como se alguma coisa que esteja morta não seja mortal. Nem mesmo a gramática o faz, se- gundo a qual morto é mais do que mortal. Pois mortal é uma obra que mata, dizem eles próprios. Obra morta, porém, não é uma obra matada, mas uma obra não-viva. Ora, uma obra não-viva não agrada a Deus, como está escrito em Pv 15.8: "Os sacrifícios dos impios são abomináveis."

Em segundo lugar: de qualquer forma, a vontade tem alguma participa- ção em semelhante ato morto, seja amando-o, seja odiando-o. Porque ela é má, não pode odiá-lo. Portanto, ela o ama; por conseguinte, ama o que é morto. Desta forma, ela provoca em si mesma um mau ato da vontade contra Deus, a quem deveria amar e glorificar neste ato e em toda obra.

Nüo se pode evitar a presunção, nem pode haver verdadeira esperança, .se em cada obra não se temer o juizo de condenação.

Isto fica evidente a partir d a tese 4, acima. Pois é impossivel ter esperan- v:i em Deus sem desesperar de todas as criaturas e sem saber que nada ajuda a piiipria pessoa senão Deus. No entanto, como não existe ninguém que tenha css:i cspcrança pura, conforme dissemos acima, e assim rião deixamos de con- I'i:ir :i16 certo ponto na criatura, fica claro que, por causa dessa impureza, ilcvc-se teiiicr « juizo de Deus em todas as coisas. E assim deve ser evitada a

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[ircsiinção, não apenas na aparência exterior, mas na atitude interior, isto é, ilc sorte que nos desagrade que ainda nos fiemos na criatura.

Os pecados são realmente veniais perante Deus quando os seres huma- n o . ~ temem que sejam pecados mortais.

Isto se evidencia suficientemente a partir do que já foi dito. Pois Deus iios escusa na mesma medida em que nos acusamos, em conformidade com cslas palavras: "Conta tuas iniqüidades, para que sejas justificado."27 "Que iiio se incline o meu coração a palavras de malícia para alegar escusas dos pe- c;idos." [SI 141.4.1

Após a queda, o livre arbítrio é um mero título; enquanto faz o que está <,rir si, peca mortalmente.

A primeira parte da sentença é evidente, porque a vontade é cativa e ser- va do pecado, não por nada ser, mas por não ser livre senão para o mal. Jo K.14.36: "Quem comete pecado é escravo do pecado." "Tendo-vos libertado i) I.ilho, sereis verdadeiramente livres." Por isso diz o B. Agostinho em seu li- vro />o Espírito e da letra: "Sem a graça, o livre arbítrio de nada serve senão 1p:ii:i pecar."za E no livro 2 Contra Juliano: "Chamais de livre o arbítrio, mas ciii vcrdadc ele é escravo", etc.'9; e inúmeras outras passagens.

A scg~inda parte da sentença resulta do que foi dito acima e de Os 13.9: "'l'tia perdição vem de ti, ó Israel; o teu auxilio, de mim somente."

Ap1i.s 11 qrr~da, o livre arbítrio tem uma potência apenas subjetiva para o 11r.in; 11rrr.11 o rtlul, porém, sua potência é sempre ativa.

Islo ~pclo scgiiiiite: quando morta, a pessoa só tem uma potência subjeti- va p;ii';i ;i vida; cnqtianto vive, porém, ela tem uma potência também ativa 11;ir:i :i iiioitc. O livre arbítrio, entretanto, está morto. Sinal disso são os mor- I < I ~ qiic i> Sciilii)r rcssuscitou, conforme afirmam os santos mestres. Além dis-

so, o B. Agostinho demonstra esta tese em diversos textos contra os pelagianos30.

O livre arbítrio tampouco pôde permanecer no estado de inocência pela potência ativa, mas sim pela subjetiva; menos ainda pôde progredir em dire- ção ao bem.

O mestre das SentençasJ1, livro 2, distinctio 24, capítulo 1 , referindo-se a Agostinho, conclui o seguinte: "Estes testemunhos mostram claramente que, na criação, o ser humano recebeu a retidão e a boa vontade, bem como o au- xilio através do qual poderia perseverar; caso contrário, pareceria que ele não caiu por culpa própria." Ele fala de uma capacidade ativa, o que está fla- grantemente contra o que Agostinho afirma no livro Da corrupção e dagra- ça, onde consta o seguinte: "Ele havia recebido o poder, na medida em que quisesse; mas não tinha o querer, pelo qual poderia."32 Sob "poder" ele en- tende a potência subjetiva, e sob "querer, pelo qual poderia", a potência ati- va.

A segunda parte está suficientemente clara na mesma distinctio do mes- I tre.

O ser humano que crê querer chegar a graça fazendo o que está em si33 acrescenta pecado sobre pecado, de sorte que se torna duplamente réu.

Pois do que foi dito fica evidente que, enquanto faz o que está em si, o ser humano peca e procura exclusivamente o que é seu. Contudo, se crê que, através deste pecado, torna-se digno da graça ou apto para ela, ele ainda acrescenta uma soberba presunção e não crê que o pecado seja pecado, nem

30 Pelagianos: hereges da Igreja antiga, seguidores da doutrina da monge bretão Peligio (ca. 1 400) e de seu amigo Celéstio. Negavam a cativeiro do arbítrio humano, a perversa0 da na-

tureza humana e o oecado orieinal. Aeastinho foi o mais ferrenho adversário dessa doutri- " - na. A Igreja decidiu-se contra o pelagianismo, mesmo que - segundo Lutero - tenha mantido um semipelagianisrno, o qual combatia a partir de sua doutrina da justificaçao.

31 Trata-se de Pedra Lombardo, autor do Livro das senlencos. 32 De corruplione e1 grolia, capitulo 11,32. 33 Fociendo quodesf in se, no original. A tese volta-se contra os "novos pelagianos" que ensi-

nam a justificação do ser humano a partir de suas boas "intençdes". Lutero encontra essa doutrina especialmente em Gabriel Biel (ca. 141&1495), o qual declara ser digno da graça quem se prepara para tanto, "removendo o óbice e provocando uma boa comoção em Deiis" (Exposilio cononis misoe, lecr. 59P).

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iliic 1 1 i i inl hcja mal; isto, porém, é um pecado muito grande. Assim consta em l i 2.17: "Meu povo cometeu um duplo pecado: abandonaram a mim, a fonte

viv:i. c cavaram poços dispersos para si, que não prestam para segurar as :i$~,ii:i,~." Isto é, através do pecado estão muito longe de mim, mas ainda assirn i?iii :i presurição de fazer o bem por si mesmos.

Dirás então: "Que faremos, pois? Vamos ficar ociosos porque nada fa- ~ciiiiis serião pecar?" Respondo: não. Mas, ao ouvires essas palavras, ;iiocllia-te c pede por graça, colocando a tua esperança em Cristo, no qual es- i:! ;i ricissa salvação, vida e ressurreição. Pois é para isto que nos são ensina- iI;is cstas coisas, é para isto que a lei dá a conhecer o pecado, para que, seiido c.<riiliecido o pecado, se procure e se obtenha a graça. Bem assim é que Deus ~~~iiiccclc a graça aos humildes34 e é assim que quem se humilha é exaltado's. A 1i.i Iiiirriilha, a graça exalta. A lei opera o temor e a ira; a graça opera a espe- i:iii<:i c u misericórdia. Pois pela lei é adquirido o conhecimento do pecado36; 11~~lo coiiliecimento do pecado, porém, a humildade; e pela humildade, a gra- v:[. I)csla forma, a obra estranha de Deus realiza, por fim, a sua obra pró- [ ) i i:i, Ià/endo um pecador para torná-lo justo.

I:N/r~Ianto, falar assim não significa dar motivo para o desespero, mas l11rnr Irrrirrilhar-se, e suscitar o empenho no sentido de procurar a graça de 1 'ri,s~il.

ls t i~ sc evidencia claramente do que já foi dito: segundo o evangelho, o iriiii~ clos cCus é dado aos pequeninos e humildes", e Cristo os ama. Ora, hu- iiiilclcs iiZo podem ser aqueles que não se entendem como pecadores condená- vi.i\ c Kiiclos. O pecado, porém, não é reconhecido senão pela lei. Assim, fica i.I:ii<i qiic iião é o desespero, mas, antes, a esperança que é pregada quando se tio\ I i rqV,n que somos pecadores. Porque esta pregação do pecado - ou me- Ilioi, i> iccoiiliecimento do pecado e a fé em tal pregação - é preparação pa- i ; i ; i p,i ;iy:i. Pois o desejo da graça só surge quando nasceu o conhecimento do ~~ri~:iiIii. ( i (lr~cnte só procura o remédio quando entende o mal da sua doença. Ai i i i i i . icvcl;ir ao doente o perigo de sua doença não é dar motivo para deses- 1,i.io i111 i~iiiiic, mas, antes, é levá-lo a procurar o remédio da cura. De igual i i i i ~ i l i ~ . ililci iliie nada somos e que sempre pecamos quando fazemos o que i.\i:i riii 110s 1130 é tornar as pessoas desesperadas (a não ser que sejam tolas), i. \ i 1 1 1 ~ i ~ i i i : i I;is ansiosas pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo.

Certo é que o ser humano deve desesperar totalmente de si mesmo, afim de tornar-se apto para conseguir a graça de Cristo.

Pois a lei quer que o ser humano desespere de si mesmo ao conduzi-lo para o inferno e torná-lo pobre, mostrando-lhe ainda que é pecador em todas as suas obras, como o faz o apóstolo em Rm 2 e 3 ao dizer: "Está demonstra- do que todos estamos sob o pecado." (Rm 3.9.) Quem, contudo, faz o que está em si e acredita fazer qualquer coisa de bom, de forma alguma parece a si mesmo um nada, nem desespera de suas forças; pelo contrário: sua presun- ção é tamanha, que se fia em suas próprias forças para adquirir a graça.

Não se pode designar condignamente de teólogo quem enxerga as coisas invisíveis de Deus compreendendo-as por intermédio daquelas que estüo fei- ias;

Isto fica evidente através daqueles que fizeram isso e que, não obstante, são chamados de tolos pelo apóstolo em Rm 1.22. Ademais: as coisas invisi- veis de Deus são o poder, a divindade, a sapiência, a justiça, a bondade, etc., sendo que o conhecimento disto tudo não torna digno nem sábio.

mas sim quem compreende as coisas visíveis e posteriores de Deus enxergando-as pelos sofrimentos e pela cruz.

As coisas posteriores38 e visíveis de Deus são opostas as invisíveis, ou se- ja, humanidade, debilidade, tolice, ao feitio de 1 Co 1.25, que fala da debili- dade e tolice de Deus. Porque os seres humanos abusaram do conhecimento de Deus a partir das obras, Deus, por sua vez, quis ser reconhecido a partir dos sofrimentos e quis reprovar aquela sabedoria das coisas invisíveis através da sabedoria das coisas visíveis, para que, desta forma, aqueles que não ado- raram ao Deus manifesto ein suas obras adorassem ao Deus oculto nos sofri- mentos, como diz 1 Co 1.21: "Como na sabedoria de Deus o murido não co-

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38 Com a expressão "posteriorer" Lutero se reporta ao texto de Êx 33.17-23. Moisés quer ver a gloria de Deus, mas Deus lhe diz: "Não me poderás ver a face porquanto ser humano ne- nhum verá a minha face e viverá." Deus, porém, permite que Moisés a veja pelas costas (v. 23). Segundo a versào da Vulgata: videbis posterior0 meu. O ser humano só pode ver de I>eiih aquilo que ele lhe permite ver: a cruz de Cristo.

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nheceu a Deus pela sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela tolice da pregação." Assim, não basta nem adianta a ninguém conhecer a Deus em glória e majestade se não o conhece também na humildade e na ignomínia da cruz. Desta maneira ele destrói a sabedoria dos sábios, etc.39, conforme diz Isaías: "Verdadeiramente tu és Deus abscôndito." [Is 45.15.1

Assim, em Jo 14.9, ao dizer Felipe no feitio da teologia da glória: "Mostra-nos o Pai", Cristo incontinenti recolheu e reconduziu para si mes- mo o pensamento volátil de quem procura Deus em outra parte, dizendo: "Felipe, quem vê a mim, vê também meu Pai." Portanto, no Cristo crucifi- cado é que estão a verdadeira teologia e o verdadeiro conhecimento de Deus. Também Jo 10.9: "Ninguém vem ao Pai senão por mim."N "Eu sou a porta", etc.

O teólogo da glória afirma ser bom o que é mau, e mau o que é bom; o teólogo da cruz diz as coisas como elas são.

Isto é evidente, pois enquanto ignora Cristo, ele ignora o Deus oculto nos sofrimentos. Por isso, prefere as obras aos sofrimentos, a glória a cruz, o poder a debilidade, a sabedoria a tolice e, de um modo geral, o bem ao mal. Esses são os que o apóstolo chama de inimigos da cruz de Cristonl, certamen- te porque odeiam a cruz e os sofrimentos, ao passo que amam as obras e a sua glória. Assim, eles chamam o bem da cruz de um mal, e o mal da obra de um bem. Já dissemos, no entanto, que Deus não é encontrado senão nos so- frimentos e na cruz. Os amigos da cruz afirmam que a cruz é boa e que as obras são más, porque, pela cruz, são destruidas as obras e é crucificado Adão; pelas obras, este é, antes, edificado. Portanto, é impossível que não se envaideça com suas boas obras a pessoa que não for primeiramente exinanida e destruída pelos sofrimentos e males, até que saiba que ela mesma nada é e que as obras não são suas, mas de Deus.

A sabedoria que enxerga as coisas invisíveis de Deus, compreendendo-as a partir das obras, se envaidece, fica cega e endurecida por completo.

Isto já foi dito. Pelo fato de ignorarem e odiarem a cruz, eles necessaria- mente arnam o contrário, ou seja, a sabedoria, a glória, o poder, etc. Por esta razão, semelhante amor os cega e endurece ainda mais. Com efeito, é impos- sível que a avidcz qcja saciada depois de conseguir o que deseja. Pois da mes-

39 < ' f . I < ' o l . l ~ l , 40 Cf. Jo 14.6. 41 ('1'. I'p 3.18.

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ma forma como o amor ao dinheiro cresce na medida em que cresce o próprio dinheiro, assim também a hidropisia da alma: quanto mais bebe, mais sede tem. É como diz o poeta: "Quanto mais tomam, mais têm sede de água."42 Assim diz Ec 1.8: "Não se satisfaz o olho com o que vê, nem o ouvido com o que ouve." O mesmo ocorre com todos os desejos.

Por esta razão, também a sede de saber não é satisfeita com a sabedoria adquirida; pelo contrário: é atiçada mais ainda. Tampouco o desejo de glória é satisfeito pela glória alcançada, nem o desejo de dominar é satisfeito pelo poder e pelo império, nem a fome de elogios é satisfeita pelo elogio, etc. É o que Cristo indica em Jo 4.13, ao dizer: "Quem bebe desta água terá sede no- vamente."

Resta, portanto, o remédio de curar não satisfazendo o desejo, mas extinguindo-o. Isto é: quem quer tornar-se sábio não procure a sabedoria avançando, mas torne-se tolo procurando a tolice, retrocedendo. Assim, quem quer tornar-se forte, glorioso, voluptuoso e satisfeito de todas as coi- sas, antes fuja do que procure o poder, a glória, a volúpia e a satisfação de todas as coisas. Esta é a sabedoria que é tolice para o mundo.

A lei provoca a ira de Deus, mata, maldiz, acusa, julga e condena tudo o que não esfá em Cristo.

Neste sentido diz Gálatas 3.13: "Cristo nos libertou da maldição dalei." E no mesmo capitulo consta: "Os que sXo das obras da lei encontram-se sob a maldição." (GI 3.10.) E Krn 4.15: "A lei provoca a ira." E Km 7.10: "O que me era para a vida revelou-se como sendo para a morte." Rm 2.12: "Os que pecaram sob a lei pela lei serão julgados." Portanto, quem se gloria na lei como sendo sábio e douto, gloria-se em sua confusão, em sua maldição, na ira de Deus, na morte, como aqueles aos quais se refere Rm 2.23: "Que te glorias na lei?"

Não obslante, aquela sabedoria não é má, nem se deve fugir da lei; sem a teologia da cruz, porém, o ser humano faz péssimo uso daquilo que há de me- Ih or.

Isto porque a lei é santa43, toda dádiva de Deus é boaM e toda criatura é

42 NR<i i e sabe a que poeta Lutero se refere aqui. 43 <'r . Kr i i 7.12. 44 ( ' I ' I I , , , 4.4.

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iiiiiilo boaar. Entretanto, como foi dito acima, quem ainda não foi destruido, rcduzido a nada pela cruz e pelo sofrimento, atribui as obras e a sabedoria a si iiiesmo e não a Deus; desta forma, abusa das dádivas de Deus e as macula.

Todavia, quem foi exinanido pelos sofrimentos já não opera mesmo, iiias sabe que é Deus quem nele opera e tudo realiza. Por isso, se Deus opera i111 não, para ele é a mesma coisa: não se gloria caso Deus opere nele nem é corifundido caso Deus não o faça. Ele sabe que lhe basta se sofre e é destrui- do pela cruz, para que seja, mais ainda, reduzido a nada. É isto que Cristo diz em Jo 3.7: "Importa que nasçais de novo." Para renascer, é necessário primeiro morrer e ser exaltado com o Filho do homem; digo morrer, istc é, ~critir a presença da morte.

Justo não é quempratica muitas obras, mas quem, sem obra, muito crê <'1?1 Cristo.

Pois a justiça de Deus nao é adquirida através de atos frequentemente re- pctidos, como ensinou Aristóteles, mas é infundida pela fé. Pois o justo vive ;i partir da fé (Rm 1.17). "Com o coração se crê para a justiça." (Rm 10.10.) I>ai quero que aquela expreTsão "sem obras" seja entendida não no sentido iIc que o justo nada opere, mas no sentido de que as suas obras não fazem a i ~ i ; i justiça; antes, é a sua justiça que faz as obras. Pois é sem a nossa obra qiic a graça e a fé são infundidas, ao que, de imediato, se seguem as obras. Ah\iin diz Rm 3.20: "Pessoa alguma será justificada a partir das obras da Ici." E Rm 3.28: "Julgamos, pois, que o ser humano é justificado pela fé, hciii as obras da lei"; isto é, as obras nada fazem em prol da justificação. Sa- I)ciido, então, que as obras feitas a partir de tal fé não são suas, mas de Deus, clc 1in0 procura justificar-se nem glorificar-se por meio delas, mas procura a I ICIIS. É-lhe suficiente a justiça proveniente da fé em Cristo, isto é, que Cristo \i . i ; i ;i sua sabedoria, justiça, etc., como é dito em 1 Co 1.30, sendo ele mes- iiio. poréin, obra ou instrumento de Cristo.

,I 11.; fliliz: " f i z isto", mas nunca é feito; a graca diz: "Crê neste", e jú <, . \ / l i Ilfflfl /?,i10.

A ~~iiiiicira parte é evidenciada pelo apóstolo e por seu intérprete, o B. Ai:~~\iiiilii).",, ciii iniiilas passagens. Além disso, foi suficientemente dito aci- 111: i qiic ;i Ici iiiiics opera a ira e mantém a todos sob a maldição. A scgiirida

parte é evidenciada pelos mesmos autores, pois é a fé que justifica, sendo que a lei, diz o B. Agostinho, preceitua o que a fé efetua. Assim, pois, pela fé Cristo está em nós, sim, é uno conosco. Mas Cristo é justo e cumpre todos os mandamentos de Deus, razão pela qual também nós cumprimos todos eles através de Cristo, uma vez que ele se tornou nosso pela fé.

Poder-se-ia dizer, com razão, que a obra de Cristo é a que opera e que a nossa é a operada, e, por conseguinte, que a obra operada agrada a Deuspela graça da obra operante.

Pois na medida em que Cristo habita em nós pela fé, ele nos move às obras por aquela fé viva em suas obras. As obras que ele mesmo faz são cum- primento dos mandamentos de Deus, a nós concedidas pela fé. Ao contemplá-las, somos levados à sua imitação. Por isso o apóstolo diz: "Sede imitadores de Deus, como filhos caríssimos." [Ef 5.1 .I Desta forma, as obras de misericórdia são suscitadas pelas obras dele, pelas quais nos salvou. Diz o B. Gregório41 a esse respeito: "Toda ação de Cristo é instrução para nós, sim, uma incitação." Se sua ação está em nós, ela vive pela fé, pois atrai com vee- mência, conforme aquela palavra: "Leva-me contigo; corremos atrás do aro- ma dos teus ungüentos" [Ct 1.3s.1, isto é, das tuas obras.

O amor de Deus não acha, mas cria aquilo que lhe agrada; o amor do ser humano surge a partir do objeto que lhe agrada.

A segunda parte desta sentença é evidente e é comum a todos os filósofos e teólogos, porque o objeto é a causa do amor, afirmando-se, em conformi- dade com Aristóteles", que toda capacidade da alma é passiva e material, atuando apenas receptivamente. Assim, ele também atesta que sua filosofia é contrária á teologia na medida em que, em todas as coisas, ela procura o que é seu e recebe o bem mais do que o proporciona. A primeira parte é evidente, porque o amor de Deus, vivendo no ser humano, ama pecadores, maus, to- los, fracos, para torná-los justos, bons, sábios e fortes; assim, antes se derra- ma e proporciona o bem. Pois os pecadores são belos por serem amados, e não são amados por serem belos. O amor humano evita os pecadores e os maus. Cristo diz: "Não vim chamar justos, mas pecadores." [Mt 9.13.1 E es-

47 Papa Gregório (590-604). É diiicil precisar a passagem h qual Lutero se refere. 48 Élica a Nicômoco, VIII.2: "Nem tudo parece ser amado, mas apenas o estimável, este 6

bom, agradável ou útil."

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t e é o a m o r d a cruz, nascido d a cruz, que não se dirige pa ra onde encontra o bem de que possa usufruir, mas pa ra onde possa proporcionar o bem ao mau e ao pobre. "Mais bem-aventurado é da r que receber" [At 20.351, diz o ap6s- tolo. Daí consta em S141 . l : "Bem-aventurado é quem se dá conta d o carente e d o pobre", embora aquilo que nada é, isto é, o pobre o u o carente, nào po- de, por natureza, ser ob je to da percepção, mas apenas o que existe, o que é verdadeiro e bom. P o r isso, ela julga segundo o aspecto e acepção d a pessoa, bem c o m o segundo aquilo q u e é visível, etc.

Fim

Explicações do Debate sobre o Valor das indulgênciasi

Com as 95 teses de 31 de outubro de 1517, Lutero pretendia esclarecer uma série de pontos controvertidos. Sua expectativa não se concretizou. No presente escrito, o oróorio Lutero resooiide as teses formuladas. buscando exolicá;las e comprová-Ias. . .

Enquanto as tlses são discutidas publicamente, Lutero começa a redigi; um docu- mento no qual procura fundamentá-las teológica e juridicamente e explicá-las porme- noriradamente. Esse documento seria defesa frente aos ataques e interpretaçdes ten- denciosas das teses e. sobretudo. uma iustificativa a ser apresentada aos superiores eclesiásticos. Em princípios de 1518, ~ u i e r o está ocupado cõm a redação, massua pu- blicação só vai ocorrer em agosto deste ano. A 15 de fevereiro escreve a Espalatiuoz, dizendo que vai publicar suas "explicaçdes" das teses (WA Br 1,146). Como, porém, seu bispo, Esculteto de Brandenburgo', lhe im~usera o silêncio penitencial, a publica-

pois Lutero se encontrava em Heidelberg, participando do capítulo de sua ordem. As- sim, somente em fins de agosto o livro fica pronto, sendo enviado aos três superiores eclesiásticos de Lutero. A Ordem dos Aaostinianos Eremitas encaminha um exemolar - para a Cúria, mas não conseguiria mais evitar a formaliração do processo que se ini- ciava. As Exolicacõessão o mais imoortante escrito de Lutero no debate em torno das . . indulgências.

O conteúdo das Ex~licacões faz deste escrito uma das mais im~ortantes obras teo- . . lógicas e reformatórias de seu autor: discute a indulgência e a penitência, colocando-as num amplo contexto teológico, e exige, a partir deste contexto, pela primeira vez e com toda a clareza, uma reforma da Igreja. Neste escrito, se evidencia que Lutero não está se ocupando com um aspecto isolado. Com o debate em torno das indulgências

1 Resolutiones dispuroiionurn de indulgenliarum virlute, WA 1,525-628. Tradu~Zo de Luis M . Sander.

2 Espalatino, aliás, Georg Burckhardt (1484-1545), nasceu em Spalt/Nilrnberg. Após estu- dos juridicos, tornou-se sacerdote. Desde 1508 está a serviço de Frederico, o Sábio, cuja chanceiaria assume em 1516. Influenciada pelo humanismo, colabora com Lutera e Me- lanchthon na reforma da Uiiiversidade de Wittenberg. Secretário, conselheiro e pregador de Frederico, o Sábio, Espalatino goza junto ao principe-eleitor de posição impar, que lhe oermite asseeurar a orotecão deste oara Lutern. Como humanista e tradutor das obras de

te dependente de Lutera, diverge deste na doutrina eucaristica. 3 Esculteto, aliás, Jerônimo Schulz, cujos anos de nascimento e falecimento nos são ddesm-

nhecidos, tornou-se bispo de Brandenburgo em 1508 e foi bispo de Havelberg de 1520 a 1522.

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começou a rolar a pedra que ameaça arrastar consigo toda a estrutura eclesiástica. O que Lutero até agora só ensinara a seus estudantes (cf. a prelesão sobre a Epistola de Paulo aos Romanos, WA 56,157-528) é agora apresentado ao público: a doutrina da iustificacão como base e centro de sua teologia. A gravura em madeira do titulo da primeir; edição das Explicaçdes mostra o &isto crucificado; a reedição de Leipzig auresenta o Cristo morto sendo tirado da cruz. Estas duas "cauas de livro" não terão sido produzidas sem o conhecimento e consentimento de Lutei0 e, provavelmente, se devem a uma sugestão sua. Elas são referência à fheolopia crucis, aoresentada Dor Lu- tero em Heidelberg no mês de maio de 1518. Essa teologia da cruz-é o pano dC fundo de toda a argumentação contida nas Explicaçdes.

As Explicaçdes evidenciam que Lutero argumenta a partir do ponto central de sua teologia e que começa a desenvolvê-lo. Contudo, evidenciam também que Lutero está lutando para ter clareza plena e que só com grande dificuldade vai conseguindo se libertar do "cativeiro babilônico7'. Por isso, as Explicaçdes são importante documen- to para se acompanhar o desenvolvimento de Lutero. Nesse sentido, o principio do so- la scriplura ainda não tem a primazia total em seu pensamento teológico. E certo que a Sagrada Escritura é a primeira das fontes comprobatórias usadas, mas ao lado dela en- contramos os pais da Igreja e o direito canônico(!), que mais tarde vai combater vigo- rosamente. Com arande resoeito ainda nrocura Douoar a fiaura do oaoa em sua auali- . . . . dade de lider e chefe da igreja e contin"a a crer que ele es t ia seu lado. Julga também que um concilio geral possa tomar decisdes em questdes de fé e realizar as tão necessá- rias reformas da Igreja. Por outro lado, podemos notar que sua teologia já lhe permite fazer alguns progressos. Pode dizer que um julgamento papal que venha a condenar a ele e a sua doutrina deve ser suportado em obediência, mas não pode ser visto como determinante para a consciência. Posiciona-se também contra a aueima de hereees. Fazendo uso da critica histórica, observa que na época de Ciregório.14 o bispo romano ainda não era reconhecido como supremo chefe de toda a Igreja. Procura não eliminar a doutrina do purgatório, dando-lhe uma interpretação evangélica. Ainda não ques- tiona a missa em intenção de almas; também não elimina a afirmacão acerca do "te- souro da Igreja", básica para a doutrina das indulgências. No entanto, nega com vee- mência a equiparação do "tesouro" com os méritos de Cristo. A teoloaia da cruz de- duzida da doutrina da justificasão vai criticando, pouco a pouco, a velhá Igreja. O no- vo movimento não pode mais ser contido.

Martin N. Dreher

4 Gregório I , o (irande. papa de 3/9/5W até 11/3/6a4

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Ao Reverendo João von Stau~i tzs . verdadeiramente seu Pai. Professor de Sagrada Teologia, Vigirio d a & d e i dos Agostinianos, ~ a r t i n h o Lutero, seu discipulo, envia saudaqões, colocando-se a sua disposição.

Lembro-me, Reverendo Pai, que em meio as tuas agradabilissimas e sa- lutares conversas, com as quais o Senhor Jesus costuma me consolar maravi- lhosamente, houve por vezes menção d a palavra "penitência". Aí, a o nos co- miserarmos das muitas consciências e daqueles algozes que, com infinitos e insuportáveis preceitos, ensinam (como se diz) um modo de confessar-se, te acolhemos como se falasses d o céu, [dizendo] que só é penitência verdadeira a que começa pelo amor à justiça e a Deus e que o que aqueles consideram o fim e a consumaçáo d a penitência é, antes, o princípio dela.

Essa tua palavra se fixou em mim como a seta pontiaguda de u m forte. Em seguida, comecei a compará-la com passagens d a Escritura que ensinam a penitência, e eis que era u m jogo agradabilissimo. De todos o s lados as pala- vras entravam em entendimento comigo, eram claramente favoráveis a essa opinião e acorriam, de tal modo que, enquanto que anteriormente em toda a Escritura ouase não havia oalavra mais amarea oara mim d o aue "oenitên- - . cia" (embora eu zelosamente simulasse também perante Deus e procurasse exprimir um amor fingido e forçado), agora nada me soa de maneira mais doce o u grata d o que "penitência". Pois o s mandamentos d e Deus se tornam doces quando compreendemos que eles devem ser lidos não apenas em livros, mas nas feridas d o dulcíssimo Salvador.

Depois acrescentou-se que - através d o esforço e favor d e homens eru- ditíssimos, que nos ensinam grego e hebraico de maneira muitíssimo oficiosa - eu aprendi que, em grego, a mesma palavra se diz melanoea, de meta e noyn, isto é, d e p o s t e mentem, de modo que penitência o u metanea é um re- cobrar os sentidos6 e , depojs de entendido o dano e reconhecido o erro, uma compreensão de seu mal. E impossível que isso aconteça sem mudança d o sentimento e d o amor. Tudo isso corresponde à teologia paulina de modo tão apropriado que, pelo menos em minha opinião, quase nada pode explicar Paulo de maneira mais apropriada.

Por fim, fui mais longe e vi que metanoean pode ser deduzido não só de

5 1469(?)-28/12/1524. Nasceu em Motterwitz, perto de Leisnig, falecendo em Salzburgo. Nobre saxão, estudou em Colônia e Leipzig, tornando-se agostiniano, em Munique, no ano de 1490. Em 1497, tornou-se prior do convento de Tilbingen. Desde 1500doctor in biblio, foi convocado por Frederico, o Sábio. em 1503, para ser o primeiro decano da Faculdade de Teologia da Universidade de Wittenberg. Neste ano, tornou-se também vigário-geral da Congregação alemã de Observantes. No processo contra Lutero, Staupitz procurou defen- dê-lo onde lhe foi possivel, liberando-o, p. ex., do voto de obediência. Como estivesse sob suspeita de heresia, Staupitz renunciou, em 1520, ao cargo de vigário-geral, tornando-se pregador da corte do cardeal-arcebispo Mateus Lang, em Salzburgo, e abade do convento beneditino de São Pedro. Desde então, há um distanciamcnto em relaçxo a Lutero. Stau- pitr tem influências do tomismo e da mística alemã. Sua piedade cristocêntrica auxiliou Lu- tero em seus conflitos com a penitência e a doutrina da predestinação.

6 Resipiscenlio, no original.

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pos te mentem, mas também de transe mentem (ainda que isto seja violento), de modo que metania significa uma transmutação da mente e do sentimento. Assim, esse termo parecia assinalar não só uma mudança do sentimento, mas também o modo da mudança, isto é, a graça de Deus. Pois esse trânsito da mente, isto é, a verissima penitência, é muito frequente nas Sagradas Escritu- ras. É a ele que denotava outrora aquela antiga passagem7, é a ele que Cristo mostrou e que, muito antes, também Abraão figurou quando começou a chamar-se um transeunte, isto é, um hebreu8, a saber, ao fazer o trajeto para a Mesopotâmia, como o Burguenseg ensina doutamente. Com isto está de acordo também o titulo do salmol0 em que é introduzido o cantador Jedu- tum, isto é, alguém que salta de um para outro lado.

Fixando-me nisso, ousei julgar que laboram em erro os que atribuíram ás obras da Penitência tanto, que fizeram com que quase nada nos restasse da Penitência exceto algumas frias satisfações e a trabalhosissima confissâo, de- sencaminhados que foram pelo vocábulos latinos, pois poenitentiam agere refere-se mais a uma açao do que a uma mudança do sentimento e de modo nenhum satisfaz ao termo grego metanoin.

Quando assim se agitava essa minha reflexão, eis que subitamente come- çaram a ressoar, sim, a clangorar em torno de nós as novas trombetas das in- dulgências e as buzinas das remissões, através das quais, porém, não fomos animados para um estrênuo zelo pela guerra. Numa palavra: negligenciando a doutrina da verdadeira penitência, tiveram a presunção de maguificar - não a Penitência, nem ao menos a mais vil de suas partes, chamada satisfa- ção, e sim - a remissão dessa mesma vilissima parte a tal ponto, que nunca se ouviu que ela tenha sido assim magnificada. Enfim, ensinavam coisas im- pias, falsas e heréticas com tanta autoridade (eu queria dizer "temeridade"), que quem apenas piasse contra elas imediatamente estaria devotado ao fogo e seria réu de maldição eterna.

Não podendo opor-me ao seu furor, decidi deles dissentir modestamente e colocar em dúvida suas opiniões, apoiado no parecer de todos os mestres e de toda a Igreja de que também é melhor satisfazer do que que a satisfação seja remitida, isto é, do que comprar indulgências. Não há ninguém que al- guma vez tenha ensinado de outra forma. Assim pois, eu debati, isto é, pro- voquei, para o mal de minha cabeça, as coisas maiores, médias e ínfimas, tu- do quanto pode acontecer e ser feito por meio desses zeladores de dinheiro (olha! eu deveria ter dito "de almas"). Pois, não podendo negar as coisas que eu disse, essas pessoas amabilissimas, munidas da mais crassa astúcia, inven- tam que o poder do sumo pontífice é prejudicado por meus debates.

Esta é, Reverendo Pai, a razão pela qual agora infelizmente me apresen- to em público, eu que sempre gostei do meu canto e prefiro assistir ao belo jo- go das pessoas talentosas de nossa época a ser visto e ridicularizado. No en-

7 Phare, no original; cf. &x 12.11. 8 Cf. Gn 14.13. 9 Paulo de Burgos, bispo de Burgos, falecido em 1453 como patriarca de Aqiiiléia.

10 Cf. SI 39, 62, 77.

58

I Ao Beatissimo Pai, Leão X, Sumo Pontífice, deseja o frei Martinho Lu-

tero, agostiniano, salvação eterna. I

I

I

Beatissimo Pai: Ouvi um péssimo rumor sobre mim, do qual depreendo que alguns amigos tornaram meu nome insuportavelmente fétido diante de vós e dos vossos, dizendo que eu teria me esforçado para diminuir a autorida- de e o poder das chaves e do sumo pontífice. Dai que sou acusado de herege, apóstata, pérfido e com um sem-número de nomes, mais ainda: de ignomi-

tanto, como vejo, por causa da beleza e do encanto é necessário que também o legume ruim seja visto entre os bons e que o negro seja colocado entre o branco.

Rogo, pois, que aceites este meu inepto trabalho e, com tanta dedicação quanto possível, o transmitas ao bom pontífice Leão Xil, para que ele me se- ja lá uma espécie de paracleto contra os esforços de pessoas malignas. No en- tanto, não quero te ligar a mim no perigo; quero ter feito isso unicamente pa- ra meu próprio risco. Cristo verificará se as coisas que eu disse são dele ou minhas. Sem um sinal dele, nem o sumo ponti-ce tem uma palavra em sua língua, nem o rei tem o coração em sua mãol2. E a ele que espero como o juiz que pronunciar8 sua sentença a partir da Sé Romana.

No mais, nada tenho a responder a esses meus amigos fazedores de ameaças senão aquela palavra de Reuchlinl3: "Quem é pobre nada teme, na- da pode perder." Não possuo nem desejo bens; se tive reputação e honra, agora perde incessantemente quem perde. Uma coisa resta: o corpo fraco e fatigado por assíduos incômodos. Se o destruirem por meio de violência ou de dolo (para prestar um obséquio a Deus), talvez me tornem mais pobre em uma ou duas horas de vida. Basta-me o doce redentor e propiciador, meu Se- nhor Jesus Cristo, a quem cantarei enquanto eu viverl4. Mas se alguém não quiser cantar comigo, que me importa? Ele que ulule, se lhe agrada, mesmo consigo. Ele, o Senhor Jesus, te guarde em eternidade, meu amabilissimo

11 Papa de 11/3/1513 até 1/12/1521. Nascido como Giovanni de Medici (1475) em Florença, como filho de Lorenzo Magnifico, recebeu como criança inúmeras prebendas, tornando-se cardeal aos 13 anos. Em Roma, esteve a serviço de Júlio 11. Como papa, concluiu o V Con- cilio de Latrão. Em 1520, condenou 41 sentengas de Lutero, sem conseguir ver as conse- qiiências do movimento reformatario para a Igreja e para o Sacro Império Romano Oer- mânico. Lutero dedicou-lhe, em 1520, seu escrito Do liberdade crista (que constará no v. 2 desta coleção).

12 Cf. Pv 21.1. 13 João Reuclilin (1455-1522). nascido em Pfarzheirn, era tio-avo de Melanchthan. Humanis-

ta, era o mais importante representante do platonismo ao norte dos Alpes. Latinista e gre- cista, foi o maior erudito no tocante à lingua hebraica em seu tempo, devendo ser conside- rado o pai da lingilistica hebraica.

i4 Cf. SI 104.33.

Pai. Wittenberg, no dia da Santa Trindade'', 1518.

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nias. Os ouvidos se horrorizam e os olhos ficam estupefatos. Mas continua de pé o Único sustentáculo de [minha] confiança, [minha] consciência inocente e tranqüila. Também não são novas as coisas que ouço. Pois com tais adornos me ornaram também em nossa região essas pessoas honestissimas e verazes, isto é, as que têm uma péssima consciência, que procuram me impor suas monstruosidades e glorificar suas ignomínias com minha ignomínia. Rogo- vos, porém, Beatissimo Pai, que vos digneis a ouvir a causa propriamente di- ta de mim, que sou infante e inculto.

Recentemente se começou a pregar entre nós o jubileu das indulgências apostólicas, e isso chegou a tal ponto, que os seus pregadores, crendo que tu- do Ihes era permitido sob o terror do vosso nome, ousaram ensinar publica- mente coisas impiissimas e heréticas, para o gravíssimo escândalo e escárnio do poder eclesiástico, como se as decretais sobre os abusos dos questores em nada lhes dissessem respeito. Não contentes com o fato de difundirem esses seus venenos com palavras licenciosas, ainda por cima publicaram libelos e os disseminaram entre o povo. Neles - para silenciar a respeito da insaciável e inaudita avareza, que quase cada um dos pontos deixa perceber muito crassa- mente - estatuiram as mesmas coisas impias e heréticas, e o fizeram de tal modo que obrigaram os confessores, mediante juramento, a inculcar no povo essas mesmas coisas com extrema fidelidade e insistência. Digo a verdade, e não há nada com que eles possam se esconder desse calor. Os libelos estão ai, e não podem negá-los. Naquele tempo isso ia prosperamente, as pessoas eram sugadas através de falsas esperanças, e , como diz o profetai6, eles arranca- vam a carne de cima de seus ossos; eles mesmos, porém, engordavam de ma- neira muito confortável e suave nesse meio-tempo.

Havia uma coisa com a qual amainavam os escândalos: o terror do vosso nome, a ameaça do fogo e o opróbrio do nome de herege. Pois é incrivel co- mo são propensos a ameaçar com essas coisas, mesmo ao perceberem uma contradição tão-somente em suas ninharias, que não passam de fantasmago- rias. Ora, isto não é acalmar escândalos, mas, antes, provocar, com pura ti- rania, cismas e, por fim, revoltas.

Não obstante, pelas tabernas se propagavam as conversas sobre a avare- za dos sacerdotes e as detrações das chaves e do sumo pontífice, como testifi- ca a voz corrente de toda esta terra. Quanto a mim, porém, reconheço que me inflamava por causa do zelo por Cristo, como me parecia, ou, se assim apraz, por causa da impetuosidade juvenil. No entanto, eu via que não me cabia es- tatuir ou fazer qualquer coisa nessas questões. Por conseguinte, adverti parti- cularmente vários magnatas da Igreja. Fui aceito por alguns, ridicularizado por outros, a outros pareci outra coisa ainda, pois prevalecia o terror do vos- so nome e a ameaça das censuras. Por fim, como não podia outra coisa, apronve-me opor-me a eles pelo menos muito brandamente, isto é, colocar em dúvida as opiniões deles e suscitar um debate. Assim pois, publiquei uma folha de debate, convidando apenas os mais doutos, se quisessem discutir co-

migo - como deve ser manifesto, a partir do prefácio dessa mesma discepta- ção, até para os adversários.

Eis aí o incêndio que, segundo se queixam eles, teria conflagrado o mun- do todo, talvez porque se indignam com o fato de que eu, como um único in- dividuo, mestre da Teologia por vossa autoridade apostólica, tenho o direito de debater em escola pública, conforme o costume de todas as universidades e de toda a Igreja, não apenas sobre as indulgências, mas também sobre o po- der, a remissão e as indulgências divinas, que são coisas incomparavelmente maiores. Enlretanto, não me impressiona muito o fato de que eles me recu- sam essa faculdade, que me foi concedida pelo poder de Vossa Beatitude, pois sou obrigado a conceder-lhes, contra a vontade, coisas muito maiores, a saber, o fato de misturarem os sonhos de Aristótelesl7 n o meio das coisas da teologia e de debaterem meras nugas acerca da majestade divina, e isto contra e fora da faculdade que Ihes foi dada.

Além disso, eu mesmo me pergunto com espanto que destino fez com que tão-somente esses meus debates, antes dos outros - não apenas dos meus, mas de todos os mestres -, se propagassem em quase toda a terra. Eles foram publicados junto aos nossos e apenas por causa dos nossos, e o foram de tal modo, que me parece inconcebivel que tenham sido compreendidos por todos. Pois trata-se de debates, não de doutrinas nem de dogmas; como é costume, são apresentados de maneira obscura e enigmática. De outro modo, se tivesse podido prever, de minha parte eu certamente teria cuidado para que fossem mais fáceis de entender.

E agora, o que farei? Não posso revocar, e vejo que por causa dessa pu- blicação se formou um ódio extraordinário contra mim. E a contragosto que venho a público e me coloco sob o juizo perigoso e inconstante dos seres hu- manos, principalmente porque sou indouto, estúpido de inteligência e des- provido de erudição, e depois porque o faço em nossa florescente época, que, por sua fecundidade em conhecimentos e em inteligência, poderia empurrar para o canto até um Cicerola,que, aliás, procurava corajosamente a luz e a publicidade. Mas a necessidade obriga a que eu, como pato, grasne entre os cisnes.

Assim pois, para abrandar os próprios adversários e satisfazer os desejos de muitos, eis que emito minhas ninharias, em que explico meus debates; emito-as, porém, Beatissimo Pai, para estar mais seguro, sob a guarda de vosso nome e sob a sombra de vossa proteção. Nelas, quem quiser poderá perceber com quanta pureza e simplicidade procurei e cultivei o poder ecle- siástico e a reverência as chaves, e, ao mesmo tempo, com quanta injustiça e falsidade os adversários me desonraram com tantos epitetos. Pois se eu fosse tal como eles desejam que eu seja visto - e não, antes, pela faculdade de de- bater, todas as coisas tivessem sido corretamente tratadas por mim -, não

17 384~322 a.C. Com a formulação, Lutero desqualifica o pensamento do grande filósofo gre- go. Em rua opinião, a filosofia aristotélica não deve ser critério e norma para a teologia.

18 Marco Túlio Cicero (106-43 a.C.). Em sua época pessoa de imensos conhecimentos, Cicero c! <I criador da prosa latina clássica.

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poderia ter acontecido que o ilustrissimo príncipe Frederico'g, duque da Sa- xônia, eleitor do império, etc., permitisse tal peste em sua universidade (já que, sem dúvida, ele é o maior amante da verdade católica e apostólica), e eu não teria sido suportável aos homens extremamente enérgicos e instruidos de nossa escola. Na realidade estou perdendo tempo, pois aquelas amabilíssimas pessoas não receiam destruir publicamente, junto comigo, também o principe e a universidade com a mesma ignomínia. Por isso, Beatissimo Pai, prostra- do aos pés de Vossa Beatitude, ofereço-me com tudo o que sou e tenho. Vivi- ficai, matai, chamai, revogai, aprovai, reprovai, como vos aprouver. Em vossa voz reconhecerei a voz de Cristo que governa e fala em vós. Se mereci a morte, não me recusarei a morrer. Pois a terra e sua plenitude pertencem ao Senhorzo, que é bendito para sempre, amém, que guarde também a vós em eternidade, amém. No ano de 1518.

Protestação

Como este é um debate teológico, repetirei aqui, mais uma vez, a protes- tação habitual nas escolas, para pacificar os ânimos que porventura tenham se ofendido com o simples texto do debate.

Em primeiro lugar, protesto que absolutamente nada quero dizer ou sus- tentar senão o que é e pode ser sustentado primeiramente nas Sagradas Escri- turas e a partir delas, depois em e a partir dos pais da Igreja aceitos e até ago- ra conservados pela Igreja Romana, e, por fim, a partir dos cânones e das de- cretais pontificias. Se alguma coisa não pode ser provada ou desaprovada a partir deles, mantê-la-ei apenas por causa do debate, segundo o juizo da ra- zão e a experiência; nestas coisas, porém, fica sempre ressalvada a decisão de todos os meus superiores.

Uma coisa acrescento e reivindico para mim conforme o direito da liber- dade cristã: quero refutar ou aceitar, segundo meu arbítrio, as opiniões do B. Tomás21, do B. Boaventura22 ou de outros escolásticos ou canonistas" que se- jam meramente propostas, sem texto e sem prova. [Farei isto] de acordo com o conselho de Paulo: "Julgai todas as coisas, retende o que é bom." [ l Ts 5.21 .I No entanto, conheço a opinião de alguns tomistas que querem que o B.

19 Frederico, o Sabio (1463-1525). desde 1486 principe-eleitor da Saxônia. Ficou historica- mente conhecido por interceder incansavelmente por Lutero ante o papa e a imperador; evitou o processo contra Lutero, auxiliando, com isso, a Reforma alema. A ele se deve a criação da Universidade de Wittenberg, na qual Lutero atuou.

20 Cf. SI 24.1. 21 Tomas de Aquino (1225-1274), daminicano, foi professor de Teologia em Paris, Roma e

Nápoles. Aprofundando o conhecimento de Aristóteles e dos pai? da Igreja, Tomás criou um dos mais impressionantes sistemas da escolastica.

22 Boaventura (1221-1274), alias João Fidanza, franciscano, é considerado o segundo funda- dor da Ordem Franciscana. Recebeu a designaçào de "mestre seráfico" ou "principe deto- dos os místicos" por causa de seus escritos dogmáticos.

23 Pessoas que ensinam o direito canõnico.

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Tomás seja aprovado pela Igreja em todas as coisas. É suficientemente sabi- do quanto vale a autoridade do B. Tomás. Creio que por meio desta minha protestação fica suficientemente claro que por certo posso errar, mas que não sou um herege, por mais que rujam e se desfaçam de raiva aqueles que pen- sam ou desejam outra coisa.

Explicações do Debate sobre o Valor das Indulgências

Tese 1

Ao dizer: "Fazeipenitência'? etc. [Mt 4.171, nosso Senhor e Mestre Je- sus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência.

Afirmo esta tese e dela em nada duvido. Contudo, demonstro-a por causa dos incultos: em primeiro lugar. a par-

tir do próprio termo grego metanoite, isto é, fazei penitência, o que pode ser traduzido de maneira extremamente exata por transmentamini, isto é, "to- mai outra mente e maneira de pensar e sentir, recobrai os sentidos", fazei uma transição da mente e uma passagem do espírito", de modo que vós, que até aqui compreendestes as coisas terrenas, agora compreendais as celestiais. E o que o apóstolo diz em Rm 12.2: "Renovai-vos pela novidade de vossa mente." Através dessa recuperação dos sentidos acontece que o prevaricador cai em si e odeia seu pecado. Certo é, porém, que essa recuperação dos senti- dos ou ódio de si mesmo deve acontecer durante a vida toda, conforme aque- la passagem: "Quem odeia a sua vida neste mundo preservá-la-á para a vida eterna." [Jo 12.25.1 E de novo: "Quem não toma a sua cruz e me segue não é digno de mim." [Mt 10.38.1 E no mesmo lugar: "Não vim para enviar paz, mas a espada." [Mt 10.34.1 Mt 5.4: "Bem-aventurados os que choram, por- que serão consolados." E Paulo, em Rm 6 e 8, bem como em muitos outros lugares, ordena mortificar a carne e os membros que estão sobre a terra. Em G1 5.24 ensina que se crucifique a carne com suas concupiscências. Em 2 Co 6.4,5 ele diz: "Mostremos a nós mesmos em muita paciência, em muitos je- juns", etc. Exponho isso extensamente, como se lidasse com pessoas que não conhecem nossa [posição].

2. Por isso demonstro a mesma tese também pela razão. Porque Cristo é o mestre do espírito, não da letra, e suas palavras são vida e espírito", é ne- cessário que ele ensine uma penitência que seja feita em espírito e em verda-

24 Cf. p. 22, nota 2. 25 Resipisciie, no original. Também poderia ser traduzido por "voltai a vós" ou "voltai B sa-

bedoria". Em português existe o termo "resipiscência". 26 Cf. Jo 6.63.

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de, não uma penitência que possa ser feita exteriormente pelos mais soberbos hipócritas, desfigurando o rosto em seus jejuns%?, orando nos cantos28 e dan- do esmola com trombetas29. Digo que é preciso que Cristo ensine uma peni- tência que possa ser feita em toda espécie de vida - que o rei em sua púrpu- ra, o sacerdote em sua pureza30 e os príncipes em sua dignidade possam fazer não menos do que o monge em seus ritos e o mendigo em sua pobreza, assim como fizeram Daniel e seus companheiros em meio a Babilónia. Pois a dou- trina de Cristo deve convir a todos os seres humanos, isto é, de todas as con- diçdes.

3. Em terceiro lugar, por toda a vida oramos e devemos orar: "Perdoa- nos as nossas dívidas." [Mt 6.12.1 Logo, durante toda a vida fazemos peni- tência e desagradamos a nós mesmos, a não ser que alguém seja tão tolo, que creia que deve fazer de conta que ora pela remissão das dívidas. Pois as divi- das pelas quais nos é ordenado orar são verdadeiras e não devem ser menos- prezadas; mesmo que sejam veniais, não podemos ser salvos se não tiverem sido perdoadas.

Tese 2

Esta expressüo nüo pode ser entendida no sentido da Penitência sacramental3i (da confissüo e satisfação celebrada pelo ministério dos sacer- dotes).

Afirmo e demonstro também esta tese: 1. Em primeiro lugar, porque a Penitência sacramental é temporal e não

pode ser feita a todo momento. Do contrário, dever-se-ia falar incessante- mente com o sacerdote e não fazer qualquer outra coisa exceto confessar os pecados e cumprir a satisfação imposta. Por isso ela não pode ser aquela cruz que Cristo manda tomar sobre $1, nem é a mortificação das paixões da car- ne.

2. A Penitência sacramental é apenas externa e tem a interna como pré- requisito, sem a qual nada vale. Ora, esta é interna e pode existir sem a sacra- mental.

3. A Penitência sacramental pode ser fingida; esta33 só pode ser verdadei- ra e sincera. Se não fosse sincera, seria uma penitência de hipócritas, não a que Cristo ensina.

4. A respeito da Penitência sacramental não se tem um mandamento de

27 Cf. Mt 6.16. 28 Cf. Mt 6.5. 29 Cf. Mt 6.2. 30 Munditio, no original. Também poderia ser traduzido por "adorno" 31 Cf. p. 23, nota 3 32 Cf. Mt 16.24. 33 Sc. a interna.

Tese 3

Cristo. Ela foi estatuida pelos pontífices e pela Igreja (pelo menos no que diz

No entanto, ela não se refere apenas a uma penitência interior; sim, ape- nitência interior seria nula se, externamente, não produzisse toda sorte de mortificações da carne.

1

Afirmo e demonstro também esta tese: 1. Em Rm 12.1 o apóstolo ordena que ofereçamos nossos corpos como

sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. Em seguida, expõe clara e ampla- mente como isso deve ser feito, ao ensinar que pensemos36 com humildade, sirvamos e amemos uns aos outros, perseveremos na oração, sejamos pacien- tes, etc. Como ele também diz em 2 Co 6.4.5: "Mostremos a nós mesmos em muita paciência, em jejuns e vigílias", etc. Porém também Cristo ensina, em Mt 5 e 6, a jejuar, orar, dar esmolas corretamente. Do mesmo modo, em ou- tro lugar: "O que resta, dai como esmola, e eis que tudo vos será limpo." [Lc 11.41.1

Dai se segue que, por serem preceito de Cristo, aquelas três partes da sa- tisfação -jejum, oração e esmola - não pertencem a Penitência sacramen- tal no que diz respeito à substância das açdes. Pertencem a ela no que diz res- peito ao modo e tempo determinado segundo o qual a Igreja as ordenou, a saber, quanto tempo se deve orar, jejuar, dar, do mesmo modo quanto e o que se deve orar, quanto e o que não se deve comer e quanto e o que se deve dar. Contudo, na medida em que pertencem a penitência evangélica, o jejum

I compreende todos os castigos da carne, sem escolha de alimentos e sem dife- rença de roupas; a oração, todo exercício da alma: meditar, ler, ouvir, orar; a esmola, todo obséquio para com o próximo. Assim, pelo jejum [a pessoa]

i serve a si mesma; pela oração, a Deus; e pela esmola, ao próximo. Pelo pri- meiro, ela vence a concupiscência da carne e vive sóbria e castamente; pela se- gunda, vence a soberba da vida e vive piedosamente; pela terceira, vence a

!

respeito a sua terceira parte, ou seja, a satisfação"). Por esta razão, também pode ser mudada segundo o arbitrio da Igreja. Mas a penitência evangélica é lei divina, não podendo ser mudada nunca, pois é aquele sacrifício perpétuo chamado um coração contrito e humilhado3r.

5. Cabe aqui [a observação de] que os mestres escolásticos são unânimes em distinguir a penitência como virtude da Penitência sacramental, conside- rando a penitência como virtude como matéria ou objeto do Sacramento da

34 O Sacramento da Penitência é formado de três partes: contriç2o, confissão e satisfação. A terceira parte é a expiação das penas impostas pelo confessor.

I 35 Cf. SI 51.17.

Penitência.

1 36 Sc. a respeito de nós mesmos,

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concupiscência dos olhos e vive de maneira justa neste mundo. Por isso, to- das as mortificações que a pessoa compungida se impõe - sejam elas vigílias, trabalhos, privações, estudos, orações, evitar o sexo e os prazeres - perten- cem a penitência interior como seus frutos, na medida em que promovem o espírito.

2. Assim agiu o Senhor mesmo, e com ele todos os seus santos. Assim, finalmente, ele ordenou: "Que a vossa luz brilhe diante dos seres humanos, para que vejam vossas hoas obras." [Mt 5.16.1 Pois sem dúvida as boas obras são, exteriormente, frutos da penitência e do Espírito, já que o Espírito não faz nenhum som senão o da rola, isto é, o gemido do coração, a raiz das hoas obras.

Contra essas minhas três teses certa pessoa, indignada e andando por ai sob a pele de um leão,', afirmou aos berros que é um erro negar que a palavra "penitência" deva ser entendida como dizendo respeito também ao Sacra- mento da Penitência. Em primeiro lugar, não é meu propósito refutar todas as suas proposições, escritas de maneira tão estúpida e ignorante, que me é impossível crer que tenham sido compreendidas tanto por aquele sob cujo nome são publicadas3s quanto por aquele que as forjou'q, o que se evidencia com facilidade também a qualquer pessoa mediocremente inteligente e versa- da nas Escrituras. No entanto, para demonstrar também a eles sua própria ig- norância (se é que puderem captá-lo), vou elucidar essa primeira tese. Admi- to que sob o termo "penitência" se pode entender mesmo a penitência de Ju- das, mesmo uma penitência de Deus, mesmo uma penitência imaginária, e, como costumam dizer os lógicos, uma penitência tomada primeiramente se- gundo sua matéria e, em segundo lugar, conforme sua intenção, e, por isso, também o sacramento, isto é, a satisfação. Ou quem nega que até hoje alguns teólogos - e não poucos -se permitiram corromper quase toda a Escritura com suas audazes distinções e anfibologias recentemente inventadas, a tal ponto que, em lugar de Paulo e Cristo, lemos colchas de retalhos de Paulo e de Cristo? Eu falei do significado autêntico e próprio do termo, do significa- do que Cristo quis dar a ele, ou que pelo menos João Batista quis. Este não ti- nha autoridade para instituir um sacramento; mesmo assim, veio pregando o batismo de penitência, dizendo: "Fazei penitência." [Mt 3.2.1 Esta palavra foi repetida por Cristo", e, assim, creio que é suficientemente compreensivel que ele não falou do sacramento. Contudo, [suponhamos] que o sonho deles seja verdadeiro e vejamos o que daí se segue.

Cristo é, sem dúvida, um legislador divino, e sua doutrina, direito divi- no, isto é, um direito que nenhum poder pode mudar ou do qual pode dispen-

37 Lutera refere-se às teses de Conrado Wimpina, apresentadas em debate pública na conven- $20 dos dominicanos, em Frankfurt/Oder, em janeiro de 1518, posteriormente publicadas sob o nome de João Tetzel.

38 Joâo Tetzel. 39 Conrado Wimpina. 40 Cf. Mt 4.17.

sar. Mas se a penitência ensinada por Cristo nessa passagem4' significa a Pe- nitência sacramental, isto é, a satisfação, e se a esta o papa pode mudar e, de fato, muda conforme seu arbítrio, então ou o papa tem em seu poder o direi- to divino, ou ele é o mais ímpio adversário de seu Deus, anulando o manda- mento de Deus. Se ousam afirmar isto aqueles que se gloriam de debater para o louvor de Deus, e para a defesa da fé católica, e para a honra da santa Sé Apostólica, e para a revelação da verdade, e para a supressão dos erros; por fim, se é assim que honram a Igreja e defendem a fé os que querem ser vistos como inquisidores da depravação herética (um título medonho, do qual se gabam enormemente - quase que eu disse "inutilmente"42) - o que, per- gunto, sobra para os mais loucos hereges, com que também eles possam blas- femar e incriminar o papa e a Sé Apostólica? A tais pessoas eu não chamaria publicamente de inquisidores, mas de enxertadores43 da depravação herética. De tal espécie e tão prudentemente propostas são quase todas as teses que aquele sobremodo magnífico e inocente papel -não voluntariamente sujeito a vaidadeu - difunde por toda parte. Se eu quisesse refutar todas, seria pre- ciso um grande volume, e quase todo o caos do livro IV das Sentenças45, jun- tamente com os que sobre ele escreveram, teria que ser revolvido. Mas tu, lei- tor, sê livre e franco, para poderes aprender todas a partir dessa uma [tese].

Tese 4

Por conseqüência, apenuperduru enquanto persiste o ódio de si mesmo (isto é a verdadeira penitência interior), ou seja, até a entrada no reino dos céus.

Afirmo e demonstro também esta tese: 1. Ela se segue como consequência segura, qual corolário, do que foi di-

to. Pois se toda a vida é uma penitência e uma cruz de Cristo, não só nas afli- ções voluntárias, mas também nas tentações por parte do diabo, do mundo e da carne, sim, também nas perseguições e nos sofrimentos, como se evidencia a partir do que foi dito, de toda a Escritura, do exemplo do próprio santo dos santos e de todos os mártires, é certo que essa cruz dura até a morte e, assim, até a entrada no reino.

2. Isso é evidente também em outros santos. Santo Agostinho4 fez com que lhe fossem copiados os sete salmos penitenciais e os orava e meditava

41 Sc. Mt 4.17. 42 Trata-se de um jogo de palavras: immoniler/enormcmente - inonifer/inutilmente. 43 Outro jogo de palavras: inquisiiores - insitores. 44 Cf. Rm 8.20. 45 De Pedro Lombardo (ci. p. 31, nota 2 e p. 81, nota 83). 46 354-430, o mais importante pai da Igreja ocidental, nasceu em Tagaste, na Numidia, can-

verteu-se em 387, falecendo como bispo de Hipona. Lutero não só ocupou-se com sua teo- logia, mas também com sua vida. Cf. Migne PL 32.63.

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com lágrimas, dizendo que mesmo que algum bispo tivesse vivido de maneira justa, não deveria partir deste mundo sem penitência. Assim clamou tambérn o B. Bernardoli, quando agonizante: "Vivi de maneira infame, porqiie des- perdicei o tempo. Nada tenho senão que sei que tu, Deus, não desprezarás um coração contrito e humilhado."

3. Por meio da razão: essa cruz da penitência deve durar até que, segun- do o apóstolo, seja destruido o corpo do pecado", pereça a velhice do primei- ro Adão juntamente com sua imagem, e o novo Adão seja tornado perfeito á imagem de Deus. O pecado, porém, permanece até a morte, embora diminua a cada dia pela renovação diária da mente.

4. Pelo menos o castigo da morte permanece em todos, bem como o te- mor da morte, que certamente é o maior dos castigos e, em muitos, mais pe- noso do que a própria morte, para não falar do medo do juizo e do inferno, do terror da bnsciência, etc.

Tese 5

O papa não quer nern pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas que impôs por decisão própria ou dos cânones.

Esta tese eu debato e peço humildemente que me instruam. E assim co- mo roguei no prefácio, da mesma forma rogo ainda agora: quem puder, que me estenda a mão e atente para meus motivos.

1. Em primeiro lugar, vamos reunir as espécies de penas que os crentes podem sofrer:

A primeira é a pena eterna, o inferno dos condenados, que não tem nada a ver com o assunto em pauta. Pois é certo que, como sustentam todos em to- da a Igreja, este castigo não está no poder nem do maior nem do menor dos pontífices. Esta pena só Deus remite pelo perdão da culpa.

A segunda pena é a do purgatório, a respeito da qual veremos mais abai- xo na tese que dela trata; entrementes, pressupomos que ela não está no po- der do pontifice ou de qualquer ser humano.

A terceira pena é a pena voluntária e evangélica. Quanto a ela, dissemos acima que é realizada pela penitência espiritual, segundo aquela palavra de 1 Co 11.31: "Se nos julgássemos a nós mesmos, não seriamos julgados pelo Se- rihor." Ela é aquela cruz e mortificação das paixões mencionada acima na te- se 3. Ora, como esta pena é ordenada por Cristo, pertence à esssncia da peni- tência espiritual e é inteiramente necessária para a salvação, de forma nenhu-

47 1091-1153, abade de Claraval, é o maior teólogo mistico dos povos românicos. Alcancou importância em virtude de seu rigor ético, sua piedade e oratória. Lutero estima-o muito e cita* constantemente, ao lado de Agostinho. Profundo conhecedor da vida de Bernardo, Lutero cita aqui a última oraçào do mesmo, segundo a Legendo oureo de Jacó a Voragine (3230-1298).

48 Cf. Rm 6.6.

68

ma está no poder de qualquer sacerdote aumentá-la ou diminui-la. Pois ela iião depende do arbítrio de urn ser humano, mas da graça e do Espirito. Sim, esta pena está lias mãos do papa menos do que o estão todas as outras penas, como quer que se chamem. Mesmo que possa ariular junto a Deus, pelo me- nos através de oração, a pena eterna, purgatória, aflitiva, assim como pode obter a graça justificante para o pecador - esta pena, no entanto, ele" não pode anular, nem mesmo através de oração. Deve, antes, obtê-la para o peca- dor e inipô-Ia, isto é, anunciá-la coino imposta, não menos do que [lhe] ob- tém a graça. Do contrário, esvaziaria a cruz de Cristoso, e uniria o resto dos canaiieus com seus próprios filhos e filhassf, e não mataria os inimigos de Deus, ou seja, os pecados, até o extermiiiio; a não ser que visse que algumas pessoas, com fervor excessivo, se afligem mais do que é convenieiite para sua salvação e para a irecessidade dos outros. Neste caso, deve não só perdoar, mas também proibir, assim como São Paulo diz a Timóteo: "Não mais bebas água", etc. [I Tm 5.23.1

A quarta pena é castigadora e uma flagelação da parte de Deus, da qual [diz] SI 89.31s.: "Mas se seus filhos pecarem e não guardarem minhalei, visi- tarei suas iniqüidades coin a vara e seus pecados com açoites de seres huma- nos." Quem duvida que essa pena não esteja nas mãos dos pontifices? Pois Jr 49.12 diz que ele52 a impõe a inocentes: "Eis que os que não estavam con- denados a beber o cálice o beberão, e Lu sobrarias como que inocente? Não serás iriocente, mas o beberás." E do mesmo profeta: "Eis que na cidade em que meu nome é invocado eu começo a afligir; e vós sereis como que inocen- tes? Não sereis inocentes." (Jr 25.29.) Donde [diz] o B. Pedro em 1 Pe 4.17: "Agora é tempo de começar o juizo pela casa de Deus; se primeiro por nós, qual será o fim daqueles qiie não crêem no Evangelho?" Ap 3.19: "Eu casti- go a quem amo." E Hb 12.6: "Ora, ele açoita todo filho a quem recebe." Se o sumo pontífice quisesse remitir esta pena ou se o pecador cresse que ela é re- mitida, certamente aconteceria que resultariam [filhos] adulterinos e espú- rios, como [diz] Hb 12.8: "Se estais seni disciplina, de que todos foram feitos participantes, logo sois bastardos, e não filhos." Pois João Batista e os maio- res santos sofreram esta pena.

Todavia, eu admitiria que algumas dessas penas, tais como doenças, en- fermidades, pestes, febres, podem ser suprimidas para os fracos através de orações da Igreja, assim como o B. Tiago ensinou que se devem chamar os presbiteros da Igreja e ungir o doente, para que o Senhor erga o doente por causa da oração da fé'3. Mas por que me demoro? Como se não estivesse cla- ro, para qualquer cristão, que os flagelos de Deus não podem ser removidos pelo poder das chaves, mas somente através de lágrimas e oração, e mais pela imposição de outras penas do que pela remissão, assim como os ninivitas, pe- las penitências com que se afligiram humildemente, mereceram afastar o fla- gelo da destruição dirigido contra elesJ4. De outro modo, se um sacerdote da

49 Sc. o papa. 50 Cf. I Cii 1.17 51 ('I'. 111 7 . 1 s

52 Sc. Deus. 53 Cf. Tg 5 . 1 4 ~ ~ . 54 Cf. Jn 3 .

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Igreja, seja o mais elevado, seja o mais baixo, pode anular essa pena pelo po- rler das chaves, que ele afaste então pestes, guerras, sedições, terremotos, in- cCtidios, massacres, assaltos, bem como turcos e tártaros e outros infiéis; nin- g~iém a não ser um mau cristão desconhece que estes são o flagelo e a vara de I>cus. Pois diz 1s 10.5: "Ai da Assiria! Ela é a vara e o cetro do meu furor. Ikn suas mãos está a minha indignidade." No entanto, atualmente muitos, tité os grandes na Igreja, não sonham com outra coisa senão com guerra con- ira o turco5'. Querem fazer guerra não contra as iniquidades, mas contra a vara da iniqüidade, e [assim] lutar contra Deus, que diz que, através dessa va- ra, visita nossas iniquidades porque nós não as visitamos.

A quinta é a pena canônica, isto é, estabelecida pela Igreja. Não há dúvi- (Ia de que ela está de pleno direito nas mãos do sumo pontífice, porém assim (Iiie (como dizem) haja uma justa razão para sua remissão e a chave não erre. IIii, contudo (em minha temeridade), não compreenderia essa justa razão tão rigidamente como muitos soem fazer. Pois a piedosa vontade do pontifice parece ser suficiente, e esta deveria ser uma razão suficientemente justa. 'l'ambém não vejo como, nessa remissão, poderia acontecer um erro da cha- ve, ou, se acontecer, em que ele haveria de prejudicar, já que a alma é salva, iiiesmo que, por um erro, tais penas não fossem rrmitidas.

Deve-se prestar mais atenção no seguinte: na remissão plenária, o sumo pontífice não remite todas as penas canônicas. Isto é evidente, pois não remi- te aentradaou aintrodução de pessoas niim monastério, o que é uma penanão raranos cãnones. Eletambém não remite as penas civis ou, antes, criminais in- Iligidas pelo direitocivil, emboraos legados façamisso ein qualquer lugar onde cstejam pessoalmente presentes. Portanto, ele parece remitir somenle as penas iiiipostas em relação com jejuns, orações, esmolas e outros labores e discipli- iras, algumas por sete anos, outras por menos, outras ainda por mais. E nesta cspécie de pena eu incluo também a que o sacerdote da Igreja impõe conforme c i i arbítrio. Agora, pois, vê emeensina, tu que podes. As quatro primeiras pe- rins ele não pode remitir; que outra remite senão a canônica e arbitrária?

Aqui, mais uma vez aquele sujeito em pele de leão56 me ladra: É remitida ;i Iicna que é exigida pela justiça divina ou que deve ser paga no purgatório. A vhic eu respondo que é sobremodo impio pensar que o papa tenha o poder de iiiitdar o direito divino e de relaxar o que a justiça divina infligiu. Pois eles' :iZo diz: "Tudo o que eu ligar tu desligarás", mas sim: "O que tu desligares \cr;i desligado. Mas não deves desligar tudo o que está ligado, e sim apenas o

I ( i i i março de 1517, na última sessão do Concilio de Lairão, I.e.30 X anunciou que pretendia ;iiliii«estai os grandes da Europa a estabelecerem iim armisticio e a se prepararem para uma criirada contra os turcos. Durante o inverno de 1517/18. o colégio de cardeais ociipou~se ii,rii as iraplicações diplomálicas e militares da questão e enviou o cardeal Caelano, a 5 de ~ i i ; i i « de 1518, para conferenciar com o imperador a esse respeito.

Vi <'i,iirudo Wirnpina. ! i SC. Cristo.

que foi ligado por ti, não o que foi ligado por mim." Eles, porém, entendem isso assim: "Tudo o que desligares, seja no céu, seja na terra, será desligado", embora Cristo tivesse acrescentado "na terra", restringindo, de propósito, a chave a terra, sabendo que, do contrário, eles furariam todos os céus.

A sexta pena - que quero imaginar até ser instruido de outra maneira - é aquela que eles dizem ser exigida segundo a justiça divina, para satisfazer a justiça divina. Esta pena, entretanto - se é diferente da terceira e da quinta (como é necessário que seja, se deve ser a sexta) -, não pode ser sequer ima- ginada exceto no sentido de que seria imposta - a saber, mais oração, jejum, esmolas - onde a terceira e a quinta não fossem suficientes. Assim , ela dife- riria da quinta ou da terceira somente pelo grau de intensidade. Ela não pode significar a pena civil, pois esta (como eu disse) elesunão remite; de outro mo- do, as cartas de indulgências aboliriam todos os patíbulos e locais de tortura e execução pela Igreja. Mas ela também n j o pode significar a pena canônica de fato imposta através da sentença de um tribunal de causas litigiosas, pois, co- mo a experiência evidencia suficientemente, ele não remite excomunhões, in- terditos ou quaisquer censuras eclesiásticas já infligidas. Resta, portanto, a pena que eu disse que vou apenas imaginar. Contudo, estou persuadido de que tal pena é inexistente: em primeiro lugar, porque por afirmação nenhuma da Escritura, dos mestres, dos cânones nem por um argumento racional plau- sível se pode ensinar que existe uma pena dessas; e é muito absurdo ensinar qualquer coisa na Igreja que não possa ser fundamentada nem na Escritura, nem nos mestres, nem nos cânones, nem ao menos através de argumentos ra- cionais. Em segundo lugar, porque, mesmo que houvesse uma pena dessas, ela não pertenceria a remissão do papa, já que é voluntária e imposta para além dos cânones; aliás, ela não é imposta, r sim assumida por vontade pró- pria, pois é diferente das penas que são impostas, como foi dito acima no contexto da quinta pena.

Mas se disseres: "Como, então, se satisfaria a justiça divina se, de algum modo, as penas canônicas ou sacerdotais não fossem suficientes?", respon- do: ela é abundantemente satisfeita pela terceira e quarta penas, segundo uma medida que Deus conhece. Pois não lemos em lugar algum que Deus te- nha exigido alguma pena exceto a terceira e, por vezes, também a quarta, co- mo no caso de Davi e dos filhos de Israel no livro de Juizes e Reis. Mas ele quase sempre se contenta com um coraqão contrito e com uma pena da tercei- ra espécie. Dai admira-me a negligência de certas pessoas que, para funda- mentar a satisfação, dizem que Cristo absolveu aquela adúltera no evangelho39 sem satisfação, mas não [absolveu] Maria Madalena sem satisfa- ção, e que, por esta razão, o Senhor deve ser imitado no caso de Maria, não no caso da adúltera, para que, sem satisfação, a ninguém seja remitido o pe- cado. "Pois nem os leprosos ele purificou sem impor-lhes que satisfizessem a

58 Sc. o ,papa. 51) ( ' I ' , I ( , n . 1 ~ ~ .

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lei e se apresentassem ao sacerdote. Esta é, portanto, a pena que a justiça di- vina exige para alem das já mencionadas." Eu respondo, porém: em minha opinião, essa adúltera sofreu mais penas e satisfez mais do que Maria Mada- lena. Com efeito, ela já sofreu a morte, nada mais vendo senão o juizo duris- simo. Por isto, foi extraordinariamente cruciada e sofreu muito mais do que Maria, para quem o juizo da morte não estava iminente. Por essa razão, sua pena foi da quarta e terceira espécies, porque suportou o flagelo da morte em seu coração contrito. Maria Madalena pagou penas da terceira espécie, e não se pode ensinar que sua pena fosse outra, como é evidente. Quanto aos lepro- sos, digo que,lhes foi ordenado apresentar-se não para satisfação, mas para testemunho. E que a lepra não era pecado, mas significava pecado; a apre- sentação do pecado não é satisfação, mas busca a sentença do sacerdote, co- rno é suficientemente sabido.

2. Em segundo lugar, demonstro a tese da seguinte maneira: aqueles dois poderes - o de ligar e o de desligar - são iguais e se referem a mesma malé- ria. No entanto, o sumo pontífice não tem [poder] para ligar e impor nenhu- ma pena exceto a canônica ou quinta; logo, também não pode desligar e anu- lar alguma [outra]. Ou então teria que se dizer que esses dois poderes são de extensão desigual. Se se diz isto, ninguém é obrigado a crer, pois não é prova- do por quaisquer passagens da Escritura nem por quaisquer cânones, ao pas- so que é claro o texto em que Cristo concedeu [o poder de] ligar sobre a terra e [o de] desligar sobre a terra, medindo e estendendo ambos os poderes de igual modo.

3. A extravagante depe. et re. li. V. c. Quod autemmdiz expressamente que as remissões não têm validade para quem não as receber de seu juiz, visto que ninguém pode ser ligado ou desligado por alguém que não seja seu juiz. Certo é, porém, que o ser humano não está sob a jurisdição do papa nas pe- nas da primeira, segunda, terceira, quarta e sexta espécies, mas apenas na quinta, como é claramente evidente e como ficará mais evidente abaixo.

Corolario

Segue-se que a satisfação não é chamada de sacramental porque satisfaz pela culpa pura e simplesmente (é que pela culpa satisfazem a terceira e a quarta penas), mas porque satisfaz pela culpa segundo os estatutos da Igreja. Pois a Deus se satisfaz maximamente por meio de uma nova vida, etc. Mas iambém por meio das Escrituras deve ser demonstrado que não é exigida qiialquer satisfação pelos pecados.

Temos aqui João Batista, enviado, segundo o propósito e decreto de Ileus, para pregar penitência, e que também disse: "Farei penitência" [Mt

110 Trata-se das decretais de Gregóiia IX, a segurida das cinco partes principais da coleção de leis eclesiásticas designada, desde princípios do s i c . XVI, de Corpus iuris cononici. A r e l è ~ rência comoleta é: Decreloles d . Greaorii oaDoe IX, livro V. titulo XXXVIII (De Doenden- - . . . . liis e1 remikonibus), capitulo 4 (que inicia com as p a l a v r a s ~ u o d ourem), i": Corpus iuris cononici, Graz, 1955, v . 2, col. 885.

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3.21, e de novo: "Produzi, pois, frutos dignos da penitência." [Lc 3.8.1 Ele mesmo explicou essas palavras, ao responder as multidões que lhe pergunta- vam o que deveriam fazer: "Quem tiver duas túnicas, dê a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo." [Lc 3.11 .I Não vês que, como penitên- cia, ele não impós senão aobserváncia dos mandamentos de Deus, e que, por isso, quis que sob "penitência" fossem entendidas tão-somente a conversão e a mudança para uma nova vida? Mas mais claramente ainda: "Eis que vie- ram publicanos e disseram: Mestre, que havemos de fazer? E ele disse: Não fazei nada mais do que aquilo que vos foi estabelecido." [Lc 3.12s.I Acaso disse aqui: "Deveis satisfazer pelos pecados passados"? De igual modo disse aos soldados: "A ninguém maltrateis, a ninguém calunieis, e contentai-vos com o vosso soldo." [Lc 3.14.1 Acaso impôs aqui outra coisa do que os man- damentos comuns de Deus? Ora, se esse mestre da penitência, instituído por Deus para isto, não nos ensinou a satisfação, então ele certamente nos enga- nou e não ensinou suficientemente o dever da penitência.

A segunda passagem é Ezequiel 18.21: "Se o ímpio se converter de sua impiedade e fizer o que é reto e justo, certamente viverá e não morrerá." Vê, ele nada impõe senão a retidão e a justiça, que devem ser feitas durante toda a vida, conforme aquela palavra: "Bem-aventurados os que praticam a reti- dão e a ju~tiça em todo tempo." [SI 106.3.1 Terá ele, pois, nos enganado tam- bém aqui?

A terceira passagem é Miquéias 6.8: "Eu te mostrarei, ó ser humano, o que é bom e o que o Senhor exige de ti: principalmente que pratiques a justi- ça, ames a misericórdia e andes humildemente com o teu Deus." [Aqui] vês o que Deus exige do ser humano corno satisfação. Por fim, no que antecede ele zomba dos que querem satisfazer através de obras, dizendo: "O que oferece- rei de digno ao Senhor? Acaso lhe oferecerei holocaustos e bezerros de um ano? Pode ele ser aplacado com milhares de carneiros ou com muitos milha- res de bodes? Acaso lhe darei meu primogênito pela minha transgressão, o fruto de meu ventre pelo pecado de minha alma?" [Mq 6.6s.l Quer dizer: "Não, porque Deus não exige tais coisas pelo pecado, mas sim justiça, mise- ricórdia e temor, como foi dito, isto é, uma nova vida."

Tese 6

O papa não pode remitir culpa alguma senão declarando e confirmando que elafoi perdoada p o r Deus, ou, sem drívida, remitindo-a nos casos reser- vados para si; se estes forem desprezados, a culpa permanecera po r inteiro.

A primeira parte é tão evidente, que alguns61 até confessaram que é uma maneira de falar imprópria quando [se diz que] o papa dá remissão da culpa.

61 Aparentemente, trata-se de Joào Genser von Paltz e Jacó von Jiiteborg. O primeiro foi pro- fessor de Lutera na convento de Erfurt.

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Outros, porém, confessaram não entender. Pois todos confessam que a culpa é perdoada unicamente por Deus, conforme 1s 43.25: "Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas iniqüidades por amor de mim, e dos teus pecados não me lembrarei." E Jo 1.29: "Eis o cordeiro de Deus, que tira os pecados do mun- do." E S1 129[1301.3s: "Se observares, Senhor, iniquidades, quem, Senhor, subsistirá? Pois contigo está a propiciação." E mais, abaixo: "Junto ao Se- nhor há misericórdia, junto a ele, copiosa redenção. E ele quem redime Israel de todas as suas iniquidades." (SI 130.7s.) E SI 50[51].10: "Cria em mim, ó Deus, um coração puro", etc. E, em tantas obras contra os donatistas62,o B. Agostinho outra coisa não diz senão que os pecados são perdoados somente por Deus.

A segunda parte é igualmente muito clara, pois a quem desprezasse os casos reservados certamente não seria remitida nenhuma culpa. "Quem vos desdenhar", diz ele, "a mim me desdenha." [Lc 10.16.1 Sim, ninguém retor- na de Deus com a culpa perdoada se não leva consigo, ao mesmo tempo, re- verência para com as chaves.

Uma vez que esta tese é admitida por todos como verdadeira, não é ne- cessário que ela seja reforçada por minha afirmação. Não obstante, indicarei aqui o que me preocupa e, mais uma vez, confessarei minha ignorância, se al- guém se dignar a me instruir e elucidar essa questão com maior clareza. Em primeiro lugar, quanto á primeira parte, parece que essa maneira de falar ou opinião é imprópria e incompatível com o texto do evangelho, já que se diz que o sumo pontífice desliga, isto é, declara desligada a culpa ou confirma63. Pois o texto não diz: "Tudo o que eu desligar nos céus tu desligarás na terra", mas, pelo contrário: "Tudo o que desligares na terra eu desligarei, ou será desligado, nos céu?"', onde o sentido é mais de que Deus confirma o desligamento do sacerdote do que vice-versa. Em segundo lugar, em relação a segunda parte, é certo que os casos que o papa desliga são desligados também por Deus, e que ninguém pode se reconciliar com Deus se não se reconciliar primeiramente, pelo menos em desejo, com a Igreja. Também é certo que a ofensa a Deus não é removida enquanto permanecer a ofensa á Igreja. Mas é de se perguntar se alguém, tão logo esteja reconciliado com a Igreja, também está reconciliado com Deus. O texto sem dúvida diz que tudo o que está desli- gado na Igreja estará desligado também no céu, porém não parece seguir-se daí que, por este motivo, pura e simplesmente tudo estará desligado no céu, mas unicamente aquilo que está desligado na Igreja. Em minha opinião, essas

h2 Trata-se de movimento surgido no séciilo I V , no Norte da África, o qual rccebcu rei, name da bispo Donato. Donato e seus adeptas, defensores dc uma disciplina eclcsiistica mais ri^ gida, negavam-se a reconhecer a sagracão do bispo Ceciliano, feita por outro hicpa que c o ~ metera apostasia diirante as perseguições. 0 s donatistar foram violentamente persegiiidos por Canstanfino I. Agaitinho defrontou-sc com os donatistas através de escritor e em um dcbate, no ano de 41 1. Deite debate provém a tese de que a validade de um ato sacramental independe da dignidade do sacerdote.

h3 Sc. o desligamento. M Cf. Mt 16.19.

duas perguntas não são de pouca importância; quanto a elas, talvez vou ex- por minha opinião mais amplamente na tese seguinte.

Tese 7

Deus não perdoa a culpa de qualquer pessoa sem, ao mesmo tempo, sujeitá-la, em tudo humilhada, ao sacerdote, seu vigário.

Afirmo esta tese. Ela não necessita de debate ou de demonstração, já que é aprovada por tão grande consenso de todos. Todavia, ainda me preocu- po com sua compreensão. E vou expor minha maneira de pensar primeira- mente como um tolo. Pois esta tese, juntamente com a precedente, afirma que Deus não perdoa a culpa a não ser que haja anteriormente uma remissão por parte do sacerdote, pelo menos em desejo, como dizo texto com clareza: "Tudo o que ligares", etc. [Mt 16.19.1 E Mt 5.24: "Vai primeiro reconciliar- te com teu irmão; e então, voltando, faze a tua oferta." E esta passagem: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus." [Mt 22.21.1 E na oração do Senhor: "Perdoa-nos as nossas dividas, assim como também nós perdoamos aos nossos devedores." [Mt 6.12.1 Em todas estas passagens é da- do a entender que a remissão na terra é anunciada antes que [acontece] a re- missão nos céus. Pergunta-se, com razão, como isso pode acontecer antes da infusão da graça, isto é, antes da remissão de Deus, pois, sem que a graça de Deus tenha perdoado primeiramente a culpa, o ser humano não pode ter se- quer o desejo de buscar a remissão. Quanto a isso, assim digo e compreendo: quando Deus começa a justificar o ser humano, ele o condena primeiro; ele destrói a quem quer edificar, fere a quem quer curar, mata a quem quer vivi- ficar, como diz em 1 Rs 265e Dt 32.39: "Eu mato e vivifico", etc. Ora, ele faz isso quando abate o ser humano e o humilha e assusta no conhecimento de si mesmo e de seus pecados, para que diga, como misero pecador: "Não há paz nos meus ossos por causa de meus pecados; não há saúde em minha carne por causa de tua ira." [Sl 38.3.1 Pois assim os montes se desvanecem perante o Senhor. "Assim ele envia suas setas e os conturba; pela tua repreensão, Se- nhor, e pelo sopro do espírito da tua ira." [SI 18.14s.l Assim os pecadores são voltados para o inferno, e sua face se enche de ignomínia. Essa conturba- ção e agitação foi experimentada frequentemente por Davi, que a confessa com muitos gemidos em diversos salmos. Contudo, nessa conturbação come- ça a salvação, pois o temor do Senhor é o inicio da sabedoria". Aqui (como diz Naum 1.3), ao limpar, o Senhor não faz ninguém inocente e tem seus ca- minhos na tempestade e no turbilhão, e as nuvens são o pó de seus pés; aqui brilham os seus relâmpagos, a terra o vê e se agita67; aqui suas flechas cruzam e se fincam, e a voz de seu trovão rola, isto é, faz a volta, e as águas o vêem e ficam com medo68; em suma, aqui Deus realiza sua obra estranha, para reali-

65 Cf. I Sili 2.6. h6 <'I. SI 111.10

67 Cf. SI 97.4. 68 Cf. SI 77.17s~.

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zas sua obra [prÓprial69; esta é a verdadeira contrição do coração e humilha- ção do espírito, o sacrifício mais agradável a Deus; aqui está a vitima já imo- lada, cortada em pedaços e com a pele tirada, com o fogo aceso para o holo- causto. E aqui a graça é infundida (como dizem), como afirma 1s 41.3: "Ele os persegue e passa adiante em paz." E 1s 66.2: "Meu espirito não repousará senão sobre quem é quieto e humilde e treme ás minhas palavras." E Eze- quias, em 1s 38.16: "O Senhor, se assim se vive e em tais coisas está a vida do meu espírito, tu me castigarás e me farás viver.'' Porém então o ser humano ignora sua justificação a tal ponto, que se crê próximo da condenação e crê que isso não é uma infusão da graça, mas sim uma efusão da ira de Deus so- bre ele. No entanto, bem-aventurado é ele se sofre essa tentação, pois no mo- mento em que se julgar consumido, se levantará como a estrela da manhã. Mas enquanto dura essa mísera perturbação de sua consciência, ele não tem paz nem consolação, a menos que se refugie junto ao poder da Igreja e, tendo posto a descoberto seus pecados e misérias através da confissão, peça conso- lação e remédio. Pois não conseguirá encontras paz por seu próprio conselho ou auxílio; sim, por fim a tristeza seria transformada em desespero. Aqui o sacerdote, vendo tal humildade e compunção, e confiando no poder que lhe foi dado para fazer misericórdia, deve ter plena confiança e desligá-lo e declará-lo desligado, dando-lhe, assim, paz de consciência. A pessoa a ser ab- solvida, porém, deve, com toda a diligência, tomar cuidado para não duvidar que seus pecados lhe estejam perdoados junto a Deus e deve ficar tranqüila em seu coração. Pois ainda que esteja incerta devido a perturbação de sua consciência (como deve acontecer via de regra, se a compunção é verdadeira), mesmo assim é obrigada a perseverar no julgamento do outro -não por cau- sa do próprio prelado ou de seu poder, e sim por causa da palavra de Cristo, que não pode estar mentindo ao dizer: "Tudo o que desligares na terra." [Mt 16.19.1 A fé nesta palavra produzirá a paz de consciência, desde que o sacer- dote a tenha desligado de acordo com esta palavra. Mas quem busca paz por um outro caminho - interiormente através da experiência, por exemplo - parece por certo tentar a Deus e querer a paz no fato'o, não na fé. Pois terás paz na mesma medida em que creres na palavra daquele que promete: "Tudo o que desligares", etc. [Mt 16.19.1 Nossa paz é Cristo, porém na fé. Se al- guém não crê nessa palavra, nunca estará em paz, mesmo que seja absolvido milhões de vezes pelo próprio papa e se confesse ao mundo todo.

Esse é, pois, o dulcíssimo poder pelo qual devemos agradecer sumamen- te e do fundo do coração a Deus, que deu tal poder aos seres humanos. Esse poder é o Único consolo dos pecadores e das consciências infelizes, desde que creiam que a promessa de Cristo é verdadeira. A partir disso fica claro agora o que se perguntava acima: mesmo que a remissão da culpa aconteça, pela in- fusão da graça, antes da remissão do sacerdote, de tal natureza e de tal modo abscôndita sob a forma da ira é a infusão da graça - pois os seus vestígios não são reconhecidos (SI 76[771.19) e a vereda sob seus pés não é visivel (1s

69 Cf. 1s 28.21. 70 In re, no original

41.3) -, que o ser humano fica mais incerto a respeito da graça quando ela estiver presente do que quando está ausente. Por isso, na ordem geral, a re- missão da culpa só nos é certa por meio da sentença do sacerdote, e nem se- quer por meio dela, se não crês em Cristo que promete: "Tudo o que desliga- res'', etc. Mas enquanto nos é incerta, ela nem sequer é uma remissão, name- dida em que ainda não é uma remissão para nós; sim, o ser humano pereceria de forma pior ainda se ela não se tornasse certa, porque não creria que lhe foi dado remissão. Assim disse Cristo a Simão, o leproso, a respeito de Maria Madalena: "Perdoados lhe são os pecados" [Lc 7.471; com isto em todo caso indicou que a graça já lhe tinha sido infundida. Porém ela não reconheceu es- sa infusão; por causa de seus pecados, ainda não havia paz em seus ossos; até que ele se virou para ela e lhe disse: "Teus pecados te são perdoados. Tua fé te salvou" [Lc 7.48,501, a saber, [a fé] pela qual ela creu naquele que a per- doou; por isso, segue-se: "Vai-te em paz." [Lc 7.50.1 Também aquela mulher adúltera os pecados já estavam perdoados antes que Cristo se levantasse. Ela, entretanto, não reconheceu isso, visto que havia tantos acusadores a sua vol- ta, até que ouviu a voz do noivo dizer: "Mulher, ninguém te condenou? Nem eu tampouco te condenarei." [Jo 8.10s.1 E quando Davi pecou e, por ordem de Deus, foi repreendido pelo profeta Natã, por certo teria morrido subita- mente, quando, pela graça da justificação nele atuante, exclamou: "Pequei" [2 Sm 12.131 (pois esta é a voz dos justos, que acusam primeiramente a si mesmos), se Natã, como que o absolvendo, não dissesse imediatamente: "Também o Senhor removeu o teu pecado; não morrerás." [2 Sm 12.13.1 Por que acrescentou "não morrerás", senão porque o viu ser destroçado e desfalecer por causa do terror de seu pecado? Também Ezequias, ao ouvir que ia morrer, teria morrido se não tivesse recebido de Isaias consolo e um si- nal para entrar no templo7'. Crendo nele, obteve, ao mesmo tempo, paz e re- missão dos pecados, como diz: "Jogaste todos os meus pecados para trás de tuas costas." [Is 38.17.1 E em geral no Antigo Testamento: de que modo po- deria manter-se a confiança deles na misericórdia de Deus e na remissão dos pecados, se Deus não tivesse mostrado - através de aparições, inspirações, queimas de oferendas, apresentações de nuvens e outros sinais - que lhe agradava tudo o que faziam? Agora ele quer que isso aconteça através da pa- lavra e da sentença do sacerdote.

Portanto, a remissão de Deus opera a graça, mas a remissão do sacerdo- te opera paz, a qual também é graça e dom de Deus, porque é a fé na remis- são e na graça presentes. Em minha opinião, esta é a graça que nossos mes- tres dizem ser conferida eficazmente através dos sacramentos da Igreja, po- rém ela não é a primeira graça justificante, que deve estar nos adultos antes do sacramento, e sim, como se diz em Rm 1.17, fé em fé; pois é necessário que quem vem72 creia. Por outro lado, também a pessoa batizada precisa crer que creu e veio corretamente, ou então nunca terá a paz que só se tem apartir

71 Cf. Ia 3 8 . 4 ~ ~ . 72 Sc. para o sacramento

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da fé. Por conseguinte, Pedro não desliga antes do que Cristo, mas declara e mostra o desligamento. Quem crer nisso com confiança obteve verdadeira- mente paz e perdão junto a Deus (isto é, tornou-se certo de que está absolvi- do), não pela certeza da coisa, mas pela certeza da fé, por causa da palavra infalível daquele que promete misericordiosamente: "Tudo o que desligares", etc. Assim [diz] Rm 5.1: "Justificados gratuitamente por sua graça, temos paz junto a Deus por meio da fé", em todo caso não por meio de uma coisa, etc.

Se minha compreensão é correta e verdadeira, não é errado nem impró- prio (como querem eles) dizer que o papa remite a culpa. Sim, a remissão da culpa é incomparavelmente melhor do que a remissão de quaisquer penas, embora preguem apenas a esta e o façam de tal forma, que tornaram a remis- são da culpa nula na Igreja. No entanto, é, antes, o contrário: onde, pela re- missão da culpa (que não pode dar a si mesmo, já que ninguém deve crer em si mesmo, a menos que prefira transformar uma desordem em duas), recebi- da através da fé na absolvição, o ser humano encontrou paz, toda pena lhe é nenhuma pena. Pois é a perturbação da consciência que torna a pena moles- ta; a alegria da consciência, porém, torna a pena desejável.

E vemos que essa compreensão do poder das chaves abunda entre o po- vo, que busca e recebe a absolvição com fé singela. Entretanto, algumas pes- soas mais doutas se esforçam no sentido de encontrar paz através de suas contrições, obras e coqfissões, mas iiada mais fazem senão passar de uma in- quietude para outra. E porque confiam em si mesmas e em suas [obras], ao passo que, se sentissem o flagelo da consciência, deveriam crer em Cristo que diz: "Tudo o que desligares", etc. Para esse flagelo da consciência os teólo- gos mais recentes" contribuem enormemente, tratando e ensinando o Sacra- mento da Penitência de tal forma, que o povo aprende a confiar que pode ex- tinguir seus pecados através de suas contrições e satisfações. Esta vanissima presunção não pode produzir outra coisa senão que as pessoas vão de mal a pior - assim como no caso da mulher com hemorragia no evangelho", a qual gastou tudo o que possuia com médicos. Dever-se-ia, primeiramente, ensinar a fé em Cristo, que concede a remissão gratuitamente, e persuadir [as pessoas] a desesperar de sua própria contrição e satisfação, para que, assim fortalecidas pela confiança e alegria do coração por causa da misericórdia de Cristo, por fim odiassem jovialmente o pecado, fizessem contrição e satisfa- ção.

Também os juristas contribuem ativamente para essa tortura [das cons- ciências]: exaltando com excessivo zelo o poder do papa, fizeram com que o poder do papa fosse mais estimado e admirado do que a palavra de Cristo honrada através da fé, ao passo que se deveriam ensinar as pessoas para que aprendessem a confiar não no poder do papa, mas na palavra de Cristo que

73 Trata-se dos nominaiistas, movimenta surgido a partir de Duns Escoro (1270-1308) e, prin- cipalmente, de Guilherme de Occam (m. após 1347 em Munique). Em contiapasicão ao to- rnisrno, designado como vio onriquo, o nominalisma era denominado de via moderna.

74 Cf. Mc 5 . 2 5 ~ ~ .

78

promete ao papa, se é que querem alcançar paz em suas consciências. Pois não é posque o papa dá que tu tens algo, mas tens se creres que o recebes. Tens na mesma medida em que crês por causa da promessa de Cristo.

Contudo, se o poder das chaves não tivesse essa eficácia para a paz do coração e a remissão da culpa, então na verdade (como dizem alguns) as in- dulgências seriam vilificadas. Pois que grande coisa é conferida se se confere remissão das penas, visto que os cristãos devem desprezar até a morte?

Do mesmo modo, por que Cristo disse: "De quem perdoardes os peca- dos, são-lhes perdoados" [Jo 20.231, senão porque não são perdoados a quem não crê que lhe são perdoados através do perdão do sacerdote? Por es- ta razão, nas palavras "de quem perdoardes os pecados" é conferido o poder's, mas nas palavras "são-lhes perdoados" o pecador é desafiado a crer no perdão. Da mesma forma, também nas palavras "tudo o que desligares" é dado o poder; nas palavras "será desligado" nossa fé é despertada. Pois ele poderia ter dito: "De quem perdoardes as penas ou castigos", se quisesse que assim compreendêssemos. Porém ele sabia que, por causa de seu medo, a consciência já justificada pela graça rejeitaria a graça, se não fosse socorrida através da fé na presença da graça pelo ministério do sacerdote; sim, se ela não cresse que o pecado está perdoado, ele permaneceria. É preciso também crer que ele está perdoado, e esse é o testemunho que o Espírito de Deus dá ao nosso espirito, que somos filhos de Deus's. Porque ser filho de Deus é tão abscôndito (já que parece que se é inimigo de Deus), que, se não se crê que é assim, [também] não pode ser [assim]. Deus age tão maravilhosamente com seus santos, que ninguém suportaria a mão daquele que justifica e medica a menos que creia que ele o justifica e medica, assim como um doente não acre- dita que o médico do corpo lhe faz uma incisão com a intenção de curá-lo a menos que bons amigos o persuadam [disso].

Seja, pois, o sacerdote a causa sem a qual [não há remissão], seja a causa da remissão uma outra, não me importa - desde que conste de alguma for- ma que é verdade que o sacerdote perdoa os pecados e a culpa; da mesma for- ma, a saúde do doente é atribuída verdadeiramente aos amigos porque, por sua persuasão, fizeram com que o doente cresse no médico que fez a incisão.

Também não se deve pensar aqui: "E se o sacerdote errasse?" Ocorre que a remissão não está firmada no sacerdote, mas na palavra de Cristo. Por isto, quer o sacerdote o faça por causa do lucro, quer por causa da honra, tu deves desejar o perdão sem fingimento e crer no Cristo que promete. Sim, mesmo que ele absolvesse por leviandade, ainda [assim] obterias paz a partir de tua fé. Assim como ele dá o Batismo ou a Eucaristia, seja em busca de lu- cro, seja levianamente, seja brincando, tua fé o recebe plenamente. Tão gran- de coisa é a palavra de Cristo e a fé nela. Pois lemos nas histórias dos mártires'7 que certo comediante quis ser batizado por brincadeira, sim, para zombar do Batismo; enquanto era batizado, se converteu, foi verdadeira-

75 Sc. para perdoar. 76 C ( . Rm 8.16. 77 Pi>deinns corirtatal qiie Lutero se ocupou intensivamente com a história das perseguiçóes

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mente batizado por seus companheiros pagãos e imediatamente por eles co- roado com o martírio, Do mesmo modo, quando menino, Sto. Atanásio78 ba- tizou outros meninos, que, depois, o bispo de Alexandria declarou batizados, como [lemos] na História eclesiástica'9. E o B. Ciprianoao repreendeu a paz dada muito precipitadamente por um certo bispo Terápio, mas quis que ela fosse ratificada. Portanto, somos justificados pela fé, também obtemos paz pela fé -não por obras, penitências ou confissões.

Com respeito a essa sexta e sétima tese aquele nosso leãoai triunfa com glória, sim, canta um hino de vitória sobre mim antes da vitória. Daquela sentina de opiniões ele tira uma distinção entre uma pena satisfatória e vindi- cativa, por um lado, e uma pena medicativa e curativa, por outro, como se fosse necessário crer em quem sonha essa espécie de coisa. Não obstante, pe- rante o povo, eles escondem essa distinção com extrema prudência, para que as indulgências ou, antes, os lucros não sejam prejudicados, se o povo perce- besse que são remitidas as tão modestas e inúteis penas vindicativas (isto é, inventadas). Depois, para tornar conhecido de todos que não sabe o que é o sacerdócio antigo ou o novoaz, ele introduz outra escuridão de palavras e uma

aos cristãos. Além disso, sempre mostrou grande amor e respeito em relação aqueles que derramaram seu sangue. A expressão do original latino gesra morlyrum, no entanto, não se refere a uma coletânea que levasse esse nome, mas A Legendo ourea de Jacó a Vaiagine (1230-1298). muitissimo usada por Lutero.

78 Considerado o "oai da ortodoxia". Atanásio defendeu iá no Concilio de Nicéia 1325). con- ira Arto, .I d ~ u t r i n a .I.I ltorna.>u,ia dc C r t \ t < , :,>tu ,J I ? ~ I t ~ w ,~qx:t.> 1,) .!r r).% :, :Y>I>.. ~1

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~enhagen , que cJ$idia &,, e \ : r ~ t a ~ r a t ~ d c p u . I2 I6rc1,~ \\ \ 11, 1 1 1 . qli,.2, 79 I turcro relcrc \e i oh rd / I ~ ~ t o r ~ u e ~ ~ ~ / ~ ~ ; ~ u ~ ~ ~ . ~ , .lc Fu,ch~.>, .J 4 . 1 ~ 1 I,,# h . % i > ~ ~ .I<,< c,,,,,; ,311-

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340) e elaborou a primeira história da igreja, dos primórdibs até o ~bnc i l i a de ~ i c G a . 80 Cipriano é um dos mais conhecidos pais da Igreja. Batizado em 246. Ioga veia a se tornar

bispo de Cartago. quando pôde iiderar sua comunidade em meio a perseguição sob Décio. Em relação aos que haviam negado a fé em meio às perseguições, Cipriano procurou assu- mir uma posição conciliadora. Par outro lado, negou validade aa Batismo oficiado por h e ~ reges. Essas duas questões valeram-lhe o anátema do bispo romano Estêvão. Tal anátema levou-a a escrever a obra De uniroteecclesioe, na qual defende o principio de que o bispo de Roma, apesar do lugar de destaque conferido ao apóstolo Pedro, n2o tem poder judicial supremo sobre os demais bispos. Cipriano é o mais importante representante da constitui- $20 episcopal da Igreja, contra o papalismo. Seu escrito De unirate ecclesiae foi de grande importância para Lutero em sua luta contra o primado papal, mesmo que afirmasse que Ci- priano foi "um homem piedoso, mas um teólogo fraca". O fato mencionado por Lutero encontra-se na carta de Cipriano ad Fidum (II1,8).

81 Wimpina-Tetzel. No que se segue, Lutero usa, contra Wimpina-Tetrel, um dito proverbial (ante vieroriam encomium canere) que também encontramos nos Adagio de Erasmo. A ex- pressão exseniinoillo opinionum é um jogo de palavras com o qual Lutero zomba da p i i n ~ cipal obra de Pedro Lombarda, Senlenriorum libri IV . Em virtude dessa obra, Lombaido recebera o titulo de mogister sententiorum.

82 Na 11: tese e nas seguintes, Wimpina-Tetzel afirmam que os sacerdotes cristãos não só "proclamam e confirmam" a graça do perdão dos pecados, mas que, realmtnte, a conce- dem, mercê do poder das chaves.

80

distinção das chaves, [distinguindo entre] as da autoridade, as da excelência e as do ministério. Até nossos exímios mestres, os inquisidores da depravação herética e defensores da fé católica, absolutamente nada sabem, exceto o que sugaram das fragmentadas e rançosas questões do livro IV das Sentençasa). Talvez eles queiram [dizer] que aquilo que Cristo desligar com as chaves da excelência no céu í j á que na terra ele mesmo não desliga) será desligado num céu superior junto a Deus. Mais uma vez, para que o pontífice também seja Deus, é preciso inventar um outro Deus, superior, junto ao qual seja desliga- do o que ele desligar com as chaves da autoridade no céu superior. Mas fora com essas frivolidades! Nós só conhecemos uma espécie de chaves, tão- somente as dadas na terra. Concluem eles agora: "Erra, portanto, quem diz que o sacerdote da nova lei só desliga confirmando e declarando" (pois nisso consistia o ministério do sacerdócio judaico). Oh! que agudeza de inteligên- cia e que ingente peso de erudição! Esses homens são realmente dignos de in- quirir os hereges e de defender a fé católica - mas contra pedras e pedaços de pau! Quão mais corretamente afirma o apóstolo Pauload que o antigo sacer- dócio consistia no julgamento de leprosos, na administração da justiça e pu- rificação da carne, em comida e bebida e vestimenta e dias festivos, etc.! Através disso são denotadas, como numa figura, a justificação no espírito e a

i purificação do coração, operadas por Cristo na Igreja pelo ministério do no- vo sacerdócio. Assim, eu não propus a sexta tese de coração, como disse lá, e sim porque outros pensam desse modo. No entanto, [a propus] porque nem mesmo os adversários, com todos os seus mestres, até hoje podem mostrar como o sacerdote perdoa as culpas, a menos que apresentem aquela opinião herética, mas corrente, segundo a qual os sacramentos da nova lei dão a gra- ça justificante a quem não coloca óbice. Pois é impossível conferir os sacra- mentos de forma salutar exceto a quem já crê e é justo e digno (pois é necessá- rio que quem vemRJ creia; além disso, não é o sacramento que justifica, mas a fé no sacramento). Por esta razão, seja lá o que os petulantes sofistas tarame- larem, é mais verossímil que o sacerdote da nova lei apenas declara e confir- ma a absolvição de Deus (isto é, a indica) e, através dessa indicação e de sua sentença, aquieta a consciência do pecador, o qual deve crer na sentença do sacerdote e ter paz. Desta maneira o velho sacerdote aquietava aqueles a quem julgava puros em corpo ou vestimenta, embora ele próprio não pudesse

83 A obra de Pedro Lombardo está dividida em quatro livros, par sua vez subdivididos em

I quoesriones. O primeiro livro trata de Deus, como o sumo bem, o segundo das criaturas, o terceiro da encarnação e da redenção, o quarto dos sete sacramentos e da escatologia. Lute- ro zombava do fato de que em seu tempo ninguém se considerava um doutor sem que tives- se escrito um comentário sobre o Livro dm senrensas. De falo, houve cerca de 250 comen- tários sobre o Livro dossenrensos. No mais, Lutero aprecia a erudisilo do Lombardo, recri- minando-o, porém, por "20 se ater à Escritura.

84 Hh 10.1 1s. A Igrejaantiga julgava. seguindo a opinião de Agostinho, que Hebreus fossede autoria de Paulo. Lutero tratou de Hebreus ao lado das demais epistalas paulinas. Quando da tradusão do Novo Testamento, porém, Lutero chegou à convicção de que o autor é um

i discipulo dos apóstolos (Hh 2.3) e não o próprio Paulo. I 85 Sc. ao sacramento. I

8 1

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purificar ninguém, também não a si mesmo. Pois o que aquele operava nos corpos este opera nas consciências, e assim o espírito corresponde a letra e a verdade a figura. Espero que esses defensores da fé católica [mostrem] como podem expor, sem depravaçòes heréticas, o poder das chaves de outro modo.

Tese 8

Os cânones penitenciaisas são impostos apenas aos vivos; segundo os mesmos cânones, nada deve ser imposto aos moribundos.

Esta tese eu debato, embora haja muitas pessoas que se admiram que ela seja duvidosa.

1. Em primeiro lugar, ela é provada por Rm 7.1: "A lei tem domínio so- bre o ser humano enquanto este vive", etc. Como o apóstolo explica isto a respeito da lei divina, é muito mais verdade com relação a lei humana. Dai que ele diz no mesmo capitulo: "Quando morrer o marido, a mulher está de- sobrigada da lei do marido." [Rm 7.2.1 Muito mais ele, quando morto, está desobrigado da lei da esposa que [ainda] vive. Pois o apóstolo argumenta do menor ao maior: se o vivo é desobrigado pela morte do outro, muito mais o é o próprio morto, pelo qual o [que ainda está] vivo é desobrigado.

2. Como todas as outras leis positivas, as leis canônicas estão presas as circunstâncias de tempo, lugar e pessoas (dist. XXIX8'), como é do conheci- mento de todos. Pois somente a respeito da palavra de Cristo é dito: "Para sempre, ó Senhor, permanece a tua palavra, a tua verdade de geração em ge- ração" [SI 119.89s.l; "e a sua justiça permanece para sempre." [SI 111.3.] A palavra e a justiça dos seres humanos, porém, só permanecem por um tempo. Por isso, mudadas as circunstâncias, cessam também as leis, a menos que se queira dizer que, destruida a cidade, o lugar deserto ainda seja obrigado a fa- zer tudo o que a cidade fazia anteriormente, o que é absurdo.

3 . Se o direito obriga a dispensar mesmo os viventes e a mudar a lei quando cessa a condição da lei ou quando ela se inclina para pior - visto que (como diz o papa Leão88) aquilo que foi estabelecido em favor do amor não deve militar contra ele, assim certamente [isto vale também para] o que come- çar a militar contra a unidade, a paz, etc. -, quanto mais devem ser abolidas as leis para os moribundos, visto que neste caso não cessa apenas a condição das leis, mas também a própria pessoa para a qual e para cujas condições elas foram estabelecidas.

86 Cf. p. 23, nota 5. 87 No capitulo 1 da disrinctio XXIX do Decrelurn Grotiani, na parte 1: "Deve-se saber que na

maioria dos capitulas causa, pessoa, lugar e época devem ser tidos em conta." 88 Traia-se de Leão I(440-4611, cujas cartas, impressas em Paris, no ano de 151 I, eram muita

bem conhecidas por Lutero. Lutera veio a usá-las em seu escrito Von den Konziiiis und Kir- chen ("Dos concilios e da Igreja"), WA 50,509-653.

4. Em quarto lugar, [ela é provada] a partir das próprias palavras da lei, nas quais estão claramente expressos os dias e anos, jejum, vigílias, traba- lhos, peregrinações, etc. É manifesto que essas coisas pertencem a esta vida e cessam com a morte, em que o ser humano migra para uma vida muitíssimo diferente, onde não jejua, nem chora, nem come, nem dorme, pois não tem corpo. Dai que João Gérson89ousa condenar as indulgências dadas com uma validade de muitos milhares de anos. Assim, pergunto-me com espanto o que aconteceu com os inquisidores da depravação herética para que não queimas- sem, mesmo depois de morto, a ele que se pronuncia contra o costume de to- das as estações [de peregrinação] de Roma" e principalmente contra o uso de Sixto IV91 (que esbanjou iiidulgências em profusão), e que o faz com tanta confiança, que também lembra os prelados de seu dever de corrigir essas [práticas] e de tomar cuidado com elas, chamando as titulaçòes de tais indul- gências de fátuas e supersticiosas, etc.

5. [Provo esta tese] referindo-me a intenção do autor dos cânones, que por certo nem sequer cogitou que tais cânones fossem impostos aos moribun- dos. Faz de conta que perguntássemos ao pontífice que propõe tais cânones: C ' A que pessoas, ó Pai, vos referis em vossa lei: as vivas ou As mortas?" O que responderia ele senão: "As vivas, é claro. Pois que posso eu fazer com as mortas, que saíram de minha jurisdição?"

6 . Um sacerdote de Cristo agiria de maneira extremamente cruel se não liberasse um irmão assim como quer que aconteça com ele mesmo; e não exis- te razão pela qual não deva [fazê-lo], já que está em seu poder.

7. Se os cânones penitenciais permanecem para os mortos, pela mesma razão permanecem também todos os outros cânones. Por conseguinte, eles devem celebrar, observar festas, jejuns e vigílias, dizer as horas canônicas9~, não comer ovos, leite e carne em certos dias, mas apenas óleo, peixe, frutas e legumes, vestir roupas pretas ou brancas conforme a diferença dos dias e [carregar] outros pesadíssimos fardos com os quais agora a misera, outrora libérrima Igreja de Cristo é premida. Pois não existe qualquer razão pela qual

89 Jean Charliei, de Gérson/Reims (1363-14291, foi doutor em Teologia e. em 1395, chanceler da Universidade de Paris. Um dos mais importantes escolásticos do periada conciliar, tra- balhou para pôr fim ao cisma eclesiástico com seus escritas sobre a unidade da Igreja e a de- mitibilidade da papa. Nos concilios de Pisa e Constan~a posicionou-se contra os desman- dos dos papa7 italianos e buscou a reforma da Igreja atravks da melhoria da moral do clero. Exigiu a estuda da Bíblia e a renovaç&o da eacalástica através de sua fusão com a mística. Concordou com a condenaç&o do movimento reformador boêmio. Lutero menciona-o inú- meias veres.

90 I.utcro refere-se às sete igrejas principais de Rama. Os peregrinas eram obrigados a visitá- Ias para conquistar indulgências.

91 Papa de 1471-1484. Com ele iniciao "periodo da perversão" na vida da Igreja. Paparenas- centista, obteve através de seus nepotes conde Girolamo e cardeai Pedro Riario a~seculari- ra fão da Cúria. Ao caracterid-lo como aquele "que esbanjou indulgências em profusão", Lutero se refere ao excesso de voderes esoirituais oue o Dava conferiu tis ordens mendican- . . . tes, especialmente aos franciscanos.

92 Trata-se das horas de orafão e céntico impostas aos sacerdotes, especialmente aos secula- res.

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[apenas] alguns cânones cessem por causa do tempo, e não todos. Se cessam os que são bons e meritórios para a vida, por que não, antes, os aflitivos, esté- reis e impeditivos? Ou vamos inventar também aqui uma troca, de modo que, assim como sofrem outras penas, proporcionadas a eles, da mesma forma fa- zem outras obras, proporcionadas a eles, e de modo que, não obstante, se de- ve dizer que eles lêem as horas canônicas?

8. Os cânones, tanto penitenciais quanto morais, são suspensos de fato para quem está doente de corpo, mesmo que não esteja a beira da morte. Um sacerdote doente não é obrigado a orar, celebrar; depois, também as outras pessoas não são obrigadas a jejuar, nem a vigiar, nem a se abster de carne, ovos e leite. E não só Ihes são livres todas essas coisas, mas até Ihes são proi- bidas as coisas que antes, quando estavam sãs, Ihes eram ordenadas. De ou- tro modo se diria a elasg], visto que a mão do Senhor já as toca: "Por que me perseguis como Deus e vos fartais da minha carne (isto é, de minhas enfermi- dades)?'' [Jó 19.22.1 Afirmo, pois: os cânones são impostos não aos doentes, mas aos sãos e robustos; logo, muito menos ainda aos mortos, e sim aos vi- vos. Ou, se os moribundos e mortos não são livres, por que também os enfer- mos não são com eles premidos e vexados? Depois, tendo recobrado a saúde, não são obrigados a recuperar o que omitiram enquanto doentes; por conse- guinte, como se pode crer que os cãnones precisam ser recuperados ou cum- pridos após a morte?

Mas aqui alguns dizem: "E se uma pessoa sã omitir as penitências [que lhe foram] impostas e, mais tarde, confessar isso quando estiver prestes a morrer? Parece absolutamente necessário que tais penas sejam pagas no pur- gatório, mesmo que outras não lhe devam ser impostas ou não lhe sejam im- postas." Respondo: de forma alguma. Pois por tal omissão não se fez outra coisa do que pecar contra o preceito da Igreja; a respeito disso se deve sentir pesar, porém não se deve recuperar e cumprir mais uma vez pelo passado, e sim apenas pelo futuro. "Basta ao dia o seu próprio mal; o dia de amanhã se preocupará com o que é seu.'' [Mt 6.34.1 Se a transgressão de algum manda- mento devesse ser recuperada, de modo que não permanecesse nenhuma, isso deveria acontecer principalmente em relação aos mandamentos de Deus. En- tretanto, é impossível que o adultério não seja um ato em que se perde a casti- dade.

9. A quem suporta uma pena maior do que a que lhe é imposta se per- doam, com razâo e pelo direito natural, as penas menores. Ora, o moribundo suporta a última, mais elevada e máxima das penas: a da morte. Por isto, na presença da morte, toda outra pena deve ser absolvida, visto que dificilmente alguém é capaz de aguentar apenas esta uma pena. Imagina, mais uma vez, que um moribundo se oferecesse para morrer perante um legislador - acaso este não retiraria imediatamente suas penas?

10. Alguns mestres ilustres na Igreja dizem que qualquer cristão é riquís- simo porque, morrendo de livre vontade, pode pagar tudo e sair voandoq4 lo-

93 Sc. às pessoas que impõem os cânones aos doentes. 94 Sc. para o céu.

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go. Pois nada é maior do que uma morte voluntária sofrida por causa de Deus. Portanto, os cânones são inutilmente reservados para Iá9J. Dessa opi- nião são Guilherme de Paris% e Gérson, seguidos por uma multidão não des- provida de razão.

11. Se a morte não é pena suficiente a não ser que o morto sofra também os cânones97, então a pena dos cãnones será maior do que a pena da morte, porquanto dura para além da morte. [Assim] se faz injustiça àmorte dos cris- tãos, a respeito da qual é dito: "Preciosa é aos olhos do Senhor a morte de seus santos." [SI 116.15.1

12. Imagina que um pecador fosse raptado e, ao confessar a Cristo, so- fresse incontinenti o martírio, antes de satisfazer os cânones (como se lê a res- peito do mártir B. Bonifácio98). Haverá o purgatório de reter tal pessoa, para que ela não esteja com Cristo? E acontecerá que se tenha de orar por um már- tir na Igreja? Ora, toda pessoa que morre de livre vontade (é dessa pessoa que falamos, isto é, do cristão) também morre segundo a vontade de Deus.

13. Por que também as leis civis não permanecem em vigor após a morte, já que também elas ligam perante Deus e nos céus, não por sua própria força, mas por força de Cristo e dos apóstolos Pedro e Paulo, que ensinamsque de- vemos submeter-nos a elas de coração e por causa da consciência, porque as- sim é a vontade de Deus?

14. Os cânones cessam quando um leigo penitente muda seu estado, para o sacerdócio, por exemplo, ou quando um sacerdote se torna bispo ou mon- ge. Essa cessação acontece nesta vida, e não haveria de acontecer por ocasião da mudança da morte? O que há de mais absurdo?

15. Essa opinião de que os cânones devem ser cumpridos após a morte não tem absolutamente nenhuma passagem da Escritura, nenhum cânone ou razão plausivel, mas, assim como muitas outras superstições, parece ter sido introduzida unicamente pela preguiça e negligência dos sacerdotes.

16. Além disso, temos exemplos dos antigos pais. Cipriano, talvez o mais rígido observante de censuras e disciplinas eclesiásticas, ordena, ainda assim, na carta 17 do Livro IIIim, que se dê a paz aqueles que estão submeti- dos a perigo de morte, para que venham com paz ao Senhor, tendo feito sua confissão ao presbitero ou ao diácono, como ele diz no mesmo lugar. Esse

95 Isto é, para depois da morte. 96 E impossivel precisar a que escritor escolásrico Lutero está se referindo, pois existem inú-

meros com o nome de Guilherme de Paris nos séculos XIII a XVI. Lutero se engana ao atri- buir a Gérson a nega& do valor da indulgência para o purgatório. Gérson também admi- tiu o efeito das penas canônicas para o além.

97 Isto é, as penas prescritas pelos cânones. 98 Wynfrith (672/75-754), beneditino, natural de Wessex. Após tentativa infrutifera de mis-

são entre os frisios, foi para Roma, onde Gregório 11, dando-lhe o nome de Bonifácio, o enviou como missionário p a a a Germânia. Ali atuou na Turlngia, Frisia, Hesse. Sagrado bispo, em 722, tornou-se reformador da Igreja no Reino Franco. Foi assassinado a 5 de ju- nho de 754 na Frisia, sendo sepuitada no convento de Fulda, o qual tinha fundado em 744.

99 Cf. Mt 22.21; Rm 13.1~s.; 1 Pe 2 . 1 3 ~ ~ . 100 Epjsl. 18.1.

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dar a paz nada mais é do que aquilo que, hoje em dia, é chamado de remissão plenária, como fica claro para quem olha atentamente.

Portanto, podemos concluir que os cânones só devem ser impostos aos vivos e, entre estes, só aos sãos e robustos, sim, só aos preguiçosos e aos que não querem agir melhor espontaneamente. Por certo eu não teria exposto is- so tão amplamente se não soubesse que alguns afirmam, com extrema tenaci- dade, o contrário, que não podem provar de nenhuma maneira. Pois se qui- sesse tratar com pessoas inteligentes e eruditas, eu teria feito melhor se calas- se ao invés de falar.

Mas aqui alguém poderia dizer: "Falar assim é vilificar excessivamente as indulgências, se só as penas canônicas são remitidas, e nem mesmo todas, e unicamente para esta vida." Respondo: é preferível desvalorizar as indulgen- cias do que esvaziar a cruz de Cristo, e é melhor depreciar as indulgências do que ensinar na Igreja alguma coisa que, para a vergonha da Igreja, possa ser acusada de invenção. Eu confesso abertamente e protesto que não me impor- to muito com as indulgências como remissão de penas (é só nesta que eles se gloriam); porém venero, estimo e muitíssimo me regozijo com elas como re- missão da culpa, conforme minha maneira de pensar acima exposta - o que eles consideram sem valor.

A esta oitava tese se coloca um único punhal de chumbolo' como obje- ção, a saber, que nas leis se encontra que também os mortos são excomunga- dos, como atesta sobretudo o capítulo A nobis da extravagante de sen. ex- com. 102 Quanto eu temia que eles dissessem que também descobriram que aos mortos se infligem penas e satisfações sensíveis! Ora, é bom que disseram apenas que os mortos são excomungados; assim não há quem duvide que os mortos também são absolvidos. Mas o que essa absolvição tem a ver com a remissão das penas? Acaso isto é aquela sutilissima dialética sem a qual - ensinam eles - ninguém pode se tornar um teólogo? Talvez ela contenha, numa quinta figuraiol, a seguinte conseqüência: "Sendo alguém absolvido da excomunhão, são-lhe remitidas as penas de satisfação." Por que então espa- lham profusamente indulgências por toda parte, se a pessoa absolvida do pe- cado sem demora tem também a remissão das penas? Se, contudo, ainda res- ta uma satisfação para os absolvidos, como é que a absolvição aproveita aos mortos ou remove a pena? Portanto, é fútil esse silogismo de que assim como a excomunhão se estende aos mortos, da mesma forma o faz também a remis- são das penas. Sim, como dizem os próprios juristas: "A excomunhão de um morto nada causa ao morto, assim como a abolvição nada [lhe] confere, mas

101 Essa expressão, que também encontramos nos Adogio de Erasmo, plttmheo iuguiore glo- dio, significa: refutar alguém com provas fúteis.

102 Decretoles d. Gregoriipopae IX, livro V, titulo XXXIV, capitulo 28, in: Corpus iurir cano- nici, v. 2 , cols. 899-900.

103 Lutero coloca sua troca contra a "dialética sutil" de Wimpina-Tetzel no gracejo de que in- vestem contra ele com uma "quinta figura" do silogismo. A lógica medieval, baseada em Aristóteles, conhece apenas quatro. Isto é, Lutera está a afirmar que a afirmação de Wimpina-Tetzel é tolice!

todas essas coisas são feitas para que nos aterrorizemos; apenas não se ora publicamente por tal pessoa." Por conseguinte, essa pessoa não sofre da par- te de tal excomunhão mais do que sofreriam uma casa ou uma roupa, se fos- sem excomungadas; assim, por outro lado, ela em nada mais é ajudada atra- vés da absolvição. Entretanto, não continuarei a refutar essas gárrulas con- tradições, uma vez que nada contêm senão opiniões escolásticas, que não es- tão fundamentadas nem nas Escrituras, nem nos pais da Igreja, nem nos câ- nones. Pois ele sempre pressupõe aquilo que quer provar ou, se não faz isto, blatera, feito uma mulhejzinha furiosa, as palavras "ele erra, está fora de si, está louco, erro, errar". E que nessas palavras ele quer que se veja colocada a totalidade de sua sabedoria e de seu conhecimento.

Tese 9

Por isso o Espírito Santo nos beneficia através do papa quando este, em seu decreto, sempre exclui a circunstância da morte e da necessidade'".

Esta tese é, antes, uma prova da tese precedente. Pois é certo que, se o sumo pontífice quer excetuar os casos de necessidade temporal, [ele o quer] muito mais [nos casos de] necessidade eterna. E para esta que o ser humano vai através da morte, ao passo que uma pessoa doente ou legalmente impedi- da só é retida por uma incapacidade temporal. Sim, mesmo que o sumo pon- tífice não excetue a necessidade, ainda assim se entende que ela está excetua- da, porque a necessidade não tem lei. Ora, a morte é a mais extrema necessi- dade e o último e maior de todos os impedimentos.

Tese 10

Agem mal e sem conhecimento de causa aqueles sacerdotes que reservam aos moribundos penitências canônicas para o purgatórioloJ.

Também esta tese é um corolário evidente da oitava. Certamente existem pessoas que perguntam com espanto se os sacerdotes fazem tais coisas. Sem dúvida que fazem. Todavia, como isso significa dar mais peso à obediência aos cânones do que à obediência ao chamado de Deus, e preferir as mais ba- ratas obras dos cânones ao valor da preciosíssima morte dos cristãos, não sei se aqueles que estão imbuídos dessa opinião possuem a regra da fé verdadei- ra.

2. É conhecido e frequentemente [afirmado] por insignes autores na Igreja: Se Deus levasse uma pessoa ao êxtase ou a uma iluminação singular

i04 Sc. exlrema. i05 Cf. p. 23, nota 7.

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jiisiamente em meio às obras de obediência eclesiástica, então a pessoa seria olirigada a interromper a obra, deixar de lado a obediência a Igreja e obede- cer iriais a Deus do que aos seres humanoslM. Sim, eles dizem que, mesmo nas Iioras canônicas, devemos, contra o mandamento da Igreja, abandonar a ;ircii(.ão ás palavras se por acaso formos agraciados com uma iluminação e iiin arrebatamento celestes. Portanto, se as leis da Igreja deixam de vigorar iicsses chamamentos, como não haveriam de cessar num tão grande chama- iiieiiio e êxtase que é o da morte? A menos que talvez se deva seguir a multi- c130 de tolos que de tal modo se apegam a suas obras cerimoniais, que, por caiisa delas, muitas vezes pospõem a obediência manifesta a Deus e aos seres litiirianos e crêem ter agido corretamente se fizeram apenas aquelas, mas nun- c:i as outras.

3. A Igreja certamente seria muito impia para com Deus se retivesse em scii foro inferior a quem ele já chama para seu tribunal supremo. Ou quando S qtie o sumo pontífice tolera que um réu seja retido pela lei e pelos direitos do foro inferior de um bispo ou prelado, depois de ter sido chamado a com- parecer perante seu foro? Acaso exige ele de seus subordinados o que ele mes- iiio, como ser humano, não permite a seu Deus, que é superior a ele? Então tiri i ser humano fecha a mão de Deus, e um ser humano não pode fechar a de oliiro ser humano? Longe seja! Ora, se ele impõe cânones ao moribundo, cert ainente está claro que o julga e pune segundo seu foro.

Assim, são essas as quase 20 razões que me levaram a duvidar - não sciii ponderação, como espero - quanto a esse assunto das penas canônicas, ;to passo que no lado contrário não há passagem [da Escritura], nem cânone, iiciii argumento racional, nem uso universal da Igreja, mas táo-somente o :ihilso de algumas pessoas.

Tese 11

I<~ssa erva daninha de transformar apena canônica empena dopurgató- rio parece ter sido semeado enquanto os bispos certamente dormiam.

Aqui rogo que ninguém pense que eu esteja levantando uma calúnia con- ira os reverendíssimos bispos ao afirmar que eles dormiram. Essas palavras ii;l11 são minhas, mas do evangelho'o', só que lá não está colocado o nome dos Iiislios, nias dos seres humanos. Não obstante, é certo que por "seres huma- iios" ele entende as autoridades e os dirigentes da Igreja, a não ser que o in- i~~rlirciemos tropologicamente como o espírito e a mente de toda pessoa sobre seti corpo"'". Por conseguinte, os pontífices na verdade não ensinam isso à

Igreja, porque, como eu disse, não temos nenhum cânone, nenhuma determi- nação dos cânones a partir dos quais isso possa ser ensinado. Assim sendo, é em vão que se esforçam alguns canonistas quando procuram mostrar de que espécie são os anos, dias e quadragésimas no purgatório, pois na verdade não os há, ou, pelo menos, não se pode provar que os haja. O erro provém do fa- to de que não percebem que os cânones são estabelecidos para o tempo desta vida e que só são obrigatórios na terra. É como alguém que, mudando de mu- nicipio, também muda, ao mesmo tempo, de direitos municipais. Se deve al- guma coisa, é obrigado a saldar [a divida] antes de mudar. Portanto, absolu- tamente nada deve ser imposto aos moribundos, e eles também não devem ser remetidos ao purgatório com o resto da penitência (como diz Gérson em cer- to lugar); antes (como ele ensina melhor em outra parte), devem assumir a morte com firmeza e de bom grado, de acordo com a vontade de Deus.

Aqui temos que examinar aquela invencionice e fútil cavilação com que querem nos assustar como as criancinhas com as máscaras, dizendo que, co- mo o sacerdote não conhece a medida de contrição da pessoa a ser absolvida e, por isso, talvez não imponha uma satisfação tão grande quanto a justiça de Deus o exige, é necessário satisfazer também por isto, seja através de uma obra própria, seja através de indulgências.

1. Vê como fazem soar suas palavras nuas, sem qualquer prova, como oráculos [divinos], embora o profeta diga: "Deus não dirá uma palavra sem revelar seu segredo aos seus servos, os profetas." [Am 3.7.1 Também não é crível - pois ele é o nosso Deus, que nos ensina as coisas úteis, como diz pelo profeta]" - que não nos revelasse, em qualquer parte, também esta exigên- cia de sua justiça.

2. Não sei se os que assim falam querem transformar Deus num usurário ou num mercador, como alguém que não remite gratuitamente a menos que se lhe preste uma satisfação como pagamento. Porventura querem que nego- ciemos a respeito de nossos pecados com a justiça de Deus, perante a qual pessoa alguma é justificada?

3. Se isto é assim, por que então o papa concede absolvição plenária, já que, da mesma maneira, não conhece a medida da contrição, nem pode, ele mesmo, completar a imperfeição da contrição? A contrição perfeita, porém, não necessita da absolvição dele. Ele também não tem um poder de gênero di- ferente do que um outro sacerdote, mas sim de outra quantidade, porque re- mite os pecados de todos, ao passo que os outros [sacerdotes] remitem de al- glms; tanta satisfação quanta eles podem remitir para algumas pessoas, ele o pode para todas, e nada mais. Do contrário a Igreja seria um monstro, cons- tituída de diversos gêneros de poder.

IlHi ( ' I . Ai 5.2'J. l l l i ('I. MI 11.25. I I I N A ~ i i l r r ~ i r c l i t ~ n o hlhlicu de I.iitcr<i iiiiidn eslb muito <Icliciiderite do riiCi<idi, uleyúiico d:i Ida.

ilc Mhliii. i, qiir rc rtiuiiifcrlii esprciiilrkicrilc iiu iiiterprclacPo ~.riiloldxicri <I<i\ ~ ; i I i i i i i \ . I'iiilr

X X

do sentido literal, mas Ioga confere a este um significado profético. No fundo, segunda o método exegética tradicional, Lutero distingue um sentido mistico triplo: a explica~ão tro- pológica apresenta o significado da passagem biblica quando a aplica a alma ciente, a ole- górico, quando a aplica a Igreja, a anagógica, quando a aplica ao além, ao juizo divino.

109 Cf. Mq 6.8.

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4. Também a Igreja primitiva ignorava a medida da contrição e o peso 110s espíritos. Não obstante, concedia remissão plenária depois de feita a pe- iiiitiicia, a respeito da qual não podia saber se era suficiente - segundo a opiiiião deles.

5. Um outro sonho provém do fato de que eles não edificam a remissão dos pecados sobre a fé e a palayra do Cristo que se comisera, mas sobre a obra do ser humano que corre. E que imaginam que só se pode dar remissão plctiária as pessoas perfeitamente contritas, das quais não existe nenhuma iicsla vida. No entanto, admitem que ela seja dada pelo papa, também a pes- soas não perfeitamente contritas.

6. Se a justiça de Deus exige alguma coisa, esta já está fora da autoridade <!;r Igreja, que não tem nada a mudar naquilo que Deus quer ou impõe. Pois pcrrnanece firme este dito: "O meu conselho permanecerá de pé, e minha vontade será feita." [Is 46.10.1

Pela mesma razão é refutada a afirmação, feita por outros, de que penas ~.aiiônicas são declarações das penas exigidas pela justiça divina. Em primeiro lugar, isso não é provado; por conseguinte, pode ser menosprezado com a iiicsma facilidade. Se a Igreja declara, segue-se que é impossível que ela as re- Iiixc, porque não as impôs; o que ela faz é declarar que são impostas por I>cos. Ou então eles são obrigados a dizer que a palavra de Cristo deve ser or- clciiada da seguinte maneira: tudo o que eu ligar, tu deves desligar.

Tese 12

Antigamentese impunham as penas canônicas não depois, mas antes da ul~solvição, como verificação da verdadeira contrição"0.

Esta décima segunda tese prova novamente a oitava, pois as penas canô- iiicas são de tal forma temporais, que têm como seu fim a própria absolvição. ('oino, porém, todo moribundo deve ser absolvido (as demais condições sen- clt) iguais), evidencia-se que não devem ser impostas [penas], mas, antes, que i;iiiihém as bá] impostas e aquelas a serem impostas devem ser relaxadas. Se ;iqiicle antigo costume da Igreja tivesse sido conservado até hoje, esse erro i180 !cria surgido. Agora, contudo, visto que a absolvição precede as penas, :icoiitcceu que, para prejuízo da absolvição, remetem a pessoa não absolvida li:ii.;i ;i morte e cometem algo assim como uma monstruosidade ao não absol- vcrcrii [niesmo] concedendo absolvição e ao ligarem a pessoa absolvida com a iiicsiiin lialavra [com que a absolvem].

I . A tese é provada a partir do próprio uso da Penitência solene, descrita iios ~5iioiies, do qual ainda temos um exemplo ou ainda resta um vestígio na I'ciiiiCiicia cni caso de homicídio. Pois por que, neste caso, absolvem da pena ; I ~~cs soo qiic vive e não a remetem a outras [penitências] a serem feitas em vi-

da, enquanto que são tão rigidos no caso dos moribundos? 2. Assim, escreve o B. J e r ô n i m ~ ~ ~ ~ , foi perdoada sua FabiolalI2. Assim o

B. Ambrósio") absolveu seu Teodósio"4. Por fim, em ninguém se lê isto com maior freqüência do que no glorioso mártir Cipriano, no livro 111 de suas car- tas. A mesma coisa [se lê1 na História eclesiástica e na História tripartida"5. Da mesma forma, em Dionisioil6, na Hierarquia eclesiástica, é descrito o es- tado dos penitentes e dos energúmenos. Em todos estes casos vemos que na- quela época os pecadores não eram aceitos para graça e absolvição antes de terem feito penitência.

3 . Também Cristo só absolveu Maria Madalena e a mulher adúltera após lágrimas, unsão e uma aflição sobremodo veemente e humilde.

4. Lemos em Gn 44 que José afligiu seus irmãos com muitas tentações para verificar se sua afeição por ele e Benjamim era verdadeira. Quando des- cobriu isso, deu-se a conhecer a eles e os recebeu em graça.

1 Tese 13

I Através da morte, os moribundospagam tudo e já estão mortospara as leis canônicas, tendo, por direito, isençao das mesmas.

Esta tese conclui o que foi dito acima e é suficientemente evidente. Pois seria uma coisa muito estranha se o moribundo fosse desligado de todas as obras, coisas, leis, pessoas e além disso das próprias leis de Deus - a saber, em que se ordenam esmola, oração, jejum, cruz, trabalho e tudo o que pode ser feito pelo corpo -, por fim, até mesmo das obras do santo amor ao pró- ximo (que é o único que nunca morre), e que a única coisa da qual não possa ser desligado sejam os canônes. Então o cristão seria mais miserável do que

1 111 Ca. 345-420. resoonsável oela Vuleata. foi ardoroso defensor do monacato e da ascese. ~. ;.riii:ir:s.iii?iiic euire ~LI I I I I~> I~~ .I.( i111i) i ~ c ~ i l l i l l e T O I I I ~ ~ . ~

112 \ ' i ~ i \ ~ :.iiti~ii.i GUC I : I I I J ~ U UIN I ~ ~ p i i l l j U 1 1 1 3 .t3 p ~ r i ~ Je Koiiir. \'.A ep i \ t~ l a 77 dc Ic.i>iii-

mo. 113 340-395. Governador do Norte da Itália. Em 375 foi eleito bispo de Milão. Destacou-se na

luta contra os arianos. 114 Lutero pensa na ocasião em que Ambrósio forçou o imperador Teodósio a fazer penitên-

cia. No ano de 390, o general Buterico mandara prender, em Tessalõnica. um famoso cor- redor de carros. O povo exaltado matara o general. Teodósio pos fim ao movimento, cer- cando o circo da cidade com seus soldados e mandando matar os que se encontravam no circo. Ambrósio impõs, entàa, penitência ao imperador, excluindo-o da comunhão até o Natal daqueie ano.

I I 5 Hisrorio ecclesias~ico friparfilo, escrita pelo senador romano Cassiodoro (477-570), o qual compilou os três continuadores da Histeria ecclesiostica de Eusébio de Cesaréia.

I I6 Lutero pensa nos escritos atribuidos a Dionisio Areopagita (AI 17.34), os quais, no entan- to, 76 podem ter sido redigidos no s6culo VI. Seu conteúdo mistico-teosófico é a tentativa de fundir as doutrinas cristãs com a filosofia neoolatõnica. O olena conhecimento de Deus

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todos os gentios, porque, mesmo morto, as leis dos vivos o atormentariam, ao passo que é, antes, uma pessoa que, mesmo entre os mortos, deve ser livre por meio de Cristo, em quem ele vive.

Reunamos, por fim, um epílogo, para ver a quantas pessoas são remiti- das as penas através de indulgências. Seis tipos de pessoas me parecem excluí- dos, por não precisarem de indulgências: em primeiro lugar, os mortos ou moribundos; em segundo lugar, os doentes; em terceiro, os legalmente impe- didos; em quarto, os que não cometeram crimes; em quinto, os que comete- ram crimes, porém não públicos; em sexto lugar, os que se emendam. Vamos demonstrar isso e torná-lo pelo menos verossímil:

1. Em primeiro lugar o que talvez cause a maior agitação: as indulgên- cias só são necessárias para crimes públicos, tais como adultério, homicídio, usura, fornicação, embriaguez, rebelião, etc. Pois se tais crimes fossem ocul- tos, aparentemente não diriam respeito aos cânones. Em primeiro lugar, por- que os cânones estabelecem penitências públicas, e a Igreja não tem direito de julgar publicamente a respeito de coisas ocultas. Em segundo lugar, porque assim como não deve ser punido publicamente, da mesma forma o pecado oculto não precisa ser perdoado publicamente. As indulgências, porém, são remissões públicas e acontecem A face da Igreja, como é evidente. Sim, exis- tem alguns que julgam haver uma diferença considerável entre as indulgên- cias concedidas através de bulas ~úblicas e as dadas oarticularmente. no foro - ~ ~ ~ . - - - - ~ - da consciência. Em terceiro lugar, a Igreja não é ofendida através dos peca- dos ocultos, mas unicamente dos públicos; por isso elas117 não são obrigadas a [fazer] penitência pública para reparar os escândalos e tornar a construir o que destruíram. Quarto: também hoje os jurisconsultos não condenam as pessoas que são criminosas publicamente, a menos que sejam reconhecidas [como tais] pela lei, enquanto que toleram as que são reconhecidas [como tais] pelo fato. Certamente não reprovo a opinião deles, e ela não me parece crrónea, pois a ninguém é permitido julgar, condenar e desprezar o outro, por mais pecador que seja, a menos que tenha poder para julgá-lo, para que iião se lhe diga: "Quem és tu que julgas o servo alheio?" [Rm 14.4.1 Entre- t~tnto, deve ser repreendida a negligência do amor tanto por parte de superio- res quanto de súditos, pois permitem que os que são reconhecidos [como cri- iitiiiosos] pelo fato ajam livremente, não cuidando para que se tornem [crimi- nosos] reconhecidos [como tais também] pela lei, de acordo com aquele pre-

~.

cr>rniingddos e descreve com ele como os penitentes, os catecumenos e o s energúmenas po- diam participar da missa até aleitura do Evangelho, devendo ausentar-se antes da distribui- vã<) da Eucaristia. Os catecúmenos eram judeus ou pagãos que proclamavam sua adesão ao c!isriilnisino. mas ainda não haviam recebido a Batismo. Os energúmenos eram os posses- r<>s. <ir dhbeis, o s excepcionais, os quais a Igreja acompanhava de maneira especial. l'iic<iriiravam-se sob a orientação do enorcista, tinham um lugar especial no templo e . r«- ixlciilc c i l i usos de furia, fora delc. No mais. eram tidos. assim como aqueles que haviaiii cornctid<i pccwdos grnvcs. por excluidos da comunhão.

117 Sc. us Iicrsoas qiic coriiclerii pecados ocultos.

ceito de Cristo: "Dize-o à Igreja; se não ouvir a Igreja", etc. [Mt 18.17.1 2. Creio que é evidente para todos que penas canônicas só são impostas

por crimes. Logo, as indulgências (se são remissões dos cânones) só são úteis para criminosos. Por isso, as pessoas que levam uma vida comum, que não pode ser vivida sem pecados veniais, não necessitam de indulgências, princi- palmente porque não devem ser instituídas penas para pecados veniais, sim, [as pessoas] também não são obrigadas a confessá-los; [portanto,] muito me- nos têm necessidade de comprar indulgências. Do contrário, seria preciso que as penas canônicas fossem suportadas por todos em todo e qualquer tempo, já que, como eu disse, ninguém vive sem pecados veniais. Mas digo mais: nem mesmo por cada pecado mortal devem-se comprar indulgências. De- monstro isto da seguinte maneira: ninguém está certo de que não vive em pe- cado mortal por causa do ocultíssimo vício da soberba. Se, pois, as penas ca- nônicas se aplicassem a todo pecado mortal, toda a vida dos crentes, além da cruz evangélica, não seria outra coisa senão também uma tortura das penas canõnicas. Por esta razão, também dever-se-iam comprar sempre indulgên- cias, sem fazer outra coisa. Se isso é absurdo, está claro que as indulgências só se aplicam aos pecados punidos pelos cânones. Ora, só podem ser punidos pelos cânones, como pecados, os crimes certos e públicos, ou, se insistirem muito comigo, pelo menos [só] aqueles em relação aos quais estamos certos de que são crimes, como eu disse a respeito do adultério, do furto, do homicí- dio, etc., isto é, obras exteriormente manifestas. Por isso, o consentimento com qualquer pecado mortal não diz respeito às penas canônicas, seja para fins de imposição, seja para fins de remissão, assim como também não uma palavra da boca, a menos que seja a ocasião para a obra futura, como é evi- dente também a partir das palavras dos cânones.

3 . Os cânones também não sáo impostos pelos crimes de tal forma que não cessem se alguém faz coisa melhor: se entra num monastério, ou se dedi- ca ao serviço dos pobres e doentes, ou sofre por causa de Cristo, ou morre de acordo com a vontade de Deus, ou se faz algo semelhante ou maior do que es- sas coisas. No caso dessas pessoas está claro que as penas canônicas cessam e que as indulgências em nada Ihes aproveitam. Daí que elas só são impostas aos preguiçosos, aos que fazem penitência com frieza, isto é, aos pecadores delicados. Por esta razão, as indulgências também parecem ser concedidas com propriedade tão-somente aos duros e impacientes.

4. Quanto aos impedidos por uma causa justa, de modo que não podem suportar as penas, não há dúvida de que se deve entender como se elas não lhes fossem impostas, por exemplo, se alguém fosse prisioneiro dos turcos e infiéis, ou se fosse servo de algum senhor, a quem é obrigado a obedecer de acordo com o mandamento do Evangelho, ou como se alguém também [ti- vesse que] cumprir uma obrigação, [como] servir mulher e filhos mediante o trabalho das mãos e a obtenção do sustento. Pois quem está impedido por tais coisas não é obrigado a abandoná-las; pelo contrário: é obrigado a fazê- Ias, a deixar os cânones de lado e a obedecer a Deus. Por isso, também não tem necessidade de que elas lhe sejam remitidas, já que não estava em condi- Góes de que lhe fossem impostas.

93

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5. Aos doentes os cânones nada impõem. Logo, só entra em considera- ção quem está são e quem não pertence ao número daqueles que dizem: "A mão do Senhor me atingiu." [Jó 19.21.1 Pois o que se deve a estes não é im- ~iosição de penas, mas visitação e consolo, conforme aquela palavra de Cris- to: "Estive doente, e não me visitastes." [Mt 25.43.1 Do contrário se dirá aos pontífices: "Pois perseguem a quem tu feriste e aumentaram a dor de minhas feridas." [SI 69.26.1 E aquela palavra de Jó: "Por que me perseguis como Deus me persegue?" [Jó 19.22.1 Portanto, também para estes as indulgências não são necessárias.

6. Por fim, [O mesmo vale para] os mortos e moribundos, dos quais já falamos.

Vês, pois, como são muitos os cristãos para os quais as indulgências não são necessárias nem úteis. Mas volto, por fim, à tese, para finalmente termi- nar esse assunto e para golpeá-los com sua própria espada.

Todos na Igreja concordam que, na agonia e no momento da morte, qualquer sacerdote é papa e, por conseguinte, tudo remite ao moribundo. Se falta um sacerdote, o desejo certamente é suficiente. Por isso, ele está absol- vido de tudo aquilo de que pode ser absolvido pelo papa. Portanto, as indul- gências parecem absolutamente nada conferir aos falecidos, visto que tudo o que pode ser desligado é desligado na morte. A partir disso fica claro, ao iriesmo tempo, que a diferença de graus e leis só se aplica aos vivos e sãos. As- sim, as indulgências são úteis às pessoas manifestamente criminosas, vivas, s3s e robustas, não impedidas e que não querem agir melhor. Se erro nessa qtiestão, que me corrija quem puder e souber.

Mas se perguntas: "Então de que penas as almas são redimidas, ou que i>ciias sofrem elas no purgatório, se não sofrem nada correspondente às pe- nas canônicas?", digo: se eu soubesse isso, por que debateria e perguntaria? liii 1120 sou tão perito e sabedor do que Deus faz com as almas que partiram quanto aqueles copiosissimos redentores de almas118, que propõem tudo com iriiita segurança, como se fosse impossível que sejam seres humanos. Acrescenta-se a essa dificuldade o fato de haver mestres que são de opinião qiie as almas nada sofrem do fogo, mas apenas no fogo, de modo que o fogo iiâo é o algoz, mas o cárcere das almas. Por isso, também aqui entro num as- siirito muitíssimo dúbio e disputável e exponho o que compreendi a respeito clcssas coisas.

Tese 14

Saúdell9ou amor imperfeito no moribundo necessariamente traz consi- ao grande temor, e tanto mais, quanto menor for o amor.

120 Sc. aurnciitando a amor 121 Isto é. purificados. 122 ( '1 . MI 14.30. 123 ( ' I ' Mi 14.26. 124 ('I'. I c 24.37.

Isto se torna evidente através de 1 Jo 4.18: "No amor não existe medo. O amor perfeito lança fora o medo, pois o medo tem castigo." Portanto, se o amor perfeito lança fora o medo, é necessário que o amor imperfeito não o lance fora e que, por isso, haja medo com o amor imperfeito. Mas onde está

I

esse amor perfeito? E (para fazer uma pequena digressão) quem não tem me- do da morte, do juizo, do inferno? Pois, por mais santa que seja uma pessoa, nela há restos do velho ser e do pecado, e, neste tempo, os filhos de Israel não conseguem destruir completamente os jebuseus e cananeus e demais gentios. Permanece [sempre] o vestígio do velho Adão. Esse velho ser, porém, é erro, concupiscência, ira, temor, apreensão, desespero, má consciência, horror da morte, etc. Essas coisas são [características] do ser humano velho e carnal. Elas diminuem no novo ser humano, mas não são extinguidas até que ele mesmo seja extinguido pela morte. Como diz o apóstolo: "Mesmo que o nos- so ser humano exterior se corrompa, o interior é renovado de dia em dia." [2 Co 4.16.1 Portanto, esses males dos restos do velho ser não são suprimidos pelas indulgências nem pela contrição iniciada; eles começam a ser suprimi- dos e, aumentandoilo, são suprimidos mais e mais. Esta é a saúde espiritual, que não é outra coisa senão a fé ou o amor em Cristo.

Estando as coisas assim estabelecidas, a tese está suficientemente clara. Porque se alguém é surpreendido pela morte antes de alcançar o amor perfei- to que expulsa o medo, necessariamente morre com medo e horror, até que o amor se torne perfeito e lance fora aquele medo. Ora, esse medo é justamente

1 a consciêiicia má e inquieta por causa da falta de fé. Pois nenhuma consciên- cia é medrosa exceto a consciência que é ou vazia ou imperfeita em termos de

I fé. Pois assim diz também o apóstolo: "O sangue de Cristo liberta nossas consciências de obras mortas." [Hb 9.14.1 E mais uma vez, em Hb 10.22: "Com os corações aspergidos121 de uma má consciência na plenitude da fé."

Numa palavra: se posso provar que a causa do horror e do medo é a falta de confiança e que, por outro lado, a causa da segurança é a fé, creio que está provado, ao mesmo tempo, que quem morre em fé imperfeita necessariamen- te tem medo e horror. Lemos frequentemente no evangelho que a falta de confiança é a causa de terror, desespero, condenação. Em primeiro lugar, quando Pedro ordena ao Senhor que se afaste dele, dizendo: "Porque eu sou um ser humano pecador" [Lc 5.81; em segundo lugar, quando começou a afundar por causa de sua pequena féia; em terceiro lugar, quando os discipu- 10s quiseram clamar por causa da perturbação, pois achavam que Cristo, que andava sobre o mar, era um fanltasmal"; em quarto lugar, quando, perturba- dos, acreditavam estar vendo um espírito, na ocasião em que Cristo entrou até eles através das portas fechada@. Em todos esses casos se mostra que a

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lalta de confiança é a causa do temor e horror. Logo, toda perturbação pro- vCm da falta de confiança, toda segurança, da confiança em Deus; a confian- c.], porém, provém do amor, pois é necessário que te agrade aquele em quem coiifiai. 1

Tese 15

Este temor e horrorpor si sós já bastam Ipara nüo falar de outras coisas) pura produzir a pena do purgatório, uma vez que estão próxrmos do horror 1 110 desespero.

Não falo nada sobre o fogo e o lugar do purgatório, não porque o negue, iiias porque esse é um outro debate que não me propus agora; além disso, porque não sei onde é o lugar do purgatório, embora o B. Tomás creia que ele esteja debaixo da terra. Nesse meio-tempo, entretanto, fico com o B. Agostinho, a saber, que os receptáculos das almas são escondidos e estão fo- ra de nosso conhecimento. Digo isto para que o herege begardol2' não imagi- iie que obteve de mim [a afirmação de] que o purgatório não existe porque coril'esso que seu lugar é desconhecido, ou que a Igreja Romana erra por não rejeitar a opinião do B. Tomás. E-me certissimo que existe um purgatório. Não me impressiona muito o que blateram os hereges, visto que, já há mais de 1.100 anos, no livro IX de suas Confissões, o B. Agostinho ora por sua riiáe e seu pai e pede que se ore [por eles], e sua santa mãe, ao morrer (como clc 15 escreve), desejou que sua memória [fosse lembrada] junto ao altar do Senhor; mas ele conta que isso também aconteceu com o B. Ambrósio. E iiicsino que na época dos apóstolos o purgatório não existisse, como se enso- herbece o altivo Begardo - acaso deve-se, por esta razão, crer num herege qtie nasceu mal-e-mal há 50 anos e pretender que a fé de tantos séculos seja falsa? Principalmente porque ele não faz outra coisa exceto dizer: "Não creio", tendo, assim, provado todas as suas [asserções] e rejeitado todas as nossas, como se também a madeira e a pedra não cressem. Mas isto fica para iiiiia obra e um tempo apropriados.

Portanto, está admitido que há horror nas almas. Agora vou provar que csse horror é uma pena do purgatório, ou melhor, a máxima:

I. 'Iodos admitem que as penas do purgatório e do inferno são as mes-

I ! h hey;iidos s3a. oripinalinenle, assaciaqões religiosas da Idade Média. Iniciaimente. eram I<iilti;id;is piir mulheres (beguinas) que, sem se submeterem aos scveros votos rnona?ticos. \r rri,rii;irii 1i;tra a prática de obras piedosas e meditacao. Pohteriormentc cairani hi lh a in- Ili i l ' i iciii dc irii,viiiientos helerodaxos, o que Icvou a que seu iicimc fosse usado eiii se~iiidci ~~cy ; i i i v~ , . Nos <lia< dc I.iitero, as aysociiiqòcs feiiiiiiinas c«citiriiiiivain a existir. c\pçcialcneo- ir cii>,\ I>;iircr H;iiroe. As associai.iier nia<ciilirias Ii:iviai~i *e cniiriyiii i l<i eiri viriii'lc <lii\ vio- ICIII~\< lpcrhcyk~isfic~ a q t ~ c ! i n I ~ a n ~ ~ i c l , ) \~~hn~ctid:\h. O ~,<)rt!c V<ni ir:!rthVcci~lo, n o \?~,l Iu X V , liitr'i i > \ l i i i r~i l i is r piir;i os Irinisor Hocrnioh i>ii M<ir;ivi;ici<,s. i,* i1ii;iir $r <iry;iiiiliir;tiii !>;I I l i i i

I I I I : I i l : I I . I I ( 1 I 7 2 H ) .

mas, diferindo apenas no que diz respeito a eternidade. Ora, a Escritura des- creve as penas do inferno como sendo perturbação, pavor, horror e fuga, co- mo diz SI 1.4: "Os impios não são assim; são, porém, como a palha que o vento dispersa." Mas também em Jó e em Isaias e em muitos outros lugares os impios são comparados a palha e ao pó, arrastados e dispersos pelo turbi- lhão; nisto [a Escritura] certamente denota a horrivel fuga dos condenados. Do mesmo modo SI 2.5: "Então falará a eles em sua ira e em seu furor os conturbará." E 1s 28.16: "Quem confianele náo será envergonhado", isto é, não se precipitará, não se assustará nem fugirá perturbado e horrorizado, querendo dizer, em todo caso, que os que não confiam serão confundidos e tremerão. Pv 1.33: "Quem me der ouvidos repousará sem terror e gozará de abundância, sem temor dos males." E S1 11 1 [I 121.7: "Não se atemorizará de más noticias." Nestas e em outras passagens da Escritura a pena dos impios é expressa como terror, horror, pavor, temor, ao passo que a respeito dos pie- dosos se afirma o contrário. Por fim, também o B. Tiago diz que os demô- nios crêem e trememl26. E Dt 28.65 afirma claramente que a pena do ímpio é pavor, dizendo: "O Senhor Deus te dará um coração pávido", etc. Pois se es- se pavor não existisse, nem a morte, nem o inferno, nem pena alguma seriam molestos, como diz em Cantares: "O amor é forte como a morte, e duro co- mo o inferno é o ciúme" [Ct 8.61, o que se mostrou suficientemente nos már- tires, a tal ponto, que o Espírito diz quanto aos impios em SI 13[14].5: "Eles tremeram de medo lá onde não havia medo", e em Pv 28.1: "O ímpio foge sem que ninguém o persiga, mas o justo, audacioso como um leão, estará sem terror." De outro modo, por que uma pessoa teme a morte e se aflige, en- quanto que uma outra pessoa a despreza, senão porque a pessoa que interior- mente não tem confiança na justiça teme onde não deve temer?

2 . 2 Ts 1 .as.: "Os que não crêem no Evangelho sofrerão penas eternas de destruição longe da face do Senhor e da glória de seu poder", a saber, porque Deus os atormenta e crucia unicamente com o aspecto de seu poder, visto que Ihes é insuportável. Por isso fugirão e não escaparão, mas serão apanhados em meio a angústias. Assim diz aquela passagem em Sabedoria: "Rapida- mente ele vos aparecerá de modo horrendo." [Sb 6.6.1 E SI 20[21].9: "Tu os tornarás como uma fornalha ardente no tempo de tua aparição." Do contrá- rio, de onde viria aquela palavra: "Montes, cai sobre nós; outeiros, cobri- nos" [Os 10.81, e 1s 2.10: "Entra na rocha e te esconde num buraco na terra em face do furor do Senhor e da glória de sua majestade", e JÓ: "Oxalá me abrigues no inferno e me escondas até que passar o teu furor!" [JÓ 14.131? Está claro, pois, que sua maior pena se origina da face do Senhor, sendo en- vergonhados por sua horribilissima impureza, comparada com tão grande pureza.

3. Também a Igreja canta e geme na pessoa das almas, em SI 6.2s.: "Meus ossos estão abatidos, e minha alma está grandemente perturbada." E em St 114[116],..3: "As aflições darnorte me cercaram, e os perigos do inferno

126 <'i. l 'p 2.19.

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vivi ;i111 sobre niim." Dai que a oração mais em uso é que Ihes desejamos re- i i i > i i \ i i , dando a entender, em todo caso, que elas estão inquietas. Ora, não \:\<r ;is peiias que causam a inquietude, como se evidencia no caso dos márti- ics L, Iioiiiens firmes, mas sim o horror e a fuga das penas, oriiindos da fra- i ~ i i r ~ : ~ da confiança em Deus. Assim como cada pessoa crê, tal lhe sucederá, e :i\ Ilciias c todas as coisas lhe serão tal qual ela mesma é. Dai que não contur- 1x1 ii j ~ i s ~ o qualquer coisa que lhe acontecer, diz em Sbl27. Por outro lado, aos iriil>iiis aterroriza o ruido de uma folha que voa (Lv 26.36). E 1s 57.20s. diz: "Os iiiipios são como o mar agitado, que não pode se aquietar, e cujas ondas I:i i i~:i i i i de si lodo e lama. Para os ímpios não há paz, diz Deus, o Seiihor."

4. Algumas pessoas provaram dessas penas -isto é, das p e n a do irifer- i i i i aiiida em vida. Por conseguinte, tanto mais deve-se crer que sejarn ini- i > i i ? t ; i h aos mortos no purgatório. Pois o experimentado Davi diz: "Não tives- \i. l i Scrihor me ajudado, por pouco minha alma estaria iio iiiferrio." [SI 04.17.1 E em outra passagem: "Minha alma está repleta de males, e niinlia vi- i l t i sc nproximou do inferno." [SI 88.3.1 E mais uina vez: "Nossos ossos estão i\ptilIiados a beira do inferno." [SI 141.7.1 "Tornei-ine semelhante aos que ~lcsccrii a cova." [Sl 28.1.1 E de novo: "Quantas grandes e más tribulações I I I C iirostraste, e tornaste a me tirar dos abismos da terra." [SI 71.20.1 Eze- iliiins, poréni, diz: "Eu disse: na metade de meus dias irei ás portas do infer- iiíi." [Is 38.10.1 E mais abaixo: "Como um leão ele triturou todos os meus ii\s<is" [ls 38.131, o que por certo só pode ser entendido como tendo sido cau- s:i<lo por uin insuportável horror.

S. Quaiitos há que ainda hoje provam dessas penas! Pois qiie outra coisa rii\iii;i iambém João Taulerl28, em seus sermões alemães, senão os sofrimen- ios (lcssas penas, das quais também aduz alguns exemplos? Sei que esse mes- irc 2 desconhecido das escolas de teólogos e, por isso, talvez desprezível. No ciiiaiiio, nele (embora esteja todo escrito na língua dos alemães) eu encontrei i i i ; i i \ teologia sólida e pura do que foi encontrado em todos os mestres esco- I:isiicos de todas as uiiiversidades ou que pode ser encontrado em suas senteri- <;is.

Mas tanibem eu conheci uma pessoal29 que afirmou ter sofrido essas pe- ii:ih iiriiiias vezes, é verdade que por um brevissimo espaço de tempo, porém i A i i grniidcs c tão infernais, que nenhuma lingua pode expressá-las, nenhuma ~>c,ii:i ipíidc descrevê-las e quem não as experimentou não pode crer. Elas eram <Ir i:iI iiaiurcza que, se fossem completadas ou durassem meia hora - sim, i i i i i il2ciiiio dc I i o r a , ela pereceria de todo, e todos os seus ossos seriam re- ilii/iilu? ;i ciiiz;is. Aqui Deus se mostra horrivelmente irado e, com ele, tam-

bem toda a criação. Então rião há nenhuma fuga, nenhum consolo, neni inte- rior nem exterior, mas [unicamente] acusação por parte de tudo. Então se ge- me aquele versiculo: "Fui expulso dos teus olhos" [SI 31.221 e nem ao menos se ousa dizer: "Senhor, iião me repreendas em tua ira." [SI 6.1.1 Nesse mo- mento (fnirabile dictu) a alma não pode crer que alguma vez possa ser remi- da; ela só sente que a pena ainda não está completa. Entretanto, ela é eterna e não pode considerá-la temporal; resta apenas o puro desejo de auxilio e um horrendo gemido, mas ela não sabe de onde pedir auxilio. Aqui a alma está estendida com Cristo, de modo que se podein contar todos os seus ossos, e não há nenhum canto nela que não esteja repleto do mais amargo amargor, horror, pavor, tristeza, porém de tal maneira, que todas estas coisas são eter- iias. E, de todas as maneiras, para dar um exemplo: se uma esfera passa sobre uma linha reta, cada ponto da linha que é tocado suporta toda a esfera, mas não a compreende em sua totalidade. Assim, ao ser tocada por uma inunda- ção eterna que passa, a alma em seu ponto nada sente e bebe a não ser pena eterna; entretanlo, ela não fica, pois passa adiante de novo. Portanto, se essa pena dos infernos, isto e , esse pavor insuportável e inconsolável, atinge os vi- vos, muito mais a pena das almas no purgatório parece ser de tal espécie, po- rém continua. E é este aquele fogo interno, muito mais atroz do que o exter- no. Se alguém não crê nisso, não contendemos, mas demonstramos tão- somente que esses pregadores de indulgências dizem, com demasiada audá- cia, muitas coisas que ignoram ou de que duvidam. Deve-se crer mais nas pes- soas experimentadas nessas coisas do que nesses inexperientes.

6. Acresce-se a isso a autoridade da Igreja, que canta: "Liberta-as da goela do leão, para que o inferno não as engula." Do mesmo modo: "da por- ta do iiiferno". Essas palavras certamente parecem indicar que as almas estão como que já na porta e na entrada d a condenação e no início do inferno. É o que chaniei de estar próximo ao desespero, e creio que as palavras da Igreja não sejam vãs.

Tese 16

Inferno, purgatório e céu parecem diferir da mesma forma que o deses- pero, o semidesespero e a segurança.

Quem tiver considerado verdadeiras as duas teses precedentes admite fa- cilmente também esta. Sim, como cremos que no céu reinam paz, alegria e se- gurança na luz de Deus, no inferno, contudo, pelo contrário, esbravecemi30 dcsespero, dor e horrível fuga nas trevas exteriores, [que] o purgatório, po- rCm, é o meio entre ambos, mas de tal forma que está mais próximo do infer- iio do que do céu (porque não têm alegria e paz, sim, em nada participam do

l7 r l A<) iiivl's de servire. que consta na edicão de Weiinar (p. 5 5 8 ) , o termo iatino original deve \c, .s,,<.,,;r<,.

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c.i.11, pois se considera que se trata da mesma pena como no inferno, diferente ;ij>ciias na duração), está suficientemente claro que também nele'J1 há deses- {'cio, fuga, horror e dor. Todavia, quando mencionei o desespero acrescentei "scmi", visto que, por fim, esse desespero cessa. No mais, enquanto está ne- Ic, a alma realmente não sente senão desespero, não porque ela desespere, iiius porque está em tamanha perturbação e confusão de pavor, que iião sente qiic tem esperança. Lá somente o Espirito socorre sua fraqueza o mais possí- vel, intercedendo por elas com gemidos inexprimiveis'J2. Pois o mesmo acon- tece aos tentados nesta vida, de modo que não sabem se esperam ou desespe- i-ain; sim, parece-lhes que desesperam, restando só um gemido por auxilio. A partir desse sinal, não são eles mesmos, mas outros que reconhecem que eles :iiiida têm esperança. No entanto, não vou falar mais longamente sobre esse assunto, que é sobremaneira abstruso, para que os vendedores de indulgên- cias não acusem também a mim de estar falando sem provas, embora eu não ;ifirme o que ignoro, como fazem eles, mas sim debata e pergunte. Ademais, sustento que a presumida certeza deles é dúbia e , mais ainda, nula.

Tese 17

Parece necessário, para as almas no purgatório, que o horror diminua na rrredida em que cresce o amor'".

Também esta tese se apóia nas três precedentes. Não obstante, vamos cxplicá-Ia e propor (assim como começamos) três espécies de almas que par- iciii. A primeira é constituída pelas almas completamente desprovidas de fé (isto é, condenadas). Na morte, elas são necessariamente tomadas do mais extremo horror e desespero, conforme aquela passagem: "Os males se apode- r:irã» do homem injusto na morte." [SI 140.11.1 E mais uma vez: "A morte (10s pecadores é a pior de todas" [Sl 34.211, isto porque não têm confiança ciii Deus; por esta razão, a ira os apanha. A segunda espécie são as almas c:iiiiipletamente cheias de fé e perfeitas (isto é, bem-aventuradas). Na morte, clas são necessariamente tomadas da maior segurança e alegria, conforme :iqiiela passagem: "Ainda que cair, o justo não se quebrará, pois o Senhor ~ilie siia nião debaixo." [SI 37.24.1 E de novo: "Preciosa é aos olhos do Se- iilior 3 morte dos seus santos." [SI 116.15.1 E mais uma vez: "Se for assalta- (10 ccdo demais pela morte, o justo estará em refrigério." [Sb 4.7.1 E a causa iIc ornhos é que o injusto encontra o que temia, sendo que ele sempre temia iiiiirtc ç castigo. O justo, porém, saciado desta vida, desejava ao máximo ser livrado; por esta razão, seu desejo lhe é concedido. Aquele não chegou a me- t:i<lc dos setis diasl34; este prolongou sua morada para além da corisumação.

I I 1 l ~ l i > LI. 1 1 0 ] ~ I I I X I ~ L U I ~ U . I I,! ( ' I . H i i i 8.26. I I I ( '1. 1,. 24. iii>i:i I I . 11.1 ( ' I . SI 15.21.

Por isso, o que aquele teme, este busca, pois estão tomados de um desejo to- talmente diferente; o que para aquele é supremo horror, para este é supremo ganho e alegria. A terceira espécie são as almas imperfeitas na fé, que diferem de modo variado, indo desde a fé plena até nenhuma fé. Ora, creio que nin- guém nega que algumas almas partem com fé imperfeita; mesmo assim, abai- xo demonstraremos isso mais amplamente. Portanto, como a imperfeição de fé não é outra coisa do que a imperfeita novidade da vida no Espirito e um resto aiiida existente do velho ser da carne e de Adão (pois se fosse perfeita não temeria o castigo, nem morreria a contragosto, ou não partiria com afei- ção terreiia por esta vida), parece claro que as almas não só precisam remover as penas, mas também acrescentar a perfeição d a novidade e fazer desapare- cer o resíduo do velho ser (isto é, o amor a vida e o temor da morte e do juizo). Ocorre que, por mais que a pena fosse removida (se fosse possível), a alma não ficaria sã através dessa remoção, assim como também nesta vida ninguém se torna melhor apenas pela remoção das penas, mas sim pela adi- ção da graça e pela remoção do pecado. Por isso, também delas primeira- mente deve ser retirado o pecado, isto é, a imperfeição da fé, da esperança e do amor.

2. Nenhuma pena é vencida pela fuga ou pelo medo, pois é verdadeiro aquele provérbio: "Quem tem medo do inferno acaba entrando nele." Sim, a neve cairá sobre quem tem medo da geada (Jó 6.16), isto é, vai cair sobre ele mais do que temia. Toda pena é aumentada e fortalecida pelo medo a ela, as- sim como é diminuída e enfraquecida pelo amor. Ora, a pena é vencida sendo amada e abraçada; então, nenhuma pena é molesta, contanto que tenha sido vencida. Por isso, para quem as ama, as penas e a morte não são molestas, mas agradáveis, porque vencidas pelo amor e pelo Espirito. Para quem as te- me, porém, elas são molestas porque o dominam pelo temor e pela letra. Se, pois, o purgatório aflige as almas e o pavor Ihes é molesto, é evidente que Ihes falta o amor e o Espirito da liberdade e que a letra e o temor estão presentes. Essa falta de amor eu chamo de imperfeita saúde do espírito. No entanto, co- mo ninguém entrará no céu sem saúde perfeita, concluo, por fim, que lhes é necessário que, assim como o horror seja diminuído, o amor e a saúde sejam aumentados.

Se alguém negar e não crer nisso e sustentar que as almas lá135 seriam perfeitas na vida do Espirito e só pagariam as dividas passadas de penas, res- poiido em primeiro lugar: que eles também provem sua opinião, que eu nego, estando certo de que não a provarão por nenhuma razão ou então a provarão através de razões mais fracas. Pois bem, em segundo lugar, pergunto se ne- g:iiii aquelas três espécies de almas que partem acima expostas. Se admitem iariibém a terceira espécie, que respondam ao que eu disse anteriormente, de qiic modo são removidos a pusilanimidade do espírito e o temor, visto que o scr tiiiiiiano perfeito, assim como Deus, seu Pai, nadateme, tudo pode, tudo si)frc, cri1 tudo se alegra e deleita. Se não o admitem, mas crêem que na morte

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Tese 18

Parece não ter sido provado, nem p o r meio de argumentos racionais rrem da Escritura, que elas se encontram fora do estado de mérito ou de cres- cimento no amor.

Este é o meu mais forte argiimento contra a opiiiião contrária: ela é ensi- nada sem prova. Nossa opinião, porém, certamente se apóia pelo menos na- quela passagem que diz que sem o acréscimo da graça nenhum temor é expul- so; este só é lançado fora pelo amor perfeito"3. Esta tese previne o argumen- to daqueles que poderiam dizer contra mim: "Elas estão fora do estado de iiiérito, razão pela qual as três teses precedentes são falsas." Eu, contudo, para continuar (assim como comecei) a opinar e debater, sem nada afirmar, digo: se o purgatório é tão-somente uma oficina para o pagamento de penas e ;is almas que nele estão são impuras por sua imoderaçãolM (como penso eu) e i120 são purificadas desse vicio, o purgatório se tornaria o mesmo que é o in- lerno, pois o inferno é onde existe pena com culpa que permanece. Ora, nas iilmas do purgatório existe culpa, a saber, temor das penas e falta de amor, no passo que o justo, segundo 1s 8.13, nada deve temer senão apenas Deus; portanto, elas pecam sem interrupção enquanto temem as penas e buscam re- poiiso. Provo isso pelo fato de que buscam seu próprio interesse mais do que :i vontade de Deus, o que é contra o amor. Se amam a Deus, amam-no coni o iiiiior da concupiscência (isto é, com um amor vicioso), enquarito que deve- ii;irn, mesmo em suas penas, amar e glorificar a Deus e suportar com firme- /,:i. Mas, para também afirmar alguma coisa em meio a tantos espinhos dos dchates, confesso francamente que creio que nenhuma alma é redimida das iiciias do purgatório por causa de seu temor, até que ponha de lado o temor e coiiiece a amar a vontade de Deus em tal pena, e a ame mais do que teme a pcria, sim, até que ame unicamente a vontade de Deus, mas vilipendie a pena i111 até a ame na vontade de Deus. Porque é necessário amar a justiça antes de scr salvo. A justiça, porém, é Deus, que opera essa pena. Depois, Iiá aquela 1p;ilavra de Cristo: "Quem não toma (isto é, carrega de bom grado e com :1111or) a sua cruz e me segue, não é digno de mim." [Mt 10.38.1 Ora, a cruz d;is alinas é aquela pena. Sendo as coisas assim, e as reputo sumamente ver- iI:idciras, diga quem puder de que forma esse amor das penas pode substituir o icriior sem uma nova infusão da graça. Eu confesso que não sei, a menos qiic digas que o purgatório não tem terror das penas e, por isso, não é seme- I11:iiric ao inferno, contra o dito anteriormente; mas então é em vão que ora- I I I ~ I S por aquelas que, conforme ouvimos, querem e amam suas penas, seni te- iiior.

2. Eni segundo lugar, provo que o amor cresce nelas. Diz o apóstolo: "l'od;is as coisas cooperam para o bem daqueles que amani a Deus." [Krn

8.28.1 Esse bem, contudo, não pode ser compreendido senão como aumento do bem já possuido; por conseguinte, também o purgatório aumenta o bem do amor a Deus, sim, aumenta ao máximo de tudo, enquanto o ciúme é duro como o inferno'45 e ama mesmo em tão grandes males; assim como o forno prova o da mesma forma a pena prova o amor.

3. "0 poder se aperfeiçoa na fraqueza." [2 Co 12.9.1 Se o amor está pre- sente, toda pena é salutar e proficua. Pois o preciosissimo e fecundissimo amor não permite alguma coisa estéril junto de si. Ora, no purgatório está a maior fyaqueza; por conseguinte, ele aperfeiçoa o amor ao máximo.

I 4. E impossivel ficar parado no caminho. O caminho de Deus, porém, é

o amor que se dirige a Deus. Portanto, é necessário que as almas ou avancem ou retrocedam do amor de Deus, já que, como é evidente, ainda não estão no fim e ainda não vêem.

5. É impossivel qualquer,perseverança da criatura a menos que receba incessantemente mais e mais. E dai que certas pessoas perspicazes dizem que a coiiservação de uma coisa é a criação continuada da mesma. Criar, entre- tanto, é fazer sempre novo, como se evidencia também nos riachos, nos raios, no calor, no frio, principalmente quando estão fora de sua origem. Por esta razão, também o calor espiritual, isto é, o amor a Deus, nas alinas neces- sita de uma continua conservação (até que sejam absorvidas em sua origem divina) e, por isso, também de aumento, mesmo que fosse verdade que elas são perfeitas, embora estar fora de Deus e não ter chegado a ele, por um la- do, e ser perfeito, por outro, são coisas contraditórias.

No entanto, vale a pena ver que razões os movem a negar as almas o es- tado de mérito ou por que razões provam que deve ser-lhes negado.

A primeira razão é aquela difundidissima afirmação do B. Agostinho: "Todo mérito é adquirido aqui; após a morte, nenhum."l47 Por conseguinte, dizem eles, o purgatório não é lugar para adquirir mérito.

Respondo: o B. Agostinho e os outros pais que disseram coisas seme- lhantes falam a partir da autoridade e do uso da Escritura, que fala muito mais vigorosamente em favor dessa opinião: por exemplo, G1 6.10: "Faça- mos o bem enquanto temos tempo." E Cristo diz em Jo 9.4: "A noite vem, quando ninguém poderá trabalhar." E o Apocalipse: "Pois as suas obras os seguem." [Ap 14.13.1 E aquela clarissima passagem de Hb 9.27: "Está esta- belecido a todos os seres humanos morrerem uma vez, depois disso, o juizo", depois o fim. G1 6.7: "Pois aquilo que o ser humano tiver semeado, isso tam- bém ceifará." Da mesma forma: "E necessário que todos nós sejamos mani- festados perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba conforme o qiie fez no corpo, seja bem, seja mal." [2 Co 5.10.1 E há muitas outras passa- gens que, no conjunto, soam como se, após a morte, haja somente um juizo para que se receba conforme se agiu (isto é, mereceu) aqui, segundo aquela palavra de Eclesiastes: "A árvore ficará no lugar em que cair." [Ec 11.3.1 . ~ ~

1 4 ( ' r . ('I 8.6. 146 ('r. I'u 27.21. 141 /)<~,»ric<l<~,~ii,iorror,r .sanclorurn. 12; De civilate dei. XX1,24; i": Migne PL 44,977; 41,740.

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Mas todas essas passagens militam igualmente contra todo o purgatório, lii~rqiie não estabelecem um estado intermediário entre os mortos condena- i105 e os bem-aventurados. Se, pois, não obstante isso, o purgatório é defen- dido com razão, também se pode defender que lhes é aumentada a graça, não c~li\iante aquela afirmação de que todo mérito é adquirido aqui, porqiic ela ii:lo Fala do purgatório - assim como também aquelas passagens nada falam <I,i piirgatório, mas sim do céu ou do inferno. Portanto, ein ambos os casos o liiii-gatório é deixado de lado. Por esta razão, aquelas palavras de Agostinho ii;i<i devem ser relacionadas com o purgatório: todo mérito é [adquirido] :iqiii, iião lá, quer dizer não no céu ou no inferno. Por fim, segundo o B. Axostiriho, aqui também é adquirido o mérito pelo qual o ser Iiuniano é dig- i i ~ de ser ajudado, no purgatório, através de intercessão. Do contrário, no ,.i.ii ou no inferno ele não tem nenhum mérito pelo qual mereça receber ajuda I;!. certo que lá e1e"Vem o purgatório em vista, mai de fornia algurna aqui.

Entretanto, se alguma pessoa mais contenciosa qiiisessc afirmar qiie as 1i:issagens já aduzidas em nada pugnam coiitra o piirgatório, pois poderiam ,,cr iiiantidas através de um duplo juizo ou de uma diipla retribuição após a iiiorie - a saber, de uma temporal, que é do purgatório, e de unia eterna, ~liic é do inferno (e assim um ceifa o purgatório, outro, o inferno; da niesma Ii>riiia, as obras de um o seguem ao piirgatório, as de outro, ao i n f e r n o ) , i rspoiido: falando assim, essas passagens, juntamente com o purgatório, não \;li] salvas, mas, antes, destruidas por meio de um equivoco tão violento e ar- Iriir:irio, visto que uma parte do equivoco iiunca pode ser demonstrada. Em iiicii juizo, creio que não é licito e que é péssimo um uso conservado por al- ,:li115 até hoje: o de dividir o sentido simples da Sagrada Escritura nuin senti- i10 cqiiivoco e dúbio. Pois é mais correto dizer que essa passagem não fala clcisc irssunto do que, tentando relacioná-la com ambos os assuntos, fazer c , r i i i ela não seja certa em nenhum sentido. Pois a coberta é curta, diz li:iinsi"', ela não pode cobrir ambos os lados. Além disso, como se diz comu- iiiciitc: "Um altar não deve ser ornado ás custas da nudez de outro." Por <.oiiscgiiinte, deve-se dizer que a afirmação de que o ser humano lá ceifa o que ; i i l i i i erneou deve ser entendida em relação a vida presente e a futura. Pois [a ~~iiliivr:i] "ceifa" - sem que a distorçamos e a tornemos equívoca segundo ii<rsro ;~rbitrio -deve ser deixada com o significado com que é usada pela Es- <.i i! iirn, a saber, do juizo futuro e universal. Assim, aquelas passagens em na- iI:i piigiieiii contra o purgatório, e isto não pela cavilação de um equivoco, lii;is ~ ic lo seiitido da ablação15o. O mesmo vale para a afirmação: "Todo méri- C I O li. iiclqiiirido] aqui, e nenhum lá." De outro modo, quanto suor teria cus- i:i<I<i 11 iiicii esforço, se também eu atribuisse ao mérito um duplo sentido, . i l i i iiiniido que após a morte não existe mérito deste tempo, mas sim o mérito <l:iiliiclc cstado, e que Agostinho se refere ao primeiro. Porém eu não quis I I;11rr isso].

Mas o que hão de dizer eles sobre aquela passagem de Eclesiastes: "Caindo a árvore para o sul, ou para o norte, no lugar em que cair, ai ficará" [Ec 11.31, se é que realniente entendem sob "queda" a morte? Se, pois, o iiorte significa o inferno e o sul, o céu, para onde caem os que entram no pur- gatório? "Para o sul", dirão eles, porém equivocamente. Mas o que dirão a "ai ficará", "ai permanecerá"? Quer dizer então que elas nunca sairão do p~irgatório? Acaso também aqiii a permanência será equivoca, a saber, tem- poral e eterna? Assim, fica claro que essa passagem está diretamente voltada contra o purgatório; mais ainda: se a considerarmos equivoca, ela transfor- ma o purgatório em inferno. Assim sendo, [o problema] não pode ser resolvi- do a nienos que se diga (como eu disse) que ela nada afirma a respeito do pur- gatório, não mais do que aquela passagem que reza: "Liiro da genealogia de Jesus Cristo." [Mt 1.1.1

Tese 19

Tarnbétri purece nüo ter sido provado que as alnzas no purgatório este- jani certas e seguras de sua bem-uventurançu, ao menos não todas, mesmo que nris, de nossa parle, tenhamos plena certeza.

Pois nós, porque cremos qiie iieiihuma alma vai ao purgatório a menos que pertença ao número daquelas a serem salvas, estamos certos da bem-a- venturança delas, assim como estamos certos da salvação dos eleitos. Mesmo assim, rião impugiio muito se alguém afirma qiie elas estão certas [de sua bem-aventurança]. Eu digo [apenas] que nem todas estão certas. Mas como todo o assunto das almas no purgatório é sobremaneira abscondito, explico a tese mais persuadindo do que demonstrando.

1. Em primeiro lugar, a partir das afirmações anteriores: se a pena do purgatório é aqiiele pavor e horror da condenação e do inferrio, todo pavor, porém, torna o coração perturbado, incerto, privado de conselho e auxílio, e tanto mais quanto mais intenso e inopinado forl5'. Ora, o pavor das almas é o mais intenso e inopinado de todos, como foi dito acima e como diz Cristo: "Aquele dia sobrevém como um laço." [Lc 21.34.1 E o apóstolo: "O dia do Seiihor virá como ladrão de noite." [2 Pe 3.10; 1 Ts 5.2.1 Por esta razão, é iiiiiito provável que, por causa de sua perturbação, elas não saibam em que cstado estão, se condenadas ou salvas; sim, parece-lhes que já estão a cami- iilio da condenação, que já estão descendo ao inferno e que, em verdade, já csião iias portas do inferno, como diz Ezequiasl52. Mas também 1 Rs1S3 2.6 diz: "O Senhor faz descer aos infernos e faz subir." Portanto, não sentem oiitra coisa seiião que sua condenação está começando, só que sentem que a

I,IH si, Ay,i\liiili<i.

1.1'1 1 ' I . 1, 28.20. l > O I',,, ,!/~/uliu,~i.\ vvr~,vr ,r?, , I!<> ori&irb;tI, i \ l u i, n c ~ \ c ~ ~ l i d c ~ LIC que r ) A o r c l ' c r c > ~ ; a < > ~>tug:c lO~i :~ .

1 7 1 i > ~prri<i<li, c\i6 iiico~icliiso tanibérn no original 152 ( ' I . I, 1 X . I O . 151 \ri .: ilcvi. \ v i 1 Soi 2 . 6 .

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[porta do inferno ainda não se fechou atrás delas e também não abandonam o clcsejo de auxilio, ainda que este não seja visivel em parte alguma. Pois assim falam os que o experimentaram. Façamos uma comparação: suponhamos que alguém vem inopinadamente ao juizo da morte, caindo, por exemplo, lias mãos de salteadores, que o ameaçam de morte de todos os lados, ainda que tenham decidido aterrorizá-lo, não matá-lo. Neste caso, eles estão certos de que ele viverá, ele mesmo, contudo, nada mais vê exceto a morte iminen- iissima e, por isso mesmo, já está morrendo. A única coisa que lhe resta é o fato de ainda não ter morrido e poder ser redimido da morte, mas não sabe de onde154 (pois vê que aqueles podem, porém não querem). Assim seiido, ele ein quase nada difere de um morto. O mesmo parece acontecer no caso do iiicdo da morte eterna, visto que não sentem outra coisa senão que a morte ctcrna os ameaça de toda parte. Assim canta a Igreja por eles: "Arranca suas itlinas da porta do inferno e liberta-as da goela do leão, para que o inferno i150 as engula", etc. O único conhecimento que Ihes resta é que Deus pode rcdimi-10s. No entanto, parece-lhes que ele não quer [fad-lo]. Os condena- dos, porém, imediatamente acrescentam a blasfêmia a esse mal, ao passo que :iqueles acrescentam apenas queixa e gemido inexprimivel, auxiliados pelo Iispiritolsi. Pois aqui o Espirito de Deus paira por sobre as águas, onde há trevas sobre a face do abismo'sb. Mas sobre isso [falei] mais amplamente aci- iiia.

2. Lêem-se muitos exemplos nos quais se tem que algumas almas confes- \;li-am essa incerteza de seu estado, pois apareceram como que indo ao juizo, para o qual tinham sido chamadas, como [é dito] a respeito de S. Vicente"', cic. Por outro lado, lêem-se muitos exemplos nos quais confessaram sua cer- icza. Quanto a isto, digo: em primeiro lugar, eu disse que não todas estão cer- i;is. Em segundo lugar, conforme o dito anteriormente talvez [seria] melhor [~lizer que] elas não estiveram certas, mas, por causa de seu desmedido desejo clc ajuda, pediram, como se estivessem certas, que se as ajudasse mais rapida- iiiciite. Assim, elas antes julgam e timidamente presumem estar certas do que i r snhem, da mesma forma como também no evangelho se diz, a respeito dos iIciiii,iii«s, que eles sabiam que ele é o Cristo, isto é, eram fortemente de opi- . . iii;io, como diz a glosalsg. Pois assim acontece naturalmente em toda angústia <. c111 tudo pavor: somos fortemente de opinião que ainda podemos nos recu- ]lci:ir, ainda que ai haja mais um desejo de recuperaçãc do que esperança ou

154 Sr. Ilie viril ajuda. 1 5 7 ( ' I ' . Krn 8.26. IV? [ ' I ' . c;,, 1.2. 117 S. Vice,ile I'crrer, doininicano, pregador de penitència. Lutera pensa na Vilu Vincentrikr~

,<.ri ile 1'cdi.o Karrana I Vi N;i I<l;i<le Média perdeii~se o contato coin a interpirtaqào bíblica patristica. Os exrgrias l i -

v r i ;ini qiie valer-se da.; ohsrrvaçõrs dos pais da Igreja latiria, que haviam sido coletiirl;is por i l i v r l \ i i \ ;iiiiorcs. A\sini, eri<tiain as colecões de Beda Vcncrahilis. de Paiilo Wariiciricd. I'ii\irriiiiiriciiic. piiicilr<iu-se por uni \istcnia mais sii~iplei aiiida. aiicitaiido iia ni;iraritl <iii

t f ~ l c r c ; k l ~ t ~ ~ ~ l ~ ~ V ~ I I T C ;i$ l i ~ , I l : t < <lu Icxtu Idl~Iico i ~ ~ l c r ~ ~ ~ c l ~ ~ ~ c s ru:si\ a t ~ l i ~ a \ . I)csju< ' ' ~ I , I \ : \ s ' ' , a > : / 0 , $ . 5 , ! or,Ii,,<tri<~ <!c ValaI ' t idt ) S I K ~ I ? ~ i I U4'0 I'<>i ;, r ~ ~ ; t i \ : t ~~ rec i a~ l ; t ,

saber, da mesmaforma como nos demônios houve mais um desejo de saber do que o saber. E que o saber da salvação não se apavora nem treme, mas confia e tudo tolera com a maior coragem.

Neste ponto se diz: "Como fica então o juizo particular, que, como é voz corrente e como Inocêncio'J9 atesta, tem lugar na morte de qualquer pes- soa? Pois parece que, por meio dele, o ser humano fica certo de seu estado." Respondo: não se segue que ele fique certo, mesmo que seja um juizo particu- lar. Pode acontecer que o morto seja julgado e até acusado, mas que, ainda assim, a sentença seja adiada e não lhe seja revelada. Nesse ínterim, contudo, enquanto a consciência acusa, os demônios acossam e a ira de Deus ameaça, a misera alma nada faz senão tremer por causa da sentença esperada com horror a todo momento, assim como faz em relação a morte corporal e como ameaça Dt 28.65~s.: "O Senhor te dará um coração pávido, e tua vida estará suspensa diante de ti. Pela manhã dirás: ah, quem me dera ver a noite! E a noite dirás: ah, quem me dera ver a manhã!" Assim também lá a morte eter- na ferirá com pavor semelhante e supliciará a alma com terrivel horror. Essa opinião não está muito dissonante da verdade, visto que, em Mt 5.22, tam- bém o Senhor distingue entre réu de juizo, réu de conselho e réu de inferno, isto é, entre um acusado, um convicto e um condenado. Mas também alguns insignes autores ousam afirmar, mais por conhecimento do que por ouvir di- zer, que, por tremerem por sua vida, algumas almas são arrebatadas pela morte e de tal modo rejeitadas por Deus, que até o fim do mundo não sabem se estão condenadas ou se serão salvas. E caso se aceita aquela história sobre o monge que estava a morte e, como que condenado por causa do pecado da fornicação, já blasfemava, e que depois recuperou a saúde, fica suficiente- mente evidente que o juizo e a acusação do inferno podem afligir a alma mes- mo que a sentença definitiva não tenha sido pronunciada ainda. O mesmo sentido tem o que o B. Gregório conta numa homilia a respeito de um jovem a que,m, na morte, um dragão queria engolir.

E isso, pois, que proponho como verossímil a respeito de toda a matéria das penas do purgatório, movido, primeiramente, pela natureza do horror e pavor; em segundo lugar, porque a Escritura atribui essa pena aos condena- dos; por fim, porque toda a Igreja diz que são as mesmas as penas do inferno e do purgatório. Assim, creio que essa nossa opinião está suficientemente fundada nas Escrituras. Os apregoadores de indulgências, porém, parecem imaginar-se as penas das almas como se fossem infligidas de fora e fossem completamente externas, não nascendo a partir de dentro, na consciência, co- mo se Deus apenas lhes tirasse as penas, ao passo que o contrário é mais ver- dadeiro: ele tira, antes, as almas das penas, como está escrito: "Ele afasta suas costas dos fardos." [SI 81.6.1 Ele não diz: "Afasta os fardos de suas cos- tas." E mais uma vez: "Se passares pelo fogo, a chama não te fará mal." [Is 43.2.1 De que forma não fará mal? Só porque ele dá confiança ao coração, para que não tema o fogo. Não, porém, de modo que não haja fogo quando

I 9 Ini>cEncio IV (1243-1254). Apparatus in quinque libros decrefolium, od C. Vlir. 38, c. 14.

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c l ; ~ ~ ~ ~ ' t e m de passar por ele. Por esta razão, o afastar as costas dos fardos não :ic<riicece senão curando o temor da alma e a confortando, assim como tam- hi.iii foi dito acima que nenhuma pena é vencida sendo temida, e sim através clc ainor e desprezo. Ora, as indulgências não removem o temor, mas, pelo <.i)iiiririo, o suscitam tanto quanto podem, persuadindo que as penas a serem iclnxadas são como que uma coisa odiosa. Entretanto, Deus se propôs ter fi- Ilios impávidos, seguros, generosos em eternidade e com perfeifão, que abso- I~iÍaiiiente nada temam, mas, confiantes em sua grafa, tudo venfam e despre- ~c i i i , c considerem as penas e mortes um objeto de zombaria. Os demais igna- vos ele odeia, os que são confundidos pelo medo de tudo, até mesmo pelo rui- i10 de uma folha que voa.

De novo se objeta: "Se as almas suportam as penas de bom grado, por qiie orarnos por elas?" Respondo: se não as suportassem de boa vontade, cc:rtainente estariam condenadas. Mas será que por isso não devem desejar i~rr i~ões? Pois também o apóstolo desejou que se fizessem orações por ele, 11iira que fosse livrado dos descrentes e se lhe abrisse uma porta a palavral6'. N5o obstante, era ele qiiem, cheio de toda confiança, se gloriava de desde- iiliar a morte. Mesmo que as almas não desejassem orações, é nosso dever i.i)iidocr-nos de seu sofrimento e socorrê-las através da oração, assim como a i~iinisquer outros, por mais corajosamente que sofram. Depois, como as al- iiins n2o sofrem tanto com a pena presente quanto com o horror da perdição iiiiiiieiite que as ameaça, não é de admirar que desejem intercessão, para que I)crseverem e não se tornem faltas de confiança, tendo em vista que, como eu clissc, estão incertas quanto a seu estado e não temem tanto as penas do infer- iio quanto o ódio de Deus que existe no inferno, assim como é dito: "Na iiioi-te iião há quem se lembre de ti; no inferno quem se confessari a ti?" [SI O . S . ] Assim é evidente que não sofrem por temor da pena, mas por amor da iiisiica, como dissemos acima. Pois elas têm mais medo de não louvar e amar ;I I>eiis (o que aconteceria no inferno) do que de sofrer. Toda a Igreja ajuda, coiii razXo, esse seu santissimo, porém ansiosissimo desejo tanto quanto po-

- 2 " iIcl>aie sobre as penas das almas. Não invejarei quem puder exibir coisa me- Ilioi, contanto que o faça apoiado em melhores passagens da Escritura e não <iliiitihilado pelas fumosas opiniões de seres humanos.

Tese 20

I 'r~r~un~o, sob remissão plena de todas as penas o papa não entende sim- /~l<:sr~icn/c todas, mas somente aquelas que ele mesmo impôs.

I Esta tese eu debato. mas ainda não a defendo com vertinácia. Minhas razões são:

1. A primeira [provém] do que foi dito em relação á tese 5: só a pena ca- nônica é remitida pelo poder das chaves. Por isso, esta tese é um corolário da- quela; negada aquela, é negada também esta.

2. A segunda razão [é derivada] do próprio estilo do pontífice, que diz: "Relaxamos misericordiosamente as penitências impostas." Logo, não rela-

I .

xa as não impostas por ele ou pelos cânones. Creio que aqui não devemos nos preocupar com a invencionice arbitrária de algumas pessoas que dizem:

1 Quando o pontífice não acrescenta essa cláusula a respeito das penitêiicias impostas, então deve-se entender simplesmente a remissão de todas as penas.

i Eii diria: se ela não é acrescentada, subentende-se, mesmo assim, que é acres- centada como cláusula necessária e pertencente à essência do estilo; ou eles

I que provem com algum texto o que dizem. 3. Chego a um argumento costumeiro, mas que é o mais forte de todos, e

pergunto: por meio de que autores pretendem eles provar que também outras penas do que as canônicas são removidas pelas chaves? Apresentam-me Antoninol62, Pedro de Palude163, Agostinho de Anconalw, Capreolol6'. De-

1 162 Dominicana e arcebispo de Florença, canonizado em 1523. Nascido em 1389, cedo destacou-se por sua erudição, suas pregações fervorosas, sua atividade coma confessor e seu rigoiismo ascético. Além disso, desenvolveu larga atividade no campo da politica ecle- siástica. Em 1446 foi saprado bisoo, muito a contrarasto. Nessa posiçâo continuou a levar . uma vida em estilo monacal. Dentre suas obras destacam-se a Surnrno hisroriolis, a mais ampla crônica medieval, a Surnrno rheologica, um comentario da teologia moral de Tomas de Aquino, e obras da poimênica confessional, unidas sob o nome de ConJessionale.

163 Também conhecido como Paludana, foi dominicano e recebeu o titulo docror egregiur. Nascido por volta de 1280, estudou e ensinou em Paris. Incumbido de embaixadas politi- ças, não se deu bem nessa função, retomando ao ensino e i pregação. Em 1329, João XXII designou-o bispo de Jerusalém. Dificuldades com o sultão fizeram-no regressar em 1331. Seus relatas provocaram um último entusiasmo na corte francesa em prol de uma cruzada. Exegeta, publicou também um comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, ao qual Lute- ro aqui se refere.

1 f 4 1243-1328. Nascida em Ancona, veio a se tornar eremita agostiniano. Foi aluno de Tomás de Aquino em Paris. Professor em Paris, Padua e Nápoles, tem entre seus muitos escritos sermões, comentários, tratados filasóficos, dogmáticos e juridicos. Sua última obra foi o Milleloquiurn ex S. Augurlini operibus. A obra mencionada por Lutera é a Surnrna depo- resrore ecclesiostica (q. 29, art. 4), a qual Agostinho redigiu como sustentação à luta de João XXII contra a imperador Luis, a Bávaro.

I65 Jogo Capreolo, dominicana, festejado como oprinceps fhornisforum. Foi professor em Pa- rir a nartir de 1409 e faleceu em 1444. Lutero refere-se a sua obra m a m a LibriIYdefensio- - ,ir,», iIitr>lr.ct~. m, . J,,r.rc>rir Iho!nar i i c . Iq l< /no iin II ienii,nr div. 21,. orr I. onc i . I,.

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pois também o sumista Ângelo166refere-se a seu Francisco Maronis'67, que le- vou a compra de indulgências a tal ponto, que ousou chamá-la de meritória, c agrada a Cristo. Como se, de fato, essas pessoas fossem de tal espécie e grandeza, que qualquer coisa que pensaram devesse ser imediatamente inclui- (Ia entre os artigos de fé. Na verdade, devem ser mais repreendidos os que, para nossa ignomínia e para injúria daqueles, alegam como afirmaçôes as coisas que aqueles, por causa de sua piedosa intenção, [apenas] opinaram, iião dando absolutamente nenhuma atenção aquele fiel conselho do apósto- lo: "Provai todas as coisas, retende o que é bom." [ l Ts 5.21.1 [Eles são] tiiuito mais tolos do que os pitagóricos, já que estes afirmavam apenas o que l'itágoras168disse, enquanto que eles afirmam também as coisas de que aque- Ics duvidavam. Dirijamo-nos, porém, a origem e fonte desses riachos, isto é, 210 B. Tomás e ao B. Boaventura. Pois aqueles em parte tomaram destes, em parte acrescentaram do que é seu. Estes são, pois, homens santos e importan- rcs por sua manifesta autoridade. Contudo, visto que também eles mais opi- liam do que afirmam -por fim, S. Boaventura confessa que se trata de uma coisa dubiosíssima e de todo incerta -, não está claro que a partir deles tam- bém nada se pode fundamentar? Vê tu mesmo se eles aduzem qualquer texto OLI passagem da Escritura. Não admira que nada afirmem. Pois como essa cliiestão seria um artigo de fé, se tivesse sido determinada, não cabe aos mes- ires definir, porque também deve ser suspenso até a decisão de um concilio tiniversal, e nem mesmo o sumo pontífice tem o direito de estabelecer inconsi- clcradamente alguma coisa em questões de fé; só os pregadores de indulgên- cias o podem. A estes épermitido tudo o que lhes agrada. No entanto, todos 1i.m uma única razão para sua opinião, razão essa que também o I'aiiormitano~~refere no livro V, depe . et re. c. Quod autemlio, a saber: di- zer que as indulgências remitem tão-somente as penas canônicas é vilificar ex- cessivamente as indulgências. Por conseguinte, para que as indulgências não sejam sem valor, preferiu-se inventar o que não se sabe, ainda que não have- ria qualquer perigo para as almas mesmo que as indulgências fossem nulas,

166 Trata-se do franciscano A. Carletus, natural de Clavassio/Gênova, falecido em 1495 como vigário-geral de sua ordem na Itália. Ficou conhecido entre os curas d'almas em virtude de um resumo das regras confessionais, as quais organizou em ordem alfabética, facilitando, assim, a atividade dos confessores. Entre 1476 e 1520 essa obra, S m m o cosuum eonsrien- rim, alcançou 30 edições e era conhecida como Summo ongelico. Luiero condenou essa rihra como Summuplirrguam diabolico, por considerá-la trivialiração da prática peniten- cial.

167 Minorita, natural do Sul da França e discipulo de Duns Escoto, foi professor em Paris, vin- do a falecer em Piacenza, em 1327. Filósofo, famoso pela interpretação de Aristóteles e das Senienços de Pedro Lombardo, veio a ser celebrado como mogisler obsiracfionum. Seus Scrmones foram impressos em Basiléia, em 1489.

168 lilhsofu r matemático do século VI a.C. A autoridade de que era detentor na liga secreta firrniada por seus amigos, os quais tinham que se submeter a severas regras e a uma vida as- cCfica. era tBo grande que bastava uma referência à palavra do mestre para que todos se siihineicssem.

Ir>') A I . C C ~ ~ S ~ U Niccdau de ~ a l e r h o ( + 1453). Teólogo da Ordem üetiediiina, também conheci- do çoiiio Niçoliiii dc Tiiderco. 1.ecionoii Direito Canônico eiii Sicna. Parma e Iiolonlia.

171) ('1. !ii>lli 60. p. 72.

112

muito menos se fossem de pouco valor, ao passo que seria misérrimo pregar invencionices e ilusões as almas, mesmo que as indulgências fossem utilissi- mas. A tal ponto se desconsidera a salvação das almas; mas, apenas para não parecer que não tenhamos ensinado o melhor, laboramos mais em prol da glória de nossa palavra, mesmo que não seja necessária, do que em prol da fé do povo simples a nós confiado, fé essa que é a única coisa necessária. Antes, porém, de responder ao B. Tomás e ao B. Boaventura, parece conveniente re- ferir opiniões sobre as indulgências, para que eu não pareça ser o primeiro ou o único que as coloca em dúvida.

A glosa sobre o capítulo Quod autem, li. Vdepe . et re., dando uma ex- plicação sobre a eficácia e o poder das indulgências, começa assim: "O valor de tais remissões é uma velha querela e, até hoje, muito dúbia."i'l

Alguns dizem que elas são úteis em relação a Deus, mas não em relação a Igreja. Pois se alguém morre sem pecado mortal, ainda não tendo feito peni- tência, sente menos as penas do purgatório, conforme a medida da remissão que lhe foi concedida. Não obstante, por causa disso a Igreja não relaxa a sa- tisfação a uma pessoa viva. Essa opinião é condenada pelo Panormitano no mesmo lugar, e eu estou de acordo com essa condenação.

Outros dizem que elas são úteis em relação a penitência aqui imposta em superabundância e por precaução, isto é, unicamente em relação às penas que impôs não segundo a medidal72, mas, por precaução, em maior quantidade do que o pecado fazia por merecer. Esta opinião deve ser mais condenada do que a anterior.

Outros dizem que elas são úteis em relação a Deus e a Igreja, mas que o remitente se onera com a satisfação em lugar daquele173. Também esta opi- nião é absurda.

Outros dizem que elas são úteis para a remissão da penitência omitida por negligência. Condenando esta opinião, o Panormitano diz que ela remu- nera a negligência. Em meu juizo, porém, esta opinião não é inteiramente fal- sa, pois em verdade são remitidas quaisquer penas, também as omitidas por negligência, contanto que a negligência [nos] desagrade; sim, são remitidas também as que não foram omitidas por negligência e as que ainda devem ser cumpridas.

Outros ainda dizerri que elas têiii valor para a relaxação da penitência imposta, desde que o sacerdote que a impôs permita que se possa trocar a pe- nitência pelas remissões. Esta opinião é reta e verdadeira nesta questão, só que restringe o poder de quem confere as indulgências. Pois é verdade que elas relaxam as penitências impostas; entretanto, não é necessária a anuência de quem as impôs.

A sexta opinião, que o Panormitano aduz além das cinco apresentadas iia glosa mencionada, diz que elas são úteis, conforme rezam as palavras,

~ -- .-

171 Erra glosa é de üernardo de Botono (+ 1263), jurista de Parma, que lecionava em Bolo- i iha. expondo ar decretais. Bernardo colecionou as glosso ardinorio as decretais de Gregó- rio IX.

172 S c . do pecado oii da culpa. 171 Sr. ile qiieiri rccehe a remissão.

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i;iiiio em relação a Deus quanto em relação a penitência aqui imposta. Ele diz :tilida que esta opinião é sustentada por Gofredol74, pelo 0stiense"J e por .I«ão Andreae"6. Também eu a sustento assim como está ai e as palavras re- /;irii. Porém não sigo a compreensão de todos, principalmente por cansa da expressão "em relação a Deus". Se com isso querem dizer que também as penas impostas por Deus são remitidas, seja aqui, seja no purgatório, para :il&in das penas impostas pela Igreja ou pelos cânones, não a considero verda- dcira, exceto sob a seguinte restrição: porque as penas do purgatório são re- iiiitidas, sem o poder das chaves, apenas por meio da contrição. Por isso, se alguém estiver perfeitamente contrito, creio que, em relação a Deus, está ab- solvido do purgatório; em relação às penas deste tempo, porém, digo que isso riári tem nenhuma abonação, como foi suficientemente exposto acima na tese 5 . Pois não pode ser nomeada a pena a respeito da qual se deve crer que é re- iiiitida em relação a Deus. Por esta razão, eu diria que a expressão "em rela- $50 a Deus" deve ser entendida não com referência as penas impostas por Ileus, mas as impostas pela Igreja, de modo que o sentido é o seguinte: aque- la remissão das penitências impostas pela Igreja subsiste tanto junto a Deus qiiarito junto a Igreja, porque Deus confirma essa remissão de sua Igreja, se- i7,~iiido aquela palavra: "Tudo o que desligares na terra será desligado tam- hérn nos céus." [Mt 16.19.1 Ele não diz: "Tudo o que desligares na terra, ou- tra coisa será desligada nos céus", mas sim: "A mesma coisa que tu desliga- rcs também eu considerarei desligada." E que, por meio disso, Deus quer que os seres humanos sejam sujeitos ao sacerdote, o que não aconteceria se não siiuhéssemos que Deus aprova o que o sacerdote faz.

Vês, pois, que tudo ainda não passa de opiniões. Ademais, quanto ao qric Ângelo aduz de seu Francisco Maronis - que as indulgências serviriam i;iiiibém para aumentar a graça e a glória -, ele não adverte que as indulgên- cias iião são boas obras, mas sim remissões de boas obras por causa de uma oiitra obra menor. Pois mesmo que seja meritória a boa obra por causa da qii:iI são dadas indulgências, elas não são meritórias por esta razão, visto que ;i obra, feita para si, não seria menos meritória, e talvez até mais. As indul- gCiicias, porém, tomadas em si, são, antes, demeritórias, porque são remis- sGcs de boas obras. Assim pois, como em toda matéria posta em dúvida é per- iiiiiido a qualquer um debater e opor-se, digo também eu que, nesta parte, di- virjo do B. Tomás e do B. Boaventura, até que provem melhor sua [posição] c rcfutem a nossa. Exceto opiniões, nada vejo que eles apresentem como pro- v;i, iicm mesmo um único cânone, ao passo que acima, na tese 5, eu apresen-

I74 (iofiedo de Trani, canonista do seculo XIII. lecionou em Bolonha, vindo a ser, posterior- iiieiitc. auditor da Ciiria. Faleceu em 1245. Foi um dos primeiros a formular comentários As ilecreiai.;: Sunrmo ruper rubricis decreralium.

175 lleiiriqiie dc Seguria. nascido ein Susa. lecioiiou em Bolonlia e Paris, atuou na Cúiia, v im <li> ;i ver designado arcebispo de Ernhrun e cardeal-bispo de Ouia. Faleceu ein 1271. Sii;! <>hc;i I.rcruro in decr~foirr Gre~orii IX foi impressa em Parir ç Ibtrashiirgn, crn 1512.

I70 ( ' ; toc ) t t i \ i ; t de l:lo~cr,q;t (1273-1348). Iecic>r,w~ a r , l k ~ l ~ , ~ ~ l ~ a c l'Adu$!. l k r ~ l r c su:ts c ~ l ~ r a s iIrs1;ii;iiii~sc N~>v<,ll<,. i i i i i c,,iiiciiihiii~ As decici;iir gie~oi~;iiiar. e ;isg/o.~,w <irdb,urio ;i ;iiiih;i\

;i\ ~>; i i l cv di> ( i i rprdr iirric.

tei tantas passagens da Escritura em favor de minha posição. E agora, para também não falar sem cânones, vê só:

4. A quarta razão é a seguinte: no capitulo cum ex eo, li. V. de pe. et re.t7l, se diz: "Pelas indulgências a satisfação penitencial é enfraquecida." Embora o papa diga essa palavra mais por dor do que por graça, os canoriis- tas a entendem como reza. Logo, se a satisfação penitencial é enfraquecida, é evidente que unicamente a pena canônica é remitida, já que a satisfação peni- tencial não é outra coisa do que a terceira parte da Penitência eclesiástica e sacramental. Pois a satisfação evangélica em nada diz respeito a Igreja, como expusemos acima.

Se alguém me objetar que o papa não nega que também ourras penas perdem sua força, mas que apenas afirma e que rião fala de maneira exclusiva quando diz: "A satisfação penitencial perde sua força", respondo: prova, então, que ele também relaxa outras e que não fala de maneira exclusiva. Co- mo não o fazes, eu provo que ele fala de maneira exclusiva através do capitu- lo Cum ex eo, supracitado, onde diz que aos questores de esmolas"8 não é permitido propor ao povo nada além do que está contido em suas cartas. Ora, nada está contido em qualquer carta apostólica além de remissões da sa- tisfação sacramental, como diz o próprio papa: A satisfação penitencial per- de sua força por meio de indulgências indiscriminadas e supérfluas. Mais ain- da: com essa palavra o papa restringe as indulgências mais rigidamente ain- da, pois se só as indulgências supérfluas erifraquecem a satisfação sacramen- tal, então as moderadas e legiiimas não enfraquecem nem mesmo a própria satisfação penitencial, muito menos quaisquer outras penas. Mas essas coisas não pertencem a minha jurisdição ou profissão. Os canonistas que se ocupem disso.

Tese 21

Erram, porlanto, os coniissários de indulgências que afirmam que apes- soa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do papa.

Esta tese eu afirmo inteiramente e demonstro. Pois resta pelo menos a terceira pena, isto é, a evangélica, sim, também a

quinta, a saber, morte e doença, e em muitos aquela que é a maior de todas, a saber, o horror da morte, tremor da consciência, fraqueza de fé, pusilanimi- dade do espírito. Comparar estas penas com as remitidas por indulgências é como comparar uma coisa com sua sombra. Contudo, também não é inten- ção do papa que eles fabulem tão frívola e impunemente, como fica claro a partir do capitulo Cum ex eo.

i77 I>~crerole.s d . Gre~oriipapoe IX, livro V, titulo XXXVIII, capitulo 14, i": Corpusiurisco- rionici. v . 2. cols. 88-9.

17H l'l;it;i-\e dor ci>i~iis~!irios de indulgêiicias.

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Se dissessem: "Também nós não dizemos que essas penas são suprimi- das pelas indulgências", respondo: por que, então, não instruis o povo para tliic este saiba que penas tu remites, mas gritas que são remitidas absoluta- iiicnte todas as penas que uma pessoa deve pagar perante Deus e a Igreja por xiis pecados? Como é que o povo vai compreender por si mesmo se falas de iiiodo tão obscuro e liberal?

Tese 22

Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única pena </ire, segundo os cânones, elas deveriam ler pago nesta vida.

Não defendo esta tese mais extensamente do que a oitava, da qual flui como corolário, pois os cânones penitenciais não se estendem a outra vida. l'orque toda pena temporal é transformada na pena da morte; mais ainda: por causa da pena da morte, ela é suprimida e deve ser suprimida. Sim, ima- gina (para argumentar mais extensamente) que a Igreja Romana fosse tal qiial ainda era na época do B. Gregório, quando não estava sobre outras Igrejas, pelo menos não sobre a da Grécia. [Neste caso,] claro está que as pe- ii:is canõnicas não obrigavam os gregos, assim como hoje nào obrigam os ci-islãos não sujeitos ao papa, como na Turquia, Tartária e Livônia. Portan- 1 0 . eles não têm necessidade de nenhuma dessas indulgências, e sim somente 05 que estão colocados no orbe da Igreja Romana. Logo, se elas não obrigam csics vivos, muito menos os mortos, que não estão sob Igreja alguma.

Tese 23

Se é que se pode dar algum perdão de todas as penas a alguém, ele certa- ~ri<,tl/r só é dado aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos.

Fntendo esta tese com referência a penas de todo gênero e assim a defen- i l ( ~ . I'ois, como foi suficientemente dito, não há dúvida de que a remissão da s;iiisl'ação penitencial pode ser dada a qualquer pessoa. Ou melhor: corrijo rsi:i tese e digo que a remissão de todas as penas não pode ser dada absoluta- iiiciiic a ninguém, seja aos mais perfeitos, seja aos imperfeitos. E provo: pois iiiesiiio que Deus não imponha aos mais perfeitos os flagelos ou a quarta es- [iicic de penas, pelo menos não a todos e sempre, permanece, não obstante, a iriccirn, a saber, a evangélica, sim, também a quarta, isto é, a morte e as pe- ii:is yiic estão relacionadas com a morte. Pois mesmo que Deus pudesse tor- i i ; i i i i~dos perfeitos na graça, talvez sem penas, ele não decidiu fazê-lo; deci- i l i i i . isto siiri. ioriiar todos conformes B imagem de seu Filho, isto é, á cruzl7q.

I

Mas que necessidade há de tantas palavras? Por mais magnificamente que se exalte a remissão das penas, o que, pergunto eu, se consegue junto àquela pessoa que tem ante os olhos a morte, bem como o temor da morte e do juí- zo? Se se prega a esta pessoa toda outra remissão, porém não se concede que estas sejam remitidas, não sei se se traz qualquer consolo. Portanto, atende ao horror da morte e do inferno e, querendo ou não, absolutamente não te preocuparás com remissões de penas. Assim, as indulgências serão vilificadas não por nosso esforço, mas por uma necessidade objetiva, já que não supri- mem o temor da morte.

Tese 24

Por isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada por essa magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena.

Também esta tese eu afirmo e sei que assim acontece. Pois eu mesmo ou- vi muitas pessoas dizerem que não entenderam de outra maneira senão que, através das indulgências, saem voandol80 sem qualquer pena. Não é de admi- rar, pois aqueles escrevem, lêem, proclamam que sairá voando imediatamen- te quem adquirir indulgências e morrer antes de cair de novo em pecado. Eles dizem tudo isso como se não existissem senão pecados atuais, e como se o fomes'z' remanescente não fosse nenhuma impureza, nenhum impedimento, nenhum meio que retardasse o ingresso no reino. Pois, a menos que ele seja curado, é impossível entrar no céu, mesmo que não haja pecado atual. E que nada inquinado entrarál82. Em conseqüência, o próprio horror da morte, por ser um vicio do fomes e um pecado, mesmo por si só impede a en!rada no rei- no. Porque quem não morre de bom grado não obedece ao chamado de Deus senão contra a vontade, e, nisto, não faz a vontade de Deus na exata medida em que morre contra a vontade, e peca na exata medida em que não obedece a vontade de Deus. Por isso é rarissimo quem, depois de todas as indulgên- cias, não peque ainda na morte, exceto os que desejam ser livrados e chamam a morte. Assim sendo, para não discordar deles inteiramente, digo que quem estiver perfeitamente contrito, isto é, odiar a si mesmo e sua vida e amar su- mamente a morte, sairá voando imediatamente, tendo sido remitidas suas pe- nas. Mas trata de ver quantos serão esses.

IR0 Sc. para o céu. I81 I'ornc.$é sinonimo de concupiscentia. Também em português existe o termo antiquado "fo-

r ~ i c ~ " , ci i rn o sentido de "concupiscência", entre outras. I82 ('i. A p 21.27.

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Tese 25

O mesmo poder que opapa rem sobre o purgatório de rnodo geral, qual- qrrrr bispo e cura têm em sua diocese e paróquia em parlicular..

Esta é a blasfêmia que me tornou digno de mil mortes, a saber, confor- iiic o juizo dos questores, para não dizer usurários. Mas antes de demonstrar chta tese quero falar sobre meu propósito. Em primeiro lugar, digo mais uma v c ~ que aqui não debato no que diz respeito a opini2o que viso através desias i~nlavras (pois esta afirmo com constância, porque toda a Igreja a sustenta), iiins no que diz respeito as palavras. Depois, também peço aos meus adversá- fios que suportem minha dor, pela qual sou supliciado ao ouvir que na Igreja <Ic C:i.isto são pregadas coisas que nunca foram escritas e estatuidas. Pois le- iiii~s que outrora pareceu aos santos pais perigosíssimo que seja ensinada i~iitilquer coisa além da prescrição celeste, como diz HiláriolR). E o santo I'speridiãol84, bispo de Chipre, era um observador tão rígido dessa disciplina, iliie interrompeu a fala de alguém que tão-somente usara uma palavra grega cqiiivocadamente, dizendo "toma a tua cama e vai" ao invés de "toma o teu i,;iire ou leito e vai", repreendendo-o numa coisa que ein nada mudara o sen- i ido. Creio que eles me devem justissimamente vênia por essa minha dor, vis- i i ~ que somos obrigados, sem jamais termos sido solicitados ou advertidos, a iolcrar suas presunçoes, sendo que Ihes apraz pregar as coisas que nos cru- c.i;iiii quando as ouvimos.

Não digo ou faço isso porque seja impudentemente arrogante ao ponto ilc crer que eu deva ser contado entre os doutos da santa Igreja, muito menos iiiiie aqueles a quem compete estatuir ou rejeitar essas coisas. Oxalá eu mere- ccssc algum dia tornar-me o último membro da Igreja! Antes, sustento o se- p,iiiiite: embora na Igreja haja homens doutissimos e igualmente santissimos, i:iI C ;i infelicidade de nossa época, que mesmo tão grandes homens não po- dciii socorrer a Igreja. Pois o que a erudição e o zelo piedoso conseguem hoje <.i11 dia foi suficientemente provado pelo infeliz fim dos doutissimos e santis- ,.iiiii>s homens que, sob Júlio Ilin*, esforçaram-se por reformar a Igreja atra- ~3i.s dc um concilio instituído para esta necessidade. Existem, aqui e ali, tam- I i t i i i oiitros ótimos e eruditos pontifices que conheço, porém o exemplo de piiiicos iiripõe o silêncio a muitos. Pois o tempo é péssimo (como diz o profe- I;! AiiiOslX"); por isso, o prudente guardará silêncio naquele tempo. Por fim,

I H 1 I'i;ii;i*c d<i h i~pa Hilário de Aiies (401-448). I H , I 1 i i içici l ,>iri<iii o ercmplo da Hi.~rorin iriporlrro, I,10. I H I 1.11lcr0 L( pzircial ncssa passagem e ornite <i escandaloso pano de londo polltico-cçlcsih\tico

\ i i I i ii i i i i ; i l *e <Içvenri,l<iii a comédiado 11 Cocicilii> dc Pisii, erii i51 1 , tido por ci>ncili,, i eh i - i i i i \ i ; i . Ni rmtliilade, cssc conciliei foi um lcvaiite de a l g u n ~ caidciiis francc.;es c espniilii>i\, ; i l><t i ; i<l i>v ~prizl t;r:irii.a e por Maniriiiliaiio I . ci>rilra .lúlio 11 (1503-1511). O C,iiiriiio dc I'i\;i

ilrii ;iii ~>:ip:i c ;i s i i i *iiccsi<ir Icãu X ;! <ipiiitiiiiid;i<le de eiiceiiai ~piic;i ;i cri\i;iii<l;iile r>ci<lrri i i i l , t i l i . 1517. i i iri ci>ricilici ciii Hoiii:i, <i V <'<iiirilii> dc 1-atrzii. I , \ \c ciiiicilici ci>ii+i>liili>ii ; i ; i i t ~

~ < > l i t l i ~ d ~ ~ p i q ) i t l

I H i , ( ' I . Aiii 5.11.

temos hoje um ótimo pontifice, Leão X, cuja integridade e erudição são uma delícia para todos os bons ouvidos'8'. Mas o que pode esse homem amabilíssi- mo fazer sozinho em meio a tanta confusão das coisas? Ele certamente mere- ceria ser pontífice em tempos melhores ou que houvesse tempos melhores em seu pontificado. Em nosso tempo não merecemos ter por pontifice senão gen- te como Júlio 11, Nexandre VI'se ou outros atrozes Mezêncios'89 inventados pelos poetas. Pois dos bons hoje em dia até a própria Roma se ri, sim, Roma mais do que todas. Pois em que parte do orbe cristão zombam mais livremen- te até dos sumos pontífices do que naquela verdadeira Babilônia que é Ro- ma? Mas chega disto. Visto que, além de inúmeras pessoas particulares, a Igreja tem pessoas doutissimas também em suas cátedras, se quisesse ser con- siderado prudente, a exemplo delas, também eii me calãria. Mas é preferível que a verdade seja dita mesmo por estultos, por crianqas, por ébrios, do que qiie ela seja totalmente silenciada, para que a confiança dos mais doutos e dos sábios fique mais animosa ao ouvirem a nós, povo rude, finalmente cla- mar por causa da excessiva indignidade da coisa, assim como diz Cristo: "Se eles se calarem, as pedras clamarão." [Lc 19.40.1

Assim, tendo feito estas considerações preliminares, passo a tese, da qual [tratarei] primeiramente segundo o sentido, depois segundo as palavras ou a ooinião de outros. Portanto. nesta tese nada falo a resoeito do ooder da jurisdição, que nego logo abaixo, na tese seguinte, e que também neguei aci- ma, nas teses 22 e 8. Pois eles tomaram esse poder dessas palavras. A respeito dele digo o que disse: que a Igreja decida [primeiro] a outra parte dessa ques- tão, e seguirei com o maior prazer. Enquanto isto, que parem os temerários afirmadores de seus [próprios] sonhos. Eu duvido e debato que tenham um poder de jurisdição sobre o purgatório. E tanto quanto leio e vejo até agora, sustento a [opinião] negativa, estando pronto a sustentar a afirmativa depois que a Igreja assim tiver decidido. Nesse interim, falo aqui do poder das for- ças, não dos direitos, do poder de operar, não de imperar, de modo que o sentido é este: o papa não tem, é verdade, qualquer poder sobre o purgatório, assim como nenhum outro bispo; mas se ele tem algum poder, certamente tem um poder de tal natureza, que também os inferiores dele participam. Ora, este é o poder pelo qual o papa e qualquer cristão podem interceder, orar, jejuar, etc. pelas almas falecidas - o papa de modo geral, o bispo de

IR7 Lutero ainda manteve par muito tempo esse juizo a respeito de LeBa X. Não via os males da Igreja na pessoa do papa, mas nas pessoas que o cercavam. Caractcrlstica para essa vi- são de Lutero é a carta que escreveu a Leão em novembro de 1520.

I X H Alexandre VI, alias, Rodrign Borja (1492-1503). foi elevado .3 dignidade cardinalicia e sa- grado bispo de Vaiência aos 26 anos. Aos 30 anos passou a viver maritalmente com Vanor- ,a <:atanci, com quem teve quatro filhos. Durante os anos de seu pontificado procurou be- iieficiar sua familia, especialmente sei1 filho Cesare, um dos maiores criminosos da história. ('cvarc foi feito cardeal em 1493, João, Jofré e Lucreda receberam por esposos pessoas da iii>lirc/;i ciiri7ptia. Teve seu pontificado perpassada por inúmeras guerras. que tiveram a fi- ii;ilid;iilc de anipliar a\ pi>sies de sua famllia.

I H L l 1'1'. Viiyi l io (Irr<>id,t Vl1.64H; V11,7.483). Mczêiicio é o adversário do herói de Virgilio; é o ,Icilllc/illllll ,i,,\ ill.,l*~\.

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iitodo particular, o cristão de modo individual. Por conseguinte, é evidente que a tese é verissima. Pois assim como o papa intercede pelas almas junto com toda a Igreja (o que acontece no dia de todas as almas), da mesma forma qualquer bispo pode fazê-lo com sua diocese (como acontece nos dias chama- dos comuns), o cura em sua paróquia (como acontece nas exéquias e aniver- sários) e qualquer cristão em sua devoção. Portanto, ou se nega que a oraqão pelos mortos é uma intercessão, ou se concede que qualquer prelado pode, com os que lhe estão sujeitos, orar pelas almas. Creio, pois, que isso não é tão dúbio quanto são audazes aquelas conversas acerca da jurisdição da Igre- ja sobre o purgatório.

Tese 26

Opapa faz muito bem ao dar remissão as almas não pelo poder das cha- ves (que ele não tem'%), mas por meio de intercessão.

Não creio que seja necessário declarar mais uma vez o que debato ou o que afirmo. Todavia, como em nosso tempo os inquisidores da depravação herética são tão zelosos que procuram obrigar com violência os católicos mais cristãos a se tornarem hereges, será oportuno dar uma explicação sobre cada sílaba. Pois não me é fácil ver que outra coisa fizeram João Pico de Mirândolalgl, Laurêncio Vallalgz, Pedro de Ravenal93, João Vesálial94 e, ulti- tiiamente, por estes dias, João Reuchlin e Jacó de Etaples'95 - que, contra a

1W Sc. para este fim. 191 1463-1494, filósofa, procurou, a partir de estudos feitos em Platão. ajustar o sistema deste

com o de Aristóteles, privilegiado pelos escolásticos. Com isso, pretendeu colocar a fiioso- fia antiga a serviso da fé crista. Aos 23 anos, em 1486, pretendeu realizar, em Roma, um grande debate, para o qual preparou 900 teses. Inocência VI11 declarou heréticas diversas de suar. sentenfas. Pico de Mirândola submeteu-se ao papa, escapando. assim, de canse- qllências piores.

192 1407-1457. humanista e tradutor de claásicos da Antiguidade. atacou a filosofia escoiástica e o clero. N é m disso, voltou-se contra o monacato e contra a doutrina medieval de que a vida monástica merecia dignidade especial. Seu ataque mais famoso está contido no escrito contra a "doação de Constantino", no qual demonstra a falsidade dos documentos surgi- dos na Idade Média e exige o fim do Estado pontificio.

IcJ3 1448-1518, jurista, lecionou em universidades italianas e, posteriormente, em Cireifswald/Pomerânia. Em 1503 leciona em Witlenberg. Desde 1506 está em Colônia, on- de se envolve com a inquisi~ão por criticar o costume alemâo de deixar os cadáveres dos en- forcados pendurados nos patibulos. Faleceu em Mogúncia.

l'J4 João Vesália, aliás, João Ruchrath (+ 1481), natural de Obeiwesel (Vesália), estudou Teo- logia em Erfurt. Posteriormente foi pregador em Mogúncia e Worms. Numa Disputotio od- verslis. indulgentios atacou a doutrina das indulgências; em outro debate atacou a autorida- ile papal. Levado aos tribunais da inquisifão, abjurou. mas foi mantido na masmorra até a SIIU morte.

5 Jncb de Etaples. aliás. Jacques Fabre, nascido por volta de 1450 em Etaples (Stapulensis), iehlogo e humanista. foi muito atacada pelos te6logos escalásticos de Paris e Lovaicia. Aprmiado por E T B S ~ O em virtiidc de seiis trabalhos exegélicos, morreu em Navarra, em 1516, oiide sc refugiara.

sua vontade e tendo uma boa opinião, foram obrigados a ter uma má opinião - senão que talvez tenham deixado de dar uma explicação sobre cada silada (como disse). Tamanha é, hoje em dia, a tirania de crianças e efeminados na Igreja. Assim pois, declaro mais uma vez que farei duas coisas nesta tese: pri- meiramente, debater a respeito do poder das chaves sobre o purgatório e pro- var a [opinião] negativa, até que alguém outro prove melhor a afirmativa; em segundo lugar, inquirir aquele modo da intercessão.

Provo o primeiro ponto da seguinte maneira: 1. Em primeiro lugar, através daquele difundido argumento do Ostiense,

a saber: se as chaves se estendessem até o purgatório, poderiam esvaziá-lo, e o papa seria cruel por não fazê-lo.

Eles refutam este argumento da seguinte forma: o papa pode, mas não deve esvaziá-lo, a menos que haja uma causa justa e razoável, para não agir inconsideradamente contra a justiça divina. Creio que eles dificilmente apre- sentariam esta solução fria e negligente a menos que não advertissem no que falam ou julgassem que falam entre bezerros marinhos profundamente ador- mecidos. Assim acontece que de um absurdo se seguem vários. E é como diz o ditado: para parecer verdade, uma mentira precisa de sete outras.

Assim sendo, o argumento dificilmente poderia ser reforçado com mais vigor do que através de tal refutação. Pois perguntamos: qual será enfim o nome dessa causa razoável? Ora, consta que se dão indulgências por causa de uma guerra contra os descrentes, de uma construção sacra ou de alguma ou- tra necessidade comum desta vida. No entanto, nenhuma dessas razões é tão importante, que o amor não seja incomparavelmente mais importante, mais justo e mais razoável. Se, pois, a justiça divina não é ofendida caso - para proteger os corpos dos fiéis e seus bens, ou por causa de construções inanima- das, ou por causa de um brevissimo uso desta vida corruptível - se remitem tantos quantos quiser (mesmo que se incluam todos neste número, de modo que, assim, o purgatório também seja esvaziado), quanto mais ela não é ofendida se, por causa do santo amor, são redimidos todos. A menos que, por acaso, a justiça divina seja tão iníqua, ou talvez melancólica, que seja mais favorável ao amor demonstrado para com o corpo e o dinheiro dos vi- ventes do que ao amor demonstrado para com as almas tão carentes, princi- palmente tendo em vista que socorrer as almas é uma coisa tão importante, que os fiéis devem preferir servir aos turcos e ser mortos corporalmente a que as almas não sejam redimidas. Se, pois, [o papa] redime um número infinito [de almas] e, talvez, por isso mesmo, todas, por causa daquilo que é menor, por que não também por causa daquilo que é o máximo, isto é, por causa do amor? Aqui, porém, quero aconselhar a eles, já que se meteram num aperto, que digam que não pode haver nenhuma causa razoável, para assim escapa- rem com segurança dessa objeção. Assim, se o papa pudesse no que diz res- peito a ele]%, contudo não pode no que diz respeito a causa, pois não pode haver tal causa.

1<J6 Ihto é. iio que diz respcilo a sua pcssaa

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2. O próprio estilo do papa, ao referir-se as penitências impostas, prova :i iiicsina coisa. E manifesto, entretanto, que ele dá tanto quanto expressa e i10 iriodo como expressa; assim como um bispo relaxa 40 dias das penitências iiiil>ostas, um cardeal 100 dias, da mesma forma o papa relaxa plenamente iodos os dias das mesmas penitências impostas. Todavia, nenhuma chave im- ~iiis penas do purgatório. Aqui, contudo, um belo sonhador'q' fabula o se- giiinte: quando o papa diz: "Damos indulgências de todos os pecados no qiie <l iL respeito a penitência imposta", isto deve ser entendido em relação a pena iiiiposta pelo sacerdote. Mas quando ele diz: "Damos indulgências de todos os pecados em relação aos quais houve contrição e confissão", então não são iciiiitidos os pecados esquecidos o11 ignorados. Quando, porém, diz: "Da- iiiils remissão de todos os pecados", então a alma sairia voando se a pessoa iiic~rresse. E assim está nas mãos do papa salvar quem ele quer. Que loucura! Vi? só com que segurança esse fanfarrão faz afirmações, como se anunciasse i i i i i oráculo. Se eu Lhe dissesse: eu te suplico, de onde provarei isso, se me iiioiidarem prestar contas dessa fé?, talvez ele invente outras, novas mentiras 11;ir;i firmar as primeiras grandes mentiras com mentiras maiores ainda. Infe- li/.cs dos cristãos, que são obrigados a ouvir todas as nugacidades que esses chtiipidos houveram por bem emitir, como se não tivéssemos a própria Escri- iiira que Cristo nos ordenou ensinar ao povo, para lhe darmos uma medida iIc trigo e não uma mistura de bardanas e tribulos. Entre outros portentos in- vciitados por esse amabilissimo autor, está também o de ousar persuadir-nos (11. qiie esteja nas mãos do papa remitir ou não remitir os pecados ignorados < r 1 1 esquecidos, como se toda a Igreja não soubesse que, após todo perdão da- i10 11clo papa, resta a todos os fiéis dizer: "Quem discerne as [próprias] faltas? i'iirifica-me das que são ocultas, Senhor" [SI 19.121, e que, com 50198, deve- iiios temer também em relação a nossas boas obras, para que iião se revelem roino horrendos pecados junto a Deus. Ora, a chave da Igreja não sabe nem iiilga sc as boas obras são más perante Deus ou não, e muito menos as remite. I:iii segundo lugar, o sonho dele procede da laboriosa e inútil arte de se con- lis\;ir - sim, de levar as almas ao desespero e á perdição - pela qual até ;ig<ii;i lomos ensinados a contar a areia, isto é, a examinar, juntar e ponderar 0 s l~ccados um a um para chegar a contrição. Ao fazermos isso, acontece i~iic, através da lembrança de coisas passadas, reavivamos as concupiscências c t i i i~dios e que, enquanto fazemos contrição pelos pecados, pecamos de no- vi , . Oii, se ocorre uma ótima contrição, por cesto ela é apenas violenta, triste I. iiii.i:iiiiciitc facticia, simulada tão-somente por medo das penas. E que as- ,.iiii sciiii«s ensinados a fazer contrição pelos pecados, isto é, a tentar o impos- ; i v i l oii o pior. Pois a verdadeira contrição deve partir da benignidade e dos I~ciiclicii~s de Deus, sobretudo das feridas de Cristo, para que a pessoa chegue 111 iiiiriraiiierite [ao reconhecimento de] sua ingratidão a partir da contempla-

ção da bondade de Deus e, a partir dela, ao ódio de si mesma e ao amor da benignidade de Deus. Então correrão lágrimas, e ela odiará a si mesma de co- ração, porém sem desespero. Então odiará o pecado, não por causa da pena, inas por causa da conteniplação da bondade de Deus. Tendo-a considerado, ela será preservada para que não desespere e para que odeie a si mesma ar- dentemente, mas com alegria. Quando assim houver verdadeira contrição por causa de um único pecado, haverá, ao mesmo tempo, verdadeira contri- cão por todos. Assiin diz Rm 2.4: "Ignoras que é a benignidade de Deus que te leva ao arrependiinento?" Oh! quantos o ignoram, santo Paulo, até os mestres de outros! Assim lemos em Numeros l~que os filhos de Israel nXo fo- ram libertos de siias serpentes abrasadoras contemplando-as e tendo horror delas, mas, antes, desviando o olhar delas e voltando-o para a serpente de bronze, isto é, Cristo. Da mesma forina, eles se aterrorizaram ao verem os egípcios, porém foram salvos quando lhes deram as costas e passaram pelo inarZM. Dcssc inodo, nossos pecados devem ser tratados mais no Cristo ferido do que em nossa consciêricia. Pois lá eles estão mortos; aqui, vivem. De outra maneira, se a tortura deles deve ser mantida, aconteceria que, se alguém fosse siibitaniente arrebatado pela morte, não poderia ser salvo, porque não tem tempo para coligir os pecados. Mas eles têm o que dizer neste caso.

Por isso se potlc dizcr acerca da invencionice daquele criador de ficções: em toda rcmissão do sumo pontifice, especialmente naquela que acontece pu- blicamente e perante a Igreja (como ocorre no caso das indulgências), deve ser subenteiidida essa cláusula a respeito das penitências impostas, sejam os pecados esquecidos, sejam ignorados. Pois estes não pertencem ao foro da Igreja.

Parece-me, no entanto, que esse mar de conversas surgiu de uma certa incúria no exame da origem das indulgências. Pois na época em que vigiam os cânones penitenciais. era uma grande coisa relaxar quatro dias; depois, co- meçaram a dar 100 dias, depois 1.000, por fim muitos milhares de dias e anos, até centenas e milhares de anos. Assim, paulatinamente, a liberalidade das indulgências se tornou cada vez maior. Depois disso se começou a remitir a sétima parte de todos os pecados, depois a terça parte, ultimamente a meta- de, e assim se chegoii a remissão plenária de todos os pecados, como ainda se pode ver muito bem nas estações da cidade de Roma. Se a penitência imposta é entendida com referência aos primeiros graus, ela certamente deve ser en- tendida também com referência a remissão plenária.

3 . [Prova-o] mais uma vez o estilo do papa, que diz: "Por meio de inter- cessão." Com efeito, é necessário que o meio da intercessão seja diferente do meio do poder. Se crermos no próprio papa (como, aliás, devemos) mais do que neles e em nós, fica claro que, em.relação ao purgatório, não é nenhum poder, mas a intercessão que é eficaz. E-me mais seguro concordar com o pa- 1x1 <I« qiic com aqueles. O papa não se arroga o poder, mas reivindica a inter-

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ccssão para si. Admira-me muito com que ousadia eles se atrevem a pregar, coiitra a expressa proibição do capitulo Cum ex eo, mais do que está contido rios escritos do papa, já que ai só está contido o meio da intercessão. Se en- iciidem assim que ele não tem poder de jurisdição sobre o purgatório, inas icrn o poder das chaves para aplicar intercessões ao purgatório, neste caso di- go também eu que ninguém nega isso: o poder de aplicar seja intercessões, se- ,j:i satisfações, seja louvores a Deus está absolutamente nas mãos do sumo d pontífice. No entanto, vou dizer na segunda parte desta tese se esse poder ~pcrtence de tal modo ao papa que não pertença também aos outros pontifi- ccs, como é dito na tese anterior, ou o que eu ainda não compreendo nesse iiiodo de aplicar. Neste meio-tempo, prossigamos coni a primeira parte.

4. Em quarto lugar, o mais forte de todos os argumentos é que Cristo diz, não com palavras ambiguas, mas com palavras claras, manifestas, rotun- das: "Tudo o que ligares na terra será ligado também nos céus; e o que desli- gares na terra será desligado também nos céus." [Mt 16.19.1 Não é em vão que ele acrescentou "na terra". Do contrário, se não tivesse querido restrin- gir o poder das chaves, teria sido suficiente dizer: "Tudo o que desligares será desligado." Portanto, ou Cristo, feito um tagarela, usa palavras supérfluas, oii o poder das chaves existe unicamente na terra. Mas aqui, ó bom Deus, qiião patente é a superstição de certas pessoas que, sem o conhecimento e a voritade do papa, querem, nestas palavras, dar-lhe um poder, enquanto que cle se apropria apenas da intercessão. E ao perceberem que essas palavras de (:risto lhes opõem forte resistência e refutam seu erro, elas não deixaram de defender o erro e não acomodaram sua compreensão as palavras incorruptas cle Cristo. Pelo contrário: acomodam as palavras dele a sua interpretação corrupta e as distorcem, dizendo: Aquela expressão "na terra" pode ser en- iciidida de duas maneiras: de uma maneira, dizendo respeito a quem desliga; clc outra maneira, dizendo respeito aquilo que deve ser desligado. Na primei- r;i riiaueira deve-se entender Cristo, a saber: "Tudo o que Pedro tiver desliga- do enquanto estava na terra, terá sido desligado também nos céus." Talvez elas queiram [dizer] que se ele também desligasse o diabo (desde que esteja na icrra na qualidade de quem desliga), este seria desligado no céu. Pois quem diz: "Tudo o que"mi e nada acrescenta para restringir [isso], certamente indica iluc tiido pode ser desligado. Não sei com que palavras invectivar essa gros- scira c imbecil superstição, sim, temeridade. Esse autor mereceria a cólera e a cloqiiência de um Jerônimo, para que fosse punida tão audaz violência e cor- i i ip~ão das santas palavras de Cristo. Estou deixando de lado a gramática qiic, incsmo sozinha, poderia ensinar-lhes que essa sua compreensão não po- de sirbsistir com essas palavras [de Cristo] (mas eles seguem mais as novas dia- ICiices do que a verdadeira gramática). Parece que a sabedoria dessas pessoas clicya ao ponto de saber que Cristo teria como que temido que algum dia Iioiivcssc iiin Pedro ou papa que, mesmo morto, quereria ligar e desligar, e qiic, por csla razão, lhe foi necessário prevenir tão insigne ambição e tirania

de pontifices mortos, proibindo-os de ligar ou desligar exceto enquanto esti- vessem vivos e na terra. E (para ridicularizar dignamente tão dignos intérpre- tes da Escritura) talvez não tenha sido sem razão que Cristo temeu que, al- gum dia, acontecesse que um pontifice morto ligasse alguma coisa e que seu sucessor vivo desligasse essa mesma coisa. Então haveria uma grande confu- são no céu, e Cristo, ansioso, não saberia qual desses dois ofícios confirmar, pois temerariamente teria confiado a ambos o mesmo ofício, sem acrescentar "na terra" para conter o pontifice morto. Se não é assim que eles compreen- dem, por que se agitam? Por que se esforçam por demonstrar que "na terra" diz respeito a quem desliga? Eis ai um opúsculo verdadeiramente áureo, de um áureo mestrem2, digno de áureas letras e, para que tudo seja áureo, a ser transmitido a áureos discipulos, a saber, aqueles a cujo respeito é dito: "Os ídolos das nações são ouro e prata; têm olhos e não vêem", etc. [Sl 135.15s.I Esses caminham em linha reta contra Cristo. Pois Cristo acrescentou "na ter- ra" para que o pontifice, que não pode estar senão na terra, não tenha a pre- sunção de ligar ou desligar o que não está na terra. É como se Cristo delibera- damente se antecipasse e se opusesse aos repugnantes aduladores de nosso tempo, que começam a entregar o reino dos mortos ao pontifice contra a vontade deste e a despeito de sua recusa. Por causa de seu fervor, S. Jerôni- mo chamaria essa gente de "teólogos", isto é, faladores de Deus203, mas da- quele deus que, em Virgilioz", inspira uma grande loucura a seus vates. Mes- mo assim, procedamos contra eles.

1. Se por essa compreensão as chaves desligam os mortos, então elas também ligam, porque em ambos os casos é acrescentado "na terra", quan- do ele diz: "Tudo o que ligares na terra." Portanto, também aqui precisamos distinguir com a mesma diligência e agudeza, entendendo "na terra" de duas maneiras: de uma maneira que diz respeito a quem liga, de outra que diz res- peito ao que deve ser ligado. Assim, eles têm de nos concluir que o pontífice pode ligar debaixo da terra no purgatório, só que temos de cuidar (certamen- te com a ajuda de médicos) para que o faça em vida e enquanto estiver na ter- ra, pois, uma vez morto, não pode ligar. Se a primeira parte das palavras de Cristo não admite essa distorção e violenta zombaria, como eles mesmos, por mais sem juizo que sejam, afirmam, com que cara se atrevem a fazer essa vio- lência á segunda parte, visto que é em tudo construida segundo o mesmo es- quema? A menos, talvez, que, a sua maneira, Ihes fosse permitido falar tudo univocamente e equivocamente, cometer anfibologias e paralogismos, como e onde Ihes aprouvesse. Por conseguinte, eles podem dizer que, na primeira par- te, "na terra" diz respeito ao que deveser ligado, mas, nasegunda, aquemdes- liga, já que, segundo seu louvável costume, também arrastaram monstruosida-

202 Trata-se de Henrique de Segusio, o Ostiense (v. p. 114, nola 175). 203 Deum loquen~es, no original. 204 As palavras mognum vofibur inspiro1 furorem (inspira uma grande loucura a seus vares)

provavelmente são imitacão de Eneido (Vl,llss.), na qual é dito do herói que procura a si- hila de Curnae:

»i<in'rtt,in rui i>zrnrrm ior~imtrrnque Il<,lirr,s i,i.spirur vol<:r uppril<lt'<- / U I I I ~ U .

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des ainda maiores para dentro das Sagradas Escrituras. Por isso, como todos negam que as chaves podem ligar no purgatório, é

necessário negar que elas podem desligar, pois esses dois poderes são iguais e dados por Cristo a sua Igreja deigual maneira. Dessa opinião são alguns juris- tas que não são dos piores; se são mais sensatos do queos demais, eles que o ve- jam.

2. Essa opinião também é refutada a partir de soa própria antítese. Pois assim como "nos céus" em todo caso se refere ao que deve ser desligado nos céus, da mesma forma é necessário que "na terra" se refira ao que deve ser desligado na terra. E, inversamente, "nos céus" se refere ao queé ligado, ra- zão pela qual também "na terra" deve referir-se ao que é ligado. Dai é que Cristo, como que deliberadamente, não disse: "Eu desligarei nos céus", mas: "Será desligado nos céus", para que, se alguérri, através da prirrieira palavra - a saber, "tudo o que desligares na terra" -, buscasse a fraude de uma fal- sa compreensão, fosse retundido no que se segue e não lhe fosse permitido aplicá-la ao que deve ser desiigado2o', pois o que é desligado nos céus certa- mente precisa ser compreendido como desligado na terra, rião em referência a quem desliga, e o que é ligado nos céus precisa ser compreendido não com re- ferência a quem liga, mas ao que é ligado na terra, ou, pelo menos, em rela- ção a ambos.

3. Se a chave se estende ao purgatório, por que se esforçam eles em vão? Por que não suprimem a palavra "intercessão"? Por que não persuadem o pontifice a dizer que desliga e liga por meio do poder e da autoridade e não por meio da intercessão? Com efeito, tudo o que ele desligar (ele apenas tem que tomar cuidado para não estar morto) será desligado. Por que nos impor- luna com a palavra "sufrágio"z", sob a qual ninguém entende um poder, mas todos entendem uma intercessão'? Sim, deveríamos fazer mais e pedir ao papa que faça o purgatório desaparecer completamente. Pois se as chaves da Igreja, ainda que apenas no que diz respeito ao desligar, se estendem até lá, todo o purgatório está em suas mãos. Provo isto da seguinte maneira: que ele dê remissão plenária a todos os que nelezo7 estão. Em segundo lugar, que dê, sciiielhantemente, a mesma remissão a todos os cristãos moribundos. Então será certo que ninguém permanecerá nele, que ninguém entrará nele, mas que iodos sairão voando e o purgatório deixará de existir. Mas ele deve fad-10, e Lpiira tal] existe uma causa justissima, a saber, o amor, que deve ser buscado 1ji1i- tudo, sobre tudo e em tudo. Não se deve temer que a justiça divina seja ofeiidida pelo amor, para o qual, antes, ela mesma nos urge. Quando isso ti- ver sido feito, abandonaremos todo o oficio dos mortos, hoje em dia muito iiiolcsio c iicgligenciado, e o transformaremos em ofícios festivos.

4. t1iii quarto e último lugar: se a pena do purgat6rio é castigadora e afli- iiva, coiiio dissemos acima na tese 5, então é certo que ela não pode ser desli-

i .,I,/ a ~ i v i ~ r i r l i i , , ~ , rio <iiigiiial. I'arece-rios quc se trata de iiiri lapso. Pela ibgica da argiioicrita- v;h! de I irlei<,, devcri;i cuil$t;ji ; i q i > i o~l.wlv<.nl<~,ri, "a qiiein desliga" (nota do ~ r a < l a l i , r ) .

2iUi ,S~,j/;.~tx;!!,r~, c>~!gin:hI, l'rn )pcbv~~tg<!C\, ' ' \ t t I ' r i g i < ~ ' ' ta<nl>C~n tcrn <ignil'ica$ilc) de o ~ ; i c f i < > I,CI<,\ ,,L<,,,<,\.

?I11 Sa.. r i t i ~ i i i i ~ ; i l i i i i < i .

gada pelo poder das chaves. Ora, creio que a partir da divisão suficientezoa fi- ca muito claro que ela não é outra.

Assim pois, está clara a primeira parte desta tese; com isso, está firmada com suficiente probabilidade toda a tese de que não é a jurisdição, mas a in- tercessão que entra rio purgatório.

Quanto ao segundo ponto, a saber, quanto ao modo da intercessão: em- bora eu não tenha proposto fazer uma investigação e, para minhas posições, não seja necessário saber qual ou de que natureza é esse modo, vou me expli- car voluntariamente neste assunto (que eu poderia, com justiça, omitir), para não parecer que esteja me escondendo em algum canto. [Faço-o, contudo,] sempre sob a ressalva de minha declaração de que não cabe a mim determinar qual seja esse modo, mas ao pontífice, sim, talvez a um concílio eclesiástico. O que me compete é inquirir e debater e, através de argumentos aduzidos, in- dicar o que compreendo e o que ainda não compreendo.

Portanto, a intercessão é aplicada as almas de duas maneiras: em primei- ro lugar, pelo próprio ato e através do oficio presente, como acontece quan- do o sacerdote ora coni o povo, jejua, sacrifica e faz outras obras nomeadas para almas nomeadas. Quanto a este sufrágio, não há qualquer dúvida de que ele muito aproveita e redime as almas segundo agradar a Deus e elas me- recerem, como diz o B. Agostinho. A respeito disto eu disse acima, na tese anterior, que o bispo tem em especial o poder que o papa tem em geral, a sa- ber, nao de jurisdição, mas de fazer intercessão em relação ao purgatório. Como é sabido, não é a respeito deste modo que se pergunta aqui.

Em segundo lugar, ela é aplicada sem oficio ou obra, sendo pronunciada por simples jurisdição, por escrito ou oralmente, e também isto a partir de dois tesouros:

O primeiro é o da Igreja triunfante, o qual é o mérito de Cristo e deseus santos, que juntaram muito mais mérito do que era de sua obrigação. Dizem eles que esse tesouro foi deixado na Igreja, para que aqui seja remunerado e compensado.

O segundo é o da Igreja militante, [e contém coisas] como os méritos, as boas obras dos cristãos vivos, que o sumo pontífice teria em suas mãos, para aplicá-las seja para a satisfação dos penitentes, seja para a intercessão pelos mortos, seja para o louvor e a glória de Deus. Pois assim também eu ensinei c escrevi uma vez que o papa tem em seu poder os méritos da Igreja militante de uma triplice maneira: em primeiro lugar, para oferecê-los a Deus para a satisfação de outros; em segundo, para a intercessão pelas almas; em tercei- ro, para o louvor de Deus. E creio firmemente que os bispos em suas diocescs têm essa faculdade espiritual, se é verdadeira. Ou, se erro, que me corrija quem puder. Do contrário, como subsistirão sem erro aquelas fraternidades lias quais tanto os prelados maiores quanto os menores comunicam uns aos oiitros seus es for~os e suas obras? O mesirio vale para os monastérios e or- deris. Iiospitais c paróquias. Pois isso não pode ser entcndido como vcrdadci-

~ ~.

208 Sc. l ~ c ~ > : t \ , l'cila iicin~a C , ~ I I I C X I ~ ~ 4;) I c w S .

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ro a menos que, desse modo, a obra de um satisfaça pelo outro, interceda e glorifique a Deus pelo outro.

Assim sendo, digo o seguinte: Embora eu absolutamente não entenda como esses méritos da Igreja mi-

liiante estão nas mãos do papa, neste meio-tempo vou crer nisso piamente, :itC que este nó seja desfeito por seu Górdio. Porém a razão pela qual não en- lendo é a seguinte:

1. Se ele oferece as obras dos vivos pelos vivos, não vejo como possa ser iiina remissão gratuita, e não, antes, uma verdadeira e justa satisfação e qui- iiição até o último centavo. Pois mesmo que a pessoa a quem é concedida a remissão não obre, outras pessoas obram e satisfazemzw. Então acontecerá o qiie todos negam com firmeza, isto é, que quem concede210 se onera com a sa- iisfação. E entáo na verdade o papa não remitiria, mas faria satisfação, a sa- hcr, por meio dos que lhe são sujeitos.

2. Assim as chaves da Igreja absolutamente nada fariam senão o que, i;irnbém sem as chaves, de fato já acontece na Igreja. Com efeito, conforme a Ici do amor, cada um deve orar pelo outro. E o apóstolo diz: "Carregai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo." [Gl 6.2.1

3 . O termo "indulgência" contradiz essa opinião, porque deve indulgen- cinr, isto é, remitir, de modo que não se faça o que se deve, mas não impor a outrem ou declarar como imposto; assim sendo, a indulgência extingue com- pletamente a divida, porém não a salda por meio de outrem. Por esta razão, parece, antes, que o poder das chaves por si mesmo, sem este tesouro, é sufi- ciciite para [conceder] indulgências, principalmente porque só é remitida a s:itisfação canônica, mas náo a evangélica. Ou então dever-se-ia dizer aqui, iiiais uma vez, o que foi dito acima acerca da remissão da culpa, isto é, que :issim ele também remite as penas por meio deste tesouro, ou seja, declara 4iic acontece aquilo que acontece também sem ele - a saber, que a Igreja faz s:iiisfação por aquele a quem é concedida a remissão. Desta forma diz o B. Agostinho que ninguém é ressuscitado senão quem a unidade da Igreja res- hiiscita, como, diz ele, está figurado na viúva"'. Mas ainda subsistem a pri- iiicii-a e a segunda razão, [a saber,] que então se trata antes de uma satisfa- <:\o do que de uma remissão, seja ela declarada, seja concedida.

4. Esse tesouro da Igreja militante opera mais a graça do Espírito do que :i rciiiissão das penas e parece ser tratado de forma muito barata se aplicado 1l;ii.a a remissão das penas, já que esta é o dom de menor valor na Igreja, po- (lrii<lo ser dado até aos impios e, ao que parece, tão-somente pelo poder das 1.I1:1ves.

b:iii segundo lugar, digo o seguinte: N3o entendo como ou o que acontece quando o papa aplica esse tesouro

ll: i i , i ;i iiiterccssão pelos mortos. A razão é a seguinte:

111<> s<.. I'," 'I". 110 Sc iliditlyêticki. !I I /~.'t,,,rr,~ti,, i,, ,,.Y~I/,~,, 145, i!,: M i ~ n c 1'1. 37,1897

1. Mais uma vez, ele parece não fazer mais do que de fato já acontece. Com efeito, toda a Igreja de fato ora e intercede pelos mortos, a não ser que, novamente, se pense aqui que ele o faz de modo declarativo. Também não ve- jo como poderia obstar aquilo que se diz a respeito da missa, a saber, que ela aproveita mais se é aplicada pelo sacerdote a uma única pessoa do que se é ce- lebrada para todos sem aplicação2'2. Confesso que tenho isto como verdadei-

I ro. O papa, porém, como sacerdote supremo e geral de todos, certamente não pode aplicar213 senão de um modo geral; mais ainda: deve fazê-lo, tam- bém sem cartas de indulgência.

I 2. Visto que por meio de indulgências só são remitidas penas canônicas,

I absolutamente não posso entender o que seria remitido as almas, já que os cânones não as obrigam. Por fim, na morte elas são absolvidas dessas penas,

I pois todo sacerdote é papa na hora da morte. Do mesmo modo, nenhuma al- ma sofre no purgatório por causa de crimes e pecados mortais, mas unica- mente por causa de pecados veniais, conforme dis. XXVc. Qualis214. Ora, os cânones não são impostos por pecados veniais, sim, [nem mesmo] por peca- dos mortais ocultos, mas tão-somente por crimes conhecidos, como foi dito acima. Portanto, quem puder que me diga como as indulgências - isto é, as remissões das penas - as ajudam, a menos que sejam concedidas não apenas indulgências, sim, que elas Ihes sejam dadas como que por cautela supera- bundante (como também os mortos costumam ser absolvidos perante a Igre- ja), envolvendo, ao mesmo tempo, além das indulgências, a aplicação dos méritos da Igreja. Então as indulgências certamente não se tornam uma inter- cessão, mas são dadas ás almas, juntamente com a intercessão, como um se- gundo presente, isto é, declara-se que elas são dadas, ou são aplicadas.

Em terceiro lugar, digo o seguinte: Sobre o tesouro dos méritos de Cristo e dos santos, aplicado para a re-

missão das penas, falarei abaixo na tese 58. Vês, pois, quão obscuras e dúbias e, por isso, perigosas de ensinar são todas essas coisas. Digo e vejo apenas es- ta uma coisa: nas Clementinas, depe. et re. c. Abusionibm2IJ, O papa parece condenar essa opinião de que as almas seriam redimidas pelas indulgências, ao dizer: "Livram as almas do purgatório, como afirmam mentirosamente." Ali a glosa sobre o termo "mentirosamente" diz: "Porque estão reservadas para o juizo de Deus", alegando, para isto, a distinctio XXV, capitulo Qua- lis. Ela certamente me parece correta. Com efeito, se são redimidas através de intercessão, não se segue de qualquer maneira que elas saem voando imedia- tamente, porque interceder e redimir ou libertar não são a mesma coisa. Por- tanto, eu tenho tanto discernimento que vejo que as indulgências e a interces-

212 Sc. a uma única alma. 213 Sc. a tesouro. 214 Parte I, dislinrlio XXV, capítulo 4 do Decretum Grotioni, a primeira parte do Corpur iuris

rnnonio. 215 Trata-se de uma consiitui~ãa de Clemente V, promulgada no Concílio de Vienne. A refe-

riiicia completa é: Clemenrispopae V, constilutiones. livro V. titulo IX, capitulo 2, i": <hrpu.s iuris cononici. v . 2, cols. 1 I W - I .

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s2o através dos méritos da Igreja são duas coisas muitíssimo diferentes; uma pode ser dada com ou sem a outra. Para as indulgências é suficiente só o po- der das chaves, sem o acréscimo daquele tesouro, que, porém, pode ser acres- centado ou dado sozinho. Dado sozinho, ele torna participante dos bens216, L.omo foi suficientemente dito acima. Se isso fosse certo e verdadeiro, seguir- sc-ia que as indulgências, enquanto tais, absolutamente nada aproveitariam As almas, exceto que seriam absolvidas perante a Igreja, isto é, declarar-se-ia (alie estão absolvidas. Ou, se aproveitassem, isso não aconteceria por sua pró- liria virtude, mas por uma dádiva a elas ajuntada, a saber, a dos méritos da Igreja. Esta dádiva, por sua vez, deve ser distinguida da aplicação geral, atra- vcs da qual a Igreja, por eles"', de fato ajuda as almas sem a aplicação do pa- pa; e deve-se ver que valor ela tem. Mas o labor da inquirição deve ser deixa- do também a outros que ainda não cansaram do esforço dispendido em tão grandes questões dúbias.

Agora se objeta o seguinte: 1. E muito divulgado que certo mestre em Paris"8 sustentou em seu de-

bate que o sumo pontifice tem poder sobre o purgatório; que o pontifice, ten- do tomado conhecimento disso e tendo morrido o mestre, lhe deu a remissão por ele defendida e, assim, como que a recomendou.

Respondo: em nada me importa o que agrada ou desagrada ao sumo pontifice. Ele é um ser humano assim como os demais. Houve muitos sumos pontífices aos quais agradaram não só erros e vícios, mas também coisas iiionstruosas. Eu ouço ao papa como papa, isto é, como fala nos cânones e fala segundo os cânones ou determina com um concílio, porém não quando rlc fala segundo sua cabeça, para que eu não seja porventura obrigado a di- zer, com certas pessoas que conhecem mal a Cristo, que os horrendos massa- cres de Júlio 11219 contra o povo cristão foram benefícios prestados ás ovelhas tlc Cristo por um fiel pastor.

2. No livro IV. distinctio XX. o B. Boaventura diz aue não se deve re- sistir de modo importuno se alguém afirmar que o papaiem poder sobre o piirgatório.

Respondo: em primeiro lugar, a autoridade de S. Boaventura não é sufi- ciciitc neste assunto. Em segundo lugar: quando o papa tiver afirmado isso, ti30 sc deverá resistir. Em terceiro lugar, Boaventura diz corretamente, pois iicrcsccnta, explicando a si mesmo: "Contanto que isso esteja estabelecido por uma passagem manifesta da Escritura ou por um ditame racional". Acoiilece que até agora essa abonação manifesta ainda não existe.

Nestc ponto, entretanto, se objeta o seguinte:

> I 7 Sr. pcloh iiiériior. LIH r: ~><issivel iliie 1.iitero estcja se rcfcriiiilu ao franciscaiio Joã<i dc Kihrica, !ia Cpoca dircliir

c l i i c\col:i iI;i Or<leiii I 'r~aiiciscaiia eni Paris. J<ião de I'ál>rica afirinou quc o palia i120 si1 ci>li-

irili;i iiirliiluCtici;i t i o s iiiiiiios lpin inicio de siia i ~ i l e ~ c i ~ s ã r ~ . iiiiis 1;iirilié~ri t i icrrê di> ~>ii<lei dr

1. Diz-se que Sixto IV teria determinado que aquele modo da intercessão em nada diminui a plenitude das indulgências.

Respondo: 1. Se alguém quisesse ser pertinaz, diria: Provai o que dizeis, santo Pai; principalmente porque não compete ao papa sozinho estabelecer novos artigos de fé, e sim julgar e resolver questões de fé segundo os já esta- belecidos. Este, contudo, seria um artigo novo. Por esta razão, sua determi- nação caberia a um concilio universal, muito mais do que a concepção da B. Virgem, sobretudo porque, neste caso, não há qualquer perigo para as almas, ao passo que naquele caso há muito e grande perigo. De outro modo, como o papa é um [único] ser humano, que pode errar em questões de fé e de costu- mes, a fé de toda a Igreja estaria constantemente em perigo se fosse necessá- rio crer que é verdade qualquer coisa que aprouvesse ao papa.

2. Mesmo que o papa, juntamente com grande parte da Igreja, fosse des- ta ou daquela opinião e não estivesse errado, ainda não seria pecado ou here- sia ser de opinião contrária, sobretudo numa coisa não necessária para a sal- vação, até que um concilio universal tivesse rejeitado uma delas e aprovado a outra. Isto, para não discutir muito, é provado por um único fato: a Igreja Romana, juntamente com o Concilio universal de Basiléia e com quase toda a Igreja, julga que a B. Virgem foi concebida sem pecado. Não obstante, como a outra parte não foi rejeitada, não são hereges os que pensam o contrário2:Q.

3. Digo que ainda não vi aquela determinação de Sixto. No entanto, vi a determinação de que as indulgências são dadas aos mortos pelo modo da in- tercessão. Disto não se segue ainda que as almas ás quais é dado esse modo saiam voando.

4. Não posso ser intérprete de uma palavra alheia, muito menos do sumo pontifice. Por isso, até que ele interprete a si mesmo, vamos opinar, defen- dendo, por causa da honra, tal dito incógnito. Este pode ser entendido de duas maneiras. A primeira é: o modo da intercessão não diminui a plenitude da indulgência, isto é, embora as indulgências sejam ai dadas não pelo modo da indulgência, mas pelo modo da intercessão, através de tal sufrágio e inter- cessão acontece, não obstante, que as almas para as quais ela tiver sido feita realmente saem voando. Assim, elas o fazem não através de desligamento, e sim de intercessão. Não sustento esta opinião, mas eles crêem que o dito tem este significado. A segunda é: o modo da intercessão não diminui a plenitude das indulgências, isto é: a aplicação das indulgências pelo modo da interces- são permite que elas sejam o que são, a saber, indulgências plenas, e não abo- le o que elas são por sua natureza, só que não agem como indulgências, e sim como intercessão. Esta opinião eu admito e acrescento: se essa aplicação in- tercessória em nada diminui as indulgências, muito menos as aumenta em qualquer coisa. Disso se segue que as almas não saem voando por esse modo.

220 Sixto IV (1471-1484) procmou favorecer a doutrina da imaculada conceição de Maria, p. ex., através da introdução de um oficio especial em 8 de dezembro. Ele, que era francisca- no, foi assim de encontro à piedade de sua ordem. No entanto, não ousou tomar uma deci- s8o contrária a opinião da Ordem Dominicana, que nâo seguia o posicionamento francisca- no. I 'c i i isso. proibiu ambos as partidos de declararem heretica a opinião dos adversários.

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I ( i. isto o que também as palavras expressam, pois ele não diz: "Esse modo 110 sufrágio redime plenamente as almas", mas: "não diminui a plenitude das iiidulgências". Isto quer dizer que as indulgências, ainda que plenas, fazem t;iiito quanto pode fazer a intercessão, não mais.

Mais uma vez se objeta: A fórmula de absolvição apostólica reza: "Remitindo-te as penas do

piirgatório, tanto quanto se estendem as chaves da santa mãe Igreja." E esta IGrmula é observada pelos penitenciários do papa, também em Roma.

Respondo: 1. Este argumento é despropositado, porque esta é uma fór- iiiiila de absolvição dos vivos e dos moribundos, mas não uma fórmula de ;iplicação de indulgências para os já mortos.

2. Entretanto, por causa da busca daverdade, digo que, como essas pa- lavras são formuladas de maneira dúbia e obscura, não pode errar na fé quem for de opinião contrária ao que eles acreditam que elas significam. Pois por que a fórmula é tão tímida? Por que diz, como que duvidando: "Tanto quanto se estendem as chaves"? Esta cauda trêmula me é suspeita. Não sou obrigado a crer firmemente o que ele mesmo não ousa pronunciar com firme- /.a. Por que acrescenta "tanto quanto se estendem as chaves" somente aqui e ciii nenhuma outra parte? Acaso ainda não vemos quão vigilante é Cristo em siia Igreja, ao ponto de não permitir que errem nem mesmo os que querem er- i.;ir'! Oxalá nós mesmos não nos precipitássemos no erro por negligenciarmos sua advertência!

3. Em terceiro lugar, digo o mesmo que antes: mesmo que o papa, junta- iiicnte com seus penitenciários, não errasse aqui, não é por causa disso que sX« hereges os que negam sua concepção ou nela não crêem, até que, por de- cisão de um concilio universal, uma das duas partes seja definida ou reprova- dii. Pois do mesmo modo. embora tenham adornado com induleências a fes- - I:, da concepção"l como uma questão de fé decidida, não condenam ou ligam tis pessoas que não procuram o desligamento proporcionado por tais indul- ~Ciicias. Assim, por mais indulgências que sejam dadas, não é necessário ter aquela fórmula por verdadeira, até que a Igreja o estabeleça. E vês novamen- ic qiião grande é a necessidade de um concilio legitimo e universal. Temo, i:oiitudo, que nosso tempo não seja digno de que nos seja dado tal concilio, iii~is, antes, que sejamos enganados através de operações de errou', assim co- iiio fizemos por merecer.

Tese 27

l ' r ~ ~ a m doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda I(in(~u(Ju nu caixa, a alma sairá voandoz*3.

2 x 1 Sc. iIc Mariu ( f l de derernbro). 127. ( ' I ' . 2 'I's 2.1 I. 211 <'I'. 11. 24. iiutn 13.

Pregam doutrina humana, isto é, vaidade e mentiras, segundo aquele di- to: "Todo ser humano é mentiroso" [SI 116.111; e mais uma vez: "Todo ser humano vivo é vaidade." [SI 39.5.1 Em minha opinião, esta proposição não necessita de prova. Contudo, ela é provada pela tese seguinte, pois a interces- são da Igreja é eficaz conforme a vontade de Deus e o mérito da alma. Por is- so, mesmo que fosse verdadeira a opinião deles de que elas224são proveitosas pelo modo da intercessão, não se segue que saem225 voando imediatamente.

1. Não é a intercessão que liberta, mas o atendimento e a acolhida da in- tercessão, pois elas são libertadas não pela oração da Igreja, mas pela obra de Deus.

2. Por natureza Deus age de tal forma que ouve depressa, porém tarda em dar, como se evidencia nas orações e doutrinas de todos os santos, para pôr a prova sua perseverança. Por isso, há umagrande distância entre a inter- cessão e seu atendimento e cumprimento.

3 . Isto mesmo é dito de um modo novo, sem qualquer abonação, contra a proibição do cânone de que não deve ser dito nada além do que está contido nas cartasz26. Por conseguinte, eles não falam o que é de Deus e da Igreja, isto é, a verdade, mas suas próprias [idéias], isto é, mentiras.

4. Nâo há diferença entre quem fala algo falso cientemente e quem afir- ma ser certo o que não sabe ser certo. Pois assim também quem diz a verdade mente as vezei. Ora, eles sabem que as coisas agora ditas Ihes são incertas; ainda assim, asseguram que são certas, como se fossem evangelhos. Com efeito, não podem provar que são certas por nenhuma passagem da Escritura ou argumento racional.

5. Então a intercessão seria melhor para o serviço de outrem - e ainda por acidente - do que para seu próprio serviço, porque não aproveita tanto a quem a faz quanto ao outro por quem é feita; sim, isto é peripatético, razão pela qual passo por cima disso, principalmente tendo em vista que eles ousa- ram admitir que a intercessão não aproveita a quem a faz, mas a alma [pela qual é feita], etc. Também eu poderia ridicularizar e zombar destas fábulas, assim como eles zombam da verdade por meio delas, mas desisto, para não parecer que proponho mais um dogma do que um problema.

Tese 28

Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, podem aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da Igreja") porém, depende apenas da vontade de Deus.

224 Sc. ;as indiilpências. 225 Sc. ar ~ I i t t a s . 220 1i:i i; i-se d;is iiislritç6es dadas aos comissários de indulgéncias. 227 I h i u C, < t u ;iccil;t$ac~.

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É estranho que eles não pregam o salubérrimo Evangelho de Cristo com tarito esforço e berreiro. O que torna o negócio suspeito é o fato de que pare- ccrn apreciar mais o lucro do que a piedade, a menos que porventura possam ser desculpados justissimamente pelo fato de ignorarem o Evangelho de Cris- to. Portanto, como as indulgências não têm piedade, nem mérito, nem man- damento, mas apenas uma certa licença, mesmo que a obra pela qual são compradas seja piedosa, em verdade parece que, por elas, se aumenta mais o Iiicro do que a piedade, sendo tratadas tão amplamente e sozinhas, que o livangelho, como algo mais vil, dificilmente é recitado.

1. Provo [esta tese], em primeiro lugar, porque a intercessão da Igreja não é da jurisdição do papa e também não está nas mãos dele no que se refere 3. sua aceitação por Deus, mas tão-somente no que se refere ao seu ofereci- iiiento, ainda que fique de pé a opinião deles quanto á redenção das almas por meio da intercessão.

2. Estaria errada a propalada opinião do B. Agostinho>" de que as inter- cessões só aproveitam as pessoas que mereceram que elas Ihes aproveitassem, pois é pelo poder do papa, e não pelo mérito da alma, que aproveitariam a quem qper que aproveitassem.

3. E contra a natureza e o sentido do vocábulo [dizer] que esteja no po- der do papa redimir por meio de intercessão: por mais excelente que seja uma obra, se transformada em intercessão, ela opera não como obra, mas como iritercessão. Antes, é o atendimento da intercessão que redime. Portanto, ou clcs falam da própria coisa com outros nomes - e neste caso logram de mo- do pior ainda -, ou, se falam de sua causa com o vocábulo próprio, sua opi- iiirlo não fica de pé, já que o termo "intercessão" é incompatível com o signi- ficado e a compreensão de "poder".

4. Então não haveria absolutamente nenhuma diferença entre interces- são e poder exceto no termo; na realidade eles seriam a mesma coisa, uma vez cliie efetuam a mesma coisa sem qualquer outro requisito além da vontade do popa. Por que, então, não se deixa de falar em intercessão e de nos obrigar a ciitcnder sob "intercessão" outra coisa do que sob "poder"?

Declaro aqui mais uma vez, prezado leitor, que falo acerca dessa inter- cessão como se ela verdadeiramente existisse. Pois já disse minha opinião aci- I I IR : duvido e não entendo se existe ou pode existir tal intercessão. Digo isso ptira que ninguém imagine que contradigo a mim mesmo, como que afirman- i10 aqui a intercessão que quase neguei anteriormente.

Tese 29

1:'rluem é que sabe se todas as almas querem ser resgatadas do purgató- rio? L>iz-se que este não foi o caso com S. Severino e S. Pascoal2".

Não li um escrito fidedigno a respeito dos dois, porém ouvi contar que eles poderiam ter sido libertos por seus méritos, se tivessem querido ser glori- ficados em grau menor. Por isso, preferiram suportar a diminuir a glória da visão'". Mas nessas coisas cada um creia o que quiser, para mim tanto faz. Pois não neguei que as almas no purgatório pagam também outras penas do que as acima mencionadas. Eu quis, isto sim, [dizer] que, mesmo que essas penas fossem remitidas, elas não sairiam voando se também não fossem per- feitamente curadas na graça. Entretanto, poderia acontecer que, por excessi- vo amor a Deus, algumas não quisessem ser redimidas. A partir disso se torna verossímil que Paulo e Moisés puderam querer ser anátema e separados de Deus para sempre"" Se estes estavam dispostos a fazer isso em vida, parece que não se deve negar que a mesma coisa possa ser feita por mortos. A respei- to disso se encontra, nos sermões de Tauler, o exemplo de uma virgem que as- sim procedeu.

Tese 30

Ninguém tem certeza da veracidade de sua contrição, muito menos de haver conseguido plena remissüo.

Digo isto segundo a opinião daqueles que querem que a contrição seja necessária para a remissão das penas e não vêem quão muitíssimo incertas tornam todas as coisas. A tese é suficientemente evidente, pois todos defen- dem a primeira parte; ora, a segunda segue-se necessariamente. No entanto, em minha opinião pode haver uma certa remissão das penas - a saber, das canônicas -, mesmo que alguém não fosse digno nem estivesse contrito. Não é a contrição, muito menos a certeza da contrição, que é exigida para a remis- são das penas, porque a remissão subsiste mesmo que seja concedida a penas imaginadas, visto estar unicamente no poder do papa. Contudo, se eles - co- mo também foi dito acima - querem que sejam remitidas outras penas do que [as impostas por] crimes - a saber, [por] quaisquer pecados mortais -, então, magnificando excessivamente as indulgências, fazem com que elas se- jam nulas. Pois, se são incertas, as indulgências não são indulgências. Porém elas são incertas se se apóiam sobre a consciência da pessoa a ser absolvida, não sobre o poder das chaves, mas principalmente se se apóiam também so- bre a contrição por todos os pecados mortais, e não apenas pelos crimes ma- nifestos, já que ninguém está certo de estar sem pecado mortal. Mas a pessoa pode estar certa de estar sem crimes, isto é, sem um pecado pelo qual possa ser acusada perante a Igreja, como dissemos acima. Por isso, nego que essa tese seja verdadeira, se falo de acordo com minha maneira de pensar. Toda- via, eu a propus para que eles vejam a absurdidade de sua jactância, com a qual engrandecem as indulgências.

228 I<r,,ii.hlrirli,in «d I.<iurenlium, capltulo 110. in: Migne 1'1. 40.283 LZ'I ('i. 1,. 2s. i i o ~ i i 15.

230 Sc. he;itil'ic;i. 231 ('I'. Kii i 9 .3; f;x 32.32

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Tese 31

Tüo raro como quem é penitente de verdade é quem adquire autentica- ttrerrte as indulgências, ou seja, é rarissimo.

Falo novamente segundo o modo de pensar deles, para que vejam a t e - iiicridade, sim, a contradição de sua pregação licenciosa. Enquanto clamam qiic as indulgências aproveitam a tantas pessoas e, não obstante, confessam qiic são poucas as que trilham o caminho estreito, eles nem mesmo enrubes- ccin e não prestam atenção no que falam. Mas não admira. É que eles não as- hiiiiiiram o oficio de ensinar a contrição e o caminho estreito. Assim pois, di- co riiinha opinião: embora poucos sejam contritos, muitos, sim, todoi em to- cIn a Igreja poderiam estar livres das penas dos cânones através da abolição (10s cânones - como, aliás, agora em verdade estão.

Tese 32

Serão condenados em eternidade, juntamente com seus mestres, aqueles .se julgam seguros de sua salvaçáo através de carta de indulgência.

Esta tese eu mantenho e demonstro: Assim diz Jr 17.5: "Maldito é quem deposita sua esperança no ser huma-

tio e considera a carne como seu braço." Pois não temos qualquer confiança dc salvação senão unicamente Jesus Cristo, e "abaixo do céu não é dado ne- iiliuin outro nome pelo que1 importa que sejamos salvos", At 152s2. Fora, 1x)r1aiito, com a confiança em cartas mortas, no nome "indulgências", no iioiiic "intercessão"! Em segundo lugar, como disse, as cartas e indulgências ii:ida conferem de salvação. Elas apenas removem as penas, e tão-somente as c;iiii>iiicas, e nem mesmo todas as canônicas. Oxalá aqui a terra e toda a sua ~>lciii!tide gemessem comigo e chorassem por causa da sedução do povo cris- 1:io qiie, em toda parte, não entende as indulgências de outra forma senão co- iiio sciido salutares e úteis para o fruto do Espírito! Também iião admira, já iiiic n verdade manifesta da coisa não lhe é exposta. Infelizes dos cristãos, ~ ~ i i i ' , rio que diz respeito a salvação, não podem confiar nem em seus méritos iiriii crri sua boa consciência! Ensinam-lhes a confiar num papel escrito e en- cri:ido. Por que eu não haveria de falar nesses termos? O que mais e dado ali, 1)cigiiiilo eu? Não é contrição, não é fé, não é graça, mas tão-somente [a re- iiiiss3o de] penas do ser humano externo, estabelecidas pelos cânoues. E para ili&:rcssionar iim pouco: eu mesmo ouvi muitas pessoas que, tendo dado di- iiliciro c comprado cartas, nelas colocaram toda a sua confiança. Pois ou elas :iuiiii oiivirarii (como diziam) ou (como creio por causa da honra) entendc- i ; i i i i qiic os pregadores de indulgências assim ensiiiam. Não estou censiirando

[ninguém] aqui, assim como também não devo, já que não ouvi pregadores de indulgências. Por mim, eles que se desculpem até ficarem mais brancos do que a neve. O certo é que devem ser redargüidos os ouvidos do povo, que es- tão tão sujos, que ele ouve tão-somente coisas pestíferas quando eles dizem coisas salutares. Por exemplo: quando eles dizem: "Antes de mais nada, ir- mãos, crede e confiai em Cristo e fazei penitência, carregai sua cruz, segui a Cristo, mortificai vossos membros, aprendei a não temer as penas e a morte. Antes de mais nada, tende amor mútuo entre vós, servi uns aos outros tam- bém não fazendo caso das indulgências, auxiliai em primeiro lugar os pobres e doentes." Quando, digo, eles dizem essas coisas, bem como coisas seme- lhantes, tão piedosas, religiosas e santas, o povo insipiente, subvertido atra- vés de um novo milagre, ouve coisas bem diferentes2";a saber: "Ó seres hu- manos insensatos e grosseiros, quase semelhantes aos animais, que não com- preendeis tão grande efusão de graças! Eis que agora o céu está aberto de to- dos os lados! Se não entrares agora, quando é que alguma vez vais entrar? Vede, podeis redimir tantas almas! O gente dura, dura e negligente! Por 12 denários podes fazer teu pai sair, e és tão ingrato que não socorres teu pai em tão grandes penas? No juizo final eu certamente serei excnsado, mas vós se- reis mais acusados por haverdes desdenhado tão grande salvação. Digo-te: se tivesses uma única túnica, acho que deverias tirá-la e vendê-la para obter tão grandes graças." Mas quando se chega aos que falam contra a graça234 (ao passo que aqueles até transbordam puras bênçãos), o povo fica apavorado, com medo de que o céu vai desabar e a terra se fender, e ouve que está amea- çado por penas muito piores do que as do inferno, de modo que talvez seja verdade que, quando aqueles maldizem, Deus bendiz através das maldições deles, e quando eles bendizem, Deus amaldiçoa. Pois de que outra forma po- deria acontecer que eles dizem coisas tão diferentes das que o povo ouve? Quem é que pode entender? De onde, pergunto eu, vêm essas palavras- fantasma? Mas não creio em tudo o que o povo diz ter ouvido aqui e ali. Do contrário, eu consideraria heréticas, impias e blasfemas as coisas que eles pre- gam. Não creio que é verdade que um deles proibiu que acontecessem as exé- quias dos defuntos e o convite dos sacerdotes2", [ordenando] que quem que- ria que fossem realizadas exéquias, missas e cerimônias em memória dos mortos deveria, antes, depositar236 na caixa. O povo também inventa essas coisas. Não creio naquela fábula cheia de mentiras contada por alguém, di- zendo que em certo lugar não sei quantas mil (se bem me lembro, três ou cin- co mil) almas foram redimidas por meio dessas indulgências, dentre as quais só três foram condenadas porque detraíram as indulgências. Ninguém disse isso, mas, enquanto eles falavam sobre a paixão de Cristo, o povo ouviu tais coisas ou, depois, imaginou que as ouviu. Não creio que é verdade que, aqui

-~ ~

233 Temos aqui o auge da polêmica de Lurero contra Tetrei, o qual é atacado com grandes do- ses de ironia.

234 Sc. das indiilgências. 235 Sc. ,>;ira a* crkquias. 21íi Sc. iliiiliciro.

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c :!li, eles dão aos cocheiros, ou aos hospedeiros, ou a outras pessoas que os serviram, quatro, cinco almas ou quantas quiseram, em lugar do pagamento. Não creio que, nos púlpitos, depois de terem espumejado, com impetuosos gritos, suas exortações de que o povo deposite, tenham clamado: "Deposita! I)cposita! Deposita!" (pois o povo imagina que esta palavra seja a cabeça e a i:;uida, sim, também o ventre e quase todo o sermão); então, para que os pre- gadores apostólicos não ensinem a coisa apenas com palavras, mas com o cxeinplo, descem e, como os primeiros, vão até a caixa perante os olhos de to- dos, estimulando e provocando o povo simples e estulto, para sugar comple- tamente sua medula, depositam, assim, com gesto esplêndido e tinido sono- ro, e então se admiram se todos os outros não fazem chover todo o seu di- nheiro, sorriem para os que depositam e se indignam com os que não o fa- 'em. Eu não digo que isso seja um mercado de almas e um monopólio. Iiidigno-me com o povo que, por causa de sua rudeza, não interpreta tão pie- closos esforços como aparência2'1, mas como avareza que chega ao ponto da I»ucura. Todavia, parece-me que talvez mereça ser desculpado o povo que ;&prende desses novos espiritos ou uma nova concepção ou um erro, já que outrora estava acostumado a ouvir mais o que diz respeito ao amor e à humil- dade. Mas se eu quisesse confeccionar um catálogo de todas as monstruosida- des ouvidas, seria necessário um novo volume. Creio, porém, em minha opi- iiião, que ainda que as indulgências fossem ordenadas e salutares, não obs- tnnte, como agora se tornam um abuso e escândalo tão grande, só isto já se- ria uma razão suficientemente justa para aboli-las todas, para não acontecer 1;ilver que, se se permitir que elas vigorem por mais tempo, por fim seus pre- goeiros fiquem loucos por causa do amor ao dinheiro. Eu realmente creio que iicrri tudo o que se conta por ai tenha sido dito por eles, mas ao menos deve- riam recriminar o povo quanto a essas coisas e se expressar com maior clare- <a, ou então, o que é melhor ainda, falar modestamente das indulgências, de :ic»rdo com os cânones.

Tese 33

Ileve-se ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indu%ências (111 pirpa aquela inestimável dádiva de Deus através da qual a pessoa é recon- <.iliu(lu com Deus.

liii deveria chamá-los de hereges pestilentos. Com efeito, o que é mais iiiipio e herético do que dizer que as indulgências do papa são a graça da re- ~.i)iiciliacão com Deus? No entanto, para reprimir minha cólera, quero crer, :iiiics, qiic eles tenham dito ou proposto tais coisas não por malicia ou delibe- I :i~l;iiiieiite, e sim por mera ignorância e falta de erudição e inteligência. Mes- rcio :issiin, também existe temeridade no fato de, como gente tão indouta, eles

não terem feito, antes, o trabalho de um boieiro, ao invés de assumirem a ta- refa de ensinar as almas de Cristo. Ouçam, pois, esse boieiro grunhir suas pa- lavras. Assim diz em seu livreco238, depois de dividir as indulgências em qua- tro graças principais e em muitas outras menos principais: "A primeira graça principal é a remissão plenária de todos os pecados. Não se pode mencionar nada que seja maior do que esta graça, porque, por ela, o ser humano peca- dor e priyado da graça divina alcança perfeita remissão e, de novo, a graça de Deus." E o que ele diz. Eu pergunto: que sentina de hereges alguma vez falou coisa tão herética? Já a partir desta passagem pode-se aprender por que acon- tece que o povo ouve coisas tão impias, embora eles digam que ensinam coi- sas santíssimas. Oxalá aqui estivessem o zelo e a eloqüência do divino Jerôni- mo! Causa-me vergonha uma temeridade tão grande, que esse tagarela não teve receio de publicar esse livreco em face de quatro ilustres universidades circunjacentes, como se os gênios lá existentes tivessem sido completamente transformados em fétidos cogumelos. Aflige-me o fato de que também nos- sos vizinhos hereges, os begardos, finalmente teriam uma oportunidade para acusar com razão a Igreja Romana, se ouvissem que tais coisas são nela ensi- nadas. Mas que esse imbecil autor talvez tenha dito isso não por malicia, e sim por ignorância, pode-se ver a partir do fato de dizer que "por ela (isto é, a primeira graça, a remissão plenária), o ser humano alcança perfeita remis- são". O que quer dizer isto: "Pela remissão plenária ele alcança remissão ple- nária, e pela graça de Deus alcança a graça de Deus"? Acaso ele não sonha por uma febre ou sofre de um delirio? Mas volta a atenção para o sentido he- rético. Ele quer [dizer], quanto a essa primeira graça, que não pode ser men- cionado nada maior do que ela e que o ser humano privado da graça a obtém. Está claro que isso não pode ser entendido senão a respeito da graça justifi- cante do Espírito e que ele mesmo não o entende de outra forma. Do contrá- rio ela não seria aquilo em relação ao qual nada maior pode ser mencionado. Aliás, mesmo que falasse outras coisas sobre a graça justificante, ele falaria de maneira suficientemente impia, pois só Deus é aquilo em relação ao qual não se pode mencionar coisa maior. Com efeito, o B. Agostinho não [fala] assim como ele, mas diz que entre as dádivas criadas nada é maior do que o amor"Y. Aqui, porém, ele mistura a graça de Deus e a graça do papa no caos de uma só palavra, como autor digno de tal opinião ou de tal erro.

Segue-se no mesmo livro: "Por essa remissão dos pecados também lhe são plenamente remitidas as penas a serem pagas no purgatório por causa de ofensa a divina majestade, e as penas de dito purgatório são completamente apagadas." Ouvimos um oráculo de Delfos: quem tudo ignora, absoluta- mente de nada duvida. Ele se pronuncia tranqüilamente acerca do poder das chaves sobre o purgatório. Mas já dissemos o suficiente sobre isso acima.

L17 Sc. <Ir i i v z i i o i i . 2x8 Iiilcro refere-se i InsDudio summorio do arcebispo de Moguncia. 22') ,S<,r»io 145,4. in: Migne PL 38,793.

139

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Segue-se no mesmo lugar: "E embora, para merecer tão grande graça, ii;ida suficientemente digno possa ser dado em troca, porque o dom e a graça de Deus não têm preço", etc. Vês que ele mais uma vez chama de dom e graça iiicstimável de Deus aquilo que o papa remite. Esse sujeito é sobremaneira digno de ensinar as Igrejas, isto é, os prostibulos dos hereges. Depois de, com cssas palavras, ter adornado diligentemente aquela graça para o mercado e a Icira, veste imediatamente seu Mercúrio com a roupa de Júpiter, para que ninguém perceba que ele busca o lucro (a menos que não tenha mais inteli- gência do que ele mesmo). Ele permite que ela também seja dada aos pobres de graça, mas assim20 que, primeiramente, tenham tentado, em toda parte, iirrebanhar o dinheiro junto a bons fautores (como diz), de modo que os fra- des mendicantes podem procurar dinheiro sem licença de seus superiores. Ocorre que, para esse Psêudolo~l, é muito melhor a remissão de uma pena, iiiesmo inventada, do que a obediência salutar. Mas como em lugar algum se abrisse um caminho para arrebanhar dinheiro para que compremi" essa gra- va (isto é, comprem de novoxl, não que aqueles a vendam, e sim porque a ex- ccssiva semelhança das coisas obriga a mal-usar a palavra), então ele diz fi- iialmente: "Pois o reino dos céus não deve estar mais aberto aos ricos do que :!os pobres", querendo, de novo, abrir o céu por meio de indulgências. Po- rem subtraio minha pena para que ela não se enfureça merecidamente com eles. Que seja suficiente ter mostrado aos crentes que a pestilência de seus dis- cursos está envolta em tão insigne ignorância e rudeza (como convinha), que :I tampa é digna da panela16.

Tese 34

Pois aquelas graças das indulgências se referem somente as penas de sa- t iyfa~ão sacramental, determinadas por seres humanos.

Esta tese está abundantemente clara a partir das teses 5 e 20 acima.

240 Aqui h$ um erro de Lutero, que junta duas orientacoes da Instrucrio. Segunda a instruçso, exigia-se, além da coniissão contrita e de freqilència piedosa às missas, um sacrificio finan- cciro dc acordo com as posses do penitente. Principes pagavam 25 florins renanos de ouro, o s prelados e a alta nobreza 10, pessoas com renda anual de até 500 florins pagariam 6 , pes- s m s com renda de até 200 ilarins pagariam 3. Os demais pagariam de meio a um florim. %,l>i.c i i s pobres. a ins t ru~ão afirma: "Os que não têm dinheiro devem substituir sua contri- h i i i ~ i i ~ por ora$& e jejum, pois o reina dos céus não deve estar mais aberto aos ricas do i(iictx<s pobres." Esposas e filhos cujos esposas ou pais Ihes proibiam a compra de iiidi~l- 8i.liçi;ls devem. contra a vontadedesses, tomar d o que têm para comprar indulgências. Po- hirs sir, i>s qiie nieiidigam ou que ganham apenas o necessário para o sustento diirio.

?.I1 I's?iid<>lu L' o iitiilo <Ir itnia das comCdias de Pluiito; aqui. C sin6nimo de mentiroso. ?.I2 N?ilii>i<r,il. iio ori~iiial. I I)t.!8td,> t>»10tr1, 1 1 0 ~1rigirlill. !4,1 I i i t i i i \c <Ic tini ilil<i 1p<i1>uIar.

I Tese 35

I Não pregam cristãmente os que ensinam não ser necessária a contrição àqueles que querem resgalar almas ou adquirir breves confessionais24'.

245 Cf. p. 25. nota 16. 246 Sc. da penitência. 247 Cf. Mt 7.3. 248 1.utero reiine nesta frase os conceitos usados para caracterizar doutrinas suspeitas em pro-

cessos de heresia.

i 24') Sc. o mundo.

I Por que, pergunto, eles dão aos seres humanos essa dilação246, para peri-

I

go destes? E de que aproveita que Ihes sejam pregadas tais coisas, ainda que fossem verdadeiras, senão que se busca o dinheiro e não a salvação das al- nias?,Ora, como são impias e falsas, com muito mais razão devem ser rejeita- das. E certo que também eu permiti, mais acima, que possam ser remitidas as penas mesmo as pessoas que não estão contritas, o que eles negam. Aqui, in- versamente, creio que deve ser negado o que eles afirmam. E tenho sobre os breves de confissão a mesma opinião como sobre as penas: em ambos os ca- sos não se precisa de contrição, nem no que diz respeito a sua compra nem no que diz respeito ao seu uso, o que eles negam. O mesmo vale também no caso das penas a serem remitidas, uma vez que a remissão da pena é parte do breve de confissão. Mas no tocante a redenção das almas discordo totalmente e pe- ço que provem o que dizem. Eu pelo menos creio que na redenção das almas deve ser visto algo muitissimo diferente do que na remissão das penas, pois nas remissões da pena o ser humano recebe um bem, enquanto que na reden- cão das almas ele faz um bem. Ora, o impio pode receber um bem, porém de modo algum fazer um bem, e não pode agradar a Deus a obra daquela pessoa que, ela mesma, não agrada a Deus, como está escrito em Gn 4.4: "O Senhor se agradou de Abel e de suas ofertas." Depois, é contra a Escritura que al- guém se comisere de uma outra pessoa antes do que de sua [própria] alma e que tire o argueiro do olho do irmão antes de tirar a trave de seu próprio olh0247, e e completamente [contra a Escritura] que um servo do diabo redima uma filha de Deus, e isso junto ao próprio Deus. É ridículo que um inimigo interceda por um amigo do rei. Que loucura é essa? pergunto eu. Para magni- ficar a remissão de uma pena de pouquissimo valor e inútil para a salvação, eles rebaixam os pecados, ao passo que só a penitência destes é que deveria ser magnificada. Se isso não é herético, malsoante, escandaloso, ofensivo a ouvidos piedosos, o que, afinal, existe que se possa designar com esses nomes mons t ruosos~~? Acaso os inquisidores da depravação herética atormentam e vexam os católicos e as opiniões católicas com esses títulos para que unica-

I mente a eles seja permitido inundar29 de heresias impunemente e a seu bel- prazer?

Dizem eles, entretanto, que essa redenção não se estriba na obra de quem redime, mas sim no mérito daquele a ser redimido. Respondo: quem

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clibse isso? De onde é provado? Então por que aquele a ser redimido iião é li- 0cri:rdo por seu próprio mérito, sem a obra de quem redime? Mas então não crcsccria o dinheiro cobiçado por causa da salvação das almas. Então por que ii:to cliamamos os turcos e os judeus, para que, junto conosco, também depo- sitciii seu dinheiro, não por causa de nossa cobiça, mas por causa da reden- c.'io das almas? O fato de não serem batizados parece não constituir um obs- iiculo, pois aqui não é necessário senão o dinheiro de quem dá, de forma al- [:liriia a alma de quem se perde. Pois essa doação só se estriba na alma a ser icdimida. Creio que mesmo que um asno depositasse ouro, também ele redi- iiiiria; pois se se exigisse alguma disposição, também a graça seria necessária, já quc um cristão pecador desagrada mais a Deus do que qualquer descrente, c i) zurrar não desfigura o asno tanto quanto a impiedade desfigura o cristão.

Em segundo lugar, é certo que eu disse que se podem dar aos pecadores cartas de confissão, assim como remissões de penas, porém não o disse para que eles sejam encorajados, sim, nem mesmo para que lhes seja permitido coiiiprar tais coisas, como ensinam impia e cruelmente. E isto eu provo:

1. Todo ensinamento de Cristo é uma exortação á penitência e visa fazer coiii que os seres humanos se afastem do diabo o quanto antes, como diz o 11clesiástico: "Não tardes em te converter ao Senhor" [Eclo 5.81, e como diz 11 Senhor mesmo: "Vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora." [Mt 25.13.1 l i Paulo: "Apressemo-nos para entrar naquele descanso." [Hb 4.11.l E Pe- clro: "Visto, pois, que todas essas coisas hão de ser destruidas, importa que \cjais como os que [vivem] em santo procedimento e piedade, apressando-vos crri direção ao advento do dia", etc. [2 Pe 3.1 1s.I Estes, contudo, ensinaram cssas coisas porque sua preocupação não consistia em como juntar dinheiro, iii;is em salvar almas. Aqueles, entretanto, como que seguramente, Ihes dão iiiiia misera dilação e, no que deles depende, deixam-nos em perigo de morte cicriia, de modo que não sei se, com tal dedicação, estão excusados do homi- cídio de almas. Com efeito, aqui não se busca a salvação de quem dá, mas a clirdiva de quem se perde. Pois, se fossem bons pastores de almas e verdadei- iiiriiente cristãos, envidariam todos os esforços no sentido de induzir o peca- cI11r ao temor de Deus, ao horror do pecado, e não cessariam de chorar, orar, iidriioestar, increpar, até que tivessem ganho a alma do irmão. Se ele contj- iiii;isse a dar dinheiro, perseverando no mal, jogariam o dinheiro na cara dele c diriam com o apóstolo: "Não procuro os teus bens, mas a ti mesmo" [2 Co 12.141; e mais uma vez: "O teu dinheiro seja contigo para perdição" [At H.20]. c se afastariam com horror da presença dele. Assim é que agiriam cor- l'c'l~lille~lte,

No entanto, isso está longe do nosso Mercúrio250: "Façamos, antes, o se- 1:iiiiitc: sc os pecadores vierem, fiados em mediadores idôneos (isto é, no di- iilicirc~). rnesrno contra a vontade de Cristo e de todos os apóstolos, eles serão vi~ir ici t r i i i dc nós, podendo tudo o que nós podemos, até redimir almas, mes- !tio qiic cle\ pereçam de imediato e nós ainda nos riamos e nos regozijemos

em segurança com sua dádiva. Isto é amor pelo povo de Cristo e por nossos irmãos. Assim é que cuidamos de suas almas, para que entendam que temos, por seus pecados, a Última compaixão, ou seja, nenhuma."

Tese 36

! Qualquer cristão verdadeiramente arrependido tem direito a remissüo plena depena e culpa, mesmo sem carta de indulgência.

!

I Do contrário estariam em perigo as pessoas que não tivessem tais cartas, ! o que é errado, já que estas não são ordenadas nem recomendadas, e sim li-

I vres. Também não pecam as pessoas que não fazem caso delas, nem estão, por isto, em perigo quanto á sua salvação. Isto se evidencia a partir do fato de que tais pessoas já estão no caminho dos mandamentos de Deus, e se por acaso alguma vez não Ihe[s] fosse dada tal remissão, mesmo assim ela lhe[s]

i seria devida, como diz o papa. Aqui, porém, interpõe-se a inteligência agu- dissima de certas pessoas que dizem que isso seria verdade se os cânones fos- sem penas impostas tão-somente pelo papa, mas que em verdade elas são de- clarações de penas infligidas por Deus. Convém que assim falem as pessoas que, de uma vez por todas, se propuseram perseguir a verdade com ódio per- pétuo.

Em primeiro lugar, proclamam, como que a partir de um oráculo, que Deus exige uma pena satisfatória pelos pecados, quer dizer, uma pena dife- rente da cruz evangélica (isto é, jejuns, trabalhos, vigílias), diferente da casti- gadora. É que eles não se referem a estas porque não podem negar que são re- mitidas tão-somente por Deus.

Em segundo lugar, a essa monstruosidade acrescentam uma maior, a sa- ber, que os cânones declaram [a pena como] imposta [por Deus]. Logo, ao papa só cabe declarar, nunca, porém, impor e relaxar. Do contrário, contra a palavra de Cristo, nos ensinariam isto: "Tudo o que eu ligar tu desligarás."

Tese 37

Qualquer cristão verdadeiro, seja vivo, seja morto, tem participação em lodos os bens de Cristo e da Igreja, por dádiva de Deus, mesmo sem carta de indulgência.

l? impossivel ser cristão sem ter Cristo. Se se tem Cristo, tem-se, ao mes- iiio icnipo, tudo o que é de Cristo. Pois diz o santo apóstolo em Rm 13.14: "Kcvcsti-vos do Senhor Jesus Cristo." E em Rm 8.32: "De que maneira não lios dará com ele todas as coisas?" E em 1 Co 3.21s.: "Tudo é vosso, seja Ce- p ,i\, . cj.1 :, Paiilo, seja a vida, seja a morte." E em 1 Co 1225': "Vós não sois de

.

i 251 1'1'. I ( ' o 12.27.

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v0s mesmos, mas membros do membro." E em outras passagens, onde escre- vc que, em Cristo, todos nós somos um só corpo, um só pão252, membros uns dos outros. E em Ct [2.16]: "O meu amado é meu, e eu sou dele." É que pela I% cm Cristo o cristão é feito um só espírito e unido com Cristo. Pois serão os dois uma só carne, o que é um grande mistério em Cristo e na Igreja253. Visto, pois, que o Espirito de Cristo está nos cristãos, pelo qual se tornam irmãos, co-herdeiros, um só corpo e cidadãos de Cristo, como poderia não haver ai participação em todos os bens de Cristo? Pois também Cristo tem tudo o que i. scu do mesmo Espírito. Assim sucede, pelas inestimáveis riquezas das mise- ricórdias de Deus Pai, que o cristão pode gloriar-se e, com confiança, tudo arrogar-se em Cristo, a saber, que a justiça, a força, a paciência, a humildade c todos os méritos de Cristo são também seus pela unidade do Espirito a par- tir da fé nele, e, inversamente, que todos os seus pecados já não são mais scus, mas, pela mesma unidade, de Cristo, no qual todas as coisas também scrão absolvidas. E é esta a confiança dos cristãos e a jovialidade de nossa coiisciência: pela fé, nossos pecados não são nossos, mas de Cristo, sobre o qual Deus colocou os pecados de todos nós254; ele levou sobre si os nossos pecados255; ele é o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo2'6. Inversa- iiieiite, toda justiça de Cristo se torna nossa. Pois ele impõe sua mão sobre nós, e ficamos bem, e ele estende seu manto e nos cobre, bendito Salvador em clcrnidade, amém.

Contudo, como essa suavissima participação e alegre permuta não acon- icceni senão pela fé, e como o ser humano não pode se dar nem se tirar a fé, crcio ser suficientemente claro que essa participação não é dada pela força (Ias chaves nem pelo benefício de cartas de indulgências, mas sim unicamente por Deus, antes e sem elas; assim como a remissão antes da remissão, a absol- vição antes da absolvição, da mesma forma a participação antes da participa- $ 5 0 .

De que o papa faz participar através de sua participação? Respondo: eles cliriern, como é dito acima na tese 6 a respeito da remissão, que ele faz partici- !>:ir declarativamente. Pois confesso que não entendo como poderiam dizer (Ic outra forma. Exporei minha concepção na tese que se segue.

Tese 38

Mesmo assim, a remissüo e parlicipaçüo do papa de forma alguma de- i2<,ni ser desprezadas, porque (como disse25') constifuem declaração do per- (1170 (livino.

Não que seja necessária a declaração feita nas cartas públicas de indul- yi.iiciiis (pois é suficiente a declaração feita na confissão privada). mas clii

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não deve ser desprezada, já que, por meio dela, é tornada conhecida e confir- mada também á Igreja a declaração feita privadamente. Com efeito, é assim que, creio eu, isso deve ser entendido. Quem tiver coisa melhor que o diga. Pois náo vejo que outras coisas faria essa participação pública. Contudo, em- bora não negue que essa tese tenha sido aceita por todos (como creio), disse acima na tese 6 que não me agrada essa maneira de falar, [segundo a qual] o papa não faz outra coisa senão declarar ou confirmar a remissão divina ou participação. Pois, em primeiro lugar, isso desvaloriza por demais as chaves da Igreja, sim, tornade algum modo ineficaz a palavra de Cristo que diz: "Tudo o que", etc. E que "declaração" é módico demais. Em segundo lu- gar, porque todas as coisas serão incertas para a pessoa a quem é feita a de- claração, ainda que aos outros ou a Igreja, exterior e publicamente, sua re-

I missão e reconciliação fiquem certas. Por esta razão, assim como opinei acima a respeito da remissão da cul-

I pa, da mesma forma quero opinar a respeito da participação nos bens: assim como, depois do pecado, o pecador dificilmente confia na misericórdia de Deus, a tal ponto o impele ao desespero o pesadissimo Ônus do pecado, e co- gita muito mais facilmente a ira do que a misericórdia de Deus, da mesma forma, antes do pecado, cogita mais facilmente a misericórdia do que a ira. Pois o ser humano faz tudo às avessas, temendo onde não deve temer, mas esperar - a saber, depois do pecado -, sendo presunçoso onde não deve ser presunçoso, mas temer - a saber, antes do pecado. Um exemplo disso nos é abundantemente mostrado na ressurreição de Cristo, em que foram necessá- rias muitas provas para que ele ressuscitasse no coração dos discipulos. Por fim, o primeiro anúncio foi feito a mulheres e comparado, por eles, a um de- lírio. Assim, também ao pecador a primeira confiança parece mole, e ele jul- ga não dever crer nela (ou dificilmente). Assim, é muito mais difícil confiar que se é participante dos bens de Cristo, isto é, de bens inenarráveis, de modo que se é participante da natureza divina, como diz S. Pedro258. A magnitude dos bens também produz falta de confiança, a saber, não só que tão grandes males são remitidos, mas também que tão grandes bens são conferidos, que ele é filho de Deus, herdeiro do reino, irmão de Cristo, companheiro dos an- jos, senhor do mundo. Pergunto: como pode crer que essas coisas são verda- deiras quem, atormentado por seu pecado, sim, acabrunhado pelo peso des- te, é arrastado para o inferno? Aqui, pois, é necessário o juizo da chave, para que o ser humano não creia em si, mas, antes, na chave, isto é, no sacerdote. E não me importa que o portador da chave porventura seja indouto ou levia- no. É que [ele deve crer] não por causa do sacerdote e seu poder, mas por causa da palavra daquele que diz e não mente: "Tudo o que desligares", etc. [Mt 16.19.1 Com efeito, no caso das pessoas que crêem nesta palavra, a chave rião pode errar. Ela só erra, porém, no caso das pessoas que não crêem que csta absolvição é válida. Pois imagina (mesmo que fosse impossível ou acon- leccsse por acaso) que alguém não está ou não crê estar suficientemente con-

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(rito, mas, mesmo assim, com toda a confiança crê em quem o absolve [e crê] qtie está absolvido (assim opino segundo minha confiança); [neste caso] essa I'& o torna verdadeiramente absolvido, porque crê naquele que diz: "Tudo o qiie", etc. A fé em Cristo sempre justifica, da mesma maneira como [estás hatizado mesmo] que um sacerdote inepto, leviano e ignorante te batize. E iiiais: ainda que julgues não estar suficientemente contrito (pois não podes iiem deves confiar em ti mesmo), mas, não obstante, crês naquele que diz: "Quem crer e for batizado, será salvo" [Mc 16.161, digo-te que essa fé em siia palavra faz com que sejas verdadeiramente batizado, seja lá qual for o es- lado de tua contrição. Por isso, a fé é necessária em toda parte. Tens na exata iiiedida em que crês. É assim que entendo o que dizem nossos mestres: Os sa- cramentos são sinais eficazes da graça, não porque acontecem (como diz o B. Agostinho2Jg), mas porque se crê, como dissemos acima. Assim aqui: a absol- vição é eficaz não porque acontece, seja lá quem afinal a faz, quer erre, quer i130 erre, mas porque se crê. Esta fé também não pode ser impedida pela re- serva de casos, a não ser que seja manifesta e desprezada. Digo, por conse- giiinte: quando está em pecado, o ser humano é de tal modo atormentado e agitado por sua consciência, que, em sua maneira de ver, crê ter, antes, parti- cipação em todos os males. Tal ser humano certamente está próximo da justi- ficação e tem o início da graça. Por isso, deve refugiar-se no consolo das cha- ves, para ser aquietado pela sentença do sacerdote, obter paz e conseguir a coiifiança de participar de todos os bens de Cristo e da Igreja. Se alguém não crer ou duvidar que essa participação lhe tenha sido dada pelo oficio do sa- cerdote, é seduzido não por um erro da chave, e siin por sua descrença, causa grande dano á sua alma e faz a Deus e á sua palavra uma injustiça e suma ir- reverência. Por isso, se não crê que é absolvido, é muito melhor que não ve- ilha para a absolvição do que que se aproxime sem fé, pois se aproxima fingi- ilaiiiente e recebe juizo para si, da mesma forma como se recebesse o Batismo o u o Sacramento do Pão fingidamente. Por isso, a contrição não é tão neces- sária quanto a fé. Pois ali a fé na absolvição consegue incomparavelmente iiiais do que o fervor da contrição.

Omitindo esta fé, muitos de nós só laboram no sentido de formar contri- <;li], de modo que ensinamos as pessoas a confiar que os pecados estão per- doados quando sentirem que estão perfeitamente contritas, isto é, a não con- fiar nunca, mas, antes, a enredar-se cada vez mais no desespero, ao passo quc, segundo o profeta, devemos depositar nossa esperança não em nossa coi11riçã0, mas em sua palavra. Pois ele não diz: "Lembra a teu servo minha coiitriçilo, na qual me fizeste esperar", e sim: "Lembra-te de tua palavra, na qii;il rite Fizesie esperar." [SI 119.49.1 E mais uma vez: "Em tua palavra (de iii;iricira alguma em nossa obra) eu esperei." [SI 119.81.] E mais uma vez: "Miiilia alma se sustentou em sua palavra", etc. [SI 130.5.1 E, como é SI 01511.4 etii hebraico: "Pequei contra t i somente. por isto [me] justificarás 1"". Lii ;~ palavra." Porlanto, o que te justifica não é o sacraiiiento nem o sa-

cerdote, mas a fé na palavra de Cristo por meio do sacerdote e seu oficio. Que te importa que o Senhor fale por meio de um burro ou uma burra, con- tanto que ouças sua palavra, na qual podes esperar e crer?

Assim eu entenderia aquilo que dizem nossos mestres escolásticos~: Os sacramentos da Igreja nos são dados para exercício, isto é, como dádivas inestimáveis, para que nelas tenhamos ocasião para crer e ser justificados. Pois antigamente, na época de Saul, a palavra do Senhor era cara261. Agora, contudo, ela se faz ouvir a ti mesmo por meio de seres humanos sobremodo levianos, ruins, ignoranles. Presta atenção na Palavra e deixa de lado a apa- rência da pessoa. Quer ela erre ali, quer não, tu não erras se creres. Se erro e perdi o juizo neste ponto, quem sabe que me corrija.

Disso se seguirá que aquelas três verdades de João Gérson, já há muito transfundidas em todos os livros e ouvidos, devem ser entendidas com pru- dência, a saber: o ser humano não deve confiar que está no estado de salva- ção porque pode dizer que sofre por causa dos pecados; deve, muito antes, advertir se deseja o sacramento da absolvição de tal modo que crê que está absolvido quando o tiver obtido. Pois isto é que é receber o sacramento em desejo, ou seja, na fé na Palavra que realmente se ouve ou se deseja ouvir. Por conseguinte, toma cuidado para de modo algum confiares em tua contri- ção, mas unicamente na palavra de teu excelente e fidelíssimo Salvador Jesus Cristo. Teu coração pode te enganar, mas ele não te enganará, seja ele tido, seja desejado. Se as coisas assim são (que o Senhor Deus conceda que, com o profeta Miquéia~26~', eu seja um homem sem o Espírito e, antes, fale a menti- ra), é de se temer que muitas almas se perdem através desses ignorantissimos berradores de obras e contrição. Em primeiro lugar, porque não ensinam a fé na Palavra, mas tão-somente a contrição, e esta de maneira bastante fraca. Em segundo lugar, porque estão prontissimos a conceder absolvições e tais participações, como se em toda parte todos tivessem essa fé, e não procuram descobrir a quem e por que absolvem.

Assim, pois, não é tão necessário dizer a pessoa a ser absolvida:,"Estás pesaroso"3?", quanto: "Crês que podes ser absolvido por mim?" E assim que Cristo disse aos cegos: "Credes que posso vos fazer isso?" [Mt 9.28.1 "Tudo é possível para quem crê." [Mc 9.23.1 Pois essa fé certamente é prova- da ao máximo nas pessoas que, atormentadas pelo tremor da consciência, Fentem, antes, sua falta de fé. Porém não sei se as chaves são consoladoras para as pessoas que não sentem tal miséria, visto que não merecem ser conso- ladas senão as que choram, e não merece ser animado a crer na remissão se- iião quem treme de medo que e l e 9 lhe sejam retidos.

E, para finalmente pôr um fim [a essa questão], creio que essa minha opinião não diminui o poder da chave, como me acusam , mas o reconduz de

ZMI ' I ' i~ii ibr dc Aqiiino, Suinrno lheologiae 111, quoestio 61, orticulus 1 , 261 < ' I ' . I Siri 3 . 1 . 202 ('I' . Mil 2.11 263 Sc. iiui. c;iii,n de leu\ peca<l<>.;. ?bJ si.. <>r i>~~il<l,i\.

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iiiiia falsa honra e tirânica reverência para uma reverência que lhe é devida e é digna de amor. Pois não é de admirar que as chaves sejam desprezadas, se s3o oferecidas a acolhida com falsas honras, isto é, somente com terrores, ao passo que seria uma pedra ou um pedaço de pau quem, sabendo de sua salu- hbrima utilidade, não as cobrisse de beijos e as abraçasse com lágrimas. Por que, então, magnificamos o papa por causa delas e fazemos dele um homem icrrível? As chaves não são dele, mas, antes, minhas, dadas a mim, concedi- das para minha salvação, meu consolo, paz e descanso. No tocante as chaves, o pontífice é meu servo e ministro; na qualidade de pontífice, ele não precisa delas, e sim eu. Entretanto, os aduladores fazem com que tudo se relacione com os pontífices e, nelasz65, jactam não a nossa consolação, mas apenas o poder deles, e nos aterrorizam com as mesmas coisas pelas quais mais deve- riam nos consolar. A tal ponto tudo está pervertido hoje em dia, e ainda não :icreditamos que são infelizes os tempos em que existe tão grande abuso das irielhores coisas, que nos foram transformadas nas piores. Por conseqüência, 1120 sustento inteiramente esta tese assim como ela aí está, mas a nego em grande parte.

Tese 39

Até mesmo para os mais doutos teólogos é dificílimo exaltar perante o povo, ao mesmo tempo, a liberalidade das indulgências e a verdadeira contri- (.NO.

A razão desta tese é a tese seguinte

Tese 40

A verdadeira contrifão procura e ama as penas, ao passo que a abundân- <.i11 (1a.s indulgências faz odiá-las, pelo menos dando ocasião para tanto.

'Toma uma pessoa verdadeiramente penitente e verás que ela procura tão ;irclcriicmcnte vingança de si mesma por causa da ofensa a Deus, que te ohri- g;ii'!i a ter misericórdia dela, sim, [verás] que será necessário resistir a ela para i~iic 1130 se destrua, como muitas vezes lemos e ouvimos que aconteceu. O B. .Icriiiiiiii« cscreve que sua PaulaZM foi assim, e escreve a mesma coisa a respei- I O tlc si iIicsmo. Para essas pessoas, nenhuma pena é suficiente; mais ainda: coin i) i'illio pródigo, invocam o céu e a terra e até o próprio Deus contra si,

assim como fez Davi quando disse: "Suplico que tua espada seja voltada con- tra mim e contra a casa de meu pai." [2 Sm 24.17.1 Portanto, creio haver dito com razão que as penitências canônicas são impostas tão-somente as pessoas que, por serem preguiçosas, não querem fazer coisa melhor ou, pelo menos, para examiná-las quanto a veracidade de sua contrição. Assim, fica claro quão difícil é, ao menos para os doutos, achar o meio-termo entre o ódio e o amor as penas, para ensinar o ódio a elas de tal maneira que, ainda assim, in- duzam as pessoas principalmente ao amor a elas. Contudo, como nada é difi- cil para os indoutos, nada impede que também isto Ihes seja fácil. O Evange- lho certamente ensina que não se deve fugir das penas nem relaxá-las, mas sim buscá-las e amá-las, porque ensina o espírito da liberdade e do temor de Deus até o desprezo de todas as penas. Porém é muito mais lucrativo e conve- niente para as caixas dos questores que o povo tema as penas e haura o espiri- to do mundo e do temor na letra e na servidão, ao ouvir que algumas penas canônicas são uma coisa tão horrível, que se ensina que elas só podem ser evi- tadas com tanto esforço, com tanta despesa, com tanta pompa, com tão grandes cerimônias, como nem se ensina que o Evangelho deve ser amado.

Objeta-se o seguinte: "O que, então, dizes acerca das peregrinações267 a Roma, Jerusalém,

Santiagoz68, Aachen, Trier e a muitas outras regiões e lugares por causa das indulgências, bem como [a respeito das indulgências concedidas] por ocasião da dedicação de igrejas?"

Respondo: Essas peregrinações são feitas por muitas razões, mas rarissimamente

por razões justas. A primeira razão é a mais comum de todas: a curiosidade de ver e de ou-

vir coisas estranhas e ignotas. Esta leviandade provém do fastio e da acidia em relação ao culto a Deus, que se negligencia na própria igreja. Do contrá- rio [o peregrino] acharia em casa indulgências incomparavelmente melhores do que em todos os lugares mencionados tomados em conjunto. Semelhante- mente, ele teria Cristo e os santos mais presentes se não fosse estulto ao ponto de preferir pedaços de pau e pedras aos pobres e a seus próximos, aos quais deveria servir em amor, ou também olhar por sua [própria] família.

A segunda razão é tolerável, a saber, por causa das indulgências. Pois como são livres, não ordenadas e, por isso, não meritórias, as pessoas que fa- zem peregrinação só por causa das indulgências não adquirem absolutamente nenhum mérito. Entretanto, é com justiça que são assim escarnecidas as pes- soas que negligenciam Cristo e o próximo em casa para, lá fora, gastar dez vezes mais sem fruto e sem mérito. Por isso, quem ficasse em casa e pensasse sobre aquela palavra: "O amor cobre multidão de pecados" [ I Pe 4.81, e so- hre aquela: "Dai esmola do que tiverdes de sobra, e tudo vos será limpo" [Lc 11.411, agiria muito melhor - sim, neste caso, agiria unicamente bem - do

267 I .iileri, eriilriiern os locais mais visitados pelos peregrinos 20H Siiiiliiiyo dc <:«mpostella, na Espanha.

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iliic se buscasse todas as indulgências existentes em Jerusalém e Roma. Con- tiido, não nos aprazemos em ter um discernimento tão correto, razão pela (iiiol também somos entregues aos nossos desejos.

A terceira razão é a aflição e fadiga por causa do pecado. Creio que ela ocorre raramente, ao menos sozinha. Pois também em casa ele poderia se :illigir e afadigar, se buscasse apenas a fadiga. No entanto, se o faz, [isso] não i: iiiau, mas bom.

A quarta razão é honesta, a saber, se acontece por uma singular devo- i.30, para a honra dos santos e a glória de Deus e para a própria edificação, :issini como Sta. Lúcia [foi] a B. Agata269 e alguns santos pais visitaram Ro- iii;i. O resultado provou que não o fizeram por curiosidade.

Assim, agrada-me, em relação a essas autorizações"0, que também os vc~los de tais peregrinações são trocados por outras obras, e oxalá fossem tro- i.:idos gratuitamente!

Tese 41

Ileve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, pa- ,-<r que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais obras i/<, f~rrior.

Eu diria o seguinte ao povo: Vede, irmãos, é preciso que saibais que exis- ii . i i i três espécies de boas obras que se podem fazer gastando dinheiro. Enl ~iiiiiieiro lugar e antes de mais nada, se alguém dá aos pobres ou empresta a i . 1 1 próximo necessitado e, de modo geral, auxilia a quem sofre qualquer ne- cc\sidadc. Esta obra deve ser feita de tal maneira que se deve interromper iiirsiiio a construção de igrejas e deixar de lado oferendas para [a aquisição ilcl viisos e ornamentos das igrejas. Depois que isso tiver sido feito, e não res- i:iii<I« nenhum necessitado, então a segunda obra será contribuir, primeira- iiiciiic, para nossas igrejas e hospitais em nossos países e para construções de iiiilid:ide pública. Depois, porém, que isto tiver sido feito, então, finalmente, \c v i ~ s kipraz, podeis dar, em terceiro lugar, também para a compra de indul- p,Ciicins. Pois quanto a primeira obra temos mandamento de Cristo, quanto a iiliiiiia, rienlium mandamento.

Sc disseres: "Com essa pregação se juntará pouco dinheiro através das iiiiliilKi.ricias", respondo: creio que sim. Mas o que há de estranho nisso, já iiiic. ;itravés das indulgências, os pontífices não buscam dinheiro, e sim a sal- v;i<;lo d:is almas, como se evidencia nas que dão por ocasião da consagração (li. ik:ic,i;is c altares? Por isto, por meio de suas indiilgências eles não querem iiiil)cdii coisiis iiielliores, mas, antes, promover o amor.

Digo francamente que quem ensina o povo de outra forma e perverte es- sa ordem não é um doutor, mas um sedutor do povo; só que, por causa de seus pecados, as vezes o povo merece não ouvir a verdade ser pregada corre- tamente.

Tese 42

Deve-se ensinar aos cristãos que não épensamento do papa271 que a com- pra de indulgências possa de alguma forma ser comparada com as obras de misericórdia.

Como eu disse acima, entendo o papa, conforme significa [a palavra], como pessoa pública, isto é, como nos fala por meio dos cânones. Com efei- to, não existem cânones que afirmem que a dignidade das indulgências possa ser comparada as obras de misericórdia.

A tese, porém, é evidente: porque o mandamento de Deus tem uma dig- nidade infinitamente superior ao que também é permitido e de nenhum modo ordenado por um ser humano; pois lá existe mérito, aqui, nenhum.

Aqui se objeta: "Mas as indulgências são compradas por meio de uma obra piedosa, por exemplo, através de uma contribuição para uma constru- ção ou para o resgate de cativos; logo, elas são meritórias."

Respondo: não falo da obra, e sim das indulgências, pois aquela obra poderia ser feita sem indulgências, já que não está necessariamente ligada a elas. As indulgências concedidas sem obra só tiram e nada conferem. Porém a obra sem as indulgências confere, pois lá recebemos o que é nosso, enquan- to que aqui damos. Por esta razão, lá se serve a carne, aqui, ao Espírito; nu- ma palavra: lá se satisfaz a natureza, aqui, A graça. Por isso, as indulgências, tomadas em si mesmas, não são comparáveis a uma obra de misericórdia.

Do mesmo modo, a obra sem indulgências é mais pura do que a obra com indulgências. Estas são uma espécie de defeito da obra, porque a obra recebe sua recompensa, sim, mais do que sua recompensa. Por conseguinte, as pessoas agiriam de maneira mais santa se simplesmente contribuíssem e não o fizessem por causa das indulgências. Não porque estas sejam más e no- civas, mas porque o abuso pervertido é nocivo, sendo que as pessoas não fa- riam tal obra se não houvesse indulgências. Conseqüentemente, o alvo de tal obra se torna a indulgência, mais ainda: o próprio ser humano, que busca seu interesse próprio, ao passo que deveria fazer a obra por amor de Deus e gra- tuitamente, e aceitar as indulgências apenas como dadas gratuitamente, não por causa de uma contribuição, para que, assim, ele não compre indulgências c cles não as vendam. Pois é preciso que, de ambos os lados, haja uma doa- çâo gratuita, ou então haverá simonia manifesta e uma vendição torpissima. Mos quem diz essas coisas ao povo? Quando é que se diz: "Deposita de gra- C;I, c cii concedo de graça?"

?71 ( ' I ' . 1,. 20. iiol;! 18.

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I>o mesmo modo, é de se temer que através dessa perversão da ordem se- i ; ~ knnentada uma grande idolatria na Igreja. Pois se o povo é ensinado a coiitribuir para fugir das penas (o que, espero, não aconteça, mesmo que iiiiiiio~ talvez assim entendam), então está claro que não contribuem por cau- \;i dc Deus, e o temor das penas ou a pena será o ídolo deles, a quem sacrifi- cniri desta maneira. Se isso acontecesse, haveria na Igreja um mal semelhante :i0 que houve outrora entre os romanos pagãos, quando serviam a Febre>" e ;i outras divindades fúteis e nocivas para não serem prejudicados. Por este iiioiivo, aqui se deve vigiar em favor do povo e confiar tais negócios tão dú- Iiios c perigosos apenas aos mais doutos.

Tese 43

Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao ne- <.<,ssitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências.

Formulo esta tese assim por causa das pessoas rudes, já que ela se evi- (Iciicia suficientemente a partir do que dissemos acima. Eu não sou o primei- io nem o último que sustenta esta tese (juntamente com as duas que a prece- dem e as duas que se seguem a ela); todos e toda a Igreja a sustentam, só que .ipcnas o povo nunca a ouve. Talvez se tema que ele entenda depressa demais iiiiia verdade tão manifesta e sólida. Pois também S. Boaventura273, bem co- 11111 todos os demais, ao tratar dessamatéria, r u e m a si mesmos esta objeção: "l,«go, as demais boas obras devem ser omitidas", e respondem: "De forma ;ilgiima, porque as demais boas obras são melhores no tocante a obtenção do 11iCini« essencial." Portanto, a tese é evidente, pois quem diz isto são aqueles qiic, iião obstante, afirmam que as indulgências são um tesouro dos méritos (Ic ('risto e da Igreja.

Tese 44

Ocorre que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna tn<~lhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas ape- riíI,y t?rui.r livre de pena.

Isto é evidente. Pois ai é dada tão-somente remissão das penas, e - co- i110 i;iiiib&in todos concedem - as indulgências não efetuam mais do que su- I I I i i i i i i . as penas. Ora, a supressão da pena não torna a pessoa boa ou melhor 1111 ~ l l l~o r ,

> l L I.iiirro rçferc-sc. aqui. A dcusa da fcbre. ? 71 Aiiiirci~ieniciiic. I.iltcro se refere As afirmaçdes de &>aventura em seu c<imciitbrio ao livro

Tese 45

Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligenciapara gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.

Pois tal pessoa perverte a ordem acima exposta, e contra isso diz João: "Se alguém vir seu irmão padecer necessidade e lhe fechar seu coração, como permanecerá nele o amor de Deus?" (1 Jo 3.17.1 Nossos sofistas, porém, in- terpretam essa necessidade como necessidade extrema, a saber, para nunca ou rarissimamente dar oportunidade a que o amor se torne ativo, ao passo que eles mesmos, se estivessem em necessidade -não extrema, mas imediata -, quereriam receber auxilio; às outras pessoas, contudo, querem ajudar quando elas já expiraram. Realmente ótimos teólogos e cristãos, que não fa- zem as pessoas o que querem que lhes seja feito.

Tese 46

Deve-se ensinar aos cristãos que a compra de indulgências é livre e não constitui obrigação.

Eu já disse suficientemente acima que as indulgências pertencem ao nú- mero das coisas que são permitidas, mas não ao das que são úteis, assim co- mo, na antiga lei, a carta de divórciond, o sacrifício de ciúme275, e, na nova lei, processos e ações judiciais por causa dos fracos, sim, "por causa da vossa dureza" [Mt 19.81, diz Cristo. Todo aquele que fizer isso será antes tolerado do que recomendado. E mais: como diz a glosa no livro V, depe. et re. Quod aulem, também muitos outros fariam melhor se satisfizessem eles mesmos e não comprassem indulgências. Apenas criminosos têm necessidade de comprá-las.

Tese 47

Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundância, devem conservar o que é necessário para sua casa e de forma alguma desper- diçar dinheiro com indulgências.

Pois o apóstolo diz: "Quem não cuida dos seus e principalmente dos de sua casa negou a fé e é pior do que o descrente." 11 Tm 5.8.1 Porém são mui- tos os que não têm pão nem roupa de modo apropriado e, mesmo assim, in- duzidos pelo barulho e estrépito dos pregadores de indulgências, fraudam a si

274 VI'. 01 2 4 . 1 ~ ~ . 275 <:I'. Nin 5.15.

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riicsnios e causam sua própria penúria para aumentar a riqueza daqueles.

Tese 48

Deve-se ensinar aos cristãos que, ao conceder indulgências, opapa assim <.r,ltlo rnais necessita, da mesma forma mais deseja uma oração devota a seu lirvor do que o dinheiro que se está pronto a pagar.

Desta tese se rirão nossos senhores cortesãos da Cúria Romana, ~.i,risciosn6. Certo, todavia, é que, antes de mais nada, o pontífice deve dese- ,;ir a oração de seus súditos, assim como também S. Paulo frequentemente a ilcscjou dos seus. E esta é uma razão muito mais justa para dar indulgências c111 que se fossem construidas mil basílicas. Isto porque o sumo pontifice, iiinis sitiado do que rodeado por tantos monstros de demônios e pessoas ím- !pias, não pode errar senão causando o maior mal para toda a Igreja, princi- 11;ilinente se ouvir com prazer a voz pestilenta de sua sereia [que diz]: "Não se prcsiime que o ápice de tão grande celsitude erre"; da mesma maneira a que diz: "Todos os direitos positivos estão no escrinio de seu peito." Presume-se qiie ele não erra, mas é de se perguntar se essa presunção é boa; todos os seus clirciios estão no escrinio de seu coraçáo, mas é de se perguntar se seu peito é tlorii. I? disto que se deve cuidar através da oração. Mas a respeito desse as- \iiiiio o B. Bernardo [escreveu], da forma mais bela de todas, ao papa Eugê- iiio c111 Da consideração"'.

Tese 49

Deve-se ensinar aos cristüos que as indulgências do papa são úteis se não ,l<~/~o<itam sua confiança nelas, porém extremamente prejudiciais se perdem <i I < ~ I I I « ~ de Deus por causa delas.

VE, pois, o perigo: as indulgências são pregadas ao povo diretamente ,.i,irir;i n verdade da cruz e do temor de Deus, porque se Ihes concede liberda- ( l i . cl;is pciias e, depois, segurança dos pecados remitidos. E parece um sinal ~.viilciitc de que as indulgências pregadas com tal jactância não provêm de I )riis o falo de que o povo acorre a elas, as aceita e observa com mais disposi- y:\i~ < I ~ I qiic o faz em relação ao próprio santo Evangelho de Deus, para que \ri:i ~~iov;icla a verdade: porque o que vem de Deus é desdenhado pelo mun- do; oiiiro vciii cm seu próprio nome, e a este o mundo aceitanu. A causa do <.rio \;To ;is pri~prias pessoas que ensinam tais fábulas, pregando-as com mais

Tese 50

I

Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse das exações dospre- &!adores de indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basílica de S. Pedro do que edificáiu com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.

diligência e pompa do que o Evangelho; além disso, pregam a todos o que é para poucos. Pois, como ficou suficientemente claro acima, as vênias são re- laxações, licenças, permissões e indulgências, e verdadeiras indulgências (se tomamos o significado rigido da palavra) são permissões molengas para cris- tãos delicados, frios, duros, isto é, mais de gibeonitas, carregadores de água e escravos do que dos príncipes e filhos de Israel.

Demonstro, porém, a tese: Se as obras de caridade dos que as fazem com fervor são tais que nin-

guém pode confiar ou estar seguro nelas (visto que também o santissimo Jó teme por todas as suas obras, e "bem-aventurado é o homem que teme o Se- nhor" [SI 112.11; da mesma forma: "Bem-aventurado o homem que está

I sempre temeroso" IPv 28.1411, quanto mais as indulgências, incomparavel- mente inferiores a tais obras, devem ser recebidas com mais do que temor, e nelas devemos ter uma confiança menos do que mínima, isto é, absolutamen- te nenhuma! O santo teme operar ou sofrer menos do que deve, e onde estará o pecador, a quem é concedida remissão para que faça menos do que pode fa- zer? E tanto quanto compreendo nossos fanfarrões e corruptores de mentes, eles nos transformam o negócio das indulgências num negócio que perambu- Ia nas trevas2'Ye numa operação do erro'so, incutindo, através delas, confian- ça em todas as pessoas, ao passo que elas convêm a poucas, às frias e fracas (como eu disse). Vê se não é dai que aconteceu, por ensinamento do Espirito Santo, que eles, através de seu próprio testemunho, o chamam de negócio de S. Pedro, negócio do Espírito Santo, como que confessando, eles próprios, que são negociantes e promovem feiras simoniacas.

Ora, minha afirmação de que elas são úteis quer dizer que não são úteis para todos, mas sim ao velho ser humano e aos trabalhadores roncantes, por- que é melhor que as penas Ihes sejam remitidas do que que as sofram contra a vontade. Não obstante Ihes ter sido concedida essa vontade para evitar um mal maior, não devem frui-Ia com segurança nem confiar nela, mas afligir-se e temer tanto mais pelo fato de serem gente que, por causa de um mal maior, precisa ser deixada num mal menor; pois vêem que mesmo as pessoas que progridem no bem com o maior fervor temem. Por isso eu disse que as indul- gências são extremamente nocivas se as pessoas se alegram, sem temor, com tal licenca.

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Pois assim, depois de terem imposto a toda ordem da vida cristã deter- minada quantia de dinheiro, nossos robustissimos caçadores ensinam por fim também as mulheres a mendigar, mesmo contra a vontade do marido, e os frades mendicantes, mesmo contra a vontade de seus superiores, a arreba- iihar dinheiro de qualquer parte, até que não haja absolutamente ninguém a quem reste um tostão que não dê para esta finalidade. Por fim, chegaram a exortar [as pessoas] a vender até suas roupas ou a emprestar dinheiro de qual- quer lugar; diz-se que isso também aconteceu. Como as indulgências são o iiiais vil de todos os bens da Igreja, que não deve ser dado senão aos mais vis [iiiembros] da Igreja, náo sendo ainda nem meritório nem útil, mas, na maior parte, extremamente nocivo se as pessoas não são timoratas, sou de opinião que tal doutrina é digna de maldição e contrária aos mandamentos de Deus. Pois a mulher deve estar sob o poder do marido e nada fazer contra a vontade clcle, mesmo que se tratasse de [algo] meritório, muito menos mendigar por musa de indulgências que talvez não lhe sejam necessárias. Além disso, os re- ligiosos deveriam manter sua obediência, ainda que, em outra parte, [pudes- sem] obter a coroa do martírio. E o papa jamais pretende o contrário, mas sim seus falsos intérpretes. Que alguém outro bote para fora sua cólera; eu riie contenho. Só digo uma coisa: ao menos trata de discernir a partir disso, prezado leitor, se, com suas pregações pestilentas, eles não procuram fazer com que o povo creia que nas indulgências estejam a salvação e a verdadeira graça de Deus. De outro modo, como as recomendariam tão ansiosamente que, por causa delas, tornam sem valor as obras meritórias e os mandamen- ios de Deus? Mesmo assim, até agora não são [considerados] hereges, ao ponto de se gloriarem de serem perseguidores de hereges.

Acaso o papa quis que, por causa de pedras e pedaços de madeira, os se- res humanos entregues a seus cuidados sejam tosquiados até a pele viva, sim, que sejam imolados e lançados na perdição pelas pestilentas doutrinas desses ladrôes e salteadores (como Cristo dizzal)? Era melhor ter aquele imperador que disse: "Um bom pastor deve tosquiar as ovelhas, mas não esfolá-las." Entretanto, eles não só as esfolam, mas as devoram em corpo e alma. Verda- deiramente, "a garganta deles é um sepulcro aberto, com suas linguas", etc. (SI 5.9.1

Tese 51

Assim o B. Ambrósio fundiu cálices para resgatar prisioneiros282, e o B. Paulino de NolaZB3 se entregou a si mesmo como prisioneiro pelos seus. E é para isto mesmo que a Igreja tem o ouro, como consta nos decretos, que o to- maram do mesmo Ambrósio. Mas agora, bom Deus, quantos são os que le- vam árvores, sim, mesmo folhas para a floresta, e gotinhas para o mar, isto é, seus centavos para aquela bolsa, cujo ganho, para usar palavras de Jerôni- mo, é a religião de todo o mundo!

l

i Tese 52

Vã é a confiança na salvação po r meio de cartas de indulgências, mesmo que o comissário2u ou até mesmo o próprio papa desse sua alma como garan- tia pelas mesmas.

Também esta monstruosidade eles ousam proferir sem qualquer vergo- nha, para tirar dos seres humanos o temor de Deus e, por meio das indulgên- cias, conduzi-los consigo até a ira de Deus, contra o dito do sábio: "Não queiras estar sem medo a respeito do pecado perdoado!" [Eclo 5.5.1 E mais uma vez: "Quem discerne as [próprias] faltas?" [Sl 19.12.1 Mas eles dizem: "Não abolimos o temor de Deus." Se a segurança [obtida] por meio das in- ~ dnlgências pode subsistir com o temor de Deus, é verdade que não o abolis, mas sim o povo, ao aceitar as cartas recomendadas com tão grande palavra de juramento. Se ele teme que as cartas não sejam suficientes perante Deus,

I como será verdadeira aquela gloriosa promessa de segurança? Se confia que são suficientes, como temerá? Maldito seja, em eternidade, todo discurso que infunde segurança e confiança em ou através de qualquer coisa exceto unica- mente a misericórdia de Deus, que é Cristo. Todos os santos não só temem, mas também dizem em desespero: "Não entres em juizo com o teu servo, Se- nhor!" [SI 143.21, e tu os fazes entrar, seguros através das cartas, no juizo de- le. Por isso creio que não é completamente desprovida de verdade aquela fá- bula que certas pessoas inventaram contra tão desenfreados abismos de men- tira e que diz: Um morto chegou ao inferno com cartas de indulgências e pe- diu liberdade por causa delas. Então o demônio veio ao seu encontro e, en- quanto as lia, a cera e o papel se consumiram entre suas mãos (por causa do calor do fogo); e então o demônio o arrastou consigo para dentro do abismo.

Deve-se ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto - como é seu ~l<,ver - a dar àqueles muitos de quem alguns pregadores de indulgências ex- /ruem ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isto fosse necessário vender u Ilu,rllica de S. Pedro.

2 8 2 Cf. Ainhr(irio, De officiisminislrorurn 11, 28, i": Migne PL 16,148s. Z H 1 354-43 1, riahcida em Rordéus. tornou-se cônsul em Roma e governador da Campânia. pau-

ro ;ipO\ *tia ci>nvcrr.?<i aii cristianismo. Mais tarde viveu como asceta e bispo em Nola. 284 ('i. 11. 26, I I U I ; ~ 19,

I

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Tese 53

\ilo ir~irrri~os de Cri.sto e do papa aqueles que, por causa da pregasão de rr~~l~rl~?t~cius, Juíe~n calar por inteiro apalavra de Deus nas demais igrejas'as.

I'oi-qiic é o ofício e a intenção do papa querer que antes de mais nada, S C I ~ I ~ ~ C C cm toda parte seja pregada a palavra de Deus, como sabe que lhe é <>i ,lritado por Cristo. Como, pois, se há de crer que ele se oponha a Cristo e a si iiii.siii(i'? Mas os nossos286 ousam isto, assim como também ousam tudo.

Tese 54

(?fende-se a palavra de Deus quando, em um mesmo sernrão, se dedica l~irrlo ou mais tempo às indulgências do que a ela.

\Esta tese] é suficientemente evidente a partir da dignidade, sim, dane- i.r\.;idadc da palavra de Deus, ao passo que a palavra das indulgências não é ii<.i.cssária nem muito útil.

Tese 55

A alitude do papa é necessariamente esta: se as indulgências (que são o rrti8ni*s importante) são celebradas com um toque de sino, uma procissão e urrru cc~rimfinio, o Evangelho (que é o mais importante) deve ser anunciado i.or!i rrrriu centena de sinos, procissões e cerimônias.

I'orque nada na Igreja deve ser tratado com maior cuidado do que o san- I~v:iiiyclho, já que a Igrejanada tem de mais precioso e salutar. Por isso, o

l;v;iiigcllio também é a única obra que ele injungiu a seus discípulos tão repe- iiil:iiiiciiic. E Paulo diz que não foi enviado para batizar, mas para pregar o I~v;ii1~!cllio:N7. Por fim, Cristo ordenou que o Sacramento da Eucaristia não i~~shc celçhrado senão em sua memória2E8". Paulo em 1 Co 11.26: "Todas as vneh qiic comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciareis a morte do Se- i i l i i i i . " I'ois 6 melhor omitir o sacramento do que não anunciar o Evangelho, i. :i 1b:iciii dclerrninou que a missa não deve ser celebrada sem a leitura do liv;iit~,cllio. Assim, pois, Deus dá mais importância ao Evangelho do que a i i i i \ h ; i . poiqiic, sem o Evangelho, o ser humano náo vive no Espírito; sem a tiii,~s:i. 11ori.111, cle o faz. Pois o ser humano viverá em toda palavra que proce- iIc ~1: i Iioc;~ clc I>eiis2~q, como o próprio Senhor ensina mais amplamente em

,'H* 1 'I. 11. 26. !i<iin 20. !H6 li. ~ucyndor r r iIc iz~dt~lyEr~çii~. 288 CI. 1.c 22.19 ! H ! ( I . I i',, 1.17. ZHY ('r. MI 4.4.

Jo 6. Depois, a missa reanima as pessoas que já estão no corpo de Cristo; mas o Evangelho, a espada do Espírito, devora as carnes, divide Beemote, tira o equipamento dos fortes e aumenta o corpo da Igreja. A missa a ninguém

I aproveita senão a quem já está vivo; o Evangelho, absolutamente a todos.

I Por isso, na Igreja primitiva permitia-se aos energúmenos e catecúmenos es-

I tar presentes até depois do Evangelho, sendo então mandados para fora por

I aqueles que eram do corpo da missa2w, e também hoje os direitos permitem

I que os excomungados assistam ê missa até depois do Evangelho. Assim como I João precedia Cristo, da mesma forma o Evangelho precede a missa. O 1 Evangelho prosterna e humilha; a missa dá graça aos humilhados. Portanto,

fariam melhor se proibissem a missa. I Mas que belo espetáculo achas que deve ser para os demônios se, ás ve- I zes, os derramadores de indulgências - que são, eles mesmos, os mais neces-

I sitados de indulgências (a saber, como simoníacos e lapsos em relação aos câ-

I nones) - dão aqueles que absolutameiite náo precisam delas?

I I Tese 56 I

Os tesouros da Igreja291, dos quais o papa concede as indulgências, ndo são suficientemente mencionados nem conhecidos entre o povo de Cristo.

Esta e a segunda morte que mereci. Por isso, depois de já há muito haver afirmado muitas coisas tão manifestas que não necessitariam de protestação, agora preciso debater mais uma vez e, por isto, também protestar com uma última protestação neste debate. Portanto, aqui debatoe busco averdade; se- ja testemunha o leitor, seja testemunha o ouvinte, ou seja testemunha o pro- prio inquisidor da depravação herética.

Tese 57

É evidente que eles certamente não são de natureza temporal, visto que muitos pregadores não os distribitem tão,facilmente, mas apenas os ajuntam.

[Esta tese] é suficientemente evidente através da experiência.

--

2'10 A "ttii\is do, c;i~eciii~ieiios" precedia :i niissa propriamente dita. Ela era encerrada com as ~,;ii;ivi;i\ in, »!;\$ir <,.ir!, ;is qiiztir t;inllii.ni iriiciuvuiri ;i o i i h r a propriaiiiente dita.

ZYI <'r. 1). 27, i i c i I ; i 21.

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Tese 58

Eles tampouco são os méritos de Cristo e dos pois estes sempre operam, sem o papa, a graça do ser humano interior e a cruz, a morte e o in- ferno do ser humano exterior.

O tema desta tese enraizou-se com excessiva profundidade e fixou-se profundamente em quase todos os mestres. Por esta razão, preciso demonstrá-la mais extensa e firmemente, e o farei com confiança.

Primeiramente, quanto aos méritos dos santos: Eles dizem que nesta vida os santos realizaram muitas coisas além de sua

obrigação, a saber, obras supererogatórias, que ainda não foram recompen- sadas, mas deixadas no tesouro da Igreja, as quais é feita uma compensação digna por meio das indulgências, etc. E assim pretendem que os santos te- nham satisfeito por nós. Contra isto eu arguo o seguinte:

1. Por conseqüência, as indulgências não são indulgências, o que provo pelo fato de que não são remissões gratuitas, e sim aplicações de uma satisfa- ção alheia, e por tudo o que foi argtiido acima acerca do tesouro da Igreja mi- litante, ou seja, que então nada é realizado por força das chaves exceto uma certa transferência de obras. Entretanto, nada é desligado, o que é contra a palavra de Cristo que diz: "Tudo o que desligares", etc. [Mt 16.19.1 Da mes- ina forma, então se faz por meio das chaves o que de fato há] acontece, pois, se existem deste modo obras dos santos na Igreja, o Espírito Santo certamen- te não permite que fiquem ociosas, mas elas de fato socorrem a quem podem.

2. Não existem obras de santos que tenham permanecido sem recompen- sa, porque, segundo todos, Deus premia além do que é condigno. E Paulo diz: "Os sofrimentos do tempo presente não são condignos da glória futura", etc. [Rm 8.18.1

3. Nenhum dos santos cumpriu suficientemente os mandamentos de Ikus nesta vida. Logo, absolutamente nada de superabundante fizeram. Por esta razão, também não deixaram alguma coisa para ser distribuída como in- cliilgências. A conseqüência, creio eu, está suficientemente clara, porém de- iiionstro a [premissa] maior de tal maneira que não deva ser posta em dúvida, irias crida de tal maneira que o contrário dela seja herético. Em primeiro lu- g;ir, por aquela palavra de Cristo: "Depois que tiverdes feito tudo o que está rscrito, dizei: Somos servos inúteis." [Lc 17.10.1 Contudo, sob "servos inú- icis" entende-se [alguém que] fez menos e não mais [do que devia], a menos qiic porventura sigamos os sonhos de certos imbecis que tagarelam que Cristo qiiis que isso seja dito pelos seus por causa da humildade, não da verdade. Assiiii. fazem de Cristo um mentiroso, para que eles mesmos sejam verazes. 1:iii scgiindo lugar, por aquela passagem de Mt 25.9: as virgens sábias absolii- i;iiiiciitc tiada quiseram repartir de seu Óleo, temendo que faltasse tanibkm ;i

rl;is iiicsinas. Erii terceiro Iiiyar, Paiilo diz em 1 Co 3.8: "Cada qual rccchcrú

recompensa segundo seu trabalho"; ele não diz: "Segundo o trabalho alheio". Em quarto lugar, G1 6.4: "Cada qual preste contas por si mesmo." E mais um vez: "Para que cada qual receba segundo o que fez no corpo." [2 Co 5.10.1 Em quinto lugar, todo santo deve amar a Deus tanto quanto pode, sim, além do que pode, mas nenhum deles o fez e pôde fazê-lo. Em sexto lu- gar, através da mais perfeita de todas as suas obras, a saber, morte, martírio, sofrimento, os santos não fazem mais do que devem; sim, fazem o que de- vem, e também isto fazem mal-e-mal. Por conseguinte, muito menos fizeram mais do que era sua obrigação em outras obras. Em sétimo lugar, como eu apresento tantos argumentos, ao passo que eles não apresentam sequer um argumento em favor de sua opinião, e sim uma simples narração, falando sem Escritura, sem mestres, sem argumentos racionais, podemos e, mais ain- da, devemos afastar-nos completamente da opinião deles. Mas que sejam es- tes os meus argumentos.

Agora provo a mesma coisa através do parecer dos santos pais. Em pri- meiro lugar, com aquela conhecida afirmação do B. Agostinho: "Todos os santos precisam orar: 'Perdoa-nos as nossas dividas', mesmo quando tiverem feito o bem, porque Cristo a ninguém excetuou quando nos ensinou a orar."29, Ora, quem confessa suas dividas certamente não tem em superabun- dância. Em segundo lugar, através de SI 31[32].2: "Bem-aventurado o ho- mem a quem o Senhor não imputou o pecado." E mais abaixo: "Por isso to- do santo orará a ti." (SI 32.6.) Em seu Diálogo contra ospelagianos, o B. Je- rônimo expõe este versiculo de maneira excelente, dizendo: "Como é santo, se ora por sua impiedade? Inversamente: se é impio, não é santo''294, etc. As- sim pois, pela oração e confissão de sua impiedade os santos merecem que o pecado não Ihes seja imputado. Em terceiro lugar, diz o B. Agostinho no li- vro I das Retratações: "Todos os mandamentos são cumpridos quando aqui- lo que não é cumprido é perdoado."2gl E que, no mesmo lugar, ele trata da pergunta se os santos cumpriram perfeitamente os mandamentos e dá uma resposta negativa, dizendo que [isso acontece] mais pelo perdão de Deus do que pelo cumprimento por parte do ser humano. Em quarto lugar, diz o mes- mo Agostinho no livro IX das Confissões: "Ai da vida dos seres humanos, por mais louvável que seja, se for julgada sem misericórdia."2% Vê, até os santos necessitam de misericórdia em toda a sua vida. A isto se refere aquela palavra de Jó: "Mesmo que tiver alguma justiça, suplicarei ao meu juiz." [Jó 9.15.1 Como, pois, pode ter de sobra para os outros quem que não tem o sufi- ciente para si? Em quinto lugar, no livro I1 de Contra Juliano291, o B. Agosti- nho aduz dez antigos pais da Igreja298 a favor desta opinião - a saber, Hilá-

293 De noturo e1 gratiu, capitulo 35, in: Migne PL 44,266s. 294 Dialogw odv. pelogimos, livro 11.4, i": Migne PL 23,538. 295 Relrarlaliones, livro I, capitulo 19, in: Mignc PL 32,615. 2% Coqfesci~~nes. livro IX. capitulo 13. in: Migne PL 32,778. 297 Advrr.vus Juliunum. livro 11. in: Migne PL 44,671~s. 2VH I .iiicro ci<,iicceii de mencionar s Barllio (329-370).

l o l

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neste assunto. Ainda assim, digo com brevidade que pecado venial é o fato de fazerem menos do que devem, mas não o que elas imaginam ser unicamente pecado venial: uma risada, uma palavra leviana, um pensamento. É certo que isso é um pecado venial, porém um grande pecado venial. Contudo, também uma boa obra, feita da melhor maneira, é pecado venial, como se evidencia a partir da afirmação acima citada do B. Agostinho: Os mandamentos são cumpridos quando aquilo que não é cumprido é perdoado, o que acontece em toda boa obra. Pois, segundo a oração do Senhor, ali sempre se deve pedir perdão. Mas essas coisas exigem um outro debate; disto se tratará em outro lugar. Dai que Boaventura, esse santo homem, errou completamente ao afir- mar que o ser humano pode estar sem pecado venial.

Em segundo lugar, quanto ao mérito de Cristo: Este não é o tesouro das indulgências - é sobre isto que debato. No en-

tanto, [só] um herege nega que ele é o tesouro da Igreja, pois Cristo é o resga- te do mundo e o redentor; por esta razão, verdadeiramente e tão-só ele é o único tesouro da Igreja. Nego, todavia, que ele seja o tesouro das indulgên- cias, até que me ensinem [o contrário]. A causa de minha negação é a seguin-

rio. Cipriano, Gregório de Nazianzo, João Crisóstomo, Ambrósio, Irineu, Oliiiipio, Retício, Inocêncio - e se apóia em sua autoridade, provando que, iicsta vida, nenhum santo está sem pecado, segundo 1 Jo 1.8: "Se dissermos qiic não temos pecado", etc. Ele diz amesma coisa também em Da natureza e da luraca2m.

A partir destas e de muitas outras referências, que seria longo enumerar aqui, concluo que os santos não têm quaisquer méritos que Ihes sejam supér- fluos e com os quais possam socorrer a nós, ociosos. E, para ser uma vez au- der, declaro que não duvido das coisas que acabo de dizer, estando pronto a

te: 1. Porque (como já disse muitas vezes) isso não pode ser provado por ne-

nhuma passagem da Escritura nem ser demonstrado por argumentos racio- nais. Além disso, os que sustentam isso não o provam, mas simplesmente contam, como todos sabem. Ora, eu disse anteriormente que afirmar na Igre- ja alguma coisa para a qual não se pode apresentar qualquer argumento da razão ou passagem da Escritura é expor a Igreja a irrisão dos inimigos e here- ges, já que, segundo o apóstolo Pedro, devemos prestar contas da fé e espe- rança que há em nóslo2. E Paulo [quer] que o bispo seja poderoso na sã dou- trina também para refutar os que contradizemlol. Aqui, porém, a não-exis- tência de qualquer passagem da Escritura vai a tal ponto que, se a Igreja Ro- mana hoje determinasse a parte afirmativa, não obstante permaneceria o mesmo perigo, e isto porque não podemos apresentar outra justificativa exce- to que assim aprouve ao papa e a Igreja Romana. Mas de que adiantará este argumento se formos urgidos pelos que não seguem a Igreja Romana, como os hereges, os begardos? Eles não perguntarão pela vontade do papa e da Igreja Romana, mas pedirão ou uma passagem da Escritura ou um argumen- to plausível. E certamente este é, para mim, o único escopo em todo esse as- sunto.

2. Todos os argumentos aduzidos em relação ao tesouro da Igreja mili- tante e aos méritos dos santos têm mais validade ainda aqui: em primeiro lu- gar, então as indulgências não são indulgências, e sim transferências de obras alheias a outros, bem como verdadeira e legitima satisfação; porque fazemos aquilo que fazemos através de um outro. Ora, através das indulgências (como diz o cânone no livro V, depe. et. re. c. Cum ex eo) a satisfação penitencial é

I

2W 1% noluro e1 ~rolio. I iX ) 1,iiicro cite inma passagem da missai romeno. 101 Srmo 123. çaplttilo 2. in: Migne PI. 38.2.

suportar fogo e morte por elas, e afirmo que é herege todo aquele que for de opinião contrária.

Todavia, mesmo admitindo (o que é impossível) que os santos realmente tivessem méritos supérfluos, não sei se a Igreja faria uma obra muito digna (lcspendendo méritos tão preciosos de modo tão barato, a saber, para a isen- ção de penas, já que esta é o dom mais vil da Igreja e [só] pode ser dado as pcssoas mais vis, como já disse muitas vezes. As penas dos mártires e santos devem ser, antes, um exemplo no sentido de suportar as penas. Pois assim oramos quando celebramos suas festas: "Que imitemos também a virtude do sofrimento."]^ Da mesma forma, a mãe Igreja não parece agir piedosamente quando relaxa, e sim quando castiga e reprime, como é evidente no caso da cxcomunhão e das censuras. Estas penas ela não relaxa de modo algum, mas, aiites, as impõe, principalmente quando estiver mais solícita por seus filhos. I'orém se ela relaxa, fá-lo como que desesperando, temendo que coisas piores resultem [disso]. Portanto, como as remissões de penas são um dom tão vil e, iieste caso, o poder das chaves é, por si só, suficiente, parece que, se fossem concedidas a roncadores, por certo ocorreria uma irreverência nada pequena para com os labores tão egrégios dos santos. O B. Agostinho diz coisa melhor rio sermão sobre os mártires: "As solenidades dos mártires são (não remis- s<3cs, mas) exortações ao martírio, para que não nos aborreça imitar o que rios agrada celebrar."'ol

Está, pois, demonstrada esta parte: os méritos dos santos não podem ser iiiii tesouro para nós porque constituem penúria para os próprios santos, a iiieiios que alguém creia que eles nos são um tesouro não porque são supér- Iliios, e sim porque é a comunhão dos santos, porque cada qual trabalha pelo oiiiro, assim como um membro pelo outro. No entanto, eles fizeram isso em vida, e sc o fizessem agora, isso aconteceria antes por meio de intercessão do qiie pclo poder da chave.

1:iitretanto. aqui ouço de longe o perspicaz argumento de certas pessoas: "r: verdade", dizem elas, "os santos não foram sem pecados nesta vida; po- icCiii [i'orain apenas] pecados veniais. Não obstante, puderam fazer mais do 1 1 1 1 ~ dcviam." É difícil lidar com essas inteligências extremamente obtusas

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riili:iq~iecida. Ele não diz "transferida", e sim "enfraquecida". Em segundo Iiignr, então as chaves da Igreja nada fazem e são verdadeirametite vilifica- <I:is, porque não desligam, mas transferem o ligado a outrem. Ora, é impio lli/.cr que a chave não desliga; porém se ela desliga, remove tudo. Em terceiro liiaar, os méritos de Cristo de fato operam a mesma coisa sem as chaves, pois i130 hão de ficar ociosos. Em quarto lugar, então ocorreria uma grande irre- vcitncia para com os méritos de Cristo, se fossem usados apenas para a rela- x:i$ão da pena, visto que, por meio deles, ele mesmo se tornou um exemplo <!c todos os mártires. Assim, será contrário á natureza dos méritos de Cristo qiic cles sirvam aos preguiçosos, uma vez que estimulam também os fervoro- 511s. Com efeito, a remissão da pena é, como já foi dito, a coisa mais vil.

3 . Eles que me respondam a esta contradição: o B. Tomás e o B. Boaven- iiiia e seus sequazes dizem, com constância e unanimidade, que boas obras 530 iiielhores do que indulgências, como foi suficientemente dito acima. Que, [ii)is, isto seja verdade. Da mesma forma, que através das indulgências os mé- iiios de Cristo são aplicados e despendidos. Que também isto seja verdade, porque todos afirmam também isto com constância. Da mesma forma, os iiii.ritos de Cristo são incomparavelmente melhores do que nossas boas ot~ias , sim, só eles são bons. Que também isto seja verdade.

Aqui eu concluo e infiro: infeliz é quem não abandona suas boas obras e Iiilsca unicamente as obras de Cristo, isto é, indulgências, já que seria a últi- iii;i sciitina de todas as blasfêmias preferir suas boas obras ás obras de Cristo. I ' i i i conseguinte, ou as obras de Cristo não são o tesouro das indulgências, ou sc ciisoberbece o miserável que, deixando de lado todos os preceitos, mesino os divinos, não compra tão-somente indulgências, isto é, méritos de Cristo. 01:i. S. Tomás e S. Boaventura dizem, contra isso, que as indulgências não \:I0 ordenadas e são de menor valor do que as boas obras. Portanto, elas não ; I o as obras de Cristo e, no entanto, são, ao mesmo tempo e em certo seuti- C I O . os obras de Cristo.

I'odavia, como são argutos, talvez me responderão através de distinções :iiistotélicas3~: "É verdade que os méritos de Cristo, tomados simplesmente, c: io iiiclhores do que nossas obras. Assim, porém, eles não são indulgências, i i i i :issirii não são aplicados pelas indulgências. Mas são tomados, conforme s:io iiiiicainente, como satisfatórios por penas e deste modo são aplicados." IKisp~~tido: prova o que dizes. E se eu não quiser crer nesta mera afirmação 1 il;i'! i!-nic ordenado provar os espíritos se procedem de Deus)O'. Em segundo I i i ~ ~ , : i i , ori<le está agora aquilo que foi dito acima: ele+ seriam dispensados i iiidiilgências porque não teriam sido recompensados, mas porque

teriam301 feito coisas que não eram obrigados a fazer? Esses méritos são de tão pouco valor, ao ponto de não receberem nenhuma outra recompensa se- não a de serem satisfações para outras pessoas, para preguiçosas? Então ar- gumento assim: as obras supererogatórias são as mais nobres e perfeitas de todas. Concordas? Certamente. E tais obras não são remuneradas aos márti- res ou santos, mas concedidas aos preguiçosos e roncadores? E assim os san- tos são remunerados segundo suas obras e seus méritos menores, porque dei- xam os mais perfeitos a outros? Quem está louco assim? pergunto eu. Então Sta. Catarinama nada recebeu por seu martírio e sua virgindade, mas deixou isso à Igreja, bastando-lhe o prêmio pela oração, pelas vigilias e por outras boas obras? Se disseres que ao mesmo tempo foram remunerados pelos méri- tos e os deixaramim, onde fica aquela afirmação de que existem certos méri- tos não remunerados? Não vês o que é falar sem apoio na Escritura e adivi- nhar nas trevas?

Se é ímpio dizer que as obras supererogatórias ou o que os santos fize- ram a mais do que deviam são de tão pouco valor assim e que não Ihes foram remunerados, quanto mais impio é vilificar desta maneira as obras de Cristo, que são todas superabundantes! Por esta razão, magnificar as indulgências de tal forma e, no entanto, por outro lado, colocá-las abaixo de nossas obras - isto é blasfemar Cristo e seus santos em seus méritos, a não ser que isso aconteça erroneamente e sem querer.

4. Retomo o argumento aduzido pela glosa depe. et re. c. quod autem: se as indulgências são remissões de todas as penas, o ser humano não deve mais jejuar ou fazer o bem. Ele não é anulado pela afirmação de que a remis- são é incerta; antes, as chaves da Igreja sofrem blasfêmia, embora 0 3 1 °

apóiem nesta opinião quase todos os mestres escolásticos. Por outro lado, aquela afirmação de que o ser humano não sabe se é digno do amor diz res- peito ao resultado futuro, pois quem crê no presente não sabe se vai perseve- rar na fé. Dai que no mesmo lugar, em Ec 9.1, é imediatamente acrescentado: "O ser humano não sabe se é digno do amor ou do ódio, mas tudo é mantido incerto até o futuro", pois ele disse antes: "Os justos e suas obras estão nas mãos de Deus", etc. Se tornam a remissão da culpa incerta, muito mais tam- bém a da pena, já que, permanecendo a culpa, a pena também permanecerá necessariamente, assim como a glosa diz, no mesmo lugar, que sob "remis- são" se entende aquela [que acontece] quando o pecado é completamente apagado através da contrição (ou melhor, pela fé nas chaves). O que, então, são as indulgências? Uma doação incerta? Longe de nós, longe de nós que aconteça tão impia ilusão por parte da Igreja de Cristo, sim, das chaves. Pois então as indulgências verdadeiramente seriam (como dizem algumas pessoas)

Arist6tclcs é o pai da lógica, designada nos dias de Lutero de "dialética". Aristóteles foi o p i ii~ieiru a esinbclcçer as regras se undo as quais se desenvolve o pensamento. Sua principal oliiii iicssc tocarite Ç o Or~onon. {como "pai &a lógica" que Luiero menciona aqui a Aris- iiiiclcs.

1 I . I .I<i 4.1. IIY, Sc. os iiiCritor de ( ' r i s lu r ilos riili1ii.i.

307 Sc. os santos. 308 Sezundo a leaenda. Sta. Catarina virucm mARir, descendente da realeza. Sofreu o marti- - .

r iusob o imperador MaxSncio ou ~ G i m o . 30'4 Sc. d Igreja. 310 Nno estA çlriro s quem cstc "o" (eum. no original) se refere.

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iim ímpio logro dos crentes. Chega-se a este erro quando procuramos ser jus- tificados antes por nossas obras e nossa justiça do que pela fé. Por isso, ensi- iiomos somente a respeito da contrição, quando melhor ensinamos, porém iinda a respeito da fé nas chaves, que, de todas as coisas, é a que mais deveria ser ensinada. Sobre isto, contudo, já falamos mais extensamente acima. Por- i:iii~o, ou as indulgências não são o tesouro dos méritos dos santos, ou se se- gnc muito bem que quem as conseguiu deve desistir de suas boas obras pelos pecados.

Em segundo lugar, essa refutação é impia contra Cristo: se por meio das iiidulgências me são conferidos os méritos de Cristo e eu ainda tenho por in- certo que os pecados me são perdoados, então ainda preciso obrar pela remis- s3o deles. Então se segue que duvido que os méritos de Cristo a mim aplica- dos e dados sejam suficientes para a remissão dos pecados. O que é mais exe- crive1 do que essa dúvida? Por outro lado, se não duvido, mas creio que são suficientes, agirei de modo extremamente ímpio se considerar minhas obras rnclhores do que as indulgências, isto é, do que as obras de Cristo a mim apli- cadas. Com efeito, se posso obter uma única obra de Cristo, sim, a milionési- iiia parte da menor obra de Cristo, estou seguro da redenção eterna. Pare- iiios, pois, de fazer nossas obras pelos pecados e nada façamos exceto com- prar indulgências, porque nelas conseguimos não uma obra, mas todos os iiiéritos de Cristo, e não só dele, mas de todos os santos. Logo, como os méri- tos de Cristo de forma alguma podem ser comparados aos nossos em termos de bondade, ou eles não são o tesouro das indulgências, ou as indulgências tleveriam ser preferidas a todas as obras de todos os mandamentos de Deus, oii se faria a maior irreverência e blasfêmia de todas aos méritos de Cristo. I)cpois, vê também que coisa é esta: como se os méritos de Cristo somente não fossem suficientes, acrescentam a esse tesouro os méritos dos santos, as- siiii como os da Igreja militante.

Tu, porém, dizes: "Então S. Tomás errou tanto assim, juntamente com os demais? Acaso erra o papa, bem como toda a Igreja, que é dessa opinião? Acaso tu és o primeiro e o único que tem a concepção correta?"

Respondo, em primeiro lugar: não estou só; a verdade está comigo, e es- 130 comigo muitas outras pessoas: as que tiveram e têm dúvidas quanto ao v:ilor das indulgências. E elas não pecam por causa dessa dúvida, já que as in- tliilgências são apenas remissões de penas. Quer alguém creia nelas, quer não, qiicr as obtenha, quer não, ainda assim será salvo.

lini segundo lugar: também o papa está comigo, pois, embora conceda iiiiliil~ências, em nenhuma parte diz que são do tesouro dos méritos de Cristo c iln lgrcja; mais ainda: explicando a si mesmo, diz no livro V, depe. et re. c. ( 'irtti cx .xeo, que elas são enfraquecimentos da satisfação penitencial. Um en- h;itliicciiiiento, entretanto, não é uma adjudicaçâo dos méritos de Cristo, e siiii :ipeiias uina abolição das penas.

I t i i i terceiro lugar: Lambéru toda a Igreja está comigo, porque a Igreja 11ciis;i iiiteiíaiiiciiic coiii o papa e como o papa. Já foi dito, porém, qual c a o1)iiiino do p:1pa.

1:iii qtiiirlo 1iip;ir: iiiesiiio rliic S. TomBs. o H. Hoaveiiliirit. Alcx;iii<lre tle

I b h

Hales3il sejam homens insignes, juntamente com seus discípulos Antonino, Pedro de Palude, Agostinho de Ancona, além dos canonistas, que os seguem todos, ainda assim é justo preferir a eles em primeiro lugar a verdade, depois a autoridade do papa e da Igreja. E não admira que tão grandes homens te- nham errado nisso. Pois em quão grandes [questões], pergunto eu, até os es- colásticos censuram o B. Tomás por haver errado! Sim, o que é maior ainda: já há mais de 300 anos tantas universidades, tantas inteligências agudissimas nelas existentes, tantos esforços pertinacissimos de pessoas de talento traba- lham em Aristóteles. Não obstante, não só ainda não compreendem Aristóteles3l" mas também disseminam erro e uma compreensão inventada por quase toda a Igreja, se bem que, mesmo que o compreendessem, não te- riam adquirido nada de sabedoria notável, especialmente nos livros de Aris- tóteles que eles mais usam, nos quais, segundo seu3" próprio testemunho em Aulo Gélio314, livro XX, capitulo 4, e Gregório de Nazianzo'lJ no sermão contra os arianos, ele é descoberto como mero criador de dédalos de palavras e logomaquias. Talvez aqui eu pareça audaz, imprudente, temerário, e oxalá apenas tivesse tempo e ócio para poder prestar contas dessa minha temerida- de e tornar minhas palavras fidedignas. Talvez conseguisse fazer com que mi- nha opinião não pareça infundada. Eu não faria Aristóteles concordar com Plarão e outros - o que João Pico de Mirândola tentou fazer -, mas pinta- ria Aristóteles com suas próprias cores, assim como merece ser pintado quem é, por profissXo, um artífice de palavras (como diz Gregório de Nazianzo) e um enganador de inteligências. Se, pois, Deus permitiu que por tanto tempo dominasse em tão grandes inteligências tão grande nuvem e escuridão, como ainda nos agradamos a nós mesmos com tanta segurança, ao invés de (como convém a cristãos) considerarmos suspeito tudo o que é nosso, para que só Cristo seja a luz, a justiça, a verdade, a sabedoria, todo o nosso bem?

311 Falctido cm 1i45. Alexandre de Hdcr. naiural da Inglaierra. frii'lei,lo%u es:Jl&iico. rciido lecionadu em Pari\. Foi o primciru IR)ID~J a uiilirar a filo<oiia de A I ~ ~ I O I C ~ C S para funda- mentar a doutrina da Igreja.

312 Lutero sempre defendeu a tese de que os teólogos escolásticos não entendiam a Aristótdes, no qual baseavam seu sistema cientifiw. Acentuou, ainda, que a Flsica de Aristóteles, usa- da nas estudos preparatórias. era desnecessária para os teólogos. Mais acirradas, no entan- to, foram suas criticas ao usa da Ética de Aristóteles, por ele considerada pagã, por apre- sentar a doutrina das wtenciaiidades humanas. suficientes oara a virtude. Essa Erico era i.,aaa peldr .e"logo, e,:olb,itcor como ba,e para a ai;;< ;ris13 Lurerd \,ia nela o pariia de panidn para a daurpa;ãri pclaàiaiia d3 io:rriologi~ ?\1ng2li;a. qiii cnrin.!,.! .lu< J rer hii- inan,, "30 pode <cr ju\iificado por mbltor proprio., "ia* qomcnie p,>r g3;a de I>eiir. Cf.. p. ex., sua discussão com Erasmo.

313 Sc. de Aristóteles. 314 Grarnático do século 11, publicou em suas Nocfesolticaeexcertos de diversos escritores. Lu-

tero refere-se à passagem de Noctes allicae, XX,4, a qual, no entanto, não permite a inter- pretação que o reformador dela tira.

315 Falecido em 390, Gregório é natural da Capadócia. fez estudos em Atenas e desempenhou diversas fun~ões eclesiásticas em sua pátria antes de ser designado por Teadósio, em 380, patriarca de Constantinopla. Ardoroso defensor da doutrina de Atanásio, dedicou-se ao cornhate dos escritos arianas. Lutero menciona Gregório coma adversario de Aristóteles, a iiiieili i> pai da Igreja designava de logod~edolus e1 logornochus.

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Assim, ao verem que Aristóteles era tão venerado como autoridade por ~>cssoas indoutas e ignorantes de Cristo, aqueles santos homens, como eram Iiiiiiiildes, seguiram3'6 com piedosa simplicidade e, tendo caído em erro, de- i t i i i i ocasião a outros para tantas confusões, opiniões, perguntas, erros, como vciiios nos mestres escolásticos. E, porque abandonamos Cristo, merecemos qiic também ele nos abandonasse e que, mesmo por meio de seus eleitos, nos desse ocasião de erro e de labor infinito, como diz em Ez 14.9: "Quando o prolèta tiver errado e falado uma palavra, eu, o Senhor, enganei esse ~~rol'eta." E no mesmo lugar: "Se alguém vier ao profeta para me perguntar ;itravés dele, eu, o Senhor, lhe responderei segundo a multidão de suas impu- rezas." (Ez 14.4.) Por isso, tudo deve ser lido e aceito com temor e discerni- iiiciito, mesmo as coisas transmitidas por grandes e santos homens, conforme diz o apóstolo: "Provai tudo, retende o que é bom" [I Ts 5.211 e conforme ;ir{iiela passagem de João: "Provai os espíritos se são de Deus." [I Jo 4.1.1 Oiictn deixou de lado tais conselhos e depositou sua confiança em ser huma- i c o m o o fazem aqueles que dizem: "Prefiro errar com tão grandes pes- so:is a ter a opinião correta contigo" - merece que o conselho também o des- preze e abandone. Por que não há de ser merecidamente desdenhado pelo es- pirito do conselho quem desdenha o conselho do Espirito? E o que também ticoiiteceu no caso das indulgências. Quando os santos homens viram que o ~ ~ i i v t i as exaltava tanto (como o povo costuma ter sempre a opinião de Páris317 c Midas318) e não quiseram crer que elas são de tão pouco valor, começaram a iiivciitar um fundamento honroso e precioso para elas, já que nenhum outro Ilics ocorria e [de fato] em nenhum lugar havia.

Voltemos, pois, ao assunto, investiguemos o mérito de Cristo e demons- I iciiios que ele não é o tesouro das indulgências:

5. A ninguém é dada a graça da contrição sem que, ao mesmo tempo, lhe \ci:iiii dados os méritos de Cristo. Portanto, ele tem o tesouro dos méritos de

'risto antes das indulgências e, se não o tivesse, estas não lhe seriam úteis, se- r:iiiiclo a opinião deles mesmos (pois que têm uma opinião tão sublime a res- licito <Ia remissão das penas). Pois pela contrição o ser humano volta a graça i.oiii Cristo, assim como o filho pródigo [volta à graça] junto a seu pai, que (li/: "Tiido o que é meu é teu." [Lc 11.31.1 E 1s 9.6: "Um menino nos nasceu

i i i i i filho se nos deu." Rm 8.32: "Como não nos dará com ele todas as coi- <:15'!~'

h. I>o contrário, os que são piores seriam mais felizes na Igreja. Com rl'cito. j i dissemos que as indulgências aproveitam tão-somente aos crimino- I c ;I eles será dado o tesouro dos méritos de Cristo? As crianças, as vir- p r i i h c ;ias itiocciites, contudo, ele não será dado, aqueles aos quais mais é de-

l i l i S r . ,'$\i,< pçSSOils.

I 1 I I.illi<, de l>iia~ii<i e de HL'ciiba. ial>tr>u Hclcna, vindo a ser mortr> diante de Traia ~ c l a flcclia

vido, sim, aos que unicamente o têm? Mas este argumento pouco adianta junto aos que crêem que todas as penas são abolidas e que as indulgências não podem ser conferidas aos pecadores sem contrição, o que eu não creio.

Por último, uma prova que a própria tese traz consigo: os méritos de Cristo e de seus santos realizam, sem o papa, sua dupla obra, a saber, uma própria e uma estranha. Aprópria é a graça, justiça, verdade, paciência, sua- vidade no espírito do ser humano eleito, porque a justiça de Cristo e seu méri- to justificam e remitem os pecados, como diz João: "Eis o cordeiro de Deus, eis o que tira o pecado do mundo." [Jo 1.29.1 E 1s 43.24s.: "Tu me fizeste le- var uma vida de escravo com tuas iniquidades e me deste trabalho com teus pecados. Eu, eu sou o que apago as tuas iniquidades e dos teus pecados não me lembro." Ele os apaga, porém, através do mérito de sua paixão, e deste modo eu concederia que os méritos de Cristo são um tesouro - não da Igre- ja, mas de Deus Pai -, pois, através de eficaz intercessão, ele nos impetra re- missão da culpa junto a Deus. Assim diz ele em Jó, por meio de uma figura: "Aceitarei a face dele." [Jó 8.42.1 E o apóstolo diz em Hb 123igque o sangue de Cristo clama melhor que o de Abel, porque o sangue de Abel pede vingan- ça e ira, enquanto que o sangue de Cristo clama por misericórdia e interpela por nós. A obra estranha (pois assim a chama Isaias no capitulo 28310) é cruz, fadiga, penas variadas, por fim morte e inferno na carne, para que seja des- truido o corpo do pecado321, para que sejam mortificados nossos membros sobre a terra e para que os pecadores sejam voltados para o inferno. Pois quem é batizado e renovado em Cristo é preparado para penas, cruzes, mor- tes, para ser considerado como ovelha de matança e ser morto todo o dia322, como diz o salmo: "Porém eu sou preparado ou ordenado para os flagelos, e a minha dor está sempre diante de mim." [SI 38.17.1 E bem assim que deve- mos nos tornar conformes a imagem do Filho de Deu+, e quem não tomar sua cruz e o seguir não é digno dele324, mesmo que esteja cheio de todas as in- dulgências.

A partir disso, vê agora se desde a época em que começou a teologia es- colástica - isto é, ilusória (pois esse é seu sentido em grego) - a teologia da cruz não está esvaziada, e todas as coisas estão completamente pervertidas. O teólogo da cruz (ou seja, o que fala do Deus crucificado e abscôndito) ensina que penas, cruzes e morte são o tesouro mais precioso de todos e as relíquias mais sagradas, que o próprio Senhor dessa teologia consagrou e bendisse, não apenas através do toque de sua santissima carne, mas também através do arnplexo de sua vontade supersanta e divina, deixando-as aqui como [as relí- quias] que, em verdade, devem ser beijadas, buscadas, abraçadas. Sim, bem- ;iventurado e bendito é quem parecer a Deus digno de que lhe sejam dados es- hcs tesouros das relíquias de Cristo; ou melhor: [bem-aventurado e bendito é] qiiein compreende que eles lhe são dados. Com efeito, a quem não são ofere-

322 Cf. SI 44.22. 323 Cf. Rm 8.29. 324 ('1. Mi 10.38

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(idos'! Assim diz o B. Tiago: "Considerai pura alegria, irmãos, quando cair- des cin várias tentações." [Tg 1.2.1 Pois nem todos têm essa graça e glória de reccher esses tesouros, e sim [apenas] os mais eleitos filhos de Deus. Muitos ~)rrcgriiiam a Roma e a outros lugares santos para ver a túnica de Cristo, os- sos de mártires, lugares e vestígios de santos. Não é que condenemos isto, iii:is deploramos que de tal forma ignoramos as verdadeiras reliquias - a sa- Iicr, sofrimentos e cruzes, que santificaram os ossos e as reliquias dos márti- rcs c os fizeram dignos de tão grande veneração -, que não só não as aceita- iiios quando nos são oferecidas em casa, mas as repelimos com todas as for- ~ i s c as perseguimos de lugar em lugar, ao passo que deveriamos pedir a I)ciis, com o maior desejo e com lágrimas constantes, que nos sejam dadas filo preciosas reliquias de Cristo, as mais sagradas de todas, como um dom dos filhos eleitos de Deus. Assim o Salmo 15[16] tem, em hebraico, o título rrrichiam, o que significa como que um insigne pequeno presente de ouro, i.c)iiauanto ai não seia cantado senão o sofrimento de Cristo. E o Salmo 7')[8i)] tem o titulo "festemunho de Asafe", o que os eruditos pretendem que

compreendido antes como uma preciosidade de Asafe ou um dom deli- cio50 de Asafe; no entanto, lá ressoa um hino da cruz.

melhores coisas e as mais dignas de amor. No entanto, aquele ainda aceita di- nheiro por seu tesouro; o tesouro deste, embora oferecido gratuitamente, não julgam digno sequer de um olhar, mas por fim ainda o perseguem.

Quem, entretanto, será o juiz deles, para que saibamos a qual dos dois devemos dar ouvidos? Eis que 1s 66.4 diz: "Eu escolherei o que ridiculari- zam." E 1 Co 1.27: "Deus escolheu as coisas fracas do mundo para envergo- nhar as fortes", etc. Se aceitamos este juizo como verdadeiro, resta-nos con- fessar - se queremos falar a verdade - que os tesouros das indulgências são os maiores danos de todos, se compreendidos do modo como são apregoa- dos, ou seja, que são a remissão de todas as penas, não apenas das canônicas. Pois não há dano maior do que tirar a imagem do Filho de Deus dos seres hu- manos e despojá-los de tesouros inestimáveis, dos quais Sta. Agnes329se enso- berbecia com alegre e bem-aventurada jactância, chamando-os de gemas e ornamentos vernantes e coruscantes, jóias preciosas, etc.

Tese 59

Há mais: essas relíquias são tão santas e esses tesouros são tão preciosos 1 S. Lourenço330 disse que os pobres da Igreja são os tesouros da mesma, rltie, enquanto outros podem ser conservados na terra ou, de forma sobrema- empregando, no entanto, a palavra como era usada em sua época. ticira honorifica, em ouro, prata, pedras preciosas, seda, elas não podem ser coiiscrvadas senão em recipientes celestiais, vivos, racionais, imortais, puros, s;iiiios, isto é, nos corações dos crentes, incalculavelmente mais preciosos do qiic iodo ouro e todas as gemas. Porém agora a tal ponto falta ao povo a fé :iir;ivés da qual deveria praticar essa religião de tais reliquias, que até alguns \iiitios pontífices se lhes tornaram autores e lideres não apenas na rejeição325, III:IS também na perseguição, a tal ponto, que quiseram devorar os turcos, de- iiois prelèrem excomungar também os próprios cristãos para uma condena- <.:\o pior que a do inferno a remitir um centavo de sua taxa"6, muito menos \<)l'rci- titn prejuizo em seu nome ou corpo. Não obstante, nesse ínterim abri- I ; i i i i ;as comportas do céu e derramaram tesouros de indulgências e méritos de C'risto, de ia1 modo que também através desse dilúvio o orbe cristão quase Iiii tlcsiruido, se minha fé não me engana. O teólogo da glória, porém (isto é, iliic 1150 conhece, com o apóstolo, tão-somente o Deus crucificado e abscôn- cliio. iii;ts. coin os gentios, vê e fala do Deus glorioso, de suas [coisas] invisi- vcis i r p:triir das visiveis321, [do Deus] onipresente e onipotente), aprende de ArisiOiclcs quc o objeto da vontade é o bem e que o bem é digno de amor, o i i i i i l . coiil tido, digno de ódio, razão pela qual Deus é o sumo bem e sumamen- li. iligiiii de amor. Dai que, dissentindo do teólogo da cruz, define que o te- :~oiiio dc C'risto são relaxações e isenções de penas, sendo estas328 as piores i.<>i\;i\ c iis iiiais dignas de ódio. O teólogo da cruz, pelo contrário, [afirma i~iicl < r icsi>iiro de Cristo são imposições e obrigações de penas, sendo estas as

I ? < S i . <Ir I i i i r relliliii:i\. 327 C'f. Kiii 1.20. I!<* l \ t c > C, tlz! l ~ t x c t dz!~ i ~ ~ ~ l ~ ~ l ~ ~ ~ ~ c i ~ ~ s . 128 Sc. 8th lperi;i\.

170

[Esta tese] é suficientemente evidente para quem viu a legenda de S. Lou- renço. Depois, hoje a palavra não é usada no sentido de que os pobres sejam chamados de tesouro da Igreja, mas assim denominamos o patrimônio de Cristo e de S. Pedro, o que certo palha -porém sem grão -de Constantino deu a Igreja331. Por isso, também SI 2.8, onde Deus diz a Cristo: "Pede-me, e te darei as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão", deve ser entendido como referindo-se ás cidades e aos campos desde o Orien- te até o Ocidente. Do contrário, se em nossa época alguém falasse de modo diferente das coisas da Igreja e das espirituais, ele nos seria um estrangeiro, embora também o B. Lourenço tenha chamado os bens da Igreja (mas não só eles) de riquezas.

329 Mártir romana. Nàa sabemos exatamente ouando sofreu o martírio (Décio. Valeriano ou

grafia cristZ antiga, Agnes é apresentada ao lado do cordeiro (ognus). 330 Diácono romana, nos dias de Sixto I1 (257-258). Assim como Sixia I1 e outros seis diáco-

nos, Lourenço morreu mártir das perseguições sob VaMrio (258). Ao exigir-se dele a entre- ga dos tesouros da Igreja, Lourenço apontou para os pobres da comunidade. Em conse- quêiicia sofreu o martírio, sendo queimada sobre uma grelha incandescente. Seu túmula encontra~se na Via Tiburtina, em Roma.

331 No original: "Patrimonium Christi et S. Peiri appellamus, quodpoieo quaedam, sine fo- r w n prono. Constantini dedit ecclesiae." Lutero faz um jogo de palavras para escarnecer r l i i ileriyn;i$ão dii Estado papal e do poder secular do papa. contidos na expressãopolrimo- nilirti I'vlri. e dc sei, ircorihecimcnro e ampliacão airavCs da "doação de Canstantino". A "<lo;icRo de (iirist;intino" tçve priitidc pcscr rio direito caní>riic<i. espeçi~liiiente desdc os

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Tese 60

I? sem temeridade que dizemos que as chaves da Igreja, que lhe foram ~~rol~orcionadas pelo mérito de Cristo, constituem este tesouro.

Se esse mérito fosse chamado também de tesouro das indulgêncas, isto é, (Ir poder das chaves, então o sentido é claro. Pois ninguém duvida que tudo o iiiic foi dado a Igreja lhe foi dado pelo mérito de Cristo.

Tese 61

Pois esta claro que, para a remisão das penas e dos casos332, o poder do IIrrr)u por si só é suficiente.

[Esta tese] é demonstrada a partir do próprio estilo do papa, que, ao li- )::ir ou desligar, nunca menciona os méritos de Cristo, mas diz unicamente: (I;i plciiitude do poder, a partir de conhecimento seguro e de moto próprio.

2. Em segundo lugar, a partir da opinião comum a todos os que provam iliic as indulgências são dadas por força daquela palavra onde Cristo diz: "I'iido o que desligares", etc. [Mt 16.19.1 Esta palavra, julgam eles, seria \r i l i vigor se não concedesse o poder de dar. Por esta razão, também enten- ~lciii que só o poder é suficiente, porém não provam o tesouro com qualquer I>:i'stigem da Escritura, aduzindo esta passagem como se fora suficiente. En- iici;iiito, ela se refere unicamente ao poder, e não a aplicação de méritos.

3. Do contrário, também em outras ligações e desligamentos dever-se-ia riiiciidcr uma distribuifão de méritos, a saber, quando, através de seu oficio 5:icci-dotal, ele excomunga, absolve, ordena, exclui da ordem, determina, ab- ii~g:i, proíbe, dispensa, muda, interpreta. Pois em todas estas coisas se age por h i ç a desta palavra: "tudo o que". Se, pois, nestas coisas não é necessá- i i;i I I I I I : ~ tlistribuição de méritos, bastando só o poder das chaves, quanto mais ii:i icinissão de penas canônicas! E que tal remissão não é outra coisa do que i i i i i : i ;tlxolvisão de penas. Sim, se em algum lugar ocorre uma distribuição <li15 iiiCriios de Cristo, ela deve acontecer principalmente na absolvição de um i~~coiii~irigado, pois ai um pecador é reconciliado com a Igreja e mais uma vez iIi~rl:~r;ido participante dos bens de Cristo e da Igreja. Portanto, não existe i i ~ . i i I i i i i i i ; i razão por que aquela palavra: "Tudo o que desligares" devesse in- i.liiir i ] icsoiiro de Cristo no caso das indulgências e não também em todos os ~iiitros dcsligauientos. já que se trata da mesma passagem, das mesmas pala- v i ; i \ I. clo iiiesriio sentido nelas [contido].

i11.1, ili. Iiii,i.i.iiciii I I I ( I I1)X-1216) 1)exle or decret<is dç (iraciaiiii (375-383) e derde ;,.i i i i l i r ~ iiiil:ici\rr <li. \i.ii ili\ciliiil<i I'ztitciii,;ilç;i (I'<niic;t l'iillia!). dehigriadns de pol<><i. p;illiii. ci icivr i~ i i t i t i i i ? h i i i i i t < l l f ; l < i ;ailili ; i~~irrri i l ; i i l i i r ii<liriilitri,;ida ~ i o r Iiilcrc:.

11.' ( ' I . I,'\<' r,.

4. Se desligar por meio da chave ao conceder indulgências importa numa abertura e efusão do tesouro da Igreja, então, por oposição, ligar importará numa reunião e num fechamento do mesmo tesouro, pois poderes contrários têm obras contrárias. Ora, em nenhum lugar e em nenhum tempo existe o uso de reunir ou fechar esse tesouro; no entanto, se há um desligamento e uma efusão, é necessário que haja também um fechamento, visto que ambas as coisas são dadas a Igreja, e não são dadas inutilmente ou em vão.

Por conseguinte, assim como sob "ligar" se entende tornar [alguém] de- vedor sem reunião do tesouro e sem tirar-lhe algo realmente, da mesma for-

I ma sob "desligar" é preciso entender tornar [alguém] livre sem uma expen- são efetiva do tesouro.

~ Tese 62

O verdadeiro tesouro da Igreja é o santissimo Evangelho da glória e da graça de Deus.

Em boa parte da Igreja o Evangelho de Deus é uma coisa bastante desco- nhecida. Por isto, temos que falar dele um pouco mais amplamente. Pois Cristo nada deixou no mundo exceto tão-somente seu Evangelho. Dai que nada entregou a seus servos chamados senão minas, talentos, dinheiro, dená- rios, para, a partir destas palavras de tesouros333, demonstrar que ele334 é o verdadeiro tesouro. Paulo diz que entesoura para seus filhos33'. Cristo [fala de] um tesouro escondido no campo336. E o fato de ser abscôndito faz com que ao mesnio tempo ele também seja negligenciado.

O Evangelho, porém, segundo o apóstolo em Rm 1337, é uma prédica a respeito do Filho encarnado de Deus, nos dado sem méritos [nossos] para sal- vafão e paz. Ele é palavra de salvação, palavra de graça, palavra de consolo, palavra de alegria, a voz do noivo e da noiva, palavra boa, palavra de paz, como diz 1s 40338: "Quão jucundos são os pés dos que anunciam boas-novas, que anunciam a paz, que pregam coisas boas." A lei, contudo, é palavra de perdição, palavra de ira, palavra de tristeza, palavra de dor, voz do juiz e do réu, palavra de inquietação, palavra de maldição. Pois, segundo o apóstolo, a lei é a força do pecado'", a lei opera a ira'", é lei da morte341. Com efeito, a partir da lei na.da temos senão uma má consciência, um coração inquieto, um

i33 Isto e, ~a l av ra s que designam tesouros 334 Sc. u Evangelho. 135 Cf. 2 Co 12.14.

~ -~ ~~

337 ('i. Rrn 1.1,3. 338 A piisiiigem citada par Lutera se encontra em 1s 52.7 139 ('I'. I . C' i i 15.56. 140 1 ' f . Hiii 4. 15. 141 ( ' 1 ' . K i i i 15.13.

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peito pávido em face de nossos pecados, que a lei mostra, mas não remove e qiic também nós não podemos remover. Assim, pois, a luz do Evangelho vem aos cativos, tristes e totalmente desesperados e diz: "Não temais!" [Is 35.4.1 "Consolai-vos, consolai-vos, povo meu!" [Is 40.1.1 "Consolai os pusilâni- ines!" [I Ts 5.14.1 "Eis o vosso Deus!" [Is 40.9.1 "Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!" [Jo 1.29.1 Eis aquele que é o único que cumpre a lei por vós, a quem Deus vos fez justiça, santificação, sabedoria, redenção, :i todos quantos crêem nele342. Quando ouve esta dulcissima mensagem, a consciência pecadora revive, e exulta em saltos [de alegria], e [fica] cheia de coiifiança, e já não teme a morte, nem as espécies de penas associadas a mor- ic, nem o inferno. Por isto, as pessoas que ainda temem as penas ainda não oiiviram Cristo nem a voz do Evangelho, e sim, antes, a voz de Moisés.

Assim pois, deste Evangelho nasce a verdadeira glória de Deus, ao ser- iiios ensinados que a lei está cumprida não por meio de nossas obras, mas da graça do Deus que se comisera em Cristo, e que ela é cumprida não obrando, irias crendo, não oferecendo qualquer coisa a Deus, mas tudo recebendo e participando de Cristo, de cuja plenitude todos nós participamos e i-ccebemosJ43. Disto trato mais amplamente em outro lugar.

Tese 63

Este tesouro, entretanto, é o mais odiado, e com razüo, porque faz com que os primeiros sejam os úItimos3M.

É que o Evangelho destrói as coisas que são, envergonha as fortes, en- vergonha a sabedoria e as reduz ao nada, a fraqueza, à tolice, porque ensina Iiiimildade e cruz. Assim diz 39 .5 : "Repreendeste os gentios, e o impio pere- cc; apagaste o nome deles." Mas têm horror dessa regra da cruz todos aque- Ics aos quais agradam as coisas terrenas e o que é seu e dizem: "Duro é este <liscurso." [Jo 6.60.1 Por isso não admira que o discurso de Cristo seja sobre- riiodo odioso aos que amam ser alguma coisa, ser sábios e poderosos diante [Ic si mesmos e das pessoas, e se crêem os primeiros.

Tese 64

1<1ii contrapartida, o tesouro das indulgências é o mais benquisto, e com rirzdo, pois faz dos últimos os primeiros.

I'orque ele ensina a ter horror das penas; mais ainda: torna livre da pe- i i ~ . o 11iic cabe unicamente aos justos. Pois ninguém necessita de indulgências

senão um servo das penas, isto é, que não as calca com os pés, reinando sobre elas com soberbo desprezo, mas é por elas premido e delas foge como uma criança das sombras da noite e das trevas. Não obstante, são deixadas livres, ao passo que mesmo os justos estão sujeitos a várias penas.

Tese 65

1 Por esta razüo, os tesouros do Evangelho são as redes com que outrora se pescavam homens possuidores de riquezas.

Pois assim diz o apóstolo: "Não busco os vossos bens, mas a vós mes- mos." [2 Co 12.14.1 E Cristo: "Farei de vós pescadores de seres humanos." [Mt 4.19.1 Com efeito, a doce palavra cativa a vontade; mais ainda: faz com que o ser humano entregue sua vontade a Cristo. Dai que S. Pedro, pintado como pescador em Roma, diz:

Governo a Igreja como nave, as regiões do mundo são meu mar, a Escritura é minha rede, o peixe é o ser humano345.

Tese 66 I

Os tesouros das indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje se pesca a riqueza dos homens.

Creio que esta tese está clara a partir do que foi dito, porque pelas remis- sões de penas o ser humano não é tornado melhor nem mais puxado para Deus (o que acontece tão-somente pela palavra de Cristo), uma vez que são palavras de um ser humano que concede licença e relaxação mais do que pega e liga. Se pegam alguma coisa, certamente só pegam dinheiro; almas é que eles não pegam. Não que eu condene esse negócio de juntar dinheiro; sim, em minha opinião, a providência de Deus parece cuidar para que esse negócio fosse remunerado ao menos nesta vida, ainda que com quantias módicas, pa- ra que nada permaneça não-remunerado. E que esse negócio é o mais vil en- tre as dádivas e os ofícios da Igreja e não merece ser coroado na vida futura. No entanto, antigamente as relaxações aconteciam de graça.

Tese 67

As indulgências apregoadas pelos seus vendedores como as maiores gra- ças realmente podem ser entendidas como tal, na medida em que dão boa renda.

345 NRi, L' possivel precisar a origem desse verso. Será lernbranca da viagem que Lutero fez a

i Koiii;i'l

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Pois a audaz ignorância se atreve ao ponto de chamar de o maior aquilo qiie é o menor, e então se deixam por conta do povo o juizo e a faculdade de compreender corretamente, para que, errando, creia que a graça de Deus e dada aqui346. Pois eles mesmos não e ~ p l i c a m j ~ ~ , para não serem obrigados a contradizer a si mesmos ou serem descobertos como mentirosos, porque cha- iiiaram o pequeno de grande.

Tese 68

Na verdade elas são as graças mais ínfimas em comparação com a graça de Deus e a piedade da cruz.

Sim, em comparação com a graça de Deus, elas são nada e são nulas, já que, antes, operam o contrário da graça de Deus. Não ohstante, são tolera- das por causa dos indolentes e preguiçosos, como é evidente a partir do que I<>i dito.

Tese 69

Os bispos e curas têm a obrigação de admitir com toda a reverência os i.orriissários de indulgências apostólicas.

Porque em tudo se deve ceder a autoridade papal com reverência. Pois "quem resiste a autoridade, resiste a ordenação de Deus; mas os que resistem ;i Deus obtêm para si condenação." [Rm 13.2.1 E o Senhor mesmo diz: "Quem vos despreza, a mim me despreza." [Lc 10.16.1 Por conseguinte, dcvc-se ceder A autoridade em coisas pequenas não menos do que em gran- dcs. Daqui vem também que, ainda que o papa pronuncie sentenças-injustas, cl;is devem ser temidas, e, como diz o imperador Carlos"8, "tudo o que ele ti- ver imposto, por mais pesado que seja, deve ser suportado." Também por experiência vemos isso acontecer por parte da Igreja, que hoje certamente é 1,rcniida por infinitos fardos e, mesmo assim, [os] carrega quieta, com pieda- (Ic c Iiiimildade. Contudo, isto deve ser compreendido, para que alguém não cliegiic a uma consciência errônea, como se as sentenças injustas devam ser li~iiiidas porque devam ser aprovadas como justas por aqueles que têm obri- ~i i<(io de temê-las, visto que o próprio pontífice decreta que são ligadas pela Iurci;i algumas pessoas que, não obstante, não estão ligadas perante Deus, e ;I? ol~rigu a suportar aligação. No entanto, tal ligação não as prejudica, por-

i,11> Sc. I K C ~ it,dulgSncCds, 1.11 Si. i> qiie %fio a s indulgenciar. I4H I iilcro reicre-w a iima passagem do Decrerum Crarioni. parte 11, ?ouso XI. r,~rucslio 1, c;ipi-

I i i I i > 27: "O vercilito do bispo seriiprc dcvc ser se~iiido. riicvitio que clc liuilr i l i i i i i i ; i ~ i i i . r i i i . . "

que é apenas uma pena e deve ser temida, mas não deve causar inquietação de consciência. Do mesmo modo, devemos temer a Deus em toda outra violên- cia, também profana, e não relutar soberbamente com desprezo. Desta ma- neira devem ser suportados também os fardos, não porque ocorram com jus- tiça e devam ser aprovados, porém como flagelos infligidos por Deus, que de- vem ser carregados com humildade. Por esta razão, sentenças injustas e far- dos devem ser temidos não por causa daquela palavra: "Tudo o que ligares" [Mt 16.191, mas por causa daquele preceito geral: "Entra em acordo com teu adversário no caminho." [Mt 5.15.1 E daquela palavra: "A quem te ferir na face direita, oferece-lhe também a esquerda", etc. [Mt 5.39.1 E Rm 12.19: "Não defendais a vós mesmos", etc. Pois se isto fosse apenas um conselho (como muitos, inclusive teólogos, parecem crer erroneamente), então seria permitido resistir com a mesma liberdade ao papa em seus fardos e suas sen- tenças injustas como ao turco ou a outros adversários. Entretanto, não se de- ve resistir absolutamente a ninguém, embora não se deva aprovar a obra de- les, para que não haja erro na consciência. Mas este assunto, muito necessá- rio, exige outro tempo e outra obra.

t Tese 70

Têm, porém, a obrigação ainda maior de observar com os dois olhos e atentar com ambos os ouvidos para que esses comissários não preguem os seus próprios sonhos em lugar do que Ihes foi incumbido pelo papa.

É uma regra provadissima dos juristas aquela de que, em todas as con- cessões, o papa age de tal forma que não prejudica a nenhum outro, a menos que o faça com menção expressa e da plenitude de seu poder, como ensinam também o costume e o estilo da Curia. Por esta razão, é certissimo que, ao dar indulgências, ele quer que elas nada mais sejam do que indulgências e que não valham outra coisa do que valem por natureza; permite, porém, que elas valham tanto quanto valem, satisfeito com as haver dado, pois em nenhum lugar declara o valor delas. Esta é a incumbência do papa. Contudo, nossos pregoeiros vão mais longe e não apenas se jactam nos púlpitos de que são pa- pas - outros os consideram, mais corretamente, papos349 -, mas ao nome também conjugam o oficio tanto do papa quanto da Igreja, e nos determi- nam como que do céu e proclamam com confiança o que são as indulgências, sim, muitíssimo além do que elas são e jamais podem ser, como pode ser pro- vado mesmo a partir de seu último livro"0. Assim pois, os bispos têm obriga- ção de proibir os sonhos deles, para não deixar que lobos entrem no aprisco de ovelhas de Cristo, como é expressamente ordenado no livro V, depe. et re.

349 I . i iteir> Par uni jogo de palavras: popw-poppi (papas-papos). Pappi sao as coroas de semen- i c <le ;iluiim;i\ plariias. levadas qual floco pelo vento.

.'i50 I ~l i r i i> rrfr~e-\e t i /nstn«.rio summoria do arcehispc de Mogitncia.

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c. Cum exeo, e nas Clementinas, no mesmo livro, capitulo Abusionibus, que permitam que seja apresentado ao povo unicamente o que está contido em suas cartas.

Tese 71

Seja excomungado e maldito quem falar contra a verdade das indulgên- cias apóstolicas.

Pois, embora a distribuição de indulgências seja coisa pequena em com- paração com a graça de Deus e com o grande berreiro dos que as pregam, age soberbamente contra a autoridade quem contradiz. Por isto, ele é merecida- mente maldito, já que a obediência eclesiástica é tanto mais admirável quan- to, também em coisas menores, cede á opinião dele351 e se humilha. Ora, o que é a verdade das indulgências foi suficientemente debatido até agora e ain- da aguarda a determinação da Igreja; só que é certo que elas são relaxações de penas temporais tão-somente, o que quer que afinal sejam. A relaxação de penas, porém, é (como disse) uma dádiva de menor valor que a Igreja pode dar, especialmente se a dá aqueles a quem remitiu a culpa. A remissão da cul- pa, contudo, é, juntamente com o santo Evangelho, a maior dádiva de to- das. Com esta eles não se importam tanto, ou pelo menos a ignoram.

Tese 72

Seja bendito, porém, quem ficar alerta contra a devassidão e licenciosi- dade das palavras de um pregador de indulgências.

Pois tal é o estado da viúva de Cristo352, da santa Igreja, hoje em dia, que tudo é permitido a todos, principalmente aos teólogos escolásticos, entre os quais se encontram os que condenam também opiniões verdadeiras, só porque não provieram da fonte deles; a eles, entretanto, é permitido afirmar qiic Deus faz o pecado, que Deus é a causa do mal, da culpa, e muitas outras coisas. Se algum poeta ou orador (como chamam), ou alguém instruído em grego, latim ou hebraico dissesse isso, seria o pior de todos os hereges. Mas csic dano é maior. Se um cristão vende armas aos turcos, ou impede os que se dirigem a Roma, ou viola escritos apostólicos, isso é um crime tão grande, q i i c jamais é dado nenhum poder de remiti-lo ainda que seja dado o mais ple- iio dos poderes. [Tais casos] a Sé Apostólica reserva para si. Então a Igreja

151 2. do papa. 352 Scyiirido lif. 5 . 2 2 ~ ~ . e A v 21.2,9. a Igreja é designada de "noiva de ('risto". 1.iiIçro parte

dcasn visno e dcsignn a Igrcja de "viúva de Cristo" para caracterizar a sepiiraFtl<i iia lyrejzi LIC <'risi<).

agia de maneira tão santa que, observados primeiramente os mandamentos de Deus, queria punir com tanto rigor mesmo coisas tão pequenas. Pois ain- da não havia essa Lerna e esse Tártaro's' de simonias, devassidões, pompas, assassinatos e demais abominações na Igreja.

Ora, se essas coisas são punidas tão duramente, com que rigor cremos que devem ser punidos os que não oferecem aos turcos, mas aos demônios, [e oferecem] não quaisquer armas, mas nossas próprias armas, isto é, a palavra de Deus, contaminando-a com seus sonhos e (como Isaías costuma falar) transformando-a num ídolo por seu espírito, de modo que ela não é um ins- trumento pelo qual a alma é atraida, mas desviada para falsas opiniões? Po- rém esse vicio é de tal modo permitido em toda parte, que é viciosissimo quem não o considera uma virtude e o maior dos méritos, por quem quer que seja praticado. Assim também o B. Jerõnimo se queixa que a Escritura está aberta para todos não para aprender, mas para dilacerar354. Depois, se aque- les que impedem as pessoas que estão a caminho de Roma pecam tanto, o que será daqueles que impedem as pessoas que estão a caminho do céu, não só através de suas doutrinas pestilentas, mas também de seus costumes corrom- pidissimos? E para onde irão aqueles que violam não escritos apostólicos, mas sim escritos divinos? Eles tomaram a chave da ciência; eles mesmos não entram e proíbem os que estão entrando3Js. Acaso essas monstruosidades não são maiores e piores do que as lidas e reservadas no dia da Ceia356? Mas que sejam lidas somente no céu e jamais perdoadas!

Assim pois, são dignos de bênção os que se esforçam para purificar as Santas Escrituras e para elucidá-Ias [livrando-as] das trevas das opiniões e dos argumentos humanos, pelos quais quase nos tornamos pelagianos351 no pensamento e donatistas na ação. Mas disto tratarei em outra ocasião.

Tese 73

Assim como o papa com razão fulmina~~aqueles que de qualquer forma procuram defraudar o comércio de indulgências,

353 Lerna e1 Torforus, no original. Lutero compara a Cúria corrupta e devassa com a hidra de Lerna e com o inferno, apontando, com isso, para o periodo dos papas renascentistas. Pen- sa nas simonias de Sixto IV, nos prazeres de Alexandre VI, nos homicidios provocados por Cksar Borgia, nas guerras de Júlio 11, e sabe que também no pontificado de Leão X todos esses males, se bem que em menor escala, continuam presentes.

354 Episfolo 53, in: Migne PL 22,544. 355 Cf. Lc 11.52. 356 Cf. p. 181, nota 361. 357 O monge britânico Pelágio negava o pecado original e afirmava que as capacidades e dispo-

sicões naturais do ser humano bastavam para possibilitar-lhe o cumprimento dos manda- iiicnios de Cristo e obter, assim, a bem-aventuran~a. Segundo Lutera, os teólogos escolAsti- cos haviam renovado essa doutrina a partir da filosofia aristotélica, fazendo dela a princi- pal <I<iiiiriiiii da Igreja. Pelágio foi acusado de ser heterodoxo, mas encontrou apoio em si- noili>s ciiicii1:tis. Nii Ocidciitr foi coridcnatli> como hcrege.

I 158 S C . C,>!,, ~xc<, l l l l l l l l ln i~ .

170

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Digo mais uma vez, assim como já disse anteriormente (qualquer que se- ja a intenção pessoal do sumo pontifice), que se deve ceder humildemente ao poder das chaves e favorecê-lo, e que não se deve r'sistir a ele inconsiderada- iiiente. Pois ele é poder de Deus, que, quer seja bem usado, quer seja mal- usado, deve ser temido assim como qualquer outra obra vinda de Deus - ele, iiorém, mais ainda.

Tese 74

muito mais deseja fulminar aqueles que, a pretexto das indulgências, IJrocuram defraudar a santa caridade e verdade.

Pois por mais que o poder359 deva ser honrado, não é por isto que deve- iiios ser ignavos ao ponto de não reprovar seu abuso ou não lhe resistir. Com efeito, assim todos os santos sustentaram e honraram o poder secular - que i] apóstolo também chama de poder de Deu+ - mesmo em meio as penas e torturas que ele Ihes causou; não obstante, abominavam com constância seu abuso. E não o sustentaram porque aqueles tivessem usado o poder correta- iiicnte ao persegui-los, mas Ihes deixaram a consciência do mal feito e, atra- vés da morte, levaram consigo o testemunho e a confissão da inocência, co- i110 diz o B. Pedro: "Que ninguém sofra como ladrão", etc. [ l Pe 4.15.1 As- siiii, se a Igreja ou o pontifice privarem alguém da comunhão dos crentes sem r a ~ ã o , ele deve suportar isso e não condenar o poder. Todavia, não deve iciiiê-10 de tal forma que aprove isso como se tivesse sido bem feito; deve, an- i l :~, morrer na excomunhão. Pois está excomungado só por um erro da cha- ve; se aprovar esse erro pedindo para ser absolvido, erra de modo pior ainda. Ikve honrar e suportar a chave, mas não aprovar o erro.

Por conseguinte, devem ser fulminados os que pregam as indulgências 1Ic tal maneira, que querem que elas sejam vistas como graças de Deus; pois isio é contra a verdade e o amor, que, tão-somente, constituem tal graça. E sci-ia inuito melhor que não houvesse indulgências em algum lugar do que que tais opiiiiões fossem semeadas entre o povo. E que podemos ser cristãos sem iiidulgências; com tais opiniões, porém, não podemos ser senão hereges. Ora, i. certo que o sumo pontifice crê ou deve querer que no povo haja primeira- iiiciitc caridade e misericórdia mútua e que os outros mandamentos de Deus iiclc floresçam, e assim concede indulgências. Agora, contudo, ele é engana- tlo. porque amor, misericórdia e fé estão quase extintos entre nós, e não ape- ii:is esfriaram. Pois se ele soubesse disso, deixaria as indulgências de lado e Liria corri que o povo voltasse primeiramente a caridade mútua. Assim, eu iii- voto o Scnhor Jesus como testemunha de que o povo em grande parte (aiguns lli/,ciii: coiiipletamente) ignora que obras de caridade são melhores do que iii-

dulgências, crendo, pelo contrário, que nada de melhor pode fazer do que comprar indulgências. E nesta opinião herética e pestilenta o povo não tem nenhum censor ou mestre fiel; tem, antes, instantissimos instigadores por meio dessas pomposas trombetas.

Tese 75

A opinião de que as induigênciaspapais são tão eficazes ao ponlo depo- derem absolver um homem mesmo que tivesse violentado a mãe de Deus, ca- so isso fosse possível, é loucura.

Sou obrigado a chamar de insanas as pessoas que têm tal opinião, e de- vemos pedir perdão a divina Virgem por sermos obrigados a dizer e pensar tais coisas, mas não havia caminho disponível para evitar essa necessidade. Não sei por obra de que diabo aconteceu que o povo espalhou esse rumor em toda parte, quer isso tenha sido realmente dito assim, quer tenha sido enten- dido assim pelo povo. Embora muitas pessoas, e pessoas conceituadas, asse- verassem com firmeza que é assim que se prega em muitos lugares, eu antes me admirei do que acreditei, julgando que tinham ouvido erradamente. Por esta razão, nesta tese não quis argüir qualquer pregador, e sim advertir o po- vo, que começou a pensar coisas que talvez ninguém tenha dito, pois quer eles as tenham dito, quer não, não me importa, até que eu adquira mais certe- za. Entretanto, de onde quer que tenha surgido, essa péssima opinião tinha que ser repelida e coridenada. Contudo, não seria de admirar que o povo en- tendesse tais coisas, pois ouve que, por causa da magnitude das graças, peca- dos grandes e horrendos são considerados de algum modo levíssimos.

A pregação verdadeira e evangélica consiste em magnificar os pecados tanto quanto possivel, para que o ser humano-chegue ao temor e a umapeni- tência autêntica. Por fim, de que serve trovejar com tantos exageros, por cau- sa da vilissima remissão de penas, ç?m a finalidade de exaltar as indulgên- cias, e mal-e-mal dizer um pio por causa da salubérrima sabedoria da cruz? Sim, como isso iião haveria de prejudicar o povo simples, que costuma julgar do valor da palavra conforme a gesticulação e a pompa com que é pregada? Ora, o Evangelho é apresentado sem nenhuma pompa, ao passo que as indul- gências o são com toda a pompa, e isto para que o povo creia que o Evange- lho não é nada e que as indulgências são tudo.

Visto que ousam clamar que homicídios, latrocinios, lihidiiiagem de to- da espécie, blasfêmias contra a virgem Maria e contra Deus são coisas de pouca monta, sendo remitidas através dessas indulgências, é de admirar por qlie iião clamam que são remitidas também aquelas coisas de menor impor- iâiicia que são reservadas na bula da Ceia's'. "O pontifice não remite." Vê,

161 I . i~ icr i> rcfcre-rc 2 bula In coeno domini, publicada por Urbano V, em 1363, e lida [odor os ;iciir\ ii;i q i ~ i ~ i i ; i ~ f e i r n santa. A bula sofreu acrésciinos posteriores. Eni 1521.0 proprio Lute- l i > \rri:i iiclii iiicliiiilo c<irii<i herryc.

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110, mas não podem matar a alma." [Mt 10.28.1 "Quem me confessar perante irs seres humanos, também eu o confessarei diante de meu Pai." [Mt 10.32.1 lintretanto, admira-me muito quem inventou por primeiro essa glosa de que tis duas espadas significam que uma é espiritual (não como o apóstoto3'o a chama, a saber, a espada do Espirito, a palavra de Deus) e a outra, material, ile modo a, assim, nos fazerem do pontífice, armado com ambos os poderes, i130 um pai amável, mas como que um tirano temível, em quem não vemos sciião poder por todos os lados.

E esta é a fidelissima glosa sobre os decretos dos pais, em que tão rigida- iiicnte se proíbem as armas aos clérigos. Vê aqui se o Deus irado, vendo que, ciii lugar da espada do Espirito e do Evangelho, preferimos compreender iiiiia espada de ferro, não agiu justissimamente conosco dando-nos a espada qiic quisemos e tirando-nos a que não quisemos, de modo que em parte algu- tiia do mundo os estragos das guerras foram mais cruéis do que entre os cris- iãos, e de modo que, inversamente, a Sagrada Escritura dificilmente foi ma+ iicgligenciada do que entre os cristãos. Eis que tens a espada que quiseste! O glosa digna do próprio inferno! No entanto, ainda somos de pedra, de modo qiie não percebemos a ira de Deus. Por que, pergunto eu, aquela amabilissi- iiia inteligência não interpreta também as duas chaves com igual sutileza, a saber, que uma prodigaliza as riquezas do mundo, a outra, porém, as rique- ziis do céu? A respeito de uma delas a opinião é suficientemente manifesta, porque, segundo os pregadores de indulgências, ela abre incessantemente o c t ~ i e faz as riquezas de Cristo transbordarem. Mas ele não pode entender a iliiira assim, sabedor da voragem avidissima de riquezas existente na Igreja. I'ois não é conveniente a Igreja e ao patrimônio de Cristo dissipar as riquezas CIO céu. Por isso, a outra chave é a chave da ciência. Se se acrescentasse: "A oiiira espada é a espada da ciência", se falaria apostolicamente. Em todas es- s:is coisas o furor do Senhor ainda não está afastado, sua mão ainda está cstciidida3", e isto porque é uma coisa extraordinariamente penosa estudar as Sagradas Escrituras. Delas munidos (segundo o apóstolo), destruiríamos for- iificações e toda altitude que se levanta contra o conhecimento de DeusJ7z. Agi';ida-nos uma economia desse labor, de modo que não destruímos as here- ~i:is oii os erros, mas queimamos os hereges e os que erram. Nisto nos orien- i:iiii~is pelo conselho de Catão - [que consideramos] melhor que o de Cipião

acerca da destruição de CartagollJ. Sim, [fazemos isto] contra a vontade i111 I;,spirito, que escreve que jebuseus e cananeus foram deixados na terra da ~iri~iiiissão para que os filhos de Israel aprendessem a fazer guerra e tivessem ii I i ! i l i i i~i da guerra. Se S. Jerónimo não me engana, creio que isso foi prefigu-

rado a respeito das guerras contra os hereges"'. Ou então o apóstolo, por cer- to, merece crédito ao dizer: "Importa que haja hereges." [ l Co 11.19.1 Nós, entretanto, dizemos: "De forma alguma. Importa queimar os hereges e, as- sim, arrancar a raiz junto com os frutos, sim, o joio junto com o trigo." O que diremos quanto a isto, exceto dizer com lágrimas ao Senhor: "Tu és jus- to, Senhor, e reto é o teu juizo" [Sl 119.1371? Pois que outra coisa merece- mos? Ora, menciono essas coisas também para que os begardos, nossos vizi- nhos, hereges, povo infeliz, que se regozija com o fedor romano (assim como o fariseu em relação ao publicano375), mas não se compadece - para que, di- go, eles não creiam que nós desconhecemos nossos vicios e nódoas e não se ensoberbeçam desmesuradamente contra nossa miséria, se parece que os si- lenciamos e aprovamos. Nós conheceinos nossa desgraça e sofremos por cau- sa dela, mas não fugimos como os hereges e não passamos ao largo do semimort03'6, como se temêssemos nos manchar com pecados alheios. Devi- do a esse insensato temor eles temem de tal maneira que não têm vergonha de se gloriar que fogem para não serem manchados. Tão grande é o amor [deles]! Nós, porém, quanto mais miseravelmente sofre a Igreja, tanto mais fielmente assistimos e acorremos chorando, orando, advertindo, suplicando. Pois assim ordena o amor, que levemos as cargas uns dos outros37', não como faz o amor dos hereges, que só procura o proveito do outro para ser, antes, carregado e para não suportar nada de molesto dos pecados dos outros. Se Cristo e seus santos tivessem querido agir desse modo, quem teria sido salvo?

Tese 81

Essa licenciosapregaçüo de indulgências faz com que não seja fácil, nem para homens doutos, defender a dignidade do papa contra calúnias ouper- guntas, sem dúvida argutas, dos leigos.

Embora meus amigos já há muito tempo me tachem de herege, ímpio, blasfemo, porque não compreenderia a Igreja de Cristo e as Santas Escrituras no sentido católico, eu, apoiado em minha consciência, creio que eles estão enganados e que amo a Igreja de Cristo e sua beleza. "Mas quem me julga é o Senhor, ainda que eu não esteja consciente de nada." [I Co 4.4.1 Sou obriga- do a expor todas essas minhas teses porque vi que alguns eram infectados por falsas opiniões, que outros riam disso pelas tavernas e zombavam manifesta- mente do santo sacerdócio da Igreja, o que era ocasionado pela excessiva li- cença com que se pregavam as indulgências. Não se deveria provocar o povo dos leigos, através de um maior número de ocasiões, a odiar os sacerdotes, pois ele, já há muitos anos ofendido por nossa cobiça e nossos péssimos cos-

374 Cf. Jerônimo, Episiola 53 , in: Migne PL 22,546. 375 Cf. 1.c l8.11. 376 Cf. 1.c 10.30s~. 177 <'f. til 6.2.

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tumes, infelizmente só honra o sacerdócio por causa do medo do castigo.

Tese 82

Por que o papa não evacua o purgatório por causa do santíssimo amor e da extrema necessidade das almas - o que seria a mais justa de todas as cau- . s s -, se redime um número infinito de almaspor causa do funestíssimo di- nheiro para a construção da basílica - que é uma causa tão insignificante?

Esta pergunta é suscitada não pelo papa, mas pelos questores, porque, como eu disse acima, em parte alguma se lê qualquer decreto do sumo pontí- fice sobre essa questão. Por isso, que a respondam os que a suscitaram. Eu rcsponderia todas essas perguntas com uma palavra, tanto quanto pode ser Icito em favor da honra dos pontífices, a saber, que ninguém os informa so- bre a verdade da questão, e frequentemente acontece que fazem más conces- s«cs aos que os informam mal.

Tese 83

Por que se mantêm as exéquias e os aniversários dos falecidos378 e por (/ire ele não restitui ou permite que se recebam de volta as doações efetuadas (,tn favor deles, quando j á não é justo orar pelos redimidos?

Conheço muitos que se fatigaram comigo por causa desta pergunta, e, :ipcsar de muitas saídas, laboramos em vão. Dissemos também que se as al- irias saíssem voando, então os oficios em prol delas instituídos se transforma- riairi em louvor de Deus, assim como acontece quando morrem crianças e in- Iiiiitcs. Outro disse outra coisa, mas ninguém satisfez. Por fim, comecei a de- 11;iccr e a negar que os discursos deles sejam verdadeiros, para talvez assim fi- iinlrriente arrancar dos mais doutos o que se deveria responder aqui.

Tese 84

@u<j nova piedade de Deus e do papa é essa: por causa do dinheiro, per- I I I~ /< ,~ I I ao impio e inimigo redimir uma alma piedosa e amiga de Deus, porém til70 r i r<,dirnempor causa da necessidade da mesma alma piedosa e dileta, por rirnor yrutirito?

I Tese 85

Por que os cânonespenitenciais - de fato epor desuso já há muito revo- ! gados e mortos - ainda assim são remidos com dinheiro. pela concessão de indulgências, como se ainda estivessem em pleno vigor?

1 Tese 86 I

Por que o papa, cujo fortuna hoje é maior que a dos mais ricos Crassosj'~, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta uma Basílica

I de São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dospobresfiéis?

Quanto a esta e a perguntas semelhantes eu digo: não nos cabe julgar a vontade do papa, mas apenas suportá-la, ainda que por vezes fosse iniquissi- ma, como disse acima. Não obstante, ele e os pregadores de indulgências de- vem ser advertidos, para que não se dê ao povo ocasião tão manifesta para falar, como fez outrora o sacerdote Eli, de modo que, por causa de seus fi- lhos, as pessoas detraiam o sacrifício do Senhor'80. Todavia, se alguma vez foi intenção do papa construir a Igreja de São Pedro com tanto dinheiro arre- banhado, e não, antes, daqueles que abusam da complacência do papa em proveito próprio, não e necessário expor por escrito o que em toda parte se fabula sobre essa construção. O Senhor conceda que eu esteja mentindo; essa extorsão não poderá correr bem por muito tempo.

Tese 87

O que é que o papa perdoa e concede àqueles que, pela contrição perfei- ta, têm direito a remissão eparticipação plenária?

I Esta pergunta provém do fato de que muitos, mesmo juristas, dizem que ! não sabem o que é a remissão da culpa por meio das chaves. A este respeito

expus minha opinião acima.

Tese 88

Que benefício maior se poderia proporcionar a Igreja do que se o papa, assim como agora o faz uma vez, da mesma forma concedesse essas remissões e participações 100 vezes ao dia a qualquer dos fiéis?

Quanto a isto [ouvem-se] coisas realmente assombrosas. Alguns imagi- nam um tesouro comum que seria aumentado através das indulgências. Por

~. .. . .

379 KcferSncia a Marco Liciriio Crasso, protótipo da homem rico na Antiguidade 380 ( '1 ' . I Sm 2.17.

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ijso, se uma pessoa obtiver remissão plenária sete vezes ao dia, como pode :ii.irrilccer em Roma, tanto mais bens obterá. Estes contradizem a si mesmos, Iwiqiie, segundo eles, as indulgências implicam gastar - portanto, não jun- i:ii - o tesouro. Outros pensam que os pecados são perdoados do mesmo iiii~do como a divisão de um [objeto] contínuo [é feita] ao infinito. Assim co- I I I ~ I ;i madeira é dividida em [pedaços] sempre divisíveis, da mesma forma são I ciiiitidos os pecados, sendo sempre ulteriormente remissiveis, embora setor- iiciii sempre menores. Confesso que não sei o que dizer.

Tese 89

Já que, com as indulgências, o papa procura mais a salvafão das almas (10 que o dinheiro, por que suspende as cartas e indulgências outrora já con- i~,(lidas, se são igualmente eficazes?

Isto é o que mais inquieta e desagrada, e, confesso, com grande espécie. I'ois essa suspensão é a única causa por que as indulgências se tornam sem va- lor. Assim, eu não posso negar que tudo o que o pontífice faz deve ser supor- (;ido, porém me dói o fato de não poder demonstrar que o que ele faz é o me- IIior. Não obstante, se eu tivesse que falar a respeito da intenção do papa sem :i intromissão dos mercenários, diria que se deve presumir o melhor a respeito ilclii, ralando com brevidade e confiança. A Igreja necessita de uma reforma, o que não é tarefa de uma única pessoa, do pontífice, nem de muitos cardeais

coriio o provou, a ambas as coisas, o último concilio3ai -, mas de todo o iiiiiiido, mais ainda: unicamente de Deus. Mas só aquele que criou os tempos coiilicce o tempo dessa reforma. Nesse meio-tempo, não podemos negar fa- 1l1:is táo manifestas. As chaves sofrem abuso e estão a serviço de cobiça e am- 1)iylio. O turbilhão ganhou ímpeto, e nós não podemos pará-lo. Nossas ini- i~ilicl:irl~s nos respondem382, e a palavra de cada um é um fardo para ele.

Tese 90

H<y?rirnir esses argumentos muito perspicazes dos leigos somente pela lorc~u, .sem refutá-los apresentando razões, significa expor a Igreja e o papa ù coinl~uria dos inimigos e desgrasar os cristãos.

Pois enquanto são reprimidos mediante o terror, o que é ruim fica pior. ()ii:Io iiinis correto seria que fôssemos ensinados a compreender essa ira de I)rii\, a orar pela Igreja e a tolerar tais coisas na esperança de uma reforma l ' i i i i i i ; ~ '10 qiie provocarmos coisa pior ao querer obrigar que vícios tão mani-

i H I 1 'i>iiclliir ilc I . i i i i . l< i (1512-1527). IH!. S i . u > i i l i ; i iiii,; cl. .li 14.7.

I X R

festos sejam considerados virtudes. Pois, se não merecêssemos ser vexados, Deus não permitiria que só seres humanos fossem senhores na Igreja. Ele nos daria pastores segundo seu coração38', os quais, ao invés de indulgências, nos dariam a medida de trigo a seu tempo-4. Agora, porém, mesmo que haja bons pastores, eles não podem chegar a seu ofício. Tão grande é a ira do fu- ror do Senhor.

Tese 91

Se, portanto, as indulgências fossem pregadas em conformidade com o espírito e a opinião do papa, todas essas objeções poderiam ser facilmente respondidas e nem mesmo teriam surgido.

Como? A saber, se se tivesse pregado que as indulgências devem ser con- sideradas assim como são, apenas como remissões de penas, não como meri- tórias e inferiores ás boas obras, jamais alguém teria sido levado a pôr em dú- vida qualquer coisa em relação a elas. Agora, por causa de sua excessiva mag- nificação, suscitam questões insolúveis, para seu próprio aviltamento. Pois a opinião do papa não pode ser outra senão que as indulgências são indulgên- cias.

Tese 92

Fora, pois, com todos essesprofetas que dizem aapovo de Cristo: "Paz, paz!" sem que haja paz*Q!

Tese 93

Que prosperem todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: "Cruz! cruz!" sem que haja cruz!

Tese 94

Devem-se exortar os cristãos a que se esforcem por seguir a Cristo, seu cabeca, através de penas, da morte e do inferno;

l u 1 1'1'. l i . 3.15. IHJ 1'1'. 1 c 12.42. 187 1'1'. l i b.14: 8.11: I;, 13.10,16

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Tese 95

P, assim, a que confiem que entrarão no céu antes através de muitas tribula- (,Oer d o que pela segurança da paz"6.

A respeito de cruz e penas - u m sermáo raro hoje em dia - foi o dito o \iificiente acima.

A o leitor sincero e erudito:

Não creias que este escrito foi publicado para ti, leitor erudito e sincero (mas que necessidade há dessa advertência?), como se eu temesse que ele te parecesse ciceroniano. Pa ra teu deleite, tens o que ler em outra parte. Precisei tratar com meus semelhantes de nossas questdes, isto é, de questdes rudes e hárbaras. Assim aprouve aoslcéus. Eu não teria me atrevido a apelar para o iiome d o papa para essas minhas ninharias se não tivesse visto meus amigos confiarem o mais possível n o terror em relação a elels', e também porque o pcculiar ofício d o papa consiste em tornar-se devedor a sábios e ignorantes, a grcgos e bárbaros'E8. Passa bem!

No ano do Senhor de 1518.

IHI, ( ' I . A! 14.22. !H7 Sc. ~ ~ t ~ p ~ ~ . I H H ( ' I . Kiii 1.14.

Sermão sobre o Poder da ~xcomunhão'

I INTRODUÇÃO

A 18 de maio de 1518, Lutero orerou em Wittenbere sobre o ooder da excomu-

admiração que seu sermão causara entre os ouvintes e dizendo que havia aceso mais um fogo, que era conseqüência da Palavra da verdade. Afirmou, ainda, ter querido fazer um debate público em torno da questão, mas recebera ordem do bispo de Bran- denburgo para não fazê-lo. Lutero ateve-se, obediente, à ordem episcopal. No entan- to, alguns amigos, ou inimigos(?), elaboraram teses a partir de seu sermão e fizeram- nas circular, talvez em forma de manuscrito. Nessa formulação, o sermão chegou a dieta, reunida em Augsburgo, provocando furor e reaçdes violentas contra Lutero. O próprio Lutero ficou sabendo dessas reaçdes, em 25 de junho de 1518, na cidade de Dresden, e constatou que as teses podiam vir a ser usadas contra ele. Foi esse o motivo que o levou a publicar o sermão. Queria evitar qualquer falsa interpretação de suas co- locaçdes quanto à excomunhão. Informado, o principe-eleitor Fredericoz procurou demovê-lo, temendo que a publicação viesse a lhe trazer maiores dificuldades. A ten- tativa de Frederico, no entanto, foi vã; quando a carta do eleitor deu entrada em Wit- tenberg, o escrito já estava impresso. A data da publicação situa-se entre 21 e 31 de agosto de 1518.

O titulo do escrito pode ser explicado a partir da história de seu surgimento: Ser- mo de virtute excommunicationis Fratri Martino Lulher Augustiniano a linguis tertiis tandem everberatus3, uma referência à formulação latina de Eclesiástico 28.16~s.: Lin- tua tertia multos commovit et disuersit illos de aente in pentem.

Historicamente, a excomunhão é desenvolv~mento de prática da Igreja antiga, na qual era ~ossivel a exclusão da Eucaristia. A exclusão ocorria quando da vrática de oe- ;ados capitais (apostasia, prostituição, assassinato). Com o desenvolvimento da prati- ca penitencial, a excomunhão passou a ser delimitada. Desde o século IV distingue-se entre duas práticas de excomunhão: a excomunhão menor (exclusão da Eucaristia) e a excomunhão maior (exclusão da Igreja). Em 1220, o imperador Frederico 114 ligou à excomunhão a pratica da proscrição. Na Média e Baixa Idade Média, a prática da ex- comunhão degenerou completamente, chegando-se a aplicá-la, p. ex., a pessoas que se negassem a corresponder a exigências financeiras da Igreja, ou a animais. Para a apli- cação da excomunhão era básica a bula De coena domini.

Martin N. Dreher

1 ,Sermo de virtute ercommunicotionis, W A 1,638-43. TraduçBo de Luis M. Sander. 2 Cf. p. 62, nota 19, p. 200, nota 7 e pp. 426s., nota 8. 3 Quanto a csie titulo, cf. WA 1,636. 4 Frcdcrico 11. Hohenstaufe (1194-1250). Reida Sicilia (ll98), rei daAlemanha(l212), impe-

rador rciitiano (1220), rei de Jerusalém (1225). Seu reinado está pleno de conflitos com os ~>~>itiil'içr\ ri>iii;incis. qiiç o excomungam diversas vezes.

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Frei Martinho Lutero saúda o leitor piedoso.

Parece que uma graça verdadeiramente grande me foi dada por nosso Sciilior Jesus Cristo, para que só minhas palavras sejam tão desagradáveis e odiosas a muitas pessoas, sendo ainda transformadas em não sei quantas he- icsias (como se fossem de algum Proteu'), quase que numa segunda língua. E sc eu não soubesse que a mesma coisa aconteceu a nosso Senhor Jesus Cristo c a todos os apóstolos e profetas, já há muito teria desesperado e estaria em sil5ncio. Agora, porém, visto que a necessidade de meu oficio [me] impele, hriseio-me em que se deve obedecer mais a Deus do que aos seres humanose, csiando sobremodo disposto a abandonar o ofício e o titulo de ensinar, se as- sitil aprazas autoridades da Igreja, isto é, a Cristo. Mas se deve ser mantido, qiiein quiser que me trate com indulgência e interprete da melhor maneira, eu iiic empenharei com todas as forças para que Cristo anuncie e ouça a Cristo titravés de Cristo. Trago a memória, meu caro leitor, que fiz um sermão so- hre a excomunhão ao povo de Wittenberg. Assim como eu quase o havia es- qiiecido, da mesma forma os miseráveis adversários se lembram dele mais do que é preciso e o interpretam de forma extremamente severa, para não dizer iiijosta. Assim, vou me esforçar, tanto quanto minha memória é suficiente, para expor publicamente todos os pensamentos, mesmo que não as palavras dc todo o sermão, para provar que ensinei coisas das quais nem eu, o exposi- ioi, nem o ouvinte piedoso se arrependem. Quanto ao que os meus amigos fi-

ou fazem com sua paráfrase ou distorção', que Deus conceda que tam- I>éiii cles mesmos o vejam algum dia. Amém. Passa bem.

Fkalmente pago a dívida do sermão que tantas vezes Ihes prometin, isto i., Iioje falarei sobre o poder da excomunhão. Para que vocês entendam com todii a clareza, vou proceder ordenadamente.

Ileve-se ver o que é a excomunhão da Igreja e qual é o sentido dessa pa- I:lvin.

A excomunhão não é outra coisa do que a privação da comunhão e a co- Iocriç30 fora da comunhão dos crentes. Ora, a comunhão dos crentes é dupla: i i i i i ; i iiiierna e espiritual, outra externa e corporal. A espiritual é uma [só] fé, i i i i i : ~ cspcranva, iim amor a Deus. A corporal é a participação em seus sacra- iiiciicos. isto é, nos sinais da fé, da esperança, do amor. Mas ela se estende

5 I>riis ~~, i t r i i ,b<l , filho do Oceano. guarda do gado de Netuno. r célehre por seus or&culos e i~irl;iitii>cI'i,\es. I>;ti, "prnteii" passo,, a designar pessoa versátil. qiie miida iacilinerite de iipilti:I<t <iii *iiierii;i.

1 I A 5.2'). 7 /a\c~!t,/r~,,/tr,t>;.\, I I O u r ig i~ j t i l , H I'iti iiiii;i ~>!ry;ii.:l<> iI;i Cl> i , i i i <!;i i(ii;irehili:i iic 15 IH . I.iilcri, I>ri,liicleiii. 'Icpiiii ilr l;il:,i , , i i l i i<.

ii ~ . x c ~ ~ t ~ ~ ~ t ~ ~ l ~ z l ~ ~ . qtlr i r l \ l r ~ l i ~ i i t b ~ . t l \ I I I I Y ~ I > ~ C ~ VOIII rn>itiilrc\ ~ I c l i l l l l ~ ~ \11111i i 8 (ilir\lil<>.

mais além, indo até a comunhão nas coisas, no uso, na conversa, na habita- ção e em outras relações corporais.

Portanto, assim como nenhuma criatura pode fazer uma almaentrar na- quela primeira comunhão, a espiritual, ou, uma vez excomungada, fazê-la entrar de novo - só Deus pode fazê-lo -, da mesma forma nenhuma criatu- ra - exceto o ser humano mesmo através de seu próprio pecado - pode tirar-lhe essa comunhão ou excomungá-la.

Esta opinião é muito evidente, pois nenhuma criatura pode dar ou tomar a fé, a esperança, o amor, conforme Rm 8.35: "Quem nos separará do amor de Deus?" E mais abaixo: "Estou certo de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem poderes, nem coisas do presente, nem do por- vir, nem força, nem altura, nem profundidade, nem outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor." (Rm 8.38.) E 1 Pe 3.13: "E quem há de Ihes fazer mal, se vocês forem bons segui- dores?"

I Segue-se, pois, que a excomunhão eclesiá*itica é somente a privação da comunhão externa, isto é, dos sacramentos, dc funeral, do sepultamento, da oração pública e ainda, como foi dito, de outras coisas referentes à necessida- de corporal e as relações. Esta opinião é conhecida. Assim escreve também Paulo, em 1 Co 5.11, que n2o devem se associar nem comer com quem é cha- mado, entre eles, de fornicador, maldizente, bêbado, ladrão, etc. E em 2 Ts 3.14: "Se alguém não obedecer a nossa palavra por esta epístola, notem-no e não se associem a ele, para que seja envergonhado." E segue-se: "E não o considerem por inimigo, mas advirtam-no como irmão." (2. Ts 3.15.) Se isso não é dito da comunhão externa, sem referir-se a comunhão interna, confes- so que não entendo o apóstolo Paulo. E João na segunda epístola: "Se al- guém vem ter com vocês e não traz esta doutrina, não o recebam em casa nem o cumprimentem. Pois quem o cumprimenta tem parte em suas obras malig- nas." (2 Jo 10.)

Ser excomungado não quer dizer que a alma seja entregue ao diabo nem significa ser privado dos bens da Igreja e de suas orações comuns. Isto se evi- dencia abundantemente a partir do que foi dito, pois se permanecem a fé, a esperança e o amor, permanece a verdadeira comunhão e participação em to- dos os bens da Igreja.

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Se é justa, a excomunhão indica, antes, que a alma foi entregue ao diabo c privada da comunhão espiritual da Igreja, porque ela é aplicada a quem, :[través de pecado mortal, se privou a si mesmo da comunhão do amor e se critregou ao diabo, assim como, por outro lado, a reconciliação é um sacra- iiieiito e um sinal externo da reconciliação e comunhão internas. Por este mo- tivo, é verdade que a excomunhão eclesiástica não causa, mas pressupõe que :ilguém esteja na morte e no pecado, isto é, verdadeiramente excomungado ciii sentido espiritual.

A excomunhão é temporal e corporal de tal modo que, mesmo assim, es- iá ordenada não contra, mas a favor da comunhão interior, seja para rcsiabelecê-la, quando a excomunhão foi decretada justamente, seja para í'ad-Ia crescer, se a excomunhão foi injusta.

Isto é provado pelo que o apóstolo diz em 2 Co, no último capitulo: "Hei de agir segundo o poder que o Senhor me deu não para destruir, mas para edificar." (2 Co 13.10.) Entendo isto seguramente no sentido de que, lielo poder da Igreja, ele não pode destruir, mas apenas edificar. Pois, con- forme 1 Co 5.5, ele excomungou aquele fornicador e o entregou ao diabo de cal forma que, mesmo assim, o espírito fosse salvo; e, como foi dito acima, não devem ser considerados por inimigos, mas corrigidos como irmãos, não p;irw que se percam, mas para que sejam envergonhados. E, para dizê-lo mais :iiidaciosamente, também Cristo como ser humano não teve esse poder de se- parar almas, como diz em Jo 6.37: "Todo aquele que vem a mim, não o lan- c:irci fora." De novo: "Esta é a vontade do Pai que me enviou: que eu não perca nada do que ele me deu." (Jo 6.39.) E de novo, em outra passagem: "O 1:illio do homem não veio para destruir as almas, mas para salvá-las." [Lc 0.56.1 Do mesmo modo, em relação a isto há também um texto claro no livro VI, (/c sen. ex. c. Cum medicinalis; ele é muito notável e diz: "Visto que a ex- c~iiiiiinhão é medicinal, não mortal, para a disciplina, não para a destruição

desde que a pessoa a quem ela foi imposta não a despreze -, o juiz ecle- sii\tico deve, prudentemente, tratar de mostrar, ao impô-la, que buscou o i~iic scrvc a correção e a cura." E o que diz ai. Por que ele não disse: "o que hcrvc à destruição e a morte", como temem alguns desesperados, sim, como ~>iciciitlem alguns oficiais9 tirânicos? Portanto, a excomunhão eclesiástica é i i i i i IiciiEvolo e maternal flagelo da Igreja, imposto ao corpo e ás coisas do coipii. Através dele a Igreja não empurra para o inferno, mas, antes, faz vol- i ; i i c iiiipcle à salvação aqueles que se precipitam em direção ao inferno. Por isso. ela deve ser acolhida com extrema exultação e, ao mesmo tempo, reve- ii'ii~i:i: coiii iiiais razão ainda, deve ser suportada com a maior paciência.

Deve-se cuidar unicamente e ao máximo para que a excomunhão, esse tão fiel servidor da salvação, não seja desprezada ou suportada com impa- ciência, pois ela deve ser amada não só por causa do poder da Igreja - que, por si mesmo, sempre deve ser temido -, mas também por causa do efeito benéfico desse poder e da promoção da própria salvação. É como o fato de uma mãe castigar seu querido filho, as vezes merecidamente, ás vezes imere- cidamente. Aqui é evidente que se trata de um castigo benéfico e salutar para o filho. Se ele, não suportando essa disciplina materna, não abandonar o [que lhe foi] proibido ou não fizer o [que lhe foi] ordenado, mas, furioso, se insurgir contra a mãe ou a desprezar, eis que transgredirá o mandamento de Deus em que este ordena que se honrem os pais, e acontecerá que, a partir de uma Única e leve medida disciplinar, que era sem pecado e mesmo merecida, ele provocará para si a mais abominável culpa e pena eterna. Assim vemos acontecer também em nossa época (que desgraça!) que assassinam oficiais, matam, jogam na água e aprisionam notários e mensageiros, e cometem ou- tras monstruosidades abomináveis. Creio que não fariam isso se não cressem naquela opinião, tão difundida quanto errônea, de que, através da excomu- nhão, são entregues a condenação, e não, antes, buscados para a salvação. A partir dai acrescentam a esses crimes o desespero, o último e mais horrendo de todos os males. E por esta razão que preparei este sermão e agora também o publico, embora Deus permita com justiça essa morte contra os oficiais, pois desejam que essa compreensão da salvação [permaneça] oculta, para tanto mais seguramente fortalecerem sua tirania por meio do falso terror das pessoas; por fim, também acabam sofrendo o destino dos tiranos.

No entanto, se o povo fosse ensinado a compreender a grande necessida- de e a salubérrima força desse poder e da excomunhão, e que ela não está di- rigida contra eles, mas a seu favor, então eles10 teriam menos perigos e uma obediência mais tranqüila entre o povo, e mais ainda: obteriam também gló- ria e amor.

Portanto, meus irmãos no Senhor, não cogitem tais monstruosidades. Sejam os servidores desse poder oficiais ou publicanos, sejam eles, digo eu, maus ou bons, ou quaisquer que sejam, o poder mesmo não prejudicará vo- c ê ~ , mas sempre lhes será útil, seja ele [bem] usado ou mal-usado - apenas o suportem corretamente, ou procurem, com humildade, escapar ou ser livra- dos [dele]. Contemplem a Igreja como mãe. Que te importa se ela te imp0e sua vara através da mão de um indigno? Ainda assim, é a vara de tua dulcissi- ma mãe e, por certo, sobremodo salutar.

Aiiics, preyta atenção e volta teus olhos mais para fazer ou deixar de fa-

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zcr aquilo pelo qual és excomungado e flagelado do qiie para como não so- rrer a vara. Mas oh! tudo isso está completamente as avessas. Nós considera- mos não o que a vara tenciona, mas unicamente o que ela faz. Quem entre nós agora receia ofender a Deus (e é exclusivamente por causa disso que so- mos excomungados, se somos excomungados justamente) com tanto tenior quanto se esforça para evitar e fugir da excomunhão? Assim acontece que sempre tememos mais as penas, também as tão benéficas e boas, do que os horrendissimos pecados. E para isso contribuem, lamentavelmente, os tão ameaçadores e tirânicos servidores desse ótimo poder, [que não passam de] rábulas.

A excomunhão deve ser aplicada não só por causa de contumácia em questões de fé, mas por causa de qualquer crime escandaloso. Isto se eviden- cia a partir do que foi dito anteriormente, onde Paulo ordena, em 1 Co 5.11 e 2 Ts 3.14, que se evitem também os fornicadores, etc. Contudo, é uma gran- de miséria e uma injustiça desse poder o fato de, ás vezes, pessoas serem ex- comungadas por causa de um sétimo ou um oitavo de florim, enquanto que delitos horriveis e escandalosos permanecem impunes. Para encobrir essa ti- rania, foi fabricada uma invenção bastante ardilosa, a saber, que as pessoas seriam excomungadas não por causa de suas transgressões, mas por causa de sua contumácia, como se não fosse suficientemente cruel o fato de se arrastar o pobre, por causa de uma quantia tão pequena, por tão longas distâncias pa- ra tão grandes torturas. Mas sobre isto [me manifestarei] em outra ocasião.

É isto o que se deve considerar sobretudo e em todas essas coisas: porque i. o poder de Cristo, o poder da Igreja - ainda que, por causa de nossos peca- dos, geralmente seja confiado aos Pilatos, Herodes, Anás e Caifás e outros tiraiios violentos - sempre deve ser por nós venerado e respeitado com a iiinior diligência, a exemplo de Cristo, que assim honrou Anás, Caifás, Pila- tos. Por esta razão, nem os mais indignos abusos dele devem fazer com que clcixcinos de suportar jovialmente o que quer que ele faça; ou então devemos, pelo iiiciios, repeli-lo com reverência. Pois a época em que vivemos é perigo- sissiiii;i; por isso, devemos agir de maneira prudentíssima, para que não des- ~irc/ciii»s, por causa das pessoas, igualmente o poder; pelo contrário: por ~,;iiis:i <I« poder, devemos honrar até mesmo as mais vis pessoas. Pois assirii I IOS diz clcll crii sua ira: "Dar-lhes-ei meninos por príncipes, e efeminados go-

vernarão sobre eles." [Is 3.4.1 E faremos isso com tanto mais facilidade, já que sabernos que nada podem fazer em beneficio ou em prejuízo da alma, ex- ceto. ocasionalmente, tanto para nos exercitar quanto para nos tentar (por assim dizer).

A excomunhão injusta é o mais nobre dos méritos, devendo, por isto, ser suportada com brandura, se não tiver sido dado lugar a tua defesa, humilde- mente apresentada. Pois aqui podes dizer aquela palavra de S1 108[109].28: "Ainaldiçoem eles, mas tu, abençoa." Trata apenas de não desprezar o po- der. A força do poder traz proveito, porém o desprezo te arruinará. Pois se, como eu disse, o filho castigado imerecidamente obterá tanto maior favor de sua mãe depois que for conhecida sua paciente inocência, quanto mais alcan- çará maior graça junto a Deus se suportar, com paciente inocência, a discipli- na também de sua mãe Igreja? Mais ainda: se nos é ordenado entrar em acor- do e ser benignos com o adversário no caminho'2, quanto mais com a dulcis- sima mãe Igreja, mesmo que nos flagele por meio das pessoas mais indignas! Pois ela permanece mãe porque permanece Igreja, e permanece Igreja porque Cristo, seu noivo, permanece em eternidade.

No caso de uma excomunhão injusta, deves tomar o máximo cuidado para não abandonar, deixar de fazer, fazer e dizer aquilo por que és exco- mungado, a não ser que isso possa ocorrer sem pecado. Pois como pertencem á comunhão interior da Igreja, a justiça e a verdade não devem ser abandona- das por causa da excomunhão exterior, mesmo que ela se prolongasse até a morte; porque assim13 seria excomungado da pior maneira de todas quem te- messe a excomunhão; deve, portanto, suportá-la com humildade e morrer na excomunhão, não temendo não receber o Sacramento da Eucaristia, cerimô- nia fúnebre, sepultamento, etc. Essas coisas são incomparavelmente inferio- res a que a justiça seja traída por causa delasl4. Pois mesmo alguém que mor- ra excomungado justamente não será condenado por causa disso, a não ser que, por acaso, morresse incontrito e desprezando a excomunhão. A contri- ção e humildade desliga e reconcilia tudo, mesmo que ele fosse exumado e jo- gado na água. Bem-aventurado e abençoado, porém, é quem morreu em ex- coniunhão injusta, pois pela justiça, que não abandonou ainda que submeti- do a lão grande flagelo, será coroado em eternidade.

12 ( ' S . M I 5.25. I1 l i t i , C, eiii c;im ilc ;ih;in<liiiio da jus i i~a c d;i vcr<l;idc. 14 l < l t t C, ~prcic~ivcl zxl>rir !n~:Io clcwa< cuis:ts c!<> qt tc t ~ x i r a i~~stic:n ~ p u r c : ~ s a dcIa5.

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N o e n t a n t o , os pont í f ices e seus min i s t ros devem se r a d m o e s t a d o s no sci i t ido de ap l i ca rem censuras^^ contra a v o n t a d e e tão r a r a m e n t e q u a n t o pos- hivcl. Pois uma censura é uma espécie de lei; t o d a lei, porém, é uma f o r ç a e titiia ocasião para o pecado; sem a g r a ç a de Deus, a lei não é c u m p r i d a ; eles i t irnbém não podem dar a graça de Deus, i s t o é, o c u m p r i m e n t o da lei; a s s im ~ c t i d o , mul t ip l i cando as leis e censuras eles não fazem o u t r a coisa do que for- itccer m o t i v o s e ocasiões eficazes para a mult ip l icação dos pecados e d a s ol'ciisas a Deus. P o i s por mais que nós s e j a m o s o b r i g a d o s a obedecer a seus i>rcceitos, eles são m u i t o mais o b r i g a d o s a ser servidores de nossas f raquezas .

Fim.

Relato do Fr. Marünho Lutero, Agosthiano, sobre o Ehcontro com o Sr. 9 a d o Apostólico

em Augsburgo

As 95 teses de 31 de outubro de 1517 pouca repercussão tiveram e m Roma, embo- r a houvessem sido enviadas para lá por Alberto d e Mogúncia? Ainda em abril de ISIR, Luicro i,ii horiradc por .ii;i orclcin, u do, :ig,i>iiiitsii<~~ c r c t i i i t ~ ~ . ,ciiJ<i c\;.>lliido para pre\idir u Jchaie ~ a i d ~ i t i i ~ . ~ d o ;3l>iiulr, geral Jù, 3gdciiitim.n dciii2e, ciii Ilci- delb&g.

Em maio, n o capitulo geral dos dominicanos, sob a presidência d e seu geral, o cardeal Caetano?. Lutero foi denunciado Dela seeunda vez. aaora com sucesso. O Da- - . - pa entregou a tarefa de refutar Lutero a Silvestre Priérias4, que também era dominica- no. (João Tetzels. membro d a mesma ordem. fora amaciado com o titulo de doutor - e m Teologia nesse capitulo, o que demonstravao apoio que lhe dava sua ordem.) Prie-

I Acrof. Marrini Lulher ouguslinioni apud d. legalu,n oposroiicum Augusroe, WA 2 6 2 6 . Traducao de Walter O. Schluoo.

(1513), arcebispo de Mogúncia (1514) e, como tal, um dos sete principes-eleitores do Sacra Império Romano (Alemanha), cardeal (1518). O mais poderoso principe da Alemanha ere- presentante da Renascenca, era responsável pela veiida das indulgências que mativoii Lute- ro a redigir suas 95 teses (v. neste volume pp. Zlss.). Nos últimos anos de sua vida tornou-se um dos mais decididos inimigos da Reforma evangélica.

3 Jacó de Vio. natural de Gaeta (Itálial e nor isso chamado Caetano (também Caietano. Ca- ]<litlli> . I4hh-l 5x4 .\.l cllll.i< I I J c):Jc!11 I).i!:11cl..lllil. CII: i-l\-I. . t r i l l l l l . . l ., Il.>lnr. " I . !:,.i.''

C :.,n,iJr.iiJ.i ., IiiriJtJdr J i rir.. i.,r!.i.iii. J 8 iit.:! J \c. .I.> Y \ r .ii!.i,i ".> ,:.i.I., YVI e um dos melhores teólogos romanos de sei! tempo. Professor de Teologia na Itália, procuradar-geral(1500-1508) c mestre-geral (1500-1518) de sua ordem, cardeal (l517), lega- do papal na Alemanha (1518-1519), bispo de Gaeta (1519), legado papal na Hungria, Boê- mia e Polônia (1523-1524). Faleceu em Roma.

4 Priérias ISiivestre Mazzolini). aoraximadamente 1456-1523. natural de Prieria (Itália). do- .. . . .. minicano, inquisidor, rnagisler Socri Palolii (mestre da Sacro Palácio) (1515) e, como tal, integrante oficial do processo eclesiástica contra Lutero, conselheiro teológico do papa Leso X.

5 Aproximadamente 1465-1519, natural da Saxônia, desde 1489 dominicana; piegador/vendedor de indulgências em várias regides da Alenianha (desde 1504), inquisi- dor para PolÔnia/SaxÔnia (1509), subcomissária no bispado de Meissen (Saxônia) para a venda das indulgências em favor da construczo da Catedral de Sáo Pedro, em Roma, e de- pois (1517) subcomissário plenipotenciário do cardeal-arcebispo Alberto de Mogiincia para a vcnda das mesmas induleências nas áreas de Halberstadt e Maedebureo. Cheeou a vender

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i i:i\ escreveu e enviou a Lutero seu Diúlogo sobre aspresunqosas teses de M Lulero v h r r o poder do papa6, juntamente com a citação para comparecer em Roma dentro ilc M) dias. Lutero as recebeu em 7 de agosto de 1518. A conselho de um amigo advo- ~:i<li,. 1.utero enviou um emissário ao principe-eleitor Frederico, o Sábio7, que se en- ci>ritrava em Augsburgo participando da dieta imperial, pedindo-lhe que intercedesse i i c r sentido de aue Lutero oudesse ser ouvido na Alemanha e não em Roma.

Em Roma já se estava convencido de que Lutero era um herege. Isto porque ad- vrrs!irios de Lutero tinham falsificado. em forma de teses. o sermão acerca da exco- tiiiiiilião que ele proferira a 16 de maio de 1518. Caetano enviara essas teses a Roma ccii 5 de agosto, juntamente com um escrito do imperador Maximiliano 18 em que este ~irilia a excomunhão de Lutero. Em seu breve de 23 de agosto de 1518, o papa Leão X9 <,iilciia a seu legado Caetano que aprisione Lutero sem demora. No mesmo dia, em c>i~iro breve, o papa escreve a Frederico, o Sábio, pedindo-lhe que entregue o "filho iI:i licrdição" a Caetano; num terceiro breve, pede ainda ao superior dos agostinianos cccmitas que acorrente pés e mãos de Lutero e o aprisione. Parecia ter chegado o fim vi<,lciito de Lutero.

O cardeal Caetano participou da dieta de Augsburgo de 1518 na qualidade dele- >:;ido do papa. A esta altura, a política imperial começava a influir no destino de Lute- i < > . A Cúria Romana estava muito interessada no apoio de Frederico, o Sábio, com vi*l;is à eleição do sucessor do imperador Maximiliano I, que estava idoso e enfermo. Maximiliano tentara, na mesma dieta, garantir a eleição de seu neto Carlos da Espa- iiIi:i. Cinco dos sete eleitores concordaram. Apenas Frederico e o arcebispo de Trier i130 assinaram o compromisso. O candidato da Cúria era, naquele momento. o pró- i t r i i , I'rederico, o Sábio. Este, recebendo o apelode Lutero, dirigiu-sea Caetano solici- f:iiiiIii que Lutero fosse ouvido por ele - paternalmente, não como juiz - ali mesmo CIII Aiigsburgo, para não precisar ir a Roma.

C .. .tetano . entrou em contato com Roma e, a I1 de setembro, recebeu autorização 1,;ii;i ouvir Lutero, mas sob a condição de não entrar em debate com ele. A 20 de se- ii.itiIir«, Caetano mostrou o novo breve papal ao principe-eleitor, ao que este solicitou ;I Iiiicro que viesse a Augsburgo. Lutero chegou ai no dia 7 de outubro, sem saber o i~iic i> aguardava, esperando pelo pior, já lamentando que sua morte de herege seria iiiii:i vergonha para seus pais.

I.ulcro só compareceu perante Caetano a 12 de outubro, depois de receber o \;ilvi>.-conduto imperial. Nos dias 12, 13 e 14 entrevistou-se com o cardeal. Em cada :iiiiliGricia, as divergências ficavam mais evidentes. Caetano, o mais renomado conhe-

- . ~ .-

r * I,! /r<i<,.siimpruosos M. Lutheri conclusiones de poiesiaie pupae dialogus. 1 1~111i~1525. da linha ernestina da dinastia de Wettin, piincipe~eleitor da Saxônia ernestina

(14Hh), oii seja. um dos sete principes-eleitores do Sacro Império Romano (Alemanha). l ~ i i i i < l ; i < l c , i da IJriiverjidade de Wittenberg (1502). cujo mais famoso professor, naqucie t ~ . i t i 1 ~ > . era I.iiter<i. Protetor de I.utero. SU na fim de sua vida confessou abertamente a fé rv;iliyl'lica. icccheiiilr> i Ceia do Senhor com as duar espécies, pão e vinho.

H 147,) 151'). il:i <lin;i$fia dc Hahsburgo. Rei dc Roma (1486) e imperador do Sacro Impbrio I<,iiii;iii<i (Alciii;iiilia) (1493). I.ipi>u à sua dinastia as da Espanha e da Polônia. Avo do iiii-

]'<.i;i,liii (1 ,11<i \ v. 1 I i.:li> Y (( ;iou;iiiiii ile'Mcdici1, 1475-1521. riiitiiral dc Florciiçn (Itilia). .lh com<> crioiic;! loi

ilivritiil<> riii diui.i\i>$ i.;irgo\ eclcsi!i\ticos. 'I'i>riiou-\c c;irilcsl cimi ;i irln<lc de 13 ;iiii>i. c ]>;i

<r111 151 3 , f : t ~ t ~ w o c o ~ t ~ o c ~ ~ l c c i o t ~ ~ t ~ l ~ ~ r LIC c)hr:ts clc icv lpaicocii~adcn ~ C I I U O \ O clc l ~ $ i n t , r c t ~ n ~ ~ r t t t i ~ t ; t ~ ,

cedor da teologia de Tomás de Aquino'" do século XVI, geral da Ordem dos Domini- canos e defensor da infalibilidade papal, era a própria antitese do que Lutero, o mais profundo conhecedor da Biblia de seu tempo, defendia. Caetano enfatizou que a au- toridade do papa é maior que a de um concilio ou até que a da Sagrada Escritura e exi- giu que Lutero se retratasse. Este recusou-se a fazê-lo. Houve um debate acalorado. No dia 13, Lutero pediu permissão para entregar sua defesa por escrito, o que aconte- ceu no dia seguinte. Caetano prometeu enviá-la ao papa com uma ampla refutação. Mas o debate acalorou-se novamente e, ao final, Caetano berrou: "Vai embora! Se não te retratares, não apareças mais em minha presença." Lutero retirou-se, ficou es- perando noticias de Caetano. escreveu-lhe uma carta pedindo desculpas por sua lin- guagem intempestiva e prometendo silenciar sobre a questão das indulgências, caso seus adversários fizessem o mesino. Também escreveu uma "aoelacão do oaoa mal in- . . . . formado ao papa a ser melhor informado"ll. Registrou-a junto a um tabelião. Já de- ~ o i s de sua oartida. a 22 de outubro. essa aoelacão foi afixada na oorta da catedral de . . Augsburgo.

Enquanto Lutero aguardava resposta de Caetano, rumores de que este pretendia prendertanto Lutero q;anto Staupitz circulavam em Augsburgo. Depois de liberar Lutero de seus votos monásticos, Staupitz saiu apressadamente de Augsburgo.

Como os rumores ficassem mais fortes, na noite de 20 de outubro Lutero foi con- duzido para fora das muralhas da cidade por uma pequena porta lateral; do outro la- do, umcompanheiro o aguardava com um cavalo. Às pressas, iniciou a viagem de re- torno. Passando por Nürnberg, viu o breve papal de 23 de agosto, em que Leão ins- truia Caetano a aprisionar Lutero. A principio, Lutero não quis acreditar em sua au- tenticidade. A 31 de outubro, um ano depois de afixar as 95 teses, chegou novamente a Wittenberg. Em poucos dias, redigiu sua versão dos acontecimentos de Augsburgo, os Acla Augustana, que conferem amplamente com o que os outros participantes deixa- ram por escrito sobre os mesmos. Quando os Acta estavam sendo impressos, Frederi- co, o Sábio, tentou impedir sua publicação. Mas era tarde demais. Os primeiros dois fasciculos já tinham sido vendidos individualmente. Só faltava o terceiro, que Lutero resolveu liberar também. No entanto, em deferência ao principe-eleitor, cobriu com tinta de impressor o primeiro parágrafo do trecho que trata do breve de 23 de agosto.

Este breve mostrara a Lutero o que podia esperar de Roma. O escrito papal afir- ma que as idéias de Lutero são heréticas, que publicou "panfletos difamadores con- tendo novas heresias e erros", que quer evitar que "esta praga se alastre", que "esse Martinbo iá lestál declarado herege". Sem qualquer julgamento, a Cúria Romana j á o . . . . ~. ~-

declara taxativamente herege, o que, na época, significava estar a um passo da execu- cão. No mesmo dia de seu retorno a Wittenberg, a 31 de outubro de 1518, Lutero es- creveu a Espalatino" de sua intenção de fazer uma apelação formal a um futuro conci- lio ecumênico. A 28 de novembro a registrou formalmente perante um tabelião, na presença de testemunhas. Entregou o escrito para ser impresso com a condição de que sb fosse divulgado caso ele fosse excomungado. Acontece que quase todos os exempla- res iá tinhai sido vendidos auando Lutero ficou sabendo que a impressão estava pronta. As cartas de Lutero de 9 e 11 de dezembro a Espalatino e Linck, respectivamen- te. nermitem crer aue a oublicacão ocorreu no dia 10 daquele mês. O principe-eleitor , . I'rederico, o Sábio: era contrário à publica$ão, mas fico"sabendo dela tarde demais.

Dois anos mais tarde, já excomungado pelo papa, Lutero renovou a apelação.

Mario L. Rehfeldt 111 Cf. p. 31. nota 3 e p . 402, nota 8. I I il,>/>ell<ilio M. Lutheri o Cuielono adpopom, WA 2.28-33. I2 ( ' f . p. 35, nota 3 e p. 233. nota 2.

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ira essa bula, que os méritos de Cristo não são o tesouro das indulgências. I'or isso, ele urgia comigo para que eu me retratasse e ficou insistindo, con- fiante e certíssimo da vitória. Acontece que ele confiava e até então presumia seguramente que eu não conhecesse a extravagante, baseando-se talvez no fa- i o de que nem todos os códices'g a contêm.

Em segundo lugar, ele me acusou de ter ensinado, na explicação da tese 71'1, que a fé é necessária para todo aquele que vem ao sacramento; do contra- rio, estaria vindo para o seu próprio juizo. Ele pretendia que isso fosse consi- derado doutrina nova e errônea; antes, todo participante não teria certeza se tilcançaria graça ou não. E com essa sua segurança ele conseguiu fazer com que eu parecesse um derrotado, principalmente porque seus demais acompa- ritiantes italianos sorriam e, conforme seu costume, riam ás gargalhadas.

Respondi então que não só examinara atentamente e8;a bula de Clernen- ic , [nas também a outra, análoga e do mesmo objetivo, de Sixto IV2o (pois eu realmente tinha lido as duas, juntamente com sua verborréia, que, de tão cheia de ignorância, merecidamente Ihes tira a credibilidade); mas eu não po- dia atribuir-lhe autoridade suficiente, entre muitas outras razões porque ela ;~busa das Sagradas Escrituras e (se é que ainda deve vigorar o seu sentido ii\ual) se atreve a torcer as palavras para um sentido estranho e até contrário :to que elas têm no lugar em que estão. Por isso, as passagens que sigo ern mi- iilia tese são inteiramente preferíveis á bula, que nada prova, mas apenas reci- ia e relata a opinião de S. Tomás.

Contrariando-me, ele passou então a salientar o poder do papa, porque cstc estaria acima do concilio, acima da Escritura, acima de toda a Igreja. Pa- i ; ~ demonstrar isto, citou a rejeição e a anulação do Concilio de Basiléia21, ;ilcgarido ainda que os gersonistas estão condenados juntamente com < itrson22. Como isto era novidade para os meus ouvidos, retruquei negando qiic o papa estivesse acima do concílio e acima da Escritura e defendi a apela-

I H 1\10 é, as edisões do direito canôniço. I < > Cf. pp. 75ss. L I I Sixlo IV (Fraiicesco della Roveie), 1414-1484, italiano, superior-geral dos franciscanos, pa-

~pn ile 1471 a 1484. Conhecido com<> liumanista e patrocinador das artes. Com seu governo icilcioii o peiioda da maior decadência do papada renascentista.

> I IRr;ilirudo entre 1431 e I449 em Basiléia (até 1448) e Lausanne, iia Sulca. Representa o poii- 1 0 alto do conciliarisma medieval, segundo o qual o papa está subordinado ao concilio ge- i ; i I 1)e fato declarou destituído o papa Eugênio IV, em 1439, clcgendo. em seu lugar. o du- qiic Aciiadru de Sabóia, que assumiu o nome de Félir V e renuncioii cm 1449. O Concilio de Il;i\ilCia i ià<i L' çonsidcrado como concilio geral (ecumênica) pela Igrcja Católica Romana.

!! Ii i ; l<i i;Ci+on (Jean Qiarlicr), 1363-1429, iiatuial da localidade de Gérson. no iiorte da Ii:i!i~:i, lillio de caniponês. Professor e cliancelei- da Emosa Universidade de Paris, a Sor- Ii<~iirir (1395). I>c%de 141X/1419 viveu na Baviera, na Austria c eni 1.i2.o (Franca). Ciacilii,ii o :il>cli<lo ilr "doiilor cri~tiariis~imo". Adepto da corrrnle filosófico~teológica da nonii<iali\- i i i i , . ;irriiiiioii ;i iiiiport.iricia da prática. da poim8iiica c da mi<tica. seguiido os padinc+ d:i lp,rcl;c. I:rcnic :\ divih30 lp:!l>;iclo, < I ' ' g r ~ r ~ d e c i s ~ ~ t ~ ~ ' ' (1378-1415), corri papas rcsidirxlo I K < I I > I : L c Avih!n~m, t ;+IW~I c l ~ c ~ ~ ~ ~ ~ ;I dcfcndcr, C,>TTX? f ~ ~ l t 1 ~ 3 0 , ;h iclCi$t (Ic qltc 0 cortcilm g,s'!al I X > ~ C I i:!, 5,. ~ ~ c ~ c ~ \ \ ! t t i c ~ , dc!lil>8ir c> I > : L I ~ I .

204

ção da Universidade de Parisu. No confuso diálogo, ainda trocamos palavras sobre a penitência e sobre a graça de Deus. Pois foi com dor que ouvi aquela segunda objeção; com efeito, eu teria esperado tudo, menos que essa afirma-

I ção fosse posta em duvida algum dia. Assim sendo, não chegamos a concor- dar em quase nenhum ponto; pelo contrário: como de costume, uma coisa puxa a outra, de modo que sempre surgia unia nova contradição. Mas como percebi que, com essa contenda, nada se conseguia a não ser atacar muitas coisas e não chegar a resultado algum, e que deveras não estávamos senão in- ventando uma porção de extravagantes, e principalmente visto que ele, como representante do sumo pontífice, não queria parecer estar cedendo, pedi tem- po para deliberar.

No dia seguinte, na presença de quatro conselheiros da majestade iniperial24, além de escrivão e testemunhas, fiz, pessoalmente e dentro da for- ma própria, a seguinte declaração perante o reverendissimo sr. legado: "An- tes de mais nada, eu, frei Martinho Lutero, agostiniano, declaro quevenero e sigo a santa Igreja Romana em tudo o que digo e faço, no presente, no passa- do e no futuro. Se uma afirmação contrária ou diferente foi ou vier a ser fei- ta, quero considerá-la e quero que seja considerada como não feita.

Acontece, porém, que o reverendissimo senhor, etc., me apresentou e de mim exigiu, a mando do senhor papa, conforme disse, que, no que tange ao debate que tive sobre as indulgências, eu cumprisse as seguintes três coisas: em primeiro lugar, que voltasse atrás em meu achado e retratasse o erro; em

i segundo, que garantisse que futuramente não o repetiria; em terceiro, que i pronietesse abster-me de tudo o que perturbasse a Igreja de Deus. Eu - que , debati e busquei a verdade, não posso ter errado apenas por buscá-la, muito

menos ser compelido a retratar-me, uma vez que não fui ouvido nem refuta- do - declaro hoje que não estou cônscio de ter dito qualquer coisa que fosse contra a Sagrada Escritura, os pais da Igreja, as decretais pontificias ou con-

I tra a razão reta; tudo o que eu disse também hoje me parece são, verdadeiro e católico.

Não obstante, sendo pessoa humana suscetível de erro, submeti-me e também agora me submeto ao juizo e a determinação legal da santa Igreja e a todos os mais entendidos. Além disso, disponho-me ainda a prestar contas sobre as minhas afirmações pessoalmente, aqui ou em outra parte, também em público. Caso isso não aprouver ao reverendissimo senhor, etc., estou pronto a responder também por escrito as acusações que ele pretende levan- tar contra mim e a ouvir a este respeito o parecer e a sentença dos doutores das insignes Universidades imperiais de Basiléia, Friburgo e Lovaina ou, caso

23 Trata-se da apeiasão da Universidade de Paris, de 27 de niaico de 1518, ao concilio geral contra a revogasão da Sansão Pragmática de Bourges, que, em 1438, legalizara grande par- te das reformas eclesiásticas introduzidas pelo Concilio de Basiléia.

24 Jacá Banisrio, presidente do departamento de politica exterior do imperador Maximiliano I c decano de Trento; o dr. Peutinger, secretário da cidade de Augsburgo; o cavaleiro Felipe <Ir Feilitrsch. O qiiarto conselheiro talvez tenha sido o secretário imperial Jacó Spiegel, mas ~ i ã o Iiá ccctwa a irhpritr> disso.

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i510 não baste, também da Universidade de Paris, que é a mãe dos estudos e desde sempre tem sido uma universidade muito cristã e muito exuberante na icologia."

Após esta declaração, ele voltou a discussão de ontem a respeito da pri- i~icira acusação; é que ela parecia ser muito favorável a sua opinião. Como eu 1,ci-rnanecesse em silêncio e, de acordo com minha declaração, prometesse icspoiidcr por escrito, ele mais uma vez mostrou-se muito confiante. Final- iiiente aceitou a resposta escrita e saímos. Este é o texto da resposta:

"Ao Reverendissimo Pai e Senhor em Cristo, Senhor Tomás, Cardeal da Igreja titular de S. Sixto, Legado da santa Sé Apostólica, etc.

Frei Martinho Lutero, agostiniaiio, saúda. Pretendo, através desta carta, demonstrar humildemente quão pouco me

iiego a responder e que de bom grado me disponho a prestar contas sobre to- das as minhas afirmações individuais e especiais, Reverendissimo Pai em <'risto, a fim de responder a contento as acusações de ontem e anteontem que guardo na memória. Pois são duas as coisas de que fui acusado pelo Reveren- <lissimo Pai Toniás.

Em primeiro lugar, em minhas teses" pareço negar aquela extravagante <Ic Clemente VI, que começa com a palavra Unigenitus, em que aparentemen- ic sc afirma que o tesouro das indulgências são os méritos de Cristo e dos san- IOC.

Respondo da seguinte forma: aquela extravagante não me era desconhe- cida quando eu fazia essas reflexões. Acontece, porém, que eu tinha plena ccrtera e sabia ser concepção uniforme da Igreja que os méritos de Cristo em sc~itido espiritual não podem ser transmitidos a pessoas humanas nem passa- CIOS adiante pela mediação ou atuação de pessoas, como parece querer dizer ;iqiiela bula. Por isso, preferi não mencioná-la e deixar que outras pessoas iiiais entendidas enfrentassem as grandes tribula~ões e angústias que passei 11iira defender a reverência ao papa.

Ocorreu-me e preocupou-me, pois, em primeiro lugar, que se tratava de piilavras desnudas do pontífice, ineficiente proteção contra uma pessoa con- iciiciosa e herege. Depois, alguém poderia dizer que é vergonhoso um princi- pc Iàlar sem apoio na lei e que, segundo o profeta Zacarias26, da boca do sa- cci-doie devem-se esperar não palavras humanas, mas a lei de Deus. Vi ainda qiic a bula distorce as palavras da Sagrada Escritura e delas abusa em sentido csiranho, pois o que a Escritura diz a respeito da graça justificadora, a extra- v;igaiilc relaciona com as indulgências. Por aí se vê que ela mais relata e exor- (:I , com intenção até certo ponto piedosa, do que prova qualquer coisa com I I I I I : ~ demonstração sólida.

lliquietava-me também o fato de que é perfeitamente possível que, oca- sioii;ili~ie~ite, as decretais estejam erradas e colidam com as Sagradas Escritu-

?( ( ' i . ~ c i c , 58 ç 60. ~pp. 1óüe 172 L0 ( ' i . M1 2.7.

ras e o amor. Pois não obstante devermos dar ouvidos as decretais do pontífi- ce romano tanto quanto cabe dar ouvidos a voz de Pedro, conforme consta na distinctio XIXm, isso vale somente para aquelas (como consta no mesmo lugar) que estão em harmonia com as Sagradas Escrituras e não estão em contradição com os decretos anteriores dos pais.

Junta-se a isso, ainda, o fato de que Pedro, quando "não procedeu cor- retamente segundo a verdade do Evangelho" (GI 2.14), realmente foi re- preendido por Paulo. Portanto, não é de estranhar que seu sucessor tenha fa- lhado em algum ponto, uma vez que tarnbém em At 15.13s~. a doutrina de Pedro não foi reconhecida até receber a anuência de Tiago, o Menor, bispo de Jerusalém, e tornar-se consenso de toda a Igreja. Daí parece provir o prin- cipio jurídico de que uma lei somente se firma quando é aprovada pelos cos- tumes dos que a utilizam.

Além disso, quantas decretais foram corrigidas por outras posteriores! Portanto, também esta pode perfeilamente ser corrigida a seu tempo. Tam- bém o PanormitanolR, no livro I, de elect. c. SignificastFq, mostrou que, em questões de fé, não só o concilio geral está acima do papa, mas também qual- quer fiel, caso se apoiar em abonação e razão melhores que o papa, assim co- mo Paulo agiu em relação a Pedro em G1 2.14. Isso também é confirmado por 1 Co 14.30: 'Se, porém, vier revelação a outrem que esteja assentado, cale-se o primeiro.' Por isro, a voz de Pedro deve ser ouvida, mas de tal for- ma que a voz de Paulo ao refutá-lo tenha maior validade e que a voz de Cris- to seja superior a de todos.

O que mais me preocupou, no entanto, foi que aquela extravagante me parecia conter inegavelmente certas noções falsas: em primeiro lugar, por di- zer que os méritos dos santos são um tesouro, conquanto toda a Escritura tes- tifique que Deus nos premia muito além de nosso mérito'o, como em Rm 8.18: 'Os sofrimentos do tempo presente não são dignos de comparação", etc. E no livro I das Retrataçóes, XIX, o B. Agostinho'' afirma: 'A Igreja in- teira ora até o fim do mundo: Perdoa-nos as nossas dividas! Por isso, ela não pode transmitir a outros o que não tem suficientemente para si mesma.'32 Pe- la mesma razão, as virgens prudentes nada quiseram entregar do seu óleo as t o l a s ~ ~ . O B. Agostinho também diz no livro IX das Confissões: 'Ai da vida de uma pessoa, por mais irrepreensivel que seja, caso for julgada com exclu-

27 Decrerum magistri Grnfiani, pule I , dislinctio XIX, capitulo 2, in: Corpus iuris coilonici. Graz, 1955, v . 1, cols. 58-M.

28 Trata-se de Nicolau de Tudeschi (ou: Tudesco), 1386~1445, beneditino italiana, o último canonista impaitante da Idade Média. Abade do mosteiro de Santa Maria de Maniaco, per- to de Messina (Itália) (1425), depois (1435) arcebispo de Palermo. Lecionou Direito Canô- nico em Bolonha, Parma (1412-1418) e Siena (1419-1430).

29 Lutero se refere aqui à passagem indicada das preleqòes de Nicolau de Tudesco sobre as de- crctais de Gregório IX: livra 1, titulo De eiecfione, capitulo Signrfcasfi.

30 Liilcro se refere ao merirum de condigno, isto é, conforme a teologia escolástica, uma erp- cie de mérito que dá direito a recompensa.

3 1 Cf. (i. 36, nota 8, p. 67, nata 46 e p. 4ü1, nota 4. 32 Ili~rr~~crurion~~.~. livio I, capitulo 19. parágrafo 3, i": Migne 32,615. 13 ('I. Ml 25 .9

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são da misericórdia.'34 E o profeta: 'Não entres em juizo com o teu servo, porque à tua vista nenhum vivente será justificado.' [Sl 143.2.1 Por isso, os santos não serão salvos por seus próprios méritos, mas exclusivamente pela iiiisericórdia de Deus, conforme já expus mais detalhadamente nas Làrplicações~~. Entretanto, eu não tive a extrema temeridade de abrir mão de iantos e tão importantes testemunhos evidentissimos da Escritura Divina por causa de uma única decretal, tão ambígua e obscura, de um papa e ser huma- tio. Antes, julguei ser o mais correto dar incomparável preferência as pala- vras da Escritura pelas quais os santos são descritos como deficientes de méri- tos, e não as palavras humanas que lhos atribuem em abundância. Pois o pa- pa não está acima, e sim abaixo da palavra de Deus, conforme aquela passa- gem de G1 1.8: 'Ainda que um anjo vindo do céu pregue Evangelho diferente do que o que recebestes, seja anátema!' Também já não era nenhuma bagate- la a bula afirmar que esse tesouro está confiado a Pedro, do que nada consta iiem no evangelho nem em Escritura alguma.

Perturbado por essas preocupações, resolvi, como disse, ficar quieto e ouvir a outros, visto que minhas teses me parecem muitissimo verdadeiras, inclusive até o dia de hoje. Como agora insistem comigo para que tente eu iiiesmo aquilo que deveria esperar de outros, sobretudo do sumo pontífice, a qiiem unicamente cabe esclarecer o que ele estabeleceu, não obstante tentarei, com minhas forças inatas e com a graça de Deus, para defender a mais pura vcrdade, fazer com que as minhas teses combinem com a extravagante, de iiiodo que ambas sejam mantidas dentro da verdade.

1. Preciso partir da suposição de que as indulgências absolutamente na- (Ia são (em termos metafisicos), uma vez que é certo que não passam de re- iiiissões da satisfação, ou seja, das boas obras, esmolas, jejuns, orações, etc. I'or isso, também é certo que elas representam um bem em sentido negativo, visto que permitem deixar de pagar as penas devidas ou não ocorrer o esforço das obras. Segue-se necessariamente que só de forma muitissimo imprópria a iiidulgência pode, nesse lugar36, ser tida por um tesouro, pois não confere na- <I:< de positivo, permitindo apenas que nada se pague.

2. É certissimo que o papa não dispõe desse tesouro como que numa bol- so ou caixa, e sim na palavra, ou nas chaves, ou no poder. Pois, ao concedê- 10, cle não abre uma caixa, mas manifesta a sua vontade e palavra, sendo esta :I l'orma pela qual ele dá a indulgência.

3 . Segue-se que os méritos de Cristo são o tesouro das indulgências não riii scntido formal e próprio, mas apenas impropriamente e em seu efeito. I'orqiie o papa não concede os méritos de Cristo em sentido formal, mas em l'iiii~ãri do mérito de Cristo" - isto é, através das chaves, cuja concessão a ~~~p

1.1 1 i i , , ,~.~ri<ir!i:r, livro IX. capitulo 13. parágrafo 34, in: Migne 32.778. i I ~ ~ ~ i l i i ~ r , c r J ~ ~ . ~ drlo <I<,Aillesohre o valor dos indulgêneios, pp. 55ss.ldesre volume; sobre a tese

H . çl'. ,hid.. pp. 1M)sr. 11, 1,111 i'. c,:, CxI r i lVi ly i l l l lC .

l i / I< , ,tri.ril<i <'/iri.di. iio <rrigiri;il. I h l i i cxprc~sso 1:iiiiliCin p<i<lrii:i +er 1r;idiirida ~p<' i "a 1p;iriir , t > t ~ i i u <I? ( ' ~ i \ I o ' ' . i ~ ~ < l i c x t ~ ~ I c :! ~p!,~cc"l?~~ci:t (\ : ) iclo clc, c > r i g i ~ ~ A r i u .lc, c ~ x i ~ t i d < ~ dc),

2011

sua Igreja Cristo mereceu -, uma vez que pertence ao poder das chaves dis- pensar da satisfação. Portanto, fica evidente que afirmei com razão na tese 6038 que esse tesouro consiste nas chaves dadas a Igreja pelo mérito de Cristo. E neste sentido é verdade que os méritos de Cristo são o tesouro das indulgên- cias, contanto que se tomem este tesouro e o mérito de Cristo em sentido im- próprio. Fica, portanto, manifesta a concordância da extravagante com a mi- nha posição.

4. Que esta também era a intenção do papa nessa extravagante fica pro- vado pelas próprias palavras do papa, ao afirmar que esse tesouro foi confia- do por Cristo a Pedro e seus sucessores. Entretanto, é certo que a Pedro nada foi confiado senão essas chaves do reino dos céus, as quais são os méritos de Cristo (isto é, concedidas em função do mérito de Cristo) em sentido impró- prio e no que tange ao efeito, conforme eu disse. O outro tesouro confiado a Pedro é o da Palavra, em relação ao qual Cristo diz: 'Apascenta, apascenta, apascenta minhas ovelhas!' [Jo 21.17.1

5. Certo é que esse significado do tesouro das indulgências não é conhe- cido nem mencionado entre o povo de Cristo, como diz a tese 5639; pois os conceitos 'tesouro', 'méritos de Cristo', etc. praticamente só são usados de modo impróprio e obscuro. Por esta razão, as pessoas praticamente acabam acreditando que alcançam algum bem próprio e positivo, como um presente ou uma graça. Mas como não alcançam senâo o ministério das-chaves, pelo

I qual são dispensadas de fazer satisfação pelos pecados, não recebem senão um bem negativo e um tesouro impróprio. E este é de fato inexaurivel e infi- nito, porque o poder das chaves é inexaurível. Ele está baseado diretamente no mérito de Cristo, ao passo que as indulgências nele se baseiam indireta- mente. Assim também se pode dizer que os méritos de Cristo são indireta- mente o tesouro das indulgências.

6. De modo semelhante, eu também admitiria que os méritos dos santos são esse tesouro, em sentido impróprio, isto é, no sentido de que os méritos dos santos, incorporados e unificados, pela fé em Cristo, com os méritos de- le, chegam a ser e a operar o mesmo que os méritos de Cristo, segundo aquela passagem que diz não ser a vida do justo dele mesmo, mas de Cristo que nele vive: 'Vivo eu, mas já não sou eu quem vive, e sim Cristo vive em mim.' [Gl 2.20.1 Pois os méritos dos santos, na qualidade de méritos dos santos, nada representam e até são condenáveis, conforme eu disse acima e segundo afir- ma o B. Agostinho: 'Onde n8o sou eu, ali sou mais feliz, porque Cristo e a Igreja são dois numa só carne.'

7. Não obstante, é muitissimo verdade que os méritos de Cristo não são o tesouro das indulgências em sentido positivo, próprio e imediato, de modo a conferir alguma coisa, como entendem as pessoas mais simples. Ao conferi- rem uma dádiva positiva, fazem-no não na qualidade de tesouro das indul- gências, mas na qualidade de tesouro da graça vital. Então os méritos de

~

18 < ' i 1,. 172. 3'1 <'i. 11. 15,).

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('rihio são concedidos em sentido formal, próprio e imediato, sem as chaves, sriii iiidulgências, exclusivamente pelo Espírito Santo, jamais pelo papa. Pois ;iir;iv?s do amor a pessoa humana torna-se um só espírito com Cristo, pas- h:iiicIo, por isto, a participar de todos os seus bens. E isto é o que diz minha ic,sc li!' 58: 'Eles tampouco são os méritos de Cristo, pois estes operam, sem o li;il,a, a graça do ser humano interior.'m

Em suma, fica demonstrado, assim, que é preciso tomar os méritos de ('rihto de dois modos, se é que a extravagante deve manter sua validade: de i i i i i inodo, em sentido próprio e formal; neste sentido, eles são o tesouro da vida do Espírito, mui propriamente distribuído exclusivamente pelo Espirito Siiiilo a quem lhe aprouver. De outro modo, em sentido impróprio, literal e clctivo, representando aquilo que foi efetivado pelos méritos de Cristo. E as- h i i i i como a extravagante cita as Escrituras de modo impróprio, da mesma forma também concebe de modo impróprio o tesouro, os méritos de Cristo e iiido o mais. Por isso ela é ambígua e obscura, dando ocasião á disputa, e corri muita razão. Em minhas teses, entretanto, eu falei de modo próprio.

Quem tiver, apresente coisa melhor, e retratarei estas coisas; pois não ca- Iic u mim interpretar os cânones pontificais, mas apenas defender minhas te- ses, para que não pareçam estar em conflito com os cânones. Fico humilde- iiicrite a espera de que a concepção do papa, caso for diferente, seja final- iiieiite tornada conhecida; estou disposto a me sujeitar a ela.

'Tudo isso, entretanto, quero ter dito por respeito frente á Sé Apostólica c ao Rcverendissimo Senhor Cardeal. Pois se me permitem expressar minha opiiiião autêntica e livre, sustento e provo qiie aquela extravagante está pró- pria, direta e abertamente a meu favor e de minha tese, e contra a opinião do I<cvcrcndíssimo Senhor Cardeal, uma vez que o texto afirma expressamente qiic <:risto adquiriu esse tesouro para a Igreja, etc. Este termo 'adquiriu' de- iiioiistra de forma clara, concludente e irrefutável que os méritos de Cristo pelos qnais ele adquiriu são outra coisa do que o tesouro que ele adquiriu, visto que causa e efeito são duas coisas diferentes, como dizem também os fi- IOsofos. Assim sendo, permanece irrefutada a minha tese de que os méritos rlc ('risto não são o tesouro das indulgências, mas o adquiriram. Não obstan- ic, siihineto-a mesmo assim ao juizo da Igreja, como afirmei acima.

A scgunda acusação é que, na explanação da minha tese nP 741, afirmei qric iiiiiguém pode ser justificado senão pela fé, ou que é necessário crer com IC iiiabalávcl que se é justificado e não duvidar de forma alguma que se alcan- ~:i i! i :I graça. Pois se a pessoa duvidar e estiver incerta, já não é justificada, iiiiis rcpiidia a graça. Eles pensam que esta é uma teologia nova e errônea.

liis iiiinha réplica: I. Vcrdade infalível é que ninguém é justo senão quem crê em Deus, co-

i i i o diz Rrri 1.17: 'O justo vive da fé.' Por isso, quem não crê já está julgado e iiioi~o". I'ortanlo, a justiça e a vida do justo são sua fé. Assim sendo, tam-

. .

,111 ('1'. I>. IM). 41 1'1. 1>1>. 755s. 4? 1 1 . l i > 1 . I H .

bém todas as obras do crente são vivas, e todas as obras do descrente, mor- tas, más e condenáveis, conforme aquela passagem: 'Não pode a árvore má produzir frutos bons. Toda árvore que não produz bons frutos é cortada e lançada ao fogo.' [Mt 7.18s.I

2. A fé, no entanto, não é outra coisa senão crer no que Deus promete ou diz, conforme Rm 4.3: 'Abraão creu em Deus, e isto lhe foi imputado para justiça.' Por isso, Palavra e fé são necessariamente concomitantes, e, sem a Palavra, é impossível haver fé, conforme 1s 55.1 1: 'A palavra que sair da mi- nha boca não voltará para mim vazia', etc.

3. Devo provar agora que quem vem ao sacramento precisa crer que al- cançará a graça, não devendo duvidar disso, mas confiar com certíssima con- fiança, caso contrário está vindo para o juizo.

1. Em primeiro lugar, por causa daquela palavra do apóstolo em Hb 11.6: 'É necessário que quem se aproxima de Deus creia que ele existe e que é o galardoador dos que o buscam.' Aqui fica patente que não é permitido du- vidar, mas que é necessário crer firmemente que Deus recompensa os que o buscam. Se é necessário crer que Deus é galardoador, em todos os casos é ne- cessário crer também que ele é justificados e doador da graça no presente, sem a qual a recompensa não é concedida.

2. Sob pena de eterna condenação e do pecado da descrença, é necessário crer nessas palavras de Cristo: 'Tudo o que desligares na terra, será desligado também nos céus.' [Mt 16.19.1 Por isso, se vens ao Sacramento da Penitência e não creres firmemente que serás absolvido no céu, então vens para o juizo e para a condenação, pois não crês que Cristo verdadeiramente disse: 'Tudo o que desligares', etc. Assim, com tua dúvida, fazes de Cristo um mentiroso, o que é um pecado horrendo. Mas se disseres: 'E se eu for indigno e estiver in- disposto para o sacramento?', então respondo da mesma forma como acima: nenhuma disposição te fará digno, e por obra alguma te tornarás apto para o sacramento, mas somente pela fé. Porque somente a fé na palavra de Cristo justifica, vivifica, dignifica, prepara; sem ela, tudo o mais será empenho da presunção ou do desespero. Acontece que o justo não vive de sua disposição, mas da fé. Por isso, nem deves duvidar da tua indignidade. Afinal, vens por seres indigno, para que te tornes digno e sejas justificado por aquele que bus- ca salvar os pecadores, e não os justos43. Porém se crês na palavra de Cristo, já estás honrando sua palavra e, por esta obra, és justo, etc.

3. No evangelho, o Senhor muitas vezes nos recomendou essa fé: 1. Ao dizer á mulher cananéia: 'Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se

contigo conforme creste.' [Mt 15.28.1 Aqui está claro que não se trata da fé em sentido genérico, mas especifico, no sentido de curar a filha, pela qual a mulher intercedeu. Ela creu confiantemente que Cristo podia e queria produ- zir esse efeito; desta forma, ela o conseguiu. Caso não cresse, jamais teria ob- tido isso. Portanto, não foi através de alguma disposição, mas somente pela l'k que ela se tornou digna de tal resultado.

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2. Ao dizer àqueles cegos: 'Credes que eu posso fazer isso?' Kesponderam-lhe: 'Certamente!' E ele Ihes disse: 'Faça-se-vos conforme a vossa fé.' [Mt 9.28s.I Eis que eles estavam certos de que aconteceria o que pe- diam. E assim aconteceu, sem qualquer outra disposição sua. Mas se tivessem (luvidado, não teriam pedido direito nem teriam sido atendidos.

3. Temos aquele centurião que disse: 'Manda com uma palavra, e o meu rapaz será curado.' [Mt 8.8.1 Ele certamente nâo creu com uma fé genérica, e sim especifica, com vistas a um efeito atual; também ele obteve o que pediu.

4. Jo 4.50 relata que aquele oficial do rei acreditou na palavra que Jesus lhe disse, a saber: 'Vai, teu filho vive.' E por essa fé ele salvou a vida do filho. Por isso, certamente é preciso que toda pessoa que vem" creia que conseguirá o que pede, ou nada conseguirá.

5. Aquela passagem de Marcos: 'Por isso vos digo que tudo quanto em oração pedirdes, crede que recebereis, e assim vos sucederá.' [Mc 11.24.1 Eis que ele diz 'tudo quanto', a nada excetuando. Ora, é evidente que em todo sacramento pedimos por alguma coisa (pois ninguém vai ao sacramento se- não para pedir graça). Por isso, devemos ouvir Cristo dizer aqui: 'Crede que rccebereis, e assim vos sucederá.' Caso contrário, tudo na Igreja cambalea- ria, e nada estaria firme, o que é um grande absurdo.

6. Aquela passagem: 'Em verdade vos digo que, se tiverdes fé como um grão de mostarda e disserdes a este monte: Passa daqui para acolá, e não du- vidardes em vossos corações, ele passará'. [Mt 17.20.1 E se percorreres todo o evangelho, encontrarás muitos outros exemplos que falam não da fé de modo geral, mas em sentido particular, da fé que se refere a algum efeito atual. As- siiii sendo, quem quer ser absolvido necessita de uma fé certa, pois, segundo o mestre43, os sacramentos da nova lei foram instituídos para o exercício e pr!itica da nossa fé.

7. É por isso que o Senhor repetidas vezes repreende a seus discipulos e a I'cdro por causa de sua pequena f é M , referindo-se obviamente não a fé de inodo geral, como se afirma por ai, mas a fé especial, relacionada ao efeito ;iiiial.

8. Tg 1.5-7 diz: 'Se algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus; licqa-a, porém, com fé, em nada duvidando. Pois quem duvida é semelhante ;i oiida do mar, agitada pelo vento. Não suponha essa pessoa que alcançará iitialquer coisa de Deus.' Este é, sem dúvida, um enunciado evidentissimo, qtic iiic compele a afirmar também que ninguém pode receber graça ou sabe- (I<iriii sc duvida que a receberá; tampouco vejo que objeções poderiam ser fei- I;IS :i esta afirmação.

9. A B. Virgem jamais teria concebido o Filho de Deus, não tivesse ela d;i<lo credito ao anjo que fez o anúncio, de modo que ela disse: 'Que me suce- iI:i coiil'orine a tua palavra' [Lc 1.381, e de modo que Isabel enaltece: 'Bem-

aventurada és tu que creste, porque serão cumpridas as palavras que te foram ditas da parte do Senhor.' [Lc 1.45.1 Eis porque o divo Bernardo47 e toda a Igreja admiram a fé dela. Assim a mãe de Samuel, Ana, tendo crido na pala- vra de Eli, saiu, e sua fisionomia não mais ficou transtornada48. Os filhos de Israel, pelo contrário, por não terem crido na palavra daquele que prometia a terra de Canaã, ficaram prostrados no deserto'g. Em suma, sempre que lemos sobre um fato eminente na antiga ou na nova lei, lemos que ele se deu pela fé, não por obras nem por fé genérica, mas pela fé voltada para o efeito presen- te. Por isso, nada na Escritura é tão exaltado como a fé, sobretudo a de Abraão em Rm 4, a qual, embora se referisse ao nascimento futuro de seu fi- lho Isaque, não obstante lhe foi imputada para justiça. Assim também se da- rá conosco nos sacramentos: se cremos, alcançamos; se não cremos, vimos ao sacramento para o nosso juizo.

10. Assim diz o B. Agostinho em seu tratado sobre o Evangelho de João: 'Juntando-se a palavra ao elemento, faz-se o sacramento, não porque se faz, mas porque se crê.'"JEis que o Batismo purifica, não por acontecer, mas por- que se crê que ele purifica. Por isso é que o Senhor disse, absolvendo Maria Madalena: 'A tua fé te salvou, vai-te em paz.' [Lc 7.50.1 Daí aquele dito co- mum: 'Não é o sacramento da fé, mas a fé no sacramento que justifica', sem a qual é impossível haver paz na consciência, como diz Rm 5.1: 'Justificados, pois, a partir da fé, temos paz com Deus.'

11. Também Bernardo diz, no primeiro sermão sobre a anunciação: 'Antes de mais nada, é preciso crer que não poderias ter remissão dos peca- dos senão pela indulgência de Deus.' Acrescenta, porém, que também creias que por este meio te são perdoados os pecados. Este é o testemunho que o Es- pírito Santo presta em teu coração, ao dizer: 'Perdoados estão os teus peca- dos.' Pois assim Densa o a~óstolo: 'O ser humano é iustificado gratuitamen- - te, pela fé.' [ ~ m 3 . 2 8 . ] ~ & i m o apóstolo.

Estas e muitas outras abonações tão claras e abundantes me conduzem, obrigam e prendem á opinião que manifestei.

Assim sendo, Reverendissimo Pai em Cristo, visto que pela bondade de Deus sois dotado de excelentes dons e particularmente de agudo discernimen- to, peço-vos humildemente que vos digneis a proceder com muita clemência para comigo e, compadecendo-vos de minha consciência, a iluminar-me de modo que eu possa entender essas coisas de outro modo, e não me forçar a retratar coisas que, também através de minha consciência como testemunha, só posso considerar como coisas com as quais preciso concordar. E enquanto

47 Sáo Bernardo (de Claraval), 1090-1153, natural da Barganha, filho de nobres. Em 11 12en- lrou no mosteiro de Citeaux. Em 11 15 fundou a abadia de Claraval, que se tornou o centro da rápida expansão da Ordem Cistercicnsc. Como monge visava uma vida apostblica em i~obrera e ascese, em seguimento a Cristo. Elaborou e viveu uma mistica cristocêntrica, mo- tivo pelo qual foi muito apreciado por Lutero. Bernardo era o personagem predominante da Igreja latina na 1: metade do s&culo XI1.

48 Cf. 1 Sm 1.18. 4s <'r. I c<, 10.5. 5 0 /ti .lonw,rir pvo>ipriii,»i, tintado 80, capitulo 3, in: Mignr 35,1840.

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iivcrcm validade essas abonações, não posso agir de outra forma, pois sei que i. preciso obedecer mais a Deus do que aos seres humanoss1.

Queirais vós, Reverendíssimo Pai Tomás, interceder por mim junto ao iiosso santissimo senhor Leão X, para que não proceda contra mim com tão I igorosa inclemência e despache para as trevas uma alma que nada procura scnão a luz da verdade e está muitíssimo disposta a ceder, a modificar-se e a tiido retratar assim que for instruida no sentido de que aquelas coisas devem ser entendidas de outra maneira. Também não sou tão arrogante e ávido de v:iriglória a ponto de me envergonhar, nesta causa, de retratar afirmações in- iklizes. Pelo contrário: eu teria a maior alegria em que a verdade saísse vito- riosa. Apenas não quero ser forçado a fazer algo contra a convicção da mi- ilha consciência. Pois sem dúvida alguma acredito ser este o sentido das Es- crituras. O Senhor Jesus vos guie e preserve em eternidade, Pai Reverendissi- 1110. Amém."

Quando lhe apresentei essa declaração no outro dia, ele primeiro reagiu com desprezo, dizendo que eram meras palavras, mas que, não obstante, a enviaria a Roma. Entrementes, instou em que eu me retratasse, ameaçando com as punições que lhe haviam sido delegadas. Se eu não me retratasse, que saisse e não mais aparecesse perante os seus olhos. Quando ouvi isto, percebi (pie ele estava firme em seu propósito e que não pretendia dar ouvidos as Es- crituras. Visto que também eu tinha o firme propósito de não me retratar, sai scm esperanças de voltar. Pois embora ele tivesse dito e ainda hoje se glorie de que me trataria como pai, não como juiz, senti ser essa paternidade mais rigorosa do que qualquer tribunal, uma vez que só f ada exigir que eu me re- tratasse contra minha consciência. Pelo menos não quis ou não pôde mostrar c provar o erro. Pois quando viu que eu rejeitava as invencionices dos sofistas chcolásticos, prometeu lidar comigo a base da Sagrada Escritura e do direito c:iiiônico. Eu, porém, ignoro o que é que ele quis dizer com isso, pois em ne- iiliiima ocasião apresentou contra mim sequer uma sílaba da Escritura, e iiicsmo hoje, por mais que quisesse, não o conseguiria, uma vez que há con- sciiso geral no sentido de que as Sagradas Escrituras nada contêm a respeito d;is iiidulgências; elas nos recomendam, antes, apenas a fé, estando tão va- /.i;is de qualquer menção das indulgências quanto repletas de ensinamentos hril~rc a fé, de modo que é impossível que ele consiga derrubar qualquer da- iiiiclcq dois artigos. Quando apresentei as passagens da Escritura em meu fa- viii, o homem começou, em atitude paternal, a inventar-me glosas do fundo i10 hcii coracão. E aquele que com tanta presença de espírito apelara para a i.xii.;iv:igaiite contra mim, mui formosamente ignorou aquele principio canõ- iiico ~pcl« qual a Igreja proíbe que alguém interprete as Escrituras conforme o ~~iiil>rif> ciitciidimcnto. Segundo Hilário52, o sentido não deve ser introduzi-

-.

51 ( ' 1 , AI 5.2,). 3 : A ~ ~ ~ ~ ~ x i ~ t ~ ; ~ ~ l : ~ t ~ ~ c ~ ~ l ~ ~ 315~307, cn;klur:d I%nticn ( l : r : t r~qt) . l i ; iduil ,>, c ~ ~ ~ ~ v c r l c ~ ~ - ~ c :to cri5Ii:l

I I I# I I I~~. Ilislx' cni \,,;i ci<l;i<lr iiii1;il (30) ; crll:iil<i ii;t A?i:i Mcii<+i (356 3f>Ol. 1p0r ~ ~ s c I f l 3 ~ ikv i l i i l i r i ; i < l i i i ( <t l i \ l . i i i i . i i> . N;, i .oliliiiu<r\i;i :hii;iii;i. q i i r ~ i i ; i v ; i i ~ i i I i i i ~ i , i <I:> <(iic\l;i<i <I;! ~'c'l~ic;lii

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do, mas extraído da Escritura. Mas não levei a mal esta sua violência, sabcn- do que ele se apropriara dessa arte de interpretação a partir de longo hábito da Cúria Romana e do uso de fazedores de distinções escolásticos. Pois há muito que se tem como credo que tudo o que a Igreja Romana disser, conde- nar ou desejar, logo tem que ser dito, condenado e desejado por todos, e que não é preciso apresentar nenhuma outra justificativa senão a de que a Sé Apostólica e a Igreja Romana assim o entendem. Assim sendo, face ao aban- dono das Sagradas Escrituras e à aceitação de tradições e palavras humanas, sucedeu que a Igreja de Cristo não é alimentada com a medida de trigo nem com a palavra de Cristo, mas é não raro dirigida pela temeridade e vontade de um adulador qualquer, completamente ignorante. Nossa infelicidade avul- tou a tal ponto, que agora começam a forçar-nos à retratação e a negação da fé cristã e da Escritura Sagrada. E mais: se é desse jeito que se faz retratação, só posso ver que futuramente acabarei retratando uma retratação pela outra, e assim indefinidamente. Pois mesmo que eu, com muito esforço, vire sua própria afirmação contra ele mesmo, ele sem demora me inventará outro ído- 10 de seu coração (pois a teologia tomista é de espantosa criatividade em dis- tinções, um verdadeiro Proteus'), ao qual eu teria que obedecer retratando- me outra vez. Visto que ele não está baseado em rocha firme, mas fica vagan- do na areia de suas idéias, não terei outra coisa a fazer senão ficar retratando- me eternamente.

Acatando, portanto, a ordem de não retomar, fiquei lá aquele dia; cha- mando ele, então, o reverendo vigário João von Staupitzs4, meu ótimo supe- rior, consta que debateu longamente sobre como eu poderia ser levado a uma retratação voluntária. Fiquei também o dia seguinte, e nenhuma ordem che- gava. Fiquei o terceiro dia, domingo, e mandei uma cartas', mas nada me foi respondido. Fiquei o quarto dia, e nada aconteceu. Aguentei o mesmo silên- cio no quinto dia. Por fim, tendo consultado amigos e, sobretudo, tendo em vista que anteriormente ele se gabara de ter ordem de mandar encarcerar a mim e ao vigário, aprontei uma apelação para edital e fui embora, pensando ter prestado suficiente obediência, que não deixou de ser perigosa.

Ora, prezado leitor, é preciso que me entendas. Aquela minha segunda resposta eu entreguei com muito respeito e a submeti como que a arbitragem do sumo pontífice. Entretanto, não deves crer que o fiz por duvidar da causa em si, ou porque algum dia haveria de mudar a minha convicção. A verdade divina é senhora também sobre o papa. Não fico a espera de nenhum veredito humano quando reconheci o veredito divino. Ocorre que me cabia tributar o

entre Deus Pai e Deus Filho (incluindo, mais tarde, também Deus o Espirito Santo), com- bateu os arianos. Explicou a teologia grega ao Ocidente latino.

53 Deus marinho, filho do Oceano, guarda da gado de Netuno, e célebre por seus oráculos e metamorfoses. Dai, "proteu" passou a designar pessoa versátil, que muda facilmente de opiniao ou sistema.

54 Cf. p. 35, nota 2 e p. 402, nota 9. 55 WA Br 1.220s. (n! 103, de 17 de outubro; carta de despedida. de 18 de outubro: WA Br

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ie exaltando-se com o que não é digno de ser relatado) me contrariasse citan- do a distinctio XXI61, onde o papa PelágioG2 proclama com tanta ênfase que iião é pelos decretos sinodais, mas pelo texto do evangelho (bem: pelo texto, 1150 pelo sentido) que a Igreja Romana está colocada acima das demais Igre- i:is, reportando-se ainda a essa passagem do apóstolo Mateus, achas que vou iihandonar o sentido evangélico e abraçar o sentido de Pelágio, que se gaba de seguir o texto e não o sentido do evangelho? Não que eu queira condenar i>i i negar a nova monarquia dos romanos de nossa época, mas é por não que- icr que se faça violência as palavras da Escritura e por reprovar a estultície de ccrtas pessoas desenxabidas que nos prenderam a Igreja de Cristo em tempo e Iiigar, contra a palavra de Cristo que diz: "Não vem o reino de Deus de tal h r m a que possa ser observado" [Lc 17.201, e que ousam negar o ser cristão a clticm não se submeter ao pontífice romano e a seus decretos. E assim, há iiiais de 800 anos vêm expulsando da Igreja de Cristo aos cristãos de todo o (>riente e da África, que nunca estiveram sob o pontífice romano e jamais en- iciideram o evangelho desta forma. Pois até a época de S. Gregório63 o ponti- lice romano não era reverenciado como bispo universal. O próprio Gregório, isto é, o bispo romano, em mais de seis cartas condena acerbamente a desig- iia$ão de bispo universal e pontífice de toda a Igreja, de modo que não hesita ciii considerar profano esse titulo que, em nossa época, é o único considerado ~aiitissimo. Pois assim como Pedro não "criou" os demais apóstolos (esta é, Iioje em dia, a forma usada para designar a ordenação dos bispos), da mesma lorina o sucessor de Pedro não criou nenhum sucessor dos outros apóstolos. I'irialmente, os demais bispos apenas chamavam de "irmão", "co-bispo" e "colega" ao pontífice romano, como CiprianoM a Cornéliob', Agostinho a I3oriifácio66 e outros.

Portanto, os santos pais não entenderam aquela passagem de Mateus: "l);ir-te-ei" no sentido desse cânone sagrado, como se tivesse sido dita a Pe- d i . ~ acima dos demais, mas disseram "um por todos", de modo a exprimir a ipti;ildade de todos; aquilo que Pedro responde, respondem todos e cada um ilclcs. Por esta razão, em outra passagem ele também apresenta o mesmo

(,i sc. do Decrelurn Graliani. r,? I>cl:igio 11, nascido em Roma, filho de um godo. Papa de 579 a 590. Negou ao patriarca

1050 IV Ncstentes, de Constantinopla. o direito de usar o titulo "patriarca ecumênico". I Al>r,,xiriiadaniente 540.604, natural de Roma. Chegou a ser pretor de Roma, mas reniin-

cioti :i carreira na vida pública. Instalou em seu palácio um mosteiro bcnediiiiiu, onde vivia ci , i i~o siiiiplcs monge. Em 590 foi eleito papa. P a ~ t o r dedicado, diplomata habil, foi a ini- i i ; i i l i > i d ; ~ ciiissão cristã entre os lombardos e anglo~saxdes. É um das grandes teoiogoi latiL i > < > \ ila lgrcja antiga.

r,.! I ,'i\i.iii ('ccilio Cipriano. nascido por volta de 200/210, morto como mártir em 258. Aiitc* <I<, iii:i corivers30 ;i<> ciiitianisnio (246) era urn famoso orador. Foi bispo de Cartagil, !I<>

N , , I I C <li! África (248/249). É a mais importante teblogo e escritor ciist.30 latino antes de A~<i\iiiilii,. 1;l;iliiiioil ii~ip<iiiarilrs çlcnieiitos diiiitrinbiio\ do c;iiolicismo latino.

( 1 N:iiiii;il <Ir lüi~iri : i . lp;il';i ilc 251 :i 253. l o i exi1;idii por ser cri\tti<i e laleccii rio cxilici. I ' ; ~ I I ; ~ (Ir 418 :i 422. ;aiiiiyo <Ic Agohtiiilici. I>efeiideii direito.. iI;i 1gici:i ilc I<<iiii:i r<iiiti;l :i iiiiri vciiq,lc> do iliiper;iili>i 'l'e<iilhrici 11.

enunciado no plural: "Tudo o que ligardes", etc. [Mt 18.181, e o que é dito a um, é dito a todos. Finalmente, no dia de Pentecostes, o Espírito Santo não desceu primeiro sobre Pedro; tampouco se Iêa'que, em terra, Jesus o teria so- prado primeiro sobre Pedro; e mesmo que isso realmente tivesse acontecido,

I não é por esta razão que Pedro teria se tornado um monarca perante os de- mais apóstolos.

Portanto, admito que aquele cânone seja verdadeiro; porém ele o é de modo abusivo, ao passo que minha tese é vera em sentido próprio e evangfli- co. Pois, se é que se pode provar a monarquia do papa, ela será provada ali- tes por aquela passagem do apóstolo em Rm 13.1: "Toda autoridade procede de Deus, e as autoridades que existem são por ele ordenadas." Por força des- ta passagem, digo eu (falando propriamente), é que estamos sujeitos á Sé Ro- mana, enquanto aprouver a Deus. Unicamente Deus, e não também o ponti- fice romano, transfere e constitui autoridade.

Muitas dessas coisas, além de algumas outras, encontrarás nos santos decretos, prezado leitor, de modo que, se te valeres do nariz da esposa, volta- do para DamascoG8, isto é, de carne e sangue, serás incomodado mais vezes pelo mau cheiro.

Assim sendo, digo agora a respeito daquela extravagante: os méritos de I Cristo não são o tesouro das indulgências, porque operam a graça sem o pa- pa. Esta tese é evangélica, pois está escrito em muitas passagens que somos feitos e constituídos justos pelo sangue e pela obediência de Cristo, sobretudo em Rm 5.19: "Por meio da obediência de um só", diz ele (creio ser esta obe- diência os méritos de Cristo), "muitos foram feitos justos." Através das in- dulgências, no entanto, ninguém se torna santo; afirmar isto a respeito dos méritos de Cristo seria contrário a passagens tão claras da Escritura. Portan- to, não me importo se essa tese vai contra uma extravagante ou uma intrava- gante. A verdade da Escritura tem prioridade; depois é que se deve verificar se podem ser verdadeiras as palavras humanas. Ora, eu com certeza jamais

! ousaria afirmar que através das indulgências "são feitos amigos de Deus", conforme afirma expressamente a extravagante, que relaciona com a partici- pação nas indulgências uma passagem do sábio a respeito da participação na sabedoria eterna69. Essas Escrituras eram verdadeiras antes do tempo daquela extravagante, e não é dela que receberam a verdade. Também não se pode di- zer que elas falam das indulgências, uma vez que em toda a Igreja é sabido que na Escritura nada consta a respeito das indulgências. Segue-se dai, neces- sariamente, que, se alguns textos da Escritura são interpretados como estan- do relacionados com as indulgências, como ocorre aqui, eles sofrem violência e são interpretados de modo impróprio e abusivo. Não obstante, por uma questão de respeito, admito que a extravagante diz a verdade e pretendo de- í'crider ambas as concepçòes. Ai me dizem: "Não mesmo, aquela concepção

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(isto é, a de menor valor) deves preservar, e a outra (a autêntica), negar." Se, pois, sou forçado a declarar falsa a minha tese, eu o farei, mas ao mesmo icmpo afirmarei que a extravagante é duplamente falsa. Quanto a acusação de que minha opinião sobre as indulgências é contrária ao uso geral, confesso francamente que isso é verdade e que assim procedi de propósito, para que se cliscutisse uma vez essa opinião geral. Eu não ignorava que, segundo ela, os iiiéritos de Cristo são chamados de tesouro das indulgências, mas a mim pa- recia que as palavras soavam erradas. Por isso, coloquei que as chaves conce- didas através do mérito de Cristo são esse tesouro, não afastando completa- mente os méritos de Cristo das indulgências, mas apresentando outro senti- do, diferente da opinião geral. Não tivesse eu querido contradizer essa opi- iiião geral com humildade e respeito, não teria dito que as chaves foram da- das através do mérito de Cristo, para excluir por completo os méritos de Cris- to; acontece, porém, que os envolvi na questão para que a contradição ficasse iiiais amena. Além disso, não teria cometido pecado mortal caso tivesse me oposto frontalmente a extravagante, reportando-me aquela passagem do di- vo Jerônimo'o onde ele fala dos que acreditam ser lei de Deus qualquer coisa que disserem: "Não se dignam a tomar conhecimento do que os profetas e os apóstolos pensaram (observa: 'pensaram'), mas adaptam a sua própria con- cepção testemunhos descabidos, como se falsificar os enunciados e torcer se- gundo a própria vontade o texto incompatível da Escritura fosse o magnífico c não o mais vicioso modo de ensinar." É isto o que sem dúvida faz essa ex- travagante. Pois as palavras sobre os méritos de Cristo, através dos quais são perdoados os pecados, ela relaciona com as indulgências. Peço que observes L.om que coerência se faz isto:

Os méritos de Cristo eliminam os pecados e aumentam os méritos, ao passo que as indulgências eliminam os méritos e deixam os pecados. Será que o mesmo texto pode ser entendido em sentido próprio em relação a ambos? ('rei0 que mesmo Orestes71 dirá que não. Não obstante, por uma questão de respeito, eu o admiti e afirmei, embora de forma um tanto forçada. Final- iiiciite, uma vez que a extravagante é obscura em suas palavras e de fato fica, :i bem dizer, "extravagando", ora dizendo que os méritos de Cristo são o te- soiiro das indulgências, ora dizendo que eles o adquiriram, disse que ela tam- 0i.m pode estar a favor de minha opinião, contra a opinião geral. Por causa dessa dúbia torcedura das palavras de Deus e depravação do sentido (como diz .Icrônimo), devo eu retratar-me sem que se tenha provado o meu erro?

711 Sofr8iiio Eusébio Jerônimo, aproximadamente 340/350-420. natural da Dalmácia, filho de cri<iíi<is, hatirada em 366. Levou sua vida monástica em Constantinopla (desde 3801, Roma (drrdc 382). ondc era secretário da papa Dâmasa, Jerusalém e Belém, onde dirigiu os con- vi.iiii>\ fiindiidos por sua amiga Paula. Dedicou~se à defesa da Igreja e da or,todoxia. <:om~ iiil ,>ii i i i i i icxio fidedigno da traduçáa Ialina da Bíblia. chamado Viilgata. E a mais doiitii <I<,$ ]pais <Ia Igrcja latinos.

1 1 I'rt\iii~;i~riii lelidáciii da aiiiiga (irécia. foi considerado eneniplu dc obcrlitncia: ahcilcceii- ilo ; i \ oi<lriir do cleiis Apoli>, iiiatoii a prhlirici niRc. u qiial, ]por riia "e,, liaviii ;issas\ili;iilo i>

r i i i i l i < l < , , ~ i i i i iIc Orrslc\.

"PAPA LEAO X, ao nosso filho amado Tomás, Presbítero-Cardeal da I~reja titular de São Sixfo, Legado nosso e da Sé Apostólica.

I I

72 Sr. i> coricilio oii resalusdcs siias

Não o farei. Pelo contrário: nego, com firmeza e confiança, que os méritos de Cristo estejam de alguma maneira nas mãos do papa, conforme consta na bula; que ele mesmo veja como quer entender a sua extravagante.

Assim, espero ter, desta vez, mostrado suficientemente que nem todos os decretos pontificais refletem o legitimo sentido da Escritura e que, portanto, sem Ihes fazer injustiça, se pode dizer, agir e pensar de modo diferente deles, visto que eles mesmos atribuem aos doutores a autoridade de interpretar a Escritura, a si mesmos, entretanto, o julgamento de causas contenciosas. Por

I conseguinte, a competência jurídica é diferente da teológica: naquela se per- mite muita coisa que nesta é proibida. Os juristas que honrem suas tradições;

I nós, teólogos, devemos, antes, cuidar da pureza da Escritura, ainda mais quando vemos surgir em nossa época perniciosissimos aduladores, que ele- vam o sumo pontífice acima dos concílios, assim que, sendo um concílio re- ~ provado pelo outro, nada de certo nos resta e assim que, por fim, tudo seja pisado por uma única pessoa, o papa, que se encontra ao mesmo tempo aci- ma e abaixo do concilio: acima, quando pode condenar72, abaixo, quando re-

I cebe do concílio, como que de instância superior, a autoridade através da qual está acima do concílio. Há também aqueles que alegam descaradamente que o papa não pode errar e esta acima da Escritura. Caso se admitirem essas monstruosidades, a Escritura sucumbirá, em seguida também a Igreja, de modo que nada restará na Igreja senão palavra humana. Mas o que esses aduladores procuram é provocar malevolência e, então, a ruina e a destruição

I da Igreja Romana. Por isso, prezado leitor, declaro-te que venero a Igreja

~ Romana e lhe obedeço em tudo. Só que resisto aqueles que, sob o nome da Igreja Romana, procuram estabelecer entre nós a Babilônia; querem que tu- dc que Ihes venha a mente - contanto que apenas possam mover a língua pa- ra falar da Igreja Romana - seja imediatamente tomado como doutrina da Igreja Romana, como se não houvesse mais a Escritura Sagrada, através da qual (como diz Agostinho) tudo julgamos e com a qual a Igreja Romana, em seus preceitos e doutrinas, sem dúvida jamais entra em contradição.

Ao número dessas pessoas creio pertencerem aqueles amáveis sicofantas que redigiram certo breve apostólico contra mim, cujo texto quero dar a pú- blico para que vejas as refinadas artimanhas que eles usam. Pois com o co- mentário subseqüente logo te mostrarei que é certo ou ao menos suspeito ter sido ele confeccionado na Alemanha, enviado então com certo zelo a Roma para, talvez após mero aceno de anuência de algum graúdo em Roma, ser re- metido de volta para a Alemanha. Também isto faz parte da história do meu interrogatório.

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Amado filho nosso, saudação e bênção apostólica! Depois que chegou ;ims iiossos ouvidos que um certo Martinho Lutero, professor da Ordem dos Agostinianos Eremitas, tendo-se voltado para um pensamento réprobo, :itrcveu-se a afirmar algumas coisas hereges e divergentes daquilo que susten- i;% a santa Igreja Romana e, além disso, a publicar em diversas partes da Ale- iiiariha, com particular temeridade e renitência, sem importar-se o mínimo ciii obedecer, teses sobre o assunto, bem como panfletos difamantes, sem consultar a Igreja Romana, a mestra da fé, nós, buscando corrigir de modo piiternal a sua temeridade, incumbimos nosso venerável irmão Jerônimo, his- iio de Áscoli, auditor-geral do Tribunal da Cúria Apostólica, de convocares- ic Martinho a, sob ameaça de certas penas, comparecer pessoalmente perante clc e a se deixar examinar a respeito das questões acima e a explicar o que pcnsa sobre a fé. Conforme tomamos conhecimento, o mesmo Jerônimo, au- ditor, determinou semelhante convocação contra o dito Martinho. Recente- iiiente, porém, tivemos notícias de que o mencionado Martinho, abusando da iiossa generosidade e tendo ficado mais atrevido, acrescentou aos malefícios airida outros e, persistindo tenazmente na heresia, publicou algumas outras icies e panfletos difamadores contendo novas heresias e erros, o que não pouco nos perturbou. Correspondendo, então, ao nosso ofício pastoral de tomar providências num caso desses, e querendo evitar que esta praga se alas- tvc ao ponto de corromper as almas das pessoas simples, encomendamos, titravés da presente, a vosso cuidado (no qual depositamos, no Senhor, a iiieior confiança, uma vez por vossa extraordinária erudição e experiência [Ias coisas, por outra, em vista de vossa sincera devoção em relação a nós e a csia Santa Sé, da qual sois honorável membro) que, recebidas estas linhas, iciii demora obrigueis á força esse Martinho, já declarado herege pelo citado iiiiditor, a comparecer pessoalmente perante vós, uma vez que a questão, tan- io por causa da notoriedade quanto pela persistência do fato, nos é conhecida c irnpcrdoável. Para isso, recorrei a ajuda do nosso amado filho em Cristo Mnxiiiiiliano, imperador eleito dos romanos, e dos demais principes, comuni- cl;itlcs, universidades e autoridades (tanto eclesiásticas quanto seculares) da Alciiianha. Uma vez entregue ele em vosso poder, retende-o sob fiel custódia :i16 quc de nós recebais outra ordem para que compareça perante nós e a Sé Aliostólica. Caso ele comparecer perante vós de livre e espontânea vontade 1):iia pedir perdão por semelhante temeridade e, caído em si, mostrar sinais ~ I V pciiitência, vos concedemos a autorização para recebê-lo generosamente ii ; i iiiiidade da santa mãe Igreja, que jamais cerra as portas ao arrependido. < 'iiio, porém, ele perseverar em sua obstinação e, desprezando o braço secu- I ; i i . iião se entregar em vosso poder, vos concedemos igualmente a autoriza- i.iIo para declarar publicamente - também através de editais públicos, á se- iiii~lliiiii~a daqueles que outrora eram inscritos no álbum do pretor - hereges, rxi~~~iiiiiiigados, anatematizados e malditos em todas as partes da Alemanha a cIi. c ;i iodos os seus adeptos e seguidores, e para fazer com que, como tais, clcs scjniii cvitados por todos os cristãos fiéis. E para exterminar com maior i:il)i<lc/, c Pacilidadc essa doença, deveis advertir e requerer aos prelados - i i i i i l o c111 coiijiiiilo qiiaiiio iiidividiialnicnie -, hcin como aos dcmais cclc-

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siásticos, tanto aos clérigos seculares quanto aos membros das ordens, tam- bém das ordens mendicantes, e ainda aos duques, margraves, condes, bardes e a todas as comunidades, universidades e autoridades (com exceção do men- cionado imperador eleito Maximiliano), mercê de nossa autoridade e sob ameaça de excomunhão e de outras penas a serem abaixo mencionadas, o se- guinte: se desejam ser considerados e tidos como fiéis, que prendam o dito Martinho e seus adeptos e seguidores e os entreguem em vossas mãos. Caso, porém - o que esperamos e cremos que não venha a acontecer -, os men- cionados principes, comunidades, universidades e autoridades ou alguém

i destes de alguma maneira receberem a Martinho ou a adeptos e seguidores seus, ou prestarem auxílio, conselho ou favor ao mesmo Martinho, pública !

i ou ocultamente, direta ou indiretamente, seja lá por que razão ou de que mo- I do for, submetemos ao interdito eclesiástico as cidades, povoados, terras e

lugarejos desses priiicipes, comunidades, universidades e autoridades ou seja 1 lá de quem for, bem como as cidades, povoados, terras e lugarejos para os

I quais o mencionado Martinho consiga fugir, enquanto o dito Martinho lá permanecer e mais três dias. Ordenamos, não obstante, a todos e a cada um dos mencionados principes, comunidades, universidades e autoridades que executem imediatamente as vossas exortações e exigências sem qualquer res- trição, contestação e objeção e se abstenham completamente de prestar con- selho, auxílio, favor e acolhida, sob pena (além das penas citadas), na medida em que se tratar dos eclesiásticos mencionados, de perderem suas igrejas, conventos e demais benefícios eclesiásticos, além de ficarem impossibilitados

I de consegui-los futuramente, e da privação de seus feudos; na medida em que se tratar de leigos, no entanto (com exceção do imperador), sob pena de de- sonra, de perda da habilitação para o exercicio de todo e qualquer ato legal, de privação do sepultamento eclesiástico e também da perda dos feudos que receberam de nós e da Sé Apostólica ou de quaisquer senhores, mesmo secu- lares; essas penas entram automaticamente em vigor. Com a presente, vos outorgamos a autorização para conceder aos obedientes indulgência plenária ou alguma retribuição ou graça a vosso critério. Não devem obstar aqui as isenções, os privilégios e os favores firmados por juramento, confirmação apostólica ou por alguma outra determinação e concedidos de qualquer for- ma a quaisquer eclesiásticos ou membros de alguma ordem, também das mendicantes, ás igrejas, aos mosteiros, lugarejos ou pessoas seculares, mes- mo que ali esteja expressamente feita a ressalva de que de maneira alguma podem ser excomungados, suspensos ou atingidos pelo interdito eclesiástico. Por força do presente decreto, anulamos e declaramos anulado e considera- mos expressamente citado aqui o teor desses documentos, como se estivessem inseridos palavra por palavra no presente decreto, que o invalida; isto vale da mesma forma para quaisquer outras determinações em contrário. Roma, junto a S. Pedro, sob o anel do pescador, a 23 de agosto de 1518, no sexto ano do nosso pontificado.

Jacó Sadoleto'i." 73 1477 1547. i i ; i l i ; i l i i>. Itiii 1 1 3 . foi iioincail<i secrclário para a elaborasão dos breves papais

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Comentirio do fr. Martinho Lutero sobre o breve acima."

[Em primeiro lugar, a todos os cardeais e bispos o papa escreve como a seus veneráveis irmãos. Somente a esse cardeal-presbitero de S. Sixto é que ele escreve como a seu "filho amado", tratando-o por "filho amado". Isto foi observado a tal ponto, que o memorável autor, esquecendo suas próprias artimanhas, escreve, nesse mesmo breve, que o bispo Jerônimo de Ascoli é chamado de venerável irmão pelo papa. Foi preciso que também esse impos- tor confirmasse o provérbio que diz: "O mentiroso precisa de boa memória."]

Ademais, quem disse ao pontífice que eu teria abusado da sua generosi- dade, com a qual ele fez com que eu fosse citado através daquele sr. Jerôni- mo? Pois na época da data deste breve ou, em todo caso, quando "abusei da sua generosidade" eu nada ouvira ainda da citação, como ficarás sabendo abaixo; mas foi uma gralha73 estúpida qualquer na Alemanha que, vendo a rninha confiança, grasnou essas coisas.

Também é mentira patente a afirmação de que eu teria persistido tenaz- mente na heresia após a citação e admoestação de Jerõnimo, e de que teria publicado novos panfletos. Pois não só antes da data do presente breve, mas também antes da data da citação, eu deixara de publicar meus libelos, com cxceção das Explicações, que já havia concluído totalmente antes de ser cita- do; porém o nariz já indica muito bem que alguns cuculos não gostaram mui- io de minha chá defesa76. Como não cedo a eles, inventam-me um pontifice que profetiza a respeito de "persistência do fato, notoriedade conhecida e iinperdoável", pois esse Leão X por eles criado talvez tenha nascido no meio da "demonstração da causa demonstrável e da causa demonstrante"7'.

Por último, o mais interessante de tudo: este breve está datado de 23 de agosto, ao passo que eu fui citado e admoestado em 7 de agosto, de modo que entre a data do breve e a da citação passaram-se 16 dias. Faz o cálculo, Icitor, e verificarás que o senhor Jerõnimo, bispo de Ascoli, encaminhou pro- cesso contra mim, me julgou, condenou e declarou herege ou antes de iransmitir-me a citação ou 16 dias após transmiti-la. E se agora pergunto: "Oiide estão aqueles 60 dias que me foram dados em minha citação, que co- iiicçaram a 7 de agosto, mas findaram lá por 7 de outubro? Será este o uso e O

pelo papa Leão X, exercendo o cargo até 1527. Bispo de Carpentras (1517), cardeal (15361. Scii comentário a Carta aos Romanos foi proibido pela Cúria Romana, em 1535, devido a CL.T~<)S desvios dolltrinários e a rcjeicão da teologia escolástica.

7'1 O parágrafo seguinte se encontra em WA 9,205. Qiiando da impressão originai, ele foi I o r ~ iiiido ilcgivel. Cf. quanto a isto a introducào a este escrito.

7 I iiterci alude aqui ao háhito prelo e branco dos doininicanoi. / h I .iiiciii rç refere ao e~cr i to Eyn F r ~ y h e y l drr irrrnon.~ bebstliíhrn Al>lm uri0 znoil I>eioii

i:<,rir/ 1)oc.r. Murlini 1,ultier wiricr dic v o r l ~ ~ ~ i r n ~ , .T,TO rrur .schtnucli .r<*.vn !i!,</ O ~ ~ ~ s i ~ l h ~ ~ r i .Srr~ ,,iri,i.s ~ ~ i . r l ~ ~ / ~ r ~ ~ l ("I.cgirinii<l;i<lr do \critiai> a rcipeit,> iln iii<liilg?iiciii c grii~;i 1p;i1>a1. <li1 i l i

h4 ; i r l i i i l i i> I,itlcii>. ciiiili;! :i cxl>oriqJi, invent:iilii p:ir:i ign<llllicliil ~illii C < I < > 111(1\111<) \1.1!ll.ill''),

%'A 1,181 9 3 . 17 Alii\dii h;iii.!i,iii;i i\ ~ii;i~irir;i de i;iciiiriii;ii v iIr \i. cxlnu~l i t < I < > \ I l . i l l<)~<~\ i.\co/:jhtlilll.

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78 Erva medicinal. Há duas explicaçdes para o uso da palavra neste contexto. Uns dizem que, na Antiguidade, a erva serviu como remédio contra a amnésia. Outros afirmam que foi usa- da contra pararihia e epilepsia. Com a mencào dessa erva qucria-se dizer que as capacidades iliiclrciii;ii\ i I < i ;~dvcrsário rrarii limitadas.

79 Isii, i.. ; i \ ivpiiiii\r\ ;tr.;iil?niir;is do\ tehl<igor csci>16sriros.

i I

estilo da Cúria Romana, de citar, admoestar, acusar, julgar, condenar e de- clarar herege no mesmo dia, principalmente alguém que está tão longe e nem foi informado?" Que é que eles vão responder, senão que se esqueceram do heléboro78 quando se puseram a forjar essa mentira?

Concluindo, prezado leitor, aceita minha fiel advertência: seja lá o que houver com minhas teses, e por mais que elas tenham elevado as indulgên- cias, aconselho que não venhas a cair alguma vez na besteira que fiz. Pois ou- trora eu acreditava que, através das indulgências, os méritos de Cristo real- mente me seriam dados. Seguindo essa tola opinião, ensinei e preguei ao po- vo que, por serem as indulgências algo tão importante, não é permitido menosprezá-las nem considerá-las sem valor. Eu, o mais bobo dos bobos, não me dei conta de que, ao falar assim, quase transformava as permissões, licenças e dispensas em preceito salvifico ou, em todos os casos, em conselho imprescindivel. A tal ponto fui levado por meu entendimento, torpemente enganado pelas brilhantes palavras das opiniões'y e das extravagantes. Errei: o leitor é testemunha. Retrato-me: o leitor é testemunha. Depois de restabele- cida a minha visão, porém, percebendo que todos os doutores são da mesma opinião de que é melhor reriunciar as indulgências do que comprá-las, de que é mais feliz quem por si mesmo presta satisfação do que quem compra indul- gèncias, e de que estas não são outra coisa senão a dispensa de boas obras, pelas quais se cumpre a satisfação, logo vi com facilidade a conseqüência de que se pode despreza-las, e que inclusive o conselho mais salutar é ignorá-las e desdenhá-las. Mas desprezar, ignorar e desdenhar os sacrossantos, precio-

I sissimos e inestimáveis méritos de Cristo (isto é, as indulgências) parecia-me terrível, de modo que essas palavras foram consideradas não um bom conse- lho, mas produto de desvairada impiedade. Além disso, afligia-me que, sem mençào dos méritos de Cristo, as indulgências são completamente sem valor, e que somente pelo titulo dos méritos de Cristo é que elas se tornam o que de mais precioso há. Assim sendo, os sacrossantos (ui!) e incomparáveis méritos de Cristo foram usados como pretexto para a torpíssima e repugnantíssima servidão do lucro. Pois qual o cristão que, ao ouvir as chagas, o sangue e a agonia do seu dulcissimo Salvador mencionados -e com maior razão quan- do exibidos -, não daria a própria vida - para não falar de dinheiro -, e is- to com a maior alegria? E, em contrapartida, de quão excruciante dor não se- rás tomado quando vires que tudo isso serve exclusivamente à mais infame cobiça e que Cristo é vendido e revendido não apenas uma vez por um único Judas, mas por inúmeros Judas em todos os momentos? Portanto, não te deixes enganar pelo nome de Cristo; lembra-te que foi predito que virão mui- tos falsos cristos em nome de Cristo, fazendo tantos sinais e prodígios para

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ciiganar, se possível, os próprios eleitosso. Suponhamos que a minha tese seja falsa, que os méritos de Cristo sejam o tesouro das indulgências. Considera, porém, o que daí necessariamente se segue e o que precisas dizer: que os méri- tos de Cristo devem ser ignorados e menosprezados, que são mais felizes os quc não compram os méritos de Cristo do que aqueles que procuram obtê-los com muita devoção, e que, embora os méritos de Cristo, por sua natureza, irripelem muitíssimo para boas obras, nas indulgências, contradizendo a si iriesmos, eles dispensam de boas obras, anulando, pela vontade do papa, iiquilo que fazem por sua natureza e pela vontade de Deus.

Cumpri com o meu dever, prezado leitor. Se continuas errando, erras hcm culpa minha. Passa bem!

Apelação do Fr. Marthho Lutero ao Concílio1

(Veja a introdução a Relato do fr. Marfinho Lufero, agostiniano, sobre o e n o n - fro com o sr. legado aposfõlico em Augsburgo, p p . 199-201 deste volume.)

EMNOMEDO SENHOR. AMÉM. No ano de 1518 do nascimento des- te, na sexta indicçãoz, num domingo, dia 28 do mês de novembro, no ano sexto do pontificado do santissimo pai e senhor nosso em Cristo, o senhor Leão, por divina providência o décimo papa3, em minha presença, na quali- dade de tabelião público, e na presença das testemunhas abaixo assinadas, es- pecialmente convocadas e solicitadas para este fim, o reverendo padre senhor Martinho Lutero, agostiniano, mestre de Sagrada Teologia em Wittenberg e, aí mesmo, principal professor catedrático de Teologia, sobretudo em favor de si mesmo - sem, contudo, com isto revogar alguma coisa dos seus procu- radores de algum modo até aqui por ele constituídos -, portava e detinha em suas mãos um escrito de papel contendo um recurso e uma apelação, com o pensamento e o propósito de recorrer e apelar, bem como de buscar certifica- dos de apelação', dizendo, narrando, recorrendo e apelando, por causas cer- tas e legítimas, contidas e incluídas naquele escrito, ao concílio próxima e imediatamente futuro - desde que congregado legitimamente no Espírito Santo, mas pondo totalmente de lado as outras assembléias, facções e ajunta- mentos particulares -, protestando e fazendo outras coisas, conforme conti- do, mencionado e descrito de modo mais completo no referido escrito de ape- lação, cujo teor vem a seguir e é este:

I Appellofio J Murfini Lufher odconciiiurn, W A 2,36-40. Traduçào de Martinho L. Hasse. 2 Esquema cronológico medieval. O número de indicçào indica o lugar que o iespcctivo ano

ocupa dentro de um ciclo de I5 anos. O ponto de partida era o ano 3 a.C. A indicção inicia^ va iio ano-novo (25 de dezembro ou 1 P de janeiro, no Ocidente; I! de setembro, no Oriente I>i,aiitino) ou na dia 24 de setembro, em algumas regiòes.

3 Solire 1 . ~ 3 0 X cf. p. 59, nota 11. p. 200. nota 9 e p. 427, nota 9. 4 A,ir,.~ro/i. rio oiiyiii;il. '1'rat:i~sc dc dociirncntos dc eiicaniinhamcnto a instância superior.

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"'I'endo em vista que o recurso da apelação foi inventado pelos autores iI:ii leis para socorro e alívio dos oprimidos; que as leis permitem que se apele ii;io só de males e injustiças já infligidos, mas também dos que ainda venham :I ser infligidos e dos que nos ameaçam infligir, de modo que alguém inferior iiJo pode determinar que não se apele ao superior, nem fechar as mãos dos siipcriores; mas visto que é suficientemente reconhecido que um concilio sa- crossanto, legitimamente reunido no Espirito Santo, representando a santa Igreja católica, é superior ao papa em questões de fé, resulta dai que o papa 1130 pode decidir, em questões desta natureza, que dele não se apele ao coiici- lio, pois então faria o que de forma alguma compete ao seu oficio; e tendo em vista que a própria apelação é uma defesa que cabe, por direito divino, natu- i;11 e humano, a cada pessoa, não podendo ser abolido nem mesmo pelo priri- cipe:

Por esta razão, eu, frei Martinho Lutero, da Ordem dos Eremitas de Saiito Agostinho, indigno mestre de Sacra Teologia e , ali mesmo, principal l i r~fessor catedrático da mesma, especialmente e por mim mesmo, compareci (li:iiite de vós, tabelião público, como de pessoa pública e confiável, bem co- i i i i ~ das testemunhas aqui presentes, com o pensamento e o propósito de re- ~, i~i-rer e apelar, bem como de buscar e receber certificados de apelação, sob o picssiiposto, porém, deste protesto expresso e solene de que nada pretendo ili/.cr contra a única santa Igreja católica e apostólica, que não duvido seja a ~iicstra de toda a terra e detenha a supremacia, riem contra a autoridade da siiiiin Sé Apostólica e contra o poder de nosso santissimo senhor, o papa, des- ilv que bem informado. Entretanto, se, talvez por descuido da língua ou, an- ics, por provocação dos adversários, tenha sido dito algo menos conveniente c sciii o respeito devido, estou muito disposto a corrigi-lo. Mas, porque aque- Ir iiiic ocupa o lugar de Deus na terra, ao qual chamamos papa, por ser hu- iii:iiio, semelhante a nós, tomado dos seres humanos, e ele próprio - como (l i / o apóstolos - cercado de fraqueza, podendo errar, pecar, mentir, tornar- ri, Irivolo, não sendo excluído sequer daquela afirmação geral do profeta: "I'iido ser humano é mentiroso.' [SI 116.11.16 Tampouco São Pedro, o pri- iiiciro c o mais santo de todos os pontífices, esteve livre dessa fraqueza, tanto ijiic procedeu com nociva dissimulação contra a verdade do Evangelho. As- \ i i i i . Iioiive necessidade de que fosse corrigido mediante severa, mas santissi- i i i ; ~ i,preciisão do apóstolo Paulo, como está escrito em G12.14. Por este no- Iiili~\iiiio cxeniplo, mostrado na Igreja e deixado nas Santissimas Escrituras ~'cl<r lisfirito Santo, os crentes em Cristo somos instruidos e ficamos certos, <li. \iirtc qiic. caso alguni sumo pontífice, por fraqueza igual ou semelhante a ( l i . I1v<Iio, venha a cair e prescreva ou decrete algo que esteja cm conflito com < r \ iii;iiicl:iiiicnt«s divinos, não só não tenhamos de lhe obedecer, como ainda, < . a i i i i i ) ;ipi~slol« Paiilo, possamos e até mesmo devamos resistir-lhe face a fa- i-i.. r L I C soiic cl~ic, por assini d i ~ e r , a fraqueza da cabeça seja socorrida pelos

membros inferiores, através de uma piedosa solicitude do corpo todo. E , pa- ra lembrança eficaz e perpétua deste exemplo, é que pode ter ocorrido, não sem especial providência de Deus, como se depreende de modo não obscuro, que não só S. Pedro, mas tarnbéin seu salutar censor Paulo viessem a prote- ger e presidir, juntos e ao mesmo tempo, a santa Igreja Romana. Assim, não apenas por meio da Escritura, mas também por meio de um monumento per- ceptível, tanto as próprias cabeças como também nós, os membros, seríamos lembrados continuaniente desse exemplo sumamente necessário e salutar. E posto que alguém, armado pela força dos poderosos, prevalecesse de tal for- ma que não se pudesse resistir-lhe, resta ainda seguramente o já mencionado recurso da apelação, por meio do qual os oprimidos se possam reerguer. Ao qual também eu, supradito frei Martinho Lutero, recorro na forma e inten- ção anteriormente mencionadas, dizendo e expondo o seguintz: em dias pas- sados, as iridulgêricias foram pregadas da maneira mais indiscriminada, em nossa terra da Saxônia, por certos comissários apostólicos' (como se arroga- vam), de tal modo que, para sugar ao povo o dinheiro, começaram a. pregar coisas absurdas, heréticas, blasfemas, para transvio das almas dos fiéis e su- premo escárnio do poder eclesiástico, principalmente acerca do poder do pa- pa sobre o purgatório, como sustenta o opúsculo deles chamado Instrução~ sumária. No entanto, a partir do c. Abusionibus, é certo que o papa não tem qualquer poder sobre o purgatório. Além disso, é o parecer de toda a Igreja e é consenso de todos os doutores que as indulgências nada mais são que uma dispensa da satisfação penitencial imposta por seu juiz9, segundo é evidente do texto do c. Quod autem'o. Porém a satisfação penitencial imposta pelo juiz eclesiástico outra coisa náo é senão as obras de jejum, de oração, de es- molas, etc. Por esta razão, não pode ser dispensado pelas chaves da Igreja o que por elas não foi imposto. Também é evidente, a partir da distinctio XXXVc . Qualisll, que no purgatório se remite não só o castigo, mas também a culpa, sendo que a Igreja não pode remitir a culpa, assim como não pode outorgar a graça. Como, apoiado nestas abonações, me opusesse, na forma usual do debate, aos seus ensinamentos impuros e tolos, começaram eles, en- furecidos pela ambição do lucro, primeiro a me chamar de herege, com de- blaterações públicas perante u povo e com a mais desbragada audácia; de- pois, a me acusar, por meio de um certo senhor Mário Perusco, o procurador fiscal, como suspeito de heresia junto ao nosso santissimo senhor Leão X, e por meio desse senhor Perusco, finalmente, obtiveram a incumbência de me convocar a presença das pessoas dos reverendissimos senhores e pais Jerôni- mo Ghinuccii2, bispo de Áscoli, auditor das causas d a Câmara e Silvestre

7 Referência a Jo?io Tetzel (cf. p. 199, nota5). 8 No original: inslirurto ao invés de insiruclio. O titulo do escrito e Inslruclio surnrnoriopro

subcumissoriis, poenitenliariis el confessoribus, etc. 9 Isto 6 , pelo confessor.

10 Trata-\e do capitulo que inicia com as palavras Quod aulem. I I Trata-sc do capitulo que inicia com a palavra Quoiis, contido na dislinclio (subdivisso do

direto i-:nrtiitiicu) XXXV. I2 SccirlAii<> <li> papa l i i l i o 11 ~ i i i V <l>iicili<i I.:ilcr;ine~irr (1512-1517), hirpo de Áscoli riceno

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I'riíxiasl3, mestre palaciano, por intermédio dos quais trataram de me cha- iiiar para Roma, para lá comparecer pessoalmente. Visto que nem mesmo em Wittenberg eu estava seguro contra ciladas, não podia fazer uma viagem tão longa nem permanecer seguro em Roma, pois era pobre e de corpo enfermi- qo; visto que, além disso, os supracitados juizes me eram suspeitos por niui- 10s motivos, sobretudo porque o reverendo pai Silvestre era meu adversário c piiblicara já um diálogo contra miml4, e porque era menos versado nas Sagra- (Ias Escrituras do que esta causa o estava a exigir; sendo o senhor Jerõnimo, j~orém, mais perito em leis do que em teologia, era de se temer com razão que clc fizesse concessões a teologia silvestrina, pois este assunto achava-se fora da sua especialidade - por estas razões impetrei, por meio do ilustrissimo principe senhor Frederico, duque da Saxõnia, grão-marechal do Sacro Inipé- rio Romano, landgrave da Turingia, margrave de Meissen, que a causa fosse ciitregue a gente insuspeita, a homens honestos e honrados. Então eles, arma- dos de grosseira e tola astúcia, agiram junto ao santissimo senhor Leão, etc., ti« sentido de que a causa fosse transferida para eles próprios, isto é, para a pt:ssoa do reverendissimo senhor Tomásls, cardeal de São Sixto, 21 época Icga- do da Sé Apostólica na Alemanha; pois, sendo este o chefe da Ordem dos I'rcgadores e da facção dos tomistas, isto é, dos adversários, esperava-se fa- cilmente que ele decidisse contra niim a favor deles, ou, como provável, que cii, sem dúvida intimidado a simples vista deste juiz, me recusasse a coinpare- ccr e incorresse em contumácia. Contudo, fiado na verdade de Deus, viin a Aiigshurgo com muito sacrificio e sob grandes perigos, sendo, porém, ama- vcliiiente recebido pelo supramencionado revereiidissimo, etc. Este, depois tlc postergar o meu prolesto e oferecimento - pelo qual me ofereci a respon-

~~~~ ~~ - ii;il, c ao mesmo tempo a submeter a mim e as minhas afirmações a santa Sé Aliostólica e ao arbitramento das quatro célebres Univcrsidades de Basiléia, I;sihiirgo, Lovaina e da mãe dos estudos, a celebérrima Universidade de Paris

, iristou comigo para que eu simplesmente me retratasse, sem querer expor- iiic os meus erros, nem os argumentos e abonações pelos quais me fosse poi- \iv~,l coiiipreender o meu erro. Certamente movido por seu facciosistno des- iiicdido para com os irmãos e assumindo o rosto da iniqüidade, finalmente, <.;i50 cii não me retratasse, ele, desdenhando minhas súplicas e meu desejo de ;ii~rciidcr, bem como meus pedidos por instrução, com palavras duras e vi itCis. rnc ameaçou com o vigor de um certo breve apostólico e me ordenou t~iic 1130 voltasse mais a sua presença. Ofendido por esses gravames, apelei, à

~-.~-- -

( 1 5 I 2 1 5 I K ) , iiiicicii> api>stólico na Inglaterra, conselheiro do rei Heilriquc VI11 da Inglaiçr~ , ; i . l>ib]>o ile W<irce\icr, iia liigl;itcira(l522-l534), cardeal (1535), legndo p l p a l jilillo ao i t i b

i i i . i ; t < l i > i (':illo.; V e ;io ici Iraiicisco I d n Franca viira ncgnciar ~ i o i Iratado de p a i entrc :$ali

época, de sua audácia injusta e violenta e de sua pretensa incumbência para o nosso santissimo senhor Leão X, que devia ser melhor informado, conforme está amplamente contido no escrito de apelaçãoló. Porém também esta apela- ção (conforme dito) foi desprezada. Não obstante, até hoje não desejo senão que me exponham os meus erros, por quem quer que, afinal, possa fazê-lo. Mais uma vez protesto devidamente que, se for convencido de que disse algo mal, estou plenamente disposto a me retratar. Depois submeti todo o meu debate" ao sumo pontífice, assim que nada mais tenho a fazer a respeito se- não aguardar a sentença, a qual até hoje venho aguardando. Nâo obstante, porém, conforme ouço, e o mesmo reverendissimo senhor Tomás, cardeal de Sixto, escreve ao ilustrissimo principe Frederico, etc., ele procederá contra mim na Cúria Roinana, e, com a autoridade desse santissimo senhor nosso, etc., os pretensos juizes darão prosseguimento a causa, visando a minha con- denação. E isto sem considerar a minha fiel e demasiada obediência, já que com tanta dificuldade conipareci a Augsburgo, e sem fazer caso d o meu ho- nestissimo oferecimento, já que me pus a disposição para responder publica- mente ou em particular, até mesmo desdenhando uma ovelha de Cristo que, com humildade, pede que seja instruída sobre a verdade e reconduzida do er- ro; sem ouvir e sem apresentar argumentos, a o contrário, por pura tirania e com plenitude de poder, simplesmente insistem na retratação de uma opinião que, segundo a minha consciência, reputo exatissima. Querem induzir-me a renegar a fé em Cristo e a verdadeira compreensão da Escritura manifestissi- ma (o tanto que a minha consciência compreende). O poder do papa não está contra ou acima da majestade da Escritura e da verdade, mas a favor e abai- xo dela. Tampouco recebeu o papa poder para levar as ovelhas à perdição, lançá-las nas fauces dos lobos e deixá-las a mercê dos erros e dos mestres dos erros, mas para chamá-las de volta a verdade (como convém a um pastor e bispo, vigário de Cristo). Em razão disto, sinto-me prejudicado e agravado, pois, com tal violência, vejo que as coisas chegarão a tal ponto que ninguém ousari confessar o próprio Cristo nem ensinar as Sagradas Escrituras na sua própria Igreja; e vejo que, assim, serei com violência compelido a passar da fé e da compreensão cristã verdadeira e sã para as opiniões vãs e mendares dos seres humanos e empurrado para as sedutoras fábulas do povo cristão.

Pelas razòes mencionadas, apelo do supradito santissimo senhor nosso, Leão, que não está bem orientado, bem como dos pretensos potentados e jui- zes supramencionados, e da intimação e do processo deles e de tudo o que da- li sobrevém e sobrevirá em qualquer parte deles, bem como de qualquer exco- munhão, suspensão e sentenças de interdito's, censuras, punições e multas e

16 Redigido por Lutero com a ajiida do dr. JoZo Aiier, registrado na forma da lei m 16 de ou^

tubro perante o tabelião Galo Kunigcnder, na presensa dos clérigos Wenrel Steinbeiss e Bartolonieu Ulzmair como testemunhas, aiixado em 22 de outubro na porta da catedral de Augsburgo, tornando-se, assim, juridicamente valido.

17 Talvez 1.utero se refira as 95 teses (pp. 21ss. deste volume). 18 No direito canõnico, interdito é a exclusão de uma pessoa dos benr espirituais da Igreja, is-

io é, da participas30 no5 sacramentos, srni exclui-la da comunhão eclesiástica (enqualito

23 1

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; i i i ic l : i de quaisquer outras denúncias e declarações (como alegam) de heresia e :ilii~stasia por eles ou por outros dentre eles de qualquer maneira tentadas, Irii:is e tramadas, e das a serem ainda tentadas, feitas e tramadas, e da nuli- iI:iilc delas (sempre sem prejuízo de sua honra e respeito), como de coisas ini- i1ii:ih c injustas, puramente tirânicas e violentas; apelo também de qualquer Iiiiiiro gravame que me possa resultar daí, tanto para mim como para todos e 1i:ir;i cada um dos que a mim aderirem ou quiserem aderir - para um futuro roiicilio, que seja legitimo e em lugar seguro, ao qual tanto eu como o procu- i ~iclor a ser por mim enviado possamos ter livre acesso; e àquele, ou aqueles,

qiial, ou aos quais, de direito, por privilégio, costume ou de outro modo iiic seja permitido recorrer e apelar, recorro e apelo nestes escritos. E peço, ~ i i ~ i ' primeira, segunda e terceira vez, com insistência, com mais insistência, coiii toda a insistência, que me sejam dados os certificados de apelação, se 1ii)iiver quem mos queira e possa dar, e sobretudo os atestados Lestemunhais'9 i I i VOS, senhor tabelião. Protesto, outrossim, que hei de dar prosseguimento :i vsin minha apelação por causa da nulidadezo, do abuso, da iniqüidade ou iiiiiisiiça, e coisas assim, da melhor maneira que puder, reservando-me a op- < A o cle acrescentar, subtrair, mudar, emendar e reformar para melhor, e sein- prc iissegurando, para mim e para os que a mim aderiram e quiserem aderir, i<~clo outro benefício legal."

Ao interpor este escrito em minha presença e na das testemunhas infra- ;i\\iiindas, como se mencionou anteriormente, ele afirmou e protestou ex- Iiii,ss:iiiieiite não poder, pessoalmente ou mediante procurador, chegar até :iiliivlc do qual apelou expressamente, tanto por temor dos muitos que lhe ar- iii:iv;iiii ciladas, a ele e a sua vida, quanto daquele de quem apelara, como i:iiiil)i.iii por causa dos perigos das estradas. E por esta razão, com a devida :il1licay5o, pcdiu a mim, tabelião público, lhe fossem dados e concedidos es- l i . ccriificados de apelação que por lei lhe eram devidos. Ao qual solicitante <Ici v i s e documentos de apelação que lhe eram devidos, ou pelo menos os ;iic\i:icIos testemunhais então exarados por meio do presente instrumento pú- Irlici~. Acerca deles todos e de cada um ele pediu a mim, tabelião infra- :i\siii;iiitc, fosse elaborado e feito um ou mais iiistrumetitos públicos.

I:,st;is coisas se deram em Wittenberg, na jurisdição de Brandenhurgo, i i a i :iiio, iia indicção, no dia, mês e pontificado acima referidos, sendo gover- i i i i i i i ~ ~ i1 divo Maxirniliano21, imperador dos romanos, por volta das 3 horas, ii:i i.:ipclo do Corpo de Cristo, situada ali mesmo, no cemitério paroquial, ~ o i i i ; i ~licsciiça de Cristóvão Beehr, por sacra autoridade apostólica e impe- i i ; i l vi~,rgi>vcrnador em Constança, e Jeronimo Papiss, clérigo da jurisdiyão (Ir I lol', coiiio lchtemunhas convocadas e solicitadas do que antecipamos.

-

iliic ;i i .~ccii~ii i i i l ido excliii a pessoa também desta coniunhão) . Foi iirila 1icii;i ie;ilnieiiii. c l i ,,i, \ , i i i ie i i l r ;$$C ;i Ali;, liladc Média. Na Idade Mnderiia qii?<e rià<> i inaii aplic:i<I;i.

1'1 / ~ ~ ~ l ~ ~ r ~ ~ ~ r r ~ ~ ~ / ~ ~ . ~ , oc, <>rigir!;d. !li s < , I < , I"'>''\<" :!,"riiiii !I ( ' 1 ' . I , . ZIMI, ,,,,i<, li.

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Uma Breve Instrução sobre Como Devemos Confessar-nos,

extraída do parecer apropriado do doutor Martinho Lutero, agostiniano 1

Este tratado é um resumo, originalmente em alemão, de um escrito em latim que Lutero produziu em 24 de janeiro de 1519, a pedido de Jorge Espalatino" e que não foi DreDarado vara ~ublicacão. Denois de várias vezes cooiado. alguém - nossivel- . . . . . - mente Espalatino - fez o resumo para publicação e uso na instrução para a confissão. Mais tarde, Lutero reformulou esta ~ublicacão oara o Modo de se confessor3. aue . . . . apareceu em março de 1520.

Os oito parágrafos desta instrução são uma maneira nova de tratar a confissão de pecados na Igreja de então. A ênfase está na primeira afirmação: tudo depende da "promessa sobremodo misericordiosa de Deus". Por isso, o cristão "deve crer firme- mcntc que .> rodo-[>orleri~,o Deu, lhe perdoari mi~cri;ordi~isaineiiie o e u pecado". O pcrJdd n.lo drpciiJc rlc neiiliuiiia >;iiisisia~i, >ciiào da rle ( 'ri \ i<). ,\ ,eáiiiirla aiirindiào mostra a direção certa: a confissão é diante de Deus; depois disso é possivel confessar ao sacerdote. A terceira afirmação fala da capacidade: somos incapazes de deixar de pecar por nós mesmos; por isso, devemos orar a Deus e pedir que nos queira dar gra- ciosamente o que exige de nos. A quarta afirmação mostra a extensão do pecado: não apenas cometemos pecados, mas estamos num estado pecaminoso. A quinta afirma- ção revela a sensatez de Lutero: não podemos confessar todos os pecados, pois até nossas boas obras são ainda pecaminosas; só devemos confessar ao sacerdote os peca- dos que nos pesam no coraç2o. Na sexta afirmação Lutero chama a atenção para o pe- cado de confessarmos vecados inutilmente: a confissão deve ser breve e concisa: certa- mente porque os detalhes poderiam nos levar a cometer mais pecados. Na sétima afir- mação Lutero ia vreDara contra imoosicdes dos sacerdotes: devemos distinguir entre mandamentos de ~ e " s e simples ordenanças humanas.

1 Ein kurlz underweysung, wie mon beicltten sol: ousz Dodor Marlinus Lufher Augusliners wolmeinung gelzogen, WA 2,59-65. Tradu~ão de Annemarie H6hn e Luis M. Sander.

2 1484-1545, nasceu em Spalt, na Baviera, Alemanha. Seu nome de família é Burckhardt, mas mudou o nome para adaptá-lo ao lugar de nascimento. Tornou-se sacerdote em 1508 e foi tutor de João Frederico, trabalhando para Frederico 111, o Sábio, em várias capacida- des. Era amigo de Lutero. Transferiu-se para Altenburgo em 1525, onde em 1511 havia re- cebido a posicâo de cônego numa catedral. Participou em 1526 da Dieta de Espira. Foi ati- vo nas visitacdes eclesiásticas. Participou em 1530 da Dieta de Aupsburgo e escreveu um re- latbrio a resoeito. Em 1537 levou Lutero. doente. de volta de Esmalcalde. Aiudoii na Re-

</i" <I<, Wilt~nberz. 3 <biifilrn~li rrilio. WA 6.157-69 (a ser publicado no v. 2 desta cole~ão).

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Como esta forma confessionis é dirigida a leigos simples, Lutero aponta, na oita- va afirmação, para os Dez Mandamentos como o espelho para um exame da vida. Segue-se então o exame de consciência baseado nos Dez Mandamentos, deixando fora os dois últimos, considerados uma interpretação dos outros mandamentos. Finda com a oração de Manassés, que é apontada como modelo de confissão.

A primeira edição surgiu em Leipzig, em 1519, por Melchior Lotther. Entre 1519 c 1520 houve cinco edições. Aqui é usada a forma registrada em WA 2,59-65.

Martim C. Warth

I . Todo cristão que quiser se confessar deve depositar e ter a maior con- fiança na promessa sobremodo misericordiosa de Deus, e deve crer firme- inente que o todo-poderoso Deus lhe perdoará misericordiosamente o seu pe- cado. Pois o santo profeta diz no Salmo 24[25].11: "Por causa do teu nome, Sciihor, perdoa-me graciosamente o meu pecado." Cada qual pode lembrar- sc ainda da oração do rei Manassés de Judá. E que essa oração serve muito ticm para a confissão, razão pela qual todo cristão pode proferi-la antes de corifessar-se. Por isso, essa oração será transcrita mais abaixo.

2. Antes de confessar seus pecados ao sacerdote, todo cristão deve coiifessar-se a Deus, o Senhor, com muita diligência, contando e descrevendo ;i sua divina majestade, clara e abertamente, todos os seus defeitos e pecados, 1;irnbém como se portou, como agiu e qual sua situação moral. O cristão deve i'azer isso como se estivesse falando com um amigo diante do qual não tem se- grcdos. Também deve confessar a Deus todos os pensamentos pecaminosos e 111;iiis de que se lembrar.

3. Todo cristão que quiser confessar o seu pecado deve ter o propósito e ;i vontade sinceros de melhorar sua vida a partir desse momento e de <Icslàzer-se dos pecados que são pecados mortais manifestos, tais como adul- icrio, assassinato, furto, difamação, usura, impudicicia, roubo e coisas seme- Iliniiics. Sim, a pessoa deve ter esse propósito tão logo tenha praticado um dos pecados mencionados. Pois seria arriscado e perigoso confessar-se sem cssc propósito. Quando, porém, a pessoa percebe que não tem um verdadeiro piopbsito de melhorar sua vida, deve cair de joelhos e pedir a Deus um bom propOsito, dizendo: "Ó meu Deus e Senhor, eu não tenho o que devo, nem coiisigo obtê-lo. Por isso, peço-te que, graciosamente, me dês o que exiges e qiic iiic ordenes o que queres."

4. l>cvcm-se confessar os pecados do coração, que são ocultos e conheci- ilos iiiiiceinciilc por Deus. Por isto, devem-se coiifessar os pecados ociillos, qiic :i pcssoa dccidiii, consigo mcsiiis, comctcr diretariicntc contra os rriarida-

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mentos de Deus. Pois é impossivel ter o propósito de evitar os pecados cha- mados diários&, visto que a atração entre o sexo masculino e o feminino não cessa. Também o diabo não descansa, de sorte que nossa natureza é total- mente pecaminosa.

5. O ser humano deve considerar que não lhe é possível lembrar e confes- sar todos os seus pecados mortais, mas deve supor que, mesmo após todo o seu esforço, confessou apenas a menor parte de seus pecados. Pois diz o pro-

I feta num salmo: "O Senhor, purifica-me de meus pecados ocultos." [SI i 51.2.1 E, em outro salmo: "Quem compreende o pecado?" [Sl 19.12.1 Por is- so, a pessoa deve confessar os pecados mortais que são pecados mortais ma- nifestos e que oprimem sua consciência quando da confissão, deixando os outros de lado. Pois é tão impossível que o ser humano consiga confessar to- dos os seus pecados mortais, que também nossas boas obras são mortais e condenáveis, se Deus as julga e avalia com seu rigor, e não com sua bondosa misericórdia. No entanto, caso se devam confessar todos os pecados mortais, que seja feito com as seguintes breves palavras: "Sim, toda a minha vida e tu- do o que faço, digo e penso é feito de tal forma, que é mortal e condenável." Pois se uma pessoa pensasse estar sem pecado mortal, isto seria o mais mortal dos pecados mortais.

I 6. A pessoa que quiser se confessar deve deixar de lado as extensas e múl- tiplas distinções dos pecados e de suas circunstâncias, e ocupar-se unicamente com os mandamentos de Deus. Deve confrontar-se com eles e passá-los em revista, ordenar sua confissão de acordo com eles e apresentá-la de forma breve. Pois, examinando atentamente os mandamentos de Deus, constata- mos neles como, por pecados vários, Deus foi abandonado, desprezado e en-

I colerizado por nós. 7. Deve-se fazer uma grande distinção entre os pecados acontecidos con-

tra os mandamentos de Deus e contra os mandamentos e leis dos seres huma- nos. Pois sem os mandamentos de Deus ninguém pode salvar-se, mas é per- feitamente possivel salvar-se sem os mandamentos dos seres humanos.

8. Se quisermos confessar-nos, devemos confrontar-nos logo apenas com os Dez Mandamentos e dizer como pecamos contra eles, a saber, da se- guinte forma:

I Contra o primeiro mandamento de Deus:

Deves crer num único Deus.

Que nunca amamos, honramos e tememos devidamente a Deus. Que procuramos ajuda junto a feiticeiros e feiticeiras quando em adver-

sidade.

i 4 I'cr;«li>~ diários sao os pecados veniais, 3egundo a doulrina romana.

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Que desnecessariamente tentamos a Deus e expusemos corpo e alma ao perigo.

Que acreditamos nos sinais e conselhos dos astrólogos em relação a obje- 10s e acontecimentos.

Que praticamos a feitiçaria. Que observamos os dias escolhidos'. Que fizemos pacto com o diabo. Que atribuímos a adversidade ao diabo ou às pessoas más. Que acreditamos que figuras, benzeduras e ervas protegem contra perigo

c adversidade. Que não cremos que todas as coisas boas e a felicidade vêm somente de

Deus. Que não cremos que somente Deus pode ajudar na adversidade. Que honramos e invocamos os queridos santos apenas para alcançar

bens e bem-aventurança temporais, esquecendo-nos da salvação da alma. Que amamos e tememos a criatura e coisas criadas mais do que a Deus. Que nos comprazemos em nós mesmos e nos jactamos de nossa justiça,

habedoria e outras virtudes. Como pecamos com soberba. E como pecamos com os pecados contra o Espírito Santo.

Contra o segundo mandamento de Deus.

Não deves abusar do nome de Deus.

Que blasfemamos a Deus e seus queridos santos. Que nunca buscamos a honra de Deus, mas somente nossa própria hon-

ra, louvor e glória. Que juramos malignamente, por mau costume e sem motivo. Que juramos falsamente. Que fazemos votos falsos ou quebramos votos verdadeiros. Que falamos injuriosamente de Deus ou de seus santos e da Escritura Di-

vinil. Que não invocamos o nome de Deus na adversidade não lhe rendemos

tp,i:i<:is na felicidade. Qite nos gloriamos das dádivas de Deus e buscamos o louvor dos seres

Illllllitrlos. ('orno pecamos coin soberba também pode ser incluído neste manda-

1 1 1 < ~ 1 1 1 < ~ .

1 Contra o terceiro mandamento de Deus:

I Deves observar o dia santo.

Que não demos a Deus a devida atenção orando, [participando daJ missa e ouvindo a prédica, também lamentando-nos com humildade diante do pe- cado.

Que dançamos, jogamos e praticamos obras desvirtuosas em dias de des- canso, comendo e bebendo demais e permanecendo ociosos.

Que, em dias de descanso, nos dedicamos a açdes levianas e conversa- mos, corremos para cá e para lá, vagueamos e viajamos à toa.

Que, em dias de descanso, trabalhamos e fizemos negócios, sem necessi- dade, contra o mandamento da Igreja.

Que observamos apenas feriados inventados, sem melhorar a alnia, so- mente com comida, bebida e vestimenta.

E como pecamos com indolência no serviço a Deus, pecado este que também contraria todos os demais mandamentos de Deus.

Contra o quarto mandamento de Deus:

Deves honrar teus pais.

Que não obedecemos, honramos e amamos nossos pais. Que não ajudamos nossos pais em sua fraqueza, necessidade e pobreza e

que nos envergonhamos deles. Que encolerizamos, maltratamos ou falamos mal de nossos pais. Que desobedecemos aos mandamentos da Igreja. Que não honramos os sacerdotes. Que não honramos os príncipes, senhores, conselheiros e todas as auto-

ridades, sejam piedosas ou más. Que cometemos heresia e outros atos de desobediência contra a Igreja

cristã.

Contra o quinto mandamento de Deus:

Não deves matar.

Que matamos pessoalmente, aconselhamos ou ordenamos que alguém outro o fizesse.

Que nos encolerizamos propositalmente com o próximo e contra ele mostramos sinais de ira mortal.

Que injuriamos, insultamos, falamos mal, zombamos ou suspeitamos do nosso próximo.

Que sciitirrios uma má vontade hostil contra o próximo.

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Que fomos invejosos e odientos. Que nos encolerizamos. Que querelamos e brigamos. Que provocamos e conduzimos uma guerra. Que roubamos. Que não praticamos as obras de misericórdia Que não amamos os inimigos. Que não perdoamos os inimigos. Que não oramos pelos inimigos. Que não fizemos o bem aos inimigos.

Contra o sexto mandamento de Deus:

Não deves cometer adult(.rio.

Que cometemos e praticamos adultério e outra impudicícia, qualquer qite seja.

Que sentimos desejo e vontade em relação a palavras, canções, histórias c quadros vergonhosos, impudicos e incastos.

Que suscitamos ou causamos impudicicia por gestos, aparência, sinais o11 escritos obscenos.

Que levamos, com roupa excessivamente chamativa, a nós mesmos ou oiiiras pessoas à impudicícia.

Que, em pensamento, concordamos em cometer impudicicia. Que não evitamos comer demais, beber demais, entregar-se ao ócio e ou-

i I as causas da impudicicia. Que não defendemos e protegemos a virgindade alheia e a castidade de

outras pessoas. Como fomos incastos com todos os cinco sentidos e com todos os mem-

h r ~ s . Como pecamos com os pecados mudoss.

Contra o sétimo mandamento de Deus:

Não deves furtar.

Oiie furtamos. Que roubamos. Qitc lesamos o bem comum. Otie roubamos das igrejas. Que seqüestramos o servo de alguém

6 I'cci$di,s ~i~udcir eram çrinsidcrlidi>s os ulcis dr inusturhu~ã<i oii aiir<>-salisfitqio scxii;il.

Que roubamos o gado de alguém. Que praticamos usura. Que agimos fraudulentamente. Que utilizamos medidas ou pesos falsos. Que possuímos ou aceitamos heranças a que não temos direito. Que fomos avaros. Que não emprestamos ao próximo sem juros. Que não praticamos as obras de misericórdia.

Contra o oitavo mandamento de Deus:

Não deves prestar falso testemunho.

Que ocultamos a verdade perante o tribunal. Que dissemos mentiras perigosas. Que adulamos e lisonjeamos. Que provocamos desunião, discórdia e dissensão entre as pessoas. Que interpretamos mal a palavra, vida e obra do próximo. Que toleramos e apoiamos difamaçbes. Que não defendemos o próximo em juizo. Que nâo enfrentamos com seriedade as más línguas.

9. Os dois Últimos mandamentos de Deus, a saber, o nono: "Não deves cobiçar a mulher de teu próximo" e o décimo: "Não deves cobiçar os bens de teu próximo", interpretam os outros mandamentos de Deus, quando orde- nam vencer o pecado original, o que, nesta vida, não pode acontecer. Por is- so diz São Paulo em Romanos 7.19: "Faço o mal que nâo quero", e em Gála- tas 5.17: "A carne milita contra o Espírito." Pois nenhum ser humano está inteiramente livre de desejos impuros e avareza nesta vida passageira.

10. Em suma, salvam-se as pessoas que depositam sua confiança em Deus, não em suas próprias obras nem em quaisquer criaturas. Por isso, o ser humano deve aprender a confiar mais na misericórdia de Deus do que em sua confissão ou diligência, porque não se pode fazer, empreender e protestar de- mais contra a maldita confiança em nossas obras. Devemos, portanto, acos- tumar nossa consciência a confiar em Deus. Quando tudo isso acontece com a intenção de crer e confiar em Deus, então isso lhe agrada. E a honra de Deus é que confiemos com o maior vigor na misericórdia de Deus.

Ora+ do rei Manassés', muito proveitosa para a confissão:

Ó Senhor, todo-poderoso Deus de nossos pais, de Abraso, Isaque e Ja- có, e de sua posteridade e descendência justa, que criaste o céu e a terra com - .

7 MntinssCs foi rei de JiidA entre h98 e 643 a.C. Há dois relatos sobre a sua atividade: o pri-

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todos os seus adornos, que demarcaste o mar com a palavra de teu manda- mento, que delimitaste as profundezas d o mar e inscreveste teu louvável no- me, perante o qual todos os seres humanos se atemorizam e diante d e cuja fa- ce, força e poder eles tremem, porque a ira de tua ameaça por sobre o pecado é insuportável. Mas a misericórdia de tua promessa é imensurável e inescrutá- I

vel, porque tu és o Senhor supremo sobre toda a terra. Es paciente, bondoso e muito misericordioso e compassivo para com a maldade humana. 6 Senhor meu, por tua bondade nos prometeste o perdão dos pecados, e tu, Deus dos justos, não prescreveste a penitência aos justos, como Abraáo, Isaque e Jacó, que não pecaram. Eu, porém, pequei, e minhas iniqüidades se multiplicaram, tornando-se mais numerosas d o que a areia d o mar . Fui vergado e entortado com muitos grilhdes de ferro e não me regozijo nem descanso, pois provoquei a tua ira e agi mal diante d e ti. Fiz coisas horríveis e multipliquei a ofensa. Por isso dobro agora os joelhos de meu coração e imploro por tua benignida- <e. Ó Senhor, 6 Senhor, eu pequei, eu pequei, e reconheço minha iniqüidade. O Senhor, peço-te que perdoes o meu pecado, não me aniquiles junto com minhas iniqüidades e não me retenhas os males eternamente. Salva-me a mim, ser humano indigno, por causa d a tua misericórdia, e eu te louvarei to- dos os dias da minha vida, pois a ti louva todo poder dos céus, e tua é a gló- ria, o louvor e a honra para todo o sempre. Amém.

Sermão sobre as Duas Espécies de ~ustiça' R. P. M. L.l

Conforme o próprio Lutero afirma em vários depoimentos, foi com muito esfor- ço que descobriu, passo a passo, o sentido das Escrituras. Perturbava-o, em especial, a expressão "justiça de Deus" nos Salmos e na Epistola aos Romanos. Depois de muito pesquisar e refletir, compreendeu que a justiça de Deus se revela no Evangelho, como Paulo declara na Epístola aos Romanos ( I .l7), por ser a justiça que Deus oferece edá, graças a Cristo, a todo aquele que nele crê. O crente, portanto, é justo e viverá pela fé, ou seja, ao reconhecer que Deus o absolve e aceita por causa de Cristo. Pela fé, por- tanto, Cristo se torna justiça para o crente, conforme o apóstolo Paulo escreve na Pri- meira Epístola aos Corintios (1.30): "Cristo Jesus se nos tornou da parte de Deus sa- bedoria, e justiça, e santificação, e redenção."

Essa foi a descoberta que Lutero pôde fazer por misericórdia de Deus, conforme reconhece. Ela se tornou a chave para a compreensão das Escrituras, pois lhe permitiu discernir entre a justiça passiva do Evangelho, recebida pela fé, e a justiça ativa que a lei requer e que o ser humano procura adquirir obedecendo à lei.

Enquanto expunha os Salmos e as Epístolas aos Romanos, aos Gálatas e aos He- breus (1513-1518). Lutero descobriu gradualmente a doutrina da justificação pela fé

i por causa de Cristo. O Sermão sobre as duas espécies de justiça é uma amostra das tentativas no senti-

do de comunicar ao povo as verdades redescobertas nas obras do apóstolo Paulo e de Sto. Agostinho3. Podemos distinguir, neste sermão, os dois temas fundamentais da teologia de Lutero, a saber, a fé em Cristo e o amor a Deus e ao próximo que resulta da fé.

Não se sabe ao certo quando Lutero proferiu o sermão. O texto da Epistola aos Filipenses 2.5-8 sugere o domingo de Ramos de 1518 ou 1519.

Em carta de 13 de abril de 1519 a João Lang, Lutero queixa-se que o sermão fora publicado em Wittenberg sem autorização. Em vista disso, ele próprio o publicou, no mesmo ano, na casa editora de João Grunenberg. É desse texto autorizado que se fez a tradução.

Nestor Beck

meiro de 2 Rs 21 só fala de coisas ruins, e o segundo de 2 Cr 33 também inclui coisas boa$. Quando se arrependeu fez oracão. Um autor desconhecido reuniu as idéias de uma oracão de iirrcpendimcnto, que se encontram na Blblia alem2 como último livro apócrifo, com o ti- tido dc "0ra~P.o dc Manass6s, o rei de Judb. quando estava preso na Babilônia". Nem a Igrcju (:ifhliçii Rornonu aceita o livro como çanAiiico. Na Septiiagintu a oracão se encontra uphs Sriliii<is.

I Srr»l<i ,l,lr. dt~r~ i i c i iu.~lilirr, WA 2,145-52. Tradiivào de Walter O. Schlupp 2 I K c v c r ~ ~ ~ ~ I o p;tclcc M:wtinl>o 1 , u t ~ r o . 1 ('I. 1'. 10. ~lo l i ! H, 11. 07. 1 1 0 l i t 4 h ~ p . 401, n o l a 4 .

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Irmãos, "tenham em vocês o mesmo sentimento que houve também em i 'risto Jesus, pois ele, subsisfindo em forma de Deus, nüo julgou como usur- />«c'Üo o ser igual a Deus. " [Fp 2.5s.l

A justiça dos cristãos é de duas espécies, como é de duas espécies o peca- '10 dos seres humanos.

A primeira espécie é a justiça a1heia.e infundida d e m a . E a justiça me- diante a qual Cristo é justo e justifica pela fé, como diz 1 Co 1.30: "o qual se ii»s tornou da parte de Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção." Pois ele próprio afirma, em Jo 11.25: "Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim não morrerá eternamente." E novamente, em Jo 14.6: "Eu sou o caiiiinho, a verdade e a vida." Esta justiça, portanto, é concedida as pessoas iio Batismo e em toda época de verdadeira penitência, de modo que o ser hu- iiiano possa, com confiança, gloriar-se em Cristo e dizer: "E rwu tudooque i. de Cristo: seu viver, ~. - o que fez, disse, que sofreu e morreu, exatamente como sc tudo isso tivesse acontecido comigo, como se eu tivesse vivido, feito, dito, sofrido e morrido." Assim como o noivo possui tudo o que pertence a noiva c a noiva possui tudo o que pertence ao noivo (pois tudo é comum a ambos, visto serem uma só carne?, da mesma forma Cristo e a Igreja são um só cspirito'. Foi assim que o bendito Deus e Pai das misericórdias, conforme o 13. Pedro6, nos concedeu coisas excelsas e preciosas em Cristo. Também Pau- lo diz em 2 Co 1.3: "Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, I1;ii das misericórdias e Deus de toda consolação", "que nos tem abençoado coiii toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo." [Ef 1.3.1

Esta graça e bênção indizível foi prometida outrora a Abraão em Gn 12.3: "Na tua semente (isto é, em Cristo) serão abençoadas todas as tribos da 1cri.a." E 1s 9.6 diz: "Um menino nos nasceu, um filho se nos deu." "A iihs", diz ele, porque é nosso em sua totalidade, com todos os seus bens, se iiclc cremos, como diz em Rm 8.32: "Não poupou a seu próprio Filho, antes, por iodos nós o entregou; porventura não nos dará com ele todas as coisas?" S3« nossas, portanto, todas as coisas que Cristo tem, concedidas gratuita- iiiciiie a nós, seres indignos, por pura misericórdia, ainda que, naverdade, te- i.i;iiiios merecido ira e condenação, bem como o inferno. Por essa razão tam- 1)L:iii o próprio Cristo, que afirmou ter vindo para cumprir essa vontade san- tissiiiia do Pai', tornou-se obediente a ele; e tudo o que fez, fez em nosso be- iiclicio c quis que fosse nosso, dizendo: "Eu estou no meio de vocês como al- giiciii que serve" [Lc 22.271; e ainda: "Este é o meu corpo, que é dado-por voccs" [Lc 22.191; e Isaias diz: "Fizeste-me servir com teus pecados e me des- i c irah~illio com tuas iniqüidades." (1s 43.24.)

I'cla fé em Cristo, portanto, a justiça de Cristo se torna nossa justiça, e iii(Io o quc c dcle passa a ser nosso, sim, ele próprio torna-se nosso. I'or cssa

razão, o apóstolo a chama "justiça de Deus" em Rm 1.17: "A justiça de Deus é revelada no Evangelho, como está escrito: O justo vive da fé." Final- mente, tal fé também é chamada de justiça de Deus, como em Rm 3.28: "Jul- gamos que o ser humano é justificado pela fé." Esta é a justiça infinita e que absorve todos os pecados num instante, pois é impossivel que haja pecado em Cristo; antes, quem crê em Cristo está apegado a ele e é uma coisa só com Cristo, compartilhando com ele a mesrna justiça. Por isso, é impossível que o pecado permaneça nele. E essa justiça é a primeira, é o fundamento, a causa, a origem de toda justiça própria ou atual. Porque de fato a mesma é concedi- da em lugar da justiça original, perdida em Adão, e realiza aquilo, sim, muito mais do que aquela justiça original teria conseguido realizar.

Assim se compreende aquela afirmação de SI 30[311.1: "Em ti, Senhor, depositei minha esperança; não seja eu jamais envergonhado; livra-me por tua justiça." Ele não diz "por minha", mas "por tua", isto é, pelajustiça de Cristo, meu Deus, que foi feita nossa pela fé, pela graça, pela misericórdia de Deus. Em muitos lugares do Saltério ela é chamada de obra do Senhor, con- fissão, força de Deus, misericórdia, verdade, justiça. Tudo isso são designa- ções para a fé eni Cristo, sim, para a justiça que está em Cristo. Por essa ra- zão o apóstolo ousa dizer em GI 2.20: "Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim", e em Ef 3.17: "Que ele Ihes conceda que Cristo habite pela fé em seus corações."

Essa justiça alheia, portanto - infundida em nós sem atos nossos, so- mente pela graça, ou seja, quando o Pai nos leva interiormente a Cristo -, é oposta ao pecado original, o qual, de forma semelhante, é alheio, contraído sem atos nossos, transmitido a nós somente pela geração. E assim Cristo ex- pulsa Adão dia a dia, mais e mais, na medida em que crescem aquela fé e o conhecimento de Cristo; pois a justiça alheia não é infundida toda de uma vez, mas começa e progride e é levada finalmente a perfeição com a morte.

A segunda justiça é nossa e própria; não porque nós a operamos sozi- nhos, mas porque cooperamos com aquela primeira e alheia. Esta é agora aquela boa prática de boas obras: em primeiro lugar na mortificação da carne e na crucificação das concupiscências em relação a si mesmo, conforme C1 5.24: "Mas os que são de Cristo crucificaram sua carne, com as paixões e concupiscências." Em segundo lugar também no amor ao próximo; em ter- ceiro, também na humildade e no temor a Deus, do que está repleto o apósto- lo e toda a Escritura. Mas ele resume tudo em Tito 2.12 dizendo: "Sobria- mente" (isto é, em relação a si mesmo, pela crucificação da carne), "justa- mente" (em relação ao próximo) "e piedosamente" (em relação a Deus) "vi- vamos neste século."

Essa segunda justiça é obra da justiça anterior, fruto e conseqüência da mesma, conforme G1 5.22: "Mas o fruto do espírito (isto é, do ser humano espiritual, que ele se torna através da fé em Cristo) é: amor, alegria, paz, lon- gariimidade, benignidade", etc. Pois o ser humano espiritual é chamado de "espírito", iiessa passagem, porque é evidente que aqueles frutos são obras de scrcs Iiiirnaiios. E Jo 3.6: "O que é nascido da carne é carne; o que é nasci- do do I(\pii.ito L: cspírit<~." Essa justiça Icva à perfeição a primeira, porque

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hciiipre atua no sentido de arruinar Adão e destruir o corpo do pecado; por ihso ela se odeia a si mesma e ama o próximo, não procura o que é seu, mas o qiic é do outro, e nisto consiste toda a sua atiiação. Pois ao odiar a si mesma e I I ; ~ O procurar o que é seu, ela efetua a crucificação da carne; ao procurar o iiric é do outro, porém, ela opera a caridade. Assim, com ambas as coisas ela I'nz a vontade de Deus, vivendo sobriamente em relação a si mesma, justa- iiicrite em relação ao próximo e piedosamente em relação a Deus.

E nisso ela segue o exemplo de Cristo e se faz conforme com a sua ima- geiii. Pois é exatamente isto que Cristo exige: assim como ele próprio tudo fez ciii riosso favor, não procurando o que é seu, mas apenas o que é nosso - e iiisto foi obedientissimo a Deus Pai -, da mesma forma ele quer que também 110s mostremos este exemplo frente aos nossos semelhantes.

Essa justiça é contraposta ao nosso pecado próprio e atual, conforme I< i i i 6.19: "Assim como vocês ofereceram seus membros para servirem a ini- qiiidade para a iniqüidade, da mesma forma ofereçam agora seus membros ora servirem a justiça para a santificação." Assim, pela primeira justiça se Icvanta a voz do noivo que diz a alma: "Eu sou teu", e, pela segunda, a voz iI:i rioiva que diz: "Eu sou tua." Está feito então um matrimônio firme, per- Ikito e consumado, como consta no Cântico dos Cânticos: Meu amado é para iiiirn, e eu para ele, o que quer dizer: "O meu amado é meu, e eu sou dele." (('I 2.16.) Então a alma não procura mais ser justa para si mesma, mas tem coiiio sua justiça a Cristo; por conseguinte, ela procura apenas o bem dos ou- li-os. Por isso o senhor da sinagoga ameaça, através do profeta, tirar dela a voz da alegria, a voz do noivo e a voz da noivas.

Isto é o que diz o tema anteposto: "Tenham em vocês o mesmo senti- /ii<wto", etc. [Fp 2.51; isto é, que tenham uns para com os outros a mesma ;iiitiide e disposição como vêem que Cristo as teve para com vocês. Como? "Pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igiiel a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo", ric. [Fp 2.6s.l A forma de Deus não é chamada aqui de essência9 de Deus, ~ io r~ lue desta Cristo nunca se despojou; de igual modo, também a forma de ~ c r v o não pode ser chamada de essência humana; "forma de Deus" i, isto \iiii . sabedoria, poder, justiça, bondade, e ainda liberdade, assim como Cris- 1 0 I<>i um ser humano livre, forte, sábio, sujeito a ninguém, nem ao vicio nem ;!o ~pccado, como são todos os seres humanos (pois ele era superior naquelas Ioiiii;is que cabem principalmente a Deus). Mesmo assim ele não se eusober- Ilcccii nesta qualidade, não agradou a si mesmo, tampouco desdenhou os ou- tios iicrn desprezou os que eram servos e estavam sujeitos a diversos males, i.i~iiio aquele fariseu que disse: "Graças te dou, que não sou como as outras ~)cs\cias'' [Lc 18.111, que se alegrava com o fato de os outros serem miserá- vci\, rifio querendo de forma alguma que os oiitros fossem semelhantes a ele. I:rs;i ? a iisurpação pela qual a pessoa se arroga, sim, pela qual ela guarda o

que tem e não o atribui exclusivamente a Deus (a quem pertencem estas coi- sas), riem serve aos outros com as mesmas, para fazer-se semelhante aos ou- tros. Assim querem ser como Deus, auto-suficientes, autocomplacentes, gloriando-se em si mesmos, sem dever nada a ninguém, etc. Cristo, porém, não teve esta atitude, não é assim que ele foi sábio; pelo contrário: atribuiu a forma divina ao Pai e se esvaziou a si mesmo, não querendo utilizar aqueles títulos frente a nós, não querendo ser diferente de nós; sim, antes, tornou-se para nós como um de nós e aceitou a forma de servo (isto é, sujeitou-se a to- dos os males). Mesmo sendo livre, como também diz o apóstololo, se fez ser- vo de todos, não agindo de outra forma senão como se fossem seus todos es- ses males que eram nossos. Por isso ele tomou sobre si nossos pecados e casti- gos e agiu de forma a vencê-los como que para si mesmo, sendo que na reali- dade os venceu para nós. Com respeito a nós, ele poderia ser nosso Deus e Se- nhor. Ainda assim não o quis, mas preferiu tornar-se nosso servo, como diz Rm 15.1,3: "Não devemos agradar a nós mesmos, pois também Cristo não se agradou a si mesmo." Mas, como está escrito, "as injúrias dos que te ultra- jam caíram sobre mim" [S169.91, o que expressa o mesmo que a sentença aci- ma.

Segue-se que essa passagem, que muitos entenderam afirmativamente, deve ser compreendida de forma negativa, ou seja: Cristo não se julgou igual a Deus, isto é, não quis ser igual, como acontece com aqueles que, com sober- ba, o arrebatam, que dizem a Deus: "Se não me deres (como diz o B. Bernardoil) a tua glória, eu mesmo dela me apossarei." A frase "não julgou como usurpação o ser igual a Deus" não deve ser entendida como afirmativa no sentido de que ele não julgou ser igual a Deus, isto é, não teria julgado usurpação ser igual a Deus; porque esta interpretação não faz sentido ade- quado, pois fala de Cristo como pessoa humana. O que o apóstolo quer é que cada cristão se torne servo do outro, a exemplo de Cristo. E se alguém possui alguma sabedoria, ou justiça, ou poder, através dos quais poderia superar os outros e gloriar-se como se possuísse a forma de Deus, não deve tomar isto como seu, mas atribui-lo a Deus. De modo geral, deve tornar-se assim como se não tivesse essas qualidades e comportar-se como um daqueles que não as têm, para que cada um, esquecido de si mesmo e despojado dos dons de Deus, aja com seu próximo como se fosse sua própria a fraqueza, o pecado e a ignorância do próximo; não se glorie, nem se ufane, nem desdenhe, nem triunfe contra aquele, como se fosse seu Deus e igual a Deus. Uma vez que se deve deixar isso somente para Deus, semelhante soberba e temeridade leva à usurpação. É assim, portanto, que se assume a forma de servo e se cumpre aquilo que o apóstolo escreve em G1 5.13: "Sirvam uns aos outros pelo amor." E em Rm 12.4s. e 1 Co 12.12ss., utilizando a imagem dos membros do corpo, ele ensina como os membros fortes, respeitáveis e sãos não se enso- herbecem frente aos fracos, desonrados e doentes, como se dominassem e

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lossem seus deuses. Ao contrário, eles antes servem aqueles, esquecendo-se iIc sua honra, saúde e força. Pois assim nenhum membro do corpo serve a si iiiesmo nem procura o que é seu, mas o que é do outro, e isso tanto mais, quanto mais fraco, doente e desonrado for aquele. E, para falar com suas pa- lavras, "os membros são solícitos uns com os outros, para que não haja divi- s3o no corpo." [I Co 12.25.1 Com isso se torna claro agora corno se deve agir com o próximo em todas as coisas.

Se não quisermos nos despir voluntariamente dessas formas de Deus e vestir as formas de servo, seremos forçados e despidos contra a vontade. Quanto a isso, observa, em Lc 7.36ss., a história em que Simão, o leproso, :issentado em forma de Deus e em justiça própria, julgava arrogaritemente c olhava com desprezo para Maria Madalena, na qual via a forma de servo. Mas vê: Cristo logo o despiu da forma da justiça e lhe pôs a forma do peca- do, dizendo: "Tu não me deste um beijo, não ungiste minha cabeça." Repa- ia quão grandes eram os pecados que ele não enxergava! Tampouco se julga- va ele deformado por uma forma repugnante. Não há qualquer lembrança de hoas obras suas. Cristo ignora a forma de Deus na qual aquele se agradava a si iiiesmo e se ensoberbecia, nada menciona de que tivesse sido por ele convi- dado, recebido a mesa e honrado; Simão, o leproso, nada mais é do que um pecador, que tão justo parecia a si mesmo. Tirou-se-lhe a glória da forma de I>cus, deixando-o envergonhado na forma de servo, querendo ou não. Em coiitraposição, a Maria ele honra com a forma de Deus, sobrepõe-lhe a sua e ;I eleva acima de Simão, dizendo: "Esta ungiu meus pés, beijou-os, regou-os i.oiii lágrimas e os enxugou com os cabelos." Vê quanto mérito, que nem ela iiiesma nem Simão enxergavam! Não há qualquer lembrança de seus deméri- tos, Cristo ignora a forma de servidão nela, a qual ele engrandeceu com a for- iiiit de senhorio, e Maria outra coisa não é do que justa, exaltada na glória da I<)riiia de Deus, etc.

Assim ele fará com todos nós sempre que nos inflarmos por causa da liic~ssa] justiça, sabedoria ou poder e nos irritarmos com pessoas injustas, to- I:is c menos poderosas do que nós; pois então (esta é a maior perversão) a jus- 1iy;i opera contra a justiça, a sabedoria contra a sabedoria, o poder contra o pi~tler. Pois tu és poderoso não para fazer os fracos ainda mais fracos, pela <il~icssão, mas para torná-los fortes, exaltando-os e defendendo-os. E és sá- 11io não para rir dos tolos e, assim, fazê-los ainda mais tolos, mas para :icollii--los, assim como queres que façam contigo, e para instrui-los. Assim, i.\ jiisto para justificar e desculpar o injusto, não para condená-lo apenas, fa- I;ir t i i t i l dele, julgá-lo e castigá-lo. Pois este é o exemplo de Cristo para nós, ci~iili~riiic ele diz: "O Filho do homem não veio para julgar o mundo, mas p;ir:i qiic o mundo seja salvo através dele" [Jo 3.171; e mais uma ver em 1.c '1.55s.: "Vocês não sabem de que espírito são filhos? O Filho do homem não vciii 11;ii;i destruir as almas, mas para salvá-las." Porém a natureza resiste viiilciit:iiiiciite, porque iiiiiito se deleita coni a vingança e a glOria de siia jiihli- ,.;I c coiii o vcrgotilia da it~.i~istiq;i de sei1 pr6xiiiio. 1'0s isso pioriiovc ;ipeii;is siiti prí,pri;i e;iiisti c sc :~Icgr:i p (~ r cslt~r i~icllior qiic ;i CIO prí~xitiio, ;ici~ss:iiido, < . < r i i l i i i l i ~ . ; i c;iiisti do ~~ r i~x i i i i o c clcsc.i:iiido qitc cln v;i iii:il . li\s;r pcrvcrs:io i. 111-

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da a injustiça, contrária ao amor, que não procura o que é seu, mas o que é do outro. Deve-se, pois, lamentar que a causa do próximo não esteja melhor que a própria, e desejar que ela vá melhor que a própria, sem que a alegria se- ja menor que sobre a própria causa; pois essa é a lei e os profetas.

Tu, porém, dizes: "Acaso não é permitido castigar os maus? Não con- vém punir os pecados? Quem não tem a obrigação de defender a justiça? Pois isso seria dar oportunidade a transgressão."

Respondo eu: aqui não se pode dar uma resposta simples. É preciso fa- zer uma distinção entre as pessoas: ou são pessoas públicas ou pessoas parti- culares.

As pessoas públicas, isto é, ás que estão a serviço de Deus ou ocupam posição de direção, não se referem essas coisas que foram ditas; pois a essas cabe, por dever do cargo e por necessidade, punir e julgar os maus, vingar e defender os oprimidos. Porque não são elas mesmas, e sim Deus que faz isso; ao fazerem-no, elas ~ ã o servas de Deus, como o apóstolo expõe largamente em Rm 13, dizendo: "Não é sem motivo que ela12 traz a espada", etc. (Rm 13.4.) Isto, entretanto, deve ser entendido com referência aos assuntos dos outros, não dos próprios. Pois ninguém está em lugar de Deus por causa de si mesmo ou de seu próprio interesse, mas por causa dos outros. Se, porém, al- guém tem uma causa própria, deve requerer outro representante de Deus que não ele mesmo; porque já não é mais juiz, e sim litigante. Mas sobre essas coisas uns dizem uma coisa, outros outra; o assunto é amplo demais para ser discutido agora.

De pessoas privadas e em causa própria há três tipos: as primeiras são as que querem vingança e procuram julgamento junto aos representantes de Deus, e dessas há agora um grande número. Isto o apóstolo tolera, porém não aprova, conforme I Co 6.12: "Tudo me é permitido, mas nem tudo con- vém"; sim, ele até diz, no mesmo lugar: "E absolutamente uma falha entre vocês o fato de terem demandas." (1 Co 6.7.) Ainda assim, esse mal menor é tolerado por causa do mal maior, para que não se vinguem a si mesmas e uma não use de violência contra a outra, retribuindo o mal com o mal ou recla- mando seus bens. Contudo, essas pessoas não entrarão no reino dos céus, a não ser que mudem para melhor e deixem do que é permitido para seguir o que convém. Porque precisa ser extinta essa atitude de procurar a vantagem própria.

As pessoas do segundo tipo são as que não procuram vingança, as que inclusive estão dispostas (segundo o evangelho") a dar também a túnica a quem Ihes tira o manto, e não resistem a maldade alguma. Essas pessoas são filhos de Deus, irmãos de Cristo, herdeiros dos bens futuros. Por isso as Es- crituras as chamam de órfãos, pupilos, viúvas e pobres, de quem Deus quer ser chamado pai e juizl4, porque não vingam a si mesmas. Sim, se os gover-

12 Sc. ;i ;iittciri<iade I3 ('1'. Mt 5.40. 14 1'1'. SI h X . 5 .

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iiantes querem vingar em seu favor, elas o u não o desejam e procuram, o u iipenas o permitem; ou , se são perfeitissimas, elas o proíbem e impedem, an- ics dispostas a perder também outras coisas.

Se dizes: "Essas pessoas são pouquissimas, e quem pode ficar neste iiiundo, agindo assim?", respondo: não é nenhuma novidade hoje que pou- cos são salvos, e que é estreita a porta que leva para a vida, e que poucos a ciicontram's. E se ninguém o fizer, como ficará a Escritura, que chama os po- bres, órfãos e pupilos de povo de Cristo? Por isso essas pessoas lamentam iiiais o pecado dos que as ofendem d o que o próprio dano e ofensa. E prefe- reiii agir de modo a chamar aqueles de volta d o pecado d o que vingar as inju- rias d e que são vitimas. Por esta razão, despem-se das formas de sua justiça e vestem as formas daqueles, orando pelos que as perseguem, falando bem dos qiie falam mal, fazendo o bem aos que Ihes fazem mal, prontas a sofrer e sa- lisfazer as penas em favor dos seus próprios inimigos, para que sejam salvos. Itsse é o Evangelho e exemplo d e Cristoi6.

As pessoas d o terceiro tipo são as que, na atitude, são como as d o segun- do tipo, já mencionadas, mas no efeito são diferentes. São as que não recla- riiam de volta o que é seu nem desejam punição por procurarem o que é seu; através dessa punição e restituição d o que é seu elas procuram a melhora da- quele que roubou o u ofendeu e que, segundo vêem, não pode ser emendado c m punição. Essas pessoas são chamadas de zelosas e louvadas nas Escritu- ras. Mas isso não deve tentar senão quem é perfeito e muitissimo exercitado iio segundo grau já falado, para que não tome a fúria por zelo e não venha a bcr convencido de que aquilo que crê fazer por amor a justiça foi, antes, feito por ira e impaciência. Porque a ira muito se assemelha a o zelo, e a impaciên- cia ao amor d a justiça, de sorte que não podem ser satisfatoriamente distin- guidos senão por pessoas muitíssimo espirituais. Obra desta espécie fez Cris- to (conforme está dito em J o 2.14~s.) quando, tendo feito açoites, expulsou vendedores e compradores d o templo, bem como Paulo, quando disse: "('om vara virei até vocês", etc. [ l C o 4.21.1

Fim.

Um Sermão sobre a Contemplação do Santo Sofrimento de Cristo1

Desde os tempos dos primeiros cristãos, o sofrimento e a morte de Jesus consti- tuem, juntamente com a ressurreição, o centro da fé cristã. O apóstolo Paulo chamou toda a sua pregação de "a palavra da cruz" (1 Co 1.18), assegurando aos cristãos de Corinto que decidiu "nada saber eiitre vocês, senão a Jesus Cristo, e este crucificado" (1 C0 2.2).

Na Idade Média, a contemplação de Jesus em seu sofrimento fisico e psiquico constituia, para cristãos como Bernardo de Claraval" os franciscanos3 e os misticos4, uma das principais fontes de fortalecimento da fé. Por volta do fim da Idade Média, essa contemplação havia se tornado o mais popular exercício de devoção cristã. Na- quela época, em que se desenvolveu também a prática da via crucis, a vida humana es- tava exposta, em grau bem maior do que hoje, a muitos perigos, desde catástrofes na- turais até a "morte negra", a peste bubônica, bem como a violência das guerras. Em seu sofrimento, os cristãos identificavam-se facilmente com Jesus, o sofredor por ex- celência, impiedosamente crucificado e morto. É nele que encontravam, além de con- solo em sua miséria e força para enfrentar as adversidades da vida, o germe da espe- rança de superação de todos os males. Sobretudo a devoção moderna, uma forma po- pular do cristianismo, cultivava tal fé meditativa, profunda e pessoal. Enquanto na teologia escolástica um pequeno grupo de eruditos exercitava seu raciocínio, a grande massa do povo, inclusive os mais humildes e pobres, encontrou na contemplação a oportunidade de externa suas emoçdes e seus afetos.

No entanto, na época de Lutero as práticas de contemplação do sofrimento de Cristo haviam se multiplicado, tornando-se, muitas vezes, bastante superficiais. Lute- ro, por sua vez, após ter redescoberto o verdadeiro sentido da cruz, elaborou sua teo- logia da cruz em diversos escritos. Na capa de alguns deles aparecem cenas da história da paixão, como no caso do presente sermão, que traz uma gravura do Crucificado. Lutero o redigiu na época da Paixão de 1519. Em 13 de março, comunicara a seu ami-

I 5 Ci'. Mt 7.14. I 6 <'i. Mi 5.44.

1 Eyn Serrnon von der Befrochrung des heyligeii Iqvdens Chrisii, WA 2,136-42. Traducão de Waltei O. Schlupp.

2 1090-1 153, borgonhês, fundador da abadia de Claraval, centro da expansão da Ordem dos Cistercienses. cuia meta era o discioulada de Cristo numa vida aiiostólica em ascese e oo-

3 ~emb;as da Ordem dos ~ rade i~enores (OFM), fundada par Francisco de Assis (1181- i226), uma das ordens mendicantes medievais cujos membros viviam, em tese, da mendi- cância.

4 Cristãos que buscavam a união direta com Deus ("união mistica") na contempla~ão, medi- tafão, iiituicaa e êxtase.

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~o Espaiatino' que pretendia escrever "uma meditaçâo sobre a paixão de Cristo"" No inicio de abril, a impressão estava concluida.

No sermâo7, Lutero mostra a maneira adequada de contemplar o sofrimento de 'risto: este é sacramento na medida em que leva a pessoa ao reconhecimento de si

iiicsina como pecadora e à libertação dos pecados por Cristo, e é exemplo na medida erii que orienta o cristão nas inúmeras tentaçdes do dia-a-dia. Lutero fala como verda- dciro pastor, guia espiritual do povo cristâo. O sermão foi amplamente divulgado e tornou-se muito popular. Até 1524, houve nada menos do que 23 reediçdes, publica- das em diversas cidades da Alemanha e da Suiça, mais uma tradução latina. E um indi- cio muito claro de que Lutero veio ao encontro de profundos anseios existenciais das pçssoas de seu tempo.

Joachim Fischer

1. Algumas pessoas meditam o sofrimento de Cristo indignando-se con- ira os judeus, cantando a canção do pobre Judass e censurando-o pelo que k/,, e se limitam a isso, da mesma forma como estão acostumadas a acusar iliitras pessoas e a condenar e denegrir seus adversários. Isto com certeza não sig~iifica meditar o sofrimento de Cristo, e sim a maldade de Judas e dos ju- ~ C L I S .

2. Alguns descreveram diversos frutos e proveitos oriundos da contem- plac.ão do sofrimento de Cristo. Sobre isso circula por ai um dito enganoso, ;iirihoido a Sto. Albertoy, segundo o qual seria melhor meditar uma vez su- pcrficialmente o sofrimento de Cristo do que jejuar um ano inteiro, orar o Siiliério diariamente, etc. Existem pessoas que vão cegamente atrás disso e ;ir.:iham perdendo, assim, o verdadeiro fruto do sofrimento de Cristo, pois I>iiscam seu próprio interesse. Por isso, ficam carregando consigo figurinhas

5 ('1. p. 35, nota 3 e p. 233, nota 2. 0 W A Hr 1.359,Zhs. 7 Oiigiiialmrnte uma prédica ou alocusão; mais tarde chamou-se dc "sermão" também um

riirlio cscrito e impresso. H I,iitrio iefcre-se A canção O du ormer Judos, wos hosl du geion (Ó pobre Judas, que foi que

li,cvte). Allicilo Mayrio ( I 193/1200-1280), dominicano alemão. lecionou em vários lugares na Ale- i i i i i t i l i ; i (eiitrc i,iiiros, <'<iltltria) c em Paris. ocupou diversos cargos em sua propria ordcm c ii:i 1yrcj;i. I<,i o ~iririieiii> yr;tii<le le6logo a aproveitar amplamente a f i losofi~ [Ir Aristórcle\ litinit ml!ct~I;ii seii ~>cii$:iirieiiiii ie~>lOgir~i.

e livrinhos, cartas10 e cruzes. Algumas pessoas chegam ao ponto de acreditar que, com isso, estão se protegendo contra inundações, assaltos, incêndios e toda sorte de perigos, e que, assim, o sofrimento de Cristo, contrariando seu próprio caráter e natureza, devesse proporcionar-lhes uma vida sem sofri- mento.

3. Essas pessoas têm compaixão por Cristo, lamentando-o e pranteando- o como um homem inocente. Foi o que fizeram as mulheres que, de Jerusa- lém, seguiram atrás de Cristo e foram repreendidas por ele no sentido de que chorassem por si mesmas e por seus filhosll. Desse gênero são aqueles que,

1 em meio à meditação da paixão, passam a divagar, acrescentando muita coi- sa a respeito da despedida de Cristo em Betânia e das dores da virgem Maria, o que também não Ihes adianta muito. É por isso que a pregação da paixão se prolonga por tantas horas, sabe Deus se é mais para dormir ou para ficar acordado. Desse bando fazem parte também aqueles que aprenderam quão grande proveito traria a sagrada missa e, em sua ingenuidade, julgam que é suficiente ouvir a missa. Somos induzidos a essa atitude por afirmações de di- versos mestres no sentido de que a missa seria agradável a Deus opere opera- ti, non opere operantis'< por si própria, também sem nosso mérito e dignida- de, como se isso bastasse. Na verdade, porém, a missa não foi instituída em função de sua própria dignidade, mas para tornar dignos a nós, e principal- mente para meditar o sofrimento de Cristo. Quando isso não ocorre, transforma-se a missa em obra corporal e infriitifera, por melhor que ela seja ein si mesma. Pois de que te adianta que Deus seja Deus, se não for um Deus para ti? De que adianta o fato de que comer e beber em si seja sadio e benéfi- co, se não for sadio para ti? E é de se temer que com muitas missas nada de

! melhor se conseguirá, caso não se buscar nelas seu verdadeiro fruto. 4. O sofrimento de Cristo é meditado autenticamente por aquelas pes-

soas que o encaram de formal tal, que se assustam sinceramente por causa de- le e sua consciência logo cai em desânimo. O susto deve provir do fato de ve- res a severa ira e o inexorável rigor de Deus para com o pecado e os pecado- res, tanto é que nem a seu Único dileto Filho ele quis dar por resgatados os pe- cadores, a menos que o Filho por eles fizesse uma penitência tão grave quan- to aquela da qual ele diz através de Isaias: "Eu o feri por causa do pecado do meu povo." (1s 53.5.) O que será dos pecadores, se até o dileto Filho é ferido assim? Só pode tratar-se de uma gravidade indizível, insuportável, para que uma pessoa tão grande e incomensurável se exponha á mesma e sofra e morra por isso. E se pensares bem a fundo que é o próprio Filho de Deus, a eterna sabedoria do Pai, quem sofre, não deixarás de ficar assustado, e quanto mais profunda for tua reflexão, tanto mais assustado haverás de ficar.

10 Cartas impressas, com xilogravuras, oraçdes, bêncáos, que eram carregadas como a m u l e ~ tos.

I I Cf. Lc 23.27s. 12 L.iIeralniente: por causa daquilo que foi feito, não por causa daquele que o faz. Lutero

i i-efcre-se a urna conccpsão que vê o valor e o efeito da missa unicamente na sua realização coiiio 1;iI. ~ e n i conridcrar n ré, pela qual o sacramento é rccrbido.

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I1 I>ie Chrislus leyden an yhn lassen vorloren werden, no original. I 4 Ai> 1.7. Pode-se pensar tambem em Jr 47.2 ("Todos os moradores da terra se

1;iinentarão.") e em Mt 24.30 ("Todos os povos da terra se lamentarão."). I 5 'ltuta-se de um canto litúrgico.

5 . É preciso que graves profundamente em teu coração e que não duvi- des de forma alguma que quem tortura Cristo dessa forma és tu mesmo, pois teus pecados são com certeza responsáveis por seu sofrimento. Assim São Pe- dro, qual trovão, atingiu e assustou os judeus ao dizer a todos eles: "Vocês o crucificaram", etc. (At 2.37.) Por isso, ao vires os pregos atravessarem as mãos de Cristo, podes ter certeza de que são obra tua; ao vires a sua coroa de espinhos, podes crer que são os teus maus pensamentos; e assim por diante.

6. Vê, pois, que, quando um espinho aguilhoa a Cristo, seria justo que te aguilhoassem mais de cem mil espinhos; mais ainda: eles deveriam espetar-te desse jeito e até pior por toda a eternidade. Quando um prego atravessa tor- turantemente as mãos ou os pés de Cristo, tu é que deverias sofrer eternamen- te com pregos tais e até piores. É o que também sucederá aqueles que fazem com que o sofrimento de Cristo tenha sido em vão para eles". Pois esse sério cspelho, que é Cristo, não mente nem brinca; o que ele anuncia será cumpri- do em sua totalidade.

7. São Bernardo ficou tão assustado com isso que disse: "Eu julgava es- tar seguro, nada sabia da sentença eterna sobre mim pronunciada no céu, até que vi que o Filho unigênito de Deus se compadece de mim, se apresenta e se submete a mesma sentença por mim. Ai de mim, se a coisa é tão séria, não é Iiora de brincar nem de estar seguro." Assim, as mulheres Cristo ordenou: "Não chorem por mim; chorem antes por vocês mesmas e por seus filhos" [Lc 23.281 e acrescentou a razão: "Porque, se em lenho verde fazem isto, que será do lenho seco?" [Lc 23.31.1 É como se ele quisesse dizer: "Vejam no meu martírio o que vocês mereceriam e o que lhes sucederá." Pois neste caso i. verdade que se bate num cachorrinho para assustar o cauzarrão. Neste sen- tido também disse o profeta: "Por causa dele lamentarão a si mesmos todos os povos da terra."l4Ele não diz que lamentarão a Cristo, e sim que lamenta- rão a si mesmos por causa dele. Da mesma forma se assustaram também aquelas pessoas em At 2.37, como dissemos acima, ao indagarem aos apósto-

forme a sabedoria e a vontade de Deus; pois ela quer ser livre e não presa. En- tão a pessoa fica de consciência aflita e se desagrada de si mesma em sua vida. É bem possível que ela nem saiba que o sofrimento de Cristo é que está efe- tuando isso nela; talvez não reflita sobre ele. Da mesma forma, outras pes-

! soas conccntram-se firmemente no sofrimento de Cristo e, mesmo assim, não

pensamentos profundos e de levar muito a sério os pecados. Atenta para a se- guinte comparação: suponhamos que um malfeitor fosse julgado por ter es- trangulado o filho de um principe ou rei, e que tu estivesses completamente seguro, que cantasses e brincasses como se fosses completamente inocente, até que te torturassem terrivelmente e provassem que tu terias levado o mal- feitor a praticar o crime. Então o mundo ficaria pequeno demais para ti, principalmente se a consciência também ainda te abandonasse. Pois bem: ao meditares o sofrimento de Cristo, deves ficar mais angustiado ainda. Pois os criminosos, os judeus, a quem Deus julgou e expulsou, foram os servidores do teu pecado. Na verdade, tu és aquele que, através de seu pecado, estrangu- lou e crucificou o Filho de Deus, como dissemos.

9. Tem razão para temer quem se sentir tão endurecido e empedernido a ponto de não se assustar com o sofrimento de Cristo nem ser levado ao co- nhecimento de si mesmo. Pois não há como alterar a exigência de te confor- mares com a imagem e o sofrimento de Cristo, quer nesta vida, quer no infer- no; pelo menos quando morreres e estiveres no purgatório haverás de te as- sustar e de tremer, de estremecer e de sentir tudo o que Cristo sofre na cruz. Agora, é cruel ficar esperando por isso no leito de morte. Por esta razão, de- ves pedir a Deus que abrande o teu coração e permita que medites o sofrimen- to de Cristo de modo frutífero. Pois nem é possível que o sofrimento de Cris- to seja meditado com profundidade por nós mesmos, a menos que Deus o derrame em nosso coração. Nem esta contemplação nem qualquer outra ins- trução te são dadas para que tomes de imediato a iniciativa de levar a cabo tal contemplação. Pelo contrário: deves, primeiramente, buscar e pedir a graça de Deus, para que a realizes através de sua graça e não por ti mesmo. É por is- so que aquelas pessoas acima mencionadas não lidam adequadamente com o sofrimento de Cristo, pois não invocam a Deus para tal, mas, por sua capaci- dade própria, inventaram modos próprios de fazê-lo, tratando o sofrimento de Cristo de forma totalmente humana e infrutífera.

10s: "Que faremos, irmãos?" Da mesma forma canta a Igreja: "Eu o reme- 10. Quanto a quem considerar o sofrimento de Deus por um dia, por I

iiiorarei com afinco e assim desmaiará a minha alma."lr I uma hora ou mesmo apenas por um quarto de hora, afirmamos abertamente

8. Neste ponto é preciso exercitar-se muito bem, pois todo o proveito do i que procede melhor do que se jejuar um ano inteiro, orar o Saltério todos os

sofi-imento de Cristo depende de a pessoa chegar ao conhecimento de si mes- dias ou inesmo ouvir uma centena de missas; pois essa meditação transforma

iii:~. assustar-se consigo mesma e ficar quebrantada. E se a pessoa não chegar a pessoa em seu ser quase da mesma forma como o Batismo opera o renasci- I

;i isso, o sofrimento de Cristo ainda não lhe terá trazido proveito da forma mento. É aqui que o sofrimento de Cristo efetua sua obra autêntica, natural e

dcvida. Pois a obra própria e natural do sofrimento de Cristo consiste em le- nobre, estrangula o velho ser humano, espanta todo prazer, alegria e confian-

v:ii o ser humano a conformidade com Cristo. Assim como Cristo é martiri- ça que se possa ter em relação a criaturas, assim como Cristo foi abandonado

z;iil« fisica e psiquicamente de forma terrível em nossos pecados, também por todos, até mesmo por Deus.

IIOS, a sua semelhança, devemos ser martirizados na consciência pelos nossos 11. Visto que semelhante obra não está em nossas mãos, sucede que, as

pcc;idos. Também aqui não se trata de fazer muitas palavras, mas de nutrir vezes, a pedimos mas não a recebemos na mesma hora; mesmo assim, não se deve desanimar ou desistir. As vezes, ela vem quando nem a pedimos, con-

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chegam ao conhecimento de si mesmas dessa maneira. Naquelas pessoas, o sofrimento de Cristo é oculto e verdadeiro; nestas, é aparente e enganoso. É assim que Deus troca muitas vezes os papéis, de modo que não meditam o so- frimento aqueles que o meditam, que ouvem a missa aqueles que não a ou- vem e que não a ouvem aqueles que a ouvem.

12. Até aqui falamos sobre a semana da Paixão e a celebração apropria- da da sexta-feira santa. Chegamos agora ao dia da Páscoa e a ressurreição de Cristo. Quando a pessoa se conscientizou de seu pecado e ficou profunda- mente assustada consigo mesma, é preciso cuidar que os pecados não fiquem desse jeito na consciência. Sem dúvida, eles causariam puro desespero. Assim como se manifestaram e foram reconhecidos por intermédio de Cristo, é pre- ciso derramá-los novamente sobre ele e aliviar a consciência. Toma cuidado, portanto, para não agires como as pessoas erradas que ficam se mordendo e \e consumindo com seus pecados no coração e procuram se safar através de boas obras ou de satisfação, correndo para lá e para cáia, ou também por in- termédio de indulgências, para poder se livrar do pecado, o que é impossível. Infelizmente, essa confiança errônea na satisfação e nas romarias está ampla- rnente difundida.

13. Tiras o teu pecado de cima de ti e o atiras para cima de Cristo crendo firmemente que suas chagas e sofrimentos são teus pecados e que ele os carre- ga e paga por eles, como diz 1s 53.6: "Deus fez cair sobre ele o pecado de nós iodos"; e São Pedro: "Ele carregou em seu corpo, sobre o madeiro, os nos- sos pecados" [ l Pe 2.241; e S. Paulo: "Deus o fez um pecador por nós, para que fôssemos justificados através dele." [2 Co 5.21.1 Em passagens como es- ias e em outras deves confiar com toda a ousadia; quanto mais te atormentar tua consciência, tanto mais deves confiar nelas. Pois se, ao invés de fazer is- \o, tiveres a presunção de tranqüilizá-la através de tua contrição e satisfação, jamais terás sossego e, por fim, acabarás desesperando assim mesmo. Pois se pcrinitimos que nossos pecados ajam em nossa consciência, se permitimos qiie fiquem conosco e se os enxergamos em nosso coração, eles são fortes de- iiiais para nós e vivem eternamente. Mas se vemos que estão sobre Cristo e qiie ele os vence através de sua ressurreição, e se cremos nisso com ousadia, clcs estão mortos e foram destruidos; pois sobre Cristo eles não puderam per- iiianecer, foram tragados por sua ressurreição. E agora não mais vês quais- quer chagas e dores nele, isto é, sinais de pecado. Assim, S. Paulo diz que í 'risto "morreu por causa de nosso pecado e ressuscitou por causa de nossa iiistiça" [Rm 4.25.1 Isto é: em seu sofrimento ele torna manifesto o nosso pe- cado e, assim, o estrangula, mas através da sua ressurreição ele nos torna jus- tos e livres de todos os pecados, desde que creiamos nisso.

14. Se, entretanto, não consegues crer, deves pedir a Deus por isto, como ~lissemos acima, pois também o crer está exclusivamente nas mãos de Deus, e clc iambém o dará, ora abertamente, ora ocultamente, como dissemos a res- peito do sofrimento. Mas tu podes animar-te para isso: em primeiro lugar,

I6 Lutero pensa em romarias para determinados santuários.

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17 Em Jo 6.44 Jesus diz que as pessoas são trazidas para ele por Deus Pai; em Jo 14.6, diz que "ningukm vem ao Pai'' senâa por ele.

18 Cf. Lc 22.44.

i

não deves mais contemplar o sofrimento de Cristo (pois agora este já efetuou sua obra e te assustou); deves ir em frente e contemplar seu amável coração, considerando quanto amor ele tem para contigo, amor que o obriga a carre- gar o fardo tão pesado de tua consciência e teu pecado. Assim teu coração fi- cará doce para com ele e a confiança da fé será fortalecida. Continuando, passa então pelo coração de Cristo para chegar ao coração de Deus, e vê que Cristo não poderia ter te demonstrado esse amor caso Deus, a quem Cristo obedece com seu amor para contigo, não o tivesse querido em amor eterno. Assim acharás o coração paterno divino e bom e, como Cristo diz, dessa ma- neira serás atraído por Cristo para o Paii'. Então passarás a entender as pala- vras de Cristo: "Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito", etc. [Jo 3.16.1 E isto o que significa reconhecer a Deus de forma apropriada: apreendê-lo não pelo seu poder ou por sua sabedoria (que são as- sustadores), mas pela bondade e pelo amor. Então a fé e a confiança podem subsistir e então a pessoa é verdadeiramente renascida em Deus.

15. Quando, pois, teu coração estiver firmado em Cristo e tiveres te tor- nado inimigo dos pecados - por amor e não por medo do castigo -, então o sofrimento de Cristo também deverá constituir-se em exemplo para toda a tua vida. Agora queremos refletir sobre ele de outro modo ainda; pois até aqui tratamos dele como um sacramento que atua em nós e que experimenta-

! mos passivamente. Agora o trataremos como algo que também nós efetua- mos, a saber, da seguinte maneira:

Quando fores incomodado por sofrimentos ou por uma doença, reflete quão pouco isto é em comparação com a coroa de espinhos e os pregos de Cristo.

Quando tiveres que fazer ou deixar de fazer algo que te contraria, pensa como Cristo, amarrado e preso, é levado de lá para cá.

Se és atribulado pela soberba, repara o quanto teu Senhor é debochado e desprezado junto com os malfeitores.

Se a incastidade e a concupiscência te atacam, lembra-te quão dolorosa- mente a tenra carne de Cristo foi açoitada, golpeada e ferida.

Se ódio, inveja ou sentimento de vingança te atribulam, pensa com quantas lágrimas e clamores Cristo orou por ti e por todos os seus inimigos, quando teria sido cabível que ele se vingasse.

Se tristeza ou outras adversidades afligem teu corpo ou teu espírito, for- talece o teu coração e diz: ora, por que eu também não poderia passar por uma pequena tristeza, já que, no Getsêmani, meu Senhor suou sangue, de tanto medo e tristeza's? Servo indolente e infame seria quem quisesse ficar na cama enquanto seu senhor tem que lutar na agonia da morte.

Como vês, em Cristo se podem encontrar força e alívio contra todos os vícios e desvirtudes. E nisto que consiste a verdadeira meditação do sofrimen-

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t o de Cristo, são estes os frutos de seu sofrimento. Quem nele se exercita des- sa forma procede melhor do que se ficasse ouvindo toda a pregaçâo d a pai- xão o u lesse todas as missas. Não que as missas não sejam boas; é que sem es- sa meditação e sem esse exercício elas de nada adiantam.

Cristãos autênticos são os que trazem a vida e o nome de Cristo para dentro de sua vida da forma descrita por S. Paulo: "Os que pertencem a Cris- t o crucificaram sua carne, com todas as suas concupiscências, juntamente. com Cristo." lG15.24.j Pois o sofrimento de Cristo não deve ser tratado com palavras e aparências, mas com a vida e com veracidade. Assim nos exorta São Paulo: "Pensem naquele que sofreu tamanha oposição das pessoas más, para que vocês sejam fortalecidos e suas mentes não desanimem." [Hb 12.3.1 E São Pedro: "Assim como Cristo sofreu em seu corpo, vocês devem armar- se e fortalecer-se com tal meditação ." [I Pe 4.1 .] Porém essa contemplação caiu em desuso e se tornou rara, embora as epístolas de S. Paulo e S. Pedro estejam cheias dela. Nós transformamos a essência numa aparência e pinta- mos a meditacão do sofrimento de Cristo apenas nas folhas e nas paredes.

Debate e Defesa do Fr. Martinho Lutero contra as Acusações do Dr. João ~ c k '

Ao final da entrevista com Miltitzl (4 e 5 de janeiro de 1519), Lutero prometera não publicar mais nada sobre a questão das indulgências. desde que seus adversários não publicassem mais nada contra ele.

Entrou então em cena o dr. João Eck3, principal te6logo da Universidade de In- golstadt e renomado debatedor. Eck fora um dos mimeiros a atacar. no início de 1518, as 95 teses de Lutero, numa obra (não impressa) intitulada ~ b e l i s ~ o s , na qual já chamara Lutero de hussita fanático e de herege. Lutero respondeu de forma ieualmen- te violenta em seus Asteriscos4.

- André Karlstadt5, na época deão da Faculdade de Teologia de Wittenberg e cole-

ga de Lutero, publicou, sem o conhecimento deste, 406 teses contra os Obeliscos de Eck (maio de 1518), por sentir que um membro de sua faculdade fora atacado. Teve inicio. assim. uma polêiiii:aenrrr Karlrtadi c t c h çm qiic. 3 cerra dltiira. I uiíro \cr\,iu de pa.-ifi-ador. mas \rm rcruliado. 0, dois decidiraiii crtião rc<ol\cr sua, .li\crrSricia, - sobre a graça e o livre arbítrio num debate público.

Em outubro de 1518, em Augsburgo, Lutero conversou com Eck. O diálogo tra- vado na ocasião deve ser considerado amistoso e tratou, basicamente, de questdes re- lacionadas com o debate que seria travado entre Eck e Karlstadt.

I Disputalio ef ercwi7lio f Morfin~ Luthh~r odversur criminolione> d. Iohannis Ecii, WA 2,158-61. Traduqão de Walter O. Schlupp.

2 Carlos uon Miltitz. 1490-1539. Nobre saxão. Núncio de Leao X. Foi enviado pelo r>aDa Da- . . . ra entendimentos com Lutero, sem conseguir superar o conflito.

3 14861543. Professor na Universidade de Ingolstadt. Adversano aguerrido de Lutero. Ata- cou Lutero em Obelisci. No debate entre Karlstadt e Eck em Leipùg (1519), Lutero foi o adversário real de Eck. e este obteve a bula Emurge, Dominecontra Lutero (1520). Enchiri- dion adversus Lurherum foi o documento mais popular por ele escrito.

4 Aslerisci Lurheri odversus Obeliscos Eccii (''Asteriscos de Lutero contra os Obeliscos de Eck"), WA 1,278-314.

5 Andrb Badenstein, ca. 1480-1541. natural de Karlstadt/Meno, doutor em Teologia e tomis- ta, foi professor e colega de Lutero na Universidade de Wittenberg. Inicialmente não pade acompanhar as descobertas reformatórias de Lutera. Depois tornou-se companheiro de lu- tas do reformador. Em 1519, ambos participaram do Debate de Leipzig. No entanto, em 1521 surgem as primeiras diferenças entre ambos, quando Karlsfadt procurou concretizar a Reforma, abolindo a missa e declarando eliminado o celibato sacerdotal. Diferenqas na compreensão da Eucaristia e do Batismo aprafundaram essas diferenças ainda mais. Karl- stadt renunciou a sua cátedra e tornou-se pastor em Orlamiinde. Em setembro de 1524, Lu- tero conseguiu que ele fosse expulso dessa localidade. Depois de breve estada em Estrasbur- go e de muitas andanw, enfrentando dificuldades para manter-se, Karlstadt recebeu aço- Ihida em Basileia. Ali faleceu no Natal de 1541. vitimado pela peste.

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Ainda antes que a Universidade de Leipzig, o local escolhido, concordasse em se- diar o debate, Eck publicou, a 29 de dezembro de 1518, 12 teses, enviando cópia a Wittenberg. A primeira dessas teses estava dirigida contra a primeira das 95 teses de Lutero. Também as demais nada tinham a ver com as auestdes que pretendia debater com Karlstadt. Estavam todas relacionadas com afirmasdes de-Lutero, muitas delas distorcidas.

Eck a:redita\a ter cn:ontradu uin poniu e\pc;ialniriitr \uliicra~el tiai t.;r/ll~cu- (.ar.s do debarr sobre o valor du.s~n<lulgênriusde Lutcro (rua dcic,:i da, 95 le,e,). ç$re arirmara que nos dia\ de Gregório hladno6a Igreja Rumlina ainda n3i1 iinhd LI pri- iiiado bohrr a . Igreja$ da Greçia'. C ~ n r r a c\,a ,elitcn;a. k k iormul,>u \ua I Z ? I C I C . \ i - - ~

sando fazer Lutero condenar-se como herege com suas próprias palavras: "e falso afirmar que antes dos tempos de Silvestres a Igreja Romana ainda não tenha tido o primado sobre as demais ~grejas; afirmamos, pelo contrário, que aquele que possuía a sé e a fé de S. Pedro sempre foi considerado o sucessor de Pedro e o vigário-geral de Cristo." Na verdade. Lutero não fizera a afirmacão a ele atribuida. mas mesmo assim ela correspondia a suas convicçdes.

Ao receber as teses de Eck, Lutero considerou-se atacado e liberado da promessa de não escrever obras polêmicas, respondendo com 12 teses contra as de Eck. Salien- tou aue nenhuma das 12 teses de Eck tratava de "livre arbítrio e rraca", o tema da cont~ovérsia com Karlstadt. Na 12: tese, indo além da tese de Eck;L"tero fez a mais ousada afirmação contra a autoridade do papa já ouvida naquele século: "Demons- tram que a Igreja Romana é superior a todas as outras a partir dos mais frios decretos dos pontífices romanos surgidos nos últimos 400 anos; contra esses, porém, estão as iiist8rias comprovadas de 1200 anos, o texto da Escritura Divina e o decreto do Con- cilio de Nicéia. de todos o mais sagrado." Lutero não está querendo afirmar que o pa- pado só tenhasurgido no século XII. O que ele afirma é quea codificação dosdecretos papais, desde Gregório IX (1227-1241), possibilitou aos papas a imposisão de suas ~iretensdes, especialmente na Alemanha. Mesmo assim, deve-se concordar que a for- iiiulasão de sua tese é ambígua.

Os amigos de Lutero assustaram-se com as formulaçdes e temeram por sua vida. I.iitero acalmou-os, dizendo que se tivesse que morrer, morreria. A 19 de fevereiro de 1519, Eck escrevia a Lutero, dizendo que esperava poder debater com ele em Leipzig, i6 que era ele o autor das heresias e não Karlstadt. Pouco depois, Eck publicaria suas leses, acrescidas de mais uma, contada como a 78, de modo que a ultima, a mais polê- mica, citada acima, passou a ser a 13:. Deu-lhes o titulo "Teses contra Lutero, ares- pciio das quais se há de debater em Leipzig".

Como resposta, Lutero igualmente acrescentou mais uma tese às suas. Também neste caso, a 12: passou a ser a 13:. Publicou-as, então, em 16 de maio de 1519, sob o titulo Debate e defesa do fr. Martinho Lutero contra ar acusações do dr. João Eck. Naauele momento ainda não tinha recebido permissão do duque Jorge da Sêrônia9 ",ar; participar do debate, até então só combinado entre Eck e Karlstadt. Mesmo as- sim preparou-se durante meses, intensivamente, com o objetivo de defender suas te- ses, sobretudo a 138, estudando a história da Igreja e do direito canônico. Resumiu

h Gregório I. Foi cagnominado "o Grande". Exerceu o papado de 590 a 6C4. Versado em li- teratura patristica. Conhecida como orador sacro e autor de hinos religiosos.

7 <:r. Explico~des do debore sobre o valor das indulgências, p. 116. H Bispo de Roma de 314 a 335. Exerceu suas fun~des na época em que Constantino era impe-

rador. Nesse perioda realizou-se o Concilio de Nicéia, do qual ntio participou. Y ('I. p. 426, nota 7.

suas pesquisas em torno da questão da autoridade papal no tratado intitulado Cornen- tório de Lutero sobre a 13: tese a respeito do poder do papa'o, que bem poderia ter re- cebido o titulo "Origem do primado papal". O escrito foi impresso para poder ser di- vulgado caso Lutero não pudesse estar presente em Leipzig. Após o Debate de Leip- zig, Lutero providenciou uma segunda edição. Eck publicaria em resposta, no ano de 1520, sua obra Do primado de Pedro".

Uma análise do Cornentório revela a espantosa capacidade de Lutero de, em pou- cos meses, fazer uma pesquisa e apresentar seus resultados em forma de livro; para is- so. um oesauisador comum orecisaria de anos de trabalho. Nesta obra. Lutero analisa . . . o problema como o faria um pesquisador moderno. Revela não só seu inegável conhe- cimento da Bíblia. mas também dominio dos vais da Inreia e do direito canônico. as- - - suntos estes que não eram de sua área.

Comparada com a literatura medieval que se voltava wntra o papado, a argu- mentação de Lutero no Cornentório não apresenta novidade. Mesmo a suposição de que o anticristo domina a Cúria pode ser encontrada entre os cátaros, valdenses e dis- cípulos de W y ~ l i f ' ~ . Novidade é apenas a comprovação do abuso feito com a Bíblia para provar ar preien*Ocs papais c a afirmarão de que o priniado papil, em icriiios ju- ridicos. \h teria >urgido sob o goierno de Con\taiiriiio 1V (669-hR3). Noviddrle c, alem disso, a afirmação de que a Igreja grega e as demais Igrejas orientais jamais teriam es- tado sob o dominio do papa. Em sentido positivo, o escrito de Lutero traz uma novi- dade teológica, que não encontramos nos pensadores medievais. Pela primeira vez, Lutero faz a constatação pública: "Onde a palavra de Deus é pregada e crida, ali está a Igreja; por isso ela é designada de reino da fé, porque seu rei não é visto, mas é obje- to da fé. Eles. no entanto. fazem dela um reino de coisas visíveis. ao darem-lhe um chefe visível." "Não sei se a fé cristã pode suportar que se estabeleça na terra outra ca- beca universal da lareia além de Cristo." Aaui temos um novo conceito eclesiolbeico. - . - . diferente do dos movimentos medievais. Lutero já não consegue acompanhar a teoria papal e, menos ainda, a eclesiologia papal. Mesmo assim, ainda se esforfa, ao longo do texto, para provar que a existência do papado pode ser conciliada com suas coloca- çdes. No fundo, porém, está convicto de que o papado é o anticristo.

A 27 de junho, um dia antes da eleição de Carlos V", imperador do Sacro Impé-

Pp. 267s De primoru perri. Jogo Wyclif, ca. 132@31/12/1384, filósofo e teólogo em Oxford, atacou em uma série de exigências reformistas as bases dogmáticas da Igreja Romana. Exigiu a independência da autoridade secular do poder espiritual, afirmando, além disso, que as propriedades da Igre- ja deveriam ser propriedades do Estado, sendo a Bíblia o único fundamento da Igreja, a qual, como comunidade dos eleitos, tem apenas a Cristo como seu cabeça. Wyclif também atacou a doutrina da transubstanciação.

13 24/2/1500-21/9/1558, imperador alemão. Filho de Filipe, o Belo (filho de Maximiliano I), e de Joana, a Louca (filha de Fernando e Isabel de Espanha). tornou-se, ainda jovem, her- deiro ~resuntiva dos territórios de Habsburno (Austria. Bur~úndia. Boêmia e Hunzria). - . . , ~~ ~ - - ~ ~ ~ " ~ ~ ~ ~ , . dos reinos esoanhhis. com Niooles. Sicilia. e da América esnanhola. Em 1516. assiimiii n . . - ~~~~~~ ~ ~ r ~ ~ ~ ~ ~ ~ - ~ ~ ~ ~ ~ . ~ . , . trono espanhol, e, em 1519, os principes-eleitores, corrompidos pelo dinheiro dos Fugger, elegeram-na imperador alemao. Carlos V entendeu-se coma imperador universal, respon- sivel pela Igreja, a qual deveria defender de todos os inimigos, internos e externos. A partir dessa concepção, viu-se em constantes confrontos com Francisco I , de Fran~a, com 6s pa- pas, com os turcos e com os partidos que buscavam uma reforma da Igreja. No final de sua vida, viu que a idéia do sacro império por ele defendida n&o tinha mais futuro e retirou-se, em 1557. para o convento de San Yuste. na Estremadura.

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iio Romano Germânico, começou o Debate de Leipzig entre Eck e Karlstadt. De 4 a i4 de iulho debateram Eck e Lutero. O tema crucial do debate foi a orinem do nnder -~ ~ ~ r - -

<li> papado. Eck defendeu sua origem divina; Lutero acontestou. Eck retrucou que es- t;i era uma das heresias pelas quais Husl4 fora condenado à fogueira pelo Concílio de <'<iiistança (1414-1418), forçando Lutero a admitir que alguns dos ensinamentos de 1111s condenados por esse concilio eram verdadeiramente cristãos e evangélicos e que, ;i<i condená-los, o concílio errara. Com isto, Eck lograra seu intento. Levara Lutero a <.#~iifessar-se adepto de heresias condenadas por um concilio, o que, fatalmente, impli- caria a condenação de Lutero como herege pelo papa. Para consegui-la, Eck foi a Ro- ma, após festejar sua pretensa vitória no Debate de Leipzia. . .

I tiiero voltou a Wiitciiberg desiludido :uiii a gro3scrid de Eck. caili ,i ir;ín,:orrcr i l i , dchdie r. :oni a au\:ncia de resulraJi~ puitti\o, ,rgundo seu juil , i . embr~ra c> dehdir. Ilie houvesse trazido várias adesões. Como de costume, pôs-se a trabalhar e escreveu i is Comentários de Lulero sobre suas teres debatidas em Leipzigii. Esta obra contém siia defesa das 13 teses debatidas em Leipzig. Foi publicada em fins de agosto de 1519.

O Debate de Leipzig foi um dos momentos decisivos na carreira de Lutero. Se de Aiigsburgo, de sua audiência com o cardeal CaetanoL6 (12 a 14 de outubro de 1518), I .iitero retornara convencido de que os papas podiam errar e já tinham errado, do De- Ii~ile de Leipzig (e de sua preparação para ele) Lutero trouxe a convicção de que a au- i<iridade do papa é de origem humana e não divina, de que a Igreja de Roma não é su- ~ ' r i i i~r às demais, de que não só os papas, mas também os concilias podem errar e erra- I Z I I I I , e de que a única autoridade infalível em matéria de religião é a Bíblia.

Além disso, tanto Lutero quanto seus amigos, assim como seus adversários, per- crl>eram pela primeira vez com inteira clareza que distância separava a teologia da uiiz de Lutero da teologia proposta por romanistas como Eck, Caetano e pelos de- iiiiiis defensores do papado. Na trajetória de Lutero, o Debate de Leipzig foi o ponto a 1,:iriir do qual náo era mais possível retornar. Conciliação ou retratação já haviam se foi nado impossíveis. A excomunhâo, juntamente com sua conseqüência lógica, a fo- ~iiçira, pareciam agora apenas uma questão de tempo.

Mário L. Rehfeldt Martin N. Dreher

1.1 .i<ao Hus, 1373(?)-1415. Precursor da Reforma. Formau-se pela Universidade de Praga, da ifii:il sc tornou também reitor, depois de sagrado sacerdote. Foi discípulo de Wyclif. Ata- c<,il u corrupsão do clero. Entre outros desmandos da Igreja, denunciou o com&rcio de in- <liilyêiiçiai. Hus ensinou que a Escritura é a única norma para a doutrina, que a Igreja é a i<iiiiiinhão de todos as crentes e que Cristo, e não o papa, é a cabeça da Igreja. Reteve a fiiinsiahstanciasão e a invocasão dos santos. Foi condenado como herege pelo Concilio de <'iiii*t.aiisa tio dia 6 de julho e queimado no mesmo dia.

I ? 1'11. 133~s. 119 i ' ! . 11. I')'), C!<>i8, 3.

Frei Martinho Lutero saúda o distinto leitor!

Meu querido Eck está furioso, prezado leitor. Consagrou à Sé Apostóli- ca outra folha de debate, cheia de sua fúria e de acusaçdes contra mim, acres- centando às suas teses anteriores mais uma, fortemente irritada. Isto repre- senta uma bela ocasião para responder de uma vez por todas aos seus ultra- jes, se eu não tivesse receio de que isso poderia atrapalhar o futuro debate. Mas tudo tem seu tempo. Por ora basta.

Aduzindo sentenças de vários santos pais, Eck acusou-me de inimigo da Igreja. Compreende isso da seguinte maneira, prezado leitor: com "Igreja" ele designa suas próprias opinides e as de seus heróis que se empenharam pela causa das indulgências. Isso porque ele é um consagrador da Sé Apostólica e fala à maneira de seus supostos heróis, que usam as palavras da Escritura e dos pais assim como Anaxágorasii lidava com os elementos. Depois de as de- dicarem à Sé Apostólica, as palavras logo se transubstanciam a seu bel-prazer (a bem dizer: prodigiosamente), transformando-se de qualquer coisa em qualquer coisa. Prestam-se também para significar aquilo que sonham em de- lírio ou que fantasiam na impotência de sua inveja feminil. Finalmente, seus conhecimentos os abandonam de forma tão infeliz, que jamais compreendem direito nem mesmo aquilo que de bom aprenderam e, como diz o apóstolo, "não entendem nem o que dizem, nem os assuntos sobre os quais fazem afir- maçdes" I 1 Tm 1.71, isto é, não sabem combinar predicado com sujeito nem sujeito com predicado numa sentença categórica. Esperamos que, no debate vindouro, ele nos apresente ainda outros testemunhos com a mesma habiiida- de, para que também as crianças possam se divertir. Eu havia esperado que Eck reconhecesse a limitação de sua cabeça através da carta de Erasmola, o mestre das ciências, e, depois, através da insuperàve! apologia do dr. Karlstadt'9. Porém a paciência de Eck supera tudo; mesmo que desagrade a todos os demais, basta-lhe agradar ao menos a si mesmo e a seus heróis.

Mas que ele me difama como herege e boêmiozo, afirmando que estou reavivando cinzas velhas, etc. -isto ele faz por sua modéstia ou por seu ofi- cio de consagração, pela qual tudo que consagra está consagrado, não usan- do outro óleo senão o veneno de sua língua.

Quero, porém (para não tolerar esse ultraje), que saibas, prezado leitor, que, no que tange à monarquia do pontífice romano, não desprezo o venerá-

17 Filósofo grego conhecido por apresentar deduçdes aparentemente Iágicas para chegar a conclusdes obviamente absurdas.

18 Erasmo de Roterdã (1466-1536). Humanista holandês com formasão teológica. Dispendeu muita tempo em centros de cultura da Europa. O seu estilo em latim lhe deu notoriedade. Editou em 1516 o primeiro Novo Testamento grego impresso. Lutero o usou para a sua tra- dusãa. Simpatizou com Lutero nos ataques i corrumao da Igreja, nias discordou da dou- trina de Lutero. Erasmo atacou Lutero no tratada De libero orbitrio ("Do arbitrio livre"). Lutero resiiondeu com Deservo orbifrio ("Do arbitrio cativo" : WA 18.6íKL787). Foi con- siderado um dos homens mais cultos de sua época.

I9 Defensio Andreoe Corlst<idii advernis eximii d . Joonni Eekii monomochiom. 20 AliisS<i i«is iidepios de João Hus. da Boêmia.

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vel consenso de tantos fiéis na Itália, Alemanha, França, Espanha, Inglaterra e outros países. Somente uma coisa peço ao Senhor: que jamais permita que eu diga ou pense algo que agrade a Eck, tal como ele é agora; nem que, por causa do livre arbítrio, eu eventualmente exponha Cristo, o Filho de Deus, ao ridículo; nem que, por causa da Igreja Romana, eu negue que Cristo vive e reina na índia e no Oriente; ou que - para propor também eu um enigma a esse festivo fazedor de enigmas - eu não volte a abrir, junto com Eck, a cloaca constantipolitanazi nem celebre novos martírios da Igreja por causa dos antigos homicídios da África. Para que não sejas prejudicado pelo escân- dalo de seu enigma envenenado, quero que saibas, estimado leitor, que al- guns incluem entre os artigos de João Hus também aquele em que ele afirmou que a excelência papal do pontífice romano se deve ao imperador, o que tam- bém Platinan escreve claramente. Eu, porém, expus que essa monarquia se prova por decretos pontificais, não imperiais. Assim, a própria Igreja Latera- iiense canta, a respeito do alcance de sua autoridade, que, tanto por decreto do papa quanto do imperador, ela é a mãe das Igrejas, etc. Esses versos são bem conheci dos^. E agora? Necessariamente para Eck também essa Igreja seria hussita e estaria reavivando cinzas. Então, já que ela canta por ordem do papa, com a concordância dos cardeais, de toda Roma e da Igreja univer- sal, não admira que Eck, enfastiado das cinzas velhas e em virtude de seu ofí- cio de consagração, deseje dedicar à Cátedra Apostólica um novo holocaus- to, reduzindo a novas cinzas o papa, os cardeais e a própria Igreja Lateranen- se. Graças a Deus, resta ao menos um Eck de mentalidade católica, aquele singularissimo perseguidor da singularidade, visto que todos os outros estão arruinados pelo veneno da Boêmia. Mas por que haveria de causar surpresa que os sofistas dessa espécie não conhecem os fatos históricos, uma vez que não entendem nem mesmo suas próprias sentenças categóricas? Eu natural- mente nunca tratei esse tema, nem pensei em debater sobre ele. Porém Eck já ti& muito tempo está ulcerado pelo mais profundo ódio contra mim. Ele sabe que essas sentenças são odiosas. Desesperando da possibilidade de vitória em outras coisas, ao menos neste ponto esperava provocar indignação contra iiiirn, uma vez que aprendeu (como se diz) a bater no leãozinho ante os olhos do leão, fazendo de um debate em torno da verdade uma tragédia de ódio.

Mas eles que acusem o quanto quiserem, consagrem suas adulaçdes à Sé Apostólica, consagrem ao banquinho e ao tamborete; eles que consagrem iiirnbém à caixa apostólica (visto que esta é o que mais tem a ver com a ques- i30 das indulgências e da monarquia); eles que fiquem manquejando ao redor do altar do seu Baal, clamem mais alto (porque ele é um deus, talvez esteja

21 f'onslontipolilano. no original. Trata-se, aparentemente, de uma alusão i cidade de Cons- tanca, sede do concilio que condenou João Hus (cf. nota 14 supra).

22 Uiii dos autores do Liberponlificalis, colecão de biografias dos papas. 23 O irecha desses versos mencionado por Lutero reza: Dogmolepapali dalur e1 simul Impe-

ririli Quod sim cunclorum Moler, Capuf Ecclesilirum. ("Por decreto papal e, ao mesmo Iciitpo, iinperial. t-mcdado ser a maede todas. acobcca das Igrejtis.") Cf. WA 2.159, noia 2. irn'lc os versos csl5o Iruorcrilos na Integra.

conversando, ou a caminho, ou numa estalagem, ou certamente está dormin- do) para que ele acorde24. Para mim é suficiente que contra Cristo a Sé Apos- tblica nada quer nem consegue. Nessa questão também não terei medo nem do papa nem do nome do papa, menos ainda dessas peninhas e bonecas2J. So- mente a uma coisa aspiro: que o roubo do meu nome cristão não venha em prejuízo da puríssima doutrina de Cristo. Pois aqui não quero que alguém es- pere paciência de mim, não quero que Eck procure modéstia, seja sob o hábi- to preto, seja sob o brancols. Maldita seja a glória daquela impia clemência com a qual Acabe deixou escapar Ben-Hadade, inimigo de Israel27. Pois aqui quero ser fortissimo não apenas no morder (o que dói a Eck), mas também insuperável em devorar, para que possa devorar de uma só bocada (para falar com Isaias2s) os Silvestres8 e Civestres, os Caetanos e Ecks e o resto dos fal- sos irmãos que combatem a graça cristã. Eles que aterrorizem alguém outro com suas adulaçaes e consagraçdes; Martinho despreza os sacerdotes e consa- gradores da Sé Apostólica. Quanto ao resto, veremos no debate e após ele. Porém também o dr. André Karlstadt, já há muito tempo vencedor sobre o erro de Eck, virá não como um soldado desertorlo, mas receberá confiante- mente esse leão morto3l e por ele derrubado. Entrementes permitimos que a miserável consciência se alegre com a esperança simulada do triunfo e com a vâ jactância das ameaças. Por isso também eu acrescento às minhas teses uma décima terceira, oposta à cólera de Eck. Deus fará com que saia algo de bom do debate que Eck mancha com tanto mal, ódio e infâmia.

Passa bem. caro leitor.

Contra erros novos e velhos Martinho Lutero defenderá as seguintes teses na Universidade de Leipzig:

1. Toda pessoa peca diariamente, mas também faz penitência diariamen- te, como ensina Cristo: "Fazei penitência"'2 [Mt 4.171, com exceção de um certo novo justo que não necessita de penitência; pois o agricultor celeste lim- pa diariamente também as videiras frutíferas.

2. Negar que a pessoa peca também ao fazer o bem, que o pecado venial é venial não por sua natureza, mas somente pela misericórdia de Deus, ou que também após o Batismo remanesce pecado na criança, significa calcar com os pés a Paulo e a Cristo de uma só vez.

24 Cf. 1 Rs 18.26s. 25 Trata-se de um jogo de palavras no original: papo-poppus-puppo. 26 Os agostinianos (como Lutero) usavam hábito preto, os dominicanos (corno Eck), branco. 27 Cf. I Rs 20. 28 Cf. 1s 9.11. 29 Cf. p. 199. nota4. 30 Eck havia chamado Karlstadt, em carta, de "soldado covarde". 31 Quando Eck quis inculpar Tetzel, Karlstadt lhe escreveu que desejava lutar com um leão.

tnão corii utn asno. 12 I',,rnitrntiu,n a~ i te . nu original. Tamhbm seria possivel traduzir "srrependei-vos".

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R . Quem afirma que a boa obra ou a penitência começam com a aversào :ii~s pccados, antes do amor a justiça, e que nisso não se peca, a essa pessoa (.tiiiinrnos entre os hereges pelagianos??, mas também provamos que ela co- iiiclc uma tolice contra seu santo Aristóteles34.

4. Deus transforma o castigo eterno em pena temporal, isto é, a de carre- 1::ir a cruz. Os cânones ou os sacerdotes não têm qualquer poder de impor ou (lc tirar essa cruz, mesmo que, seduzidos por aduladores perniciosos, possam Ici. essa presunção.

5. Todo sacerdote deve absolver o penitente de castigo e culpa, ou então peca; da mesma forma peca o prelado superior se, sem causa razoabilissima, icscrva coisas ocultas, por mais que isso contrarie a prática da Igreja, isto é, < I I I S aduladores.

6. Pode ser que as almas satisfaçam pelos pecados no purgatório; mas qiie Deus exige do moribundo mais do que morrer de boa vontade, é afirma- do com a mais infundada temeridade, porque não pode ser provado de modo :ilgum.

7. Revela que não sabe nem o que é fé, nem o que é contrição, nem o que livre arbítrio quem balbucia que o livre arbítrio é senhor de seus atos, sejam

I~oiis, sejam maus, ou quem sonha que alguém é justificado não somente pela I'? ria Palavra, ou que a fé não é suprimida por um crime, qualquer que seja.

8. Certamente contraria a verdade e a razâo [afirmar] que as pessoas que i~ic~rrem a contragosto têm falta de amor e que, por isso, sofrem o horror do piirgatório - mas só se verdade e razâo forem a mesma coisa que a opinião dos pscudoteólogos.

9. Sabemos que os pseudoteólogos afirmam que as almas no purgatório csiZo certas de sua salvação e que a graçanão é aumentada nelas, mas nos ad- iiiiramos desses homens eruditissimos por não poderem apresentar, sequer a i i i i i lolo, uma razão verossímil para esta sua fé.

10. É certo que o mérito de Cristo é o tesouro da Igreja e que os méritos 110s santos nos ajudam; mas que ele seja um tesouro de indulgências, isso nin- j:iiCiii laz crer, a não ser um adulador sem-vergonha, os que se afastam da vrrd;idc e algumas práticas e usos inventados da Igreja.

I I . É perder a razão afirmar que as indulgências são um bem para o cris- i:iit; ria verdade, elas são um defeito da boa obra. O cristão deve rejeitar as iii~liilgEiicias por causa do abuso, pois o Senhor diz: "Por amor de mim apa- !:<I tis tiias iniqüidades" [Is 43.251, não por amor do dinheiro.

12. Que o papa pode remitir todo castigo devido pelos pecados tanto I I ~ \ I ; I vida quanto na futura e que as indulgências são de proveito para quem ii:io coiiicteii pecado grave's, isso sonham sossegadamente os sofistas total- iiiciiic iiidoiilos e os aduladores pestilentos, embora não possam demonsrrá- 11, wiliicr corri iirn vesligio.

13. Demonstram que a Igreja Romana é superior a todas as outras a par- tir dos mais frios decretos dos pontifices romanos surgidos nos últimos 400 anos; contra esses, porém, estão as histórias comprovadas de 1.100 anos, o texto da Escritura Divina e o decreto do Concilio de Nicéia, de todos o mais sagrado.

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Comentário de Lutero sobre a 13s Tese a respeito do Poder do Papa (Enriquecido pelo Autor)'

(Veja a introdução a Debafe e defesa d o fr . Marfinho Lulero contra as acusações d o dr . João Eck, pp. 257-60deste volume.)

Jesus

Martinho Lutero deseja ao leitor piedoso sahde em Cristo.

Recentemente editei, num trabalho feito ás pressas, como o permitiram o tempo e minhas ocupações, meus comentários sobre as 13 teses. Assim sou forçado a enfrentar, quase que despreparado, a pior difamação que muitos dirigem contra mim. Vendo que se faz um esforço maior do que eu esperava para atacar os comentários, achei de bom alvitre retomá-los, ampliá-los ou, ao menos, emendá-los, para que possam sair a público em forma mais digna. Quanto a isso, prezado leitor, peço-te, antes de mais nada, que não repares na diferença de meu estilo. As vezes sou, de fato, muito violento e já não me assemelho mais a mim mesmo. Faço-o, no entanto, com dedicação, porque não espero renome ou memória duradoura, nem jamais busquei algo nesse sentido. Mas, assim como fui levado diante do público à força, da mesma forma sempre procuro como voltar ao meu canto o mais depressa possível, preservando meu nome de cristão. Pois considero que minha atuação pública tem sua hora. Depois de mim virá outro, se Deus quiser. Eu terei feito o sufi- ciente para meu tempo.

Pareço a muitos um tanto duro para com os adversários e como que es- quecido da moderação teológica. Se aqui encontrarem ainda outras falhas minhas, não peço grandes desculpas, porque estou consciente de que não o

I Re.~olutio Lufheriono superproposififione suo decimo terfia depofesfofepapoe (per aulorem locu,>l<~lofoJ, W A 2,183-240. Tradu~io de Ilson Kayser.

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I':i<o por outro motivo do que por extremo aborrecimento e ódio da publici- iI;i<lc para a qual me arrastam, roubando-me muitissimo tempo extremanien- ic precioso; ademais, porque tenho que suportar ladradores tão obstinados <~i ic , de modo insidioso e persistente, procuram, em toda sílaba, ignomínia p:ii-a mim e, para si próprios, a vitória no sentido de serem os verdadciros i.ristãos. Assim, parece-me que um nó malvado merece uma cunha malvada, ;litida que eu ache que sempre dominei minha fúria, para não fazer o que se- ria capaz de fazer. E também não sei se podem ser tratados com suavidade e, :io mesmo tempo, com utilidade aqueles que, por um hábito há muito invete- indo de acusar de heresia, se tornaram tão estúpidos no julgamento dos escri- tos de outros, tão endurecidos para ouvir a verdade e tão ensurdecidos em siias próprias opiniões, ao ponto de parecer que não podem ser acordados iicrii mesmo por algum caduceu divino'. Isto sem falar no quanto seria intole- iivel censurar com pouca energia aqueles que fizeram do templo de Deus um :iiiiro de ladrões e da Escritura de Deus um negócio humano. Cristo expulsou :i chicote essa abominação do lugar santo? e Paulo4 determinou que tais fan- 'irrões devem ser duramente repreendidos. Pois, quer queiram, quer não, s.io obrigados a confessar que as Sagradas Letras foram totalmente negligen- ci~idas em todas as universidades, ainda que se jactem de entender as Escritu- i-:ts de maneira mais religiosa pela compreensão humana de outros do que pe- lo próprio sentido das Escrituras. Não quero que me cantem essa cantilena, iiciii dançarei conforme sua melodia. Não quero entender a Escritura pelo jitíio de um dia humano, mas quero entender tudo o que os seres humanos cscreveram, disseram e fizeram pelo juizo da Escritura. Afinal, deve ser um I<)iivor quando alguém suporta com humildade e paciência toda espécie de :tc~isri~ões. Seja anátema, porém, quem, sabendo que alguém é espoliado do iioiiic de cristão, que se rouba a honra de Deus, que Cristo é negado c o i s a s qiic provocam aqueles que, com tanta facilidade e arbitrariedade, declaram :ilgtic'iri herege -, não protesta até o sangue com todas as suas forças.

I'or isso, os que desejam ver-me paciente acusem-me primeiro de outra i,oisii do que de ser herege, pérfido, apóstata, ou, o que é de seu dever, antes iiic convençam de que sou tal homem. Não creio que eu teria retribuído da iiicsiiia forma a qualquer um dos que me tivessem feito tais acusações, mes- i i i < i qiic os tivesse coberto de mil nomes feios. Pois não há rnonstriiosidade coiiil>arável à heresia, visto que ela é pecado contra o Espírito Santo. Contu- dir, q~iaiido contetnplo o exemplo de todos os santos e a cabeca fraca daque- Ics qitc fiizetn essa acusação com tanta freqüência, quase me convenço de que ; i :ilctiiili;t de herege deve ser suportada da mesma forma como o opróbrio ad- v i i i ~ l i ) dc qualquer outro delito. Pois os judeus vociferaram enlouquecidos

> (',iiliiccii ilivirio: hasiao coni diias serpentes enroscadas e com aias nas exrrcrnidades, ii~a<l,> ii,iiii, iii\igiii;i dc Mcrciiiii~. de arautos c de piirlameiiiarcs antigos.

I 1'1. I , , 2.13\<. .I 1'1 ' I ! 1 . 1 0 .

que Cristo teria demônios, achando que estavam prestando um serviço a Deus6. Como quer que seja, porém, nenhuma pessoa há de me ser odiosa, a mim que espero que, por fim, todos nós viveremos eternamente em paz no reino de Cristo. Se, todavia, defendi a causa da Sagrada Escritura com zelo exagerado, espero que não me seja negado o justo perdão, porque iião pode Iiaver ofeiisa oit injúria comparável a injúria cometida contra a Escritura Di- vina. Porque aqui é lesada nossa vida eterna, lá, apenas o pútrido nome de um ser corruptível. E o Senhor Jesus nos reja e preserve a todos, e guarde nossos corações e mentes. Amém. Passa bem, prezado leitor.

1 Glória a Deus nas maiores alturas.

1 A TESE DE ECK:

Negamos que a Igreja Romana não tenha sido superior às outras Igrejas antes dos tempos de Silvestre'. Sempre, porém, reconhecemos como sucessor de Pedro e como vigário-geral de Cristo a aquele que teve a cátedra e a fé do beatíssirno Pedro.

~ A TESE DE LUTERO:

I Demonstram que a Igreja Romana tenha sido superior às outras Igrejas

a partir dos mais frios decretos dos pontífices romanos; contra esses, porém, estão o texto da Escritura Divina, as histórias comprovadas de 1.100 anos e o decreto do Concílio de Nicéia, de todos o mais sagrado.

Vês, leitor, que não dissentimos muito no assunto em si, mas nas causas e origens do assunto. Pois também eu não nego que o pontífice romano é, foi e será o primeiro, nem discuto esse ponto. Não é essa a questão, e sim se têm valor os argumentos com que se faz tal afirmação. Confesso que, na verdade, desagrada-me mais do que tudo o fato de, na Igreja, qualquer afirmação ser demonstrada por esforço adulador ou mentiras. Com isso, expomos a Igreja e nossa fé a zombaria dos adversários. A Igreja de Cristo não necessita de nossas mentiras. Ela está firmemente assentada sobra a rocha da fé. Ela não

I 5 Cf. Jo 7.20. h Cf. Jo 16.2.

I 7 Silvestre I , bispo de Roma (314-335) nos dias de Constantino I. A figura de Silvestre foi

I usada para fundamentar a existência dos Estados pontificios. Segundo lenda, Silvestre cu- lar;, ;i Constaniino da lepra. logo após a vitbria deste sobre Maxêncio. Em reconhecimento, <'onsiaiitiiio icria doado Roma e os Estados pontiiicios a Silvestree a seus sucessores. Este

1 I i i i , l i c i i u \çiid<r c<iiiliecido coil~o "doaçau dc <:onsianiino".

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teme que se discuta e pesquise. Dai decorreu que os adiiladores dos pontifices romanos há muito são suspeitos de tirania nesse assunto do primado, porque, como se não tivessem certeza, não permitiram pesquisar e debater livremente ;i verdade dessa matéria, o que permitiram com a maior boa vontade em to- (10s os demais assuntos, inclusive nos divinos (desde que não tocassem no pri- ii~ado).

Por isso deixo de lado a tese eckiana. Primeiro, porque, como tese levaii- inda por inveja e artimanha, creio não compreendê-la bem. Pois provocou csse ódio publicamente contra mim sem qualquer motivo, visto que não tratei (Icssa matéria em nenhuma de minhas afirmações. O adulador, porém, de- Icrideu seus interesses, ainda que as custas do irmão. Em segundo lugar, por- qiic esse homem agradável afirma que ninguém é representante de Cristo ou sucessor de Pedro a não ser que também tenlia a fé. Neste ponto ele está lou- co ou então nega que muitos pontífices romanos tenham sido ou possam ter sido representantes de Cristo, pois não sabemos se tiveram a fé. E o que é o iiiais insuportável para os pontifices romanos: ele os onera obrigatoriamente com santidade e piedade, enquanto entre nós é considerado válido o vicariato c o pontificado mesmo de quem não têm fé nem santidades.

Mas, vamos lá! Quero destrinchar esta enguia escorregadia e fazer duas i,oi,~as em minha tese: primeiro, quero aduzir os argumentos pelos quais, ao <Iiie tne parece, esse primado pode ser estabelecido com segurança, assim que, por meio deles, se possa resistir eficazmente também aos hereges e cismáti- i.os. Depois, quero mostrar que nada provam os decretos e provas nas quais \i. hasearam até agora aqueles que defenderam o primado.

Comecemospelo primeiro: A primeira coisa que me leva a sustentar que o pontifice romano está aci-

iiia de todos os demais, pelo menos sobre todos os que, sabidamente, se com- portam como pontífices, é a própria vontade de Deus que vemos no Iàto em si. Pois sem a vontade de Deus o pontífice romano jamais poderia ter chega- c l u a essa monarquia. A vontade de Deus, porém, qualquer que seja a manei- r:i pela qual se tenha manifestado, deve ser aceita com reverência. Por isso 11x0 i. permitido resistir levianamente ao pontifice romano em seu primado. I(ssa razão é tão forte que, mesmo que não houvesse nenhuma abonação da liscritura nem outra razão, seria suficiente para refrear a temeridade dos re- \istcntes. É também dessa única razão que se gloria, em muitas cartas, com a iiiaior firmeza, o gloriosissimo mártir Cipriano9 contra todos os adversários

H Indiretamente, Lutero está acusando Eck de donatismo. 9 ('ipriano é um dos mais conhecidos pais da Igreja. Batizado em 246, logo veio a se tornar

hispo de Cartago, quando p6de liderar sua comunidade em meio à perseguição sob Décio. l(ai re la~aa aos que haviam negado a fé em meio às perseguiçdes, Cipriano procurou assu- rnir Lima pos i~ão conciliadora. Par outro lado, negou validade ao Batismo oficiado por he- ccue?. Essas duas ouestdes valeram-lhe o anátema do bisoo romano Estêvão. Tal anátema ~ , . I k c . > i i .i .i c\:rr \ ir a .,hra ,<n.lurr~e~~rleoue. naqudl JrCrnJc .i ;>I n:ipi,> de .,.'r. ., hiq ' . j c K. , t i - , , .ipr\*r J., lugar Jr de\isquc ;oniiriJo .AO aph,i.,l., f'cJr i. n3o irm p.iJcr ~iiJi.itiI riiprcriio rohrc os demais bispos. Cipriana é o mais importante representante da constitui-

de quaisquer bispos, como lemos em 1 Rs 12: dez tribos de Israel romperam com Roboão, filho de Salomão; mesmo assim, visto que, conforme a vonta- de de Deus, aquela separação acontecera sem justa razão, foi ratificada junto a Deus. Pois também segundo todos os teólogos, a vontade revelada em si- nais, como chamam a atuação de Deus, não deve ser menos temida do que outros sinais da vontade de Deus, tais como mandamentos, proibições, etc. Por isso não vejo como podem ser excusados da acusação de cisma aqueles que, opondo-se a essa vontade, se subtraem a autoridade do pontifice roma- no.

Vê, esta é uma primeira e, para mim, insuperável razão que me sujeita ao pontifice romano e me obriga a reconhecer seu primado.

A segunda razão: se, de acordo com o preceito de Cristolo, temos a or- dem de ceder ao adversário, e devemos andar duas milhas mais com aquele que nos obriga a caminhar uma milha, quanto mais devemos ceder quando o pontifice romano exige algo em seu principado, quer o faça com justiça, quer por injust i~a. Pois esse assunto do principado é incomparavelmente menos importante do que a dissolução, de nossa parte, da unidade, do amor e da hu- mildade por causa dele. Por isso não tenho dúvida que pecam aqueles que se metem em dissenções e dissolvem a eterna unidade do Espírito para fugir a essa primazia temporal e terrena; pois tudo que não é pecado deve ser supor- tado.

A terceira razão: se, por causa de nossos pecados, Deus quisesse castigar-nos com muitos príncipes, como diz Salomão nos Provérbios, deve- ríamos, por acaso, resistir ao flagelo de Deus? "Por causa do pecado do po- vo", diz ele, "são muitos os seus príncipes." [Pv 28.21. Portanto, visto que não nos compete decidir se Deus nos deu quaisquer príncipes em sua vontade irada ou propicia, compete-nos aceitar sua vontade em temor piedoso e singe- lo. Desse modo, deveremos sujeitar-nos de bom grado até ao turco, se for da vontade de Deus que estejamos sujeitos ao turco.

A quarta razão: em Rm 13 diz o apóstolo: "Toda alma seja sujeita as au- toridades superiores; pois não existe autoridade que não venha de Deus. To- das as que existem são ordenadas por Deus. Por conseguinte, os que se opõem a autoridade resistem a ordenação de Deus; mas os que resistem a Deus acarretam para si mesmos a condenação." Por esta razão, a meu ver por certo a mais forte de todas, estamos sujeitos ao pontifice romano, pois nela é dito claramente que não há nem pode haver autoridade que não venha de Deus. Visto que o poder do pontifice romano já está fortemente estabele- cido, como estamos vendo, decerto não convém impugnar essa ordenação de Deus, mas suportá-la humildemente em sua totalidade, mesmo que seja in- justa, e entregar o juizo nas mãos de Deus.

çaa episcopal da Igreja, contra o papalismo. Seu escrito De unilote ecclesiae foi de grande importância para Lutero em sua luta contra o primado papal, mesmo que afirmasse que Ci- priaiici foi "um homem piedoso, mas um teólogo fraco".

10 ('I'. MI 5 . 2 5 .

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A quinta razão: o beato Pedro" ensina que sejamos sujeitos a toda cria- tura humana, porque essa é a vontade de Deus. Ele chama de criatura huma- na os magistrados instituidos pelo arbítrio dos seres humanos, como se evi- dencia do que se segue, quando diz: "Seja ao rei como superior, seja às auto- ridades como seus enviados." Como cremos que também o poder do pontifi- ce romano foi instituído por decisão humana e assim corroborado por ordem de Deus, não está isento de grave pecado quem se subtrai a sua autoridade.

A sexta razão: cabe aqui também o consenso de todos os crentes que ho- je estão sob o pontifice romano. Pois como esse poder é assunto temporal e deve ficar muito atrás da unidade dos fiéis, não pode escapar do mais vergo- nhoso pecado quem, por causa de um assunto temporal, despreza esse con- senso de tantos fiéis, ou seja, nega a Cristo e despreza a Igreja. É possivel que Cristo não esteja presente no meio de tantos e tão grandes cristãos? Mas se Cristo está ai e também os cristãos estão ai, temos que estar ao lado de Cristo e dos cristãos em qualquer questão que não contrarie o mandamento de Deus. Digo que este é um motivo forte e irrefutável. E dele podem ser deduzi- dos muitos outros, sim, pode-se aduzir aqui toda a Escritura, visto que ela encarece o amor, a humildade, a união no Espírito e o temor a Deus em toda parte, coisas que não devem ser violadas por nenhuma razão do mundo, mui- to menos apenas por causa do pontificado ou do primado de alguém, mesmo que instituído só por direito humano.

Com esta razão, como me parece, a monarquia do pontifice romano se- ria muito melhor fortalecida, caso não se obrigassem apenas os súditos a atender e temer a vontade de Deus e o consenso dos fiéis, mas também os pontífices romanos. Ao invés disso, enquanto querem tê-la como por direito divino, a extorquem com violência e terror, suscitando entre os súditos ape- nas ódio contra si e fortalecendo-se paulatinamente na tirania, por razões de segurança.

Quanto ao segundo ponto: Quero mostrar, em três passos, que as provas que se aduziram até agora

nada valem: 1: - refutando as abonações da Escritura; 2P - refutando as inúteis provas dos cãnones e decretais; 3P - aduzindo fortíssimos argumen- tos da razão.

Em relação ao primeiro passo: são duas as passagens da Escritura com as quais se creu poder fundamentar o primado da Igreja Romana.

Em primeiro lugar é aduzido Mt 16.18s.: "Tu és Pedro, e sobre esta pe- dra edificarei minha Igreja." E ainda: "A ti darei as chaves do reino dos céus", etc. Deste texto reclamam que só Pedro teria recebido as chaves, com preferência sobre os demais apóstolos.

Provo, porem, que isso nada contribui para a questão: Primeiro, porque os próprios juristas que afirmam esse primado se afas-

tam dessa opinião. Negam que o primado tenha sido dado a Pedro e , por

-

I I Cf. I Pe 2.13-15.

conseqüência, ao pontifice romano, por esta palavra, de acordo com a glosa no capitulo consyderandum, dis. 1 e de acordo com Panormitano'z, de elec., c. significasti, de sorte que dizem: não por esta palavra, mas por aquela ou- tra: "Pastoreia as minhas ovelhas" [Jo 21.161 teria sido conferido a Pedro o

i pontificado da Igreja. Se os próprios juristas podem negar tantas passagens expressas dos decretos e afastar-se de tudo que se estabelece em tamanha pro- fusão e com tanta pertinácia, a partir daquela palavra de Mateus, nas distinc- fiones 17, 18, 19, 21 e 22, por que eu, como teólogo, não teria a liberdade de considerar totalmente frios os decretos, uma vez que os juristas têm o direito de os negar e anular? Que persigam primeiro a si próprios, visto que são réus de crime maior. Ou então, se merecem graça aqueles que negam e cassam de- cretos, estará isento de pecado aquele que afirma serem inúteis e frias as pro- vas dos decretos. Pois eu não os neguei, como aqueles, mas disse apenas que são frios para fins de demonstração, como de fato o são, e para nada valem senão para fazer muitas palavras em torno daquela passagem, a exemplo da- quilo que é dito á força e levado para um sentido estranho. Portanto, nada sc prova por meio dessc texto, do qual eles próprios se distanciam; nada se pro- va por meio desses decretos, que eles próprios negam; ademais, não confiam em nenhum dos dois. São levados a isso por uma razão bastante forte, qiic torna os adversários invictos, a saber: como também diz o beato Jerônimot' sobre esta mesma passagem, Cristo não entrega as chaves a Pedro, mas ape- nas as promete. Por isso e necessário recorrer á passagem na qual entrega as chaves. Ocorre então aquela passagem do úl t imo~~capi tulo de João, onde diz não a Pedro, mas a todos: "Recebei o Espírito Santo; a quantos perdoardes os pecados", etc. [Jo 20.22s.j Dessas palavras se evidencia não somente a quem prometeu as chaves na pessoa de Pedro, a saber, à Igreja toda, mas também como queria que se entendessem as chaves prometidas, a saber, co-

! mo remissão e retenção dos pecados. Segundo, porque os decretos fazem mal em referir essa mesma palavra

I de Cristo somente a Pedro e ao pontifice romano. Pois nos santos pais se afirma que Cristo disse essa palavra a respeito da Igreja e de todos os apósto- los, na pessoa de Pedro. O primeiro dentre eles é o divino Jerônimo, que, ao interpretar a palavra "Pedro", nessa passagem, diz: Pedro confessa na pcs- soa de todos os apóstolos, dizendo: "Tu és Cristo, o Filho do Deus vivo." [Mt 16.16.1 Nisso segue, como de costume, a seu Origenes's, que, neste poii- to, é de igual opinião.

12 Trata-se do arcebispo Nicolau de Palerma (+ 1453). Teólogo da Ordem Neneditina, t;iri,

bem conhecido como Nicolau de Tudesco. Lecionou Direito Canônico em Siena, Pariii;i r Bolonha.

13 Cf. p. 91, nata 1 1 1 e p . 220, nota70. 14 Sic. I5 Nascido em 185, em Alexandria, Origenes recebeu as primeiras instruçdes acerca da fC ciir

12 de rcu pai Leaiiides e , posteriormente, de Clemente. Tendo perdido o pai, mártir das pci ~egiiivIiç< de 202. Origenes teve que ganhar o seu próprio sustenlo, o que concgiliu rcriilci 1>101cs\~>r de <;ra~iiálica. Alçni disso. arsuniiii a calcqiierc de pessoas eruditas. I>clii,ir <Ic i in i prtiiiili> ile vi<l;i ;irc(.ric;i, iliiriitiie c, qiiiil çIieyoii ,i casir;ir-se. foi disciliulo dc Aiiiiii<,xiiiis

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Apesar de explorar essa passagem toda para louvar a Pedro, dizendo que ele é o cabeça e o pastor constituido da futura Igreja e preposto a todo o mundo, ainda assim também Crisóstomo~6 o chama de boca dos apóstolos, porque respondera em nome de todos, ao dizer: Sendo todos perguntados, Pedro, como boca de todos os apóstolos e vértice da comunidade toda, res- ponde sozinho. Portanto, essa passagem não diz respeito só a Pedro, mas a todos, mesmo que ele tenha sido o primeiro e o líder entre os apóstolos.

O beato Agostinho17 diz em relação a SI 108 [109]: São ditas ai algumas coisas que, ainda que pareçam dizer respeito propriamente a Pedro, não fa- Lem sentido claro senão quando referidas a Igreja, cuja pessoa, como se sabe, Pedro trazia na imagem, por causa do primado que tinha entre os discipulos, qual seja: "A ti darei as chaves do reino dos céus", e outras semelhantes a es- ta. Assim, Judas representa, de certo modo, a pessoa dos inimigos de Cristo, ctc. O mesmo diz tamhém no livro I de Da doutrina cristã, capitulo 17: Por- tanto, deu as chaves a sua Igreja, para que tudo que ela desligasse na terra losse desligado também no céu.

Por que não consideramos nós mesmos, antes, o texto e as palavras de Cristo, que melhor nos instruirá por si mesmo?

Diz, por exemplo: "Chegou Jesus a região de Cesaréia Filipe e pergun- tou a seus discipulos: Quem dizem as pessoas ser o Filho do homem?", etc. [Mt 16.13ss.], onde o beato Jerõnimo observa, significativamente, que Cristo perguntava de forma diferente a respeito de si mesmo quando buscava a opi- iiião das pessoas do que quando queria a opinião dos apóstolos. A aqueles designa de seres humanos, ao passo que dá a entender que estes são deuses. Além disso, quando pergunta a respeito dos seres humanos, designa-se a si iiiesmo "Filho do homem", um nome vago, por assim dizer. Entretanto, ao

Sakkas, o qual também foi mestre de Plotino. Transformando a escola de catequese de Cle- mente em uma escola de Teologia, pôde aqui desenvolver sua doutrina. Conta-se que escre- veu alguns milhares de livros e escritos, dos quais o mais famoso é a Hexoplo, uma edida monstro do Antigo Testamento, onde, em seis colunas, se encontram diversas traduçdes gregas. Além disso, publicou comentários, uma dogmática (De principiis). Origenes tornou-se um dos mais famosos sábias de seu tempo, ao lado de Plotina. Os últimos anos de sua vida foram marcados por desgostos. Bispos amigos sagraram-no presbitero em Ce- saréia, o que provocou inveja de Demetrio, bispo de Alexandria, o qual o excomungou. Em Cesaréia, Origenes criaria nova escola de Teologia. Ali veio a falecer, em 254, vitima dos maus tratos recebidos durante as perseguiqdes sob Décio. Origenes foi o primeiro a criar um sistema de cristianismo e helenismo.

16 Crisóstomo é o nome dado. desde o século VI. a João de Constantinoola (354-4071. o mais . . , . querido pregador da lgrejaoriental e, concamitantemente. um dos clássicos da lingua e da literatura gregas do periodo cristão. Dentre os pais da Igreja é uma das personalidades mais cativantes. Nascido em Antioquia, de familia crista proeminente, cedo dedicou-se a estudos tç<il~>gicos. Uma tendência ascética inicial, da qual nos legou seu escrito De socerdofio, foi iiiterrompida quando de sua ordenação (386). A partir de então ficou sendo conhecido co- ciii> pregador e cura d'almas. Em 398 foi feito bispo de Constantinopla, onde soube opor-se ci,oi grandc coragem aos desmandos da imperatriz Eudóxia. a qual terminou por desterrá- l i , . A caminho da desterro. <'risóstomo veio a falecer. A passagem à qual Lutero se refere eticontrii-sc no comentário ;ao l~vnnpcllio de Mateus. Iii Mollh. hom. 54.

17 ('1. p. 36, nota 8. p. 67. notii 46 c li. 401. nota 4.

1 perguntar aos apóstolos, diz "eu", apontando para uma pessoa determinada e singular. E onde pergunta em relação aos seres humanos, não responde ne- nhum discipulo designado, para mostrar que não têm nome os que têm opi- nião indigna a respeito do Filho de Deus. A isso acresce que as opiniões das pessoas a respeito de Cristo são inconstantes. No entanto, onde interroga os apóstolos a respeito de si mesmo, responde uma única pessoa determinada, fazendo e proferindo uma confissão de fé constante, para ensinar que o ver- dadeiro conhecimento de Cristo consiste na unidade e na firmeza, e que não é agitado como um caniço pelas opiniões de muitos. Vês, pois, também aqui, que nada diz respeito propriamente a Pedro, mas que ele é o órgão comum de todos os apóstolos.

Vê também que eu verifiquei que foi observado inclusive por leigos (o Espírito de Cristo está também nos leigos) que essa palavra de Cristo não po- de ser entendida como se fora dirigida somente a Pedro, visto que Cristo per- guntou não só a Pedro, mas a todos os apóstolos, dizendo: "Vós, porém, quem dizeis que eu sou?" Ele não disse: "Tu, Pedro, quem dizes que eu sou?" Por conseguinte, se não tivessem respondido todos os discipulos atra- vés de Pedro, certamente não teriam sido discipulos, nem teriam ouvido ao Mestre, nem teriam correspondido ao que perguntava. E pensar deste modo a respeito dos apóstolos é impio. Resta, pois, que Cristo aceitou a resposta de Pedro não só para a pessoa de Pedro, mas para iodo o grupo dos apóstolos e discipulos. Do contrário, teria feito a pergunta de novo, também aos demais. Disso decorre ainda que, assim como Cristo aceita a pessoa do Pedro respon- dedor por todos, da mesma forma, em conseqüência, também diz não só a Pedro, mas a todos aqueles em cujo nome Pedro fala: "Tu és Pedro, a ti da- rei as chaves", etc. Do contrário - se não se confere corretamente o que an- tecede e o que se segue -, não se compreende corretamente a Escritura. E pa- ra que fique mais claro ainda que Cristo não falou algo somente a Pedro, o próprio Cristo declara a quem fala e a quem entrega as chaves, dizendo: "Bem-aventurado és, Simão Barjouas; não foi carne e sangue quem to reve- lou, mas meu Pai que está nos céus." [Mt 16.17.1

Por favor, que se pode excogitar contra isso? Que se pode dizer com mais clareza do que: nesta pessoa Pedro não é Pedro, não é carne e sangue? Ele é, isto sim, aquele ao qual o Pai revela. Aqui Pedro é colocado totalmente fora do homem, já não é pessoa por si mesmo, mas ouvinte do Pai que reve- la. Não é Simão Barjonas que dá essa resposta, não é carne e sangue, mas sim o ouvinte da revelação do Pai. Pode ainda algum caluniador distorcer a pala- vra de Cristo no sentido de aplicá-la ao homem Pedro? E então? As chaves são dadas aquele que ouve a revelação paterna, não a Pedro, não ao filho de João18, não a carne e sangue. Assim sendo, já se conclui dai com facilidade que as chaves não são dadas a qualquer pessoa particular, mas somente a Igreja, pois não temos certeza se qualquer pessoa particular tem ou não a re- velação do Pai. A Igreja, porém, é aquela da qual não se deve duvidar, por-

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que é o corpo de Cristo, uma só carne, vivendo do mesmo Espírito em que vi- ve Cristo. Ela é Pedro que ouve a revelação e recebe as chaves. Pois continua firme este credo: "Creio uma santa Igreja, a comunhão dos santos"; e não, como agora sonham alguns: "Creio que existe uma santa Igreja dos prelados", ou outra coisa qualquer que inventam. O mundo inteiro confessa que crê que a santa Igreja católica outra coisa não é do que a comunhão dos santos. Por isso antigamente não se orava o artigo "a comunhão dos santos", como se pode deduzir da exposição do Credo de Rufino'y. No en- tanto, uma glosa fortuita deve ter proposto que a santa Igreja católica seria a comunhão dos santos. Com o decorrer do tempo, isso foi introduzido no tex- io e hoje nós o proferimos na confissão. No entanto, isso é um fato necessá- rio e sobremodo desejável por causa daqueles que hoje denominam a Igreja de qualquer coisa, e não de comunhão dos santos.

O texto, porém, continua: "E sobre esta pedra edificarei minha Igreja." Se sob "esta pedra" entendemos o poder do papa, vê o que estamos fazendo: a primeira conclusão é que a Igreja primitiva dos apóstolos não foi Igreja, porque Pedro (para prová-lo com argumentos sólidos) ainda se en- contrava em Jerusalém 18 anos depois e ainda não tinha visto Roma, o que sc evidencia da Epístola de Paulo aos Gálataszo. Ele escreve que, após sua conversão, foi primeiro para a Arábia; então, depois de três anos, veio a Je- rusalém, para ver Pedro21; depois de mais 14 anos, subiuze discutiu com Tia- go, Pedro e João o Evangelho da circuncisão. Eu pergunto: quem seria lou- co, mesmo que fosse um Orestesz], ao ponto de afirmar que a Igreja de Jeru- s;iléni e a Igreja católica não foram Igreja porque o poder da Igreja Romana c talvez também sua fé ainda não existiam? Portanto, ela não está edificada sobre a pedra, isto é, o poder da Igreja Romana, como expõem alguns decre- i i ~ s , mas sobre a fé confessada por Pedro em riome da Igreja toda, visto que a Igreja universal e católica existiu tanto tempo antes da igreja Romana.

Ademais, em Mt 18.17,18, fala no plural não a Pedro, não aos apósto- los, mas a Igreja, dizendo: "Se não ouvir a Igreja, ele te seja como gentio r ~iiililicano." "Em verdade vos digo: Tudo o que ligardes na terra será ligado

I9 Natural de Concbrdia, perto de AquiiMa, Tirânio Rufino (345-410) estudou com Jerônimo, em Roma, ingressando, posteriormente, em um manastério em Aquiiéia. Em 371 viajou com a mãe da Igreja, Melânia, para o Oriente. Convertido para a teologia de Origenes, pas- sou a defender a teologia deste, o que provocou a inimizade de Jerôniino e longa disputa entre ambos. O significado teolbgico de Rufino reside no fato de haver traduzido teólogos gregos para o latim. Deve-se a ele o fato de possuirmos a obra Deprincipiis de Origeries, pois O original grego está perdido. Lutero refere-se ao Cornrnenlorius in syrnbolurn aposlo- lorurn.

20 Cf. Gi 1.17s. 21 Cf. GI 2.1. 22 Sc. oara Jerusalém. L I t ilno de Ag3iiiAnnon c de Cli1:mncrlrs. r inpd s ni.>iied<i pdi :iiiiiiido a iiik i \r.., ;iii.dti.r..

I.rii\io. 12rr\egiiido pela\ I.Urtdr. c ;uraJo dc r ~ a lou;ur~. cm I d . i r i r . por <ua li ni.i Iii$it,!.i

OCC$IC\ C ~onriderlda c\rinplo de obcdicncia.

também no céu." Vem cá, pois, se quiseres, e compara esta passagem com aquela. Aquela soa como se as chaves fossem dadas só a Pedro; esta o nega e assevera que não foram dadas só a ele. Como podem permanecer de pé am- bas as afirmações? Em todo caso, é preciso que uma palavra concorde com a outra, pois foi o mesmo Cristo que disse as duas. Se foram dadas só a Pedro, é mentira o que Cristo diz aqui - que foram confiadas a todos. Quem, no entanto, não percebe que esta segunda palavra interpreta a primeira, e que nesta segunda é exposto claramente o assunto, enquanto naquela se encarece, na pessoa de Pedro, a unidade de muitos na Igreja? Está claro, portanto, que as chaves são dadas a Igreja, e nada há que se possa contrapor a essa passa- gem, pois diz: "Dize-o a Igreja. Se não ouvir a Igreja", etc. Ele não diz: "Dize-o a Pedro, e se não ouvir a Pedro", etc. Sim, vê que coisa admirável: lá, ele começa por todos, dizendo: "Quem dizeis vós que eu sou?", e acaba com um só, Pedro, dizendo: "Tu és", e "a ti darei!" Aqui, ao contrário, co- meça por uni só, dizendo: "Se teu irmão pecar contra ti", etc., e acaba com todos, dizeudo: "A quem ligardes", etc. Não está claro que lá, por meio da- quela uma pessoa de Pedro, ele quis o mesmo como aqui, por meio de todos? E que as chaves não pertencem a uma pessoa particular, mas a Igreja e à co- munidade? Assim sendo, é certo que o sacerdote usa as chaves não por direi- to próprio, mas pelo ministério da Igreja (pois é ministro da Igreja), e ele não o faz como se elas lhe pertencessem ou fossem dadas a ele, mas a Igreja.

Creio que só isso quase já produz a fé de que essa passagem de Mateus não se refere nem a Pedro, nem a seu sucessor, nem a uma Igreja particular, mas a todas as Igrejas. Pois, como já disse, quem poderá negar que as chaves são dadas àquele que, por revelação do Pai, confessa a Cristo? Posto isto, é necessário que lá onde há revelação do Pai e confissão de Cristo estejam tam- bém as chaves. Mas isto existe em qualquer Igreja, não em uma única Igreja particular e em determinada pessoa. E para que Cristo nos encarecesse isso: logo após essa maravilhosa distinção a Pedro, querendo ele impedir que Cris- to morresse, teve que ouvir: "Arreda, Satanás, pois não entendes as coisas de Deus." [Mt 16.23.1 Que significa isso? Pedro não entende as coisas de Deus? O Pai não lhe revelou? Se isso tivesse acontecido antes do elogio a Pedro, te- ria tido alguma importância o fato de Pedro haver recebido a distinção para sua pessoa, para a dos sucessores ou de uma Igreja. Agora, porém, sendo ele vituperado após a distinção, como alguém que não conhece a Deus, evidencia-se que aquele Pedro de antes, o que recebeu as chaves, não foi o Pedro, filho de Barjonas, mas a Igreja, a filha de Deus, que, gerada pela pa- lavra de Deus, ouve a palavra de Deus e a confessa com perseverança até o fim, não acontecendo que, as vezes, não entende as coisas de Deus e recebe a ordein de arredar, como ocorreu com Pedro. Ou então, se se referir ao ponti- fice romano e a Igreja Romana o que foi dito a Pedro: "A ti darei as chaves", também se referirá a ela, por conseqüência irrefutável, aquele outro dito: "Arreda, Satanás, pois não entendes as coisas de Deus." Porque tam- bém isto foi dito a Pedro, o futuro bispo da Igreja Romana. Mas se crêem que isto 1140 Ihes diz respeito, já não podem, por razão alguma, convencer qiic se rcl'crc o eles o qiic foi dito aiiieriori~iente.

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Há mais ainda. Se retornarem totalmente ao rigor literal, afirmando que foi dito só a Pedro: "Tu és Pedro, a t i darei as chaves", etc., como resistire- iiios aos hereges se, apoiados em nossa insistência rigorosa nas palavras, nos rissediarem, dizendo: "Que seja. Isso foi dito só a Pedro e, portanto, não ao hiicessor. Assim, as chaves vieram a Igreja com Pedro e com ele se foram. E agora, onde está a Igreja?" Pois não pode dizer respeito a muitos o que foi dito a um só, como, por exemplo, a palavra: "Quando eras mais moço, tu te cingias a ti mesmo", etc. [Jo 21.191, o que, nesta forma, foi dito só a Pedro, dc sorte que se cumpre com Pedro e com ele acaba, não se referindo a ne- iihum sucessor seu.

Se, contudo, é dito aos sucessores e a alguma Igreja, já não há qualquer razão para se poder negar que tenha sido dito a todos, até mesmo para se ad- iiiitir que tenha sido dito necessariamente mais a todos os apóstolos que esta- vam presentes do que aos sucessores desse um Pedro, que ainda não existiam. Se foi dito a todos os apóstolos, então deve-se entender que tenha sido dito tios sucessores de todos os apóstolos, e não de um só.

Responda-me, porém, quem puder: de quem há de se crer que tem as chaves também na Igreja Romana? É a própria Igreja que as tem ou o papa? Alenta para o que digo: quando é eleito o papa, já traz consigo as chaves oii iião? Se as traz, já era papa antes de ser eleito. Se não as traz, de quem as re- cebe? De um anjo do céu, por acaso? Não é da Igreja que as recebe? Da mes- iiia forma, quando morre o papa, para quem deixa as chaves? Leva-as consi- go? Se não as leva, para quem as deixa senão para a Igreja da qual as rece- hcu? Que, pois, pode ser dito contra essa experiência evidentissima, a melhor iiitérprete do Evangelho, de que as chaves não foram dadas nem a Pedro nem ti seu sucessor, mas tão-somente a Igreja, da qual o sacerdote as recebe como iiiinistro, para uso? Onde está agora a opinião de que foi dito só a Pedro: "A t i darei as chaves"? Sim, onde está agora a afirmação de que as chaves foram clridas só a Igreja Romana? E necessário que as chaves estejam em qualquer Igicja, como disse acima.

Ainda quero dizer uma coisa mais e usar o argumento do apóstolo Paulo c111 Rm 4, onde prova, a partir das circunstâncias do tempo e do fato, que Ahraão não foi justificado a partir da circuncisão, mas da fé. Para isso, Pau- lo iião usa nenhum outro argumento senão este: Abraão foi justo junto a I)ciis pela fé, antes da circuncisão. Se este seu argumento vale, como, aliás, v;ilc necessariamente, também é forçoso que valha o que agora passo a apre- hciitar da seguinte maneira: quando Pedro recebeu as chaves de Cristo - se iiisistes em afirmar que as recebeu só para sua pessoa -, ele ainda não era Iiispo da cidade de Roma (sim, a rigor, jamais foi bispo de cidade alguma, e i i i i i apóstolo, instituidor de bispos, maior que todos os bispos), mas um entre os :ipostolos. Por isso, as chaves não lhe foram dadas com base no que, pos- icriormente, ele veio a ser, ou naquilo que mudou nele, seja em relação ao lu- gar oii ao oficio (assim como não se atribuiu a justiça a Abraão de acordo coiii n que quer que ele tenha se tornado após a fé), mas porque foi simples- iiieiiie iim apóstolo e, em especial, tinha a revelação do Pai. Por isso esse ver- slciilo de forma alguma se refere ao pontífice romano, mesmo que tivesse si-

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do dito só a Pedro; quanto menos se refere a ele agora que provamos que não foi dito só a pessoa de Pedro!

Acrescento ainda outro argumento semelhante, usado por Paulo em Rm 4 e G13, quando diz: assim como a Abraão a justiça foi atribuída pela fé, da mesma forma ela será atribuída também a todos os que crêem. Por isso, tam- bém a estes serão dadas as chaves, assim como a Pedro, que tem a revelação do Pai e confessa a Cristo. Desta maneira, é necessário que as chaves sejam dadas a toda pessoa que, de modo semelhante, confessa e tem a revelação. E isso não pode ser aplicado a ninguém a não ser a Igreja, isto é, a comunhão dos santos, visto que nenhum crente particular pode ter essa confissão de for- ma constante, certa e perseverante. Nem mesmo Pedro perseverou nela, por- que errou, não só em ocasião qualquer, mas logo depois de ter recebido as chaves. Mesmo assim, as chaves não lhe foram tiradas, porque não as rece- beu em seu próprio nome, mas em nome da Igreja. Se essas provas não são concludentes, também não o são os argumentos do apóstolo Paulo que cita- mos.

Entretanto, para derrubar totalmente a opinião contrária, vamos lá: se as palavras: "A ti darei as chaves", etc. se referem a Pedro e seu sucessor, ne- cessariamente deve referir-se a eles também o que precede e o que se segue, e ainda o que com isso se relaciona. Pois, no que diz respeito às sagradas pala- vras do Evangelho, não se devem admitir aqueles que, em favor de sua inter- pretação arbitrária, torcem e puxam uma parte para cá, outra para lá. De acordo com o testemunho de Hiláriou, a compreensão deve ser depreendida da sucessão do sentido e das palavras, bem como das circunstâncias. Tendo em vista que Cristo não quis entregar as chaves antes que todos os discípulos fossem inquiridos a respeito de sua confissão, e também não antes que tivesse recebido e aprovado a resposta de Pedro, que falava a partir da revelação do Pai, claro está que só tem as chaves quem é como Pedro era naquela ocasião. Dai se segue o absurdo dos absurdos: um papa ou bispo mau não seria papa nem bispo porque não tem a fé, que é a condição para ser receptor das cha- ves. Depois se segue ainda, contra o texto e contra a opinião deles, que Pedro não recebeu as chaves nem ficou com elas. Pois Cristo diz que as portas do inferno não prevaleceriam nem contra a Igreja nem contra a fé que Pedro ti- nha naquela hora. Contra Pedro, porém, prevaleceu inclusive a empregada porteira>'. Se, pois, a opinião deles tivesse consistência, seguir-se-ia com fér- rea necessidade que ou os pontífices romanos e todos os demais teriam que ser santos e ter a revelação do Pai, e não ser carne e sangue, ou então não se- riam pontifices nem teriam as chaves. Não vejo o que se poderia argumentar contra isso, visto que o texto tão claro ai está: as chaves são dadas somente a

24 Bispo de Poitiers (ca. 315.367). conhecido como "Atanásio do Ocidente", tornou-se bispo, em 350, em sua cidade natal. Destacou-se nos debates antiarianas do Ocidente. Entre suas priiicipais obras encontramos camentirios ao Evangelho de Mateus e aos Salmos, além de escritos antiarianos. Lutero refere-se a seu comentário de Mateus.

25 <'i'. M1 2h.hYss.

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quem não dá ouvidos a carne e sangue, mas ao Pai celestial, ou seja, a quem é santo e justo no Espírito. Do contrário, todo pontífice seria um satanás que não pretende o que é de Deus. Dizendo isso, porém, renovamos um erro dos hereges donatistas26 novos e antigos, que afirmam que um bispo mau não é bispo. Isto seja longe de nós, que confessamos que um ministro da Igreja san- ta e justa pode ser ímpio e mau. Assim acontece que, enquanto querem trans- formar, por meio dessas palavras, o pontifice romano no pontifice único, to- tal e universal, acabam nos deixando sem pontífice algum, para que vejam qual o prêmio dos aduladores e ambiciosos por violarem as Escrituras. Resta, pois, que, nessa passagem, o evangelho não se refere nem a Pedro nem a seu sucessor, nem a qualquer bispo ou pessoa particular, mas à comunhão dos santos, que é a Igreja. Esta pode, então, entregar as chaves tanto a alguém digno como a alguém indigno -indigno, digo, perante Deus, porque ela não sabe se ele é digno perante Deus. Do contrário, deve entregá-las somente a uma pessoa digna perante os seres humanos.

Por isso, considero estar suficientemente claro que, quando certos decre- tos aplicam esse texto a Sé Romana ou ao pontífice romano, tratam a palavra de Cristo não só de modo totalmente frio (falando com modéstia), mas tam- bém de modo contrário ao Evangelho. Queremos deixar isso mais claro quando os examinarmos mais adiante. Entrementes basta dizer, em resumo, sobre essa passagem das Escrituras: se as chaves são confiadas a alguém, é- lhe necessário ter também a fé de Pedro. Pois, negando-se que é necessária a fé de Pedro, negar-se-á também, pela mesma razão, que lhe foram dadas as chaves, visto que Cristo conjuga e exprime ambas as coisas, exigindo inclusi- ve mais e em primeiro lugar a fé. Dai se entende com clareza que Cristo só fa- lou da Igreja, e não de uma Igreja particular, mas de qualquer Igreja em qualquer parte do mundo.

Em segundo lugar é aduzida aquela passagem do último capítulo de João: "Simão, tu me amas? Apascenta minhas ovelhas." [Jo 21.15ss.l Por suporem que isso seja dito só a Pedro, acreditam que ele é colocado sobre to- dos. Entretanto, demonstro que também isso nada prova:

Primeiro: sendo certo que nenhum dos apóstolos foi instituído ou envia- do por Pedro, não e verdade nem possível que todas as ovelhas tenham sido confiadas a Pedro. E a todos que foi dito, numa expressão geral: "Apascenta minhas ovelhas." Pois não diz "todas", como quando diz a todos os apósto- los: "Ide a todo o mundo e ensinai a todosos povos." [Mc 16.15.1 Não consi- go admirar-me o bastante com o fato de que tantos e tão grandes homens rei- vindicam todas as ovelhas para Pedro, contra passagens bíblicas tão expres- sas, contra a experiência tão evidente, ainda que se vejam obrigados a confes- sar unanimemente que cada um dos apóstolos foi enviado a sua região especí- fica e que Paulo foi chamado do céu para o apostolado dos gentios. Como ousaremos afirmar ainda que, em tudo isso, Pedro foi o pastor de todos? Ele,

26 Grupo rigorista da Igreja africana do século IV. Negava a autoridade dos bispos qiie Iioii- vessem se portado indignamente em tempo de perseguiçaa.

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que não enviou a nenhum deles, muito menos a Paulo, como este afirma ex- pressamente com muitas palavras em G1 1. Essas coisas são tão evidentes que uma refutação não parece necessária. "Eles", diz Marcos, "saíram e prega- ram em toda parte." [Mc 16.20.1

Segue-se, pois, que ou não foram confiadas a Pedro todas as ovelhas de Cristo, ou então as ovelhas não pastoreadas por Pedro, mas por Paulo e os demais apóstolos, não pertencem as ovelhas de Cristo. Que poderia ser mais blasfemo? Então os coríntios, os gálatas, os filipenses e outros povos não de- vem ser considerados ovelhas de Cristo pelo fato de não terem sido apascen- tados nem pelo próprio Pedro nem por meio do envio de pastores por parte dele? Afinal, por que me demoro ainda com assunto tão evidente?

Se dizes: "Mas a palavra de Cristo: 'Apascenta minhas ovelhas' dirige-se só a Pedro", respondo: ele não disse "todas as minhas ovelhas". Do contrá- rio, Pedro teria pecado se não tivesse pastoreado todas elas sozinho, sem os demais apóstolos. Pecaria também hoje o pontífice romano pelo fato de não apascentar os turcos e outros povos nem lhes enviar pastores.

Quero dizer ainda outra coisa: dessa palavra não se pode arrancar outra coisa do que isto: Pedro deveria apascentar as ovelhas do aprisco dos judeus, e assim nada" lhe diz respeito, nem ao pontifice romano e seu sucessor, ou então se refere só a ele. Demonstro isso com o apóstolo Paulo, que, em G1 2.7, denomina a Pedro de apóstolo da circuncisão e, a si próprio, de apóstolo dos gentios. Portanto, se alguém fosse pertinaz, por força nenhuma poderia ser coagido a admitir que por essa palavra de Cristo se entenda outra coisa que o pastoreio das ovelhas da circuncisão; ou, se estendida ao pontifice ro- mano, já não se pode impedir que diga respeito a todos e que possa ser esteu- dida a todos com o mesmo direito.

Segundo: quero pedir aos aduladoks do pontifice romano que desistam de alegar essa palavra tão horrivel para fundamentar seu primado. Pois ainda não li, em toda a Sagrada Escritura, palavra mais horrível, que pudesse as- sustar mais o pontífice romano e qualquer outro pontífice. Em primeiro lu- gar, porque "apascentar" não significa ser o primeiro ou o príncipe. Por is- so, dessa palavra não se pode provar outra coisa do que o dever do pontifice romano de pregar e ensinar a palavra de Deus. Se é isto que lhe cabe, já deve depor todo esse primado, ocupar-se dia e noite com as Sagradas Escrituras, orar com pureza, expor-se a perigos e morte por amor da Palavra; em suma, toda Roma, como se encontra hoje, deve ter a face totalmente mudada. Por- tanto, por amor de Deus, parem de adaptar a seus desejos as mais espirituais palavras de Cristo. Pois se isso é aplicado ao pontífice romano, segue-se irre- futavelmente que ele precisa ensinar a Palavra; ou então, se não ensina, eni nada se refere a ele.

Observa, porém, ainda, que Cristo não impõe o pastoreio a Pedro seiii que este ame primeiro. Peço-te, que significa isso? Não se conclui que, se não ama, não deve ser ouvido? E quem nos dá certeza do amor do pastor? Deve-

27 Isto &, nada além do pastoreio dos judeus.

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remos, pois, ficar em dúvida quanto a quem devemos ouvir? Ora, se é neces- sário que amemos o pastor, também é necessário que ele ame a Cristo; ou en- ião, se não é necessário amar a Cristo, também não é necessário dar ouvidos ao pastor, visto que Cristo relacionou ambas as coisas e confiou o pastoreio somente a quem ama. Que faremos nesse caso? Sei que, se ponderar bem essa palavra de Cristo, qualquer bispo desesperaria de poder pascentar apenas a metade de uma só cidade.

Portanto, expusemos que essa passagem nada prova e de nada vale para Iùndamentar o primado. Se, no entanto, serve para alguma coisa, então é pa- ra insistir nisto: não é bispo na Igreja quem não ensina, e ninguém deve ensi- nar se não ama. Afirmo que é isto, e não qualquer outra coisa, que se de- preende dessas palavras, a não ser que uses uma gramática nova e digas que "se me amas, apascenta minhas ovelhas" é a mesma coisa que "se amas a ti, sê o primeiro sobre toda a Igreja."

Por conseguinte, farás melhor se aceitares essa palavra de Cristo como exortação, sim, como ordem, não para constranger as ovelhas á sujeição, iiias os pastores a amarem a Cristo e a pastorearem o povo. Além disso, o amor de Cristo (como o expõe aqui o beato Agostinho) exige que até se morra pelas ovelhas de Cristo.

Queira Deus que os pontífices romanos cressem que essa palavra Ihes diz respeito! Pois é esta a queixa do mundo inteiro: que relegam o amor e a dou- trina a outros e acham que nada disso Ihes diz respeito. Entendem que essas palavras se referem ao povo, de sorte que, por meio delas, querem obrigar to- dos a sujeição, mas ninguém tira delas a conclusão de que se deve pastorear e (Ic que a Palavra deve ser ouvida (como expressam as palavras). Bem- aventurada ambição seria se, em algum lugar, se encontrasse alguém que am- Ihicionasse tornar-se pastor de todos. Quem não acolheria essa pessoa com o iiiaior prazer? No momento, porém, concedem de bom grado a qualquer um i) oficio do amor e do pastoreio, enquanto reservam para si próprios o titulo do amor e do pastoreio e o que resulta do titulo: lucros e honras. Desiste, ipois, de distorcer as palavras de Cristo, porque aquilo que, desse modo, atri- hiiis ao pontifice, elas o tiram totalmente, impondo-lhe, por sua vez, o que 1130 lhe atribuis e o que ele mais detesta.

Dizes, porém: "Ele não pode apascentar se não for superior. Mesmo i130 exercendo o oficio de pastor, não perde, por causa disso, o lugar de supe- rior." Eu respondo: que tenho eu a ver com isso? Procura outras palavras coiii as quais possas defender a tese do poder. Essas palavras ou requerem al- giikiii que ama e apascenta, ou não servem para ninguém, a não ser que, uma vir mais, entendas, de acordo com um novo latim, as palavras "amar mais C I O que aqueles" [Jo 21.151 como "comandar sobre todos os demais", e ";~p;~scciitar" como "possuir os direitos e bens de todos". Por isso não ad- iiiir;i qiic busquem o primado com tanto fervor. Se tivessem que exercê-lo :icrii:iiido as palavras em seu verdadeiro significado, não quereriam ter por ~>ii:ii~io scclucr ao próprio Deus. Vês agora o que significa zombar das Escri- 1 i i i ; i ~ . oii ciiiã<i, coiiio eu disse iiiais moderadamente, demonstrar o primado C < ) I I I os iiiais frios dccrctos?

2x2

Segue-se dai que ser superior aos outros e não amar nem apascentar nW é oficio evangélico nem cristão, mas mundano e humano. Dize-me: se os sú- ditos se levantassem contra o pontifice e dissessem: "Não estamos dispostos a ouvir-te nem te queremos por pontifice", com que palavras queres contê- los? Por acaso com esta: "Apascenta o meu rebanho"? A isso dirão: "E quando apascentas? quando amas? onde está a execução e ação dessa pala- vra?" Portanto, teriam que ser coagidos por outra palavra, não por essa. Disso resulta também que, por essas palavras, não é comissionado nenhum poder, muito menos o primado, mas aquele que tem o poder se impõe o ofi- cio de amar e ensinar, assim como aconteceu com Pedro, que já havia sido chamado ao apostolado quando lhe foram ditas essas palavras. E o que afas- ta esses aduladores, que lêem as palavras de Cristo bocejando e roncando, de uma compreensão sadia é o fato de não distinguirem a palavra "oficio" da palavra "poder". A vocação de Pedro fez dele o primeiro e o transformou naquilo que eles querem que ele seja. No entanto, a imposição do oficio pela palavra "apascenta" não lhe conferiu nem pôde lhe conferir nenhum grau maior, a menos que queiram afirmar que, com a palavra "apascenta", Pedro tenha sido elevado incliisive acima de si mesmo.

Argumentas, porém: "Basta que ensine e ame por meio de outro. Não é necessário que o faça pessoalmente." Respondo: eu admito isso; mas aconte- ce que esta palavra de Cristo não o expressa, e tal permissão deve ser funda- mentada com outra palavra. A presente palavra conclui de forma incontestá- vel que ou devem ser pastores, também amando e ensinando eles próprios, ou, se não amarem e ensinarem eles mesmos, essa palavra em nada lhes diz respeito. Assim, dai não sai nenhuma prova para a monarquia romana; pelo contrário, ela é combatida, pois é impossivel uma só pessoa amar e apascen- tar tanto.

Vemos que os pontifices romanos repassam o ofício de amar e apasceu- tar aos bispos, retendo o titulo de pastor e amante para si. Os bispos, por sua vez, guardam para si o mesmo nome, transmitindo o oficio aos pastores, e os pastores procedem da mesma forma em relação aos capelães. O nome passa por todos e fica, o oficio passa e não fica com ninguém. Mas até os moujes mendicantes, que deles receberam o oficio, os imitam com diligência: os su- periores e preceptores impõem o oficio de ensinar aos frades mendicantes, contentando-se eles próprios com o nome do oficio. Tão incômodo é ensinar a palavra de Deus, amar e apascentar; é unicamente por causa disso que o Fi- lho de Deus veio ao mundo e enviou o Espírito Santo, e tudo fez para que es- se oficio fosse oficiosissimo.

Mas se é suficiente ensinar por meio de outro, que faz o bispo mais que o leigo? Não pode então inclusive o turco mandar ou permitir que outro ame e pastoreie? Por que foi necessário incumbir a Pedro com esse ofício tantas e repetidas vezes, e lho encarecer com tanta insistência? Seria esta a maneira de interpretar o evangelho: "Apascenta minhas ovelhas, isto é, permite, ordena que outro apascente"? Se esse outro, por sua vez, apascentar por um tercei- ro, o terceiro por um quarto, e assim sucessivamente até não restar ninguém, onde fica a palavra de Cristo? Ou, quão adequadamente apascentarão os de-

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mais sequazes, tendo em vista que os primeiros e os que mais deveriam fazê- 10 não apascentam? Por que não fez Cristo o mesmo? Por que Pedro também não se fez ocioso e apascentou por meio de outros?

Por isso, se forçares essas palavras a servirem ao poder pontificio, tua causa acabará mal, e concluirás que desde os tempos de Gregório Magno28 iiáo houve pastor na Igreja Romana. Pois ele foi quase o último dentre aque- les que se ocuparam com as Sagradas Letras. Por isso, se te glorias de que foi dito a Pedro: "Amas-me mais do que estes?", ótimo, faze isso e viverás; ama iiiais do que os outros, apascenta mais do que os outros. Os campos se enche- rão de ovelhas, e os vales abundarão de cereal, clamarão e cantarão um Iiinoz9. No entanto, se por "amar mais do que eles" entendes que és maior do que os outros, introduzes na palavra de Cristo um sentido estranho. Porque por essas palavras não se ordena algo aos súditos, e sim a Pedro. Ele não diz: "Sede ovelhas sujeitas a Pedro", mas: "Pedro, apascenta as ovelhas." Mes- trio assim, é aquilo que querem, e não isto.

Creio, portanto, que está clarissimo que essas duas passagens do evange- Ilio em nada contribuem para o assunto, e que é totalmente frio e ineficaz o que até hoje foi articulado através delas no presente assunto.

A partir delas também é fácil julgar ospróprios decretos, como são fra- (.os emtprovar o quepretendem. Para esclarecer isso, cito alguns:

O primeiro é Leãolo, dis. XIX. c. Ita dominus noster: "Assim o instituiu nosso Senhor Jesus Cristo", diz ele, "o Salvador do gênero humano, para que a verdade, até então contida na pregação da lei e dos profetas, agora saís- sc mundo afora pela trombeta apostólica, para a salvação do universo, como cslá escrito: 'Por toda a terra se faz ouvir sua voz, e suas palavras até os con- I'ins do mundo.' [SI 19.4.1 O Senhor, porém, quis que os mistérios desse mú- iiiis se relacionassem com o oficio de todos os apóstolos de tal maneira que os colocou principalmente sobre o beatissimo Pedro, o maioral de todos os ;ipóstolos, para, a partir dele, como que de uma cabeça, difundir seus dons por todo o corpo, e que reconheça que está fora do mistério divino quem se :~i'asta do fundamento31 de Pedro." Até aqui Leâo.

Quem não vê, eu te peço, que esse homem santo e erudito foi vitima de ktiores humanos? Pois se entende por "fundamento de Pedro" a fé com que I'cdro confessou a Cristo, em Mt 16, ele está certo e de acordo com o evange- 1110. Com efeito, essa fé é a pedra da qual Pedro tomou o nome. Quem dela se :irredar, está fora do mistério divino com justiça. Mas se entende por "fun- ~l;iiiiento de Pedro" a jurisdição e o poder de Pedro e do pontífice romano, qtinlquer um entende com facilidade que abusa da palavra do evangelho e er- i ; i . Não estavam todos os apóstolos sobre o fundamento de Pedro? Mesmo

28 (ircgbrio I, papa de 3/9/590 att 1 1 / 3 / W 29 ('1. SI 65.13. - ~ ~~~~~

Io i rnu I. Magno, papa de 29/9/440 ate 10/11/461. I I Soli~lilris. no original. A traduçno lileral seria "solidcr". Liitero volla a niclicionar cstc Lei-

r i i o tibaixo (cf. p. 299).

assim, não estiveram sob a Igreja Romana. Santo Estêvão e outros que sofre- ram a perseguição de Paulo estiveram sobre o fundamento de Pedro antes que existisse a Igreja Romana.

Além disso, é pela mesma fraqueza da mente humana que ele diz que o ministério do ensino está colocado principalmente sobre Pedro, carreando para a única pessoa de Pedro o que o profeta disse no plural e em termos ge- rais: a voz deles e as palavras deles.

Mas também é evidentemente falso afirmar que Pedro é a cabeçade todo o corpo, a partir da qual Cristo difundiria seus dons por todo o corpo, a não ser que ele se refira aquela parte da Igreja que foi instruída tendo a Pedro por mestre, como é o caso da Igreja latina e ocidental. Porque também difundiu seus dons por meio de outros apóstolos, em especialatravés de Paulo, entre muito mais pessoas do que por meio de Pedro, de sorte que para mim é um milagre que a mente desse pontifice estivesse tão tomada que, ao escrever es- sas coisas, não pudesse lembrar-se de Paulo e dos outros apóstolos. Se, por- tanto, tivesse dito: "por meio do qual quer difundir seus dons pelo corpo", estaria certo, mas "por todo o corpo", isto é demais.

E prossegue o mesmo Leão: "Porque a este (Pedro), recebido na comu- nhão da unidade pessoalJ2, quis chamar pelo nome que expressasse o que era, dizendo: 'Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja', para que a construção do eterno templo, por meio do maravilhoso ministério da graça de Deus, se apoiasse no fundamento de Pedro."

Uma vez mais, com "fundamento de Pedro" ele não designa a fé da Igreja universal, mas o poder da Igreja Romana, e toma a palavra de Cristo como palavra dita à própria pessoa de Pedro, e não i+ Igreja, como se eviden- cia com clareza no texto que se segue, onde diz: "No entanto quer violar, com exagerada presunção impia, este santissimo fundamento de Pedro, colo- cado pelo próprio Deus como construtor (como já dissemos), quem tenta des- truir seu poder, entregando-se a seus desejos e não acatando o que recebeu dos antigos."

Eis que aqui ele explica a si mesmo: o fundamento de Pedro seria o po- der da Igreja Romana, entendendo que a fé do Espírito, totalmente secreta, e o poder exterior da jurisdição são a mesma coisa, porém não sem injustiçar a palavra do evangelho. Pois não infringe contra o fundamento de Pedro quem não vive sob as leis da Igreja Romana, mas quem não crê o que Pedro confes- sou.

Afirmo, entretanto, que não condeno decretos desse tipo. Pois não levo nenhum prejuízo para minha salvação se tolero uma interpretação violenta da Escritura da parte de alguém, desde que, ao lado disso, esteja garantida a compreensão verdadeira e legitima. Insisto, porém, em que aprendamos a fir- mar nossa causa e fé por meio de um entendimento constante e sólido. Se bem que esse tipo de abuso da Escritura possa valer para aqueles que já crêem e possa ser tolerado, também é preciso ter, quando surge tima batalha com

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32 I n corisoriiur>i in,lilivi<luor uniloris. tia original

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pessoas contenciosas, o singelo e autêntico pensamento de Cristo, que pode sair vitorioso da contenda, para não expormos ao ridículo a Igreja e a todos nós. Não me ponho do lado daqueles que acreditam que os pontífices roma- nos não tenham errado e que só eles tenham a compreensão verdadeira da Es- critura, visto que aqui e em outros pontos se pode ver bem o contrário: foram pessoas humanas, assim como os outros bispos. Não é de causar tanta admi- ração assim que esses santos pontifices tenham, por fraqueza humana, ambi- cionado para si o primado, pois os próprios apóstolos, na presença de Cristo, não apenas o ambicionaram, mas disputaram entre si, não só uma vez, a res- peito de quem deles deveria ser considerado o maior. Assim, pois, como Cris- to tolerou com bondade essa sua natureza humana, da mesma forma também a Igreja aprende a suportar os remanescentes de ambição em tais pontifices e por isso não rejeita totalmente decretos desse tipo. No entanto, é preciso re- sistir com pés e mãos aos que, insatisfeitos com o fato de suportarmos com humildade tais decretos, enlouquecem ao ponto de ousarem no-los impor co- mo artigos de fé necessários e de proclamarem heresia qualquer outra opi- nião, como se não se encontrasse na Escritura nenhum outro sentido, lendo tudo sem qualquer juizo. Por fim, de tal temeridade resulta necessariamente que perdemos o legitimo sentido de Cristo e que somos construidos sobre o arbitrio humano e sobre areia.

Pois se fosse verdade o que esse Leão diz aqui e se fosse necessário obe- decer a suas palavras como a um mandamento divino, toda a Igreja oriental já estaria, desde seu inicio até o fim, fora do mistério divino, porque nunca esteve sujeita ao poder da Igreja Romana. Por isso, pode-se tolerar o erro desse Leão, mas não se pode, por causa dele, abandonar um outro sentido, mais correto.

O segundo decreto é o de Leão IV33, dis. XX. c. de libellis, onde diz: "Por essa razão não temo proclamar, com clareza e em alta voz, que se se de- monstrar que alguém não aceita, sem distinção, os estatutos dos santos pais dos quais falei, entre nós denominados 'cânones', fica comprovado também que essa pessoa, seja bispo, seja clérigo, seja leigo, não guarda ou crê nem a fé católica, nem a fé apostólica, nem os quatro evangelhos de forma útil e efi- caz, de modo que possam produzir seu efeito."

De fato, não é grande o teu temor de proclamar, prezado Leão, ousando equiparar estatutos humanos aos evangelhos, e com bastante audácia afirmas que, quando não observados, também não é observada a fé católica. Se te re- I'crcs aos desdenhadores e aos que te estão sujeitos, estás certo. Agora, po- i.?rn, ao confundires costumes e fé, tradições com o evangelho, palavra de se- rcs humanos com palavra de Deus, não és pessoa humana? Quem há de su- portar que se afirme que não guarda o Evangelho e a fé aquele que não esteve

li Papa de 10/4/847 até 17/7/855. Durante o seu pontificado foram produzidas, em Reims, as decretais pseudo-isidorianas, uma vergonhosa falsificaçâo de fontes do direito eclesiásti- co, que foram apresentadas como obra de Isidoro de Sevilha (+ 636). No século XVI descobriu-se essa falsificagâo, que teve grande utilidade para a fundamentação do podcr papai na Idade Media.

sob aqueles estatutos? Observa tu, com os teus, os estatutos e os cânones. Os do Oriente têm outras regras, mas o mesmo Evangelho.

O terceiro é dis. XXI. c. Cleros. Jamais acreditarei que esse capitulo te- nha sido constituido por algum pontifice romano. Parece-me ser uma inven- ção de Isidorol4, que descreve uma metrópole como a medida de uma cidade?', o acólito como portador de velas'6, e mais outros graus com notável ignorância, e não obstante encontra fé. "O pontifice", diz ele, "é o principe

i dos sacerdotes, ou se diz que ele o é como que na qualidade de caminho dos I que seguem. Também é denominado solenemente de sumo sacerdote, pontifi-

ce máximo. Pois é ele que faz os sacerdotes e os levitas. É ele que dispõe sobre todas as ordens eclesiásticas, é ele que estabelece o que qualquer um deve fa-

i zer. Antigamente os pontifices também eram reis. Pois foi costume dos anti- gos que o rei também fosse sacerdote e pontifice. Por isso, os pontifices ro- manos também eram chamados imperadores."

Eu teria preterido com desprezo a esse adivinho juntamente com seus er- ros, não visse eu que, a partir dai, hoje alguns enaltecem o papa como impe-

1 rador e pontifice máximo. Por isso, remeto esse não aos cânones, mas aos i cães, e, para não fazê-lo sem argumento, quero contrapor-lhe decretos con-

trários, que, ao mesmo tempo, apoiarão nossa tese. Na distinctio XCIX, c. prime, se afirma: "O bispo da primeira sé não deve ser chamado de principe dos sacerdotes ou sumo sacerdote, ou coisa que o valha, mas apenas de bispo da primeira sé." E segue-se: "Nem mesmo o pontifice romano deve ser cha- mado de bispo universal."

Aqui convoco para julgamento os próprios cânones e os canonistas. Pe- ço que me ensinem o que devo dizer. Esse cânone está aprovado, mas vê só, ele incorre em pecados ainda maiores contra o sumo pontifice do que jamais ousei imaginar. Em primeiro lugar, não apenas afirma que são frios, mas ain- da nega e proíbe e condena os cânones e canonistas que denominam o pontí-

I fice romano de principe, cabeça, supremo e máximo. Depois lhe toma total- I mente o primado, igualando-o aos demais bispos das primeiras sés, isto é, aos I patriarcas. Onde estão, pois, os que tagarelam que eu teria afirmado coisa

i nova ao dizer - como creio, não sem razão - que os decretos supracitados

i são totalmente frios? Pois esse cânone do Concilio Africano31 deve ter tanto mais preferência sobre aqueles quanto mais está distante da ambição e tem o gosto da humildade evangélica.

Aos que me acusam de herege peço que pelo menos poupem esse cânone, se não querem poupar-me a mim. Admiti tudo o que hoje se atribui ao ponti- fice romano: não nego o assunto, não contradigo o fato, mas discuto seu di-

34 Isidoro de Sevilha, ca. 560-636. Metropalita de Sevilha. via na papa o cabeça da Igreja e p vigário de Deus (vicariusDei). Com suas obras influenciou a cultura do Ocidente em for- mação. Lutero refere-se aqui, no entanto. às decretais pseudo-isidorianas, cuja autoria era atribuida a Isidoro de Sevilha, o que nzo confere.

35 Da grego melro" poleós. 36 Priivavelmente do grego ogein lychnon. 37 Não e powivel verificar a qiie Concilio Africano Lutero se refere aqui.

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reito, e sou de opinião que tais coisas lhe são atribuídas não por direito divi- no, mas por decretos humanos. Que mais devo fazer? Por acaso devo não só confessar o fato, mas também apoiá-lo com mentiras e corrupções da Escri- tura? Isso não!

Por isso, que me condenem o quanto quiserem. Cá tenho o cânone que condena que se chame o pontifice romano de pontífice universal, coisa que eu jamais condenei. Acrescentemos, porém, algumas coisas mais.

Lá mesmo Pelágio3s escreve a todos os bispos nos seguintes termos: "Ne- nhum dos patriarcas jamais deve usar o termo 'universal'. Pois se um patriar- ca é denominado universal, é cassado aos demais o nome de patriarca. Longe dos fiéis esteja a tentativa de alguém apossar-se daquilo com o que pareceria prejudicar a honra de seus irmãos, por pouco que seja. Por esta razão, vosso amor jamais chame alguém de universal, ne.n mesmo em cartas, para que não subtraia a si mesmo o que lhe é devido, atribuindo a um outro honra in- devida."

Vês que é diminuição da honra fraterna se um tem preferência sobre to- das os demais, inclusive de acordo com o que escreve um pontífice romano.

No mesmo lugar escreve o beato Gregório!g a Eulógiom, patriarca de Alexandria: "Eis que no cabeçalho da carta que me dirigistes, ainda que o te- nha proibido, mandastes imprimir um termo de presunçoso tratamento, chamando-me de papa universal. Peço que Vossa gentilíssima Santidade não faça mais isso comigo, porque assim se subtrai a vós o que é concedido a ou- trem além do que a razão exige. Aliás, não considero uma honra aquilo em que vejo meus irmãos perderem sua honra. Pois minha honra é a da Igreja universal; minha honra é o perfeito bem-estar de meus irmãos. Sou honrado quando não se nega a nenhum deles a honra devida. Pois se Vossa Santidade ine chama de papa universal, nega que é o que confessa a meu respeito, ou se- ia, universal. Longe de nós isso. Que se afastem as palavras que inflam a verdade41 e ferem o amor."

Por favor, que diremos? Por acaso ainda peco porque chamei de frigi- dissimos os decretos de alguns ~ontifices romanos, lavrados talvez sob pseu- ~ - ~ - ~

dônimos? Se tivesse seguido este último decreto, teria de chamá-los de pala- vras que inflam a verdade (isto é, a tornam frívola e vã) e ferem o amor. Que tal se eu tivesse dito que elas são não apenas ineficazes, mas também inimigas da verdade e contrárias ao amor?

Acrescenta a isso as cerca de seis epistolas do beato Gregório em suas coleções42, onde expõe, nos termos mais incisivos, esse mesmo assunto ao im-

3R Pelapio 11, papa de 26/11/579 até 7/2/590, proibiu ao patriarca Joãio IV, de Canstantino- pla, o direito de se designar "patriarca ecumênico".

39 Ciregório I, Magno, papa de 3/9/590 até 11/3/6M. 40 Eulúgio I ( + 607). Abade em Antioquia, tornou-se, em 580, patriarca de Aiexandria.

I>estacou-se na luta contra as novacianos e monorisitas. 41 Sic. Aqui Lutero deve ter lido "verdade" em lugar de "vaidade". Cf. WA 2,201. nota I . 42 hi He~e.~li.s suis, no original.

perador de Constantinopla e ao patriarca da mesma, protestando que esse primado foi oferecido ao pontífice romano pelo Concilio de Calcedónia, po- rém não foi aceito por nenhum deles. Se os canonistas modernos disserem que isso foi abolido ou deixou de existir por costume -muito obrigado. É is- so que eu queria. Pois dai se segue que esse primado não existe por palavras do Evangelho ou de direito divino, mas de direito humano e pelo uso. Isso admito, isso confesso. Do contrário, se existisse por direito divino, o prima- do nunca deveria deixar e ter deixado de ser, e Pelágio e Gregório teriam, nes- te ponto, cometido pecado mortal como pessoas que cassaram o direito divi- iio e depravaram o Evangelho. Se, portanto, leis humanas o afirmam de mo- do a tentar prová-lo pela palavra do Evangelho, não terão que fazê-lo de for- ma totalmente fria, ineficiente e violenta? É o que vimos no que dissemos aci- ma e agora veremos aiiida melhor.

O quarto é Anacleto43, [distinctio] XXI, c. in novo. "No Novo Testa- mento", diz ele , "a ordem sacerdotal começou, depois de Cristo, com Pe- dro, porque a ele foi dado por primeiro o pontificado na Igreja de Cristo, quando o Senhor disse: 'Tu és Pedro', etc."

Se ele quer dizer que a ordem sacerdotal começou com Pedro na Igreja latina, pode-se sustentá-lo de certa forma, assim como também Cipriano, na terceira carta, denomina a sé de Pedro a principal, da qual teve inicio a or- dem sacerdotal; ou então começou de tal forma que Pedro foi o primeiro en- tre apóstolos iguais. Mas se ele quer dizer que toda ordem sacerdotal vem pri- meira e unicamente da Sé Romana, evidencia-se o suficiente, a partir do que foi dito, o quanto isso é errôneo; além disso, esse não é um decreto de Ana- cleto, mas palha" de algum Anacleto fictício.

O quinto é Pelágio nesta mesma distinctio XXI: "A santa Igreja Roma- na católica e apostólica (talvez porque não considere as demais nem santas nem católicas) não é superior ás demais Igrejas por decisão de sinodos. Ela obteve o primado pela palavra evangélica de nosso Senhor e Salvador: 'Tu és Pedro', diz ele."

Aqui ele se torna mais claro e não só se opõe atrevidamente aos decretos da distinctio XCIX anteriormente citados, mas também distorce de todo a palavra de Cristo a Pedro, dissociando-a da fé e relacionando-a ao poder da jurisdição e á pompa do primado. Ademais, aceita só a pessoa de Pedro nas palavras de Cristo, rejeitando a pessoa da Igreja, a qual Pedro, de fato, re- presentava naquele momento. Portanto, de acordo com uma nova gramáti- ca, "tu és Pedro" significa "tu és o primeiro", e "a ti darei as chaves" quer dizer "somente à Igreja Romana, enquanto as demais Igrejas nada têm". Mas aborrece-me mencionar tudo. Em resumo (como já disse): se, com essas palavras, Cristo teve em mente a Igreja Romana - embora só tenha surgido no vigésimo ano da Igreja primitiva -, segue-se que a própria Igreja primiti-

43 Bispo de Roma entre 76 e 88(?). O texto como Lutero o conhece nao é de Anacleto, mas "pallia". i . é. interr>ula~;lo de Paucapalea (Pouc.? Palha!). discipiilo de Graciano (315.383).

44 ( ' 1 . r i i i i i i iiritcrii>r.

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va iião foi Igreja e que, por conseguinte, foram desobedientes a Cristo todos os que não receberam as chaves da Igreja Romana. E assim se deveriam con- siclerar condenados a S. Estêvão e tantos milhares de mártires da Igreja orien- i;iI. Isso para deixar de lado que, se a palavra de Cristo designasse o poder da Igreja Romana, como ele quer aqui, e se Cristo promete edificar sua Igreja s ~ b r e essa pedra, dever-se-ia concluir que a Igreja universal não está edifica- do sobre a fé, mas sobre o poder da Igreja Romana. E ela própria está edifi- c;ida sobre quê? Nem sobre a pedra, quer dizer, sobre seu poder, nem sobre a I'?; portanto, sobre nada. Quem pode suportar isso? Vês, pois, como eu po- deria investir contra tais opiniões de seres humanos, se quisesse agir livremen- ie. Agora, porém, me basta mostrar que com esses decretos nada se consegue contra os inimigos e na luta. Pois são fraquissimos, frigidissimos e de todo iiiiprestáveis para a luta. Basta que sejam tolerados por causa do amor frater- tio, ainda que não devam ser adorados como verdade sólida e autêntica.

Todavia, também não se deve tolerar esta conclusão: "Em tudo isso, ciicontra-se tanto maior poder quanto mais elevado o grau. Visto que compe- te aos superiores o poder de governar e de mandar, compete aos inferiores a iiçcessidade de obedecer."

Vê como a todos impõe a necessidade e só para si (contrariando o dever do amor) arroga a liberdade, mas com péssima conseqüência. Pois não há au- ioiiiaticamente maior autoridade onde o grau é mais elevado. Pedro foi o pri- iiiciro dos apóstolos, jamais, porém, teve qualquer autoridade sobre eles; pe- lo contrário, os apóstolos tiveram autoridade sobre Pedro, como está escrito ciii At 8.14: os apóstolos enviaram a Pedro e João, naquele tempo os primei- ros deiitre os apóstolos; não obstante, foram enviados pelos apóstolos, como por superiores, aos fiéis da Samaria. Portanto, é bem evidente que Pelágio se ciiKana nessa passagem, ainda que presumo que cânones como esse nada têm (11)s poiitifices romanos a não ser o nome, e que foram redigidos por seus fun- cioiiários e escrivães, pouco instruidos em teologia. Por isso nada de evangé- lico, riada de eclesiástico se manifesta neles, mas tão-só paixão humana, car- iic c sangue.

O sexto, o papa Nicolaua5, querendo provar, com a maior firmeza, nessa iiicsina distinctio, capitulo Inferior, que o inferior não pode absolver o su- pcrior (entende, porém, por "inferior" a Igreja Constantinopolitana, pois ela Ioi o iiiotivo de muitos cânones sobre esse primado), cita a palavra de Isaias 10.15: "Pode, por acaso, o machado gloriar-se contra quem corta com ele,

,111 :i scrra exaltar-se contra quem a maneja?" "Com isso que foi citado da

47 Nicolau I . papa de 24/4/858 ate 13/11/867. É o mais importante papa do período que vai de Ciregúrio I a Gregório VII, e tambem um dos mais importantes formuladores da teoria 1,ti1iii1. O próprio Cristo instituiu o papado, dando-lhe todas os seus direitas; estes direitos o ~ ~ i ~ p u risi> tem. pois, por delegac20 de algum concilio. Nicolau I compreendia-se como re- ~'rcseiilii!itc de Deiis na terra; sua autoridade era autoridade de Deus. Por isso, não pode Iiiivcr i i i i icrra aiiioridade maior quc o papa, e seus pronunciamentos são definitivos e inal- ierhvcis. Notc~se qiie Isiicro procura desculpar Nicolau I , julgando que o mesma nao teria rxl>icssiali> tais opilii0cs.

I ! i

Divina Escritura", diz ele, "demonstramos mais claro do que o sol que quem tem autoridade menor não pode sujeitar a seu juizo a quem tem autoridade maior." Quein não se admiraria? Com que jeito esse autor lida com as Escri- turas sob o nome do papa! Faz do papa um deus, e dos demais bispos, não ir- mãos, nem mesmo pessoas humanas, mas instrumentos. E a isto se chama, naturalmeiite, demonstrar iiiais claro que o sol, ou seja, espalhar trevas.

Isso para não dizer que, com esse silogismo, ele prova que a pessoa de posição inferior não pode ser juiz da pessoa de posição superior, se bem que tinha se proposto demonstrar quem seria o superior e quem o inferior - esse primado da mais vergonhosa ambição mereceu ser discutido desta maiieira hábil e penetrante.

Depois, no final, chama a Igreja Romana de m.ãe de todas as Igrejas. Nisso admira de quem foram filhas e discípulas as Igrejas da Judéia, a respei- to das qiiais Paulo disse aos gálatas: "Eu era pessoalmente desconhecido das Igrejas da Judéia" [Gl 1.221, e qual foi a Igreja que Paulo devastava, já que naquela época a Igreja Romana ainda estava nos lombos de seu pai Pedro, que se encontrava em Jerusalém. O que, eu te peço, a Igreja de Jerusalém aprendeu da Igreja Romana? Por que mente Paulo em Rm 15.25s., dizendo que os santos pobres da Judéia receberam com razão uma coleta dos roma- nos e outros povos, porque haviam se tornado participantes dos bens espiri- tuais daqueles? Com essa palavra o apóstolo designa a Igreja de Jerusalém de mãe, matriz, raiz de todas as Igrejas do mundo inteiro, inclusive da romana, o que também é verdade. Quem poderá negar que a Igreja dos gentios é pos- terior a Igreja dos judeus e que aquela nasceu desta? -visto que os profetas predisseram isso a respeito dos gentios em tantas passagens, e que se lê em Atos que os discípulos dispersos pregavam o Evangelho somente aos judeus", e que se admiraram da salvação experimentada pelos gentios47, e que Paulo ensina em Rm 15.8s. que Cristo foi um ministro dos judeus e que os gentios conseguiram misericórdia pela ruina dos judeus48. Mas também Cristo diz em Jo 4.22: "A salvação vem dos judeus." Por isso, ele deveria ter dito com modéstia: "mãe de Igrejas"; no entanto, "mãe de todas as Igrejas"

i é exagero demais. O sétimo é novamente Nicolau, dis. XXII. c. omnes. Sobre esse texto

não sei o que dizer. Pois estou quase disposto a corrigir minha tese e afirmar: que a Igreja Romana é superior ás demais, prova-se com o delirio de uma palea49 totalmente inepta, que zomba da Igreja de Cristo sob o nome do pon- tífice romano. Ouve só, pelo amor de Cristo, o que diz ai.

"A Igreja Romana", diz ele, "instituiu a todos, sejam os postos mais elevados de qualquer patriarcado, sejam os primados das metrópoles, sejam as cátedras dos episcopados, sejam as dignidades das Igrejas de qualquer or-

46 Cf. A1 8.1,4. 47 Cf. Ar 10.45. 48 Cí. Km lI.11. 49 1.utcro rcfcrc-sc às interpolacdcs feitas par Paucapalca, discipulo de Graciano (315.383). e

qiic rriiii, de~iyiiadar dc ,><ilro. palha.

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~lciii. Mas a Igreja Romana foi erigida sobre a rocha da fé, que logo então ii:iscia, somente por aquele que confiou ao beato Pedro, o porta-chaves da vi- <I;i eterna, os direitos do reino terreno e, ao mesmo tempo, do reino cclestial."

Rogo-te, leitor, que penses qualquer outra coisa que possas imaginar a icspeito dos pontifices romanos e da própria Igreja Romana, que brilha no cCu e na terra por tantos milhares de mártires; mas Cristo tenha compaixão ilc ti para que não creias que esse decreto tenha sido promulgado por algum pontífice romano ou ao menos com sua ciência.

Em primeiro lugar, esse ímpio, quem quer que seja, usando falsamente o iiome romano, tagarela que, pela palavra de Cristo, só foi fundada a Igreja I<oinana. Quanto ás demais Igrejas, porém, continua ele, não foi Cristo qiicm as fundou, mas a Igreja Romana, porque Cristo erigiu a Igreja Roma- i i : ~ sobre a rocha da fé. E sobre que rocha edificou as outras Igrejas? pergiin- [ i > . Sobre a areia, quem sabe? Não crêem a Igreja Romana e as demais Igrejas ;i iiiesma coisa? Não são elas também Igrejas? Se são Igreja de Cristo, porque icsistes com boca impia a Cristo que diz: "Sobre esta pedra edificarei minha Igreja"? Que significa "minha Igreja"? Seria somente essa uma Igreja Ro- iiiana sua Igreja? Entretanto, se qualquer outra Igreja também é Igreja de ('risto, e Cristo afirma que ela deverá ser edificada sobre a rocha da fé, já se d iz com erro impio que isso diz respeito só a Igreja Romana e não a todas as <lcinais. Apelo agora a ti, leitor, para que julgues se foi com modéstia ou com iiiiodéstia que chamei esses decretos de totalmente frios. Na verdade, deveria i?-10s chamado de totalmente impios, não por serem dos pontifices romanos, iii:is por serem divulgados sob o nome deles, e porque por meio deles se adu- I ; i i i i os sumos pontifices já há tantos anos. E estes não se importam com essas Ii~iicuras, ou até gostam de ouvi-las. Por isso, segundo esse intérprete, deve- iiios entender e complementar o evangelho da seguinte forma: "Sobre a ro- cli;i da fé eu edificarei minha Igreja Romana. A romana, porém, edificará siias Igrejas sobre sua opinião, não as minhas, porque a minha eu a edificarei hilhre a rocha da fé." Eis que agora os aduladores podem ir e estabelecer para iibs que a interpretação da Sagrada Escritura é pertinente aos escrivães do piiiiiifice romano. Ademais, vê o que significa o fato de os juristas domina- iciii na Cúria Romana e, sem teólogos e sem as Sagradas Letras, se vangloria- iciii unicamente de seu poder e da presença do Espirito Santo, isto é, de trata- iciii a Escritura só pelo poder. Aliás, de acordo com a regra de Agostinho, I;iiiihérn o pontifice romano, bem como qualquer outro pontifice, está sujeito :to juizo de qualquer crente, especialmente em matéria de fé.

E ainda: quão evangelicamente é dito que ele comissionou a Pedro com t i rcino celestial e com o terreno! Não é de chorar que somos instados a não :i~~ciias ler essas coisas, mas ainda a tê-las por oraculos do Espirito Santo, e i~iic soiiios instados de tal forma que nos ameaçam com fogo quando nos ma- iiilc.;iarii«s contra qiialquer coisinha? E assim acontece que aceitamos isso coiii iiiais temor e veneração do que qualquer outro mandamento divino refe- iviiic :i questoes de fé ou moral; ai ninguém ameaça com fogo, ao contrário, i i h o C glorificado. Mesmo assim, sonhamos com o bom estado da Igreja e

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!

nem sequer reconhecemos o anticristo sentado no meio do templo. Por isso é blasfêmia a mais impia afirmar que Pedro tem os direitos do reino celestial, pois ele só tem o ministério da Palavra na terra, e unicamente Cristo é Senhor do céu e da terra. Além disso, tanto Cristo quanto Pedro ensinaram a despre- zar o reino do mundo. Esseso, porém, não só diz que não, que eles' o tem, mas ainda colocou nas mãos de Pedro os direitos dele. Disso resultou o mal de que os aduladores instituem o pontifice romano como senhor em ambos os reinos, o que sequer foi dado a Cristo, que nega que seu reino seja deste mun- do. E de se admirar, porém, que Pedro tenha suportado Nero como principe, não só em Roma, como também em sua cruz, quando lhe podia tirar os direi- tos do reino terreno; ou então por certo é frívolo e ímpio que o sucessor de Pedro reclame para si o que se reconhece não ter existido em Pedro. Fora, pois, com essas palavras extremamente arrogantes, como "império", "direi- tos do império", "império celestial e terreno". Essas coisas convêm unica- mente a Deus; a um ministro da Igreja e sacerdote, servo de Cristo, devem ser atribuídas coisas mais modestas.

E segue a mesma palea: "Portanto, não uma decisão terrena qualquer fundou a Igreja Romana, mas aquela palavra por meio da qual foram consti- tuidos o céu e a terra, por meio da qual também foram criados todos os ele- mentos."

Que coisa horrorosa! Ou se afirma isso somente a respeito da Igreja Ro- mana, seguindo-se que todas as demais Igrejas foram estabelecidas por deci- são terrena e sem a palavra de Deus - sem a qual nada do que foi criado foi criado -, de modo que todas as demais Igrejas nada são; ou então se deve, simultaneamente, entendê-lo também em relação as demais Igrejas, ou seja, que elas foram estabelecidas pela palavra de Deus que tudo criou. Disso se conclui que nada de singular se diz a respeito da Igreja Romana a não ser uma vazia ostentasão de palavras; conclui-se ainda que esse fazedor de decre- tos ou nega, com impiedade intolerável, as demais Igrejas juntamente com Cristo, ou então, com sua ignorância, expõe a si mesmo ao ridículo do modo mais manifesto.

Mas se ele se refere a constituição das Igrejas de acordo com o grau de dignidade, não de acordo com a substância, evidencia-se, a partir do que di- zíamos acima, com que perversidade distorce essa palavra de Cristo sobre a fé de toda a Igreja universal em favor do poder de uma só pessoa. Cristo diz que constrói sua Igreja sobre a rocha. Mas o autor do decreto diz que não, que é somente a Igreja Romana. Isso significa reduzir as demais Igrejas a na- da e negar a Cristo.

Além disso, se as demais Igrejas foram estabelecidas por decisão terrena, e se ele disse que essa decisão é da Igreja Romaria, ele se condena com suas próprias palavras ao dizer que sua decisão é terrena e não divina. E onde fica a

5 0 Sc. c, alifor di, dccreir, $ 1 Si.. I'e<lri>.

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i<lEia de que se deve ouvir a voz de Pedro como voz divina e não humana? E iii;iis: quem constituiu a Igrejade Jerusalém, antes queexistisseaIgrejaRoma- II:I? Ou, quem sabe, Pedro não fundou a Igreja Romana pela palavra de Deus?

Se, porém, fala da instituição da dignidade, não da substância da Igreja, ~.iiloco as coisas assim: a Igreja Romana foi constituída superior as outras pe- I;! palavra de Deus; portanto, será necessario que, pela mesma palavra, as de- iii;iis Igrejas sejam constituídas como sendo inferiores a ela, visto que não po- clc scr constituída superior se não existirem aquelas sobre as quais possa ser i.i~iisiiiuida como superior. Onde, pois, fica o que ele disse acima, que as or- ilciis inferiores das demais Igrejas foram instituídas pela Igreja Romana? não 1icl:i palavra de Deus, pela qual apenas ela própria quer ser constituída? Pois ioiiio Cristo poderia ter sido instituído Senhor, se não lhe fossem submissos, siiiiiiltaneamente, os gentios e os confins da terra, e também o monte Sião, \iil~re o qual seria instalado rei?

Acrescenta a isso, se alguém disser: "Se a Igreja Rornana foi estabeleci- iI;i acima de todas pela palavra de Deus, é necessario que se nomeiem deter- iiiiiiadas outras que [lhe] sejam sujeitas pela palavra divina." Pois bem, diga- iii(1s que seja esta a resolução de Deus: "A Igreja Romana é superior as ou- i i;is." Dize-me: onde está escrito seu correlato: "A Igreja de Milão lhe é infe- i ior, oii qualquer outra"? Se nenhuma é nomeada, nenhuma deve ser-lhe su- liosdiriada, pelo menos não por mandamento divino. O que de melhor se po- iIv dizer aqui do que o seguinte: a palavra de Cristo não pode ser entendida riii rclerêucia a superioridade ou inferioridade, mas no sentido da única, iiicsiiia e invencivel fé e do poder igual de todas as Igrejas? Não vês o que sig- iiil'ica matar as Sagradas Escrituras de acordo com as paixões humanas e sem ~riiior de Deus?

<:onclusão: "Ela sem dúvida administra o privilégio daquele em cujo po- ilci se alicerça."

Vê o corolário que ele deduz daí: a palavra de Cristo a respeito da fé, dis- ioii.i<la para o significado de poder, torna-se um privilégio da Igreja Roma- i i ; i , e isto na palavra que se refere em comum a todas as Igrejas, porque Cris- io diz: "Sobre esta pedra edificarei minha Igreja" - "minha", diz ele, "mi- iili:~". Se qualquer outra Igreja é Igreja de Cristo, ela certamente está edifica- il;i hi~hre a mesma rocha, e nenhuma tem qualquer privilégio. Se não é Igreja iIr < 'sisto, e só a Igreja Romana é Igreja, o privilégio deixa de existir, porque ii:iii Iiá Igreja nenhuma sobre a qual a romana possa ser superior. Eu repito:

proiiome "minha" designa ou somente a Igreja Romana, ou toda Igreja. Sr (Icsigna só a ela, já não tem privilégio sobre as demais. Se designa toda I{:ici;i, novamente a Igreja Romana não tem privilégio sobre as outras. Ele qiir csci>llia o que quiser -por essa palavra a Igreja Romana ou estará sozi- iiI i ; i oii iiáo será a primeira. Portanto, essa primazia tem que ser comprovada ilv <iiitr:i forma, pois vês de que maneira bonita o Evangelho de Cristo escapa ; i css:i zonibaria e, como se lê nos Provérbios de Salomão, zomba de seus rc1i11h:i~lorcs5~.

Mesmo assim, são tantos os que, com base nessa misera palha, gloriam o privilégio da Igreja Romana em toda parte como artigo de fé, até mesmo co- mo o primeiro e maior de todos, tolerando antes que negues a Cristo do que que não adores a esse privilégio que perverte as palavras de Cristo.

E de novo segue-se um corolário digno de tal teoria: "Por isso não há lu- gar para dúvida, pois quem tira de alguma Igreja seu direito comete uma in- justiça. Quem, todavia, tentar tirar da Igreja Romana o privilégio que lhe foi concedido pela própria cabeça máxima de todas as Igrejas (olha como esse gritalhão abre a boca) sem dúvida incorre em heresia."

A Igreja Romana não tem um direito, mas um privilégio. Qual? Que ela está edificada sobre a rocha da fé. Pois, de acordo com esse autor, isso só va- le para a Igreja Romana. Depois, entende por "rocha da fé" essa prelazia do primado terreno. Pois essa palea mistura e confunde Constantemente essas duas coisas.

Por favor, quanta paciência é necessária para aguentar tudo isso? Pri- meiro, como já disse, se "pedra" designa a fé, todas as Igrejas a têm, e não resta nenhum privilégio. Se, porém, nem todas as Igrejas a têm, a Igreja Ro- mana ficará sozinha, não tendo nenhuma a qual possa ser preferida. Segun- do: se "rocha da fé" significa a dignidade, ele a si mesmo se contradiz numa mesma palavra e adultera a palavra de Cristo, pervertendo o significado de "fé" em "poder" e arrastando o Espírito para a carne, Cristo para o mundo.

Portanto, não é um herege quem nega esse privilégio da Igreja Romana, mas é um depravador da palavra de Deus quem entende sob "rocha da fé" o privilégio do poder temporal.

Que, entretanto, no fim cita a Ambrósios3, que afirma seguir a Igreja Romana, mãe das Igrejas - queira Deus que o fizesse como Ambrósio! A Igreja Romana é mãe, porém não de todas as Igrejas. Pois também qualquer metrópole é mãe de Igrejas, de acordo com os estatutos dos pais. Ademais, a Igreja Romana nunca infligiu as palavras de Cristo as ofensas que Ihes inflige essapalea, mas entende sob "rocha" a fé e não a ambição da tirania.

O oitavo (para terminar com esses deploráveis intérpretes da Escritura Divina) é de novo Anacleto, na mesma distinctio, no capitulo Sacrosancta (pois esse notário totalmente bárbaro, quem quer que tenha sido ele, foi atre- vido ao ponto de atribuir mesmo a um papa tão ilustre tamanha ignorância e temeridade, como veremos): "A sacrossanta Igreja Romana (porque outras não são santas ou não são sacrossantas, ainda que sejam santificadas na mes- ma fé, na mesma Palavra, no mesmo sacramento, no mesmo Espírito e tam- bém na mesma santidade) recebeu o primado, não de apóstolos, mas do pró- prio Senhor e Salvador, como diz o beato Pedro: 'Tu és Pedro', etc."

Se algum gentio ouvisse que as palavras de Cristo são interpretadas dessa maneira, quando se tornaria cristão? Portanto, também aqui ele entende o primado sob a palavra "tu és Pedro" ou "essa pedra". Podem, porém (para

53 340-395. Governador do Norie da IIAlia. Eni 375 foi eleilo hispo de Milao. Dcsiacoii-se na IIIIU C<>IIIT~I L> arii~nw.

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iclictir a mesma coisa), escolher qual das duas quiserem. Nesta passagem, de- \igiiii com "Pedro" ou a fé do Espírito ou o primado exterior, pois não pode qiicrer dizer as duas coisas ao mesmo tempo. Se designa a fé, segue-se que to- das as Igrejas estão edificadas sobre ela, porque Cristo diz: "Sobre esta pedra cdificarei minha Igreja." Portanto, cabe a cada uma ser chamada "minha Igreja" por Cristo, a mesma se refere pedra e Pedro, sobre a qual é edificada. Assim, a Igreja Romana nada tem de próprio, mas tudo é comum, porque onde há a mesina fé, ali também existe o mesmo poder das chaves. Pois está claro que as chaves foram dadas à fé e a rocha. Se designa poder, novamente iodas as Igrejas são iguais, porque a cada uma é dito por Cristo: "minha Igreja" e, ao mesmo tempo: "eu te edificarei sobre a rocha", isto é, sobre o poder. Por essa razão, qualquer Igreja será, mediante essa palavra, a primei- ra de todas, porque tem a mesma rocha por causa da qual a Igreja Romana se pliiria de ser a primeira. Assim, para onde quer que te voltes, Cristo sempre se ie opõe e te resiste, construindo sua Igreja sobre a rocha, e não permite que essa rocha - e por isto também Pedro - se torne propriedade de alguma Igreja particular. Vês, portanto, que aquele único pronome "minha", como cristal do céu, esfria todas essas decretais, de sorte que, em face de sua frigi- dez, nenhuma delas pode manter-se, porque ele torna tudo comum: a rocha, 11 poder, as chaves, Pedro. Assim, de direito divino, o que a Igreja Romana teiii qualquer Igreja tem, por menor que seja, porque fala a todas elas. Tam- Iitiii Paulo diz em 1 Co 3.21s.: "Tudo é vosso, seja Paulo, seja Apolo, seja ('cí'as, seja o mundo, tudo é vosso; vós, porém, sois de Cristo."

Seria, de fato, ridículo que todas as Igrejas tivessem o mesmo Batismo, a iiicsiiia Eucaristia, a mesma confirmação, a mesma palavra de Deus, o mes- i i i i i sacerdócio, os mesmos Sacramentos de Penitência, Unção, Matrimônio e iodos os demais, a mesma fé, esperança, amor, graça, morte, vida, glória, e qiic só esse poder temporal tivesse sido atribuído a uma única Igreja pela pa- I;i\,r:i divina que é comum a todos.

l'or isso, onde quer que se pregue a palavra de Deus e se creia nela, ali es- i:i ;I verdadeira fé, essa rocha irremovível; e onde está a fé, ali está a Igreja; iriiclc está a Igreja, ali está a noiva de Cristo; onde está a noiva de Cristo, ali isi;i tudo o que pertence ao noivo. Assim, a fé traz consigo tudo o que resulta iI:i 1';: os chaves, os sacramentos, o poder, e tudo o mais.

I'crgunto também: se as chaves foram dadas só a Pedro, e não a Igreja iiiiivcrsal, por que não são chamadas de chaves de Pedro? por que não são 'Ii;iiii:~diis de cliaves da Igreja Romana? por que o próprio pontífice as deno- i i i i i i ; ~ de chaves da santa mãe Igreja, em suas cartas? Pois, ou essa expressão i.~~iiiiiiii :I Iocla a Igreja faz iniiistiva à Igreja Romana em seu privilégio, que ;iiri)g;i as cliaves para si, ou então a Igreja Romana procura o cisma, diren- ilo: " l i i i sou de C'cfas", e iisi~rpa de toda a Igreja algo que ela própria confes- ..;i scr c~iii~iiiii. lividciicia-se, ~iorlniilo, do testemunho público de todos que ; i \ i.li;ivcs 11311 10i.;iii1 coiifi;~d;is ;i I'crlro, mas a Igreja universal e a qualquer I I I I I ; ~ . AlCiii disso, ohscrv;~ :iiiid;i coiii que correção entendem sob "rocha" i i i i i ~ i < ~ ( l i . i . I'ois coiiio 1190 ~>o<lc cxi\lir poder sem que antes tenha sido funda- iI:i :i Ij:rri;i <~i ic 11~iss:i rv<.rIiv~ o ~i~ i ( Iv i . . como pode a Igreja ser edificada sobre

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o poder, ou seja, o aiiterior sobre o posterior? Por fim, Cristo não entende um poder sob "rocha", mas sob "chaves", as quais entrega a Igreja aute- riormente edificada sobre a rocha (isto é, a fé), como prova claramente a or- dem do texto. Vês, pois, o quanto a ambição cega os olhos da mente, de sorte que, não satisfeito com o poder das chaves, ele transforma até a rocha da fé, que é a substância da Igreja, em poder.

Ao denominar a Sé Romana a primeira, a alexandrina a segunda e a an- tioquiana a terceira, esse Anacleto de novo se refuta a si mesmo. E não ape- nas pelo fato de essa ordem ter sido modificada já há muito, mas também porque dai se segue o seguinte: ou a alexandrina é, por direito divino, a se- gunda e a antioquiana a terceira, ou a Sé Romana não é a primeira, porque tem que ser a primeira pelo mesmo direito como a segunda e a terceira. Está evidente, porém, que Roma determina a ordem de segundo e terceiro por sua própria lei; logo, também é por seu próprio direito que coloca a si mesma co- mo a primeira.

. . xa claro que Evódiors sucedeu's Pedro, e Inácio a Evódio. Por isso não é de se acreditar que Anacleto seja o autor desse cânone.

Escuta uma vez mais as afirmações do homem seguro, isto é, temerário: "Entre os santos apóstolos", diz ele, "houve certa diferença de poder. Ainda que todos fossem apóstolos, foi concedido a Pedro, da parte do Senhor - e os próprios apóstolos entre si quiseram a mesma coisa -, que presidisse a to- dos os demais apóstolos."

Por favor, em que consistiu essa diferença de poder? Por acaso Pedro ordenou apóstolos? foi ele quem os enviou? ou os confirmou? Onde leste, sua besta, que o Senhor concedeu a Pedro um poder diferente dos demais? Quando eles próprios desejaram isso?

Sim, marca isto: o primado é duplo, de honra e de poder. Ninguém nega que Pedro tenha sido o primeiro pela posição. Pois também entre os cardeais, bispos, sacerdotes, doutores, príncipes, mesmo que ninguém seja sujeito a outros, é necessário que, numa reunião, alguém presida, apesar de que nada Ihes tenha a ordenar. Assim, confessamos que Pedro é o príncipe dos apósto- los, o primeiro membro da Igreja, cabeça do colégio dos apóstolos e outras coisas mais que os santos pais enunciaram a seu respeito. Vemos, desta ma- neira, que os pontífices romanos sempre foram honrados como sucessores de Pedro e tidos por primeiros. E nisso se agiu de modo correto e louvável, se age agora e se deverá agir sem querela.

O segundo primado, porém, o do poder, jamais foi confiado a Pedro, pois qualquer dos apóstolos pregou o Evangelho sem a autorização de Pedro, ordenou bispos e presbiteros em suas localidades; todos são enviados somen-

54 Inicio de Antioquia, morto por volta de 110, em Roma, coma mhrtir, foi talvez o segundo bispo de Antioquia. As principais fontes para a sua vida sgo as sete cartas de sua autoria (fifcso, Magnésia, Trates. Roma, Filadélfia, Esmirna e Policarpo).

55 I'riliieiro hispo de Antioquia. Lutero baseia-se em Eusébio, Hislorio ecciesi~slico 111,22.

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LC por Cristo, de forma igual e imediata. É esse o primado ambicionado por esses honestíssimos cânones, que abusam das palavras de Deus para fortale- cer essa tirania. Pois não querem que, no mundo inteiro, alguém se torne bis- po sem que tenha o pálio e a autorização do pontífice romano. E onde Pedro não se elevou acima dos apóstolos, ali o sucessor de um apóstolo, muito infe- rior a seu predecessor (como um bispo em relação a um apóstolo), não satis- feito com o primado de honra, quer dominar sobre todos os sucessores dos apóstolos em poder e violência, mas não quer ele próprio apascentar, etc.

Esse motivo invencível é o que contraponho a todos os que adulam o pontífice romano por causa de seu domínio sobre o mundo inteiro, e espero confiante o que podem argumentar ou ganir em contrário. Apoiado nisso co- rno a verdade mais certa e de todos perfeitamente conhecida, declaro con- fiante que os decretos que estabelecem qualquer outra coisa são não apenas Frigidíssimos, mas também contrários a Escritura Divina, ao evangelho, aos Atos dos Apóstolos e as epístolas dos apóstolos, onde Pedro é descrito com tanta freqüência, de forma tão clara, como igual aos apóstolos, e onde se afirma que lhe foi confiada determinada região no mundo. Por isso, não pos- so parar de me admirar que houve tempos em que puderam existir aduladores (emerários ao ponto de ousarem elevar sua fumaça terrena contra essa fulmi- nante prova bíblica, arrogando para o bispo sucessor de Pedro coisas que ja- iriais foram permitidas ao apóstolo Pedro, seu predecessor. Eu não me admi- raria se apenas lho arrogassem, nem me queixaria por isso; faço-o, todavia, porque preferiram falsificar as Escrituras que rejeitam tal arrogância do que desistir desse primado temporal do poder tendo em vista a oposição das Es- crituras.

Acrescento a isso que os pontífices romanos também não agem correta e cvangelicarnente ao governar de tal modo os bispos procedentes da Igreja Ro- iiiana, ou seja, a Igreja latina, que só eles próprios ordenam e confirmam a todos eles. Nisso parecem arrogar-se não a Cristo, mas as Igrejas de Cristo, visto que, a exemplo do apóstolo Paulo, deveriam confiar a constituição de hispos também a outros, a saber, aos arcebispos e bispos vizinhos. Deveriam, portanto, encomendá-los a Deus e jamais obrigá-los a dirigir-se a Roma por causa de um novo bispo, pois isso tem forte aparência de avareza e tirania, 17clas quais querem dominar sobre a fé deles; disso Paulo não quis fazer uso liara si entre os coríntios~% Seria suficiente ter colocado uma vez um bispo, para depois encomendá-los a graça de Deus e confiá-los á própria propaga- <?I«; ou então, apenas cuidar para que não se desviem da fé, como o apóstolo rlcii o exemplo em Gálatas. Agora, presenciamos como, sob o pretexto desses I>ciicfícios e do primado, os bispados e sacerdócios de todos são arrastados para a voragem da avareza romana, sendo tantas monstruosidades da mais iiiipndente simonia acobertadas com essa Única tampa.

Scgue-se: "E Cefas, isto é, a cabeça e o princípio, deveria ter o apostola- (10."

Esta frase pelo menos mostra que o primado foi buscado mais por ânsia de poder do que por amor a verdade. Pois como usariam tantos argumentos falsos se tivessem, uma só vez, um motivo sólido? Uma mentira necessita de muitas mentiras para parecer verdadeira. Assim, esse tal de Anacleto encena- do e inventado é tão ignorante que traduz "Cefas" por "cabeça", contra o clarissimo e apostólico testemunho do apóstolo João, que diz: "Olhando-o, Jesus disse: Tu és Simão, filho de João; serás chamado Cefas, o que significa Pedro." [Jo 1.42.1 Envergonha-me que se constrói um negócio de tamanha proporção em cima desse erro tão crasso, no que revelam, ao mesmo tempo, que foram negligentes leitores do evangelho. Por isso, não admira que tam- bém o entendem falsamente. Leão o entendeu melhor acima", ao compreen- der "pedra" como "solidez", conhecendo bem o vocábulo "Cefas". Esse, porém, não entende corretamente nem o evangelho nem os cânones. De acor- do com Jerônimo, "Cefas" é um vocábulo sírio e significa solidez, o que o grego traduziu por petrum ou petra, ou seja, pedra ou rocha firme. Nosso pateta, entretanto, tomou o vocábulo grego kephalen pelo cefas sirio; mesmo assim, esse cânone é considerado o primeiro entre os cânones sagrados. Pois nas de- cretais reunidas por Gregório 1Xsa e Bonifácio VI1159 se atribui a esse cânone e a outros semelhantes a clc tanta autoridade, que não existe quase nenhuma que não contivesse todo esse cânone.

Deixo de lado o que ele fabula a seguir - que essa forma foi transmitida aos sucessores e que deve ser observada pelos demais bispos -, visto que na- da manifesta senão a máxima ambição.

Segue-se uma bela comparação: "E está estabelecido não apenas no No- vo Testamento, mas já estava também no Antigo, conforme está escrito: 'Moisés e Arão entre seus sacerdotes' ISI 99.61, isto é, eram os primeiros entre eles."

Que ouço eu? Afinal, não leio em vão esses cânones! De que forma notá- vel aprendo a entender as Escrituras! Primeiro, até hoje conhecia só um su- mo sacerdote na lei antiga; agora aprendo que os primeiros eram dois. Segun- do: observa também a nova gramática: "entre seus sacerdotes" é a mesma coisa que "eram os primeiros entre eles", enquanto que, até agora, eu enten- dia que esse versiculo do salmo outra coisa não diz senão que Moisés e Arão eram sacerdotes, ou eram contados entre os sacerdotes, como também Sa- muel contava entre aqueles que invocavam seu nome. Jamais cogitei algo co- mo primado. A terceira lição é que o sumo sacerdote da antiga lei foi prefigu- ração do pontifice romano. Pois o apóstolo, na Epístola aos Hebreusm, me enganou de forma admirável ao ensinar a todos os mestres da Igreja que pelo sumo e único sacerdote não foi prefigurado o pontífice romano, mas somente Cristo.

57 Cf. pp. 284s. 58 Pap;i de 19/3/1227 ate 22/8/1241. 59 I'alxi dc 24/12/1294 ;i16 1 1 /10/1303.

('I'. 1117 7,21~\\ .

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Isso para deixar de lado que sabemos que tudo aconteceu figurativamen- Ic a eles, e que aquele volta a evocar a figura no Novo Testamento, para que a ligura seja igual nos dois testamentos, não restando nenhuma diferença entre iiinbos. Irrita-me que as Divinas Letras sejam pisoteadas tão descaradamente por esses porcos, mais ainda quando isto é feito sob o nome do pontifice ro- inano e da Igreja Romana.

Que é isso: estabeleceu dois sumos sacerdotes no Antigo Testamento, em grande prejuízo de seu primado? Segue o que dizes, ainda que seja falso. Que I'ique de pé a comparação. Pôe também agora dois primeiros. Como prova- i-& que um é o primeiro através de dois primeiros? Vês, portanto, que essas pessoas foram tais que, abusando da simplicidade de nossa fé, ousaram esta- liiir qualquer coisa que Ihes ocorreu em sonho.

Por fim conclui e, com a mesma destreza, denomina a Igreja Romana o centro pelo qual todas as Igrejas são governadas, por disposição do Senhor. Com isso quero terminar aqui. Pois os outros cânones que dizem a mesma coisa fazem-no certamente por estarem infectados pelo veneno desses.

Não posso, porém, deixar de mencionar ao menos uma decretal, para que fique manifesto o que se ganha quando se governam Igrejas e não se en- tendem as Escrituras Sagradas. Pois existem também muitíssimas decretais totalmente frias, em especial aquelas que estão sendo mais usadas. Deixo de Itido aquela De constitutione c. translato, que considero ter sido tão castigada [por mim anteriormentesi, que é desnecessário repetir isso aqui. Assumo, con- indo, esse Ônus em relação ao capitulo Significasti, de elect.: ali o arcebispo clc Palermo, juntamente com o rei e o reino da Sicilia, se admirou, com muita iiizão, que se exigia daquele que receberia o pálio um juramento. Com bela iiiodéstia, aduziu o mandamento de Cristo e as decisões dos concílios contra i nl exigência extremamente nefasta, recebendo então a seguinte resposta e in- icrpretação da Sagrada Escritura por parte de Pascoal, o pontifice romano, oii seja, dos escrivães romanos:

"Eles podem ficar admirados", diz ele, "que, ao confiar a Pedro o cui- cl~ido das ovelhas, nosso Senhor Jesus Cristo colocou uma condição, dizen- do: 'Se me amas, apascenta minhas ovelhas', etc. [Jo 21.171.''

Tão abalados ficaram os próceres do papa e da Cúria Romana com essa pergunta desse único bispo, que não encontraram o que responder, atéque o I(si~írito do Senhor os conduziu ao ponto onde tiveram que mostrar a todos qiic nem seu desejo nem seu pensamento estiveram nalei de Cristo. Quero fa- /ri- uma vez o papel do arcebispo.

Se o exemplo de Cristo te agrada e vale para ti, Pascoal, por que não o iiiiitas? Se não te agrada, por que o mencionas? Por que também tu não te sa- i isl'azes em perguntar se ele ama a Cristo, confiando-lhe as ovelhas de Cristo sciii exigir juramento? Já que te agrada o exemplo, por que não te basta tam- htiii a condição? Por acaso a condição do juramento é melhor e mais sagrada (10 qiic a condição do amor? Ou esperas que quem é coagido a jurar fará mais

do que quem ama espontaneamente? Cristo isenta Pedro da lei e da coação do voto e do juramento, procurando nele apenas o compromisso da esponta- neidade e do amor. Tu, porém, tiras a liberdade e o coages com a lei do jura- mento. Onde fica o exemplo de Cristo? onde a semelhança da condição? Deve-se entender sob a palavra "amar" um juramento?

Por acaso Cristo exigiu de Pedro um juramento para a Igreja Romana? Que têm as ovelhas de Cristo a ver com um juramento feito a ti e tua Igreja? As ovelhas são tuas ou de Cristo? Tu, porém, excelentissimo pai, nem te preocupas se ele ama a Cristo. Para ti, isso é de somenos importância, uma condição sem nenhum valor. Para que te seja fiel, o amarras com um jura- mento. A pergunta do arcebispo ainda continua aberta; não a respondeste.

Ainda há que perguntar com que direito extorques essa fidelidade. Tua resposta te afunda e enreda ainda mais. Pergunto ainda: a quem juras tu fide- lidade? Por que crias e impões a outrem um ônus que não queres tocar sequer com um dedo, contrariando tanto o amor quanto a lei da natureza?

Depois, continua de pé também aquela outra pergunta: por que os ponti- fices anteriores não exigiram juramento? Por que outros não o prestaram? De onde vem essa nova exigência? Queres que eu o diga? A consciência tem medo por causa do poder possuido de má fé, a justiça não dá apoio. Por isso se buscam consolo e segurança de qualquer jeito.

Assim, hoje ninguém pode ser bispo sem jurar fidelidade ao pontifice ro- mano. Mas tão logo tenhas jurado fidelidade, és digno de ser bispo, quer ames e apascentes, quer não. Pois Cristo que exija tais condições; que nos in- teressa isso hoje? Nem há preocupação se é santo e instruído ou nem tanto. O que importa é que seja escravo da Igreja Romana. Não é permitido servir a Cristo, mestre da liberdade, sem que antes te tornes escravo juramentado da Cúria Romana. Basta que do exemplo de Cristo se tenha aprendido a impor arbitrariamente aos irmãos quaisquer condições, por mais iníquas que sejam, sem lembrar a própria condição de Cristo sequer com uma sílaba.

Mas responde uma vez mais, Pascoal, estou te atacando com tua própria opinião. Se Cristo colocou ali a condição, conforme dizes, definimos agora de acordo com tuas próprias palavras: ninguém é pontifice romano se não ama e apascenta. Pois se trata de um pacto e de uma incumbência condicio- nados. Se a condição não persiste, não vale o pacto. Valho-me, pois, de teu próprio entimema. Sem cumprir a condição do juramento, o arcebispo de Palermo não é, de fato, bispo. Logo, também tu não és papa se não cumpri- res, de fato, primeiro a condição de amar e apascentar. Se isto é verdade, não tivemos papa em 600 anos. Pois nenhum nos ensinou a palavra de Deus. E não basta prometer que amarás, pois também a ti não basta que alguém pro- meta que irá jurar. Assim como exiges do irmão o cumprimento da condição, da mesma forma nós exigimos de ti, em nome de Cristo, o cumprimento des- sa condição maior, ou então negamos o papa por teu próprio argumento. Que queres fazer nesse caso? Vês, portanto, o quanto a Escritura não suporta corrupção, quão vãos revela serem aqueles que a maculam. Pascoal não se quis dar por vencido com a interrogação nem aparecer como quem agiu mal. No entanto. scrii se dar conta, cle mesmo prova que é indigno de todo o pon-

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tificado. Enquanto tira o argueiro do irmão, mostra-nos suas traves. Este é, pois, o apascentamento: os romanos tudo torcem para si, impõem tudo a to- dos, subtraem-se a todos e, o que é mais atroz, á força nos conduzem não a <:risto, mas a si próprios; não exigem a condição pela qual prometemos a li- herdade de Cristo, mas pela qual juramos servidão a eles. Que miséria maior ]pode haver na Igreja do que ser aglulinada não pelo amor, mas pela força? que os pontifices imperem não pela bondade, mas pelo poder? que os súditos sirvam não por amor, mas coagidos por ódio e temor?

Segue-se, porém, uma digna aplicação da parábola: "Se aquele que fez a consciência e conhece o que é secreto recorreu a essa condição, não apenas uma vez, mas ainda uma segunda, até ao ponto de entristecê-lo, com que cui- dado devemos nós impor tão grande prclazia da Igreja aos irmãos cujas cons- ciências não vemos?"

Ora, isso não admira, pois Pedro, Paulo e os demais apóstolos iião ti- iiliam tanta preocupação como agora a têm os romanos. Além disso, talvez conhecessem as consciências daqueles a quem constituiam sacerdotes, e não se importavam tanto com o exemplo de Cristo. Não significa isso rir-se de si incsmo? Mas também Cristo, proprieiário das ovelhas, mesmo que se tenha ciitregue por elas, não foi solícito ao ponto de exigir de Pedro um juramento. Como que sonolento, apenas exigiu o amor, de fato algo totalmente insignifi- cante. Se Pascoal não colocasse o juramento acima do amor, sem dúvida se satisfaria com o exemplo de Cristo e não se queixaria de ter que ser mais cui- dadoso do que o próprio Cristo, que colocou inclusive Judas a frente das ove- lhas a serem apascentadas. Cristo sabia que Judas era mau; mesmo assim, fez isso sem condição. Vês como ele" conclui do menor ao maior: "Cristo exi- giu, quanto mais nós", como se realmente tivesse qualquer coisa a ver com o assunto o fato de Cristo conhecer as consciências, enquanto o pontífice ro- iiiano não as conhece, visto que, nesse ponto, Cristo forneceu a todos um cxcrnplo a ser imitado. Por fim, também nós não conhecemos a consciência do pontifice romano; portanto, que jure a condição também a nós, pelo me- ii«s a de Cristo.

Torno a perguntar; se o desconhecimento da consciência é a única razão !>;ira exigir o juramento, por que não o obrigas a jurar que jurou corretamen- ( c , e assim até o infinito, visto que em nenhum dos juramentos conheces sua coiisciência para saber se jura de verdade ou falsamente? Mas se não é esse (lcsconhecimento da consciência que motiva a exigência do juramento, com qiic aircvimento aduzes então o desconhecimento da consciência como moti- vo'! Qiie admirável tolerância e intolerância do desconhecimento da consciên- . .i LIII um homem em relação ao mesmo homem é essa? Se lhe confias tama- i i I i ; i ;idrriiriistra~ão. uma vez cumprido o juramento, por que não abres mão 'I<, iiinis Ilcil, do juramento? Acaso crês que o juramento a ti prestado é mais ii~il>orta~itc do que a administração de uma Igreja tão grande?

A isso acresce que o desconhecimento da consciência deveria tornar-te tão confiante para conceder a prelazia, que tanto mais deixes de lado o jura- mento quanto menos conheces as consciências, para não acontecer que o obrigues a um perjúrio. Deverias ter te alegrado com o fato de que Cristo te deixou a liberdade de poder confiar as ovelhas a pessoas cujos corações não conheces. Agora, contudo, pelo juramento, exploras assuntos secretos ou pões o irmão em perigo - duas coisas gravissimas. E isso sem motivo, não por amor de Deus, mas por causa da fidelidade ã Igreja Romana.

Por fim, se o desconhecimento é o motivo do juramento, segue-se que, se conhecesses a consciência, terias exigido o juramento injustamente. Mas como cada qual deve presumir o melhor a respeito de cada qual, e como con- vém ao amor crer tudo, essa confiança no bom caráter do irmão é mais segu- ra do que todo saber. Pois mesmo que o soubesses, não o poderias saber por muito tempo. Crer, porém, tu poderias sempre.

Por último: por acaso conheces sua consciência após o juramento? Por que então não te jura o tempo todo, visto que o tempo todo te dá motivo para o juramento?

Isso eu disse para vermos o que significa não ceder a palavra de Deus e adaptar as Escrituras a própria compreensão. Como poderia eu esperar que o direito de interpretar a Escritura estivesse com os pontifices romanos, eles que, de modo tão manifesto, lidam com as Escrituras num sentido que Ihes é estranho? Ou, que há que os romanos não queiram conseguir na terra? Que não ousariam, sob seu nome, os aduladores, se sua opinião nos prendesse6" arruinasse, a saber, que não se devem ler suas afirmações com juizo e que so- mente a eles foi concedido o direito de interpretar as Escrituras? Então de fa- to (para usar uma palavra de Agostinho) se brinca na Igreja sem perigo para esse primado. No entanto, seria de admirar se não se zombasse tanto de Deus como de nós. Fora, fora com esse cativeiro mais do que babilônico.

Segue-se agora a refutação das objeções: "Eles dizem que qualquer jura- mento foi proibido pelo Senhor no evangelho@ e que nem dos apóstolos, de- pois do Senhor, nem nos concílios pode ser encontrada tal determinação."

Derrubado por esses golpes incontestáveis, vejamos o que dirá ele: "Que é, portanto, o que o Senhor diz depois: O que passa disso vem do malas? Pois esse 'o que passa disso' nos obriga a exigir esse mal, visto que no-lo permite."

Ele afirma e ordena aquilo que Cristo proíbe e nega. Cristo diz: o que passa disso vem do mal, ou seja, não deve acontecer. Pois se refere à propen- são de jurar sem que a necessidade do irmão o exija, isto é, ao prazer de ju- rar; assim como proibiu cobiçar uma mulher, mas sem que tenha proibido cumprir os deveres conjugais, da mesma forma proibiu o prazer de jurar, e não o juramento devido. Ele diz aqui: "Esse 'o que passa disso' nos obriga", quer dizer, tem que acontecer em todo caso. Ouçamos, porém, o que é esse

63 Coepenf, no original. Trata-se provavelmente de um lapso, devendo-se ler ceperif, como fi- zemos.

64 Cf. Mt 5.34. 65 Cf. Mt 5.37. h2 Si.. i> ii!ll<,l ~i lado .

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"inal", algo em que jamais alguém pensou em relação às palavras do evange- lho:

"Não é verdade que é um mal", diz ele, "recuar da unidade da Igreja e da obediência à Sé Apostólica e opor-se às determinações dos cânones? Mui- tos se atreveram a isso, mesmo depois de prestado o juramento."

Eu achava que esse "mal" deveria ser interpretado como não amar a Cristo, não pastorear as ovelhas, e, por causa do cuidado por elas, ser pres- sionado a exigência do juramento, pelo exemplo de Cristo. Que Cristo exija isso de Pedro. Hoie a oreocuoacão é de aue os bisoos não se afastem da obe- . . . . diência a Sé Apostólica.

A isso respondo: meu bispo ainda não cometeu nenhum mal desses. Por que então lhe exiges o juramento? Acaso porque não sabes se ele o fará no fu- turo? Por que não exiges um juramento por cada mandamento de Deus? Por qiie n3o te compele o nial iicm cuu? 0ii não i uni mal aiatiar-\e dos manda- iiir,rito> de Deu,? Siiii. r u enche, a Irrciii só de iuramentos. Se65 tilo na:ieriie - . com os mandamentosde Deus, ao ponto de náo te compelirem ao juiamento tantos males que reinam abertamente, também em tua própria casa, como podem, em relação aos teus mandamentos, compelir-te ao juramento males que não existem e que talvez não acontecerão? Não se torna evidente que o amor de si mesmo se expõe tanto mais quanto mais se mascara? Não resta ab- solutamente nenhum motivo para que não exijas, com muito mais razão, ju- ramentos para o beneficio de Deus, se os exiges em teu próprio beneficio; ou então, se não o fazes naquele caso, não o fazes neste sem incorrer em culpa.

Cá tens, portanto, um mal que os romanos vêem no Evangelho: a má suspeita de bons irmãos. Pois os,outros que vejam se as transgressões dos mandamentos de Deus são más. O olho da ambição e da avareza!

Segue-se: "Por esse mal e pela necessidade somos, naturalmente, com- pclidos a exigir o juramento por causa da fidelidade, da obediência, da uni- dade."

Por acaso também por causa da fidelidade a Cristo, da obediência a I>cus, da unidade dos irmãos? Não. Uma coisa é o bom e o necessário para a Igreja: que Roma domine em segurança e todos os demais sirvam em escravi- tláo.

Por isso os cristãos na índia" sofrem de um grande mal até hoje. Assim, ;i horrenda suspeita contra os melhores irmãos é o motivo de se exigir um ju- rainento, embora não tenham essa suspeita em relação aos mandamentos de I>ciis, nos quais presumem que tudo seja cumprido.

Também aqui ele entende por "unidade da Igreja" a fidelidade e obe- ~IiCiicia a Igreja Romana, não a fé, a esperança, o amor, os sacramentos, a I1nl:ivra e outras coisas dessa espécie, mas sim essa Única coisa que não que- rciii qiic caiha a qualquer outra Igreja a não ser a sua própria. Assim mesmo 1:li:iiiiain isso de unidade. Hoje só a Igreja Romana tem isso, decerto seu bem siii~rciiio. Assirn mesmo todas as demais concordam que não o têm; portan-

I to, elas se unem numa coisa que não Ibes é comum, mas singularíssima e atri- buída a um único ser humano. Assim, em nossos dias, temos que aprender novos vocábulos nas Escrituras e na Igreja de Deus. Quão mais corretamente

I entendeu Cipriano6' o amor como essa unidade, como também Cristo rogou ao Pai em Jo 17.21: "Que sejam um em nós, como também nós somos um." "Um em nós", diz ele, e não "na Igreja Romana".

I No fim: "Dizem que nos concílios não se encontra tal determinação, co- mo se quaisquer concílios tivessem prescrito uma lei à Igreja Romana, en- quanto todos os concilios foram realizados pela autoridade da Igreja Roma- na e também dela receberam força; e em suas determinações a autoridade do pontifice romano é manifestamente excetuada."

Quem pode suportar uma coisa dessas, eu te peço? Acaso o Concílio de Nicéia recebeu força e foi realizado pela autoridade da Igreja Romana? Aca- so também os muitos outros realizados outrora por Agostinho e Cipriano na África? Afinal, mesmo que as determinações excluíssem o pontífice romano, ainda assim ele não deve querer fazer exceção, por causa da edificação da Igreja. Aqui, porém, se gloria de nada dever a ninguém, para que também Deus nada lhe deva.

Eu, na verdade, não teria respondido ao arcebispo de Palermo com um discurso tão duro e áspero, cheio de contenda e presunção, por meio do qual se suscitam raiva e ódio. Eu teria dito: "Agiienta por enquanto, irmão, pois é uma grande coisa anular tâo de repente, só por tua causa, o que nós não esta- belecemos." Pois assim se preservariam a paz e o amor. Essa decretal, po- rém, só exala soberba e obstinada arrogância.

Queremos acrescentar mais outra decretal, para demonstrar, com firme- za ainda maior, que o direito de interpretar as Sagradas Letras não é exclusi- vo dos pontífices romanos e que os cristãos não devem ficar prisioneiros sob suas palavras, mas que tudo que vem deles deve ser lido com livre juizo.

[É a decretal] De maiorifate ef obedienfia, capitulo Solifae: quando o im- perador constantinopolitano tinha oposto ao pontífice romano a palavra de Pedro: "Sede sujeitos a toda criatura humana", etc. [i Pe2.131, querendo

1 com isso colocar o patriarca constantinopolitano abaixo de si, responde-lhe

I Inocência 11168, ou algum de seus escreventes de confiança, totalmente igno- rante nas Sagradas Letras, dizendo:

"Na verdade, se tivesses atentado melbor para a pessoa do que fala, e para a pessoa daqueles aos quais fala, e para o conteúdo do discurso, não te- rias extraído tal pensamento do escrevente."

Vê, por favor, esse pastor das ovelhas de Cristo que, querendo interpre- tar a palavra de Deus, se dispõe a argumentar com diferenças de pessoas, quando a palavra de Deus nada ataca tanto quanto a acepção de pessoas.

67 De oralione dominica. capitulo 30, in: Migne PL 4,557. h8 Paoa de 8/1/1198 atb 16/7/1216. levou a Iereia medieval ao aueede seu oodcrio eclesibsti- - .

:ti epollii;i>. I>iir;inie i, ,cii ~,.uii i i~iaJo foram frita< criii~das ;unira <'oii\iaiiiiiiwpld r ~ C ~ I I -

I , , ) a l h ~ & c ~ ~ w \ l)trdk i t n p ~ ~ t ~ ! > i c \ orJct>\ I . t tnh6t~~ for.tr18 criaJ:t, Jtir . i~uc < t %ctt iko~t!#I~: .!

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Pois Deus não faz acepção de pessoas69; o que ele ordena, ordena a todos, grandes e pequenos. Mas vamos lá, vejamos que pessoa do que fala esse novo intérprete da Escritura apresenta.

"Pois o apóstolo escrevia a seus súditos e os estimulava ao mérito da hu- mildade."

Cá tens a pessoa do que fala e a daqueles a quem escreveu, ou seja, do maior e do menor, e depois também o conteúdo do discurso, o estímulo ao mérito da humildade. É isso que ele diz.

Em primeiro lugar, por favor, que novidade nos traz tal interpretação? Pois quem alguma vez ordena algo a outros ou ensina a outros do que a seus subordinados? Por que, então, é necessária a diferenciação das pessoas para a compreensão dessa única palavra de Pedro antes de todas as outras pala- vras suas e dos escritos de todos os mestres? Por acaso nas outras são os súdi- 10s que ensinam os superiores, os discípulos ao mestre, os gentios ao apósto- lo? Na verdade, é assim que eles têm que falar, para não silenciarem, já que defendem uma péssima causa e ainda são ignorantes nas Sagradas Letras. Porém o que engana esse locutor é o fato de considerar, nesse meio-tempo, as palavras de Pedro como dizendo respeito a seu direito humano, no qual os superiores de vez em quando ordenam, para o bem-estar dos inferiores, coi- sas que não tocam a si próprios. E essa certamente é a razão por que nos transforma a ordem divina de Pedro em conselho, dizendo que ele estimulou os súditos a humildade - ou seja, ele não teria ordenado nem aconselhado, mas como que provocado para o mérito supererogatório (como o chamam). Esse é o conteúdo que os pastores das ovelhas encontram na palavra de Deus, ao passo que Pedro ordena um mandamento divino e necessário, acrescen- tando: "Assim é a vontade de Deus." [l Pe 2.15.1

Vamos, todavia, continuar perseguindo seu pensamento, qual seja: quanto as pessoas diferenciadas pelo conteúdo do discurso, nem Pedro, nem scus sucessores, nem os dirigentes da Igreja são provocados à sujeição, mas tipenas os súditos. Vejamos o que se segue daí.

Primeiro: Pedro e os pontífices são eximidos do mandamento de Deus. Não a eles, mas só aos súditos compete obedecer a Deus, e ainda que o direito ou a palavra divina seja prescrita a todos, grandes e pequenos, não permitin- do exceção de ninguém, o escrevente do papa tem autoridade de excluir a quem quer. Assim vês o Evangelho sendo extinto pelas decretais, e a palavra do ser humano anular a palavra de Deus. E a esse monstro nós, cristãos, ado- ramos na Igreja de Cristo como palavra de Deus. Quem, pergunto, não há de se esquentar?

Que outra pessoa, porém, seria louca ao ponto de acreditar que Pedro ti- vesse imposto aos súditos tal sujeição por seu próprio poder, para que ele mesmo pudesse eximir-se desse mandamento? Se fez isso, ensinou com a pa- lavra algo diverso do que mostrou com o exemplo, ou seja, destruiu o que en- sinou. Ou devem os súditos de Pedro e de seus sucessores estar sujeitos a Cé-

sar, mas eles próprios, com exemplo contrário, dissuadi-los disso? Acaso Pe- dro não foi sujeito as autoridades, conforme ensinou? Não se sujeitou Cristo a César? Não o fizeram também todos os apóstolos e santos? Não é permiti- do estimular o pontífice romano ao mérito da humildade? Tem só ele a per- missão de elevar-se ao pecado da soberba? Assim, os pontífices já são c ~ i s a diferente dos cristãos, porque a lei dos cristãos não os compromete. Eles vão para um lado, seus súditos para outro; para um lado os pastores, para outro as ovelhas; para um os lideres, para outro os rebanhos, de acordo com uma maneira bem nova de conduzir, apascentar, governar. Doravante não mais dirão "vinde", mas sim "ide". Não irão na frente, mas somente deixarão o povo nos mandamentos de Deus.

Se aquela sabedoria se aplica a esta passagem, ela vale também em qual- quer outro mandamento de Pedro em que ensina a fé em Cristo. Assim, toda a autoridade de Pedro se esvaziará, porque em toda parte se dirá que ordenou isso aos súditos, não a si próprio nem a seus sucessores, visto que só pode fa- lar a súditos. Por isso, queremos dizer também aqui: "Se tivesses atentado para a pessoa de quem fala e para a pessoa daqueles a quem fala, não terias interpretado seu pensamento dessa forma, porque ele se dirige a seus súditos e os incita ao mérito da fé, da esperança e do amor. A si mesmo e a nós quis ver excluídos." E com razão, pois os romanos de hoje atentam de modo tão diligente para a pessoa de seu Pedro quando Ihes fala, que entendem que não precisam observar nada do que ele falou, que não precisam nem sequer crer em Cristo, nem ser cristãos e viver como tais, de sorte que, uma vez rejeitada a palavra cristã de Pedro, tornam-se cristãos dignos dessa decretal: qual lei, tal povo.

Onde fica [a exigência de] queem tudo que é ensinado nas Sagradas Letras os pontífices devem ser os primeiros e a luz do mundo, para que suas obras sejam vistas pelas pessoas? Que aconteceria se os súditos dissessem: "Não podemos nem devemos fazer outra coisa senão o que vemos os nossos pasto- res fazer"? Onde ficará então a palavra de Pedro? Onde a pessoa daqueles aos quais fala? Pois os súditos têm maior motivo para rejeitar isso justamen- te porque vêem que não apenas não é observado, mas também rejeitado por aqueles por cujo exemplo devem viver. Quase não me posso conter de chamar de blasfêmia essa decretal sobremodo ímpia e perversa.

Tendo, porém, tomado conhecimento da pessoa do que fala, do que ou- ve e do conteúdo do discurso, continuemos a ver como o expõe:

"Pois se pelo que disse, a saber: 'Sede submissos', quisesse impor aos sa- cerdotes o jugo da submissão e atribuir70 o poder da prelazia aqueles aos quais recomenda sejam submissos, concluir-se-ia daí também que cada servo teria obtido o domínio sobre os sacerdotes, visto que diz: 'a toda criatura hu- mana'."

Que palavra amarga: "Sede submissos"! Por isso também a repete da maneira mais odiosa possível, chamando-a de jugo da submissão, em contra-

69 Cf. At 10.34; Rm 2.11. 70 Aylcrre. no original. O correta seria qiferre (cf. WA 2,218, nota 1)

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posição ao poder da prelazia, como que se queixando do domínio do servo. Depois diz que "recomenda", mostrando horror ao vocábulo "mandamen- to", aspirando a uma só coisa: que não seja obrigado a estar sujeito a ne- nhum ser humano, mas que lhe seja permitido governar a todos, ou ao menos que possa transformar o mandamento em conselho.

Até que ponto, contudo, é inconveniente que um sacerdote esteja sujeito a um servo? Não veio Cristo para servir no meio de todos11 e não assumiu ele forma de servolz? Acaso esse incentivo ao mérito da humildade se refere só aos súditos de Cristo, ao qual os pontifices romanos não querem ser submis- sos? Cristo ordenou sentar-se no último lugar71, e Pedro ordena a todos insi- nuar humildadel', e Paulo diz: "Cada qual considere o outro superior e um prefira ao outro em honra." [Rm 12.101. Mas isso as pessoas dos que falam disseram a seus súditos, enquanto elas mesmas seguiram outras coisas.

No entanto, nessa passagem Pedro não fala da sujeição que reina entre os cristãos por meio da mútua demonstração de humildade de espírito. Pedro fala daquela pela qual foram sujeitos as autoridades seculares, aos superiores c juizes ordenados pelo poder do Império Romano. Essa instituição Pedro chama de criatura humana, porque essas autoridades são criadas por seres humanos. Esse decretalista nem sequer entende as palavras da Escritura, e ousa interpretá-la. Ele poderia ter entendido que essa criatura humana é aquilo que eu disse se tivesse buscado a opinião de Pedro do mesmo modo co- rno buscou sua ambição, e poderia tê-lo entendido do que se segue imediata- iiiente, onde Pedro se explica a si mesmo, distribuindo entre as pessoas indi- viduais o que antes dissera em resumo: "a toda criatura, digo, seja ao rei, se- ,ia às autoridades", como a dizer: "Eu disse que deveis ser sujeitos a toda criatura e a todas as ordenações dos seres humanos para que ninguém dentre vhs se levante contra as autoridades menores, como se quisesse obedecer só ;to rei. Mas dai, fazei, servi também a seus enviados o que deve ser dado, fei- io c servido." Como diz Rm 13.7: "A quem honra, honra; a quem respeito, respeito; a quem tributo, tributo." Portanto, não fala da criatura de Deus, ci~iiio cogita Inocêncio em suas opiniões, mas da criatura humana, como di- /,c111 expressamente as palavras. Tal criatura não é um servo que, como teme, ohtcrá o domínio sobre os sacerdotes, ainda que, de acordo com o Evange- 1110, devamos sujeitar-nos a qualquer servo. Sim, todo esse emaranhado de p~ilavras de Inocêncio nada contribui para a causa e são apenas testemunhos clc sua ignorância.

Segue-se: "Em relação ao que se segue, porém - 'seja ao rei como supe- rior' [ l Pe 2.131 -, não negamos que o imperador seja o superior em assun- ios temporais, ainda que somente sobre aqueles que dele recebem as coisas icinporais'."

71 <:f. Mt 20.28. 72 Cf. Fp 2.7. 71 Cf. Lc 14.10. '74 Cf. I Pe 5 .5 . Lutero segue aqui a versão da Vulgafa.

Se perguntares aqui com que autoridade ele reduz desse modo a palavra de Pedro e, como falsificador, aplica apenas a poucos o que é dito a todos, responderá só o seguinte: "Assim o queremos; é preciso crer em nossa pala- vra, inclusive mais do que no texto expresso das palavras de Deus."

Primeiro: esse escrivão se esforça onde não é pressionado e foge quando ninguém o persegue, e isto porque é torturado por sua má fé e consciência. Pedro diz que se deve ser submisso ao rei como superior, isto é, porque é o primeiro e mais do que as autoridades por ele enviadas. O decretalista, po- rém, sente-se ferido pelo vocábulo "superior" e, temendo que soe como se o imperador tivesse alguma superioridade sobre os pontifices, se opõe ansiosa- mente a isso e discute sobre a superioridade do rei e do pontífice, bem fora do conceito de Pedro. Não dá atenção A palavra de Pedro, que ordena obedecer não só ao rei como superior, mas também as autoridades por ele enviadas, sim, a toda criatura humana. Nada disso preocupa o decretalista, porque a palavra "superioridade" em relação as autoridades e criatura humana não soou de modo terrível a seus ouvidos. Para ser breve: quem quer que seja esse escrivãozinho romano - ele não entende uma palavra sequer nessa afirma- ção de Pedro, e assim mesmo pretende ensinar todas as ovelhas de Cristo.

Continuemos, porém, seguindo a sua fumaça: Eu digo: o imperador é superior em todas as questões temporais, tam-

bém em assuntos sacros, e isso de direito divino, como o exigem as palavras de Pedro. No entanto, visto que está em sua vontade e que são criaturas hu- manas, pode espontaneamente ficar com essa superioridade ou desistir dela, e em ambos os casos tem o direito divino. Assim, desde o tempo de Constantinols foi dada isenção às pessoas e aos bens dos eclesiásticos, não pe- la autoridade dos pontifices, mas pelas criações humanas dos imperadores, e a isso ninguém pode responder outra coisa que tenha qualquer valor. Por is- so, se o imperador ou as autoridades revogarem o que concederam por sua autoridade, não se pode resistir-lhes sem cometer pecado e impiedade. Assim sendo, esse depravador nada consegue aqui, ao sujeitar ao imperador somen- te aqueles que dele receberam coisas temporais, rasgando aberta e temeraria- mente a palavra de Pedro. De quem, peço-te, tem ele as coisas temporais? Do diabo, ou por roubo? E onde está o que ele disse acima, a saber, que se deve atentar para a pessoa do que fala, que Pedro teria escrito isso a seus súditos? Quem são os súditos de Pedro? São só os leigos? Por que então se jacta de que todas as ovelhas de Cristo lhe foram confiadas em Pedro? Por isso estão sujeitas ao imperador e as autoridades todas as ovelhas de Cristo, isto é, to- dos os súditos do papa, sejam eles leigos ou clérigos, e, por essa mesma ra- zão, o próprio chefe e pastor, bem como os bodes do rebanho. Conferindo entre si as palavras do próprio decretalista, elas exigem a mesma coisa. Por- tanto, ou só os clérigos são as ovelhas de Cristo confiadas a Pedro, ou então os clérigos, juntamente com os leigos, estão sujeitos ao imperador, porque

75 Consiantina I, imperador romano de 306 até 337. A isenção a que Lutera se refere foi con- cedida por Canslantino em 321.

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i < r < l i ~ \ os súditos de Pedro são sujeitados por Pedro ao imperador e aos supe- i iorcs.

"No entanto, em assuntos espirituais o pontífice é a autoridade máxima, ;i\siiiitos esses que são tanto mais dignos quanto a alma é superior ao corpo."

E por que não acrcscenta também aqui: "Mas somente para aqueles que ilclc reccbcm as coisas cspiritiiais"? Decerto porque quer ser autoridade má- ~i i i ia eiii assuntos temporais, para não ser forçado a ficar submisso ao impe- i;iilor eiii qualquer coisa, enquanto Pedro o sujeitou inteiramente ao impera- ilor. Assim a sagrada e tremenda palavra de Deus é forçada a tomar o último Iiigai- e a ceder as nossas inclinações. Diga-se, porém:

Por acaso ignorava Pedro que as coisas espirituais são superiores as tem- l i<l i - i~i~ '? Por que então sujeitou a si próprio e a todas as pessoas às autorida- iIc\ temporais? De fato, aquilo é bem mais agradável: os súditos de Pedro e iio papa são espirituais, não estando, por esta razão, sujeitos ao imperador. I)isso se conclui que os leigos, não sendo nem espirituais nem sujeitos a Pe- ilro, não são ovelhas de Cristo, porque todas estas ele sujeitou a Pedro. En- ircianto, visto que, de acordo com a afirmação desse fazedor de decretais, I'edro escreveu isso a seus súditos, a conseqüência será: só os clérigos, e não i15 Icigos, devem estar sujeitos ao imperador; ou então, o que mais Ihes causa Iir~rror, não todas as ovelhas de Cristo espalhadas pelo mundo estão sujeitas ;i I'edro, ou todos os súditos têm que ser espirituais de igual modo, se todas ;I \ ovelhas também estão sujeitas a Pedro. Com isso cai totalmente por terra essa distinção entre temporal e espiritual. Que outra coisa merece quem ousa i i ;liar c contaminar as Sagradas Letras com tradições humanas do que cair iicst;i nionstruosidade de confusão e contradição? Portanto, os súditos do p:i~?;i sso os mesmos que os do imperador, a não ser na medida em que a de- ici-iiiiriação e criação do imperador faz concessões. Por essa palavra de Pedro i. 11cli1 direito divino, estamos todos sujeitos a espada e ao poder mundano, ~.oiiio também está escrito em Rm 13.1s~. e Tt 3.1. "Toda alma", diz ele, "~,sicja sujeita as autoridades superiores. Não é sem motivo que carrega a es- li;icl;i, pois é ministra de Deus para o teu bem." Creio que quem diz "toda al- i i i ; i " iião exclui a alma do pontífice nem sua própria. Consideremos, porém, ( I \ clctallies, para vermos qual a hodierna interpretação romana das Sagradas I~~cri111r~is.

Sc os coisas espirituais são superiores as temporais tanto quanto a alma é \lil>ci-ioi- ao corpo, e se, por esta razão, as coisas espirituais não devem estar ~iiii.ii;is ùs c«is:is temporais, e se todo ser humano tem alma, isto é, algo espi- i i i i i ; i l . cii19o nenliiinia pessoa deve estar sujeita a outra, também as ovelhas ( l i . ( 'ii\io 1140 d e v ~ ~ i i estar sujeitas a Pedro, porque Pedro é pessoa humana i i : i i ; i l i s (Iciiiois. I';iiilo diz: "Toda alma esteja sujeita", alma essa que, sem qliiviil;~, i. ~ , i l i i r i i i i ; i l . AC;I\CI ('ri'ito não foi espiritual quando, com Pedro, pa- r : i~ i i ; i ('Cs;ii- i i iii-:~ci~i:~~'? Oii acaso excetuou os pontífices quando disse: "Dai ;I I '?.\;ir i i iliic C ilc ('Cs:ii" IMi 22.21]? Com esse silogismo, porém, queremos

concluir que o que é mais espiritual deve ser superior ao que é menos espiri- tual. Neste caso, uma santa virgem, sendo empregada doméstica, dominará sobre um pontifice ímpio, e um mendigo maltrapilho sobre o imperador. Por favor, que zombarias mais se seguiriam dai? Não obstante, é verdade: na transmissão da Palavra e do sacramento (pois isso são coisas espirituais) os pontifices são superiores a todos. Contudo, em questões temporais - cargos, tributos. contribuicões. imoostos e todos os ônus da administração ~úb l i ca . . . . . temporal -, os pontífices e clérigos são inteiramente sujeitos aos magistra- dos, por direito divino. Não fazem exceção a não ser por um favor dessa cria- ção humana.

Se tivesse dito: "Sob 'espirituais' não entendo as pessoas em si (pois que- remos que todas as ovelhas de Cristo nos estejam sujeitas e sejam espirituais), mas as coisas espirituais, como sob 'temporais' entendo as coisas temporais", respondo: pego-te com tua própria armadilha. Se atribuis ao im- perador a autoridade em todos os assuntos temporais, por que excluis os teus próprios assuntos temporais e não queres que lhe estejam subordinados? E o que é pior, e uma monstruosidade incalculável: por que manténs, tomas, con- feres e transferes tu impérios, reinos e domínios? Por que te imiscuis com eles? Significa isso confiar ao imperador as coisas temporais e reservar-te as espirituais? Que dirão aqui todos os decretalistas senão que são reconhecidos tanto por suas palavras quanto por suas obras, como pelas folhas e pelos fru- tos, a saber: não sabem nem o que é temporal nem o que é espiritual, sim, perderam as coisas espirituais e amam só as temporais, quais sejam: a supe- rioridade, a opulência, a voluptuosidade. Pois se o imperador tema primazia em coisas temporais, o pontifice espiritual não deve usurpá-las. Deve, isto sim, deixá-las sob a alçada dele, por elas pagar tributo ao imperador e, por meio delas, servir ás autoridades e a administração pública temporal sempre que forem requisitadas.

"Embora não tenha sido dito simplesmente: 'Sede sujeitos', mas se te- nha acrescentado: 'por causa de Deus'."

Que significa isso? Será que o mandamento se transformará de novo em conselho? Ou não se deverá simplesmente atentar para a pessoa do que fala? Ou não encorajou Pedro simplesmente seus súditos a humildade? Não tem o imperador simplesmente a superioridade em assuntos temporais? Que misero e angustiante subterfúgio, sim, que ignorância deplorável, que nem sequer entende o que significa "por causa de Deus"! O pensamento de Pedro está claro, como ele próprio o expõe em seguida: "Pois", diz ele, "assim é a von- tade de Deus" [l Pe 2.151, ou seja, deve-se ser submisso por causa de Deus, não porque aqueles magistrados o mereçam, mas porque Deus assim o quis. ~ a s ~ o d e ser que o decretador pretenda ensinar, por essa palavra, que não há necessidade de uma submissão dessa espécie, como se Pedro a solicitasse de pessoas que não a devem, a saber, por causa do mérito da humildade. Ai de ti, misero fazedor de decretos, que pervertes de modo tão audaz a sobrema- neira salutar palavra de Deus!

"Também não está escrito simplesmente: 'ao rei, o superior', mas iiilercaloii-se, talvez não sem razão: 'como'."

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De tanta camuflagem precisa a mentira para pelo menos parecer verda- de. De que maneira miserável serpeia esse autor escorregadio, para zombar do mandamento de Deus! Se esse "como" diminui a veracidade do rei ou do mandamento, por que não disse acima analogamente: "Sede sujeitos como a toda criatura humana"? Por que ordena ser submisso sem "como"? Por que iião disse: "Sede sujeitos como se, simulando sujeição", do mesmo modo co- irio ele finge ser rei, como se fosse rei? Essa glosa é por demais absurda para merecer contestação. Pedro quer que esse "como" seja uma conjunção cau- sal, mostrando por que se deve ser submisso. "Porque", diz ele, "ele tem su- perioridade e porque as autoridades são enviadas por ele", quer dizer: essa superioridade e esse poder, por serem exercidos por vontade de Deus, são a razão por que deveis ser submissos a ele por amor de Deus.

"Porém o que se segue: 'para castigo dos maus e louvor dos bons' [ l Pe 2.141 não deve ser entendido como se o rei ou imperador tivesse recebido o poder da espada sobre bons e maus, mas somente sobre aqueles que, fazendo uso da espada, estão sob sua jurisdição."

Uma glosa muito necessária para a Cúria Romana e para a licenciosida- de impune do clero! Sem dúvida era necessário pôr os olhos nisso, aqui se to- cou na ferida, mas em vão. Lá vem ele de novo com seu "somente" e distorce a palavra de Deus, dirigida a todos, aplicando-a a uma parcela do povo de Cristo. Por isso também nós queremos usar essas mesmas coisas absurdas em favor da palavra de Deus, contra essa conversa fiada, e perguntar se todas as ovelhas de Cristo estão sujeitas a Pedro; se escreveu isso a seus súditos; se os siiditos de Pedro são outros que os do rei. Pois, como se evidencia do que foi dito acima, é preciso que ele reconheça essas três coisas como verdadeiras. I'or isso, se ele escreveu a seus súditos, e se estes são outros que os súditos do iiiiperador, o poder da espada só valerá, por essa palavra de Pedro, para os clkrigos, para castigo dos maus e louvor dos bons, sendo excluídos todos os Icigos e somente eles. Por que então vemos acontecer o contrário, ao ponto dc os clérigos serem entregues a justiça secular somente depois de expulsos do clcricato? Se todos estão sujeitos a Pedro e se escreveu isso a todos os que são ovclhas de Cristo, segue-se que ou os clérigos, excluídos que são da espada, iião são ovelhas de Cristo, ou então essa depravação e discriminação das pa- lavras de Pedro é totalmente ímpia e contrária a verdade.

No fim das contas, essa glosa fará com que já não exista poder da espa- <Ia, uma vez que sujeitam o mundo todo ao pontifice; aqueles, porém, que Ihc sâo sujeitos não estão sob a jurisdição do imperador, a não ser que uma .jiirisdição nova, instituída por seres humanos, exima somente os clérigos e clcixc sob ela os leigos. Assim, no entanto, não se explica a palavra de Pedro, rliic sujeita A espada todos aqueles que estão sujeitos a ele. Assim as leis dos scrcs humanos se opõem a lei de Deus. Por isso, ninguém está eximido do po- ~lcr da espada, seja leigo, seja clérigo, a não ser na medida em que o próprio ~>oclcr da espada o concedeu e permitiu, assim como outrora, nos tempos de Agostinho, os hereges eram castigados pelo poder da espada, o que também iicoiiiecc Iioje pelo fogo. Isso não poderia acontecer de modo algum se a ju- risdicáo cclesiáslica fosse de direito divino, isto é, aquela pela qual os clérigos

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são eximidos do poder da espada. E pela situação do clero hoje, melhor seria que, retiradas as isenções, todos os clérigos fossem novamente sujeitos a es- pada, de acordo com o mandamento de Pedro e de Paulo, para poderem ser punidos. Então a Igreja estaria em melhor condição, com os pecados refrea- dos pelo temor da espada. Agora, contudo, são levados por suas leis impune- mente a todo mal. No entanto, o poder da espada pode, espontaneamente, fazer ao clero concessões quanto a seu rigor. Se, porém, não o quer fazer, não pode ser forçado a fazê-lo nem ser impedido por quaisquer decretos dos pontifices. Pois estes não têm o poder coercivo da espada, dado unicamente por Deus. E não é verdade que esteja na mão do papa ordenar que se desem- bainhe ou se guarde a espada. Deus conferiu o poder da espada como poder livre, assim como ele também disse acima que o imperador o tem em assuntos temporais, onde deveria ter dito "em todos os assuntos". Ele não pôde, é cla- ro, negar até esse ponto que a espada não está em sua mão.

"Poderias reconhecer a prerrogativa do sacerdócio do fato de ter sido dito, não por qualquer um, mas por Deus, não a um rei, mas a um sacerdote, que não descendia de estirpe régia, mas de prosápia sacerdotal, dos sacerdo- tes de Anatote: 'Eis que te constituí sobre os povos e reinos para arrancares e dispersares, edificares e plantares.' " [Jr 1.10.1

Que vem a ser isso? Acaso não é dito por Deus o que disseram Pedro e Paulo: "Sede sujeitos"? Não é dito aos sacerdotes, não é dito a todos, quan- do Paulo diz: "toda alma"? Que tal se o imperador dissesse: "Tenho a meu favor os dois primeiros apóstolos, aos quais se deve crer mais do que a Jere- mias, porque aqueles disseram a verdade revelada do Novo Testamento, este, porém, a moda dos profetas, a verdade oculta. Por isso nada fica provado contra mim." Que se dirá a isso? Acrescenta, porém: se isso é verdade, Jere- mias é sumo pontifice, visto que somente os pontífices romanos arrogam pa- ra si esse titulo dele no sentido de serem constituídos sobre os povos e reinos.

Deus falou, portanto, do profeta e da obra do profeta, e nada sobre uma proeminência sacerdotal. Não há outra superioridade na Igreja a não ser o ministério da Palavra, que fica bem a salvo se os sacerdotes estão sujeitos ao poder da espada em todos os assuntos temporais, como acontecia com Cris- to, os apóstolos e os primeiros bispos.

Afinal, por que ele não arranca, dispersa, edifica e planta, se acha que isso é de sua pertinência? As palavras ditas aqui não se referem a dignidade e proeminência, mas a trabalho e serviço. E onde fica o sumo sacerdote na lei, se, por essa palavra, Jeremias é constituído sacerdote sobre os povos e reinos, sobre os quais aquele não fora constituído? E onde fica aquela afirmação de que o pontifice só tem superioridade nos assuntos espirituais quando reparte o governo com o imperador, se, segundo esta compreensão, foi constituído sobre os povos e reinos?

"Além disso, deverias ter sabido que Deus fez duas luminárias grandes no firmamento do céu, a luminária maior para governar o dia, e a luminária menor para governar a noite. As duas são grandes, mas uma é maior. Portan- to, Deus fez duas grandes luminárias no firmamento do céu, isto é, da Igreja universal. Quer dizer: instituiu duas dignidades, a autoridade pontifica1 e o

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poder régio. Aquela que governa os dias, as coisas espirituais, é a maior; a que governa as coisas carnais é a menor. E quanto o sol é diferente da lua, tanto se reconhece a diferença entre pontifices e reis."

Quem é que reconhece? A glosa, bem digna desse texto, que diz: o papa é 47 vezes maior do que o rei. Até esse ponto estão seguros das dimensaes dessas palavras, do sol e do pontífice! Só que aqui surge uma grande interro- gação: como é que os reis estavam acima dos pontifices na antiga lei? A não ser que se deva crer que naquele tempo não havia Igreja, isto é, o firmamento do céu, quando existe uma única Igreja de Deus desde o começo do mundo até seu fim. Admitamos, porém, que tenha em mente a Igreja cristã - que quer ele dizer? Quem nos dará a certeza de que o sol significa o novo ou o an- tigo sacerdote? Pois uma alegoria é dúbia e nada prova. Sim, com que argu- iiiento se conterá o imperador se ele disser que o sol, a luminária maior, signi- fica seu poder, visto que, pela palavra de Pedro77, lhe foi sujeita toda alma, por mais espiritual que seja?

Que se dirá quando se conclui daí que Júlio78, August079 e outros impe- radores pagãos estiveram na Igreja porque foram a luz menor da Igreja, luz essa feita por Deus? E o mais engraçado é que Júlio e Augusto eram a luz me- nor mesmo antes que fosse feito o firmamento, isto é, a Igreja, sim, mesmo antes de Cristo nascer, ele, a cabeça e o criador desse firmamento; mas tam- bém a Igreja universal ficou muito tempo sem essa luminária maior, como ainda está na Grécia e na India. Esses talvez ainda estão na escuridão, embo- I-a estejam no firmamento do céu.

E de fato lamentável que se deformam as palavras de Deus com tais brin- cadeiras e gracejos, para estabelecer coisas tão sérias (como acham). Fora coiu tais fantasmagorias! Uma figura nada prova. Ademais, a alegoria dessas palavras é a seguinte: o solé Cristo, a lua é a Igreja, o céu são os apóstolos, as (,,vtrelas são os santos. O poder do imperador não diz respeito à Igreja, não iiiais do que qualquer assunto do mundo.

"A nós, porém, foram confiadas as ovelhas de Cristo no beato Pedro, qiiaudo disse o Senhor: 'Apascenta minhas ovelhas' [Jo 21.171, não fazendo distinção entre essas e outras ovelhas para mostrar que é estranho a seu apris- co quem não reconhecer a Pedro e seus sucessores como seus mestres e pasto- I.C\ >, . .

Era realmente necessário fazer esse acréscimo, para que a ambição se iiiostrasse abertamente. Quem, todavia, aceita essa glosa? Através de que força ela será firmada, já que dizes: "não fazendo distinção entre essas e ou- ti.;is ovelhas"? De quem eram as ovelhas apascentadas por Paulo e pelos ou- tros apóstolos? Suas próprias? Por que não se deveria dizer muito antes que

77 Sic. O correto seria "de Paulo", visto que Lutero se refere a Rm 13.1. 78 Liitero refere-se a Caia Júlio Cksar (100-44 a.C.), general e politico romana, que preparou

a forma de governo imperial para os romanas. 79 Caio .Júlio Cksar Otaviano (63 a.C.-14 d.C.), nascido em Nola, foi sobrinha-neto, filho

adotivo e herdeiro de Caio Júlio Cksar. Desde 31 a.C. k a único governante das romanos e erii 27 a.C. 6 reconhecido como imperador pelo Senado romano.

ele não fez distinção entre Pedro e outros pastores, visto que seria impossível que todas fossem apascentadas por uma pessoa, por Pedro? Se, porém, ele pode pastorear por meio de outro, que impede que as ovelhas também pos- sam ouvir por um outro? Onde ficarão então tanto o pastor quanto as ove- lhas? Seria licito brincar dessa forma com a palavra de Deus? Aqueles que acham que a palavra "apascenta" só diz respeito a eles mesmos, por que não vão aos turcos, ou ao menos aos boêmios? Mas por que gasto energia com es- sas coisas? Por que esse Pascoal não pastoreou a esse fazedor de decretais e sua corte, para que compreendesse corretamente as palavras de Cristo para alimento de sua alma e para que não as contaminasse de forma tão miserá- vel? Acaso não há almas a pastorear na Turquia e na Boêmia? Ou por acaso crê que só lhe foram confiadas as já apascentadas? Por que Pedro não se sa- tisfez com as ovelhas apascentadas por Cristo, e procurou, ele mesmo, muu- do afora, por ovelhas que pudesse apascentar e ensinar? Por que, digo, arro- gam a sim o apascentar, mas não apascentam? Apenas porque desejam que nós saibamos o que entendem pelo vocábulo "apascentar", sempre que se jactam de que as ovelhas Ihes pertencem, a saber: dominar, tosquiar as ove- lhas com toda a calma e prevalecer na Igreja com pura tirania. Por isso é um erro dizer que é estranho ao aprisco de Cristo quem não reconhece a Pedro e seus sucessores como pastores e mestres. Em primeiro lugar, porque eles pró- prios não apascentam nem governam. Do contrário, todos os cristãos já se- riam estranhos a Cristo, porque nenhum deles vê, por mais que queira, que os pontifices romanos são pastores e mestres. Vêem e reconhecem neles do- minadores e ostentadores de pompa. Apesar disso, através desse. reconheci- mento eles não pertencem em maior grau ao aprisco de Cristo, mas quase são expulsos à força. Tal é o poder de seus escândalos. Em segundo lugar, isso é um erro porque é suficiente reconhecer a Paulo, sim, a qualquer sacerdote, como pastor e mestre, onde quer que se encontre. Pois este pastoreia e gover- na, aqueles, porém, só tosam e carneiam as já apascentadas. Isso basta, para não parecer que empreendo isso por vontade de criticar, enquanto não procu- ro outra coisa senão tapar a boca daqueles que ousam aprisionar-nos a com- preensão totalmente livre das Escrituras, dada por Cristo, sob a compreensão e a palavra de seres humanos, dos pontifices, querendo julgar as palavras de Deus de acordo com a palavra de seres humanos, quando, pelo contrário, as palavras dos seres humanos devem ser julgadas segundo a palavra de Deus que tudo julga.

Em relação ao terceiro passo, aos argumentos da razão, deve-se tratar primeiramente da minha afirmação de que os decretos pelos quais, conforme eu disse, se prova o primado da Igreja Romana surgiram nos últimos 400 anos, e de que contra isso estão as histórias de 1.100 anos.

Primeiro: eu sabia que isso seria ofensivo e que pareceria a todos uma coisa evidentemente falsa. Pois é certo que já há mil anos se lutou por esse primado por meio de decretos dos pontifices romanos.

Eu, porém, tive em vista que a Igreja Romana jamais esteve, não está e jamais estará acima de todas as Igrejas do mundo inteiro, ainda que esteja

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acima de m ~ i t a s . Com efeito, ela nunca esteve sobre as Igrejas da Grécia, da África e da Asia, não confirmou seus bispos do modo como confirma os nos- sos, como as histórias comprovam com suficiência. Ademais, sem dúvida há cristãos no Oriente, visto que o reino de Cristo é o mundo inteiro, de acordo com SI 2.8. Não obstante, seus bispos não são instituídos nem confirmados por Roma, o que também não é necessário.

Depois, a partir dessa época começaram a multiplicar-se as leis e os direi- tos. Pois se Gregório IX, Bonifácio VIII, Clemente Vmnão tivessem emenda- do uma na outra, retirado algumas epistolas, acrescentado outras, e se não as tivessem entregue as escolas para serem lidas e ensinadas, sem dúvida não existiriam tantos mares de glosas nem o infelicissimo estudo do direito. Tanto os decretos quanto as decretais teriam ficado escondidos nos armários do pontífice romano, para grande lucro da Igreja e do Evangelho. Agora, contu- do, vemos mais do que o suficiente como se parece a Igreja com essas leis em vigor. Mas nem isso basta. Diariamente aumentam os livros dessa espécie e nada conseguem senão armar mais armadilhas para as almas. Dai resulta o deturpadissimo comércio das dispensas, breves confessionais, indultos e isen- voes; dai resultam os vergonbosíssimos roubos e vendas de episcopados, va- gas para sacerdotes, cargos, pálios e matas; dai resultam as censuras, amea- ças, excomunhões, violência, fraude, dolo e monstruosidades infindas, das quais nenhuma existiria, ou ao menos muito poucas, se tais epístolas -como deveria ter acontecido - tivessem ficado enterradas sob os anais e coleçdes, e se tivessem deixado ao Evangelho seu lugar em público. Por conseguinte, ja- imais o mundo sentiu tanto as tradições romanas como nesses 400 anos. Por cssa razão, creio que se deve atribuir todo o seu peso e poder a Gregório IX, pelo qual como que nasceram e se originaram. Porque foi dele que seu uso re- ccbeu força e validade, de sorte que, por essas leis e tradições, os cargos de lodos, os estatutos da Igreja, as ordens estão atirados num caos tal, nesses 400 anos, que a Igreja atual se encontra em confusão maior que a própria Ba- hilônia. Ninguém anda dentro de sua ordem, cada qual compra de Roma iiina lei pela qual quer viver: este como isento, aquele como privilegiado, ou- i ro como pessoa da intimidade, mais outro como funcionário, ainda outro não sei sob que título. Por essas leis romanas, todos têm a liberdade de ser, fazer e ousar qualquer coisa. E em Roma outra preocupação não há do que l'ortalecer, por meio dessa suprema calamidade da Igreja, exclusivamente seu [poder e sua dominação sobre cada um de seus membros. E quando deplora- inos essa ruina da Igreja, se revelamos tristeza, se nos queixamos, então so- iiios hereges, irreverentes para com a Igreja Romana, escandalosos, sedicio- sos, insolentes, porque não podemos fazer queixas sem, ao mesmo tempo, to- cor nos direitos e no poder do pontífice romano, sim, sem tocar em tantas in-

H 0 Paoa de 5/7/1305 atk 20/4/1314. Recebeu a tiara em Lião e iamais deixou a Franca ao6s o , ~~ ~~ .~ ~

iiil;i<> dc ,eii poiiiifiradt,. Com ele inicia-se o pçriodo de 70 ano5 derignado de caiireiro ba- Ihi.Ri~i;., da lgrcja. Eni 1309, Clrrncnic trsn\fcriu a <t papal para A\ignon. Fm 1 3 1 I apro- vou a eliminação da Ordem dos Templários, apoiando o uso da tortura

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justiças contra o povo de Deus. Pois ai está a fonte para conservar ou arrui- nar a Igreja. Como, porém, hoje em dia tudo em Roma está totalmente sujo e corrupto, e como não se pode tocar sequer com um dedo nesses assuntos por causa da ação dos impiíssimos aduladores, a não ser que se elogiem, justifi- quem e glorifiquem essas monstruosidades - admira que, sob o venerável nome da Igreja Romana, tantos males inundaram a Igreja toda com toda a força e num violento turbilhão, ao qual ninguém pode resistir?

Por fim, com o estudo das leis romanas e com a negligência do Evange- lho as coisas chegaram a tal ponto, que sentiram necessidade de decidir, no mais recente concílio~l, que a alma do ser humano é imortal. Em tua opinião, que indica essa decisão?

Por isso, cada um se considere muito sábio - zmeu ver, os autores dos decretos são Gregório IX, Bonifácio VIII, Clemente V e os pontífices das extravagantes82, porque foram publicados, ordenados e estabelecidos todos por iniciativa deles. Se tivessem sido deixados nas bibliotecas ou nos arquivos como epístolas de Gregório, Agostinho, Jerônimo, Bernardosl e outros, de modo que qualquer um os pudesse consultar livremente, sem qualquer man- damento, a situação da Igreja seria melhor. Agora, entretanto, ao serem igualados aos supremos artigos de fé, e colocados até acima deles pelos adu- ladores, temos por frutos deles a confusão da ordem eclesiástica, as horren- das torturas das consciências, a ignorância do Evangelho, liberdade total- mente impune para o crime, a mais odiosa tirania dos aduladores romanos, até que mereceram o fato de não existir sob o vasto céu nome mais odioso e fedorento do que o da Cúria Romana.

Disso, creio, se pode entender que náo fui de ignorãncia tão crassa que não soubesse que os decretos do pontífice romano surgiram muito antes do que há 400 anos. Do contrário, como poderia ter citado 400 anos exatos, e não mais ou menos? emitir o conceito de que são totalmente frios? alegar as histórias? asseverar que o texto da Escritura os contradiz? se não tivesse veri- ficado e conferido tudo com o maior cuidado? Com essas indicações eu quis satisfazer ao leitor entendido, para que reconheça que não foi sem razão que coloquei o assunto dessa forma e que não falei assim por ignorãncia, mas co- mo resultado de trabalho. Ao mesmo tempo, quis colocar paralelas a todos os pontos da insidiosa e aduladora tese de Eck. Como ele tinha acrescentado

81 Trata-se do V Concilio de Latrão (1512-1517). Adefinição quanto A imortalidade da alma é de 1513. Cf. Denzinper 738.

82 Nome dado As decreiais ~ a ~ a i s oasteriores a 1140. Até 1 1 79 ISinodo d? T ntrsnl n direito , , , ~ ~~~~ ~ ~~ ~ ~~~ ~ . eile,id,ri;~ havia .ido mdificado por Gra;aano. .&i decreiair papai. pa,lrriorc< a 1139 r30 designadas de exira\agantc<. "decr~rnler, yuurexlru Du'.rrrum iogunlur". Enirz Graciano (1140) e Gregório 1X (1234) foram feitas mais de 60 cole~des de extravagantes. Essas coie- çbes foram continuadas até serem oficialmente incluidas no Corplrs hris cononici, em 1 / 7 / 1 san . , , , .*

83 1091-1 153, abade de Claraval, é o maior teólogo mistico dos povos românicos. Alcanqou importância em virtude de seu rigor btico, sua piedade e oratória. Lutero estima-o muito e cita-o roiistnrilemenie ao lado de Agostinho.

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que a Igreja Romana fora superior ás demais já antes dos tempos de Silves- tre, e eu estivesse seguramente convencido de que Eck não era impudente ao ponto de mentir em público nem tão ignorante em assuntos históricos que de fato acreditasse nisso, desconfiei de alguma armadilha, porque conheço a fundo a maneira dos sofistas e a natureza escorregadia desses proteus que, quando querem, mudam o falso em verdadeiro e o verdadeiro em falso, en- quanto que dos outros exigem tal exatidão no falar, que nem as palavras de Deus estão seguras perante eles. Por isso eu quis torná-lo confiante e triunfa- dor antes do tempo, da mesma forma como ele se esforçou para me tornar te- meroso.

Embora eu pudesse satisfazer-me com o fato de estar a meu favor a au- toridade da Sagrada Escritura, pela qual se prova que não existe primado eclesiástico de direito divino, ouçamos, não obstante, também as opiniões de outros com seus argumentos, para não parecer que me glorio sozinho e só das Escrituras.

O primeiro é o divo Jerônimo, que escreve o seguinte em sua epistola a EvágrioW "Lemos em Isaias: 'O tolo fala tolices.' [Is 32.6.1 Ouço que houve quem caiu em tamanha loucura que prefere os diáconos aos presbiteros. Vis- to que o apóstolo ensina com clareza que presbiteros são a mesma coisa que bispos, como se poderá admitir que alguém que serve á mesa e às viúvas se cncha de presunçâo e se eleve acima daqueles por cuja prece são produzidos o corpo e o sangue de Cristo? Queres uma passagem bíblica? Ouve o testemu- nho: 'Paulo e Timóteo, servos de Jesus Cristo, a todos os santos de Filipos, juntamente com os bispos e diáconos.' [Fp 1.1 .] Queres outro exemplo? Nos Atos dos Apóstolos, Paulo se dirige aos sacerdotes de uma única Igreja da se- guinte forma: 'Tende cuidado de vós e do rebanho todo no qual o Espírito Santo vos colocou como bispos, para governar a Igreja de Deus que ele ad- quiriu com seu sangue.' [At 20.28.1 E para que ninguém afirme contenciosa- rilente que houve vários bispos em uma só Igreja, escuta ainda outro testemu- iilio, no qual se comprova com toda a clareza que bispo e presbitero é a mes- ma coisa: 'Por isso te deixei em Creta para corrigires o que ainda falta e constituires bispos nas cidades, como te ordenei, se há alguém irrepreensivel, liiarido de uma só mulher, tendo filhos fiéis, que não são acusados de luxúria c de serem insubmissos. Pois é necessário que o bispo seja irrepreensivel co- iiio despenseiro de Deus.' [Tt 1.5-7.1 E a Timóteo: 'Não negligencies a graça que te foi dada por profecia e imposição das mãos do presbitério.' [ l Tm 4.14.1 E também Pedro escreve na primeira epístola: 'Aos presbiteros que há ciilre vós rogo eu, co-presbitero e testemunha dos sofrimentos de Cristo e participe da glória futura a ser revelada: governai o rebanho de Cristo, iiispecionai-o não por necessidade, mas de livre vontade, de acordo com I>ciis' [l Pe 5.ls.1, o que em grego é expresso mais significativamente com cpi.scopountes, de onde também é derivado o nome 'bispo'sJ. Ainda te pare-

H4 Amiga de Jeranimo e tradutor da biografia que Atanásio escreveu sobre Santo Antão. H5 I-l>i,~copus. no original.

cem pouco os testemunhos de tão grandes pessoas? Soe a trombeta evangéli- ca, o filho do trovãos6, a quem Jesus mais amava, que no peito do Salvador bebeu as correntes da doutrina: 'O presbitero á senhora eleita e a seus filhos que eu amo na verdade.' [2 Jo 1 .] E em outra epístola: 'O presbitero ao carissi- mo Caio, aquem amo naverdade.' [3 Jo 1 .]O fato de, mais tarde, ter sido eleito um que fosse colocado acima dos demais aconteceu para impedir um cisma, para não acontecer que cada qual puxasse para seu lados'e rompesse a Igreja de Cristo. Pois também em Alexandria, desde os tempos do evangelista Mar- cos até os bispos EsdrasaB e Dionisio89, os presbiteros sempre escolhiam um dentre si e o colocavam em posição superior, chamando-o de bispo, do mes- mo modo como o exército escolhe para si um general. Os diáconos, porém, devem escolher dentre si um que conheçam como pessoa dedicada, e o deno- minar de arquidiácono. Excetuando a ordenação, que faz um bispo que um presbitero não faça? Pois não se deve considerar a Igreja da cidade de Roma como send? outra do que a do mundo jnteiro, da Gália e da Britânia. Pois também a Africa, a Pérsia, o Oriente, a India e todas as nações bárbaras ado- ram um só Cristo e observam uma só regra da verdade. Quando, porém, se pergunta pela autoridade, o mundo é maior do que a cidade de Roma. Onde quer que haja um bispo, seja em Roma ou na Eugubia, seja em Constantino- pla ou em Régio, seja em Alexandria ou em Tânis, todos têm o mesmo méri- to e o mesmo sacerdócio. O poder da riqueza e a humildade da pobreza fa- zem a um superior ou inferior, no mais são todos sucessores dos apóstolos." Até aqui o divo Jerônimo.

Não falo nada sobre a mudança dos tempos, nada sobre o diyeito positi- vo. O que afirmo é: se um bispo é superior aos demais de direito divino, Jerô- nimo evidentemente ensina aqui uma heresia, e não somente ele (pois nele eu não acreditaria), mas também Pedro, Paulo, João, Lucas, aos quais ele cita como autores irrefutáveis. Quem, peço-te, resistirá a estes? Por que o adula- dor nega que o pontifice romano é co-bispo em relação aos demais, quando o primeiro bispo, Pedro, se denomina co-presbitero? Se são sucessores de Pe- dro, por que se envergonham do titulo de seu predecessor? Se herdam dos posteriores o extremamente soberbo nome de santissimo, sumo, máximo pontifice, por que não herdam do primeiro o nome de co-presbitero e co- bispo? Por favor, será que Pedro, Paulo, João, Lucas e todos os apóstolos ignoraram o que significava a palavra de Cristo: "Tu és Pedro", "a ti darei as chaves" e "apascenta as minhas ovelhas", ao ponto de não terem observado, de-

I 86 Cf. Mc 3.17. 87 Ad se, no original. 88 Trata-se de erro de impressão. Leia-se: Heráclas. Heráclas foi sucessor de Orígenes na esco-

la de catequese e, após a morte do bispo Demétrio, veio a ser eleito bispo de Alexandria. I Cf. Eusébio, Hislorio ecclesiaslica V1,26.

I 89 Bispo de Alexandria e sucessor de Heráclas na sé episcopal. Cf. Eusébio, Hislorio ecclesiar- lica V1.35.

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pois, que o primado fora dado a Pedro por Deus? Se me chamam realmente de herege, a mim, que atribuo ao pontífice romano tudo o que querem, desde que não sejaobrigado afazê-lo por argumento da Escritura, ou seja, por mentira, pe- lo menos poupem o santo Jerônimo que, munido de tantas testemunhas, pro- clama com muito mais impudência que os bispos são superiores ou inferiores entre si pelo poder da riqueza ou pela humildade da pobreza. Afirmo isso pe- lo consenso dos fiéis e pelos decretos dos seres humanos. Por que os deprava- dissimos inquisidores da depravação herética não queimam 14 vezes esse ho- mem irreverente, blasfemo e sedicioso? Entrementes me permitam entender com Jerônimo. Que permitam que se concorde com Paulo, Pedro, João, Lu- tas. Se isso não basta, eles que queimem primeiro seus decretos. Pois essa epistola é citada nos decretos, dis. XCIII. c, legimus; ela é lida, ouvida, ensi- nada, aprovada por todos na Igreja Romana. Por que eu sou o único a quem se proibe dizer e pensar o que eles mesmos todos dizem, pensam e ordenam pensar? Jerônimo não só iguala os bispos entre si, mas também compara os presbiteros aos bispos, explicando que um nome expressa a idade e o outro o oficio. Eu me expressei de modo muito mais reverente, e nada desejo salvo não ser coagido, contra essa verdade, a zombar das Escrituras e da palavra de Deus. Que o pontifice romano seja tudo o que queiram, desde que não o afir- mem com argumentos da Escritura. Quero inclusive tolerar que se adaptem as Escrituras a sua opinião, desde que não pretendam que esse seja o sentido autêntico e único. Basta, portanto, que se afirme o primado por decretos fri- gidissimos, primado esse que é negado pelas quentissimas palavras de Deus. <>uçamos, porém, uma vez mais, a esse mesmo autor no comentário sobre a Epístola a Tito.

O divo Jerônimo, comentários à Epistola a Tito: "Portanto, presbitero é :i inesma coisa que bispo. Antes que, por incitação do diabo, surgissem parti- darismos na religião e se dissesse entre o povo: 'Eu sou de Paulo, eu de Apo- 10, eu, porém, de Cefas' [I Co 1.271, as Igrejas eram governadas pelo conse- Ilio comum dos presbiteros. Entretanto, depois que cada um pensava que :iqueles a quem batizara pertenciam a ele mesmo e não a Cristo, foi decretado cin todo o mundo que um dos presbíteros fosse eleito e colocado acima dos outros, sendo que a ele caberia o cuidado por toda a Igreja, para assim afas- (; i r a semente do cisma." (Se alguém acha que é opinião nossa e não das Es- crituras que bispo e presbitero é a mesma coisa, e que um nome designa a ida- cIc e o outro o oficio, releia as palavras do apóstolo aos filipenses e as outras que referiu acima na carta a Evágrio.) E no fim: "Portanto, assim como os prcsbiteros sabem que, segundo o costume da Igreja, estão sujeitos aquele que Ihes foi preposto, da mesma forma os bispos devem saber que são supe- riores aos presbiteros mais pelo costume do que pela verdade de uma disposi- c30 divina, e que devem governar a Igreja em conjunto."

Vê, pois, se foi sem ou com razão que minha tese afirmou que é coutrá- rio ao texto das Escrituras que a Igreja Romana seja superior as demais, co- IIIO também é contrário aos próprios decretos. Pois também essas palavras do hc;ito Jerônimo são citadas na distinctio XCV, capitulo Olim. E mesmo que iiilo sejam aprovadas por ti, nada poderia ser dito contra elas nem mesmo pe-

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Ia objeção do mundo inteiro e de um anjo do céu, porque lutam com as ar- mas fortes da Divina Escritura. Assim, creio que nossa tese está suficiente- mente provada e anulados todos os argumentos em contrário, mesmo os que pudessem ser inventados. Permanece de pé a afirmação: os bispos são maio- res que os presbiteros não pela verdade de uma ordenação divina, mas pelo costume da Igreja.

Acrescento o terceiro decreto da mesma distinctio XCV, capitulo Epis- copus: "Se o bispo estiver sentado em qualquer lugar, não admitaque o pres- bitero fique de pé." E ainda em outro capitulo Episcopus: "Na Igreja, na reunião dos presbiteros, o bispo pode sentar em lugar mais elevado, numa ca- sa, porém, deve considerar-se colega dos presbíteros." Ali é dito que isso são decretos do IV Concilio de Cartagow. Certamente é herético, escandaloso e sedicioso (como se expressam) se os bispos são superiores aos presbíteros de direito divino, quando eles estabelecem que estes são colegas dos bispos; mui- to mais, se um bispo é superior aos outros hispos. Portanto, que primeiro

i destruam seus decretos que nos obrigam a estudar. Como condenam eles em 1 nós o que eles próprios nos ensinam? Está, pois, evidente que de fato são

iguais os bispos entre si e em relação aos presbiteros, e que só pelo uso e por causa da Igreja uns são colocados acima dos outros. Dai se conclui ainda: se o primado do pontifice romano começar a tender para o prejuízo da Igreja, ele tem que ser eliminado totalmente da Igreja, porque o direito humano e os costumes devem estar a serviço da Igreja, e não militar contra ela. Se isso náo

I acontecer, perante Deus a tradição dos seres humanos já anula os manda- mentos de Deus. Por isso, observa como é delgado o fio em que está pendura- da a tirania dos aduladores romanos; tomando a iniciativa de firmar-se pela autoridade divina, destrói totalmente a si própria por essa razão.

Convoco para cá também a Cipriano, ao qual também o beato Agosti- nho cita, dizendo no livro 11, capitulo 2 de Do Batismo~l: "Pois nenhum de

! nós se coloca como bispo dos bispos ou obriga, com tirânico terror, seus cole- 1 gas a necessidade de obedecer, visto que todo bispo tem seu próprio arbitrio

segundo a liberdade e o poder que lhe competem; assim como não pode ser julgado por um outro, da mesma forma também ele não pode julgar a ou- trem. Aguardemos, porém, todos o juizo de nosso Senhor Jesus Cristo." Es- seglorioso mártir confessa publicamente que é tirania quando os bispos são obrigados à obediência por um deles. No entanto, quase todas as sílabas das decretais estabelecem essa tirania como sendo justiça e a conservam como se fosse um poder divino. Além disso, admira que o beato Agostinho não tenha criticado a Cipriano, por ele citado, se pensou que este fala contra o direito divino; antes, concorda com ele no sentido de que todos os bispos estão em pé de igualdade.

Vejamos, porém, algumas coisas mais. Ao querer demonstrar, no primeiro livro de epístolas, na quarta epistola

ao presbitero Félix, com testemunhos divinos, que o poder de eleger e rejeitar

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bispos não é dos bispos, mas principalmente do povo, diz esse mesmo Cipria- no: "Por isso, o povo que observa os preceitos do Senhor e teme a Deus deve separar-se de um superior pecador, também não devendo participar dos sa- crifícios de um sacerdote sacrílego, visto que o próprio povo tem principal- mente o poder tanto de eleger sacerdotes dignos quanto de recusar os indig- nos. Vemos igualmente que procede da autoridade divina que o sacerdote se- ja escolhido na presença do povo, diante dos olhos de todos, e, se for digno e idôneo, seja confirmado pelo julgamento e testemunho público, como, em Números, Deus preceitua a Moisés, dizendo: 'Toma teu irmão Arão e a Elea- zer, seu filho, e faze-os subir ao monte perante toda a sinagoga; tira de Arão a estola e veste-a em seu filho Eleazer. E Arão, depois de recolhido, ali mor- rerá.' [Nm 20.25s.l Deus ordena que o sacerdote seja instituído perante toda ;r sinagoga, isto é, instrui e mostra que as ordenações sacerdotais só devem ser feitas com o conhecimento do povo assistente, para que, pelo povo pre- sente, sejam postos a descoberto os crimes dos maus ou elogiados os méritos dos bons. Ordenação justa e legítima é aquela que tenha sido examinada pelo sufrágio e juizo de todos. Isso é observado depois em Atos dos Apóstolos, de acordo com os ensinamentos divinos, quando Pedro fala ao povo sobre a or- denação de um bispo em lugar de Judas. Diz ali92 que Pedro ergueu-se no meio dos discipulos; estava reunida uma multidão. Chamamos á atenção, po- rém, que os apóstolos observaram isso não somente na ordenação dos bispos c dos sacerdotes, mas também na dos diáconos. Também a respeito disso está escrito nos Atos dos Apóstolos: 'E os doze convocaram todo o povo dos dis- cipulos e Ihes disseram.' [At 6.2.1 Tudo foi feito com tanto cuidado e cautela, sob convocação de todo o povo, para que não se insinuasse no ministério do ;iliar ou no lugar sacerdotal algum indigno. Por essa razão, é necessário con- scrvar com diligência essa tradição divina e praxe apostólica e manter o que sc mantém também entre nós e em quase todas as províncias do mundo: para :i ordenação a ser celebrada corretamente naquele povo para o qual se ordena ti111 superior, se reúnem todos os bispos vizinhos dessa província, e o bispo é cscolhido na presença do povo que conhece perfeitamente a vida de cada um. Vcinos que isso aconteceu também entre vós quando da ordenação de nosso cr~lcga Sabino: pelo sufrágio de toda a irmandade e pelo julgamento dos bis- 110s que se fizeram presentes e que vos enviaram cartas sobre ele, foi-lhe transmitido o episcopado e foram-lhe impostas as mãos em lugar de Basílio."

O mesmo Cipriano menciona esse rito em muitas outras cartas, sempre :ilcgando o sufrágio do povo e o julgamento dos bispos vizinhos de tal manei- ra que afirma com confiança que essa ordenação vem de Deus. O que este ri- to i. em comparação com o rito hoje exigido por Roma, no qual não só é ex- cliiido o povo, mas nem mesmo a eleição do sacerdote hasta, isso deixo para outros. Também não é necessário referir quanto seria melhor que esse rito di- viiio fosse observado hoje em dia, sobretudo tendo em vista que governam taritos sacerdotes maus, que são impostos ao povo contra sua vontade. Pois

V2 Cf. At 1.15s.

l i vemos que a Cúria Romana, fazendo uso das expectâncias93, também impõe

sacerdotes em toda parte do mundo. Que vá lá isso. Lamento que essas nos- sas pessoas querem que seja considerado herético e condenado esse rito san-

I tíssimo e antigo, em tudo conforme com o direito divino, em favor de seu rito mais recente, visto que todos sabem perfeitamente que S. Nicolau, S. Marti- nho, Sto. Agostinho, Sto. Ambrósio e todos os pais antigos foram ordenados dessa forma. Que o rito hodierno seja o que puder ser - apenas não pense- mos que o pontifice romano pode fazer isso de direito divino, para que não condenemos os santos e mártires de tantos séculos, como se tivessem agido contra o direito divino.

Embora Gregório I diga, no quarto livro de registro, na carta 32, que pe- las passagens "apascenta as minhas ovelhas" e "tu és Pedro", etc. foi con- fiado a Pedro, o príncipe dos apóstolos, o cuidado por toda a Igreja pelo Se- nhor, não tolera, em tal cuidado, a nenhum bispo como sucessor dele nem afirma que Pedro é chamado de apóstolo universal, escrevendo o seguinte ao imperador Maurício a respeito de João de Constantinopla94: "A Pedro é con- fiado o cuidado por toda a Igreja e o principado; ainda assim, não é chamado de bispo universal. E o santissimo homem, meu co-sacerdote, pretende ser chamado de bispo universal. Tenho que exclamar: "ó tempos, ó costumes!" E mais abaixo: "Se alguém se apodera desse nome na Igreja, toda a Igreja cai de sua constituição (o que não aconteça!) quando cai aquele que é chamado de universal. Esteja, porém, longe dos corações dos cristãos esse nome blas- femo, pelo qual se tira toda a honra de todos os sacerdotes, enquanto um só a arroga insensatamente para si."

Cá tens, pois, que "bispo universal" é nome blasfemo. O que achas que ele teria dito de designações como sumo, máximo, santíssimo?

Segue-se: "É certo que isso foi oferecido pelo venerando Sinodo de Cal- cedônia ao pontifice romano, em honra do beato Pedro, o principe dos após- tolos. Mas nenhum deles jamais assumiu essa expressão de singularidade nem permitiu que ela fosse usada, para não acontecer que, conferindo-se a um al- go especial, todos os sacerdotes fossem privados da honra devida."

Está evidente que esse Gregório, que prefere denominar-se servo de to- dos os sacerdotes, ao invés de senhor, e servo dos servos de Deus95, não acre- ditava que só o pontifice romano é sucessor de Pedro, visto que tem horror a ser chamado de principe dos sacerdotese bispos, uma vez que chama a aquele de príncipe dos apóstolos.

de preencher todos os canonicatos que viessem a vagar e a conceder expectâncias, colocando-se, assim, contra toda a iradi~ão eclesial.

94 Lutero refere-se a uma discussaa havida durante o pontificado de Gregório 1 (59G604). na qual o papa proibiu ao patriarca de Constantinopla o usa do titulo "patriarca ecurnênico".

YS O pdiriarca de Alexandria concedeu a Oregório I o titula universolispop~. Este, porém, I reciisoii-re u rrcehrr o titiilo, iniitulando-se servus servorum Dei. I

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Na carta seguinte, dirigida a Constança, ele compara esse mesmo João com Lúcifer, dizendo: "Porque imita a aquele que, desprezando as legides de anjos em sua alegria comurn, quis elevar-se ao cume da singularidade."

O mesmo diz na epístola 36 aos bispos Eulógio de Alexandria e Anastá- cio de Antioquia: "Como sabe Vossa veneranda Santidade, o santo Sinodo de Calcedônia ofereceu ao pontífice da Sé Apostólica (à qual sirvo por dispo- sição de Deus) o nome 'universal'. Jamais, porém, qualquer predecessor meu concordou que se usasse esse nome tão profano, porque, se um é chamado de patriarca universal, tira-se dos outros o nome de patriarca. Que esteja longe da mente cristã alguém arrogar-se algo com que pareça estar diminuindo a honra dos irmãos, por pouco que seja." No entanto, se o primado do papa é de direito divino, não foram hereges tanto os próprios pontífices romanos quanto o concílio? Aqueles, porque não aceitaram o direito divino, mas o calcaram com os pés, e este, porque ofereceu o que não era de seu direito ofe- recer.

Mais abaixo é dito pelo mesmo: "Ele tenta atribuir tudo a si próprio, e todos os membros que estão unidos a uma só cabeça (ou seja, Cristo), [os inembros] desse Cristo ele procura subjugar a si pela elação de um sermão pomposo." Peço-te, que mereceria quem hoje falasse assim? Aqui Gregório, pontífice romano, persegue como sendo profano o que os nossos estabelecem como se fosse direito divino.

Na epístola 38, dirigida ao próprio bispo João, reitera o que disse antes e 0 explica mais amplamente: "Ao ouvir que alguns diziam: 'Eu sou de Paulo, cii de Apolo, eu, porém, de Cefas' [l Co 1.121, o apóstolo Paulo, certamente clctestando com toda a veemência essa dilaceração do corpo do Senhor, pela qiial seus membros de algum modo se associavam a outras cabeças, exclamou c disse: 'Acaso foi Paulo crucificado por vós? Ou sois batizados no nome de I'aulo?' [I Co 1.13.1 Se, pois, ele impediu expressamente que os membros do corpo do Senhor se sujeitassem a certas como que cabeças fora de Cristo, iiicsmo que sejam os próprios apóstolos, que irás dizer a Cristo, a cabeça da hniita Igreja universal, no exame do juizo final, tu que procuras sujeitar a ti próprio todos os membros dele por meio da denominação 'universal'?" 6 < iregório! não fazem e empreendem isso teus sucessores com o maior impe- IO?

E mais adiante: "O apóstolo Pedro é, sem dúvida, o primeiro membro <I:i Igreja santa e universal. Que outra coisa são Paulo, André, João, senão c;ibcças de determinados povos? Não obstante, todos são, sob uma só cabe- cri, membros da Igreja."

Isso basta. Ouçamos agora a própria cabeça de todos, o que ele determi- iiou sobre o estado dessa monarquia. Pois ele, prevendo as coisas futuras, re- holveu essa questão como primeiro de todos e de propósito; assim mesmo, Iiriga-se ainda tantos séculos sobre isso, como se as palavras de Cristo fossem I'iiiiiaça e fábulas vazias.

Assim diz Lucas 22.24s.: "Houve, porém, uma discussão sobre quem deles deveria ser considerado o maior. Ele, porém, lhes disse: Os reis dos po- vos doininam sobre eles, e os que têm poder sobre eles são chamados benfei-

tores. Não assim vós. Antes, quem é o maior dentre vós seja como o menor, e quem dirige seja como quem serve." E acrescenta seu exemplo: "Ora, quem é maior? o que está deitado à mesa ou o que serve? Não é o que está deitado? Eu, porém, no meio de vós sou como quem serve." Vês, portanto, que Cristo anuncia abertamente que são os reis dos povos, e não os pontífices, que que- rem ser os maiores, e que ele condena totalmente aquele poder mundano (isto é, o poder sem a Palavra e sem o amor). Na verdade, eu acredito, visto que foi necessário que a Igreja sempre fosse oprimida pelos gentios, como diz Ez 5.5: "Eu a coloquei em meio aos gentios", e SI 109[110].2: "Domina em meio a teus inimigos"; por isso, para cumprir a Escritura, quando não exis- tem outros gentios, reis tiveram que se tornar gentios na Igreja e governá-la com poder tirânico, enquanto que o ofício de amar e ensinar foi entregue a outros%.

Igualmente Marcos 10.35~s.. onde os filhos de Zehedeu aspiraram ao poder, querendo que um sentasse à direita e o outro à esquerda. Eles recebe- ram, na verdade, a resposta digna, a saber, que bebessem o cálice, mas não receberam certeza sobre onde sentariam. Que admira que essa fraqueza da ambiçáo existisse também nos pontífices romanos, por mais santos que fos- sem, ou mesmo mártires, já que Cristo a suportou entre os próprios apósto- los? Por fim, como esses dois apóstolos provocaram os demais à indignação com essa arrogância e novamente surgiu uma briga sobre quem seria o maior, Jesus os convocou e disse: "Sabeis que os que são considerados governantes dos povos dominam sobre eles, e seus príncipes têm poder sobre eles. Mas en- tre vós não é assim. Antes, quem quer tornar-se o maior, seja vosso servidor; e quem quer ser o primeiro entre vós, seja servo de todos." E de novo acres- centa seu exemplo: "Pois também o Filho do homem não veio para que se lhe sirva, mas para servir e entregar sua vida em resgate por muitos." Mas quem não enxergaria que nem os pontífices nem seus aduladores procuram esse ser- viço, e sim unicamente o poder? Pois é difícil imitar o Cristo servidor.

Igualmente Marcos 9.33~s.: "E chegaram a Cafarnaum. Quando esta- vam em casa, perguntou-lhes: Que discutieis pelo caminho? Eles, porém, si- lenciaram. Pois pelo caminho haviam discutido sobre quem deles seria o maior. Ele sentou-se, chamou os doze e lhes disse: Se alguém quer ser o pri- meiro, seja o último de todos e o servente de todos. E tomando um menino, colocou-o no meio deles e, tendo-o abraçado, disse-lhes: Quem recebe a um desses em meu nome, a mim me recebe."

Lucas 9.46s. diz o mesmo: "Surgiu entre eles a idéia de quem seria o maior. Jesus, porém, vendo os pensamentos de seu coração, tomou um meni- no, colocou-o a seu lado e lhes disse: Quem receber um menino desses em meu nome, a mim me recebe; e quem receber a mim, recebe aquele que me enviou. Pois o menor dentre vós todos é o maior."

Também Mt 18.1~s.: "Naquela hora, aproximaram-se de Jesus os discí- pulos, dizendo: Em tua opinião, quem é o maior no reino dos céus? E Jesus,

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Yh Tamhein no c>nginal este período nno 6 de lodo fluente.

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chamando um pequenino, colocou-o no meio deles e disse: Quem se humilhar como este pequenino, esse é o maior no reino dos céus."

Vês agora com quantas palavras, com quantos exemplos, com que cui- dado Cristo preveniu e proibiu essa ambição que os decretos e as decretais ga- bam com tanta presunção, repetindo-a e inculcando-a como se apascentar o rcbanho de Cristo fosse a mesma coisa que gabar e ambicionar o poder. Não L' poder que se impõe aos bispos, mas serviço. Quem não os deixaria servir com agrado, desde que eles quisessem?

Dai é este o meu julgamento: tal como os apóstolos contenderam até o fim da vida de Cristo e nem com todos esses exemplos e palavras de Cristo dominaram essa tendência humana, e Cristo, assim mesmo, não permitiu que iim deles conseguisse o primado, até que todos, dispersos, o abandonaram9', do mesmo modo já por tantos séculos se briga na Igreja pelo primado proibi- do, não se ouve a Cristo, que lhe resiste com tantas palavras e não permite que alguém o obtenha, até que talvez também eles, em vindo o anticristo, se- jam dispersos e neguem a Cristo.

Pois os apóstolos observaram isso direitinho no começo, quando consti- ioiram bispo de Jerusalém a Tiago, o Menor, e Pedro, Tiago e João rejeita- ram seus primados. Depois deles, porém, logo foi negligenciado o exemplo tanto de Cristo quanto dos apóstolos, e brigaram infinitamente, não pela Pa- lavra, para ensinar mais, mas para mais amplamente poder mandar, ligar, ~ibsolver e lucrar. Assim também nós somos obrigados a suportar as fraque- /as dos pontífices não sem muitos escândalos, por causa de Cristo. Pois se o primado de Pedro fosse de direito divino, ele teria agido do modo mais im- pio, juntamente com João e Tiago, ao preferirem a si próprios Tiago, o Me- itor, como bispo da Igreja de Jerusalém, da qual todos eram membros. Por isso também Paulo, ao citar as colunas da Igreja em G1 2.9, preferiu Tiago a I'cdro.

Agora passo aos argumentos históricos e racionais. O primeiro argumento é dos próprios Atos dos Apóstolos, onde está es-

crito que Pedro é igual aos demais apóstolos e que, afinal, recebeu de Tiago a coiifirmação de seu discurso (capítulo 15.13~s.). Ademais, Pedro não orde- i i i l t i pessoalmente a nenhum dos apóstolos, e nenhum lhe foi subordinado. < 'otiio pode, pois, o sucessor de Pedro ter subordinados a si os sucessores de ii,(los os apóstolos? Pergunto: que poderá alguém dizer quanto a isso? Sim, iiciii ele nem todos os demais ousaram ordenar apóstolo a Matias, mas pcdiram-no só de Deus. Esse é o argumento mais evidente de que nenhum ; i l~hs~olo teve preferência sobre outro. Cada um foi chamado e instituido só 110r Deus da mesma forma como os demais.

O seguiido é C1 2.11~s.: em Antioquia, Pedro foi repreendido por Paulo. I )isso sc evidencia que o pontífice romano está sujeito a qualquer um que tem i.<>iitprcctisão melhor, e que algo não é verdadeiro ou bom porque ele assim o < l i / i111 l r ~ . . file é obrigado a dar explicações, sim, nem sempre as pode dar; ás

vezes erra, como Pedro. O terceiro é a História eclesiástica, livro V98. Vitor IW, pontifice romano,

quis excomungar os bispos da Ásia. No entanto, foi redargüido, não por Paulo, mas por Irineu de Liãolm, e reprimido também por todos os demais; recebeu advertência e ordem de manter a paz e de não conturbar a Igreja. Ele cedeu a eles, como convinha. No mesmo lugar: também Anicetolol cedeu ao bispo Policarpo de Esmirnaio2 e não pôde coagi-lo sob seus decretos. Igual- mente na História tripartidaiol, livro IV: Júlio I tentou proibir que os bispos orientais convocassem um concílio sem sua autorização. Seu esforço foi em vão, porque eles não se preocuparam com isso e lhe responderam de forma extremamente aguda.

O quarto: que o pontifice romano seja superior a todos os demais, isso foi estabelecido por decreto humano, a saber, por Constantino IVtW, impera- dor dos gregos, como escreve Platina'o' a respeito de Benedito IIlm. Mas os outros bispos não observaram isso dessa forma.

O quinto: acaso o papa confirmou a Cipriano e Agostinho e outros bis- pos da Africa, mesmo que pertencessem a Igreja latina? Acaso impediu seus concílios? ou eram conciliábulos porque foram realizados sem a autorização do pontifice romano, como consta claramente em seus livros?

Sexto: quando instituiu ele os bispos de Alexandria, Antioquia, Jerusa- lém e outros no Egito, na Arábia, Siria, Asia e em todo o Oriente? Foram, por conseguinte, todos eles hereges? Longe de mim!

Sétimo: nem sequer hoje estão sob o pontifice romano os da Pérsia, da índia, da Citia e de todo o Oriente. Ou achas que ali não há cristãos? e que o reino de Cristo, do qual fazem parte todos os confins da terra (S12.8 e 22.28), está restrito a Roma? Acaso não são bispos porque não usam vestes episco-

98 Hisforia ecclesiosfic~ V.24. 99 Bispo de Roma de I89 até 199.

103 E o mais importante dos pais da Igreja católica primitiva. Natural da Ásia Menor, encontramo-lo, em 177, em Roma para interceder junta a Eleutéiia em favor dos montanis- tas. Em 177/78 foi eleito bispo de Lião. Na discussão em torno da fixação da festa pascal, admoestou a Vitor de Roma para que tolerasse a prática pascd da Ásia Menor. Entre seus escritos mais importantes temos a obra Adversus hoereses.

101 Papa de 154-165(?). Natural de Emesa/Siria, defrontou-se em seu pontificado com a pro- paganda de Valentino e de Marciâo. Em Roma, recebeu a visita de Policarpo de Esmirna para negociaçdes na discussão em torno da fixaçâo da festa pascal. Eusébio de Cesiréia, Hislorio ecclesiosiic~ IV,14.

102 E entre Paulo e Justino a única personalidade da Igreja antiga que pode ser enquadrada biograficamente. Irineu afirma que ele foi discipulo de Joâo. A Policarpo devemos a cole- $30 das cartas de Inicio de Antioquia. Destacou-se na discussão com Marcião. Esteve em Roma para discutir com Aniceto sobre a fixação da festa pascal. O ano de seu falecimento é 155 ou 161. Cf. Eusébio, Hisforio ecclesiaslico 1V,14s.

103 Hirrorio rriDorfifo. Escrito do senador romano Cassiodoro (477-570). o aual comoilou os ,. . ~ . três continuadores da Hisforio ecc les i~sf ic~ de Eusébio de Cesaréia.

104 Imperador de Bizâncio (668-685). 105 Rartoiomeo Sacchi. Nasceu em Piadena (1421), dai o nome Platina, e faleceu em Roma

(1481). Ili~iriiinisla, foi administrador da biblioteca papal. l i 6 I'iiliii <Ir 20/6/684 alC 8/5/685.

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i~iiis, não têm palácios, cavalos e outras pompas romanas? É suficiente que ciihinem a palavra de Deus, que amem e apascentem, porque, desse modo, iicrri sequer admitirias que os apóstolos foram bispos, se começares a obser- \,ar a aparência externa das coisas e não as próprias coisas; inclusive, os bis- 110s são tanto melhores quanto mais distantes estão das aparências, e são tan- i11 menos bispos quanto mais próximos estão dessas coisas.

Oitavo: Jerônimo escreve em De homens ilustresi07 que Acáci0108, bispo (lc Cesaréia, discípulo de Eusébio da Panfilia, destituiu, no reinado de Cons- iiiiicio, o papa Libériolw e constituiu a Félix. Da mesma forma, de acordo com a Tripartida, não foi o pontífice romano que depôs a João Crisóstomo, inns os bispos Teófilo de Alexandrialio e Epifãnio de Chipreiii. O mesmo Epi- I'iinio de Chipre, bispo menor do que João, o bispo de Jerusalém, excomun- gou a este e se arrependeu de ter tido comunhão com ele, como escreve o divo .Icrónimo contra o mesmo. E se considerares as histórias de como ora os im- lieradores mudaram, instituíram e depuseram o papa, ora o papa aos impera- dores, do mesmo modo o papa aos bispos e os bispos ao papa, poderias crer qiic estás vendo uma espécie de Iliadail2. E isso não admira. Eles se chocam e \c perturbam tantas vezes porque não ouviram a Cristo, que proíbe a ambi- q3o.

Nono: que diremos a respeito disso? Acaso não é verdadeira a opinião, siisientada por toda a Igreja, também por todos os decretos, por todos os iiicstres, de que os bispos são os sucessores dos apóstolos, como consta na ili~stinctio 21, capítulo In novo? Se é falsa, por que é enaltecida com tanta au- luridade? Se é verdadeira, como é que só o pontífice romano é sucessor do íiiiico apóstolo Pedro, e todos os demais são súditos do pontifice romano? I'or que não têm sucessores também os outros apóstolos? Foram os outros

li17 IJe illusrribw' viris 98. l t l H Ilispo de Cesaréia. Foi sucessor de Eusébio de Cesaréia (341). Colocou-se ao lado do impe-

rador Constâncio 11, filho de Constantino I, e defendeu nas disputas cristológicas o partido dos homeus.

iOi> Papa de 17/5/352 até 24/9/366, no periodo mais intenso das discussdes entre Atanásio e Arir,. Como o imperador Constâncio 11 (350-361) apoiasse o partido ariano, Libkrio ofeie- ceii resistência e continuou a apoiar o credo de Nicéia (325). Em conseqüência foi exilado, \crido eleito em seu lugar Félix 11. Em 358, no entanto, Libério pôde regressar a Roma, ;ii>Os ler negado o Credo Niceno.

i l i 1 Iiirpo de Alexandria (385-412). Combateu os monges do deserto de Nitria, defensores da teoli,gia de Origenes. Estes buscaram refugio junto a Crisóstomo, em Constantinopla. Por ~iteio de intrigas inescrupulosas, alcançou a demissso de Crisóstomo e a supremacia de Alc- r;$iidria em relação a Constantinopla.

I I I Iiiiiibém conhecido como Epifânio de Salamis (315-403). Nasceu na Palestina, tendo vivi- < l i > por ccria tempo entre monges egipcias. Em 367, tornou-se bispo de Constância (Sala- iiii*) e oictropolita de Chipre. Condenou a Origenes, a quem considerava precursor do ar ia^ iii\iiici, c perseguiu os origenislas. Foi usado por Teófilo de Alexandria, chegando a viajar, i.iii iil;iilc avansada, para Constantinopla para demitir Crishsiomo. Faleceu na viageni de icIiii11i) ;i ('hiprc.

1 1 1 I'<tciii;i cic Hoiliera, escrito por volta de 8M a.C. Trdtii-se de pnrlc - 51 dias < I a < i i l ~ r ) i t

<Ic. lrhiii (iiii,ii).

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apóstolos os sucessores do Único Pedro? Por que é tirada a glória dos outros apóstolos e atribuída somente a Pedro? Por que não têm todos os bispos o que seus apóstolos tiveram, visto que o bispo romano tem o que teve Pedro, seu predecessor? Muda, portanto, a frase, e dize: os bispos são os sucessores dos apóstolos, porém só o bispo de Roma é sucessor de determinado apósto- lo. Esse argumento, confesso, a não ser que eu seja mais tolo do que um toco, coage e tapa a boca de todos: os bispos são todos iguais, e, assim como o pontífice romano é ordenado por ninguém, da mesma forma cada bispo deve ser ordenado pela eleição, como ele, de direito divino. Pois permanece de pé esta afirmação: nenhum dos apóstolos foi enviado por Pedro; todos recebe- ram de Cristo, o Senhor, a mesma coisa de igual modo para as áreas que Ihes couberam. Portanto, os bispos, seus sucessores, estão em pé de igualdade com o bispo romano, exceto pela prerrogativa da honra ou da dignidade, co- mo escreve Paulo com clareza aos corintios: "Que fiz eu menos do que os grandes apóstolos?" [2 Co 11.5; 12.11.]

Décimo: responde: se o pontífice romano é vigário-geral em toda a Igre- ja por mandamento divino, segue-se inevitavelmente que pecam, ou até são hereges, aqueles que não estiveram sob seu domínio. Neste caso, toda a Igre- ja primitiva, por pelo menos 400 anos, juntamente com tantos mártires e san- tos, eram hereges. Por favor, de que vale estabelecer na Igreja uma blasfêmia tão grande a favor da pompa de um poder que não passa de fumaça? Por fim, inclusive o santo Pedro era um herege, ele que, antes da Igreja Romana, estava com os apóstolos em Jerusalém. Esse argumento invencível me con- vence.

Décimo primeiro: se alguma Igreja é a primeira e a mãe de todas, essa Igreja não é outra que a de Jerusalém, como já disse acima. Pois o que faria Roma se tivesse a seu favor o que tem aquela? A saber, o que Isaias e Mi- quéias e todos os profetas anunciaram: "De Sião sairá a lei do Evangelho, e de Jerusalém a palavra do Senhor." [Is 2.3; Mq 4.2.1 E que "ali o Senhor deu a glória em sua última morada", como diz Agen [2.9]. Que Cristo foi pontífi- ce em Jerusalém, e os apóstolos como que presbiteros; que lá Cristo foi ofere- cido em sacrifício e enviou o Espírito Santo. Em suma, de Jerusalém saiu a palavra de Deus para toda a terra, dali se originaram todas as Igrejas. E não existe cara tão descarada que pudesse negar que esta é, de fato, a mãe de to- das as Igrejas, a fonte, a raiz, a matriz, também da Igreja Romana. Essa é a razão por que, segundo o livro 1X da Triparlida, capitulo 14, os bispos reuni- dos no Concílio de Constantinoplall3 comunicam a Dâmasoli\ bispo roma-

1 L3 Trata-se do Concilio de Constantinopla de 381, no qual foi redigido o credo hoje conhecido como niceno-constantinapoiitano.

114 I'apu de 1/10/366 até 11/12/384. Espanhol de nascimento, sua eieisZo não foi pacifica. Ilm Kriiiio ciegcra o diácono Ursino. Seguiram-se violentas batalhas campais, que teimina- i t l i i i ciiiii o arrdssinato de 137 adeptos de Ursino. Apoiado por Teodósio e por Graciano, l>alti;ifi> icve :ii<]iiivad<i o processo no qual era acusado de mandante dos assassinatos. Gra- i'i;ilii> <lri.l;ti i , i i i, I,iyii> dc Koma, no caso Dâmasa, autoridade máxima em questdes de di- i c l l i i i.ili.fiii\ii<ci 1i; i i ; i i> Oci<lciiie. Jeronimo foi secretário de Dâmaso.

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iio, entre outras coisas que ordenaram, o seguinte: "Comunicamos que na iiiãe constituída de todas as Igrejas, Jerusalém, está o reverendissimo bispo CirilollJ, amado por Deus, outrora regularmente ordenado pelos provinciais", etc. Dai se evidencia que, naquele tempo, a Igreja de Jerusalém era considerada a mãe de todas as Igrejas e que foi realizado um concilio sem a autorização do pontifice romano, o que seria herético se o poder do pontifi- cc romano estivesse apoiado em direito divino. Por conseguinte, se essa Igre- ja não tem o primado, sim, se mal lhe deram o quinto lugar, quanto menos o tem a Igreja Romana, sua discipula! Diga algo contra isso quem puder.

Décimo segundo: como está escrito no livro X, capitulo 4 da História eclesiástica, o Concilio de Nicéia"6 estabeleceu, no artigo 6P, o seguinte: "Tanto em Alexandria como na cidade de Roma se observe o antigo costu- iiie: como aquele toma cuidado das Igrejas do Egito, este o faz com as que es- iào nas proximidades de Roma." Responde: esse concilio é, decerto, de todos o mais sagrado, e vê, ele não dá o primado e a monarquia ao pontifice roma- iio. Mas não só isso. E conforme o antigo costume, e não por direito divino, que lhe atribui o cuidado das Igrejas italianas e suburbanas. Nisso eu toquei cm minha tese, quando disse que o decreto desse concilio se opõe aos frigidis- simos decretos.

Se, por conseguinte, sou herege, pois bem! Eles que tratem de abolir pri- iiieiro esse concilio. Os próprios decretos me obrigam a obedecer-lhe como ao l+vangelho. Não posso servir a dois senhores contrários.

Décimo terceiro: esse mesmo Concilio de Nicéia estabeleceu que os bis- pos não seriam ordenados todos pelo bispo romano, mas pelos bispos provin- i.i;iis, dizendo: "Para que, se dois ou três divergirem por causa de uma briga qiiando da ordenação de um bispo, se mantenha com tanto mais firmeza a :iiii«ridade dos restantes e, principalmente, do metropolita com os demais." I'or favor, que mais devo fazer? Não basta que concedo de bom grado ao lioiitifice romano tudo que ele se arroga? Tenho que provar, além disso, que csses decretos são desprezíveis e nulos por causa do arbítrio humano de um iiiiico bispo?

Décimo quarto: o mesmo Concílio deNicéia atribui o primado de honra :io hispo de Jerusalém, e não ao de Roma, dizendo ali mesmo: "Para que fi- qiie preservada ao bispo de Jerusalém a prerrogativa de honra transmitida (Icsde tempos antigos, permanecendo, não obstante, também a dignidade do iiiciropolita de sua província." Ensina-me, leitor, o que fazer, já que não Iinsia que, hoje, eu confesse que o bispo de Roma é o primeiro, a não ser que iiiiiila também e negue que outro foi o primeiro desde os tempos antigos, e

I I5 Cirilo de Jerusalém. Falecido em 386, foi eleito bispo de Jerusalém em 351. Cirilo via sua comunidade como a màe de toda a Igreja, sendo, por isso, atacado por Jerdnimo. A Cirilo ilcvemos o ciclo de festas da semana santa. Suas catequeses pré-batismais, elaboradas por volta de 350. sào de fundamental importância para a história do dogma e da liturgia.

I I6 i: i> primeiro concilio ecumènico, convocado em 325 por Constaniino I. Reuniu-se em Ni- <&ia. na Ásia Menor, e teve por principal tarefa a definicão da consubstanciaçào de Jesiis <'risL~) com o Pai.

me oponha a um concilio de tamanha autoridade. Por fim, está escrito na Tripartida, livro 11, capítulo 5, que no Concilio de Nicéia sentou-se no pri- meiro lugar Eustáquioll7, bispo da Igreja de Antioquia, e não o de Roma nem o legado do bispo romano. Isso seria intolerável ao direito hodierno do bispo romano. Assim mesmo, ele não foi um herege por causa disso, nem o Conci- lio de Nicéia agiu contra o direito divino.

Décimo quinto: se a Igreja Romana é a primeira por causa de Pedro, o primeiro apóstolo, devemos, com a mesma necessidade, confessar que a tgreja de Compostela é a segunda por causa do santo apóstolo Tiago, e a de Efeso a terceira, por causa de Joáo, o terceiro apóstolo, e assim por diante, pela ordem dos apóstolos. Acaso é observada essa ordem? Por qiie direito só Pedro faz com que uma Igreja seja a primeira, senão por direito humano? Por que a de Constantinopla, que não tem apóstolo, vem em segundo lugar, antes da de Compostella? Por que a de Alexandria, que também não tem apóstolo, tem preferência sobre a de Éfeso? Por que a de Antioquia, sem apóstolo, vem antes da de Edessa, que tem o apóstolo Tomé? Por que a de Jerusalém vem depois de todas essas, em quinto lugar, ela que teve a Cristo, Pedro, Tiago, João e também a Tiago por colunas (como escreve Paulo em G1 2.9), e todos os discípulos? Vês como nâo existe razão alguma, como Cris- to preveniu com diligência a ambição desse primado e confundiu totalmente suas causas.

Décimo sexto: se a palavra de Cristo: "Tu és Pedro" e "apascenta as ovelhas" diz respeito somente aos sucessores de Pedro, poder-se-ia concluir com a mesma conseqüência que os sucessores de Joáo são só os filhos que fo- ram confiados a Maria junto a cruzlin, os únicos que são mais amados do que os outros, porque Cristo dirigiu-se só aele e o encomendou a sua mãe. Por- tanto, os outros recebem dos bispos de Efeso o fato de serem filhos da Igreja e de Maria. Do mesmo modo, somente os sucessores de Tiago e João seriam filhos do trovão, e só os sucessores de Tiago, o Menor, seriam irmãos do Se- nhor. E, em geral, os sucessores de todos aos quais Cristo falou alguma vez teriam a mesma coisa por direito divino. Que coisa mais vã se poderia dizer?

Décimo sétimo: se o papa estivesse acima de todos os fiéis da Igreja de direito divino, ninguém poderia absolvê-lo nem ouvir-lhe a confissão. Pois tudo que é de direito divino é imutável, não podendo, de modo algum, sujeitar-se a outro e suportar uma autoridade acima de si sem ofender o direi- to divino. Pois um inferior não pode tornar-se um superior de forma alguma, a não ser pelo arbítrio humano. O direito divino está fixo naquilo que ele é.

Por fim, digo que não sei se a fé cristã pode suportar que se estabeleça na terra outro cabeça universal da Igreja além de Cristo. Existem os que reme- tem Cristo para a Igreja triunfante, a fim de constituir o pontifice romano ca-

117 Eii~t iqi l io de Antioquia. Nascida em Side, na Panfilia, foi primeiro bispo de Beréia, na Si- !i;,, c <lelioir, em 324, patriarca de Antioquia. Adversário de Ario em Nicéia, polcmirou ~;iiiihbiii i.i>iiii;i Iiiisébio de Crsaréia.

I I H ('I. I<> 2 1 1 7 .

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heça da Igreja militante, contra o expresso Evangelho de Mateus, que diz no iiltimo capitulo: "Eis que estou convosco até a consumação do século." [Mt 28.20.1 E ainda At 9.4: "Saulo, Saulo, por que me persegues?" Pois a Igreja é chamada de reino da fé porque nosso rei não é visto, mas crido, como se lê em 1 Co 15.25,24: "Convém que ele reine até que ponha seus inimigos pores- cabelo de seus pés, e então entregará o reino ao Deus e Pai." Mas esses, ao erigirem um cabeça visível. fazem disso um reino das coisas presentes. Pois a Igreja não fica sem cabeça também quando o pontífice morre. Por que então Cristo não é considerado o único cabeça enquanto o pontífice vive? Acaso abdica enquanto o pontífice vive e lhe sucede quando morto, como se fosse iim pontífice alternado? Se, todavia, também é o cabeça enquanto o pontífice vive, por que estabelecemos dois cabeças na Igreja?

Eu finalizo: No caso de morte e de necessidade, todo sacerdote é bispo, é papa, e tem

o mais pleno poder sobre o confitente, como é opinião comum de toda a Igre- i a e como se prova claramente a partir das epístolas do beato Cipriano. Por- tanto, de direito divino nem o papa é superior aos bispos, nem o bispo é supe- rior aos presbíteros. A conclusão permanece de pé, pois o direito divino é iiiiutável, tanto na vida como na morte.

Fim.

Se desejares mais, o encontrarás alhures. E p a z na terra aos seres humanos de boa vontade,

Comentários de Lutero sobre suas Teses Debatidas em ~eipzig]

(Veja a introdução a Debate e defesa do fr. Marrfnho Lutero contra as acusações do dr. João Eck, pp. 257-60 deste volume.)

Jesus.

Ao excelente e douto Senhor Jorge Espalatinol, bibliotecário e pregador da corte do ilustríssimo príncipe Frederico da Saxõnia', eleitor

do Império e seu representante, a seu amigo, saudaqões!

Estimado Espalatino! Desejas conhecer a história daquele afamado de- bate que tivemos em Leipzig, decerto sobretudo porque ouviste que o nosso Ecka e algiins de sua facção há muito e trauquilamente festejam o triunfo e cantam vitória. De fato fico contente e dou graças se a vitória é tão certa quanto é grande a jactância. Pois que mais se poderia desejar a cristãos, em especial a teólogos, do que isto: que vença a verdade e o erro seja reconheci- do? Por outra, porém, quando jamais se ouviu, desde a criação do mundo, que seja verdadeira e duradoura a glória que se exalta a si mesma e se jacta antes do tempo? Não é a esse tipo de glória que se referem os provérbios: "Canto de glória antes da vitória", "Gritos de vitória antes do salvamento", e inclusive o provérbio: "Louvor próprio fede" e "Seja outro o que te

I Rcc«luliones Lulherianae super propwilionibus siris Lipsioe dispurotis, W A 2,391-435. Tradii~zin de Ilson Kayser.

2 ('1. n. 35. nota 3 e o. 233. nata 2. 3 <'I'. 1,. 62. riol;i 19, p. 200, nota 7 c pp. 426s., nota 8. 4 ( ' I ' . r > . 257. 1ii i l : i 3.

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louve" [Pv 27.2 I ? Cristo diz: "Se eu busco a glória própria, minha glória na- da é." [Jo 8.541. Salomão, autor dos Provérbios, escreve: "A herança que, no principio, é buscada com muita pressa, no fim não será abençoada." [Pv 20.21.1 Pois o justo, diz a Escriturar, antes de se vangloriar, é acusador de si mesmo; o fariseu, no entanto, antes de mais nada se gloria a si mesmo e, ao mesmo tempo, é acusador de todos os demaisS.

Quanto a nosso Eck, a respeito dele creio tanto mais que se tenha gaba- do de suas vitórias, pois há muito conheço o gênio desse homem, um miserá- vel escravo da ambição; além disso, fiquei sabendo mais ainda que, nos deba- tes, costuma mais fazer acusações do que propriamente debater, e que, á mo- da dos conversadores incultos, costuma pôr a perder o tempo das pessoas com injúrias e ofensas. Por isso, não admira que nada procure a não ser a glória. Já há dois anos venho suportando muitos desses grandes cantadores de vitória, gabolas imprestáveis e acusadores enraivecidos. Também despre- zei não sei que castigo do inferno com que fui ameaçado. Em vista disso, não ine importa ouvir essa sua glória simulada, pois mais merecem que tenhamos pena deles do que que nos aborreçamos com eles. Pois se a consciência deles também se gloriasse, não tenhas dúvida de que não se gloriariam nem fariam acusações exteriormente. Mesmo assim, para satisfazer tua curiosidade, vou descrever com brevidade os acontecimentos de acordo com a verdade, e o fa- rei de tal modo que possas compreender que esse debate foi perda de tempo e rião uma busca da verdade. Além disso, em sua glória, Eck e seus asseclas fin- gem uma coisa; em sua consciência, sentem bem outra coisa. Pois, no que de- pendia de Eck, quase nenhum ponto central foi tocado. E quando foi tocado ti111 deles, debateu-se apenas com os argumentos mais conhecidos e repisados. Porque Deus sabe que, por dois anos, os de Wittenberg atacaram toda essa iivalanche de teses com muito mais vigor e as analisaram ao ponto de se poder contar seus ossos, enquanto Eck mal Ihes roçou a pele. Só que, em uma hora, clc berrou mais do que nós naqueles dois anos todos, parecendo querer \ii[>erar-se a si mesmo como gritalhão, com gestos extremamente arrogantes e I';iiifarrÕes. Com esses modos, na verdade calmos e tranqüilos, a modéstia ec- kiriiia buscou até agora a teologia pacifica, oculta, de forma muito profunda c qiiieta, em silêncio e mistério. Pelo amor que Deus me tem, sou obrigado a ~.oiifessar: fomos vencidos por gritaria e gesticulação, ou seja, pela modéstia clc Eck, pois é assim que ele próprio a denomina.

No entanto, antes de re1a:ar os acontecimentos em si, tenho que fazer IIIII prefácio e pedir perdão se envolver, de igual modo, algumas pessoas que ~iicfcriria não mencionar, não tivessem elas mesmas se intrometido sem moti- v o c sc, como se diz, se tivessem mantido neutras e indiferentes nas duas dire- çc>es. Por isso, não culpem a mim, mas a si próprias se também elas forem :iiiiigidas, elas que, por igual ânsia de glória e por um ódio inveterado, que já vciii de loiige, foram levadas a maquinar tramas nada boas contra nós e a fa-

5 ('1. Pv 1R.7 na versao da Vulgata 6 ('r. 1.c 18.11.

vor de Eck. É claro que não me refiro a todas. Pois existem nessa ilustrissima academia brilhantes e ótimos defensores das verdadeiras ciências, homens que, justamente por isso, são espinho nos olhos e açoite nas ilhargas - para falar com Josuél - daqueles homens do outro fermento. Também o muito sábio conselho e os excelentes cidadãos estão a tal ponto distantes dessa men- talidade malévola, que ninguém mais do que eles abomina essa raça perversa e inimiga das boas ciências. O maior elogio, porém, merece o ilustrissimo príncipe duque Jorge8 que, em clemência e generosidade verdadeiramente principescas, tudo fez em prol de um resultado frutífero desse debate, se ti- vesse sido um debate em que se tivesse buscado a verdade pura, pondo de la- do a glória. Inclusive dignou-se a honrar de forma admirável esse assunto com sua nobilissima presença, tomando todas as providências e advertindo que se agisse com modéstia, sempre com vistas à busca da verdade. Portanto, confesso que nada devo a essa excelente universidade senão toda a honra e dedicação; apenas tenho que confessar que a hostilidade de alguns (as coisas humanas não são perfeitas em parte alguma) me desgostou demais.

Esta, pois, é a tragédia ou a comédia desse debate - melhor seria chamá-lo de sátira. Em primeiro lugar, foi rompido o acordo entre Eck e nós, segundo o qual se discutiria livremente, e as atas dos notários seriam submeti- das ao julgamento público de todo o mundo, conforme se pode ler nas cartas7 publicadas de ambos os lados. Pois o nosso Eck queria que o assunto fosse tratado sem notários, com mera gritaria arbitrária. Os homens de sua facção concordaram com isso. Como não conseguissem esse intento, passaram para outra forma de burlar o acordo: as atas não seriam dadas a público pelos no- tários se não recebessem o parecer de juizes, eleitos nominalmente e de co- mum acordo, sobre o que lhes foi submetido. Acrescentou-se ao acordo uma invenção com a qual se camuflou sua ruptura com um titulo muito honroso, para enganar os bobos: precisa-se de certos árbitros. Se os recusássemos, já teriam algo com que provocar o ódio do povo contra nós e com que se ufa- nar, dizendo que nós não queremos admitir árbitros. Assim, a muito sólida verdade de Eck e seus asseclas temeu a luz e a publicidade, muito cônscia de não poder resistir ao juizo do mundo inteiro e de todos os homens de bem, juizo segundo o qual foram aceitas tantas coisas que outrora disseram, escre- veram e discutiram os santos pais. Procederam dessa forma talvez porque ali- mentavam a esperança de que seriam árbitros aqueles dos quais sabiam que, nas universidades aqui e acolá, eram contra nós e a favor deles. Ou então, es- sa é minha maior suspeita, porque o nosso Eck, consciente de não entender das Escrituras, procurava, por este motivo, um esconderijo para essa sua consciência. Pois embora seja homem de variados e amplos conhecimentos nas ciências humanas e nas concepções escolásticas, descobri que é um deba-

7 <'I' . .I\ 23.13. H ('1. 1,. 426, nata 7. <I A rr\l>o\i:i i l e Iiitcro ao panfleto paradebate, publicado por Eck, estáem forma decarta a

I ~ s ~ i i i l t i i i i i i ~ . W A Ilr 1.315-22. iiI' 142.

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tcdor inane em questões das Sagradas Escrituras. Que em sua modéstia me perdoe essa opinião, pois falo a verdade e o demonstrarei oportunamente, ca- so não forem suficientes as provas muitissimo fidedignas dessa ignorância que ele próprio fixou por escrito. Não que eu me considere o único conhece- dor das Sagradas Escrituras (acusação que ele costuma me fazer quando não cncontra outra coisa para dizer). Creio, porém, que me ocupei o suficiente com a Sagrada Escritura e nela sou exercitado o bastante para poder me ex- ternas sem perigo sobre o conhecimento de um teólogo escolástico que mal saudou a Escritura Sagrada do solar da porta.

Houve ainda outra manipulação. Nosso Karlstadt'o havia trazido livros. Ora, a maneira mais honesta e segura de debater é esta: mostrar nos livros a iiião as passagens e provar ou refutar as afirmações feitas. Mas o nosso Eck rejeitou isso com grande barulheira. Pois parecia que, apoiado no talento e trabalho de certo compilador, havia amontoado muitas passagens dos santos !pais, ampliadas ainda pelo trabalho dos de sua facção. Portanto, corria ali o ]perigo de, assim como já fora convencido algumas vezes, ser convencido senipre de aduzir mal as assertivas dos pais. Pois, como não vira nem o que se <lidia antes nem o que se dizia depois (visto que não buscava a verdade, como já disse), aduzia aquelas citações dos pais de tal maneira que nada poderia ter iiienos validade em relação ao assunto em pauta, a não ser que se deleitava ciri provocar, de vez em quando, risos no auditório. Assentindo à vontade de Ilck, decidiram então que os livros deveriam ser deixados em casa e que sede- vcria debater apenas com os recursos da memória e da língua, livremente. O yric vale dizer, como afirmaram alguns excelentes homens: o debate não seria Icviido a efeito por causa da verdade, mas para louvor da memória e da lín- ~:ii:i. Também aqui, porém, aquele Adão pretextou uma belíssima folha de fi- 1:iicira que, de fato, ninguém entenderá a não ser que seja tolo: E infantil e ri- iliciilo um teólogo debater baseado em livros ou papeletas. E é de se admirar i~ii;iiito murmúrio lisonjeiro arrancaram com esse artifício entre o povo, que iiilp:i essas coisas como se fossem exercícios escolares de crianças. como se o [>i-ii1,rio Agostinho" não tivesse debatido contra os maniqueuslze donatistas', hriviiido-se de livros. Acontece que este buscava a verdade, não a glória.

Omito que foi necessário ceder a Eck a última intervenção, quer se opu- \esse a nós, quer nos respondesse, para que, dessa maneira, argumentos nâo t,i>ii(cstados pudessem, com mais facilidade, aparentar vitória. Depois, quan- < l i ) se marcava uma data para encerrar determinado assunto, ele tinha a liber- tl:iclc de não observá-la, ao passo que nós tínhamos que respeitá-la religiosa- iiiciilc. Em suma, nós, que chegáramos para lutar contra erros e heresias, fo-

I0 c' f . p. 257, nota 5. I I <'I. p. 36, nota 8, p. 67, nota 46 e p. 401, nota 4 I.? ('1'. p. 15, nota 15. I 3 Segiiidores de Donato, bispo de Caitago (Norte da África) em principias do século IV. Os

ilon;itisias ensinavam que somente eram validos os sacramentos administradas por cristãos ver<ladciros. A Igreja Catblica, por não exercer a disciplina como deveria, tinha deixado de \e i Igicja verdadeira.

mos forçados a lidar com hostilidade e vanglória. Quanto a mim, visto que em tantos sermões me transformou em objeto de falatório e zombaria entre o povo, porque seus asseclas assim o desejavam, prefiro esquecê-lo, pois nâo há nada que eu deseje tanto quanto que meu nome seja esquecido.

No entanto, nem assim conseguiram qualquer coisa. Pois, querendo ou não, eles próprios são forçados a atestar que as teses de Karlstadt, que Eck se havia proposto devorar até cruas, voltaram para casa incólumes, sem que fossem contestadas numa só sílaba. Oh sim, para evitar ser considerado ven- cido, esse egrégio patrono dos mestres escolásticos transformou-se em Proteui4 durante o debate. Eis que, no fim, admitia e até afirmava as coisas que, no principio, tinha combatido com grande ímpeto. Antecipando-se, gloriou-se de ter conquistado a Karlstadt para sua opinião. Ousou inclusive afirmar que os mestres escolásticos jamais ensinaram outra coisa e entende- ram de outra forma. Contudo, sentindo que falara com excessiva insolência para os ouvidos de alguém que tivesse lido os escolásticos, moderou suas as- sertivas, negando constantemente a Escotofi e seus escotistas, bem como a Capreoloi6 e seus tomistasl', e citando alguns mais antigos: ao Altisiodorensel8, a Boaventura19 e não sei que outros autores mais.

Creio, porém, que muito sofreram as pessoas de sua estirpe - mesmo que simulassem miseravelmente algum riso -, ao perceberem (se é que o per- ceberam!) que seu chefe, qiie se arremessara a luta com tanta coragem, aban- donava as bandeiras, transformando-se num desertor e trânsfuga. Pois isso bastou a Karlstadt: numa mesma hora, Eck negara as três mais célebres fac- ções dos mestres escolásticos. Se não as tivesse negado, teria que voltar a In- golstadt como pelagianozo. Pois é certo que os modernos (como são chama- dos) estão de acordo com os escotistas e tomistas neste ponto (isto é, na ques- tão do livre arbítrio e da graça), exceto com aquele um, Gregório de Riminizl, a quem todos condenam; também ele demonstra, com correção e eficácia, que eles são piores que os pelagianos. Pois entre os escolásticos é ele o único

opinião ou sistema. I5 Cf. p. 13, nota 4. 16 João Capreolo, dominicana, festejado como oprinceps lhornislorum. Foi professor em Pa-

ris a partir de 1409 e faleceu em 1444. 17 Seguidores de Tomas de Aquino (cf. p. 31, nota 3 e p. 402, nota 8). I8 Guilherme de Auxerre. Morreu em 1230. Professor de Teologia em Paris. Escreveu uma

Summa rheolorico. I Y 1221-12-4. Fiii :r,?n.,riiirnJa 'doiiior e . i f i . i > " I r.ii<>n.>ii na I.ni>er3.Ladc de 1 8 . i r i i t . ~

~er ; i l d i > irari:i\.;iri<,r c ;~rJc31 E i i r i i ou 4i:k.a J3iiirina J a lyrqa ;on:~rd;i :.>ni & r3,1., e que a contemplacão mistica leva a um conhecimento superior de Deus.

20 Cf. p. 15, nota 13 e p. 179, nota 357. 21 Gregdrio de Rimini (a Rimini), ca. 1300-1358, agostiniano eremita, foi professor em Bolo-

nha, Phdua e Perugia. A partir de 1340 esteve em Paris. Em 1357 tornou-se geral da Ordem Agoriiiii;ina. Na filosofia seguiu o naminalisma de Occam. Na teologia, porém, afastou-se do ~ii~iiii~ialisoio. designado por ele de semipelagianismo, e defendeu o agostinismo extre- ii,;i<l<i. I>rve ter irifluenciado Lutero.

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qiie, contrariando a todos os escolásticos mais recentes, concorda com Karl- siadt, o que vale dizer, com Agostinho e com o apóstolo Paulo. Porque, ape- \ar de terem afirmado que é possivel fazer boas obras sem a graça, os pelagia- 110s não asseveraram que se pudesse alcançar o céu sem a graça. Sem dúvida, 11s escolásticos dizem a mesma coisa ao ensinarem que, sem a graça, pode Zicontecer uma obra boa, mas não meritória. Depois ainda acrescentam algo qiie vai além dos pelagianos: o ser humano conta com o ditame natural da sã ixzão, a qual a vontade pode adaptar-se por natureza, enquanto que os pela- gianos disseram que o ser humano recebe auxilio através da lei de Deus.

Não penses que essa capacidade de metamorfosear-se seja algo de estra- iiho ao gênio de Eck. Ele a tem prontamente a mão. Pois neste dia pôs-se ao Iado de Gregório e Karlstadt (como já disse). No outro dia, porém, em debate coniigo, negou a esse mesmo Gregório na mesma matéria, por causa de um :irfigo de Hus::, condenado no Concilio de Constança'" Eck é, de fato, um dcbatedor prodigioso, como jamais vi outro igual. Para ele não há perigo iiem erro em aceitar a favor dos escolásticos a opinião de Gregório de Rimini qiie, com o dr. Karlstadt, se opõe a todos os escolásticos, e, por outra, em re- ,jcitar o mesmo Gregório, na mesina matéria, a favor dos mesmos escolásti- clis. Aí tens a vitória da qual se vanglodam Eck e seu bando, dizendo que es- i50 de acordo com os mestres da Igreja, depois de terem negado a quase to- dos os mestres escolásticos que haviam se encarregado de proteger.

Também nós de Wittenberg, porém, sabíamos que, se os mestres esco- 1:isticos negassem a Aristóteles com suas trevas (segundo Eck, com a luz natu- ral), poderiam concordar com os mestres da Igreja. Em Wittenberg desco- iilicccmos essa maneira de negar e de concordar pela negação. Nós a aprende- iiios cm Leipzig e estamos dispostos a compartilhá-la de boa vontade contigo r ciiiii todos os que o desejarem: 1P - No começo do debate, deves combater ~. i~i i i força as assertivas do interlocutor; afirmarás, inclusive com escritos pú- Iilicos. que irás lutar contra a nova doutrina em favor da verdade da fé e da Iiiiiira da santa Igreja, de sorte que se tenha a impressão de que os montes ir;iii parir. 2P - No desenrolar dos acontecimentos, deves ceder de forma gra- cliiiiva e astuta, para que ninguém perceba que estás vencido; deves afirmar s<.rripre a mesma coisa e, ao mesmo tempo, te gloriar de teres vencido. 3P - 'I'ciis que fazer de conta, com muita confiança, que nenhum dos presentes ii.111 memória ou bom senso, de sorte que possas afirmar livremente que esta kii iiia opinião desde o início e que esta não é uma doutrina nova, mas anti- c:i. Nesse meio tempo, não te deve importar o fato de teres abandonado todo i i i i i cxército de mestres que te propuseras defender. Esse é, na verdade, omo- 1111 c o resultado do debate entre Karlstadt e Eck.

Depois disso, debateu comigo sobre o primado do pontífice romano, so- bre o purgatório, as indulgências, a penitência e o poder de todo sacerdote para dar a absolvição. O que fizemos quanto a todas essas questões ainda se verá a seu tempo. Pois a respeito disso devo falar menos, para não me tornar meu próprio arauto.

Por enquanto, tenho a dizer que quase nem eu inesmo sei até que ponto divergimos na questão da penitência e do purgatório. Pois ele considerou lou- vável, mas não quis admitir como necessário que a penitência comece pelo amor a justiça. Eu, no entanto, o considero de todo necessário até hoje, visto que antes da graça (que é o amor) não se pode fazer nenhuma boa obra, co- mo também ele concordara. Vejo o motivo do desentendimento no seguinte: citando muitos testemunhos, ele afirma que a penitência começa também com o temor servil, ignorando ou simulando não saber que o temor servil não é tirado por completo nesta vida. Por isso, também a graça infusa, que dá ini- cio a penitência, suscita o temor servil, operando, ao mesmo tempo, o temor filial, visto que as obras de Deus são terríveis, matando quando quer criar vi- da, etc. Se, porém, as almas têm certeza de salvação e se a graça é nelas au- mentada, isso eu disse que não sabia, de acordo com meu debate nas Explicações24, e até agora ele não demonstrou o contrário. Assim, o assunto continua pendente até hoje.

Na questão das indulgências quase concordamos. Aliás, elas quase des- cambaram para o ridículo, visto que ele próprio pregara publicamente ao po- vo que elas certamente não devem ser desprezadas, mas que também não se deve depositar nelas a confiança. Se os mercadores de indulgências as tives- sem promulgado dessa forma, talvez hoje ninguém conheceria o nome de um tal de Martinho. As indulgências há muito teriam desabado e os comissários2s teriam morrido de fome, se o povo soubesse que não se deve confiar nelas. Assim eliminamos, sem muito esforço, a matéria que eu julgava o ponto principal do debate e o assunto mais perigoso. De quase nada tratamos com tanta moleza. Em verdade, jamais as indulgências se encontraram em situa- ção mais infeliz e miserável. Portanto, continuou muito firme o meu sermão sobre as indulgências no vernáculos, juntamente com o que escrevi sobre a matéria nas Explicações e contra Silvestre27, se bem que ele, ou por causa de seu modo de ser, ou por exigência de seus comparsas, não pôde deixar de cri- ticá-lo, argumentando que eu estaria enganando as pessoas com minhas pala- vras. E um teólogo de tal profundidade não compreendeu que a vida nova e a cruz que, conforme afirmei, Deus exige do pecador, incluem também toda es- pécie de mal neste mundo, inclusive a morte. Isso não admira, pois ele não auscultou nem as Escrituras nem sua maneira de se expressar, mas apenas a

LL <'i. p. 260, nota 14. ?.i O Concilio de Constança (5/11/1414-22/4/1418) é considerado pela Igreja Católica Roma-

iia « IhP concilio ecumênico. Nele a teoria eclesiológica conciliarista obteve seus rnaiorcs triiiiifos. O concilio ocupou-se com três questões básicas: a unidade da igreja (p6s fim ai, cisiiw do Ocidente). a defesa da fé frcnie às heresias (contra Hus) e a reforma da Igrcja "riti

cubcva e nos membros".

24 Cf. pp. 107ss. e 104~s. 25 Comissários eram pessoas comissionadas pela Igreja com a venda de indulgências. 26 Um sermdo sobre a indulgência e o groco, pp. 3 1 s . deste volume. 27 Ad diologum Silveslri Prieralis depofeslafe popoe responsio ("Resposta ao diálogo de Sil-

vcsirc PriL'rias a respeito do poder do papa"), WA 1 , M7-86. Quanto a Silvestre Priérias, c l . li. IW. rioia 4.

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I I IL natural, Aristóteles28, e os mestres iluminados por essa mesma luz. Assim iiicsmo, á semelhança de um Moabe arrogante ao extremo, propondo-se coi- sas acima de sua capacidade, atreveu-se a caluniar e distorcer tudo que eu ja- iiiais disse.

Por conseguinte, estou ansioso por saber que dirão e farão agora aqueles ii-iriãos que, por causa das indulgências, caluniosamente me acusaram, junto ;i príncipes e em toda parte, de herege e não sei de que outras alcunhas mais (depois, divulgaram grandes escritos disputatórios contra mim, preparados com altos investimentos - como dizem por aí - e com trabalho alheioa, e, com suas imposturas desavergonhadas, não só seduziram a alma do povo de Cristo, mas também os espoliaram fisicamente de seus bens), ao verem que csse assunto passou tão frio nesse debate, quando desejavam que fosse mais quente que o inferno. A mim me basta que o ponto principal dessa matéria caiu por terra na venturosa cidade de Leipzig e que, conforme a opinião de iodos, as indulgências e seus proclamadores caíram no ridículo.

Mais acirrada foi a briga sobre o primado da Igreja Romana. Não ne- guei o primado de honra nem admiti o primado do poder, pelo menos não de direito divino, nada querendo negar, antes, querendo sempre confessar e de- Iciider que ela o tenha apenas de fato e de direito humano. Nada desejo me- iios do que o afastamento de alguém, em qualquer assunto, do supremo tro- iio dos santos Pedro e Paulo, ou que lhe negue a obediência devida. Apenas iiâo posso admitir que agiram contra o direito divino tantos santos pais, que reinam no céu e que, vivendo no Oriente, não eram sujeitos à Sé Romana. I ( i i i contrário a isso, ele tentou asseverar que ambos são de direito divino, iijiiiitando muitas passagens dos pais. No entanto, viu-se que eram ambíguas c dc natureza variada, parecendo tender, por vezes, para a outra opinião, em- Oora opinassem de forma mais vigorosa e plena a meu favor, em especial qii;iiido se esforçavam de coração para interpretar o Evangelho.

Visto que não convenciam as passagens de Mt 16.18: "Tu és Pedro", e iIc .João: "Apascenta as minhas ovelhas" [21.17], e "Segue-me" [21.19], e ;iirida: "Fortalece os teus irmãos" [Lc 22.321 e mais outras que contribuíam iiiciios para o assunto, Eck refugiou-se no Concílio de Constança, em con- i'iaiiça plena, porque ali se teria determinado o contrário, e minha opinião te- riti sido condenada entre os artigos de Hus e de Wyclif30. Detendo-se nisso,

28 C1. p. 36. nota 7. 2V Na realidade, as contra-teses de Tetzel são da autoria de Conrado Wimpina. Jo João Wyclif, 1324.1384. Precursor da Reforma. Pertencente à nobreza, nasceu em York-

shirc. Inglaterra. Esteve ligado à Universidade de Oxford como aluno e como professor. du- rtinte grande parte de sua vida. Exerceu o sacerdócio numa pequena localidade perto de Iliiriiingham. Com o auxilio de um aluno seu, traduziu em 1382 a Vulgata latina para o in- ~18s. Atiicou a doutrina da transubstanciação, defendendo idéias parecidas com as de Lute-

quuiito à Santa Ceia. Considerou o Batismo e a Santa Ceia verdadeiros meios da graca. liiiainou que Jesus é o única mediador entre Deus e os seres humanos, mas atribuiu um cer- 10 iniéiilo às boas obras. Afirmou que Jesus Cristo é a verdadeira cabeça da Igreja. Embora ci>riibiilesse a interferência do papa em assuntos politicos e eclesiásticos da Inglaterra, não I'oi cxci>sii~iigado em vida. O Concilio de Constansa o excomungou (em 1415) drpais da iiioiic. Sciis osri>\ ii~rain qiieiiiiados e as cinzas foram atirudus às Aguds de um rio.

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empenhou-se com todas as forças, da maneira mais odiosa de que é capaz, a incitar ódio contra mim, visto que não dispunha de outro recurso para adular melhor seus adeptos. Faltando-lhe o direito divino, recorreu ao direito huma- no para, por meio deste, provar o direito divino. Nem assim foi permitido rir- se das coisas que um teólogo daquele gabarito intentava.

A esse um concilio eu lhe contrapus dois outros, mais antigos e mais cé- lebres - o de NicéiaJt e o Africano32. Além disso, demonstrei que nem ele nem seu bando maldoso (ao qual era servil naquele tempo) entenderam corre- tamente o Concílio de Constança. Pois o Concílio de Nicéia decidiu que o pontífice romano cuidaria das Igrejas na circunvizinhança da cidade, assim como o de Alexandria teria sob seus cuidados as Igrejas do Egito. Decidiu ainda que os bispos não seriam ordenados por pálios e poder comprados a Roma, como agora, mas pelos bispos vizinhos, conforme se lê no livro X da Histdria eclesiástica~J. Neste ponto essa enguia disse que, para que isso pu- desse acontecer, houve a permissão dos pontífices romanos, inventando (co- mo costuma fazer) de sua própria cabeça novas glosas, como, se tanto os pon- tífices romanos quanto o Concilio de Nicéia não teriam procedido de modo totalmente impio e herético se decretassem ou permitissem alguma coisa con- tra o direito divino. Pois se é direito divino que o pontifice romano pode fa- zer o que quer em todas as Igrejas, não está em seu poder permitir que acon- teça o contrário, por uma hora que seja, nem está no poder de um concilio decretar o contrário a respeito do pontífice romano como seu inferior, ou de- cretar algo diferente ou outra coisa, certamente não mais do que está em seu poder permitir ou decretar que o estupro e o adultério são permitidos. Assim aconteceu que esse miserável tutor e patrono do poder romano não conseguiu defender esse primado sem blasfemar contra o santissimo Concilio de Nicéia e mesmo contra os próprios papas, afirmando que haviam dissolvido o direi- to divino. Se essa modéstia eckiana não é heresia e blasfêmia, o que é então herético e blasfemo? Mas assim é que tem que falar quem fala para agradar aos seres humanos.

O Concilio Africano proibira chamar o pontífice romano de pontifice universal, dizendo: "Também o pontífice de Roma não será chamado ponti- fice universal", como se lê em dist. XCIX. c. prime. Nesse ponto, é verdade, ele se absteve de blasfêmia, não afirmando que tivesse sido permitida ou de- cretada outra coisa contrária ao direito divino. Inventou, porém, uma glosa, sem dúvida digna de um teólogo de seu gabarito, glosa que eu não menciona- ria se não soubesse que ela satisfaz a esse debatedor extremamente ávido de glória e que lhe carreia glória absoluta. Pois ele disse o seguinte: Ainda que o pontífice romano não deva ser chamado pontifice universal, deve ser chama- do pontífice da Igreja universalJ4. Por favor, contém o riso, caro amigo. Dei-

31 Cf. p. 330, nota 116. 32 Não é possivel verificar a que Concilio Africano Lutero se refere aqui. 33 Cf. p. 80, nata 79. 34 Cf. quanto a isto Bispulalio Iohonnis Eccii e1 Mortini Lufheri Lipsiae habita, ("Debate de

Jaüo Eck c Martinho Lutcro em Lcipzig"). WA 2,263.

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xa que seus asseclas riam, pois ninguém sabe rir mais condignamente de uma glosa tão insigne. Glorio-me de não ter permanecido em vão em Leipzig, com custas tão elevadas, e de ter aprendido pelo menos isto: não é o bispo univer- sal, não obstante é o bispo da Igreja universal. Talvez também não seja o bis- po de Mogúncia, não obstante é o bispo da Igreja de Mogúncia.

É isso que contrapôs aos dois concilios por mim mencionados. O de Ni- céia ele dissolveu com o vocábulo "permitiu", o Africano, com a palavra "Igreja". Com tanta facilidade nossos eximios mestres resolvem as grandes qiiestdes e solapam a autoridade dos concilios, autoridade pela qual - e é de se admirar com que agilidade - costumam tachar os outros de hereges.

Vê agora se respondi melhor ou pior ao único concilio por ele aduzido. É certo que não são hereges todos os artigos condenados em Constança, como I;ck latia temerário e desavergonhado. E dou as provas evidentes: primeiro, ixlas palavras do próprio concilio, que rezam: "Alguns deles são notoria- iiiente heréticos, outros são errôneos, outros blasfemos, outros temerários e hiibversivos, outros ainda ofensivos aos ouvidos piedosos." É isto que se lê ai. Não está claro que são palavras daqueles que denominamos de inquisido- rcs da depravação herética, os mesmos que, nesse concilio, obtiveram o po- der absoluto, como se sabe? (Pois eles quase não conhecem outro vocabulá- rio senão este: "Esta afirmação é herética, aquela escandalosa, aquela outra 6 subversiva, esta ofensiva.") Ou então não está claro que o Espírito Santo por certo esteve bem presente e vigiou enquanto aqueles se divertiam ou dor- iiiiam, de sorte que, de todo imprevidentes, foram forçados a testemunhar, coin suas próprias palavras, que condenaram declarações que não são heréti- cas nem errôneas, sendo, portanto, católicas, cristãs e verdadeiras? Pois se ti- vcssem dito indiscriminadamente que todas são heréticas e, ao mesmo tempo, crrôneas, temerárias e ofensivas, nâo haveria lugar nem fuga para a verdade. Agora, porém, eles próprios distinguem as heréticas das errôneas e, de am- Iiiis, as temerárias e subversivas. Por isso digo: que me importa falar temerá- ria e ofensivamente, desde que fale católica e verdadeiramente? Acuo-te com i lia própria espada: algumas declaras heréticas, por estar estabelecido que pe- cniii contra a fé. A outras declaras errôneas, talvez porque pecam contra os coslumes e ordenações dos seres humanos. A respeito das demais triunfamos iiOs, afirmando que náo pecam nem contra a fé nem contra as regras dos cos- itiiiics. E se, por acaso, ofendem com mordacidade exagerada a ouvidinhos clclicados, que não suportam a verdade, hasta que estejam de acordo com a fé c n verdade. Sempre foi assim: a verdade é temerária, mordaz, subversiva e okiisivd. Creio, pois, que esta é uma das sentenças ofensivas: O pontífice ro- iii;iii» não é senhor sobre todos, em poder, de direito divino. Que poderia ser olciis;~ riiais atroz? Que coisa mais temerária se poderia afirmar hoje e há iiiiiicos anos? Assim também é ofensiva aos ouvidos dos tomistas aquela sen- lciic:i qiic acima afirmei ser de Gregório de Rímini, sim, de Paulo e Agosti- iilio: 'l'odo ato do ser humano é ou bom ou mau. Pedi que admitissem que ii:lo sc digu que todos os artigos foram condenados pelo concílio, mas que, por obra dc algum tomista, foram introduzidos alguns artigos bem cristãos. i.oiiio eslc. por cxcrnplo: Todo ato do ser humano é ou bom ou mau, como é

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ou boa ou má cada árvore, conforme o evangelholr. Mas ele não quis. Ora, que me importa que os tomistas se ofendam com a verdade? Basta que este artigo não seja nem herético nem errôneo. Ou, se for herético e condenado, que fará Eck, ele que, batalhando contra o louvável Concilio de Constança a favor desse mesmo louvável concilio, admitiu a Karlstadt que o referido arti- go é verdadeiro e católico e também que os mestres escolásticos jamais ensi- naram outra coisa, conforme disse acima? Que crime horrendo, intolerável a Eck, o patrono da santa Igreja: o patrono dos boêmios36 e hereges (para usar a linguagem dele) argumenta com o concilio contra o concilio, enquanto Eck, para ser cristão com seus mestres, se torna herege. Mas, como já disse, é pri- vilégio da modéstia eckiana discordar de si mesma com toda a liberdade e sustentar opinides contraditórias no mesmo assunto, como atesta que assim procedeu também em Viena e talvez também em Bolonha. Portanto, fica cla- ro que o Concilio de Constança não se opde a mim e que, através dele, está comprovado que não sou uma pessoa herética nem errada, mas católica e ver- dadeira. Dessa maneira, fica estabelecida a concórdia com o Concilio de Ni- céia, com o Africano e com o de Constança. Que Eck e sua massa náo viram isso e nem mesmo os inquisidores de depravações heréticas, parece dever-se ao fato de que todos eles estão mais propensos à condenação do herege do que convém a tais mestres do povo. Afetados por tal cegueira, lêem todas as outras coisas do mesmo modo como também lêem as Sagradas Escrituras e os santos pais: não ponderam quão bem e quão diligentemente lêem; lêem ape- nas para ver quanto ódio e insulto pode sair dali para os outros. Por isso tam- bém logo declaram herética qualquer coisa que ouvem e que discorda de sua opinião, expondo ao ridículo de todos sua sonolência na leitura bem como sua temeridade no julgamento.

Se essa concordância dos concilios não agradar e se me opuserem perti- nazmente o Concilio de Constança contra os outros dois, já não terei dificul- dade em estabelecer qual deles deve ter a preponderância em autoridade. Co- mo um concilio pode errar, confessarei antes que tenha errado o de Constan- ça do que o de Nicéia ou o Africano, porque estes transcorreram e agiram de modo muito mais feliz do que aquele, e porque (em especial o de Nicéia) há muito foram comparados com os santos evangelhos, bem antes dos demais coucilios. Essa glória o de Constança ainda não alcançou, e nisso seguirei ao mais recente Concilio de Roma, no qual o de Basiléia foi condenado e o de Constança perdeu boa parte de sua autoridade, ao decretar que o papa está acima dos concílios, enquanto que em Constança fora decidido o contrário. Enquanto se condenam mutuamente dessa forma, os concíiios nos deixam, entrementes, bem seguros e livres para contradizer a ambos. Estando em dis- córdia entre si, para quem estará0 em concórdia? Se Deus me permitir, expo- rei essas coisas com mais detalhes, depois de Eck ter-se manifestado em pu- blico.

35 CI. Ml 12.33. 36 AlusEo aos adeptos de Joaa Hus, da BoOmia.

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Visto, porém, como já disse, que nesse debate houve mais perda de tem- po do que busca da verdade, quero publicar os comentários a minhas teses, cc~nfiando que disso resultará mais fruto de conhecimento do que de 20 deba- ics dessa espécie. Por isso, se alguém me vê errar, vamos lá: se me odeia, que icl'ute o erro; se me ama, que me convença de algo melhor.

Aí tens, caríssimo Espalatino, quase toda a história. Se deixei de dizer al- 1:iiiiias coisas, eu o fiz em consideração da muito amada Universidade de I .cipzig, para não incinerar a ossada do rei idumeul'. Mesmo assim, se não houbesse que isto se deve aos meus pecados, suportaria com desgosto o fato de ter que me ocupar com negócios tão estéreis como as indulgências, o pri- iiiado, os privilégios e outras coisas mais, totalmente desnecessárias para a salvação, coisas que me afastam a contragosto dos melhores estudos de nosso ieinpo. Pois, como disse o ilustrissimo principe duque Jorge com a máxima sabedoria, ao recriminar-nos a ambos: "Seja por direito divino, seja por di- rcito humano, o pontifice romano é e continua sendo o sumo pontifice." Ele rstava certo e, em sua modéstia, criticou com bastante dureza esse nosso de- hale inútil.

Estou, no entanto, convicto de que, assim que meu Eck e o partido ec- kiano tomarem conhecimento disso, logo sairão berrando que eu não teria ciiinprido o acordo nem obedecido à convenção de que não seria publicado o dchate antes de se ter a sentença dos juizes. Como se eles próprios tivessem ;ilg~ima vez cumprido algum acordo em relação a nós! Respondo, contudo: concordei que, de nossa parte, não publicaríamos o debate tal como fora :iiiotado pelas mãos dos notários. Mas quem impedirá que sejam publicadas :is outras cópias, que cada qual tinha a liberdade de coletar? Todavia, que iicin essas sejam publicadas! Meu exemplar notaria1 não será publicado, sen- 110 assim o pacto respeitado direitinho. No entanto, não acordei com eles iliic, além disso, não escreveria. Pelo contrário: visto que nos limitavam a li- Iici-dade com condições das mais injustas, afirmei publicamente que não pre- viiiiiissem que eu ficaria calado. Portanto, não me calo.

Supondo, porém, que eu tivesse prometido isso, pergunto: quem foi o l~riiiiciro a desrespeitar o acordo? Náo foi Eck, que, como ouço, tentou cor- ioiiiper inclusive nosso ilustríssimo principe e patrono (a respeito do qual so- iiI i ; i que seja semelhante a sua facção extremamente estúpida) com uma <.:!i-i;i'* bombástica e perversa ao extremo? Nela recenseou o quanto pôde as ~iii~i-cs coisas a meu respeito, como se eu tivesse negado todas as sentenças dos ~ i i i i o s pais de uma só vez, me arrogasse ser o único que compreende as Escri- i iii-:is. refutasse os concílios, defendesse os hereges. Com tais mentiras! aque- Ic, Iioiiicm puro e teólogo santo ousou tentar a tão sagrada e venerável cabeça 1' clogi:ir-me de forma tão distinta perante o excelentíssimo principe. O que :icli;is iliie cle escreve e fala aos outros (evidentemente, sem violação do pac-

1'1 1 ' I ' , Atv 2.1. 1 H 'I'. i~iiiirilo a isto "l(çks Sçhreiben an den Churfursten Friedrich zu Sachsen von dcr Dispu-

Iiitioli ~ i i I.eiprig. dcii 22. Juli 1519''. i": Joh. Georg WALCH, ed., Dr. Morri" 1.ulhrr.y .rll»t»irlichr .S~lir,/'r<~n, SI. 1,ouis. Concordia, 1899. v. 15. cols. 12869.

to), se escreve tais coisas a nosso patrono? Ou, que verdade diz ele a meus êmulos, se não se envergonha de mentir a um principe desses, tão prudente, de uma capacidade de discernimento tão formidável?

Ouço, por fim, que ele forjou alguns comentários sobre certos artigos39 atribuídos a mim por parte desses irmãozinhos irrequietos e desejosos de sua própria ruína e que, uma vez mais, me descreveu perante os magnatas, com amor maravilhoso, como maniqueu, hussita, wyclifita e não sei que outras espécies de herege. É desse modo que a modéstia eckiana costuma respeitar um acordo. Mas não tenho dificuldade em desprezar essa sua loucura, pois conheço quase todo o inventário desse homem. Assim que suas produções chegarem a minhas mãos, espero poder dar a meu Eck um trato digno e mag- nífico, para ver se, de alguma forma, ele possa finalmente entender o que sig- nifica prometer muito e cumprir pouco e, assim mesmo, exigir dos outros a observância, buscando em tudo isso unicamente causar prejuízo e pisotear a verdade.

Enquanto isso, basta-me que aquela pseudoteologia torturadora das consciências, à qual devo todos os sofrimentos de minha consciência, ruiu nesse debate. Pois antes eu aprendera que existe uma diferença entre mérito cõngruo e mérito condigno", que a pessoa pode fazer o que está em si para alcançar a graça; que pode remover o óbice, que pode não colocar nenhum óbice à graça; que pode cumprir os mandamentos de Deus no que tange à na- tureza do fato, mas não conforme a intenção de quem ordena; que o livre ar- bítrio pode decidir em ambas as direções em assuntos contraditórios41; que a vontade pode amar a Deus acima de todas as coisas mercê de forças pura- mente naturais; que, por natureza, se pode praticar o amor, a amizade - e outras monstruosidades mais que, em geral, são citadas como os primeiros princípios da teologia escolástica e com as quais se enchem livros e os ouvidos de todos. Agora, porém, todos esses erros caíram por terra com muita intre- pidez, sob a escolta de Eck e suas bandeiras triunfantes, quase sem luta, apa- vorados por terem meramente avistado duas teses de Karlstadt", sendo a pri- meira esta de Agostinho: "Sem a graça, o livre arbítrio nada pode senão pe- car." A outra é esta de AmbrÓsio43: "Sem a graça, o livre arbítrio corre em direção à iniqüidade com tanto mais rapidez quanto mais se lança à ação."

39 Cf. quanto a isto a introdução ao escrito Contra molignum Iohannis Eccii iudicium super oliquof arficulis a fratribus quibusdom ei supposifis Mortini Lufheri defensio ("Defesa de Martinho Lutero contra a maligno juizo de João Eck sobre alguns artigos a ele atribuídos por certos irmãos"), WA 2,621-4.

40 Mérito côngruo (merirum congrui ou de congruo) é mérito adequado, suficiente, que Deus dá sem que a isto esteja abrigado por justiça. Mérito condigno (meritum condigniou de condigno) é o mérito devido. a que o ser humano tem direito diante de Deus em vista de suas boas obras.

41 No original: liberurn orbirrium posse in utrumque onfrodicforium. Doutrina pelagiana de acordo com a qual a vontade é livre, sendo possível a qualquer ser humano escolher tanto o bcin como o contrária do bem.

42 Liiiero referc-sç As Icses I I c 12 dc Knrlstadi (cf. introdusâo). 43 <:f.pYI.ilntu 113.

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Troféus e espólios quase iguais levaram dessa luta também as indulgên- cias, a respeito das quais admiti que são úteis, não em sentido mais moderado (como andam dizendo por aí), mas sim no seguinte sentido: úteis somente pa- ra os preguiçosos e roncadores. Aliás, defendi ser loucura alguém afirmar que elas seriam boas e úteis ao cristão. Entrementes, estou satisfeito com o fato de que desse debate resultaram essas coisas. Eu as relatei com o fito de vir um pouco ao encontro da jactanciosa gabolice da heresia eckiana. E se al- gum deles atacar isso, talvez o Senhor fará com que as outras coisas venham h luz.

Creio que viste a defesa de EckM contra o nosso Filipear, muito digna do gênio de Eck, em que imputa como falta grave a profissão de filólogo a esse homem que, também nas Sagradas Escrituras, é três ou quatro vezes mais instruido que todos os Ecks que andam por ai, e que, inclusive, não é igno- rante na sórdida teologia eckiana. Esses nossos notáveis mestres são possuido- res de um juizo tão criterioso que medem a erudição segundo suas qualifica- qdes e títulos ocos. Tentou inclusive denegri-lo perante mim, atribuindo-me genialidade e não sei quanta erudição. Quero que saibas que também eu não retornei desse debate sem alguma glória. Eck me atribui erudição, e também os de Leipzig o fazem, a tal ponto que (tanto quanto posso deduzir dos boa- tos), se não tivessem fornecido a Eck tropas auxiliares, confessam eles, Eck teria sido derrotado por mim. E assim a vitória já começa a se deslocar de Eck para os de Leipzig. Por outro lado, diz-se que aquele magnífico desde- iihador teve os de Leipzig em conta de homens bons, mas que esperou deles iiiuito mais e que fez tudo sozinho. Vês, assim, que eles cantam uma espécie <Ic nova Ilíada4 e Eneida47, sendo eu considerado no mínimo um Heitor40 ou

44 Erctuafio Eckii ad eo q u ~ e folso sibi Philippur Melanchfhon, grommaticus Wiffenbergensis, super iheologico dispufofione Lipsica odscripsif.

45 Filipe Melanchthon, 1497-1560. Destacado humanista. Editou autores clássicos, escreveu uma gramática grega, e o seu estilo foi elogiado por Erasmo. Como professor da Universi- dade de Wittenberg tornou-se amigo de Lutero e adepto de suadoutrina. Organizou o siste- iiia escolar da Saxania. Sob orientação de Lutero, escreveu a Confissõo de Augsburgo. Es- creveu também a Apologia do Confissõo de Augsburgo. Em 1521, publicou um livra de teologia luterana chamado Loci communes. Tornou-se mais tarde responsável por contro- vérsias sobre a presenga real do corpo de Cristo na Santa Ceia e sobre o papel da vontade humana na conversão.

46 Poema grego que conta as faqanhas de gregos e troianos durante o prolongado sitio de 10 anos da cidade de Trbia. O poema surgiu no século IX ou VI11 a.C., e a autoria é atribuida a Hamero.

47 I><>cma épico latino que conta as aventuras de Enéias. heroi troiano que conseguiu escapar <ia destruicão de Trbia. Baseando-se numa lenda. o ooema diz aue Enéias canauistou o rer- . . iirbrio onde seria edificada a cidade de Roma. O poema foi esciito pelo poetaiomano Vir- gili'i (70 a.C.-19 d.C.).

4H Soldado principal dos troianos e defensor da cidade de Trbia. Foi morto em combate por Aqiiiles. o mais valoroso dos soldados gregos

Turno49, para que possam transformar a ele em Aquileso ou Enéiassl. Só que, nessa vitória, é duvidoso se Eck conseguiu isso com suas próprias forças e tropas ou com as dos de Leipzig. Certo é, porém, que ele sempre berrou so- zinho, enquanto eles sempre silenciaram. Não achas que Ihes devo muita gra- tidão?

Mas retornemos a Filipe. Está tão afastada a possibilidade de um Eck qualquer me denegri-lo, que em toda a minha atividade nada corisidero mais importante que a opinião de Filipe. Só a opinião e a autoridade dele me va- lem mais do que milhares de pessoas sórdidas como Eck. Eu, mestre em Ar- tes, em Filosofia e Teologia, agraciado com quase todos os titulos que Eck possui, não me envergonho de desistir de minhas idéias quando a opinião desse filólogo difere da minha, o que já fiz muitas vezes e faço todos os dias, por causa do dorn divino que Deus derramou com bênção abundante neste vaso de barro (que Eck, no entanto, considera desprezível). Não elogio a Fili- pe, pois é criatura de Deus e nada mais, porém venero nele a obra de meu Deus. Tampouco vitupero a Eck, porém detesto e abomino de coração essas intrigas grosseiras visando semear discórdia e concitar ódio. Jamais as encon- trei mais frequentes e maldosas do que em Eck. Com elas também azedou quase todo o conteúdo de nosso debate. É quase só neste único assunto extre- mamente maldoso que Eck é grande. Na teologia, porém, é um asno tocando harpa.

Agora, entretanto, passo para os comentários. Enquanto isso, trata de recomendar Eck ao ilustríssimo principe da maneira como merece ser reco- mendado, ainda que tal serviço não fosse necessário no caso de um principe tão ilustre. Passa bem. Wittenberg, 1519, no dia da assunção de Mariarz.

Tese 1

Toda pessoa peca diariamente, mas também faz penitência diariamente, como ensina Cristo: "Fazeipenitência"J3[Mt 4.171, com exceção de um certo novo justo que não necessita de penitência; pois o agricultor celeste limpa didriamente também as videiras frutiferas.

O fundamento desta tese consiste no seguinte: todo ato humano é ou bom ou mau, não havendo ato neutro ou, como dizem eles, moralmente bom. Por isso preciso, antes de mais nada, afastar duas objeçdes que eles cos-

49 Herói daEneida. Turno é o defensor do Lácio e adversário de Enéias, o conquistador troia- no. As grandes batalhas do poema travam-se entre estes dois soldados. Enéias é o vencedor,

50 O mais destacado dos soldados gregos no cerco de Trbia. Entra em conflito com Agamêm- non, o chefe supremo dos gregos, no inicio do poema, mas reconcilia-se com ele perta do fim. Vence o troiano Heitor, o seu principal adversário, e a mata em combate.

51 Soldado troiano. Trbia é destruida. mas Enéias consegue escapar. Dirige-se ao Lácio, na Itália. onde conquista o territbrio em que seria edificada a cidade de Roma.

52 I5 dc ngoito. 53 ( 'C . p. 263, notii 32.

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tumam apresentar. A primeira é a autoridade da escola sobre quase todos os teólogos pelo

inundo inteiro que têm opinião contrária. Embora Ihes deva todo o respeito, eles hão de me permitir que eu dê preferência às Sagradas Letras. Por esta ra- zão, se desagrado a alguém, peço que não se me objete imediatamente: "Tu és o unico entendido, e até agora a Igreja errou sem ti, e tantas cabeças não puderam ver o que tu vês", nem se me peça satisfação com tais objeçdes. Pa- ra não mencionar que, certa vez, Deus revelou através de uma jumenta o que escondeu de um profeta54e que mostrou ao menino Samuel o que não revelou ao sacerdote de Israel, ElirJ. Peço que, de acordo com seu próprio exemplo, eles pelo menos mantenham a calma e permitam também a mim o que conce- dem um ao outro entre si. Levantou-se Escoto, um unico homem, contestou as opinides de todas as escolas e doutores e prevaleceu. A mesma coisa fez Occam36, e fizeram e fazem muitos outros até o dia de hoje. Visto que cada um deles tem a liberdade de contradizer todos os outros, por que unicamente cu sou privado desse privilégio? Afinal, se em muitas outras questdes eu mes- ino contradisse a todos sem que houvesse queixa, por que agora, nesta uma questão, tenho que ser vitima de novas determinaçdes? Rogo, pois, que aten- te quem quiser, não em que qualidade ou contra quem eu falo, mas o que e contra quê. Vamos deixar de lado a reputaçâo das pessoas, reputação que riem Deus aceita". Lemos no evangelho que Cristo ordena ouvir os escribas e fariseus assentados na cadeira de Moiséss8. Não porque fossem pessoas, isto 6 , não porque fossem escribas e fariseus, mas porque ensinavam a Moisés. 110 contrário, sendo nossa época extremamente corrupta e os tempos perigo- sissimos, corremos o risco de cair no perigo do qual fala SI 13[14].6, se come- <;irmos a agir com arrogância e desprezo: "Confundistes o conselho do hu- iiiilde, pois o Senhor é sua esperança." Por isso, lembrando uns aos outros que todos somos humanos, o quanto é fácil errar, como é raro e dificil saber :t vcrdade e agir corretamente, busquemos a verdade em esforço comum, em vcz de nos mordermos mutuamente só pela glória própria ou para sustentar a opinião própria.

A segunda objeção que me fazem é que este artigo foi expressamente condenado no Concilio de Constança entre os artigos de Hus. Se eu não silen- ciar logo nesse assunto e não me retratar, tapam os ouvidos e arremetem con- I r;i mim59 e me ameaçam com fogo. Nessa matéria não toleram nenhuma mo- i : ~ ou desculpa. No entanto, por favor, é esta a maneira de buscar a verdade, lazcudo calar imediatamente quem busca a verdade? E onde fica a admoesta- $30 de Pedro de dar satisfação a quem a exigirm? Ademais: não erraram os ioiicilios muitas vezes? Não errou CiprianoGI, juntamente com os bispos de toda a África, num concilio ali realizado, e isso num artigo de fé de máxima

55 Cf. I Sm 3. 56 <'i'. p. 13, nota 5 57 <'I. <i1 2.6.

58 Cf. Mt 23.2, 59 Cf. At 7.57. 60 Cf. 1 Pe 3.15. 61 Cf. p. 80. nota 80 e p. 218, nota 61

importância, a saber, sobre a eficácia do Batismo? E por que nos haveriamos de admirar se também hoje um concilio não acertasse em todas as coisas, já que vivemos numa época bem mais frigida do que Cipriano? Para dizer com clareza e abertamente o que penso: considero-me um teólogo cristão e creio que vivo no reino da verdade. Por isso é meu dever não apenas confirmar a verdade, mas também afirmá-la e defendê-la, mesmo pagando o preço de sangue ou morte.

Por conseguinte, quero ser livre e não me deixar prender por ninguém, nem pela autoridade de um concilio, nem de alguma potestade, nem de uni- versidades, nem do papa. Quero confessar com confiança o que reconheci co- mo verdade, seja ela afirmada por um católico ou por um herege, tenha sido aprovada ou reprovada por algum concilio.

Não me preocuparei nem mesmo com a inveja, que talvez me acusará de protetor dos hereges, pois sei que a verdade nada tem em comum com a inve- ja, como diz Sb 6.25: "Nada quero ter a ver com a pestilenta inveja, porque tal pessoa não terá parte na sabedoria." Que me interessa se a inveja mentiro- sa me acusa? Louvável é desagradar aos impios. Também a mim desagradam os hereges. Como, porém, em nossos dias nenhuma desonra dei- xa os sofistas mais loucos do que a acusação de heresia, conseguem fazer com que a Igreja católica de Cristo quase só exista ainda entre os hereges, não en- tre os que de fato o são, mas entre os que assim são denominados pela fúria dos sofistas.

Nesse meu propósito, quero aceitar a decisão dos jurisprudentes, para que não pense alguém que estou agindo sozinho e com temeridade. Pois diz o Panormitanoaz, em de elect. c. significasti, que se deve crer mais em um único crente do que em todos os concílios ou no papa, caso tiver uma passagem63 ou um argumento melhor. Se isso é verdade, por que não seria permitido fazer uso? Por que não ousaria eu tentar apresentar sozinho uma passagem melhor do que um concilio?

Portanto, vejamos os concílios. Não é do conhecimento de todos que, por vezes, a Igreja condenou coisas contrárias, por exemplo: "Deus faz o mal, Deus não faz o mal"? Se bem que não sei se foi a Igreja que o conde- nou. Pois a Igreja não tem poder de condenar afirmações expressas da Sagra- ga Escritura, que estão também literalmente no texto. A frase: "Deus faz o mal" se encontra expressamente em 1s 45.7, em Amós 3.6 e em muitas outras passagens. E nada contribui para a causa afirmar que ela foi condenada por causa da interpretação errônea dos hereges. Pois não se devem condenar pa- lavras da Escritura por causa da compreensão errônea de alguém. Do contrá- rio, também deveria ser condenada esta palavra: "O Pai é maior do que eu" [Jo 14.281, por causa dos arianosw. Sim, a Escritura deveria ser condenada, e

62 Cf. p. 112. nota 169e p. 207, nota28. 63 Sc. da Escritura. 64 Scgiiidorcs das doutrinas de Ario (256.336). Ario ensinoii que o Deus eterno criou o Logos

( J e ~ i i r <'risto). ;ilravés d o qual criou o iiniverso.

34')

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só ela, pois de nenhuma outra fonte surgiram heresias. Que loucura maior do que essa se poderia imaginar? É impossível admitir que um cristão piedoso e sitnples, tendo aprendido alguma coisa correta nas Sagradas Escrituras, fosse obrigado - ao cair nas mãos de alguns inquisidores que têm os pés velozes para derramar sangue - a condenar o que aprendeu por causa da compreen- são errônea e condenada de outros. Dessa forma, abririamos caminho para que, de repente, fosse derrubada toda a autoridade das Sagradas Escrituras, e se ergueriam os mais impios de todos os blasfemadores, dizendo que a Bíblia i. o livro dos hereges e que os cristãos têm que se resguardar com outros li- vros, a saber, com os dos mestres.

Também no Concilio de Constança descubro duas coisas contraditórias: em primeiro lugar, ali foi determinado que o concílio está acima do papa, o que considero certissimo. Pois também o B. JerônimosJ escreve a Evágrio66: "Quando se pergunta pela autoridade, o mundo é maior do que a cidade de Icoma." Assim, a Igreja toda é maior que aquela uma Igreja Romana. Por conseguinte, a Igreja Romana não está acima de toda a Igreja universal. Pelo contrário, a Igreja universal (e o concilio que a representa) está acima da Igreja Romana, bem como sobre qualquer outra Igreja particular. Pois o to- do é maior que uma parte sua, visto que a Igreja Romana é uma parte de toda ri Igreja universal.

Se isso é verdade, evidencia-se que o Concilio de Constança foi injusto ao condenar este artigo de João Hus: "O papa não está acima de todas as Igrejas de direito divino." Pois se a Igreja Romana e o papa estão por direito divino acima de todas as Igrejas e do concilio, foi decidido contra o direito divino (o que é sobremodo impio e herético) que o papa e a Igreja Romana csião abaixo do concilio e da Igreja toda, porque não está nas mãos da Igreja iiem do concilio infringir o direito divino. Pela mesma razão, não pôde depor iiciii constituir o papa. Acaso crês que o bispo de Lião toleraria ser deposto o11 constituído pelo bispo de Mogúncia, caso soubesse que está acima do de Mogúncia de direito divino, por mais que o tenha merecido? Nem mesmo de- veria tolerá-lo, se não quiser ser impio e herege. Assim, também o bispo de I<oina não pode nem deve tolerar que seja regido ou determinado pelo conci- lio, se está acima do concilio e da Igreja de direito divino. Pois quem é o su- perior por direito divino deve governar e não ser governado.

Assim, está evidente que o Concilio de Constança ou condenou injusta- iiietite o artigo de Hus, ou decidiu e agiu de forma impia contra o direito divi- 110.

Alcm disso, porém, atenta para a presença do Espirito Santo na Igreja: o qtie fora determinado no Concilio de Constança - que o papa está abaixo do coiicilio e da Igreja - e confirmado pelo Concilio de Basiléiaa?, foi agora re-

fví ('1. li. 91, iiola 1 1 1 e p. 220, nota 70. fh ('i'. li. 1I8. nota 84. li7 ('i'. u II<IIZI scyuinle.

provado pelo mais recente Concilio de Roma", que anulou todo o Concilio de Basiléia e estabeleceu que o papa está acima do concilio. Que dizer? Neces- sariamente é herético ou o Concílio de Constança ou de Roma, se não for permitido desviar-se dos decretos conciliares.

Finalmente nos está aberto o caminho para enfraquecer a autoridade dos concilios, contestar livremente seus atos e julgar seus decretos. Pois, como di- zem, se for descoberto que um concilio errou em um único artigo, já vacila toda a sua autoridade. Quem, portanto, terá a coragem de me acusar de here- ge, mesmo que eu negar todos os decretos tanto do Concilio de Roma quanto do de Constança, tendo eu o resguardo e a desculpa de que um concilio está na obrigação de provar seus decretos e de demonstrar que não errou, depois que consta que aigumas vezes errou e pode errar?

Em tua opinião, de que nos servem aquelas determinaçdes e reprovaçdes dos concilios de nossos tempos, feitas por delegação, exceto que nos deixam (caso nelas confiarmos) incertos quanto ao lugar em que, afinal, se deve bus- car a Cristo, a Igreja, um concilio, o Espirito Santo, estando tudo completa- mente confundido no mais profundo caos?

Quero, contudo, voltar ao Concílio de Constança, com o qual sou mais atacado. Afirmo que a condenação do artigo de Hus de que o papa não está acima de todas as Igrejas por direito divino é injusta também pelo fato de contrariar o Concílio de Nicéia e o Africano e a toda a Igreja oriental e afri- cana. Pois foi apenas no VI Sinodo de Calcedônia69 que o primado foi ofere- cido aos pontifices romanos (não de direito divino, mas pela Igreja), o que, porém, nem mesmo foi aceito por eles nesses termos, como escreve S. Gregório'o. Se o primado existisse de direito divino, seriam heréticos o Concí- lio de Nicéia e os quatro concilios subseqüentes, seriam hereges todos os membros da Igreja do Oriente, seriam hereges também os pontífices romanos que rejeitaram o primado que se lhes ofereceu. Por esse motivo, não quero fazer nenhuma concessão à autoridade do Concílio de Constança nesse pon- to. Pois de forma nenhuma suportarei que a maior parte da Igreja se torne herética por causa do Concilio de Constança, que evidentemente errou. Não é de se admirar, já que essas coisas foram dirigidas principalmente pela ma- quinação dos inquisidores e seus asseclas.

Naquela mesma ocasião foram condenados ainda muitos outros artigos bem verdadeiros de Hus. Eu recorrerei a eles se o adversário me provocar. Provarei a olhos vistos, a partir das palavras do próprio concilio, que não foi a opinião de João Hus que não deve ser considerado papa um papa mau ou

68 O Concilio de Basiléia desenvolveu-se em fases distintas, em virtude das acirradas contro- vérsias que nele ocorreram. Assim, além de Basiléia (1431-1438), teve desdobramento em Ferrara (1437.1438). Florença (1439-1442) e Roma (1442-1447). Ao referir-se ao Concílio de Roma, Lutero está se referindo. pois, ao desdobramento do Concilio de Basilkia, nos anos de 142-1447.

69 VI Ciincilio de Calcedania? Na numeração oficial, o sexto concilio é o de Constantinopla (680). <'nlccdRnia é o quarlo concilia (451).

70 C'1. 1). $6, nota 4.

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um que vive em pecado mortal, ainda que os inquisidores sanguinários cuida- ram para que fossem condenados uma porção de artigos a ele atribuídos nes- sa matéria.

Também não me importa que, aos berros, me declarem patrono dos boê- inios. Eu Ihes mostro as palavras daquele mesmo concilio que lançam contra iiiim, e a elas me atenho. Se forem desmascaradas como falsas, que tenho eu ;i ver com isso? Se, no entanto, forem verdadeiras, por que não as acataria? O que me compete, como já disse, é dizer a verdade contra todo o estrépito de palavras, títulos, nomes ou dignidades, e refutar o erro. Creio que é assim que deve proceder o cristão. Por favor, se não Ihes agrado sob o nome de cristão, imaginem e admitam que por ora eu seja um turco ou outro pagão qualquer que Ihes propde suas razdes e abonaçaes. Para que, pelo menos des- sa forma, vejam e experimentem com que esforço poderiam defender sua fé, c como é fácil dizer: "O concílio assim determinou" e o quanto é difícil sus- ieiitar que justamente isto foi decidido corretamente. Afirmo, pois, que no <:oncílio de Constança foi condenado injustamente o artigo que diz: "Toda ação do ser humano é ou boa ou má." E se alguém acha que pode defender aquela decisão, que se manifeste!

Em primeiro lugar: diz o apóstolo em Rm 8.14: "Os que são impelidos lielo Espírito de Deus são filhos de Deus." E ainda: "Se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele." (Rm 8.9.) Pergunto: de quem é aquele 1111c não é de Cristo? Não seria do diabo e do pecado? E quem é escravo do pecado nada faz senão pecar.

Em segundo lugar: o mesmo Paulo diz em G13.10: "Todos quantos são d;is obras da lei estão debaix6 de maldição." Ele afirma aqui que as obras da Ici k ~ r a da graça são malditas; portanto, não são neutras. E diz: "Todos i~iiaiitos", não excluindo a ninguém nem estabelecendo alguma posição inter- iiicdiária entre maldição e graça. Também de nada vale asseverarem que o :ilii>stolo estaria referindo-se aqui á lei cerimonial que, naqueles tempos, era iiiorial. Pois da continuação do texto se torna evidente que está falando das ol~r:is de todas as leis, ao citar a Moisés que diz: "Maldito aquele que não pcriiianecer em tudo o que está escrito no livro da lei." [Dt 27.26.1 Em segui- d:i, diz que Cristo nos libertou da maldição da lei''. No entanto, na verdade, ('risto não nos livrou da lei cerimonial revogada após sua morte. Ele nos li- vroii de toda e qualquer lei, dando a graça para que possa ser cumprida. Se, ~pois, as obras da lei são malditas sem a graça, quanto mais nenhuma outra olirii C neutra ou moralmente boa!

Em terceiro lugar, Mt 12.33: "Ou cultivai uma árvore boa, e o fruto será Iioiii; ou cultivai uma árvore má, e o fruto será mau." Aqui, Cristo não per- iiiiic que se entenda algo como uma posição intermediária, como também diz ii;i(lriela mesma passagem: "Quem não é por mim, é contra mim; e quem co- iiiigo não ajunta, espalha.'' [Mt 12.30.1 Vês que temos que optar entre ajuntar c0111 <'risto ou espalhar, entre ser por ele ou contra ele. Mas ser contra ele na-

da mais é que pecado, e só dispersa quem peca. Em quarto lugar, Jo 15.6: "Se alguém não permanecer em mim, será

lançado fora á semelhança do ramo, e secará; e o apanham e lançam no fogo, e arderá." Seca e perece todo aquele que está fora de Cristo. E tu dizes "neu- tro", isto é, que nem seca, nem viceja, mas que, às vezes, se encontra num es- tágio intermediário?

Em quinto lugar, Rm 14.23: "Tudo que não provém de fé é pecado." Is- to constitui a regra do B. Agostinho. Eles, contudo, dizem que, no caso, fé significa consciência, e que o apóstolo fala daqueles que agem contra a cons- ciência, embora o B. Agostinho rejeite essa interpretação. Mas que seja! Ain- da assim prevalece a afirmação: Quem não tem fé em Cristo não tem boa consciência para com Deus. Portanto, ou não crê, ou duvida que esteja agra- dando a Deus em suas obras. Se duvida, peca contra a consciência, porque não crê firmemente que agrada a Deus. Por isso faz o que não considera bom e, assim, peca sempre. Somente a fé, porém, crê com firmeza que agrada a Deus. E tal fé faz com que agrademos a Deus, porque ela tem verdadeiramen- te um conceito bom de Deus e o considera o Deus verdadeiro, presumindo coisas boas a respeito dele, como se lê em Sb 1.1: "Fazei do Senhor o seguinte conceito: ele é bom." Pois é impossivel que o ser humano seja salvo e viva bem se não sabe que Deus é bom para ele.

Em sexto lugar: (para preterir uma porção de coisas e não me tornar pro- lixo), menciono o argumento do qual Sto. Agostinho fada uso em geral, es- pecialmente em Contra J ~ l i a n o ~ ~ , livro IV, e que também Gregório de Rímini repete no livro 11, quaestio 28. O argumento é este: As virtudes se discernem pelos fins, não pelos serviços prestados. Porque, fora da graça, toda virtude procura apenas seus próprios interesses; ela não pode buscar o que é de Deus, porque não tem capacidade para uma obra de amor, do qual 1 Co 13.5 diz, com o devido louvor: "O amor não procura seu próprio interesse." Por isso, nenhuma virtude tem a Deus por objetivo final, nem pode amar a Deus acima de todas as coisas e por causa de Deus. Do contrário, a graça nem seria neces- sária. E por essa Única razão são más todas as boas obras dos gentios, ou as naturais: porque não têm o fim devido. É isso que diz o apóstolo em Rm 3.10ss., incluindo, sem exceção, todas as pessoas, tanto judeus quanto gen- tios, se bem que aqueles produziam em justiça e estes em sabedoria tanto quanto eram capazes: "Não há justo, não há quem entenda, não há quem busque a Deus. Todos se transviaram e, ao mesmo tempo, se tornaram inú- teis." Observa: não há quem busque a Deus, todos se transviaram, ninguém entende a Deus, muito menos o tem por objetivo final em sua obra. Por isso conclui confiante, dizendo: "Deus encerrou a todos sob o pecado." [GI 3.22.1 A ninguém exclui: "todos sob o pecado". Também Davi diz: "Toda pessoa é mentirosa." [SI 116.11.1 Mas que verdade poderia ser dita por um mentiroso? "Que pureza poderia proceder do imundo?", pergunta o sábio [Eclo 34.41.

72 ( ' ,~ r , l ro . I ! I I ~ ~ ~ ! I I ~ ~ ~ ~ .

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Diz-se, entretanto, o seguinte: "Não profetizou Caifás a verdade']? E, conforme Mt 7.22, não profetizaram muitos em nome de Cristo e realizaram muitos milagres?" A isto eu respondo: disseram a verdade. mas não de for- ina verdadeira; fizeram o bem, mas não de forma correta. Alguém pde em dúvida que o ouro ostentado pela meretriz seja tão bom quanto o da mulher casta, e que os membros daquela sejam tão bonitos quanto os desta? No en- lauto, não os porta e usa de forma tão correta. No mesmo sentido, por serem dons gratuitos de Deus, também aquelas obras da sabedoria, dos milagres, dos dons, são muito boas; no entanto, por não serem dirigidas ao devido fim, fazem o bem, mas não de maneira correta. Por isso, por nossa culpa, resul- tam obras más das boas dádivas de Deus. Por essa razão Cristo Ihes dirá: "Apartai-vos de mim todos os que praticais a iniquidade." [Mt 7.23.1 Como podem ser praticantes da iniquidade aqueles que fizeram tanto bem, a menos que tenham feito mau uso do bem, ainda que, através do mau uso, tenham si- do úteis a outros?

Em sétimo lugar: se o justo, na graça, não pode fazer o bem sem, ao rnesmo tempo, pecar, quanto menos fará o bem o injusto! Disso concluo que qualquer ato da pessoa é ou bom ou mau, e que não existe um ato intermediá- rio e neutro. A afirmação precedente será claramente comprovada pela tese subseqüente.

Por isso volto ao tema da tese: todo cristão faz penitência diariamente porque peca todos os dias, e peca não por perpetrar algum crime, mas por não cumprir os mandamentos de Deus. Para provar isso, bastaria a passagem clc João que inseri na tese: "O agricultor celeste limpa diariamente as vides Iliitíferas." Se necessitam ser limpas, é porque são imundas; se são imundas, 5:111 pecadoras; se são pecadoras, necessitam de penitência. Por essa razão, (li7 rcspeito a elas a palavra de Cristo: "Fazei penitência!"

Em segundo lugar, afirma o mesmo João, na sua primeira epístola: "Se ilisscrmos que não temos pecado, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade ii:io está em nós." [I Jo 1.8.1 Sto. Agostinho cita essa afirmação em muitas passagens e pondera a forma verbal "temos", no tempo presente, que não es- I:I cscrito ai "tínhamos", e sim "temos". Por isso, pecamos diariamente e ili;iriamente purgamos o pecado. Assim, portanto, nós fazemos penitência

a não ser que digas que a penitência não é a purgação dos pecados, contra- ri:iiido a opinião de todos os que consideram a contrição, que extingue a cul- p;i, o elemento principal da Penitência. Por fim, baseado nessa palavra de .1o3o, o B. Agostinho tem a audácia de escrever o seguinte em seu livro Da ti(rt14reza e da graça7% Se todos os santos, reunidos num só lugar, fossem per- niiriiados se têm pecado, que outra resposta dariam senão esta, diz ele: "Se ilisserinos que não temos pecado, a nós mesmos nos enganamos e a verdade 1130 cstá em nós"? Mas nenhum pecado é tirado sem penitência.

Em terceiro lugar, S1 311321.6: "Por isso te pedirão todos os santos em tempo oportuno." Vê, todo santo ora pela impiedade de seu pecado. Isto, na verdade, é fazer penitência, e não se pode dizer que estivesse orando pelo pe- cado passado ou pelo castigo do pecado passado; é pelo pecado presente que ele ora. Pois, para deixar isso claro, acrescentou: "a impiedade de meu peca- do" [SI 32.51. É por esta que ele ora, não pelo pecado que, às vezes, pode sig- nificar castigo, mas pela impiedade do pecado, que é culpa. Pois se ora pela culpa a ser perdoada. Pela culpa perdoada rendemos graças.

Em quarto lugar, 1 Tm 1.15: "Jesus Cristo veio para salvar os pecado- res, dos quais eu sou o principal." Ele não diz: "Era", mas "sou pecador", de acordo com Rm 7.18s.: "Sei que em mim, isto é, em minha carne, não ha- bita bem nenhum. O mal que não quero, este eu faço." E ainda: "Eu, toda- via, sou carnal, vendido sob o pecado." [Rm 7.14.1 Assim também GI 5.17: "A carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne." Ora, cobiçar contra o Espirito é pecado, pois é proibido pelo mandamento de Deus: "Não cobiçarás." Por isso, tal pecado é pecado na verdadeira acepção da palavra, e deve ser anulado pela penitência, como ensina Rm 6.6.: O corpo do pecado deve ser destruido, e não devemos obedecer aos desejos da carne. Os desejos da carne, porém, são pecado e contrários à lei de Deus. Por isso é preciso pe- nitência por eles.

Em quinto lugar, Lc 13.2~s.: "Pensais que estes foram mais culpados do que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não. Digo-vos: se não fizerdes penitência, todos perecereis deste modo." Como vês, ele impde a penitência a todos. Assim também Lucas no último capitulo: "Tinha que ser pregado, em seu nome, penitência para remissão dos pecados entre todos os povos." (24.47.) Eis que todo o Evangelho nada mais é do que pregação da penitên- cia. Por conseguinte, vida evangélica outra coisa não é do que penitência. As- sim sendo, Bernardo'l tem razão ao dizer: Quem não corre à Penitência com assiduidade mostra, por sua atitude, não necessitar da penitência, como se fosse a coisa mais absurda do mundo existir alguém que não necessita da pe- nitência.

Em sexto lugar: conforme Agostinho, a Igreja toda ora até o fim do mundo: "Perdoa-nos as nossas dividas." [Mt 6.12.1 Isso, porém, é uma pala- vra de penitência, de sorte que Cristo diz: "Se não perdoardes aos seres hu- manss os seus pecados, também vosso Pai não vos perdoará os vossos peca- dos." [Mt 6.15.1 Ele está falando aos apóstolos, santos filhos de Deus. E on- de estão seus pecados? É verdade que são veniais, mas seriam mortais se não fossem perdoados. Todavia, existem pessoas que tagarelam por ai que faze- mos essa oração pelas penas dos pecados. Dessa gente é preciso precaver-se como de depravadores da palavra de Deus. Pois que dirão eles a respeito das outras preces: "Santificado seja o teu nome, venha o teu reino, seja feita a tua vontade"? Também os mais santos oram essas preces. Orando-as, con- fessam que ainda não santificam o nome de Deus, que neles ainda não está o

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75 ('i. I>. 213. nota 47 e p. 249. nata 2

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reino de Deus e sua justiça - por esta oração buscam o reino de Deus e sua justiça! - e que ainda não fizeram a vontade de Deus. Todas essas coisas, porém, são dívidas culposas e pecados contra a lei de Deus, que deseja que seu nome seja santo, que quer reinar em nós e que sua vontade seja feita entre tiós. Não se creia que aquela oração seja fictícia. Dai se conclui que todos oram de verdade e que todos verdadeiramente confessam que carecem dessas coisas. Assim, está claro que a oração do Senhor por si só já nos ensina duas coisas: primeiro, que somos pecadores quotidianos e que pecamos sempre; segundo, que toda a vida é penitência, oração e contrição.

Dai se segue ainda, contra a determinação do Concilio de Constança, que todo ato da pessoa humana é mau fora da graça, visto que mesmo a ação dos justos na graça não é boa nem cumpre o mandamento de Deus.

Por último: tantas exortações de Paulo insistem neste ponto: que morti- fiquemos os membros que estão sobre a terra (C1 3.5) e as obras da carne (Rm X.13); que sejamos transformados pela renovação da mente (Rm 1376); que iião cuidemos da carne para seguir seus desejos"; também que crucifiquemos :I carne com suas concupiscências (G1 5.24). Tudo isso leva à conclusão (co- iiio está evidente) de que deve haver uma penitência constante, porque o pe- cado original se manifesta constantemente e provoca sempre novos desejos, tissim como a terra maldita faz brotar espinhos e abrolhos (Gn 3.18).

Mais sobre isso se encontra nas explicações das teses 1, 2, 3 e da tese78. No entanto, até agora não vejo contestado o conteúdo desta tese, pois tam- héin em Leipzig não foi tocada com uma sílaba sequer. Se queres negar a as- scrção dessa tese, é preciso que negues quase todos os livros do B. Agostinho t,i>iitra os pelagianos, visto que se move inteiramente nesse conceito. Segue- \i., pois, que essa doutrina não é nova, conforme as calúnias de Eck. Mas a coiiira-tese de Eck, essa, sim, é erro novo e antigo, pertinente á heresia dos pe- I:iginnos. E também um concílio nada tem que lhe possa contrapor, se não i~iiiscr incorrer em erro, como aliás, ocorreu muitas vezes.

Tese 2

Negar que apessoapeca também ao fazer o bem, que o pecado venial é i,i,riiírl não por sua natureza, mas somente pela misericórdia de Deus, ou que /rrrtihPm após o Batismo remanescepecado na criança, significa calcar com os /I<;\. u Paulo e a Cristo de uma só vez.

Lista tese compreende três partes: há pecado na boa obra; o pecado é ve- iii:il não por natureza, mas pela misericórdia de Deus; remanesce pecado :ipOs <i Batismo.

O primeiro ponto é exposto da seguinte forma: Isaias 64.6: "Todos nós somos imundos, e todas as nossas justiças são

como o pano da mulher menstruada." Esta única passagem já deveria tapar boca e goela de todos os que dizem o contrário, uma vez que ela é clarissima: todos nós somos imundos, e não só as nossas injustiças são imundas perante Deus, mas também as nossas justiças.

Eu sei o que costumam argumentar em contrário. Dizem que o profeta fala daquela justiça nossa que vem da lei, da justiça que também o apóstolo Paulo condena. Parece que também o divo Jerônimo tende a essa opinião. As palavras do profeta, porém, são claras: ele se refere a si próprio e a todo o povo crente, que eram justos não pela justiça da lei, mas pela justiça da gra- ça, visto que também eles comeram do mesmo alimento e tinham o mesmo Espírito da fé, como diz Paulo79. Pois a justiça da lei não se confessa a Deus em humildade, não se auto-acusa de principio; antes, presunçosa, se desculpa e se justifica. Por isso, só a graça justificante leva a pessoa a dizer e confessar que é impura e injusta. Em segundo lugar, o profeta não diz: "nossa justiça" ou "nós", mas "todos nós" e "todas as nossas justiças". Não exclui nin- guém e nâo declara pura a nenhuma justiça. Por essa razão a frase não pode ser aplicada a alguns que não foram justificados por graça, nem apenas à jus- tiça da lei; deve ser aplicada a todos e a toda justiça sua. É certo que houve entre eles alguns que eram justos por uma justiça melhor que a justiça da lei. Certo também é que, naqueles tempos, houve uma justiça diversa da justiça da lei. Mesmo assim, o profeta diz que todos são imundos e todas as justiças são poluídas. Por isso, essa passagem sai vencedora e as palavras tão claras obrigam a interpretação de quem quer que seja a dar lugar ao sentido clarissi- mo da palavra do profeta.

Mas também é fruto de um mal-entendido afirmar que a justiça da lei te- nha sido imunda em comparação com a justiça evangélica, porque pelo me- nos a lei cerimonial era boa e instituída por Deus. Por isso, a justiça da mes- ma de forma alguma era imunda por si, visto que, naqueles tempos, eram obrigados a cumprir essas coisas não menos do que os preceitos do Decálogo. Por esta razão, aqueles que qualificam a justiça da lei de imunda só volvem os olhos para o tempo do Evangelho, no qual é anulada - não porque fosse imunda, mas porque dava a pessoas tolas uma confiança contrária á graça de Deus, como ensina o apóstolo nas Epistolas aos Gálatas e aos Romanos. Ra- zão por que, assim como a justiça cerimonial era boa e correta e, não obstan- te, imunda, da mesma forma era imunda sua justiça do Decálogo, por me- lhor que fosse. Pois o profeta refere-se a sua época, em que a justiça da lei ainda não fora revogada. Do contrário, seria forçoso dizer que Deus Ihes ti- nha ordenado coisas imundas, o que é um pensamento detestável. Permane- ce, pois, de pé a afirmaçâo: "Toda a nossa justiça é imunda" e "Todos nós somos imundos."

70 <'i. Rrri 12.2. 77 ('I ' . Kiii 13.14. 7H I:iill;$~lo original a indicas20 da tese. As explica$ões às quaia Lutero se refere sào as Expli-

i.r,<Or.~ r10 debale sobre o v ~ l o r dos indul~@ncios. P P 55ss. deste volume.

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Em segundo lugar, Eclesiastes 7.20: "Não há sobre a terra justo que faça i) bem e não peque." Também esta palavra, contudo, costuma ser eludida, ;il'irmando-se que o justo as vezes faz o bem e as vezes peca. Mas isso é insus- iciitável. Se o autor quisesse dizer isso, teria bastado dizer: "Não existe justo qiie não peca." Porque teria usado tantas palavras supérfluas, como se al- 1:iii.m que pratica o mal pudesse ser justo? Pois só o justo pratica o bem e é iiihto por fazer o bem. Por isso o autor acrescenta, para exprimir a imperfei- <,To: "que faça o bem e não peque". Pois quando fala das obras não boas, cnpressa-se assim: "O justo cai sete vezes por dia, e sete vezes se reergue." Il'v 24.16.1 Aqui não acrescenta: "o justo que pratica o bem".

Em terceiro lugar, Rm 7.19: "O mal que não quero, este faço, e o bem qiic quero, este não faço." E mais adiante: "Pois tenho prazer na lei de Deus segundo o ser humano interior; em meus membros, porém, vejo outra lei lu- i;iiido contra a lei de minha mente", etc. (vv. 22s.) Atentemos para o apósto- lo neste ponto. Diante disso devem ceder a razão e a autoridade tanto da Igre- i:i quanto do concílio. Porque aqui está sendo ensinado aquilo cujo contrário cii iião acreditaria, mesmo que fosse ensinado por um anjo do céu. Ninguém será capaz de me sobrepujar essa passagem do apóstolo, nem de evadir-se de- I;!. Em primeiro lugar, um único e mesmo homem, Paulo, santo apóstolo, clicio de graça, tem prazer na lei de Deus e, ao mesmo tempo, repugna a ela; deseja o bem segundo o Espirito, porém não o faz segundo a carne; faz, an- ics, o contrário. Por conseguinte, peca enquanto pratica o bem. Pois quem ~iiisará entender que repugnar a lei de Deus seja outra coisa do que pecar? I)cixar de praticar o bem não é contra a lei de Deus? Mas, enquanto quer o I~~.iii, só por isso ainda não faz esse bem; faz, isto sim, seu contrário: o mal. Vi510 que nunca esta isento de repugnância, jamais faz o bem sem qualquer I:iltia; portanto, jamais cumpre plenamente a lei de Deus. Permite que o diga : ihh i i i i : aquele não querer a lei de Deus está sempre na carne quando existe o qiicrcr a lei de Deus. Por meio deste faz o bem, por meio daquele, o mal. Não ~liicrcr provém da carne, querer vem do Espirito. Por isso mesmo oramos que sc.i:i ki ta a vontade de Deus na terra (na carne) assim como é feita no céu (no lisl)irito). Assim diz o apóstolo: "O querer está em mim, porém não encontro i> clkliiar." [Rm 7.18.1 E isto também dizem os escolásticos: O ser humano é iii;iccssivel ao bem e propenso ao mal. Mesmo assim ousam dizer que não há i)~.c:iilo na boa obra, como se a inacessibilidade, que impede um amor da lei :ilcgrc c livre, não impedisse que se satisfaça a lei de Deus, que não pode ser iiiiiii?iida m ã o por um amor puro e livre. S1 1.2: "Seu prazer está na lei do Sciilior", e 1 Tm 1.5: "O amor é o fim da lei." Também S1 44[45].7 refere-se :i 'sisto: "Amaste a justiça e odiaste a iniqüidade." Por isso Paulo conclui: "l'oi-tonto, com a mente sirvo a lei de Deus, com a carne, porém, a lei do pe- i-;i(Iii." [Kiri 7.25.1 Que poderia ser expresso com mais clareza: "O mesmo es- c.i:ivi~ scsvc com a mesma escravidão à lei de Deus e a lei do pecado"? Ainda iir):;ih ser pccado servir a lei do pecado? Com o mesmo descaramento pode- i i ; ~ \ iicc;ii qiie é bom servir a lei de Deus. Portanto, é viciosa toda boa obra de i o ( l i r sei Iiiiiiiaiio nesta vida, e isso por causa da servidão do pecado, por meio <I:i i l i i ; i l C iiiaiitido prisioneiro na carne, para que sempre continue sendo de-

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vedor da lei de Deus e pecador, sendo salvo somente ao clamar com o apósto- lo: "Infeliz homem que sou! Quem me libertará da morte deste corpo?" [Rm 7.24.1

Em quintoao lugar: a mesma opinião encontramos em C1 5.17: "A carne cobiça contra o Espírito, e o Espirito contra a carne. Eles lutam entre si, para que não façais o que quereis fazer." Será possível que nem aqui Paulo é sufi- cientemente claro? Cobiçar contra o Espirito é pecado e contrário a lei de Deus. E essas duas coisas permanecem enquanto a carne existir. Assim, não fazem o que querem. Desejam cumprir a lei de Deus, para que não cobicem qualquer coisa contra a lei de Deus, no entanto, não o fazem nem realizam esse desejo. Por isso, continuam sendo pecadores e não realizam uma obra sequer na qual não houvesse divida ou falta em relação a lei.

Contra isso, porém, vociferam: "Essa falta não é propriamente pecado. Por isso deve-se manter a maneira de falar e falar como a maioria." Respon- do: tua maneira é perniciosa porque se afastou da maneira de falar contida nas Sagradas Escrituras, a qual os teólogos devem observar com a maior constância. Paulo diz que serve a lei do pecado e que age contra a lei. Ora, nada pode ser chamado mais propriamente de pecado do que aquilo que é contra a lei e serve a lei do pecado. Fora, pois, com teu abuso na maneira de falar. Mas a respeito disso falarei abaixo, quando tratar do pecado venial.

Por isso, há ali tanto pecado quanto há não-querer, obstinação, repug- nância; e há ali tanto mérito quanto há vontade, liberdade, alegria. Esses dois fatores vêm misturados em toda nossa vida e obra. Nunca estamos sem a car- ne e jamais atuamos sem ela. Qual a carne, tal sua obra. Sendo ela totalmente não-querer, já existe ali pecado mortal e aversão. Nesta vida não existe von- tade total. Por isso, sempre pecamos ao fazer o bem, ainda que ás vezes mais, outras vezes menos, dependendo se a carne nos assedia menos ou mais com desejos imundos. Esta é a razão por que não existe sobre a terra justo que fa- ça o bem e não peque. Tal justo só se encontra no céu. Visto, porém, que o ser humano não existe sem esse não-querer nem atua sem ele, também não pode ser sem pecado na boa obra. Como podeia agir sem ele se não pode vi- ver nem existir sem ele? Por isso, pode-se comparar o justo a uma ferramen- ta, corroida pela ferrugem, que Deus decidiu polir, que não tem fio enquanto está enferrujada, até que esteja completamente polida.

Em sexto lugar, cabe aqui aquela parábola (Lc 10.30~s.) do samaritano. Ele aplicou óleo e vinho aquele homem semi-morto e lhe atou as feridas. Mas por acaso o curou imediatamente? Não! Deixou-o sob os cuidados do hote- leiro até sua volta. Assim, a Igreja é a estalagem na qual, após recebida a gra- ça de Deus no Batismo, somos diariamente curados dos pecados. E nossas obras são como as realizadas por pessoas que começam a convalescer, mas ainda não estão recuperadas. Daí se evidencia que são em parte doentes, em parte sãs, mas muito distantes das obras feitas por pessoas perfeitamente sãs. Por isso, em Mt 7.11 Cristo denomina os apóstolos simplesmente de maus,

80 l';ioihCie iio original cstc quinto ponlo nXo é precedido por um quarto

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dizendo: "Vós, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos." Entre- tanto, se são maus, continua firme a afirmação desse mesmo Senhor: "A ár- vore má não pode produzir frutos bons" [Mt 7.181, e produzirão bons frutos iia medida em que forem uma árvore boa, e vice-versa. Essa compreensão ou iiianeira de falar se perdeu entre os teólogos porque abriram mão das Sagra- das Letras e começaram a falar dessas coisas divinas de maneira humana (ou seja, mais fácil, como crêem). Assim, foram perdendo paulatinamente tam- hém o sentido da Escritura, cujas palavras abandonaram, ao mesmo tempo, como vasos, acontecendo o seguinte: sabendo que no Batismo são perdoados iodos os pecados, logo inferiram que ali não restaria pecado algum. Por isso, iião chamavam o pecado original de pecado, mas de fraqueza, contrariando o texto expresso do apóstolo. Pois no Batismo o pecado é perdoado, não co- mo se não existisse, mas porque não é imputado, como diz Sto. Agostinho. Portanto, ali existe pecado no mais verdadeiro sentido, só que ele não é im- putado, porque teve inicio sua expulsão. Por isso, a culpa está anulada, mas o pecado em si permanece até que também ele seja expelido. Pois cncontramo-nos numa fase, isto é, numa transição do pecado para a graça. Se, porém, cessares de expeli-lo ou não o considerares pecado, já não guardas o pacto do Batismo, e se restabelece o estado de culpa. Pois no pacto te com- prometeste a combater o pecado e a relutar contra o diabo e seu séquito. Se assim entendes a respeito dos pecados que estão fora de ti e não consideras pecado o pecado dentro de ti, então não entendes corretamente o Sacramento do Batismo nem o aceitas. Portanto, exceto por não ser imputado, o pecado original em nada difere de qualquer crime cometido depois ou antes do Batis- iiio, porque é tão contrário à lei de Deus quanto qualquer outro pecado.

Por isso, o que outros aprenderam na teologia escolástica, vejam-no eles ~irOprios. De minha parte, sei e confesso que nela nada aprendi senão igno- iiiiicia a respeito do que é pecado, justiça, Batismo e toda a vida cristã. Tam- Iitiii não aprendi o que é o poder de Deus, sua obra e justiça, nem o que é fé, cspcrança e amor. Em resumo, nXo apenas nada aprendi (o que ainda se po- <leria suportar), mas aprendi apenas coisas que tive que desaprender de novo, 1)orqiie eram de todo contrárias as Divinas Letras. Fico admirado se outros ;iprcnderam de maneira mais frutífera. Se existirem alguns nessas corndiçdes, l'clicito-os sinceramente. Eu perdera a Cristo ali; agora o reencontrei em Pau- lo,

Em sétimo lugar, cabe aqui a parábola de Mt 13.33: "O reino dos céus é sciiiclhante ao fermento que uma mulher tomou e misturou em três medidas iIc í'arinha, até que toda a massa estivesse fermentada." A medida é uma es- pkcic de padrão de medição hebreu equivalente a um e meio alqueire, de acor- do com Jerônimo. Não é aqui o lugar para dizer o que seriam as três medidas iIc kiriiiha. Por ora, basta saber que a farinha somos nós pessoas humanas, o I~iriicrito é o Cristo abscôndito, a graça, a que nos é presenteada no espírito iI;i i'&, Assim como o fermento não leveda a massa toda num instante, da mes- iii:i Ibrma a graça infusa não se espalha logo pelo corpo todo, mas fermenta lodo o ser humano aos poucos e o torna semelhante a si própria. Por isso ali iciii;iiicsce pecado. Todavia, visto que se começou a expurgá-lo, ele não é im-

putado a quem o expurga. É isso que se dá no Batismo: nele todos os pecados são perdoados, ou seja, não são imputados, porém não são afastados por completo. Portanto, é erro e invenção humana afirmar que o pecado é tirado em sua essênciaai. Com "essência" designam a privação da graça; com "ma- téria"a2 designam o próprio fomes03 ou o hábito. Só a culpa é tirada. Perma- nece, contudo, tanto em sua essência quanto em sua matéria, isto é, a priva- ção da graça ali é proporcional à concupiscência remanescente. Pois o amor tem que tomar o lugar da concupiscência; o amor não está onde está a concu- piscência. O erro é causado pelo fato de colocarem somente a alma e sua par- te mais nobre como objeto da graça e, depois, pelo fato de distinguirem me- tafisicamente carne e espirito como duas substâncias, enquanto, na verdade, o ser humano todo é espirito e carne - espírito na medida em que ama a lei de Deus, e carne na medida em que odeia a lei de Deus. Assim, saúde e doen- ça estão lado a lado no mesmo corpo ou no mesmo lugar da carne. Por isso mesmo, conforme Salomãos', ninguém pode gloriar-se de ter coração puro, porque a carne, ou seja, a paixão da carne e a concupiscência, que é o velho fermento da maldades', corrompe o ser humano todo. Gn 6.3: "Meu Espírito não há de permanecer no ser humano, porque é carne", diz ele (não: porque tem carne), porque cheira a carne com toda a paixão de seu coração. Por is- so, um fermento novo, que é o amor, é novamente misturado a esse antigo fermento, para que este seja expulso da pessoa toda, primeiro do coração, depois de todo o corpo e de todos os membros.

Em oitavo lugar, temos aquele testemunho muito forte de SI 142[143].2: "Não entres em juizo com o teu servo, porque nenhum vivente será justifica- do a tua vista." Pergunto: aquele justo inventado por ele - visto que já este- ve de fato no mais belo mérito - deve ser contado entre os que vivem, uma vez que o salmo disse, em termos gerais, "nenhum vivente"? Se for contado entre eles, não será justificado perante o juizo de Deus, como diz aqui. Por que? pergunto eu. Se ele é sem pecado na boa obra, não pode ser condenado por Deus, que é a própria justiça, que nada ama mais que a justiça. Ademais, não é preciso temer que o juiz justo condene a justiça. Se, todavia, é conde- nado, já não é sem pecado e é encontrado como quem age contra a lei de Deus. Pois só é condenado quem não cumpriu a lei de Deus.

Não será considerado justo no juizo de Deus nem sequer quem é servo de Deus,.nem qualquer dos viventes, entre os quais, necessariamente, deve haver alguns muito santos, que cumprem a lei de Deus - se é que cremos que a san- ta Igreja, a comunhão dos santos, vive na terra. Se assim é, qual será, a teu ver, o furor daqueles que são loucos ao ponto de afirmar que a lei pode ser cumprida sem a graça, fora da Igreja, por forças naturais de acordo com to-

81 Quo od formalesuum, no original. 82 Maieriale. no original. 83 IJsado como sinônimo de o n c u p i m f i a . Em sentido literal, fomes é material (lenha, p.

CX.) ~~sild<> para acender ou alimentar o fogo. 84 <'r. 1% 211.'). ns ('r. I < i ) S.U.

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da a natureza do fatoe6, se bem que não de acordo com a intenção do que or- dena?

Voltando ao artigo de Hus condenado em Constança: quão grande erro é dizer que existe ato neutro, não mau, quando nem o ato dos justos pode ser justificado perante Deus! A estes pode-se aplicar com razão a palavra de Je- remias: "Eis que aqueles que não foram condenados a beber o cálice, o bebe- rão até o fim. E tu serias inocente? Não o serás." [Jr 39.12.1 Ou então 1 Pe 4.18: "Se é com dificuldade que o justo será salvo, onde aparecerão o peca- dor e o impio?" Vê que conseqüências monstruosas resultam dai: ao impio Fora da graça nem sequer atribuem pecado venial em sua boa obra, afirman- do apenas que não seria meritória, enquanto aqui se atribui ao justo em sua obra o pecado de tal modo que, se colocado perante o juizo de Deus, não po- deria ser justificado (ou seja, pecado mortal e condenável). Quanto mais é condenável e mortal a boa obra do impio, e de forma alguma neutra ou inter- mediária. E ainda se iactam de aue a teologia escolástica não seria contrária á - santa teologia, embora, nesse raciocínio, a situação do pecador seja melhor do que a do justo, visto que aquele não peca no que o justo peca.

Passemos agora a ver de onde fluem as vozes dos santos pais. No livro IX das Confissõess', Agostinho diz: "Ai da vida das pessoas,

por mais louváveis que sejam, se julgadas com exclusão da misericórdia." O que, pergunto eu, se segue dai? Não é que todo pecado é inteiramente mortal por sua natureza, e venial apenas pela misericórdia de Deus? E nisso não há 1301 que se admirar, pois todo pecado é contra a lei de Deus. Ser contra a lei ile Deus, porém, já é o mais grave no que lhe diz respeito. Pois qualquer coisa que, de alguma forma, é contra a lei de Deus deve ficar eternamente longe de I>cus, visto que nada de impuro entrará no reino dos céussa. E mais, visto que iicnhum til da lei passará sem que se cumpras9, necessário se faz que não per- innneça nem sequer o pecado venial. Pois as palavras do Senhor são puras co- iiio a prata acrisolada sete vezes ao fogow. Tão pura precisará ser também a pessoa, do contrário não será salva, porque não passará nem sequer um til.

Por essa razão, novamente incorrem em grave erro os teólogos que não sc preocupam nem um pouco com o pecado venial e tagarelam que o pecado venial não ofende a Deus, ou o ofende apenas de modo venial. Se é uma ofen- sa Lão insignificante, por que o justo é salvo com tanta dificuldade? Por que 11 justo não suporta o juizo de Deus e não pode ser justificado? Por que so- in«s coagidos a orar tão seriamente e não de modo venial e impróprio: "Perdoa-nos as nossas dividas" e "seja feita a tua vontade, venha o teu rei- I IO, santificado seja o teu nome"? Não está visto que esses teólogos de meia tigela primeiro extinguem o temor de Deus nas pessoas, depois Ihes colocam :iliii«fadas e travesseiros debaixo dos braços e das cabeças, como diz

H6 Quo od rolam subsranriom fodi, no original. H7 Confessiones. H8 Cf. Ap 21.27. HY <:I'. Mt 5.18. Vi) Cf. SI 12.6.

Ezequiel91, as dispensam das orações e apagam nelas o Espírito? Não é assun- to de pequena importância (digam eles o que quiserem) discordar da lei e von- tade divina por um cabelo que seja; também a misericórdia divina, que per- doa o venial, não é coisa de somenos importância. Desse modo, eles conside- ram a lei, a vontade e a misericórdia de Deus quase uma indolência, de sorte que não pode ser fervorosa a oração nem ardorosa a gratidão dos justos. Cui- dado, pois, com esse fermento farisaico!

Com isso está suficientemente comprovado que é errônea e impia a se- gunda tese de Eck, pois ele nega que o justo peca em toda boa obra, ou que também o justo peca mortalmente (considerando o juizo divino), ou que re- manesce pecado na pessoa batizada. Isso ele concebeu através de sonhos hu- manos, pois nas Sagradas Letras não leu nem entendeu o que é pecado ou boa obra.

Mais uma vez é Agostinho que diz no livro I de suas Retratações92, no ca- pitulo 19, em resposta à pergunta se os apóstolos cumpriram todos os manda- mentos de Deus: "Todos os mandamentos são cumpridos quando é perdoa- do aquilo que não é cumprido. Pois entre esses mandamentos se encontra também o de que a Igreja toda ore até o fim do mundo: 'Perdoa-nos as uos- sas dividas."' Como vês, os mandamentos são cumpridos não pela ação das pessoas, mas pelo perdão de Deus. Que coisa é perdoada nas obras dos man- damentos senão o pecado? Porém o perdão concedido pela divina majestade não é de pouco peso. Que parem, portanto, de fazer do pecado venial um pe- cado leve; para sua remissão é necessário não um ser humano, nem um anjo, mas a misericórdia da eterna majestade. Então não se trata de um manda- mento leve o fato de a mesma majestade ter ordenado que se ore, como diz Agostinho aqui: "Perdoa-nos as nossas dividas." A divina majestade consi- dera o pecado venial tão importante que, para eliminá-lo, ordena implorar sua misericórdia, e o ser humano imagina estar seguro nele? Ai daqueles que provocam tão grande escândalo!

Uma vez mais diz o mesmo Agostinho na 29! epístola ao beato Jerôni- mo, ao tratar das virtudes: "Quero resumir de forma geral e breve o meu conceito de virtude, no que diz respeito a maneira correta de viver: a virtude é o amor com o qual se ama o que deve ser amado. Em alguns ele é maior, em outros, menor, em outros ainda, inexistente. Mas o amor perfeito, o amor que não pode ser aumentado enquanto o ser humano viver na terra, esse não existe em ninguém. Enquanto, porém, pode ser aumentado, aquilo que ainda falta para ser perfeito seguramente vem de alguma culpa. Em razão dessa cul- pa 'não há sobre a terra justo que faça o bem e não peque' [Ec 7.201; por cau- sa dessa culpa 'nenhum vivente será justificado à vista de Deus' [SI 143.21; por cansa dessa culpa, 'se dissermos que não temos pecado, a nós mesmos nos enganamos' [ l Jo 1.81. Por causa dessa culpa, por mais que tenhamos progredido, também temos que dizer necessariamente: 'Perdoa-nos as nossas

~ ~~ ~~ ~~ ~~ ~ .-

91 ('f. li,. 13.18. 92 R<*rr<icruririn<'.v.

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dividas', embora tudo que dissemos, fizemos e pensamos já tenha sido per- doado no Batismo."

Não confirma essa asserção do mais afamado dos pais tudo o que disse- [nos acima, pois faz da concupiscência com certeza ainda remanescente por ralta de amor a causa do pecado presente em qualquer boa obra?

O divo Jerónimo, no livro I1 contra os pelagianos93, explicando SI 31[32].5s.:"Disse eu: Quero confessar contra mim minha injustiça, e tu per- doaste a perversidade de meu pecado. Todo santo orará a ti por isso em tem- po oportuno." "Se é santo", diz ele, "como ora pela perversidade? Se tem iniqüidade, por que razão é chamado santo?" Por fim conclui, citando mui- tas provas das Escrituras, especialmente Jó: "Eis aí o nosso Jó, imaculado, contra o qual não há queixa, que se abstém de todo mal - com que fim de justiça é coroado, para que necessite da misericórdia de Deus!"

O mesmo, no livro I: "Somos justos quando nos confessamos pecadores e quando nossa justiça não consiste no que há em nós mesmos, mas na mise- ricórdia divina. Por isso tudo depende da misericórdia e do perdão de Deus, e não da vontade e do esforço do ser humano."

Acrescentemos ainda a Gregório em sua Ética94. Em primeiro lugar, refere-se a Jó 9.2: "O ser humano posto diante de

Deus não será justificado." "O homem santo", diz ele, "considera culpa to- do o mérito de nossa virtude, se julgado com rigor por uma sentença que vê o interior da pessoa9s. Por isso acrescenta corretamente: 'Se quiser contender com ele, não Ihe poderá responder uma em mil."'

Em segundo lugar, no mesmo livro, a respeito desta passagem: "Se de icpente ele perguntar, quem lhe responderá?" [Jó 9.12.1 "Pois", diz ele, "se krr analisada sem piedade, também a vida dos justos sucumbirá nesse cxame."

Em terceiro lugar, no mesmo livro, a respeito daquela passagem: "Mes- i 1 1 0 que puder apresentar algo justo, não responderei; antes, pedirei miseri- ci~rdia a meu juiz." [Jó 9.15.1 "Pois, como dissemos repetidas vezes, toda iiistiça humana é desmascarada como injusta, se julgada com rigor. Tendo ciri vista que, se julgada, a justiça poderia sucumbir, há necessidade de rogar I I < I ~ ela, para que se restabeleça somente pela piedade do juiz."

Em quarto lugar, no mesmo livro: "Temerei por todas as minhas obras, s:ihcndo que não poupas o delinqüente." [Jó 9.28.1 Vê, o homem santo teme l i i~i- todas as suas obras, que não são más (pois não praticou más obras, como o Senhor lhe atesta no começo do livro), e percebe que se tornou culpado e I<./ o insuficiente. Gregório diz ali: "O que fiz abertamente, isso eu vejo; po- ii.111 0 que pratiquei interiormente, de modo oculto, isso eu ignoro."

Ern quinto lugar, no mesmo livro: "Por mais que brilhassem de limpeza :i\ iiiiiihas mãos, ainda assim me tinges com imundície", etc. [Jó 9.30s.I Gre-

' l i I>i<ii<ifur udversus peiofiionos. '14 Morolia. '17 Si (,h inlcrno urhilrio di$lri<l<~ iudicdiir, no original.

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gório: "Enquanto pesa sobre nós o castigo da corrupção, por mais que sejam as boas obras, não alcançamos a verdadeira pureza, mas apenas a imitamos." E mais adiante: "Por mais que, com esforço, eu me exercite em ações corretas, vejo, todavia, em teu conhecimento que não sou puro." E no fim da Ética: "Nessas circunstâncias, onde resta lugar para a salvação, visto que tanto o nosso mal é puro mal, quanto o nosso bem, que julgamos ter, de modo algum pode ser algo puramente bom?"

Vês, portanto, que toda boa obra é parcialmente má também em tão grandes homens; e, o que é mais magnífico e admirável: como podem ser ver- dadeiras ambas as coisas - que Jó se confessa pecador através de todo o li- vro, quando, no começo%, Deus o louva sobremaneira e o declara justo? Pois nem Deus mente, nem Jó, a quem Deus, que não mente, em todos os casos louva por ser verdadeiro. Portanto, Jó é pecador de fato e de verdade, como, de fato, ele mesmo confessa. Mas também é justo de fato e de verdade, como o próprio Deus o louva. Como pode isso combinar senão assim: ele era de fa- to pecador, mas justo somente pela misericórdia perdoadora de Deus?

Neste ponto, contudo, há os que argumentam: "É verdade, ninguém é justo quando posto diante do juizo de Deus." "Sim", dizem eles, "nesses termos nem sequer os anjos são justos." Resposta: este último argumento é blasfêmia, porque (como diz o apóstolo) Deus é admirável em seus santos", e a justiça deles não deve ser medida pelo critério de nossa justiça. Pois são jus- tos de maneira plena e pura, inclusive no juizo de Deus. Nós, porém,porque nascemos em pecado e vestimos o pecado como nossa natureza, jamais so- mos sem pecado, até que sejamos semelhantes aos anjos.

O primeiro testemunha a meu favor, pois foi por isso que disse: Nenhum pecado é venial por sua natureza. Todos são condenáveis. O fato, porém, de serem veniais deve ser atribuído à graça de Deus, que se deve ter na mais alta estima. Por isso, para que não seja desconsiderada a misericórdia da divina majestade, é preciso aumentar ao máximo os pecados veniais.

Queremos também adicionar a razão de nossas assertivas: É necessário cumprir este mandamento: "Amarás ao Senhor teu Deus de

todo o coração, de toda a tua alma, com todas as forças" [Mt 12.301, de sorte que nenhum i e nenhum til seja preterido. No entanto, demonstramos com o apóstolo em Rm 7.23 que o pecado e a concupiscência relutam contra a lei de Deus em nossos membros. A partir dai está claro que ninguém é capaz de amar de todo o coração, de toda a alma e com todas as forças. Pois onde a concupiscência está presente no coração, na alma e nas forças, ali não ama todo o coração, nem toda a alma, nem todas as forças; por isso pecam na me- dida em que ali remanesce a concupiscência ou o pecado. Assim, através des- se mandamento, Deus mantém a todos encerrados no pecado, para comiserar-se de todos98.

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Mas quanto a isto inventaram uma glosa que, sem dúvida, é a mais pesti- lenta surgida em mil anos. É a seguinte: Deus não exige perfeito cumprimen- to desta e de outras leis semelhantes, apesar de Cristo dizer com clareza: "Ne- nhum i e nenhum til passará da lei." [Mt 5.18.1 Por esta razão, é de se temer que tais mestres pertençam àqueles que Cristo descreve assim: "Quem, pois, anula um desses mandamentos mínimos e assim ensina às pessoas, será cha- rriado o menor no reino dos céus." [Mt 5.19.1 Não se deve dizer, portanto: "Deus não exige um mandamento perfeito" (pois isto significa mudar o iiiandamento de Deus), mas sim: "Ele perdoa o que fazemos a menos." No entanto, não perdoa aos roncadores, e sim aos ativos, aos tementes e aos que dizem com Jó: "Temo por todas as minhas obras, sabendo que não poupas o delinqüente." [Jó 9.28.1 Aqueles, na verdade, ensinam que Deus poupa o de- linqüente, pois dizem: "Não exige ." Cuida, portanto, para que não creias que não se exige de ti o mandamento todo e para que não ignores por acaso o quanto deves a Deus e acabes arrogante e indolente, desdenhando sua graça, :I qual quis atrair-te ao máximo por meio de um mandamento impossível para ti.

Para finalizar, torno a citar a oração do Senhor. Sozinha, ela instrui iiiais e melhor a alma a respeito do livre arbitrio, da graça e do pecado do que todos os livros dos teólogos modernos e as argúcias dos debates.

Quem ora: "Santificado seja o teu nome" pede, sem dúvida, o que não possui; pois não se deve brincar com Deus com palavras fictícias. Se não tem, (lesonra o nome de Deus. Mas consideramos nós coisa de somenos importân- ci:i não santificar o nome de Deus, mas desonrá-lo?

Da mesma forma, quem ora pela vinda do reino de Deus - que é justiça c paz e que está dentro de nós, como ensinam Cristo", e Pauloim - não se confessa injusto e carente de justiça? Não obstante, assim só oram os filhos ~ l c Deus justos e santos.

De igual modo, quem diz: "Seja feita a tua vontade" não se confessa re- I>çlde contra Deus? Por acaso não é pecado quando não é feita a vontade de I)ciis? Onde está agora o livre arbitrio? Porventura não desespera aqui de si iiiesino, refugia-se só na graça, atribui a si mesmo unicamente pecado e con- Icssa que os mandamentos de Deus lhe são impossíveis? Onde está aqui o "i':rzer o que está em si"ioi, visto que os justos oram e se confessam pecado- ics dc tantas maneiras? Assim, essa prece anda na boca de todos, mas até iifiora, apesar de tanto esforço e estudo, os teólogos ainda não descobriram o i~iic i: livre arbitrio, pecado, graça, o que efetuam b, do que são capazes. IPor(aiito, disse eu com razão que a pessoa não deve se fiar em suas obras e, a sriiicllrança do paralítico, deve implorar, de mãos e pés imobilizados, a graça qiic opera as obras, embora Eck e sua facção tivessem condenado tal opinião

prova sizigular de sua ignorância.

Fora, pois, com essas ninharias e provas humanas que dizem: "Um úni- co e mesmo ato não pode ser aceito e não-aceito, porque senão seria bom e mau ao mesmo tempo." Cito isso das sutilezas de Escoto, para demonstrar o quanto estão longe da verdade quando começam a medir essas coisas divinas com suas mesquinhas razões humanas. Se não ignorassem a verdade da Escri- tura, não diriam tal coisa. E se compreendessem corretamente os temas da graça, do pecado e do livre arbitrio, não considerariam tais cavilaçdes bons argumentos.

Afirmo, portanto, que o mesmo ato é aceito e não não-aceito. A razão por que ele é não não-aceito (é preciso usar a terminologia deles) não é a boa qualidade do ato em questão, mas o perdão divino; não fosse o perdão, ne- nhum ato seria aceito. Por isso, está suficientemente claro que desconhecem a misericórdia divina e, por conseguinte, também a Cristo, porque inventam uma boa obra digna de aceitação sem a misericórdia perdoadora.

Retrucarão eles: "Por que então se lê em 1 Jo 5102: 'Quem é nascido de Deus não peca'?" Respondo: é impossível que qualquer filho de Deus peque. Mesmo assim é verdade, ao lado disso, que ele peca. No entanto, pelo fato de se lhe perdoar, mesmo pecando, na verdade não peca. A não ser que Paulo não fosse nascido de Deus, pois diz, em Rm 7.25, que está servindo á lei do pecado. Ou então o próprio João teria mentido a respeito de si mesmo ao di- zer: "Se dissermos que não temos pecado, a nós mesmos nos enganamos e a verdade não está em nós." [l Jo 1.8.1 Segue-se a exposição e concordância'03 rnl qiial s &i: "Sc, porciii. .mnie,sarmu\ iio>so, pe~ctdo,. clr.6 iicl c jucio pa- r 3 [I,>< perduer iius>o\ pr.cados." [ I .I<) 1.9.1 Ele pcrduu oi qiir. a,\iiii coiifc,- sam e faz com que pecadores não sejam pecadores; aqueles, porém, que ne- gam, conserva os pecados e faz com que justos não sejam justos. Portanto, é esta a definição do justo nesta vida: o justo é, antes de mais nada, alguém que acusa a si mesmo. Por isso, a justiça cristã é auto-acusação. Assim que desa- parece a auto-acusação, também a justiça se afasta imediatamente. A esses confessantes Cristo carreea em seu corteio triunfal: "Jesus Nazareno. rei dos - judeus", ou seja, dos que confessam. Essa é a palavra boa e agradável que o apóstolo faz ressoar com a maior alegria: "Fiel é a palavra e digna de toda a aceitação: Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro." (1 Tm 1.15.)

Por isso continua de pé minha 2: tese, e claro está de que maneira o pe- cado remanesce após o Batismo, que há pecado mortal em toda boa obra (se a misericórdia não vem socorrer) e que nenhum pecado é venial por sua natu- reza. Assim sendo, se reafirma que os atos dos ímpios sáo puramente maus em grau ainda mais elevado, e que, assim, todo ato é ou bom ou mau, contra- riando a definição do Concílio de Constança - o que vale dizer, dos tomis- tas, que, ao que parece, lá reinaram.

Ilisso também se deduz que o livre arbítrio é meramente passivo em todo

I02 <'I. I lo 5.1: 3.9. 103 Sr. <lii< iiI'iririikf75es <Iirr iiliareiitemente sc contradizem

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o seu fazer - que se chama querer - e que é em vão que se palra a distinção dos sofistas de que o ato bom é todo de Deus, não, porém, totalmente. Por- qiic, de fato, é todo e totalmente de Deus, visto que a vontade só é traciona- <Ia, arrastada e movida pela graça. Essa tração que se transmite aos membros c: Lis forças tanto da alma como do corpo é sua atividade e nenhuma outra, as- sirn como é meramente passiva a tração de uma serra que corta a madeira, visto ser originada pelo serrador; ela também em nada contribui para sua tra- <Cio; no entanto, sendo tracionada, corta a madeira, mais impelida do que iiiipelindo. Esse ato de serrar é denominado sua ohra pelo serrador, embora a hcrra meramente sofra a ação do serrador. Mas sobre isso falaremos mais em tcinpo oportuno.

Tese 3

Quem afirma que a boa obra ou a penitência começam com a aversão lios pecados, antes do amor a justiça, e que nisso não se peca, a essa pessoa contamos entre os heregespelagianos, mas também provamos que ela comete urna tolice contra seu santo Aristóteles.

Esta tese se comprova firmemente a partir do que dissemos acima. Pois, sc é verdade que antes da graça não pode acontecer nenhuma boa obra, ao ~,oiil« de o bem puro não acontecer sequer na graça, e se a penitência certa- iiicrite é uma boa ohra, é forçoso que ela comece com a graça preveniente. I<cf'erimo-nos a penitência salutar, não a de Judas ou dos condenados. Por- i;iiiio, é heresia pelagiana expressa dizer que a penitência começa antes do :iiiior da justiça. O amor da justiça, porém, é graça de Deus, e não natureza. No entanto, para vermos com mais clareza a impiedade da tese de Eck, que- reinos atacar o assunto com um pouco mais de abrangência.

Ensinei nas Expl icaçóes~~ e no Sermão sobre apenitêncialos que a lem- hruriça dos pecados antes do amor da justiça não é salutar a ninguém, mas si111 perniciosa. Por isso, deve-se primeiro tratar de amar a justiça; só então podcr-se-ia detestar o pecado por amor da justiça. Essa doutrina a moléstiai@ cckiaria não chamou de herética, mas afirmou ser ela contrária ao Evangelho c aos saritos pais. Por isso, com um titulo espalhafatoso anteposto a suas te- ses, tr«iiibeteou que iria debater "contra uma nova doutrina" (com a mesma inocl?slia).

I'ois hem, vejamos o que diz o apóstolo Paulo em Rm 4.15: "A lei pro- v i ] ~ ; ~ ;i ira; pois onde não há lei, não há prevaricação." Rm 5.20: "A lei en- iroii sorrateiramente, para que abundasse o delito." C1 3.19: "Alei foi dada

I i M ( 'I . iT,~lii~o~i<'n<~.v do debate .sobre o volor dos indulgêneios, pp. 555s. deste volume. 107 ('i. ,S<.r»ir> </c po<~riiI<.niio. WA 1,319. Ilh I i i i i i c > liilii ~cpciiiliis veres da "modéstia" de Eck, em termos pejorativos. Aqui o irocadi

Ilw ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ l t s l i ~ ~ / ~ ~ ~ ~ ~ l l ~ ~ l i a " .

por causa da transgressão." 1 Co 15.56: "A força do pecado é a lei.'' Com tudo isso o apóstolo quis dizer que, pela lei, o pecado é antes aumentado do que tirado, e que a concupiscência é tanto mais provocada quanto mais é proibida. A expressão mais clara, contudo, é Rm 7.8: "O pecado se aprovei- tou da ocasião que a lei lhe oferecia e despertou em mim toda sorte de concu- piscência."

Permanece, pois, de pé esta tese: sem a graça, a lei mata, aumenta o pe- cado. Ainda que exteriormente refreie a mão, tanto mais acende interiormen- te o espírito contra sua vontade. Tendo em vista que o pecador - ao qual se ordenou que, antes da graça, analisasse seus pecados -deve, necessariamen- te, ter na memória a lei contra a qual pecou, é necessário que provoque uma vez mais as concu~iscências e odeie a lei. aue só ~ o d e ser amada Dor forca da . . graça. Desse modo acontece que se torna hipócrita e pior do que antes, pois finge odiar os pecados que, na verdade, não odeia nem pode odiar sem que antes ame a lei; pelo contrário, passa agora a amar os pecados mais do que antes. Se tivesse coragem, sem dúvida ele mesmo confessaria isso. Tais dou- trinas pestilentas e heréticas fazem com que a Igreja esteja cheia de hipócri- tas, visto que raras vezes ensinam sobre o amor da justiça, sempre, porém, sobre o ódio do pecado; mas eles não sabem nem ensinam como se chega ao ódio do pecado.

E por que me demoro com isso? O próprio Eck admite que o livre arhi- trio antes da graça para nada vale senão para pecar. Como então se atreve a dizer loucuras nesta tese pelagiana, afirmando que não só não peca, mas age de acordo com o Evangelho e os pais quem começa a penitência pela detesta- ção do pecado, isto é, começa a fazer penitência pelo pecar, visto que antes da graça nada acontece no ser humano senão pecar?

Os escolásticos também são de opinião que a contrição deve acontecer no amor. Por conseguinte, o amor é anterior a contrição. O amor, porém, é prazer na lei e vontade de Deus. Se, pois, também ele próprio entende sua te- se no sentido da detestação do pecado que flui do amor, que impudência e te- meridade é essa de chamar isso de nova doutrina, contrária ao Evangelho e aos santos pais? Por isso digo: se acha que sua tese é contrária à minha, ele sustenta uma herética tese pelagiana. Se concorda, é com temeridade e estul- tícia que afirma que isso é doutrina nova e contrária ao Evangelho.

Ademais, nem sequer entende seu Aristóteles que, mesmo sendo um gen- tio cego, vê com mais agudez do que meu Eck que todo ato de virtude provém da livre escolha, da vontade e do amor, e que a privação não pode ser nem co- nhecida nem odiada a não ser que seja conhecida e amada a causa positiva. Todos, porém, concordam que o pecado é privação e a justiça uma causa po- sitiva.

Tese 4

íku,s lrrrnsfurma o castigo eterno empena temporal, isto é, a de carregar a ( 7 1 1 ~ . 0.' ctlnoni-~ 011 OS sacerdotes não têm qualquer poder de impor ou de

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iirur essa cruz, mesmo que, seduzidos por aduladoresperniciosos, possam ler f,,s,sa presunção.

Desta tese até agora não ouvi nenhuma confutação, a náo ser que, na contra-tese de Eck, é dito que ela contradiz a Escritura e o uso da Igreja. Mas iiâo sei se ele possui outra Escritura ou outra Igreja; talvez entenda sob Igreja :i dos malfeitores e seus abusos, e sob Escritura, suas bulas e cartas. A mim iiie basta que naquilo que Deus quer e faz a Igreja nada pode exceto orar. Ela iem as chaves que usa na terra, e não vejo como poderia ligar ou desligar aquilo de que não pode ter nenhum conhecimento, já que se afirma que, para itsar as chaves, é necessário conhecimento. A respeito disso existe abundante material em minhas Explicaçõesiol; quando as vir refutadas, cederei.

Tese 5

Todo sacerdote deve absolver o penitente de castigo e culpa, ou então prca; da mesma forma peca o prelado superior se, sem causa razoabilíssima, rc,,serva coisas ocultas, por mais que isso contrarie aprálica da Igreja, isto é, (10s aduladores.

Também esta tese a de Eck acusa de ser contrária ao uso da santa mãe Igreja. Entretanto, eu não debato sobre o que acontece, e sim sobre o que de- veria acontecer. Os sacerdotes são cerceados pelos bispos, os bispos pelo pa- pa, de sorte que não podem o que devem - confesso que não sei com que di- iciio isso acontece. Vejo o uso, mas exijo o direito, o direito divino, digo eu. li111 lugar dele recebo o direito humano e o uso. Presbiteros e bispos são, por dircito divino, a mesma coisa e outrora o foram, nos tempos em que cuida- v;nn do povo, pregando e ministrando. Assim sendo, não vejo com que direi- io os bispos, tendo deixado o ministério aos presbiteros, arrastaram consigo o (lireito dos presbíteros quando subiram na hierarquia.

Aiiida há uma porção de outras coisas no direito e no uso da Igreja que i130 entendo como puderam acontecer. Tal é o juramento que os bispos são ol>iigados a prestar em troca do páliolos e com o qual são presos em total ser-

107 ('I'. Explieo~des do debnle sobre o volor dm indulgPncios, pp. 55ss. deste volume. I O H O pálic concedido pelos papas foi, inicialmente, um adorno honorifico para bispos que ha-

viuiii se destacada. p. ex. Cesário de Arles. Bonifácio procurou usar o pálio como simbola <Ic siihrnissão a Roma, ordenando aos metiopolitas que solicitassem o pálio do papa. Na niiaiiio, não obteve êxito. Somente no sinodo imperial (franco) de 747 os arcebispos tive- r;itii qiic \c comprometer a receber o pálio do papa, como sinal de sua submissão a Roma. Si>h (ireghrio VI1 (22/4/1073-25/5/1085) 6 que o pálio vai ser definitivamente visto como \iii;il de suhinissão ao papado. Desdc Nicolau 1 (18/12/1058-27/7/1Ml) e Pascoal 11 (14/H/1090-21/I/IIIX) os hispos csttio r,bripddos a prestar o juramento ao papa cni Iriica ili, alio.

vidão a iniquissima Roma. Tal é também o "mês papa1"lm e as "expcctân- cias"it0. Tal é a "reserva de casos"il1 e uma infinidade de coisas semelhaiites. São práticas em voga, mas o contrário é o que deveria acontecer.

Tese 6

Pode ser que as almas satisfaçam pelos pecados no purgatório; mas que Deus exige do moribundo mais do que morrer de boa vontade, é afirmado com a mais infundada temeridade, porque não pode serprovado de modo al- gum.

Também esta tese ninguém tocou até o momento, e sobre isso escrevi mais do que o bastante em outra partellz. Ademais, não faz taiito mal assim o fato de a tese de Eck declarar errôneo tudo o que esta minha tese afirma, por- que muita gente fala muita coisa.

Para não me tornar repetitivo, remeto ao escrito em que tratei dessa questão.

Tese 7

Revela que não sabe nem o que é fé, nem o que é contrição, nem o que é livre arbítrio quem balbucia que o livre arbitrio é senhor de seus atos, sejam bons, sejam maus, ou quem sonha que alguém é justificado não somente pela fé na Palavra, ou que a fé não é suprimida por um crime, qualquer que seja.

Assinalei aqui três erros de Eck: O primeiro: que o livre arbitrio seja senhor de seus atos já é suficiente-

mente refutado por uma única afirmação do apóstolo em Rm 6.20,22: "Éreis escravos do pecado. Libertos, porém, do pecado, fostes transformados em escravos da justiça." Portanto, quaisquer que sejam as circunstâncias da vi- da, somos escravos ou da concupiscência ou do amor, pois o livre arbitrio sempre será dominado por um deles. Assim diz Cristo em Jo 8.34: "Quem pratica o pecado é escravo do pecado." Assim diz também Pedro em 2 Pe 2.19: "O vencido se torna escravo do vencedor."

109 "Mês papal" é uma instituição que Lutero descreve assim: "O ano foi dividido entre a pa- pa. os bispos regentes e as instituiçdes de forma tal que o papa dispde de seis meses alterna- dos no ano, nos quais pode conceder os feudos que vencem em seu mês. Desse modo quase todos os feudos são levados a Roma, principalmente as melhores p~ebendas e dignidades. Aquelas que uma vez revertem para Roma, jamais voltam (...)." ("A nobreza cristã de na- cão alemã, acerca do melhoramento do estado cristão", in: Pelo Evangelho de Cristo, Por- to Alegre. Concórdia; São Leopaldo. Sinadal, 1984, p. 92.)

I I0 Cf. p. 123. riota 93. I I I ('1'. 13. 4 í I 6 . 1 ~ 0 l : t 17, 112 ( ' r . I<i,,li<.rii.fi<:r do dchol,, sohrr o vrilor rim ind~li<l~~~!cior. pp. RZss.

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Se dizes: "Em certo sentido, porém, é verdade que o livre arbitrio é se- nhor, desde que não se exclua a graça", respondo: haja ou não haja tal senti- do, ao teólogo convém falar de acordo com o uso da teologia e da Sagrada Escritura. E visto que obrigam todos os cristãos a se sujeitar às regras de falar por eles inventadas, por que são eles tão livres desprezadores da regra divina? Admito que se possa chamar o livre arbitrio de senhor, príncipe, bispo, rei ou qualquer outra coisa que nos ocorra. No entanto, isso é dito em detrimento da graça de Deus e da compreensão da Escritura, que nos caracteriza com o vocábulo "servidão". Quem entende o livre arbitrio de outra forma, não o entende.

O segundo erro, mais prejudicial, indica com evidência que meu Eck ig- nora o que é fé, pois nega que a pessoa é justificada pela fé somente. Mas ele iambém não compreende o que é ser justificado.

Dizemos, portanto, com Paulo, em Rm 1.17: "A justiça de Deus é nele rcvelada, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá da fé." Porventura deveria o apóstolo ter sido instruído pelos eckianos para que acrescentasse es- ia glosa singular: "mas não só da fé"? Da mesma forma Rm 10.10: "Com o coração se crê para justiça." Observa que a justiça é atribuída somente à fé, a ia1 ponto que ele menciona apenas o coração, sem qualquer referência aos outros membros que poderiam atuarl13. A confissão da boca, diz ele, resulta cm salvação, mas onde a pessoa já é justificada pela fé.

O que quero dizer, para preterir essas tolices insonsas dos sofistas, é isto: iiào há obras que justificam ou fazem justo, senão somente a fé. No entanto, i> justificado faz obras. O sentido da Escritura é este: a justificação é anterior As obras, e as obras são praticadas pelos justificados. Pois não somos justifi- cados praticando obras justas, como diz erroneamente Aristóteles, mas, jus- li ficados, praticamos obras justas, assim como ninguém se torna bispo reali- ~ i ~ i i d o as obras de um bispo, mas, depois de ter se tornado bispo, realiza as i ~ l ~ r a s de um bispo. De igual modo, não são as obras da fé que fazem a fé, liias a fé faz as obras da fé. Não são as obras da graça que fazem a graça, mas ; I graça faz as obras da graça. É por isso que Deus olha primeiro para Abel (110 qual se compraz) e só depois para suas obrasii4. É isto que o apóstolo iliier: somos justificados somente pela fé, não pelas obras, ainda que, como Ipcssoas já justificadas, não omitamos as obras. E por isso ousa continuar di- /c.iido que não há lei para o justoJ15, pois quem já é justo pela fé não necessita iIc Ici, mas faz obras espontaneamente. Esse modo de falar e entender nunca scrá entendido por tais sofistas afogados em suas obras. Pois o que ele diz em I<iii 2.13: "Não os que ouvem a lei, mas os que a praticam serão iiistificados", diz porque são considerados justos, e não porque sejam justifi- c;itlos por obras. Praticar a lei é cumpri-la, ou seja, crer em Cristo.

Eles, porém, citam a Epístola do apóstolo Tiago: "A fé sem obras é

morta." [2.17.1 Em primeiro lugar, o estilo dessa epístola está muito abaixo da majestade apostólica e de nenhum modo pode ser comparado ao de Paulo. Depois, Paulo fala da fé viva, pois fé morta não é fé, é uma ilusão. Mas eis que os teólogos se agarram a esse um versículo com unhas e dentes, e absolutamente nada Ihes importa que o restante da Escritura recomenda a fé sem as obras. Porém este é seu costume: com um fragmento arrancado do contexto arremetem contra toda a Escritura.

Portanto, os que se gabam com o título de teólogos deveriam aprender, antes de mais nada, o que são fé e obras de acordo com as Escrituras, e não condenar imediatamente tudo em que estas se chocam com as opinides inve- teradas deles. Se o povo se choca com isso, que o atribuam a seus infelizes es- tudos, pois não ensinaram o povo a compreender a palavra de Deus e sua ma- neira de falar, necessária para a salvação. Eles próprios são responsáveis por tais escândalos. E com muito perigo que se pregam as obras como anteriores à fé. A fé sem obras, porém, é pregada sem perigo algum. Isso porque o povo está disposto e propenso a confiar em obras, e as obras preponderam com fa- cilidade sobre a fé. Onde, todavia, se ensina corretamente a fé pura, as obras vêm espontaneamente e sem perigo, desde que tenham aprendido que depen- de mais, que depende tudo da fé, que fará obras.

É um horror observar o quanto são ignorantes inclusive os teólogos - quanto mais o povo - no conhecimento da fé que professam. A Igreja está tão cheia de jactância das obras externas, que Cristo parece ter dito a respeito de nossos tempos: "Quando vier o Filho do homem, achas que encontrará fé sobre a terra?" [Lc 18.8.1 Para ser breve: visto que fé é o correto e bom conceitoil6 de Deus, e que qualquer conceito por si só já leva a pessoa às obras, não há dúvida de que quem tem a fé pratica todas as obras. Se já a imagem'" de uma mulher e o amor a ela não nos deixam sossegados, mas, sem lei e sem mestre, fazem mais do que se exige, como não seria a fé muito mais capaz de realizar a mesma coisa? O mundo é governado somente por conceitos, e o cristão não poderia ser governado somente pela fé? Afinal, quem ensina os teólogos sofistas a fazer, sofrer, pensar e evitar coisas tantas e tão grandes por amor de seus conceitos? Não seria apenas o afeto por seus conceitos? Em outra ocasião direi mais sobre isso.

É extremamente ímpio o terceiro erro, em que ele afirma que a fé não é suprimida por nenhum crime, por ser a fé a justiça, e o crime o contrário - injustiça. Sei, porém, que ele me objetará com a invenção da fé infusa e da fé adquirida; mas por acaso é digno de um bom homem, quanto mais de um teólogo, saber que a tese de alguém é verdadeira e, não obstante, procurar ne- la outro sentido, para garrular que ela é falsa, e assim caluniar a verdade por causa de uma expressão ou de um equivoco num vocábulo? Que eximia teolo- gia será essa se, quando alguém diz: "O cão é um animal que ladra", tu con-

113 Sc. na consecução da justiça. 114 Cf. Gn 4.4. 1 1 7 Cf. I Tm 1.9.

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tcstares dizendo: "Não é verdade. O cão é uma constelação celeste", sabendo perfeitamente que o outro usou o vocábulo "cão" em sentido diferente do que tu!

Quem não odeia essa duplicidade, ou melhor, multiplicidade sofista e odiosa num Proteu, quanto mais num teólogo? Visto, porém, que Eck diz no litulo que debate "contra uma doutrina nova", concluo, em favor da simpli- cidade teológica, que ele não está falando de outra fé do que falei eu; do con- trário, não estaria falando contra minha doutrina nova, e o título seria menti- roso. Por isso afirmo que essa sua contra-tese é a mais herética e ímpia que iamais vi, pois nega a fé como a Única que justifica, contra o apóstolo Paulo c o Evangelho de Cristo, afirmando ainda que a fé não é suprimida por ne- iilium crime. Além disso, defende o livre arbítrio como senhor dos atos, con- ti-;I as Escrituras.

Tese 8

Certamente contraria a verdade e a razão afirmar que as pessoas que rriorrem a contragosto têm falta de amor e que, por isso, sofrem o horror do piirgatório - a não ser que verdade e razão sejam a mesma coisa que a opi- niáo dospseudoteólogos.

Esta tese ainda não encontrou contestador, e sobre ela escrevi muito nas I::i-/~licações~~~. Para não entediar, abstenho-me de repetições.

Tese 9

Sabemos que ospseudoteólogos afirmam que as almas no purgatório es- / d o certas de sua salvação e que a graça náo é aumentada nelas, nzas nos ad- ririrainos desses homens eruditíssimospor não poderem apresentar, sequer a i ~ i r f 1010, uma razão verossímil para esta sua fé.

Essa tese Eck atacou muitas vezes, sem nada conseguir, pois ninguém ~iodc saber o que se passa com as almas no purgatório. Com essa confissão de ipiorância escapo facilmente dos argumentos em contrário de todos, porque iiiiigiiém pode ensinar o que não viu, nem ouviu, nem penetrou no coração Iiiiiii;ino~i9. Podemos conjeturar sobre isso e outras coisas semelhantes o qti;into quisermos; mas apenas aos pseudoteólogos convém enaltecer como :ti-iigos certíssimos de fé aquilo que não passa de suposição.

Parte principal e única força de seus argumentos é isto: todo mérito é ci~riscguido aqui e não lá. A isso já respondi o bastante nas Explicações~o.

118 ('1'. lixy>lico~dec do debole sobre o valor dos indulgências. pp. 94s . 11') ( ' 1 ' . 1 <:o 2.9. 12il ('1'. ExplicqRc!~ do debole sobre o volor dos indulgências, pp. 104s

Também não disse que elas conseguem mérito, mas que a graça não é au- mentada, e afirmei que ainda não está provado que náo estão em estado de merecer. Quando isso tiver sido demonstrado, cederei.

Tese 10

É certo que o mérito de Cristo é o tesouro da Igreja e que os méritos dos santos nos ajudam; mas que ele seja um tesouro de indulgências, isso nin- guém faz crer, a não ser um adulador sem-vergonha, os que se qfastam da verdade e algumas práticas e usos inventados da Igreja.

Aqui, por causa da [decretal] declaratória de LeãoiZI, tenho que acres- centar algumas coisas ao que expus amplamente nas Explicações.

Primeiro: seja o que for aquela extravagante e declaratória, certo é que de modo algum está nas mãos da Igreja ou do papa estabelecer artigos de fé, nem mesmo leis referentes a costumes ou a boas obras, porque tudo isso nos é transmitido nas Sagradas Letras. Por isso resta que tenha apenas poder de declarar artigos, além de ordenar cerimônias para a aparência externa da Igreja de Deus, as quais pode revogar caso a consideração da piedade o exija.

Ademais, ao declarar artigos de fé, não deverá empregar pessoas peritas em tradições, direitos e opiniões humanos. Elas não declararão nada de bom. Deve recorrer a teólogos notavelmente eruditos e experimentados na vida, co- mo também pensa João Gérsoni22. E não como erram hoje em dia alguns aduladores pontificais, ao fazerem pronunciamentos sem conhecimento de causa, sem consideração da vida boa, produto de sua cabeça, como se estives- sem certos de serem regidos pelo Espirito Santo. Admitimos que a Igreja não é abandonada pelo Espirito de Cristo. Aqui, porém, não se entende sob Igre- ja o papa e os cardeais, ou mesmo um concilio. Por isso devem ser postas de lado aquela estulta confiança na presença do Espirito e a segurança em emitir juizos. Ao invés disso, deve-se proceder com temor, consultando as Sagradas Letras.

Em segundo lugar: os méritos de Cristo são espírito e vida, graça e ver- dade, conforme lemos em Jo 1.17: "A graça e a verdade vieram por Jesus Cristo." Mas como não está no poder de nenhum ser humano distribuir a graça e a verdade, o Espirito e a vida, o papa ou a Igreja não podem dispen- sar os méritos de Cristo, ou seja, a graça e a verdade. E essa tese eu sustento e sustentarei ainda que um anjo do céu, que dirá o papa, dissesse outra coisa, já que também a Igreja universal e todos os mestres negam unanimemente que a graça é dada por meio de um ser humano.

121 Lutero refere-se ao documento Novo deeretolis, de 9 de novembro de 1518, do papa Leâo X.

122 loâa Charlier de Gérson, 1363-1429. Teblogo, filbsofo e educador. Considerou o misticis- mo a alma do cristianismo, mas se opôs ao misticismo radical. Defendeu o princípio do di- reito rl;i participa~ão de todos os crentes no concílio. respeitando a hierarquia eclesiistica.

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Se disseres: "Mas ele pode conceder os méritos de Cristo a quem quiser", eu respondo: os méritos de Cristo são graça e verdade, sejam dados ou vendidos, distribuídos ou concedidos. Jamais se tornarão outra coisa que os méritos de Cristo, qualquer que seja o uso que deles se fizer. Por isso, as- sirri como o ser humano não os pode conceder, da mesma forma também não (1s pode aplicar, digas o que quiseres.

Argumentarás ainda: "Ele concede os méritos de Cristo por força de seu iiiinistério." Concordo, mas não em relação às indulgências, porque estas contrariam os méritos de Cristo. Os méritos de Cristo são graça e verdade, que tornam melhor no Espírito e mais santo quem os obtém. As indulgências, porém, nada de bom concedem no Espirito; pelo contrário, desobrigam das coisas boas do Espírito, contra os méritos de Cristo. Por isso, dêem atenção a siias palavras e seu uso. Com todo o respeito que Ihes tenho, afirmo que, co- trio reza a expressão, os méritos de Cristo não podem ser o tesouro das indul- ggiicias; eles são, isto sim, um tesouro de imposiçdes e penas a serem carrega- das, contrariando totalmente as indulgências. Por isso, admito que eles são conferidos por força do ministério na absolvição da culpa. Pois ali se trata da cttusa do Espirito, ali os méritos de Cristo atuam pela palavra do sacerdote se o pecador crê - de outra forma, jamais.

Por essa razão, não condeno aquela declaratória, mas deixo-a em seu scntido. Se, no entanto, for interpretada no sentido de contradizer o que foi diio acima, eu a recuso e exijo prestação de contas do que foi dito. Além dis- si!, é preciso comprovar o poder de ditar artigos de fé, ou então apresentar t i t i i r i revelação comprovada. Paulo me proíbe de acreditar em meras pala- vs:1s.

Tese 11

li perder a razão afirmar que as indulgências são um bem para o cristão; 1111 vcvdade, elas são um defeito da boa obra. O cristão deve rejeitar as indul- qi'ri~~iuspor causa do abuso, pois o Senhor diz: '%r amor de mim apago as lirrrv iniqüidades" [Is 43.251, não por amor do dinheiro.

Em SI 39[40].5 o profeta123 chama de loucuras falsas as doutrinas dos se- ics litimanos com as quais se presta culto a Deus sob desprezo de seu manda- ~iiciiio. Quanto mais loucos são aqueles que, apesar de as indulgências serem [lispcnsas de boas obras e penas salutares, ousam oferecer isso ao cristão co- I I I O iirn bem, quando o bem do cristão consiste em estar repleto de boas obras c carregado de castigos da cruz, à semelhança de seu Senhor Cristo!

Ademais, as indulgências são sempre uma falha em uma obra, sendo que iino sc daria o que é dado se não soubessem que recebem as indulgências em iciiil>iii$io. Dessa maneira, fazem seu bem por causa de seu mal, ou por cau-

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I21 I>CII~IIH$BU , ~ ~ . + d a por Lutero para referir-se ao autor dos Salmos

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sa daquilo que é menos bom. Nisso com certeza não se busca a Deus, mas o próprio ser humano.

Experimenta, e verás que digo a verdade. Pois na Itália, onde as indul- gências são oferecidas gratuitamente em toda parte, ninguém Ihes dá aten- ção. Na Alemanha, porém, se não dás, ninguém as dará a ti. As indulgências são de natureza tão assombrosa que reinam de uma forma na Itália e de outra na Alemanha.

João Eck combateu essa tese em Leipzig, mas de tal forma que todo o assunto das indulgências quase acabou num sibilo. Nem ele próprio parece tê-las em alta conta, e oxalá há muito tempo já tivessem sido recomendadas assim como são recomendadas por nosso Eck. Nesse caso, a avidez romana teria levado menos roubo e espólios da Alemanha, e os zombadores roma- nos, zombadores dos povos, não teriam se rido daquela maneira da bárbara rudez dos alemães. Mais sobre isso nas Explicações.

Tese 12

Que o papa pode remitir todo castigo devido pelos pecados tanto nesta vida quanto na futura e que as indulgências são de proveito para quem não cometeu pecado grave124, isso sonham sossegadamente os sofistas totalmente indoutos e os aduladores pestilentos, embora não possam demonstrá-lo se- quer com um vestígio.

Também esta tese não foi agredida por ninguém que eu tenha visto, a não ser pelos ventos da tese eckiana, que, no entanto, não trouxeram chuva alguma.

Mas também essa tese é contrária à mais recente declaratória, que diz125 que a Igreja dispensa das penas pelos pecados requeridas segundo a justiça divina. Por isso digo aqui: afirmei repetidas vezes que a Igreja nada pode contra a justiça divina senão a oração, a menos que se queira compreender a justiça divina de forma equivocada. 'Pois para mim está fora de dúvida que as penas que a Igreja exige do pecador também são exigidas pela justiça divina, de acordo com o pacto que ele126 fez com a Igreja ao dizer: "O que ligares na terra, será ligado também no céu." [Mt 16.19.1 Aí diz claramente que o que está ligado na Igreja também está ligado junto a ele, de forma que estão de acordo a justiça da Igreja e a de Deus em relação ao pecador. Isso, porém, não acontece na maneira corrente de falar, que entende por justiça divina uma outra justiça de Deus, uma justiça à parte, fora do pacto, segundo a qual a Igreja nada impôs ou impde. Se a declaratória fala dessa justiça, digo

124 Non criminosis, n o original. 125 Para referências mais detalhadas sobre essa passagem da Novo decrefoiis de Leão X , cf.

Disputotio Iohonnis Eccii et MorfiniLutheri Lipsioe hnbitne ("Debate de João Eck e Marti- nho Lutero em Leipzig"), WA 2,353-4.

126 Sc. Deus.

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que não lhe darei confiança. Todavia, admito-a como uma opinião, como também a declaratória é produto de opiniões. Pois, como disse, não aceito novos artigos de fé, sejam estabelecidos por quem quer que seja, a não ser que estejam acompanhados de revelação comprovada; também não aceito uma declaratória sobre qualquer artigo se não tiver declarado pelas Sagradas Escrituras, das quais esta declaratória, mais jurídica do que teológica, não contém uma sílaba sequer.

Nesse ponto, contudo, vociferam-me que seria grande e infalível a auto- ridade da Igreja, visto ser governada pelo Espírito. Citam também Agosti- riho: "Eu não creria no Evangelho se não cresse na Igreja." Aqui, no entan- 10, se abre um novo mar de discussão a ser navegado.

Repito o que disse pouco antes: confesso de todo o coração que é grande c infalível a autoridade da Igreja, porque é governada pelo Espírito de Cristo. A certos ráhulas e teólogos bajuladores, porém, devemos o seguinte conceito de Igreja: ali tomam por "Igreja" os escrivães e penitenciários ou mestres do palácio do papa (pois os papas raras vezes se ocupam com esses assuntos em pessoa), quando, na verdade, se trata de toda a Igreja universal e não de uma pequena e, por vezes, da pior parcela da Igreja Romana. Por isso também saem de Roma bulas e definições dignas de tal Igreja.

Quanto a citação de Agostinho, digo, em primeiro lugar, que o sentido espalhado por certa gente é o seguinte: "Eu não creria no Evangelho se não cresse na Igreja, ou seja, creio mais na Igreja do que no Evangelho." E que cssa é sua compreensão evidencia-se do fato de atribuírem ao papa a autori- dade de interpretar a Escritura, até mesmo só a ele. Depois a':' opoém a to- dos a respeito dos quais ouvem que duvidam de cartas ou de atos pontificais, ou a eles resistem.

Nem o próprio Lúcifer nem todos os hereges em conjunto cwceberam i i ~ i ~ a opinião mais condenada do que essa, sim, nem mesmo umajmpiedade scnielhante a essa. Pois disso se segue que o papa e os notários do palácio es- ixci acima do Evangelho e, conseqüentemente, acima de Deus, enquanto Lú- cilèr apenas aspirava a ser igual a Deus. Por meio dessa nova sabedoria nos iipresentam o papa como aquele homem a respeito do qual diz Paulo: "Ele se crgue acima de tudo que é adorado ou se chama Deus." [2 Ts 2.4.1 Pois a Igrcja é criatura do Evangelho, incomparavelmente inferior a ele, como diz I'iago: "Ele nos gerou de livre vontade pelo verbo de sua verdade." [Tg 1.8.1 I; I'aulo afirma: "Eu vos gerei pelo Evangelho." [l Co 4.15.1 Por isso ames- iiiu palavra é chamada de útero e ventre de Deus, 1s 46.3: "Os que sois carre- gados em meu ventre e estais no meu útero", isso porque somos nascidos de I>cos e somos carregados por sua palavra poderosa.

Se o beato Agostinho tivesse pretendido o que lhe atribuem sem a mini- iiia culpa da parte dele, quem não desejaria jamais ter ouvido seu nome? Por isso i. necessário ir as fontes. Pois escreve o beato Agostinho contra a epístola

121 Sc. essa cilação.

I 128 Fundomenti. 129 Vicente de Lerino, falecido antes de 450, monge e presbitero em Lerino, foi teólogo semipe-

lagiano. Pelágio ensinou que o ser humana se encontra por natureza em estado de neutrdi-

1 dade moral. sem vicio nem virtude, podendo optar livremente pelo vicia ou pelavirtude. Os semipelagianos foram seguidores moderados de Pelágio. Ensinavam que o ser humano ne-

I ccssita da grasa divina para conduzir o que nele há de bom ao caminho da virtude. 130 <'r. I>. 112. notu 167.

i

Os fundamentos~~~, dos maniqueus - não contra a de Vicentel29, como dizem eles -, no capítulo 5: "Eles se dedicam tanto aos livros e as palavras, que não se preocupam em mover sequer o pé em busca da origem ou do sentido." Além disso, aqueles fanfarrões reproduzem as seguintes palavras de Agosti- nho: "Não creria no Evangelho se a autoridade d a Igreja não me comovesse", como se ele dissesse: "Não creria no Evangelho se não cresse na Igreja." Não admira, pois, que se tenha empenhado tanto trabalho na com- preensão dessa frase e que dai tenham emanado tantos riachos de opiniões. Pois é um sofrimento merecido que sejam torturados com muitas interpreta- ções aqueles que não se dignam de ler um livro e um autor, mas tentam adivi- nhar de suas próprias cabeças o sentido de frases extraídas de qualquer parte e distorcidas.

Em primeiro lugar, é expressão característica do beato Agostinho dizer que foi comovido por esta ou aquela autoridade. Assim, por exemplo, no li- vro I das Retratações: "Depois de haver lido alguns intérpretes das palavras divinas, cuja autoridade me comoveu", etc.

Em segundo lugar, aqui ele não entende por "Igreja" o papa ou Roma, mas a Igreja universal espalhada pelo mundo inteiro, como diz imediatamen- te após: "Pois cri no Evangelho quando pregado por católicos." Portanto, conteúdo, intenção e suma do B. Agostinho naquela passagem é o seguinte: "Não creio em vós, maniqueus. Por que não? Porque não encontro no Evan- gelho nada a respeito de vós. No entanto, os católicos vos detestam por todo o mundo, me encarecem o Evangelho e o pregam constantemente em toda parte. E eu não teria crido no Evangelho, não me tivesse movido com essa sua autoridade o mundo inteiro, que ensina de forma tão unânime. Assim sendo, pela mesma autoridade sou, ao mesmo tempo, levado a não crer em vós, porque nada leio a respeito de vós no Evangelho, no qual creio movido pela autoridade do mundo inteiro." Disso se evidencia que o que Agostinho quer é isto: por tão grande consenso de todos pode-se comprovar o Evange- lho e a Igreja e rejeitar as heresias contrárias a tão grande multidão, em espe- cial onde aqueles com os quais se trata aceitam os livros dos quais aquilo é provado.

Que esse é o pensamento do beato Agostinho fica evidente a qualquer pessoa que confira o que antecede e o que se segue aquela citação e que fique atenta a intenção de Agostinho. É em vão que Gérson, é em vão que Maron130, é em vão que também outros querem entender isso como referente a Igreja primitiva, outros ainda a Igreja incluindo Cristo Deus. Pois também no livro das Confissões Agostinho diz que não foi pequeno o impulso que re-

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cebeu para a fé em Cristo por ter visto que as Sagradas Escrituras receberam ianta autoridade de Deus, ao ponto de usufruírem em todo o mundo o mais alto grau de autoridade. Assim, também aqui se diz movido por tão grande inultidão que, em todo o mundo, tem consenso sobre o Evangelho, no qual nada encontrou a respeito dos maniqueus. Por isso não pode crer nos mani- queus, detestados por aqueles que viu aceitarem o Evangelho de tal modo que sua autoridade o moveu a crer que este é o Evangelho. Também não é correto dizer que o Evangelho é reconhecido pela aprovação por parte da Igreja, vis- to que Agostinho nada diz a respeito de tal aprovação, tanto mais se entendes por "Igreja" a Igreja Romana. Agostinho refere-se à multidão do mundo in- teiro, o que não é de somenos autoridade, visto que, sem o maior milagre de Deus, não poderia acontecer que o Evangelho se espalhasse e crescesse de tal modo, com tantos tiranos se opondo e tantos cristáos morrendo. Se ele não tivesse visto acontecer essas coisas, não teria crido no Evangelho. Que vem a significar isso? Por acaso não crerias, mesmo que todo o mundo se enfureces- se contra o Evangelho? Por isso afirmei que Agostinho fala mais no sentido de dissuadir os hereges e comprovar a fé católica (pois é disso que se ocupava riaquela época) do que a respeito de sua própria fé, que nasce no coração não pela autoridade de quem quer que seja, mas somente pelo Espírito de Deus, ainda que a pessoa seja movida a ela pela palavra e pelo exemplo. [Ele fala assim] porque, com esse exemplo a favor da fé, se resiste com força aos here- ges, como se quisesse dizer: "Eu não poderia defender desta forma contra vos esta fé que tenho no Evangelho, se não me movesse esta autoridade da Igreja." É algo semelhante a dizer: "Da mesma forma não teria crido em Ilcus, se não tivesse crido no pregador Paulo", porque a fé vem unicamente do ouvir. Pois como crerão naquele de quem nada ouviram?ljl Assim, a fé é provada somente pelo exemplo da Igreja toda no mundo inteiro. Pois como conseguiria persuadir se cresse sozinho, por maior que fosse sua fé, sem po- clcr referir-se ao exemplo de outros, um exempla o mais potente possível?

Por conseguinte, a frase "eu não creria" deve ser entendida necessaria- iiicnte da seguinte forma: "Eu não poderia ser persuadido nem persuadir a crer"; do contrário, afirmaria coisas totalmente erradas, visto que só o Espi- rito Santo leva alguém a crer. Quero fazer outra comparação: João diz: "Quem não ama ao irmão a quem vê, como pode amar a Deus a quem não v:'?" [l Jo 4.20.1 Pois é impossivel amar ao irmão se não for amado em Deus liriineiro. O sentido, portanto, é o seguinte: "Não prova que ama a Deus, qiic não vê, quem não mostra que ama ao irmão, ao qual vê." Ai se percebe o quanto estão longe de Agostinho os que não observam esse modo caracteris- iico de se expressar, e com quanta inépcia o aplicaram ao pontífice romano e i) Igreja Romana.

Poderás replicar: "Cristo orou por Pedro, dizendo: 'Para que não esmo- icca tua fé.' '' [Lc 22.32.1 Compreendendo-se "esmorecer"~~2 na maneira la-

131 ('I. Kni 10.11,14. 112 I>r/nure, no origiiial.

tina de falar, está claro que a fé de Pedro esmoreceu quando ele caiu, tendo negado a Cristo. Por isso, naquela ocasião, a fé de Pedro permaneceu não em Pedro, mas na virgem Maria, e surgiu no criminoso crucificado à direita. Pois Pedro tem a mesma fé que todos os demais, como diz Agostinho no li- vro I de Da Trindadelj3: "Esta é minha fé porque é a fé católica." Desse mo- do, a fé de Pedro nada tem a ver com a Igreja Romana, porque o sentido é es- te: a fé de Cristo (que é a de toda a Igreja), fé que naquela vez estava em Pe- dro, jamais esmoreceria. Tomando-se, porém, o termo "esmorecer" na acepção hebraica, ou seja, no sentido de "acabar, deixar de existir totalmente e jamais ser restabelecido", claro está que a f é de Pedro certamente caiu, po- rém jamais deixou de existir, visto que se reergueu da queda. Mas nada se po- de concluir dessa fé pessoal para algum bispo, nem qualquer coisa dessa fé diz respeito ao sucessor, segundo o conteúdo próprio das palavras.

Tese 13

Demonstram que a Igreja Romana é superior a todas as outras a partir dos mais frios decretos dos pontifces romanos, surgidos nos últimos 400 anos; contra esses, porém, estão as histórias comprovadas de 1.100 anos, o texto da Escritura Divina e o decreto do Concilio de Nicéia, de todos o mais sagrado.

Já expliquei bastante esta tese no Comentário134 publicado, e direi algo mais a futuros adversários. Entrementes, visto que essa tese é escandalosa aos ouvidos piedosos, isto é, invejosos e soberbos, quero acrescentar algumas poucas coisas, para que não saia desprotegida. Por isso provo, em primeiro lugar, que cada cidade deve ter seu próprio bispo por direito divino, o que de- monstro a partir de Paulo, que diz em Tt 1.5: "Por essa razão te deixei em Creta, para que corrijas o que falta e constituas presbiteros sobre as cidades, conforme te ordenei." Que esses presbiteros são bispos, atesta Jerônimo e mostra a continuação do texto, quando diz: "E preciso que o bispo seja irre- preensivel", etc. [Tt 1.7.1 Em sua 29a carta a Jerônimo, também o B. Agosti- nho, ao descrever um bispo, acrescenta a razão, dizendo: "Pois era uma ci- dade", como se quisesse dizer: "Não se tratava de um simples presbitero, mas era um bispo aquele do qual falo, pois era uma cidade que ele presidia."

Em segundo lugar, suponho que Cristo tem ou já tinha uma vez cristãos em todos os cantos da terra, como no extremo da India e da Etiópia e em ou- tras regiaes, de acordo com S12.8:"As extremidades da terra por tua posses- são", e com SI 71[72].8: "Ele dominará de mar a mar, e desde o rio até os confins do globo terrestre."

133 De Trinilole. 134 CI. Cornenlúrio de Lurero sobre o 13: lese a respeilo do poder do papa, pp. 267ss.

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Em terceiro lugar, suponho que cristãos fiéis podem ser perfeitos e po- bres, tendo abandonado todos os seus bens, de sorte que nada de próprio possuam.

Concluindo: Admitamos que esses fiéis se encontrem em algum lugar no extremo do

inundo, perfeitos e pobres - crês que seria da vontade de Cristo, que queria que sua lei fosse suavellr, que seus fiéis fossem buscar de tão longe e a custos ião elevados um bispo paliado e confirmado por Roma? Neste caso, na ver- dade teria imposto a sua Igreja um Ônus maior do que jamais impôs à sinago- ga. Ele os teria inclusive coagido a renunciar à pobreza evangélica e, despre- zando seu próprio mandamento136, os teria coagido a se preocupar e inquietar com a obtenção de riquezas e custas para conseguir os pálios e as confirma- ç6es. Ora, se é lei divina receber todos os bispos de Roma, não se deve infrin- gir essa lei por causa do lugar ou das circunstâncias; e, por esse motivo, seria iiecessário infringir outra lei divina, a saber, não se inquietar com o dia de amanhã, como ensina Mt 6.34. Pois é impossível que seja percorrido um ca- minho tão longo, partindo de tantas extremidades da terra, por aqueles que, de acordo com o Evangelho, não se preocupam com o dia de amanhã, pois iião terão os meios necessários.

Se dizes: "O pontífice romano pode comissionar os bispos vizinhos com seu poder", respondo: neste caso já não seria lei divina que se solicitem os bispos da cidade de Roma, pois a lei divina não pode ser mudada ou transfe- i-ida para alguém outro por parte daquele a quem pertence. Aliás, por que iiio transfere também hoje esse poder aos primazes? Que há que o impede se- 1130 a perda de lucro e glória?

Imagina, porém, este caso: uma Igreja é capturada por inimigos, de sor- tc que não podem enviar a Roma a solicitação de um bispo. Que deve ela fa- zcr? Se se trata de direito divino, o cativeiro não é desculpa. O direito divino 1130 está condicionado a nenhuma circunstância, devendo ser observado aci- iiia de todas as coisas e em todas as circunstâncias. Se argumentas: "Basta o ~lcsejo de querer enviar", digo: por que não basta tal voto também em outros c~~iiscopados, que estão exauridosl37, distantes de Roma, e são obrigados a compra- um bispo para seu grande prejuízo (contra o amor)?

Segundo: da palavra pela qual Paulol3s atribui a cada cidade um bispo (Iioje chamados pastores) segue-se que os bispos, patriarcas, primazes que cxistem hoje, existem apenas por direito humano, como também o indicam i i s decretos através dos quais os pontífices romanos se arrogam a constituição ~ l c todas as Igrejas e dignidades. Desse modo, de direito divino, o papa de

135 Cf. Mt 11.30 136 Cf. Mt 6.19. 117 1 ~ ~ i \ i o [ , ~ d s ~ crdiii erauriJo, wla rcptiida ;Jmpr3 do, pdlio, O dc h1ddUn.u ;u,iava 20

iiiil 1l.iriiir. 4uc iivrrani que icr payw ir:, \ i l r \ em nove ano,, em ;on,rqmJtn:ia dar marte, \i.;c>,i$a\ .Ir. \eu. iiiulxes. Ao icnipode I uicro. corrtprou o palio o conhc.'iaoer'ontroicr- tido Alberlo de Brandenburgo.

138 <'I'.Tl 1 .5 .

382

forma alguma é superior a qualquer um, ou então só é superior aos pastores. Sobre os demais, os de posição intermediária e superior, ele é superior por seu direito e uso, pelo qual também é superior aos cardeais. E assim como um pastor não tem preferência sobre outro de direito divino, da mesma forma também nenhum bispo a tem sobre qualquer outro. Pois todas essas coisas são ordenadas pela Igreja.

Disso se segue ainda: visto que um único bispo romano não pode ter sob seus cuidados todas as paróquias (somente sobre elas ele é superior de direito divino, se é que é superior, como já disse), não se pode crer que Cristo quis comprometê-lo de direito divino com algo impossivel. E, por causa disso, ele também não é, de direito divino, superior a todos os demais. E se não é supe- rior a todos, pela mesma razão não o é sobre nenhum particularmente. As- sim, todos os bispos de todas as cidades são iguais de direito divino.

Ora, quanto ao que tratamos no inicio, o Concílio de Constança deter- minou que o concilio está acima do papa, assim como, aliás, preservou, na mesma oportunidade, a prática dessa determinação ao depor e investir o pa- pa. Se, no entanto, o papa é superior a todos de direito divino, o concílio co- meteu e definiu uma heresia, porque é heresia condenar o direito divino e es- tabelecer o contrário.

Se, porém, disseres: "O concilio não investe nem depõe o papa, mas um homem, sendo que o papado permanece sempre", respondo: esta é uma in- venção ridícula e insonsa. Pois dai se conclui que ele não depôe o papa na qualidade de papa, mas somente um homem. Logo, o papa deposto continua sendo papa, porque permanece sendo o que era antes, visto que nada foi em- preendido contra seu papado. Por que me demoro nesse assunto? Ele não age contra o homem, mas contra o papa na qualidade de papa, porque lhe tira a administração, como também tem o poder de transmitir a administração, da mesma maneira como o próprio papa investe um bispo, onde, em todos os casos, não investe um homem como homem, mas um bispo na qualidade de bispo, conferindo-lhe o direito de administrar. Do contrário, também neste caso se poderia dizer: Não investi um bispo ou um pontífice, mas um homem, sendo que o episcopado permanece. Eles inventaram essas fantasias porque transformaram "episcopado" num conceito que designa não um oficio, mas uma dignidade (latente em não sei que realidade universal).

Se, pois, o papa é papa de direito divino, não se pode depô-lo de forma alguma, seja ele bom ou mau, herético ou católico; deve ser tolerado até a morte, assim como Davi tolerou a Saul, a quem Deus ungira rei de direito di- vino. Por isso, erram uma vez mais e são heréticos os decretos que estabele- cem que um papa deve ser deposto por heresia, porque o estabelecem contra o direito divino, visto não haver instância superior que possa depô-lo. Se, contudo, existe alguém superior - o concilio, por exemplo (o que, aliás, é verdade) -, o papa já não é superior a todos de direito divino, mas recebe es- sa posição superior do direito humano do concílio, devendo, por sua vez, aceitar que ela seja mudada conforme o arbítrio do concílio.

Mais sobre isso (como já disse), se for provocado. Pois devem-se ter em reserva ariiias de defesa contra a pertinácia dos êmulos. Por fim, repito o que

383

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disse n o começo: confesso e defendo inteiramente o primado d o pontífice ro- niano, por maior que seja, tenha sido e venha a ser. Apenas tenho consciên- cia de que estabelecê-lo de direito divino constitui u m dogma novo, porque iieiihum dos antigos pais faz referência a este artigo de fé; ainda que tenham investigado com tanta piedade e dedicação tudo o que diz respeito a nossa fé, ti20 agiram o u viveram d e acordo com ele. E eu nâo suportarei, de forma al- guma, que todos eles sejam declarados hereges. E dia a dia agrado mais a iiiiin mesmo e me orgulho d e ver meu nome tornar-se cada vez pior, pois im- porta que cresça a verdade, o u seja, Cristo, e que eu diminuallg. É maior a alegria que me dá a voz d o esposo e d a esposa d o que o medo que me causa a gritaria dos luxurientos próceresl*. Estou certo de que as pessoas que vejo contra mim não sào, elas próprias, os autores d o mal, e também não as odeio. Beemote, porém, aquele príncipe d o mal, que reconheço por suas tre- vas, quer me amedrontar, se pudesse, e extirpar a verdade de seu reino, fa- ~ c i i d o uso de mim. No entanto, aquele que está em nós é maior d o que aquele que está n o mundo'4'. Sob sua chefia, o inimigo nada conseguirá. Amém.

O tempo presente julga mal, melhor será o juizo d a posteridade.

Um Sermão sobre a Preparação para a ~ o r t e ' M. L. A.'

A morte esta constantemente presente na vida humana. É também o ponto final da mesma. Mais cedo ou mais tarde, cada pessoa precisa enfrenta-la.

Na época de Lutero, bem como na Idade Média, a morte era vista como o impla- cável "último inimigo" (1 Co 15.26) do ser humano. As pessoas sentiam-se terrivel- mente atemorizadas pelas "imagens" da própria morte, do pecado, cujo "salário" é a morte, segundo a compreensão bíblica (Rm 5.12; 6.23; 7.13), e do inferno, o paradei- ro dos pecadores não arrependidos. Muitas obras de arte mostram tais imagens com abundantes detalhes.

Para debelar esses temores, as pessoas procuravam consolo de todas as maneiras possíveis. Boa parte da religiosidade popular daqueles tempos nada mais era do que a manifestação de tal rirocura. Surgiu também toda uma literatura oastoral de consolo. que \ i i i h ~ s ~ l eii~0iitr.l dc$,c\ ~ii,çio,. O m.ii, :<inlic~iild livr, i dcs\c gencro cr:i ,I urre, dia murrrr'. .Ir' 1470. I.iniberii J.ii.1 Y ~ I I I S ~ ~ I I P I ~ L - iIMY?~15241. d 3iiiicrior dc luicro . . na Ordeni dos Agostinianos Eremitas, publicou em 1515 um livrinho intitulado Sobre o imifoçdo do morrer solicifo de Crislo5, uma antologia de orações medievais referen- tes ao assunto.

No inicio de maio de 1519, Marcos Schart (m. 1529), conselheiro do principe- eleitor da Saxônia, Frederico, o Sábio (1463-1525)6, pedira a Lutero, por intermédio de Jorge Espalatino7, uma orientação sobre a preparação para a morte. Lutero, muito ocupado com importantes discussões teológico-eclesiásticas, indicou-lhe o livrinho de Staupitz, redigindo o presente sermão apenas em meados de outubro de 1519. Em 1P de novembro, enviou os primeiros exemplares a Espalatino, para que este entregasse alguns a SchartR. Ainda existe o exemplar com a dedicatória do punho do próprio Luteroq. O autor recebeu do conselheiro, em sinal de agradecimento, 10 florins, que emprestou imediatamente a um pobre.

1 Eyn Sermon von der bereylung zum slerben, W A 2,685-97. Tradução de Annemarie Hohn e Luis M. Sander.

2 Morrin Lurher Augusriner (Martinho Lutero, agostiniano). 3 Ars moriendi.

-- 4 Cf. p. 35, nota 2 e p. 402, nota 9.

11'1 ('1. Jo 3.30. 5 Von der Nachfolgung des willigen Sterbens Chrisli. Lutero falou do libellw. de imitundo

140 o tcrmoprocorum naa tem registro léxico, embora não haja dúvida sobre a grafia do origi- inorrr Chrisri ("livrinho sobre a imitacão da morte de Cristo") em sua carta a Espalatino ri;il. 'Talvez se possa ler procerum - coma fizemos, seguindo a sugestão de loh. Georg I de R dc riiaia de 1519 (WA Br 1,381,!3s. - nP 171). WAI.c'H, cd.. Dr. Mortin Luthers sdmrnrliche Schrijlen, St. Louis, Concardia, 1888, v. 0 Cf. p. 62. nola 19, p. 200, nota 7 e pp. 426s., nota 8.

I K , col. 875. nota I . 7 Cl'. 1,. 35. iiola 3 ep. 233, nota 2.

141 ('1'. I Jo 4.4. X i ' ; i r i ; i ;I I ' \ l x i l ; i i i t , o de I:' <Ic ~iovernbro de 1519 (WA BT 1,548s. - nP 215). 0 " A o SI M;iii . i>h Srli;irl, tiieii cliieri<lo ;amigo."

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O sermão mostra Lutero como pastor que vai ao encontro dos anseios existenciais das pessoas, enfrentando suas mais profundas angústias e preocupaçdes a partir da teologia da cruz. Desvia a atenção das pessoas das terríveis imagens que as atemorizam ç a dirige para Jesus Cristo, que na cruz venceu a morte, o pecado e o inferno. Em < 'risto resolve-se também o velho problema da predestinação. Fé evangélica é agarrar- sc a esse Cristo que é vida. A fé, pois, é algo bem concreto, que sustenta a pessoa não ;apenas no dia-a-dia, mas também no fim desta vida, na morte. Os "documentos" da vida que se tem em Cristo, as "promessas visíveis" de Deus, são os sacramentos, rece- I~idos na fé. Naquela época, Lutero ainda considerava como sacramentos, além do Ba- iismo e da Santa Ceia (Eucaristia), a Penitência (confissão dos pecados e absolvição) e ;I undo dos enfermos (Extrema-Unção). Pouco depois, não mais veria nestas duas ú1- tiiiias práticas sacramentos instituídos por Cristo. Importante também é, justamente ii;i hora da morte, o fato de o cristão fazer parte da comunhão dos santos, confessada tio Credo Apostblico, ou seja, da comunidade terrena dos cristãos juntamente com a cnmunidade celeste dos anjos e dos santos. No presente escrito, Lutero mostra com clareza que a justificação pela fé é o poder pelo qual se pode viver e também morrer, e i~itc Jesus Cristo é o único consolo e apoio firme náo só na vida, mas também na mor- 1,s.

Este sermão é uma das mais belas obras de toda a literatura pastoral dos primór- dios do cristianismo evangélico. A procura por ele foi tanta que, ainda no ano de 1519, isto é, em pouco mais de dois meses, foi reeditado cinco vezes. Até 1525 houve,

;ti> todo, 21 reediçdes, além de duas traduçdes latinas - um sinal inequívoco de sua enorme popularidade.

Joachim Fischer

1. Como a morte é uma despedida deste mundo e de todos os seus afaze- res, é necessário que o ser humano disponha com clareza sobre seus bens tem- porais, assim como devem ficar ou assim como pretende ordená-los. Ele deve hzer isso para que, depois de sua morte, não permaneça motivo para rixa, clisc6rdia ou algum outro mal-entendido entre seus parentes. Trata-se de uma dcspcdida corporal ou exterior deste mundo, em que o ser humano abandona c se despede de seus bens.

2. Em segundo lugar, devemos despedir-nos também espiritualmente. Is- l i ) E : unicamente por causa de Deus, devemos perdoar amavelmente todas as Ilrssoas, por mais que nos tenham ofendido. Por outro lado, unicamente por iiiiisa de Deus, devemos também desejar o perdão de todas as pessoas, mui- ,. . I . . . I \ c ds quais sem dúvida ofendemos, ao menos com mau exemplo ou com ittriios boas obras do que Ihes devíamos segundo o mandamento do amor fra- i i i t i ; i I cristão. Devemos fazer isso para que a alma não fique apegada a algum :ihl%çr ria terra.

386

3 . Quando nos despedimos de todos na terra, então devemos voltar-nos para Deus somente, pois é para lá que se dirige e é para lá que nos conduz o caminho da morte. Aí inicia a porta estreita, o caminho apertado para a vidalo, por onde cada um deve se aventurar com bom ânimo, pois o caminho é, por certo, muito estreito, mas não é longo. Ocorre neste caso o mesmo que acontece quando uma criança nasce, com perigo e temores, da pequena mo- radia do ventre de sua mãe para dentro deste vasto céu e desta vasta terra, is- to é, vem a este mundo. Da mesma forma o ser humano sai desta vida pela porta estreita da morte. Embora o céu e o mundo em que vivemos agora se- jam considerados grandes e vastos, tudo é muito mais apertado e menor em comparação com o céupue nos aguarda do que o ventre materno o é em com- paração com este céu. E por isso que a morte dos queridos santos é chamada de novo nascimento; é por isso também que o dia a eles dedicado é chamado, em latim, de natalei', dia de seu nascimento. No entanto, a estreiteza da pas- sagem para a morte faz com que esta vida nos pareça ampla e aquela, estrei- ta. Por esta razão devemos crer nisso e aprender do nascimento corporal de uma criança. Assim diz Cristo: "Uma mulher, quando está para dar a luz, sente medo. Mas depois de dar a luz, já não se lembra do medo, porque, atra- vés dela, um ser humano nasceu ao mundo." [Jo 16.21 .I O mesmo vale para a morte: devemos livrar-nos do medo e saber que, depois, haverá muito espa- ço e alegria.

4. Tais arranjos e preparativos para essa viagem consistem, em primeiro lugar, em providenciar uma confissão sincera (principalmente dos pecados maiores12 e dos que, no momento, conseguimos lembrar com o máximo es- forço) e os santos sacramentos cristãos do santo e verdadeiro Corpo de Cristo e da Extrema-Unção, em desejar estes sacramentos com devoção e em recebê- 10s com muita confiança, na medida em q u e é possível obtê-los. Onde isso não é possível, o anseio e desejo desses sacramentos deve, mesmo assim, ser consolador, e não devemos nos apavorar demais com issoi3. Cristo diz: "To- das.as coisas são possíveis a quem crê." [Mc 9.23.1 Pois os sacramentos outra coisa não são do que sinais que servem a fé e incitam a crer, como ainda vere- mos. Sem essa fé, eles de nada aproveitam.

5. Em todo caso, devemos tratar, com toda a seriedade e empenho, de estimar grandemente e honrar os santos sacramentos, de confiar neles livre e alegremente e de colocá-los de tal forma na balança que, em comparação com o pecado, a morte e o inferno, eles pesem muito mais. Também devemos preocupar-nos muito mais com os sacramentos e suas virtudes do que com os pecados. Devemos, contudo, saber como prestar a devida honra aos sacra- mentos e quais são suas virtudes. Honrá-los consiste em crer que é verdadeiro

10 Cf. Mt 7.14. I I Em latim: dies nalalci = dia do nascimento. O dia da morte dos mártires era festejado co-

mo o dia de seu nascimento para a vida eterna. 12 Isto é. mortais. A Idade Média elaborou definitivamente a doutrina dos sete pecados mor-

Vais (ou capitais): soberba, avareza, gula. luxúria. inveja, ira, tédio. 13 Irto é. com <i fato de não podermos recebê-los.

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c, qiie me sucederá o que os sacramentos significam e tudo o que Deus neles Iiila e indica. Devemos, portanto, dizer juntamente com Maria, a mãe de i>cus, com fé firme: "Que me suceda conforme tuas palavras e teus sinais." 1l.c 1.38.1 Visto que neles Deus mesmo fala e coloca sinais por intermédio do s;iccrdote, não se poderia desonrar Deus mais em sua palavra e obra do que iliividando se é realmente verdade. E não se poderia prestar a Deus maior Iioiira do que crer que é verdade e confiar nisso livremente.

6. Para reconhecer as virtudes dos sacramentos devemos conhecer pri- iticiro as desvirtudes por elas combatidas e contra as quais nos foram dadas. Sào três: a primeira é a imagem horrivel da morte; a segunda, a imagem ater-. rtidora e multifacetada do pecado; a terceira, a imagem insiiportável e inevi- i:ivcl do inferno e da condenação eterna. Ora, cada uma dessas três imagens cicsce e fica grande e forte por causa daquilo que lhe é acrescido: a morte ioiiia-se enorme e horrível porque a natureza pusilânime e desalentada grava cvsa imagem fundo demais e a mantém demasiadamente diante dos olhos. A ism o diabo acrescenta a sua parte, para que o ser humano se concentre pro- Iiiiidamente na aparência e imagem terrível da morte, ficando, assim, aflito, viiliierável e medroso. Então o diabo certamente lhe apresentará todas as iiiortcs terríveis, repentinas e más que uma pessoa já viu, ouviu ou sobre as qii:iis já leu. Além disso, incluirá também a ira de Deus, como ela, em tempos ~l;issados, atormentou e arruinou os pecados aqui e acolá. Com isso, o diabo i~iici induzir a natureza pusilânime ao temor da morte, ao amor pela vida e 21 ~~ic<~ciipação com ela, de sorte que o ser humano, sobrecarregado com tais ~)i.iii;iiiientos, se esqueça de Deus, fuja da morte e a odeie e, assim, no final se I rv~,lc c permaneça desobediente a Deus. Pois quanto mais profundamente a I I I # I I ic C contemplada, encarada e reconhecida, tanto mais difícil e perigoso é o iii<>i-rcr. Durante a vida, deveríamos ocupar-nos com a idéia da morte e ~oiilri~iitar-nos com ela enquanto ainda está distante e não nos atormenta. M;is :i« morrer, quando a morte, por si mesma, já é forte demais, ocupar-se C-otii (,Ia é perigoso e de nada serve. Então devemos afastar sua imagem de itosh;i iiicnle e recusar-nos a vê-la, como iremos ouvir. Portanto, a morte pos- ,.!li \cii poder e sua força na pusilanimidade de nossa natureza e no fato de ser i,iic:ir:ida ou contemplada de modo excessivo e em época inoportuna.

7. 'Também o pecado cresce e se torna grande pelo fato de o encararmos rili csccsso e de pensarmos nele com demasiada insistência. Contribui para is- io :i piisilaiiimidade de nossa consciência, que se envergonha diante de Deus e \i. :ii.iiso Iiorrivelmente. Ai o diabo encontrou a arapuca que procurava: ai ele l,i\r c111 apuros; aí torna os pecados tão numerosos e grandes; ai vai pôr dian- i , . (Ic iiossos olhos todos os que pecaram e quantos foram condenados com liciii iiiciios pccados. Assim, mais uma vez, o ser humano vai esmorecer ou ii:ii~ (liicicr iiiorrer c, desta maneira, esquecer-se de Deus e persistir na deso- I~c<l i~ i i i i ; i até ii morte. [Isto acontece] principalmente porque o ser humano .ivivtlit: i iliic, naqucle momento, deve concentrar-se no pecado, e que seja < < r i icill c provciioso ocupar-se coni isso. Então ele se descobre despreparado i. ilcs:t.jrii;ido. a tal ponto, que até todas as suas boas obras se transiormararii V I I I ~~cc : ic l~~s . 1)isso rcsiili;iiii forçosamente um morrer contrariado, desobe-

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diência a vontade de Deus e condenação eterna. Pois não há razão nem tem- po para examinar o pecado naquela hora; isso deve ser feito durante a vida. Assim, o espírito maligno nos distorce tudo: em vida, quando deveríamos ter constantemente diante dos olhos a imagem da morte, do pecado e do inferno (conforme diz o SI 50[51].3: "Meus pecados estão sempre diante dos meus olhos"), ele nos fecha os olhos e nos oculta estas imagens. Na hora da morte, quando deveríamos ter diante dos olhos apenas a vida, graça e salvação, en- tão é que ele nos abre os olhos e nos amedronta com as imagens vindas em época inoportuna, para que não vejamos as imagens certas.

8. Também o inferno fica grande e cresce quando nos concentramos de- mais e refletimos com afinco sobre ele fora da época apropriada. Para isto contribui enormemente o fato de não se conhecer o julgamento de Deus. O espirito maligno impele a alma a onerar-se com curiosidade desnecessária e inútil, mais ainda: com o empreendimento mais perigoso de perscrutar o mis- tério do desígnio de Deus para saber se é predestinada ou nãol4. E aq~Ii que O

diabo exerce sua última, maior e mais ardilosa arte e capacidade. Pois com is- so leva o ser humano (caso este não se precavenha) a colocar-se acima de Deus, para que procure por sinais da vontade divina e fique impaciente por- que não lhe é dado saber se é predestinado. Faz com que o ser humano sus- peite de seu Deus ao ponto de quase desejar um outro Deus. Em suma, aqui o diabo tenciona apagar o amor a Deus com uma borrasca e despertar O ódio a Deus. Quanto mais o ser humano segue o diabo e tolera tais pensamentos, tanto mais perigosa é a sua posição, e, por fim, não consegue mais persistir, caindo no ódio e na blasfêmiacontra Deus. Pois se quero saber se sou predes- tinado, que outra coisa é isso senão que quero saber tudo o que Deus sabe e me igualar a ele, de modo que ele não saiba nada a mais do que eu e que, as- sim, não seja Deus, visto que não deve estar acima de mim em saber? Então O

diabo nos mostra quantos gentios, judeus e cristãos se perdem, chegando, com tais pensamentos perigosos e inúteis, ao ponto de fazer com que o ser humano fique com má vontade neste ponto, mesmo que no mais morresse de bom grado. Ser atribulado por pensamentos referentes a sua predestinação significa ser atribulado pelo inferno. Sobre isso há muitas lamentações nos Salmos. Quem é vitorioso neste ponto venceu de uma só vez o inferno, o pe- cado e a morte.

9. Nesta situação, devemos esforçar-nos ao máximo para não convidar nenhuma dessas três imagens a entrar em nossa casa e para não desenhar a imagem do diabo por sobre a porta. Elas, por si mesmas, vão irromper com violência e querer apossar-se totalmente do coração através de seu aspecto, de seus debates e de suas demonstrações. E onde isso acontece, o ser humano está perdido e Deus foi completamente esquecido, pois essas imagens não ca- bem neste tempo exceto para serem combatidas e expulsas. Sim, onde elas es- tiverem sozinhas, sem deixar transparecer outras imagens", seu único destino - --

14 Sc. p:im ;i salva~ão. I As iiti;iurns de Cristo, istci é, as imagens da vida. da graca e do ceu (cf. a seqüência do

I C 1 I < > ) .

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E o inferno, entre os diabos. Quanto a quem quiser combatê-las com sucesso e expulsá-las, não lhe

hastará agarrar-se, engalfinhar-se e brigar com elas, pois lhe serão fortes de- iiiais, e a coisa irá de mal a pior. O jeito é descartá-las por completo e não ter liada a ver com elas. Mas como acontece isso? Acontece da seguinte maneira: tleves ver a morte na vida, o pecado na graça, o inferno no céu. E não deves te deixar afastar desse modo de encarar ou olhar as coisas, mesmo que todos os anjos, todas as criaturas, sim, mesmo que te pareça que o próprio Deus te apresenta algo diferente. Porém não são eles que fazem isso; é o espirito ma- ligno que causa essa impressão. Como se deve proceder então?

10. Não deves mirar ou contemplar a morte em si mesma, nem em ti ou çrn tua natureza, nem naqueles que foram mortos pela ira de Deus e que fo- ram vencidos pela morte. Se o fizeres, estás perdido e és vencido juntamente com eles. Deves, pelo contrário, desviar vigorosamente dessa imagem teus olhos, os pensamentos de teu coração e todos os teus sentidos, e encarar a iiiorte com intensidade e diligência apenas naqueles que morreram na graça clc Deus e que venceram a morte, sobretudo em Cristo, a seguir em todos os seus santos. Eis que nestas imagens a morte não te parecerá horrível e aterra- dora, mas sim desprezada e morta, sufocada na vida e vencida. Pois Cristo iiiida mais é do que pura vida, e seus santos também. Quanto mais profunda c intensamente gravares essa imagem e a mirares, tanto mais mirrará a ima- &!c111 da morte e desaparecerá por si mesma, sem luta e sem briga. E assim teu coração encontrará paz e poderá morrer tranqüilamente com Cristo e em ( 'risto, como está escrito em Ap 14.13: "Bem-aventurados são os que mor- iciii rio Senhor Cristo." É para isso que aponta Números 21.6s.: quando iii~rdidos pelas serpentes abrasadoras, os filhos de Israel não precisavam ~.iiiiihatê-Ias, mas tinham que olhar para a serpente morta de bronze; então as \ri-licntes vivas caíam por si mesmas e pereciam. Da mesma forma, deves ~~icocupar-te com a morte de Cristo tão-somente; então encontrarás a vida. N o cntanto, se miras a morte em outro lugar, ela te mata com grande inquie- iiidc e tormento. É por isso que Cristo diz: "No mundo (isto significa tam- IiCii i em nós mesmos) vocês terão inquietação. Em mim, porém, terão a I>:I/." [Jo 16.33.1

11. Da mesma forma, não deves contemplar o pecado nos pecadores, iicin em tua consciência, nem naqueles que permaneceram definitivamente c111 pecados e foram condenados, senão ficarás para trás e serás vencido. De- vcs, isto sim, desviar teus pensamentos disso e não contemplar o pecado se- ii:Xo na imagem da graça. Deves gravar esta imagem com todas as forças e tê- I;i diante dos olhos. A imagem da graça não é outra coisa que Cristo na cruz e t11~1os os seus queridos santos.

Como se deve entender isso? Que Cristo tira de ti o teu pecado na cruz, o ciirrcga por ti e o afoga - isso é graça e misericórdia. Crer firmemente nisso, iil 10 diante dos olhos e não duvidar disso - é isto que significa atentar na iiiiagcin da graça e gravá-la. Da mesma forma, todos os santos, em seu sofrer c iiiorrcr, também carregam sobre si os teus pecados, sofrendo e trabalhando ~iiii ' ti, coiiforme está escrito: "Que cada um carregue a carga do outro; assim

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vocês cumprem o mandamento de Cristo." [GI 6.2.1 Da mesma forma, ele mesmo diz em Mt 11.28: "Venham a mim todos vocês que estão sobrecarre- gados e se afadigam; eu quero ajudá-los." Vê, assim tu podes encarar o teu pecado com segurança, fora de tua consciência. Vê, ai pecados não são mais pecados. Estào vencidos e devorados em Cristo. Pois assim como ele toma sobre si a tua morte e a afoga, para que ela não mais te faça mal, se crês que ele faz isso por ti e se vês a tua morte nele, não em ti mesmo, da mesma ma- neira ele também toma sobre si os teus pecados e os vence para ti em sua justi- ça, por pura graça. Se creres nisso, eles não mais te farão mal. Assim Cristo, a imagem da vida e da graça, é nosso consolo contra a imagem da morte e do pecado. E isso o que Paulo afirma em 1 Co 15.57: "Louvor e graças a Deus por nos ter dado, em Cristo, vitória sobre o pecado e a morte."

12. Não deves contemplar o inferno e a eternidade dos tormentos, junta- mente com a predestinação, em ti mesmo, nem nela mesma, nem naqueles que foram condenados. Também não deves te preocupar com tantas pessoas em todo o mundo que não foram predestinadas's. Se não tomares cuidado, esta imagem logo te derrubará e lançará ao chão. Por esta razão, aqui deves recorrer á força, manter os olhos bem fechados diante dessa visão. Pois ela é totalmente inútil, mesmo que te ocupasses disso por mil anos, e de repente te arruina. Deves deixar que Deus seja Deus, que ele saiba mais sobre ti do que tu mesmo. Olha, por isso, a imagem celestial, Cristo. É por tua causa que ele desceu ao inferno e foi abandonado por Deus, como alguém condenado eter- namente, quando disse na cruz: "Eli, Eli, lama asabthani? Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" [Mt 27.46.1 Nesta imagem está vencido o teu inferno, e tua predestinação incerta é tornada certa. Pois se te preocupas tão-somente com isso e crês que isso aconteceu por ti, certamente és salvo nessa mesma fé. Por isso, não deixes que essaimagem te seja tirada dos olhos e procura-te em Cristo somente, e não em ti mesmo, então te encontrarás eternamente nele.

Portanto, quando olhas para Cristo e todos os seus santos e te agrada a graça de Deus, que assim os escolheu, e permaneces firme nesse agrado, tam- bém tu já estás escolhido, conforme ele diz em Gn 12.3: "Todos os que te abençoam serão abençoados." Entretanto, se não te apegares unicamente a isso e recaires em ti mesmo, surgirá em ti uma má vontade para com Deus e seus santos e não encontrarás nada de bom em ti mesmo. Toma cuidado com isso, pois é nessa direção que o espírito maligno te conduzirá com muitas arti- manhas.

13. Para essas três imagens ou formas de combate aponta Juizes 7.16~s.: Gideão atacou os midianitas a noite com 300 homens, em três frentes, mas nada mais fez do que mandar tocar trombetas e despedaçar cântaros com uma tocha dentro, de modo que os inimigos fugiram e estrangularam a si mesmos. Da mesma forma, morte, pecado e inferno fogem com todas as suas forças se exercitamos em nós as imagens luminosas de Cristo e de seus santos

I6 Sc. para a salva$Zo

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:i noite - isto é, na fé, que não vê nem quer ver as imagens maléficas - e se, :iICiii disso, nos animamos e fortalecemos com a palavra de Deus como que <.<>i11 trombetas. Neste sentido, Isaias 9.4 apresenta, de maneira muito bonita, ; i iiicsma comparação contra as mesmas três imagens, dizendo a respeito de < 'rihto: "Tu venceste o peso de seu fardo, a vara de suas costas, o cetro de seu oliressor, como nos tempos dos midianitas vencidos por Gideão." É como se <lissesse: "O pecado do teu povo (que é um grande peso de seu fardo em sua iiiiisciência) e a morte (que é uma vara ou punição que lhe fere as costas) e o iiilcrno (que é um cetro e poder do opressor, com que se exige pagamento c.ici-iio pelo pecado) -tudo isso tu venceste, como aconteceu nos tempos de Midiã, isto é, pela fé, pela qual Gideão afugentou os inimigos sem um único i:olpc de espada."

Quando é que ele fez isso? Na cruz. Ai preparou a si mesmo para nós co- iiio rima tríplice imagem a ser apresentada a nossa fé contra as três imagens ciiiri as quais o espírito maligno e nossa natureza nos atribulam para :li-i-ancar-nos da fé. Ele é a imagem viva e imortal contra a morte, que ele so- Ilcri, mas que venceu em sua vida através de sua ressurreição dos mortos. Ele i. ;i imagem da graça de Deus contra o pecado, que tomou sobre si e venceu ;iir;ivés de sua insuperável obediência. Ele é a imagem celestial, aquele que, :ili:iiidonado por Deus como um condenado, venceu o inferno através de seu :iiiior todo-poderoso, testemunhando, assim, que é o Filho mais querido e i~iic tornou isso propriedade de todos nós, se assim cremos.

14. Como se tudo isso não bastasse, ele não apenas venceu o pecado, a iiioric e o inferno em si mesmo e nos conclamou a crer nisso, mas, para nosso iii:ii<ir coiisolo, sofreu e venceu, ele mesmo, a tribulação que essas imagens 110s cnusain. Ele foi atribulado pela imagem da morte, do pecado e do infer- 1 1 0 I;iiiio quanto nós o somos. Foi confrontado com a imagem da morte qti;iiidos os judeus disseram: "Que ele desça agora da cruz! Curou a outros; (liir agora se ajude a si mesmo." [Mt 27.40,42; Mc 15.30ss.I É como se disses- iriii: "Vê, ai tens a morte diante de teus olhos. Tu precisas morrer; contrais- \ < I iiiida pode ser feito." É dessa maneira que o diabo confronta uma pessoa iiiiiiil>iinda com a imagem da morte e abala a natureza pusilânime com a ima- j:ciii :ticrradora.

I.lcs também o confrontaram com a imagem do pecado: "Ele curou a <~i i i i i~s . Sc E Filho de Deus, então desça", etc. [Mt 27.42.40.1 É como se dis- \ci\ciii: "Siias obras foram falsas e não passaram de embuste. Ele não é filho <Ir I )ciis, iiias do diabo, a quem pertence de corpo e alma. Nunca fez nada de I > c ) i i i . coiiictcu tão-somente maldade."l7

A i1iiagc111 do inferno foi solta contra ele quando disseram: "Ele confia riii I )ciih; vcjni~ios se Deus o redime; ele diz ser Filho de Deus." [Mt 27.43.1 É <.i,iiio \c, clisscsscrri: "O lugar dele é tio inferno. Deus não o predestinou; ele

I i N<i k i i i v i i i ; i l , i i ii;i~:i)ir;il'ii icviiiiilc c,si:i coiocacic~ r i o filial iici piihgrafo que <i segue (ein ni,s- . I I : ' I i c . I . '1'i;il:i-se rertcirnçiile dr iiiii lepso. rarào pela rliial nlte- i;iiii<ir :i i i i i l r l i i 1i;ir;k I ; i i - i l i t ; i r ;I c<iiiil>irrii\d<i <I<> leiti>i.

está condenado para sempre. Não adianta confiar nem esperar; é tudo em vão."

E assim como os judeus confrontaram Cristo de maneira desordenada com essas três imagens, da mesma forma o ser humano é assaltado de manei- ra desordenada pelas mesmas imagens de uma só vez, para que seja perturba- do e desespere logo, como o Senhor descreve a destruição de Jerusalém em Lucas 19.43s.: que seus inimigos a cercam com uma trincheira, de modo que não possam sair - isso é a morte. Que em todos os lugares os atemorizam e perseguem, de modo que não possam ficar em lugar algum - isso são os pe- cados. Em terceiro lugar, que a arrasam e não deixam pedra sobre pedra - isso é o inferno e o desespero.

Como vemos, Cristo permanece em silêncio frente a todas essas palavras e imagens horríveis, não as combate, faz de conta que não as ouve ou vê, não responde a nada (pois se tivesse respondido, apenas teria dado motivo para que berrassem e se manifestassem com vigor e horror maiores ainda). Mas Cristo só presta atenção a vontade mais amada de seu Pai, tão completamen- te, que se esquece de sua morte, de seu pecado, de seu inferno, que haviam si- do lançados contra ele, e intercede por elesla, pela morte, pelo pecado e pelo inferno deles. Da mesma forma devemos nós deixar que as mesmas imagens nos assaltem e nos abandonem, como queiram ou possam. Devemos pensar apenas em nos apegar a vontade de Deus, que é que nos agarremos a Cristo e creiamos firmemente que nossa morte, pecado e inferno nele foram vencidos em nosso favor e não podem nos fazer mal nenhum, de sorte que unicamente a imagem de Cristo esteja em nós e que só com ele conversemos e negocie- mos.

15. Voltamos agora aos santos sacramentos e suas virtudes, a fim de aprender para que servem e a utilizá-los. A pessoa a quem são concedidos a graça e o tempo de se confessar, ser absolvida, receber a Eucaristia e a Extrema-Unção, tem motivos abundantes para amar a Deus, louvá-lo e agradecer-lhe, e para morrer com alegria, contanto que confie e creia de for- ma consoladora nos sacramentos, como foi dito acima. Pois nos sacramentos teu Deus, Cristo mesmo, age, fala e atua contigo através do sacerdote. Ai não acontecem obras ou palavras humanas, mas Deus mesmo te promete tudo o que aqui foi dito agora a respeito de Cristo e quer que os sacramentos sejam um signo e um documento disso: a vida de Cristo tomou sobre si e venceu a tua morte; sua obediência, o teu pecado; seu amor, o teu inferno. Além dis- so, pelos mesmos sacramentos és incorporado e unido a todos os santos e en- tras na verdadeira comunhão dos santos, de sorte que eles morrem contigo em Cristo, contigo carregam o pecado e vencem o inferno. Disso se segue que os sacramentos - isto é, as palavras externas de Deus, faladas através de um sacerdote - são um consolo muito grande e como que um sinal visível do propósito divino, a que devemos nos apegar com uma fé firme, como se fos- sem um bom cajado, qual aquele com que Jacó, o patriarca, atravessou o

I H ( 'I . I . < . 23.34.

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Jordãoi9, ou como se fossem uma lanterna pela qual devemos nos orientar e para a qual devemos olhar com todo o empenho ao trilharmos o caminho obscuro da morte, do pecado e do inferno. E como diz o profeta2Q: "Tua pa- lavra, Senhor, é uma luz para os meus pés." [SI 119.105.j E S. Pedro: "Te- iiios uma palavra firme de Deus, e vocês fazem bem em atendê-la." [ l Pe 1.19.] Não há outra coisa que possa ajudar na aflição da morte, pois com esse sinal são salvos todos os que alcançam a salvação. Ele aponta para Cristo e siia imagem, para que possas dizer contra a imagem da morte, do pecado e do inferno: "Deus me prometeu e deu um sinal certo de sua graça nos sacramen- (os: a vida de Cristo venceu a minha morte em sua morte; sua obediência ani- cliiilou meu pecado em seu sofrimento; seu amor destruiu meu inferno em seu clesamparo. O sinal, a promessa de minha salvação, não mentirá nem me en- ganará. Deus o disse e Deus não pode mentir, nem com palavras nem com obras." Quanto a quem assim faz alarde e se apóia nos sacramentos, sua elei- qâo e predestinação virá por si, sem sua preocupação e esforço.

16. Importa, pois, muitíssimo que se tenha em alta estima, se honre e se confie nos santos sacramentos, nos quais acontecem tão-somente palavras, lproinessas e sinais de Deus. Isto quer dizer que não se deve duvidar dos sacra- iiicntos nem das coisas das quais eles são sinais certos; se se duvida disso, está tiido perdido. Pois assim como cremos, tal nos sucederá, como diz Cristo21. I)c que adiantaria que imaginasses e cresses que a morte, o pecado, o inferno dos outros foram vencidos em Cristo, se não crês também que tua própria i i i l~r~c, teu próprio pecado, teu próprio inferno foram ali vencidos em teu fa- v t > i c que, assim, tu estás salvo? Nesse caso, o sacramento seria totalmente V I I I vXo, porquanto não crês naquilo que te é indicado, dado e prometido ali. 1\51>, contudo, constitui o pecado mais cruel que pode haver, já que, por meio ilclc, Deus mesmo é tido por mentiroso em sua palavra, seu sinal e sua obra, por alguém que fala, mostra, promete algo que não tem em mente nem quer c.iiiiiprir. Por isso não se deve brincar com os sacramentos. Precisa haver a fé, ipic confia neles e, com alegria, se aventura firmada em tais sinais e promis- siics de Deus. Que salvador ou Deus seria esse que não pudesse ou quisesse s:ilvirr-nos de morte, pecado e inferno? O que o verdadeiro Deus promete e ii.;iliza precisa ser grandioso.

Mas então vem o diabo e te insinua: "O que seria de mim se eu tivesse re- ccliido os sacramentos de forma indigna e me despojado de tal graça por mi- i i l i : ~ iiidignidade?" Neste caso, faze o sinal da cruz, não te deixes perturbar lida dignidade ou indignidade. Trata apenas de crer que são sinais certos, pa- I:ivrns verdadeiras de Deus; então és e permaneces digno. A fé torna a pessoa cli1:ii;i; a duvida a torna indigna. Por isso, o espírito maligno quer te enganar ci~iii outra dignidade e indignidade, a fim de suscitar uma dúvida em ti e, as- j i i i i . :iiiiilar os sacramentos juntamente com seus efeitos e transformar Deus I I I I I I I iiiciitiroso em suas palavras.

I<) ('I ' . c , , , 32.10, LII Ilr\iy,ii;~$fiii iis;i<l;i Iior I.ulcr0 para referir-*e ao aittor do salmo. L I ( ' 1 . MI 21.21.

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Deus nada te concede por causa de tua dignidade nem edifica sua pala- vra e seus sacramentos sobre tua dignidade, mas, por pura graça, edifica a ti, pessoa indigna, sobre sua palavra e seu sinal. E nisso que deves te apegar e di- zer: "Aquele que me dá e me deu seu sinal e sua palavra - de que a vida, gra- ça e céu de Cristo tornaram inócuos minha morte, meu pecado e inferno por mim - é Deus e cumprirá isso. Se o sacerdote me absolveu, então confio nis- so como na palavra do próprio Deus. Como são palavras de Deus, há de ser verdade. Nisso eu permaneço e nisso eu morro." Pois deves confiar na absol- vição do sacerdote tão firmemente como se Deus te enviasse um anjo ou apóstolo especial, sim, como se Cristo mesmo te absolvesse.

17. V& tal vantagem tem quem recebe os sacramentos: obtém um sinal e uma promessa de Deus em que pode exercitar e fortalecer sua fé de que foi chamado na imagem e nos bens de Cristo. Por não terem esses sinais, as ou- tras pessoas se esforçam somente na fé e os recebem com o anseio do cora- ção, embora também elas sejam salvas se perseveram na mesma fé. Da mes- ma forma, deves dizer sobre o Sacramento do Altar: "Se o sacerdote me deu o santo corpo de Cristo, que é um sinal e promissão da comunhão com todos os anjos e santos, sinal e promissão de que me querem bem, cuidam de mim, intercedem por mim e junto comigo sofrem, morrem, carregam o pecado e vencem o inferno, então assim será e assim deve ser. O sinal divino não me engana, e rião permito que ele me seja tomado. Prefiro renegar o mundo todo e a mim mesmo do que duvidar que meu Deus me é certo e veraz neste seu si- nal e promissão. Seja eu digno dele ou não, sou membro da cristandade, con- forme a palavra e o sinal deste sacramento. E melhor que eu seja indigno dele do que que Deus seja tido por alguém que falta com a verdade. Afasta-te, diabo, caso me disseres algo diferente."

Agora vê, existem muitas pessoas que gostariam de ter certeza disso ou que gostariam de receber um sinal do céu a respeito de sua situação junto a Deus, que gostariam de saber se estão predestinadas. Mas se recebessem tal sinal e mesmo assim não cressem, de que lhes adiantaria? Se não há fé, que serventia teriam todos os sinais? De que adiantaram aos judeus os sinais de Cristo e dos apóstolos? De que adiantam ainda hoje os venerabilissimos si- nais dos sacramentos e das palavras de Deus? Por que não se atêm aos sacra- mentos, que são sinais certos e instituídos, testados e provados por todos os santos e comprovados como certos por todas as pessoas que neles creram e obtiveram o que eles indicam? Desta maneira deveríamos aprender a reco- nhecer os sacramentos: o que são, para que servem, como devem ser usados. Assim, descobrimos que não há nada maior sobre a terra que possa confortar tão afavelmente corações aflitos e consciências pesadas. Pois nos sacramen- tos há palavras de Deus, que servem para nos mostrar e prometer Cristo jun- tamente com todos os seus bens (que são ele mesmo) contra morte, pecado e inferno. Ora, não há nada mais agradável e desejável do que ouvir que a mor- te, o pecado e o inferno foram aniquilados. Isto acontece através de Cristo em nós, se utilizamos o sacramento corretamente. O uso22 outra coisa não é

22 Si.. ri,rirto.

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~crião crer que é assim como os sacramentos, através da palavra de Deus, prometem e afiançam. Por isso, é preciso não apenas contemplar as três ima- gciis em Cristo e, com elas, expulsar e afastar as contra-imagens, mas tam- hkin ter um sinal certo que nos assegure que assim nos foi dado: são os sacra- IIIClltoS.

18. Nenhum cristão deve, no fim de sua vida, duvidar que não está sozi- iilio ao morrer. Deve ter a certeza de que, conforme indica o sacramento, iiiiiitos olhos estão fitos nele. Primeiro, os olhos do próprio Deus e de Cristo, Iporque crê na sua palavra e se apega ao seu sacramento. Depois, os queridos ;iiijos, os santos e todos os cristãos, pois não há dúvida de que, como indica o Sacramento do Altar, todos acorrem, como um só corpo, para socorrer seu tiieinbro~', ajudam-no a vencer a morte, o pecado e o inferno e carregam to- dos junto com ele. Aí se realiza com seriedade e poder a obra do amor e da coinunhão dos santos. E o cristão também deve pô-la diante dos olhos e não duvidar dela. Disso vai extrair coragem para morrer. Pois quem duvida disso iiiais uma vez não crê no venerabilíssimo Sacramento do Corpo de Cristo, no qiial são mostrados, prometidos e afiançados comunhão, ajuda, amor, con- solo e apoio de todos os santos em todas as necessidades. Pois se crês nos si- ii:iis e nas palavras de Deus, ele olha por ti, como diz em SI 31[32].8: 1'1rtnabo24, etc. "Sempre terei meus olhos sobre ti, para que não sucumbas." Ahsiin como Deus olha por ti, também o fazem todos os anjos, todos os san- i i r \ , todas as criaturas, e se permaneceres na fé, todos te sustentam em suas iii;ios. Quando tua alma se vai, eles estão presentes e a recebem; não podes \iii.iiiiitiir. Isso é testemunhado por Eliseu em 2 Rs 6.16s.. ao dizer a seu ser- v,): "Não temas; mais são os que estão conosco do que os que estão com ~ I r s " . cmbora os inimigos os tivessem cercado e não vissem mais ninguém. hl;is I>cus abriu os olhos do servo; então uma grande tropa de cavalos e car- I C I S dc fogo estava a o seu redor. O mesmo certamente acontece com todo ;i(liiclc que crê em Deus. É esse o sentido das seguintes passagens: "O anjo do Sriilior acampar-se-á ao redor dos que temem a Deus e os redimirá." (SI 11134l.7.) "Os que confiam em Deus serão inabaláveis como o monte Sião. Irlc I'icará para sempre. Altos montes (isto são anjos) estão em seu redor, e I )<,tis rnesmo está em derredor de seu povo, desde agora e para sempre." (SI 1141125].1s.) "Ele te confiou a seus anjos. Eles devem carregar-te com as

\ I I ; IS iiiãos e guardar-te, para onde quer que fores, para não tropeçares nalgu- III:I pedra. Deves passar sobre as cobras e os basiliscos e pisar nos leões e dra- i8.ois (isto significa que toda a força e astúcia do diabo não te afetarão). Pois i-iriifioii cin mim. Quero redimi-lo; quero estar com ele em todas as suas tri- I~iil:ici,cs, livrá-lo e honrá-lo, saciá-lo com eternidade e revelar-lhe minha gra- \.;i ctcrii;~." (SI 90[91]. 11-16.) Da mesma forma, o apóstolo2~ também diz que

!I < ' I . I < '<> 12.26. >.I t ' i > i ~ i c\t;i ~>;il;ivl;% ci>riieç;i a traduyãc Iatina do v . 8. A tradução do texto latino de toda a

1 t ; w C: "l,i1tt>:3wci I I ICUY ,dIw\ whrc l i ," .?< ( ' I . 1111 1.14.

os anjos, que são incontáveis, sempre estão ai para servir e são enviados por causa daqueles que serão salvos.

Tudo isso é grandioso. Quem o crerá? Por isso, devemos saber que são obras de Deiis. Elas são maiores do que alguém possa imaginar. Não obstan- te, ele as efetua num sinal tão pequeno, nos sacramentos, a fim de nos ensi- nar quão grande é a verdadeira fé em Deiis.

19. No entanto, ninguém deve ter a presuiição de fazer essas coisas por suas próprias forças. Devemos pedir a Deus, com humildade, que ele crie e mantenha em nós tal fé e compreensão de seus santos sacramentos, para que procedamos com temor e humildade e não atribuamos tal obra a nós mes- mos, mas deixemos a honra a Deus. Além disso, a pessoa deve invocar todos os santos anjos, especialmente seu anjo's, a mãe de Deus, todos os apóstolos e queridos santos, particularmente aqueles pelos quais Deus lhe deu uma ve- neração especial. Mas deve orar de tal forma, que não duvide que a oração será atendida. Ela tem dois motivos para isso: em primeiro lugar, acaba de ouvir da Escritura como Deus Ihes ordenou27 e como o sacramento concede que devem amar e ajudar todas as pessoas que crêem. É isto que devemos apresentar-lhes e é disto que devemos admoestá-los, não porque eles não sou- bessem disto ou porque de outra forma não o fariam, mas para que a fé e a confiança neles e, através deles, em Deus se torne mais forte e alegre para en- frentar a morte. O outro motivo é que Deus ordenou que, quando queremos . orar, creiamos firmemente que o que pedimos acontecerá, e que haja um ver- dadeiro "amém". Esse mandamento também deve ser apresentado a Deus, dizendo: "Deus meu, tu ordenaste que peçamos e creiamos que a petição será atendida. É por isto que te peço e que confio que não me abandonarás e me darás uma fé verdadeira."

Além disso, durante a vida toda deve-se pedir a Deus e a seus santos uma fé verdadeira para a última hora, como se canta de maneira muito bonita em Pentecostes: .'Agora pedimos ao Espírito Santo sobretudo fé verdadeira para quando partirmos deste lugar estrangeiro para o nosso lar", etc.28 E quando tiver chegado a hora da morte, deve-se lembrar Deus dessa oração, além de seu mandamento e sua promessa, sem duvidar de maneira alguma que ela se.. rá atendida. Pois se Deus ordenou que pedíssemos e confiássemos na oração, dando, ainda, a graça de podermos pedir, por que haveríamos de duvidar que ele fez tudo isso porque quer atendê-la e cumpri-la?

20. Vê, pois: o que mais deve o teu Deus fazer por ti, para que aceites a morte de bom grado, não a temas e a venças? Ele te mostra e te dá, em Cris-

26 Sc. de guarda. 27 Cf. SI 91.11s. 28 No hinário Hinos dopovo de Deus, da Igreja Evangelica de Confissão Luterana no Brasil,

o hino comesa com as seguintes palavras: "O Santo Espirito da Senhor, da-nos ft e verda- dciro iirnor!" A parte "quando partirmos (...)'' nao foi conservada na tradusão portugue- \;I. N<i I i i ~ i i i i io anlcrior, o Hinirio do Igreja Evangélica de Confissão Luferona no Brosil, riir<>iili:i~\c :c \cyiiintr tradusão: "Ao Santo Espirito do Senhor fA verdadeiro ar- < I < > # . 1 . 1 . t i , p;ii'tirnios do niundo e da lida." (Hino 78.)

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to, a imagem da vida, da graça, da salvação, para que não te horrorizes dian- ie da imagem da morte, do pecado e do inferno. Além disso, coloca sobre o scu amado Filho a tua morte, o teu pecado, o teu inferno, vencendo-os e tornando-os inofensivos para ti. Mais ainda: expõe seu Filho a tribulação que ic causam morte, pecado e inferno, te ensina a perseverar em tal situasão e [orna essa tribulação inofensiva e, além disso, suportável. Ele te da um signo ccrto de tudo isso, para que nunca duvides disso, a saber, os santos sacra- inentos. Ordena a seus anjos, a todos os santos, a todas as criaturas, que, com ele, olhem por ti, cuidem de tua alma e a recebam. Ordena que deves pe- dir isso dele e estar certo de que serás atendido. O que pode ou deve ele fazer ~i l fm disso? Vês, portanto, que ele é um Deus verdadeiro e realiza obras apro- priadas, grandes e divinas contigo. Por que não haveria ele de te impor algo grande (como é a morte), se acrescenta tamanho privilégio, ajuda e força, pa- ra mostrar o que sua graça pode, como diz S1 110[111].2: "As obras de Deus são grandes e escolhidas segundo toda a sua benevolência"?

Por isso, devemos empenhar-nos em agradecer com grande alegria do coração a sua vontade divina, porque nos trata com graça e misericórdia de i~ianeira tão maravilhosa, abundante e imensurável, contra a morte, o pecado c « inferno. Também não devemos temer tanto a morte, mas louvar e amar tão-somente a sua graça, porque o amor e o louvor aliviam a morte em mui- 10, como ele diz por intermédio de Isaias: "Embridarei a tua boca com o meu Ioiivor, para que não sucumbas." [Is 48.9.1 Que Deus, e t ~ . ~ ~ nos ajude. A11iém.

~-

2') I)ril\ 1';ii. I'illio ç Espiriio Santo.

Sermões sobre os Sacramentos

Conforme o próprio Lutero menciona em sua carta introdutórial, ele considera os próximos três tratados uma trilogia sobre os sacramentos. A tnlogia é dedicada a uma viúva, a duquesa Margarida de Braunschweig e Lilnehurgo, que Lutero não co- nhecia pessoalmente, mas que lhe fora recomendada como tendo "devoção à Sagrada Escritura". Amigos e superiores de Lutero o convidaram repetidas vezes a dedicar-lhe "um escrito espiritual e cristáo". Finalmente. em fins de 1519, Lutero decidiu escre- ver-lhe a respeito dos sacramentos.

A Serenissima e iiustre Princesa e Senhora, Senhora Margarida, nascida von Rittberg, Duquesa de Braunschweig e Liineburgo, minha benevolente Se- nhora, desejo eu, Martinho Lutero, agostiniano de Wittenberg, segundo mi- nha melhor capacidade em Deus, a graqa de Deus e paz em Cristo, nosso Se- nhor.

Alguns amigos, superiores e senhores me pediram, ilustre Princesa, be- nevolente Senhora, que dedicasse a Vossa Alteza um escrito espiritual e cris- tão, para reconhecer com gratidão a benevolência e o favor de Vossa Alteza para com minha indigna pessoa e para oferecer-lhe humildemente os meus préstimos. Também minha própria consciência muitas vezes me impeliu a is- so. Mas me foi difícil encontrar em mim o suficiente para corresponder a tal desejo e dever, especialmente porque julgo que, com certeza, Cristo, o mestre de todos nós, em muito se antecipou a mim junto a Vossa Alteza. Por fim, a devoção de Vossa Alteza à Sagrada Escritura, que me foi sobremodo enalte- cida, me levou a publicar, sob o nome de Vossa Alteza, alguns serm6es sobre os santos, venerabilíssimos e consoladores Sacramentos da Penitência, do Batismo e do Santo Corpo. Fiz isso tendo em vista que encontrei tantas cons- ciências aflitas e amedrontadas - e eu experimentei isso em mim mesmo -

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que nâo compreendem os sac ramentos , s a n t o s e cheios de g r a ç a , nem sabem fazer uso deles. Infe l izmente , m a i s se a t r e v e m a t ranqüi l izar-se com suas obras do que buscam paz na graça de Deus a t ravés d o s s a n t o s sac ramentos . A ta l p o n t o os s a n t o s s a c r a m e n t o s nos f o r a m o c u l t a d o s e sub t ra idos por dou t r i - na humana. P e ç o que Vossa Al teza r econheça g rac iosamente m e u insignifi- c a n t e serviço e não leve m e u a t r ev imen to a m a l . P o i s e s tou s e m p r e humilde- m e n t e p r o n t o a servir Vossa Al teza . Que Deus a g u a r d e agora e s e m p r e . Amém.

Um Sermão sobre o Sacramento da penitênciaz Doutor Marlinho L. A. W.3

Ern 1519. Lutero ainda considerava sacramento. como diz na secão 6 de Um ser- mão sobre o Sacramento da Penifêncio, o ato sagrado em que "ouvetn-se as palavras externamente, que significam os bens espirituais internamente, com que o corasão ob- tém consolo e paz". Ainda não havia aderido a definição d e Agostinho': Accedaf w r - bum ad elemenrum e1 fit sacramentum (acresca o verbo ao elemento. e assim se torna sacratnento), como define depois nos ~;figosdeEsmalcalde (III ,V,lj . Por essa razão, em 1519 ainda considerou a penitência u m sacramento, embora não houvesse um "elemento" visível ordenado Por Deus. Em 1520, porém, já reconheceu apenas dois sacrarnentos: o Batismo e a Santa Ceia. uoraue. iunto com a ualavra e uromessa de Deus, ambos tinham um "eleniento" vis&el: &;i, pão e vinho.. ~ o n t i n u õ u a atribuir a penitência um alto valor, mas a partir d o tratado D o cativeiro babilônico da IgrejaS. de 1520, considerou-a como "confissão e absolvisão", d a área da disciplina eclesiásti- ca e do que conhecemos por "oficio das chaves". O p r i n c i ~ i o iá estava certo ern uma carta a ~ s p a l a t i n o " de 18 de dezembro de 1519, eni &e afirmá que "só é sacramento o que é expressamente dado por uma promessa divina, exercitando a nossa fé"'. Lute-

2 Eyn Sermon voi i dem Sacrorneni der Pus, WA 2,714-23. Traducão de Annemarie Hbhn e Luis M. Sander.

3 Lutem, agostiniario, Wittenberg. 4 Agostinho (Aurelius Augustinus), bispo de Hipona (354-430). Nasceu em Tagaste e faleceu

em Hipona, perto de Cartago, ambos na Norte da África. Foi um dos mais impaitantei pais latinos da Igreja. Tinha um filho, Adcodato, do seu tempo de paganismo e excessos se- xuais. Ficou nove anos sob a influência da maniqueismo, que depois combateu, quando re- cebeu urna formação iieoplatónica, ainda detectável nos seus escritos antigos, coma De ue- ro religionr. Sua própria história conta em Confmiones. Em Milão conheceu Ambrósio, que a levou ao estudo da Biblia. Só em 387 foi batizado. Depois de um periodo de ensino de gramatica e retórica em Tagaste, Cartago e Milão, voltou à África. onde vendeu suas pro- priedades e fundo11 uma espécie de mosteiro. Permaneceu muito ascético, mas foi sempre pastoral. Em 395 foi nomeado coadjutor do bispo Valkrio de Hipona, e em breve tornou o seu lugar. Por mais de 30 anos liderou a teologia na África do Norte. Defendeu em vários sinodos a fé c"st8, especialmente contra as donatistas, contra os quais escreveu De bopiis- rno, e contra os Pelagianos, contra os quais escreveu Degrafia e1 libero orbitrio. Suas for- inulaçdes ainda foram o centro das íliscussdes teológicas na Idade Média. Quando em 410 iir gado? saqiiearam Rama e os pagãos culparam os cristãos desse desastre, Agostinho es- cicvcii />r civilale dei, em que demonstra que a Igreja não se identifica com qualquer socie- <I;alc. ciiltiira oii estado, mas que Deus dirige a história para um propósito que esta além d;ii iitriitiir;iv homanas, a cidade de Dciis.

i /)o iri~~i,~'rrurc hrihvionicu ~crle.sioepraeiudiu~n, WA 6,497-573 ( a ser publicado na v. 2 des- I:, V < I I ~ , . , I < > ) .

<i < I I > t \ , , , < , l , , 1c.p 213,,,,,1i,2. 1 A t I r i ' : 211.

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i i i ii:I<, ciiiiiiiii<iii ~iroittcss~i divina nos outros quatro sacramentos d a Igreja medieval. I i . i \ i . ; i i I i> \ t~riic;iritciite iia ;iiitoridade da Igreja. Esta é a razão pela qual não mais os : i t i . i i i > i i c,>iiii, vscraiitentos. Sua autoridade era a palavra de Deus e sua proinessa.

I i i i Or?r sermão sobre o Sacramenlo da Penitência, Lutero define o termo "peni- i<.iii.i:i" c IIic restaiii-a o sentido bíblico. Na Vulgata, Mt 3.2 rezavapoenitenfiam agite, , i i l i i i . pode sigriificar tanto "arrepender-se" como "fazer penitência". A Igreja do I i i i i <I:i 1il;tilc Media usou este texto especialmcnte no seu segundo sentido, a o definir o :i,.i~i,ito iii:iterial do Sacramento da Penitência como consistindo de coritricão (o re- itii,iri> pelo pecado), confissão (oral, a o sacerdote) e saiisfaçáo (fazer, por urdem do ~.;iii.r~lciic, i-c~aração rielo mal conietido). Nesta seuuência, o aspecto efetivo consistia . ~. t i i i ii~ccl>iitieiilo do perdão dos pecados. Na verdade, Toinás de Aqiiinoqistinguia i I < t i \ \cii t id<i de "penitência": um era externo e se referia ao Sacramento da Periitên- i i:, (i;i,rr pcriitêricia), o outro era interno e se referia ao estar arrependido (ser peniten- i r ) . Ic>itiús reconheceu a "satisfação" como um fruto do "ser penitente", mas fê-lo i i : i i i i . i~ilcgrante do Sacrameiito d a Penitência. Desta forma, ligou a satisfação não ao ..,<,I 7 , ilo iiidividuo, inas ao seu "fazer" continuo e amargurado. Na prática, a Igreja i.\i;iv:i ~p~<riiiovendo a salvação por ohras, em vez de pregar a alegria da confiaiiça do i.\i:ti ~ i l v o pcla fé. A penitência havia se tornado uma tortura que explorava as neces- ,.iil:iil<,\ <lu povo ein beneficio da Igreja.

I .s~icri> queria verdadeiros conselheiros, como os havia conhecido em seu coiise- 1lii.iit~ SIitilpitrY, que lhe havia dito que a coiifissão não finda, mas inicia com o "amor .i i i i c i i c . ;~ c <i amor de Deus". De inicio, o conceito de penitência lhe era amargo. mas, i l q , i i i \ I ~ O C c11111leceu a alegria de uma boa consciência pela fé na promessa de Deus em ( 'i i \ i < > . ii "ci~iitiniio arrependiinento" lhe era doce, pois podia descarregar os seus pe- <.:iili>\ viii i 'risto. J á n a s 9 5 tesesL0, de 1517, e n o Sermão sobreapenifêncio", de 1518, I ~ ~ t c ~ i i ;il;iciru os abiisos na área da penitência. Em 1518, um amigo seu, Wolfgang

.~ - -

H < : i . 1224/27~1274, nasceu em Roccasecca, perto de Aquino, Itáiia. Conhecido conlo "dou- i i i i ;~iigilicu" ou "principe dos escolásticos", filbsoiu e teólogo. Foi educado pelos benedi- i i i i i i , cai Moiite Cassino e Nápoles (124W.24). Estudou em Paris e Colônia (1245-54). sendo iiillizriiciado por Albeito Magno. Lecionou em Paris (1252-59 e 1269-72) e na Itália (1259- f>O t 1272.14). Seu aristotclismo foi combatido pelos franciscanos (como 3 . Peckham) e ou- i ~ < i \ . iii;ir seus ensinos furam oficializados na Ordem dos Dominicanos. Foi canonizado em 1123. c iIcc1:irado doutor da Igreja em 1567. O estudo de Tomás e curriculo obrigatbrio em ii i<I ; i i<,! iniic.80 teolúgica romana (Codex iuriscononici 589.1 e 1366.2). Desde 1880 é patro- ii<i ,Ir ii,il;is ;i* iuiiversidades católico-romanas. Sua autoridade como mestre foi reafirmada i i i i i I B i i > XI eni 1923. Teve pouca influência direta sobre a Reforma, que o conheceu m?is .ii i ; ivL'\ i l i i i~oniinalisina do final da Idade Média. Suas principais obras sEo Summo conrro

. - 1 . i ~ ~ p r i i > i citi IUhiiigcii, depois em Munique. Foi membro fundador da Universidade de Wiiirj~lici.~ (1502) c dcáci da Faculdade de Teaiogia. Convidou Lutera como seu sucessor i>; i 1p0\1yclo de priilèrror da Hiblia. Havia guiado Liiiero para a fé em Crisro, embora ele iiirvii<i ~~cir~i;iriice~rc ligado il rrlriiliira da Ipreja Romana pela influência do tomisrno e do ~ i i i \ i i i . i r i i i i i . I ~ t ~ l : ~ l i , ~ ~ u I< ç\tod<> e valor da Escriliira. 1.ibcrtou Lutero do seu voto de o h c ~ <I,?,,<,,:, ,,r,, 1518.

to 11~~1~i11i. ~uini I > i,.~<.liln.~.i>>>i~>l~r> ,Ir> virlor r10.s indirl~r'ncius. pp. 1 . 1 ~ ~ . I I Si,>r,i<i rli~li~t<~,iiri~riiiii. W A 1.31') 24.

CapitoI2, lhe aconselhoil cautela, pois estava ferindo o adversário de frente. Sugeriu que atacasse de obliquo para chegar a o seu objetivo.

Mas Lutero escreveu Um sermão sobre o Sacramento da Penitência com a mesma clareza com que escreveu também o s outros dois sermões de sua trilogia de 1519. Fez uma afirinação positiva da penitêiicia getiuina. isto é, do verdadeiro arrependimento coni o perda0 assegurado pela promessa de Deus e pela S i que confia nesta promessa da palavra do Evangeilio. A certeza não depende do sacerdote; na falta dele, qualqiier cristão humilde pode garantir o tnesmo perdào dos pecados através d a piomessa de Deus.

Como e padrão na trilogia, Lutero busca três coisas bksicas também neste scr- mão: I) a palavra de Deiis da promessa de absolvição; 2) a fé que confia nesta absolvi- cão; 3) a paz, a graca, o perdão que seguem a fé (seções 6 e 19). Lembra-nos que a me- lhor "satisfação" consiste não eiii orações prescritas, mas em não pecar rnais e ein 1ã- zer o beni a o próxiino.

Este sermão foi escrito cin alemão e publicado por Joáo Gruneriberg em Witten- berg em iiieados de outubro de 1519. Até fins de 1519 já houve quatro edifões, sendo uma ein Leipzig. Em dois anos houve 10 edições, incluindo as de Nurnberg, Augsbur- go, Erfurt e Estrasbitrgo. O original, que se encontra na Biblioteca Ducal de Wolfen- buttel, tem iima dedicatória escrita de prciprio punho por Lutero.

Martim C. Warth

1. Há dois tipos de perdão no Sacramento da Penitência: perdão da pena e perdão da culpa. A respeito do primeiro tipo, o perdão da pena ou satisfa- ção, foi dito o suficiente no Sermão sobre a indulgência, recentemente publicadol3. Ele não tem tanta importância e é incomensuravelmente menoi do que o perdão da culpa, que poderíamos chamar de indulgência divina ou celestial, que ninguém pode conceder a não ser tão-somente Deus do céu.

2. Entre os dois tipos de perdão há a seguinte diferença: a indiilgência ou o perdão da pena livra de obras impostas e do esforço da satisfação e reconci- lia o ser humano com a Igreja cristã exteriormente. O perdão da culpa ou a indulgência celestial, porém, tira o temor e a pusilanimidade do coração em relação a Deus, torna a consciência leve e alegre interiormente e reconcilia o

12 Wiilfgang Fabricius Capito (Ktipfel; 1478-1541). Formou-se em Medicina, Direito e Teolo- gia. Foi pregador na catedral de Basileia, 1515; pregador em Moguncia, 1519. onde aceitou doiitiitiai da Reforma. Em Estrasbureo. 1523. eraoreeador. Aiudou a cornoor a Coniissdo - . . . - lcrro,/~olif<iriu, de 1530. c a Concdrdio de Wifrenberg, de 1536, conseguindo um consenso c i i i i i i> yiibpu Iiitçraiio.

I3 li,,! a,,i,,Ori i<ihr<' ir in<ll,lxC?,i~iu <. a xrriro. I'II. 3 1".

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hcr humano com Deus. E é isto o que significa própria e verdadeiramente per- doar os pecados, de modo que eles não mais atormentein e inquietem a pes- soa, mas que ela obtenha uma alegre confiança de que lhe são perdoados por I>eus para sempre e em eternidade.

3. Quanto ao ser humano que não encontra e sente em si mesino tal cons- ciência e urn coração alegre pela graça de Deus, a este não ajuda indulgência :ilgiima, mesmo que comprasse todas as cartas e indulgências que já foram dadas. Pois pode-se ser salvo e pagar ou satisfazer pelo pecado através da iiiorte, sem recorrer a indulgências e cartas de indulgência. Mas sem uma i.onsciência alegre e um coração leve diante de Deus (isto é, sem perdão da culpa) ninguém pode ser salvo. E seria muito inelhor não comprar indulgên- cia do que esquecer esse perdão da culpa ou não exercitar-se iiele por primei- 10, diariamente e mais do que qualquer outra coisa.

4. Existem diversos caminhos e maneiras de buscar esse perdão da culpa r de aquietar o coração ante o pecado. Algumas pessoas acreditam que conse- piiem isso com cartas e indulgências, correm para lá e para cá, para Roma, ipara Santiagol4, compram iridulgências aqui e acolá. Porem tudo isso é em vZo e uin equivoco. Assim as coisas só pioram, pois Deus mesmo precisa per- doar os pecados e dar paz ao coração. Algurnas pessoas se afadigam com iiiiiitai boas obras, também jejuarn e trabalham deniais, ao ponto de algumas icrem quebrado seu corpo por isso e terem ficado doidas, crendo que desta Ii~iriia, pela força das obras, poderiam livrar-se do pecado e aquictar seu co- I ;iqSo. hrnbas errarn porque querem praticar boas obras antes que o s pecados ,.c.i;iiii perdoados, enquarito que os pecados precisarn ser perdoados primeiro, .iiiics que aconteçam boas obras. Não são as obras que expulsani o pecado, i i i ; i h i. a expulsão do pecado que faz boas obras, pois boas obras deveiri ser I<,ii:is com um coração alegre e uma consciência tranqiiila frente a Deiis, isto i,. 110 perdão da culpa.

5 , Não se podeni encontrar outro caminho e outra maneira corretos a ii:i<i \cr o venerabilissimo, gracioso e santo Sacrainento da Penitêricia, dado 110i I>eiis a todos os pecadores para consolo, quando entregou a São Pedro as rli:iv<:s, em nome de toda a Igreja cristã, dizendo: "O que ligares na Lerra será lii,;i<lo tio céu, e o que desligares na terra será deiligado no céu." (Mt 16.19.)

I oilo cristão deve levar muito a peito e gravar com muita gratidão essas san- ( : i \ . ci~risoladoras e graciosas palavras de Deus, pois iiisso está contido o Sa- 6 - 1 ~iiticnto da Peniténcia, toda a alegria e bem-aventurança do coração contra i i r < l i ~ pecrido, con!ra todo amedrontamento da consciência, contra o desespe- 10 c :i iribiilação pelas portas do inferno.

14 %iiitinyii <Ic <'oriipostella. Conipo~tella (posiivelmeiitr abreviatura de Giacarno Ap<ihtolo), c:il>iiiil rlii Ciiilici;i, Esparilia. Na catedral se eiicoiitram <i$sos ditos do apósioln Tiago. i i < > i i i i il;i I : \ l~ai i l i~~. l p i ~ i c c i r i qiic tc~ilia <i<li> n ~irinieiri , a llicr pregar o cri\liaiii$nii>. I'nr i 5 ~

\ i > i c i < i v i i < > i i ci.riiii> iii. p c i r . g r i ~ ~ ; ~ ~ ~ ~ c ~ . I>;ir;i pti>teyci ~icrcyriii iv fui tiliidada por I'e<li<i

6. Ora, são três os elementos do santo Sacramento da Penitência. O pri- meiro é a absolvição: são palavras do sacerdote, que te anunciam, afirmam e proclamam que estás liberto e que teus pecados estão perdoados diante de Deus, em conformidade com as palavras supracitadas de Cristo a S. Pedro e por força delas. O segundo elemento e a graça, o perdão dos pecados, a paz e o consolo da consciência, como dizem as palavras. É por isso que se chama um sacramento, um sinal santo, pois ouvem-se as palavras externamente, que significam os beni espirituais internamente, com que o coração obtém conso- lo e paz. O terceiro elemento é a fé, que crê firmemente que a absolvição e as palavras do sacerdote são verdadeiras, por força das palavras de Cristo: "O que desligarei será desligado", etc. Tudo depende da fé: somente ela faz com que os sacramentos efetuem o que significam e que tudo que o sacerdote diz se torne verdade, pois confornie crês, assim te sucede. Sem essa fé, toda ab- solviyão e todos os sacramentos são em vão, e até prejudicam mais do que aproveitam. Existe uma afirmação comum entre os mestres que diz: "Não é o sacramento que remove o pecado, mas a fé que crê no sacramento." Sto. Agostiiiho diz: "O sacramento tira o pecado não porque acontece, mas por- que se crê nele."" Por esta razão, no sacramento deve-se considerar a fé com toda a diligência. É a ela que queremos expor mais amplamente.

7. Disso resulta, em primeiro lugar, que o perdão da culpa e a indulgên- cia celestial a ninguém são dados por causa da dignidade de sua contrição pe- los pecados ou por causa das obras de satisfação, mas unicamente por causa da fé na promessa de Deiis: "O que desligares será desligado", etc. Embora não devamos negligenciar a contrição e as boas obras, de maneira alguma de- vemos edificar sobre elas, e sim unicamente sobre as palavras certas de Cris- to, que te promete que, quando o sacerdote te absolve, estarás absolvido. Tua contrição e tuas obras podem te enganar, e o diabo vai, muito em breve, derrubá-las na morte e na tribulação. Porém Cristo, teu Deus, não te mentirá nem claudicará, e o diabo não lhe derrubará suas palavras. Se edificares so- bre isso com fé firme, estarás sobre a rocha, contra a qual as portas e todo o poder do inferno não prevalecerãol6.

8. Segue-se ainda que o perdão da culpa também não está fundamentado no oficio ou no poder do papa, do bispo, do sacerdote ou de qualquer ser hu- mano na terra, mas unicamente na palavra de Cristo e em tua própria fé. Pois ele não quis basear nosso consolo, nossa salvação, nossa confiança em pala- vras ou ações humanas, mas somente nele mesmo, em suas palavras e ações. Os sacerdotes, bispos, papas são apenas servidores que te apresentam a pala- vra de Cristo, na qual deves apostar e na qual deves te basear com fé firme, como numa rocha firme. Então a Palavra te sustentará e teus pecados terão de ser perdoados. É por isso que a Palavra não deve ser honrada por causa dos sacerdotes, dos bispos e do papa. Os sacerdotes, os bispos e o papa de- vem ser honrados por causa da Palavra, na qualidade de pessoas que te tra- zeiii a p;ilnvra e niensagem do teu Deus de que estás livre de pecados.

I,V,,,: ,~,,I, . , WI 11.75 ;I l i r < i ~ r n ,I,I , ( '~w:f iIci~w tic Sac~ii~t,,,, ,Ir ( ' o~n~~ ,~ tc I l : i . O lei era o PI:IC> I 5 l i a< . f . r,, i,iv ./,>h. 80.3, ici: Miyrie 1'1. 15,1840 iihr\iii.. i . r i i I H I T l i > # \iiq>c!#u' 11, < I kII 11, I H .

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9. Segue-se ainda que, no Sacramento da Penitência e perdão da culpa, tiit i papa ou bispo nada mais faz do que o menor dos sacerdotes; sim, onde iião há sacerdote, qualquer pessoa cristã, mesmo que seja uma mulher ou criança, faz o mesmo. Pois caso um cristão puder te dizer: "Deus te perdoa icus pecados, em nome", etc. e tu puderes aceitar essa palavra com fé firme, coino se Deus mesmo te dissesse isso, então com certeza estarás absolvido na iitesma fé. É tão completamente que tudo depende da fé na palavra de Deus. I'ciis o papa, bispo ou sacerdote nada podem fazer por tua fé. Assim, nin- ptiém pode transmitir ao outro palavra de Deus melhor do que a palavra co- itiiim que ele disse a Pedro: "O que desligares será desligado." Esta palavra deve constar de toda absolvição; mais ainda: nela está contida toda absolvi- y3o. Não obstante, deve-se respeitar a ordem da autoridade, e não desprezá- Iit. Entretanto, não nos enganemos quanto ao sacramento e seu efeito, como se ele fosse melhor quando dado por um bispo ou papa do que quando dado [por um sacerdote ou leigo. Pois da mesma forma corno a missa, o Batismo o11 ; i distribuição do santo Corpo de Cristo efetuados pelo sacerdote valem tanto iliianto se o papa ou o bispo o lizessem, assim ocorre com a absolvição, isto 6 . com o Sacramento da Penitência. O fato de reservarem para si a absolvição iIe certos casos17 não torna seu sacramento maior ou melhor, mas é como se, ~ i o r alguma razão, privassem alguém da missa, do Batismo ou algo assim; ciiin isto, nada seria acrescentado ao Batismo e a missa ou deles tirado.

10. Por isso, se crês na palavra do sacerdote quando ele te absolve (isto i.. i~tiando, em nome de Cristo e no poder de sua palavra, te desliga dizendo: " l i i i te absolvo de teus pecados"), então os pecados certamente também es- i:io nhsolvidos perante Deus, perante todos os anjos e todas as criaturas. Isto tic.oi.re não por tua causa, não por causa do sacerdote, mas por causa da pala- \. i ; i vcraz de Cristo, que não pode estar te mentindo ao dizer: "O que desliga- I C ~ herá desligado." No entanto, se não crês que é verdade que teus pecados estilo perdoados e desligados, então és um pagão, não-cristão, descrente em til:icão ao teu Senhor Cristo, o que constitui o mais grave pecado contra I Iiiis. E não vás de modo algum ao sacerdote se não queres crer em sua absol- vic.l»; farás um grande mal a ti mesmo com tua descrensa. Pois com tal des- rtciiça transformas teu Deus num mentiroso. Ele te diz através de seu sacer- iIi)lc: "Tu estás livre de pecados." Tu, porém, retrucas: "Eu não creio nisso i i i i duvido disso", como se estivesses mais seguro em tua opinião do que Deus ciit suas palavras. Ao invés disso, deverias abrir mão de todas as opiniões 1iiOprias e aceitar a palavra de Deus, proferida pelo sacerdote, com fé irremo- vivel. Pois se duvidas que tua absolvição seja do agrado de Deus e que estejas livi-c de pecados, não é isto como se dissesses: "Cristo não disse a verdade, e i i i i150 sei se lhe agradam suas próprias palavras, ditas a Pedrn: O que desli-

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I 1 ('asos reservados são ''certos crimes mais atrozes e graves" em que os bispos e o papa se re- recvain o direito de absolvicão. Se alguém de menos categoria pronuncia a perdão, este não 6 v!ilido. também perante Deus, segundo a doutrina romana. Mas não há casos reservados cri) lace dn tiiorle. V . "Cânanes e decretos do Concilio de Trento", Sessão XIV: Sacramen- ii, <lii PçiiitPnçia. cdpitulo vii.

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gares será desligado"? Ó Deus, livra todas as pessoas de tal descrença diabó- lica.

11. Quando estás absolvido de teus pecados, sim, quando teu pecado te atormenta a consciência e um cristão piedoso - homem ou mulher, jovem ou velho - te consola, deves aceitar isso com tal fé, que preferirias te deixar despedaçar e matar muitas vezes, e até renegar todas as criaturas, a duvidar que assim é diante de Deus. Já que de qiialquer forma nos é ordenado crer na graça de Deus e esperar que nossos pecados nos sejam perdoados, quanto mais deves então crer nisso quando ele te dá um sinal disso através de um ser huniano! Não há pecado maior do que não crer no artigo "remissão dos pe- cados", que oramos diariamente no Credo. Este pecado é chamado de peca- do contra o Espirito Santo. Ele fortalece todos os outros pecados e os torna imperdoáveis por toda a eternidade. Vê, pois, que Deus e Pai gracioso nós te- mos, que não apenas nos promete o perdão dos pecados, mas também nos or- dena que creiamos que estão perdoados, sob pena de incorrermos no mais grave dos pecados. E com o mesmo mandamento nos urge a termos uma consciência alegre, enquanto, com ameaça de pecado terrível, nos afasta dos pecados e de uma má consciência.

12. Alguns nos ensinaram que devemos e precisamos estar incertos quan- to á absolvição e duvidar se fomos aceitos na graça e se os pecados estão per- doados, visto não sabermos se a contrição foi suficiente ou se houve suficien- te satisfasão pelos pecados. E, por não o sabermos, também o sacerdote não poderia impor uma penitência adequada. Toma cuidado com esses tagarelas sedutores e não-cristãos. Também não importa o fato de o sacerdote ter de estar incerto quanto a tua contrição e a tua fé. Basta-lhe que te confesses e de- sejes uma absolvição. E esta que ele deve te dar e é obrigado a te dar. O que vai resultar dela, contiido, é coisa que ele deve confiar a Deus e a tua fé. Não deves discutir primeiramente se tua contrição é suficiente ou não, mas estar certo de que, mesmo depois de todo o teu esforço, tua contrição é insuficien- te. Por isso, deves te refugiar na graça de Deus, ouvir sua palavra suficiente- mente certa no sacramento, aceitá-la com fé livre e alegre e não duvidar que encontraste graça -não mediante teus méritos ou tua contrição, mas por sua graciosa misericórdia divina que, gratuitamente, te promete, oferece e conce- de perdão dos pecados, para que, assim, contra toda tribulação por parte do pecado, da consciência e do diabo, aprendas a te jactar e vangloriar não de ti mesmo nem de tuas ações, mas da graça e misericórdia de teu querido Pai no céu. Depois disso, faze tanto mais contrição e tanta satisfação quanto pude- res. Só deixa que essa fé singela no perdão imerecido, prometido nas palavras de Cristo, tenha a precedência e permaneça no comando.

13. No entanto, aquelas pessoas que não querem encontrar paz a não ser que acreditem terem feito o suficiente em termos de contrição e obras, além de transformar Cristo num mentiroso e de mexer com o pecado contra o Es- pírito Santo, ainda tratam de maneira indigna o santo Sacramento da Peni- tência. Assim elas obtêm o pagamento que merecem: edificam sobre a areia, confiam mais em si mesmas do que em Deus. Disso só pode resultar então uma crescente inquietação da consciência, esforço inútil em busca de coisas

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iiiipossiveis, procura de fundamento e consolo sem jamais encontrá-los, até qiie chegue o término de tal perversão: desespero e condenação eterna. Pois o qiie procuram elas senão obter certeza através de seu próprio agir? E como se i~riisessem reforçar, com suas obras, a palavra de Deus, através da qual elas é que deveriam ser fortalecidas na fé. Tentam escorar o céu, no qual elas é que <leveriam se apoiar. Isto significa não permitir que Deus seja misericordioso e qiierer tê-lo apenas como juiz, como se ele não devesse perdoar nada de gra- <:i, sem que lhe tenha sido pago antecipadamente. No entanto, em todo o evangelho não lemos a respeito de alguém de quem ele tenha exigido outra coisa do que a fé. Demonstrou todos os seus benefícios para com os indignos clc graca e por pura graça, ordenando-lhes, depois, que vivessem corretamen- ic e se fossem em paz, etc.

14. Não te preocupes com o fato de que um sacerdote esteja errado, este- ja ele próprio ligado ou seja leviano em sua absolvição. Se receberes as pala- vras com singeleza e nelas creres, sem saber de seu erro ou de sua ligavão e scin desprezá-los, então estás absolvido e tens o sacramento por inteiro. Pois, coino dissemos, ele não depende do sacerdote, nem do teu agir, mas sim intei- rarnente de tua fé: tens na exata medida em que crês. Sem essa fé, mesmo que piidesses ter toda a contrição do mundo, tratar-se-ia da contrição de Judas, qiic encoleriza a Deus mais do que o reconcilia. Pois nada reconcilia a Deus iiiclhor do que quando se lhe presta a honra [de reconhecer] que ele é veraz e giacioso. Só faz isso quem crê em suas palavras. Assim, Davi lhe rende lou- vor: "Senhor, tu és paciente, misericordioso e veraz." [SI 86.15.1 E esta mes- iii:i verdade também nos redime de todos os pecados, contanto que nos ape- r:iiiiiios a ela com a fé.

15. Disso resulta que as chaves e a autoridade de São Pedro iião são uma :iiili~ridade, mas um serviço, e que as chaves não foram dadas a S. Pedro, iii;is a li e a mim. As chaves são tuas e minhas. Pois na qualidade de papa ou Iiisl>i~ São Pedro não precisa delas; elas também não lhe são necessárias nem iiici\. Mas toda a sua virtude consiste em que ajudam os pecadores, consolan- i10 c I'ortalecendo sua consciência. Assim, Cristo ordenou que a autoridade i I ; i Igreja seja iim serviço e que, por meio das chaves, o clero não sirva a si iiic\iiio, mas unicamente a nós. Por isso, como se vê, o sacerdote nada mais l';i/ do que dizer uma palavra, e o sacramento já está ai. E a palavra é palavra < I < , I)ciis, conforme ele prometeu. Além disso, o sacerdote dispõe de suficien- 1i.5 siii;iis e razões para absolver quando vê que se deseja dele a absolvição. lilc i120 i. obrigado a saber mais do que isso. Digo essas coisas para que a gra- <iiisihhiiiia virtude das chaves seja apreciada e honrada, e não desprezada por ~.:iii\;i de abiisos cometidos por alguns que nada mais fazem do que excomun- p, i i i . :iiiicaçar e atormentar. Transformam essa autoridade aprazível e conso- I:i<lr~i:i ciii pura tirania, como se, com as chaves, Cristo tivesse instituído ape- I I ; I ~ ;i voiiiade e o domínio deles, sem saber para que usá-las.

Ih.' I'ara qiie ninguém torne a me acusar de estar proibindo boas obras, <lixo qiic dcvciiios, com toda a seriedade, sentir contrição e pesar, farer con- lis;lil c 11i1;is obras. I'oréiii iiisisto taiilo quanto posso em que deixemos que a li. i111 s;ici.;iiiieiiio scju n coiha principal c a heranva pela qual alcaii~aiiios a

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graça de Deus. Depois então façamos muitas coisas boas, tão-somente para a honra de Deus e para o bem do próximo, e não para que confiemos nelas co- mo suficientes para pagar pelo pecado:Pois Deus dá sua graça gratuita e li- vremente; assim, de nossa parte, devemos servi-lo também gratuita e livre- mente. Além disso, tudo o que eu disse a respeito deste sacramento destina-se as pessoas que têm uma consciência aflita, inquieta, equivocada e assustada, que gostariam de livrar-se do pecado e ser piedosas, mas não sabem por onde começar. Pois elas também estão verdadeiramente contritas, até contritas de- mais e desalentadas. A essas pessoas Deus consola por intermédio do profeta Isaias: "Preguem aos desanimados e digam-lhes: Consolamini, sejam conso- lados, vocês desanimados; vejam, aí está o Deus de vocês." (1s 40.1,9.) E Cristo diz: "Venham a mim, vocês que estão sobrecarregados e cansados, eu os consolarei", etc. (Mt 11.28.) Quanto aos duros de coração, porém, que ainda não desejam consolo para sua corisciência, que também não sentiram esses martirios, a esses o sacramento de nada aproveita. E preciso amolecê- los e atemorizá-los primeiramente com o terrível juizo de Deus, para que eles também procurem esse consolo do sacramento e aprendam a suspirar.

17. Caso se queira perguntar a alguém na confissão, ou caso alguém queira examinar a si mesmo, se está verdadeiramente contrito ou não, permi- to que seja feito. Mas de tal forma que ninguém seja tão atrevido perante Deus ao ponto de afirmar que está suficientemente contrito.'(Isso é presun- ção e mentira; ninguém tem contrição suficiente por causa de seu pecado.) Também [admito] que o exame seja mais amplo, [no sentido de verificar] se a pessoa crê firmemente no sacramento, que seus pecados lhe são perdoados, assim como Cristo disse ao paralitico: "Meu filho, crê, que teus pecados es- tão perdoados" [Mt 9.21; e a mulher: "Crê, minha filha, a tua fé te cusou." [Mt 9.22.1 Esse tipo de inquirição tornou-se algo muito raro neste sacramen- to; lida-se apenas com contrição, pecado, satisfação e indulgência. Assim, é sempre um cego guiando outro cego. Em verdade, no sacramento o sacerdote traz, em sua palavra, a mensagem de Deus sobre o perdão dos pecados e da culpa. Por esta razão, de fato ele é que mais deveria perguntar e discernir se a pessoa também está receptiva para a mensagem. E ela só pode tornar-se re- ceptiva através da fé e do desejo de receber essa mesma mensagem. De peca- do, contrição e boas obras deve-se tratar em prédicas antes do sacramento e da confissão.

18. Por vezes, acontece que Deus não deixa uma pessoa encontrar o per- dão dos pecados; depois do sacramento, sua consciência continua tão agitada e inquieta quanto antes. Neste caso, deve-se agir com sabedoria, pois o defei- to está na fé.'E impossivel que o coração não esteja alegre se crê no perdão de seus pecados, assim como é impossível que ele não esteja aflito e inquieto se não crê que seus pecados são perdoados. Agora, se Deus deixa que a fé per- maneça fraca, não devemos desanimar por causa disso, mas aceitar isso co- mo uma tentação e tribulação, através das quais Deus testa, incita e impele a pessoa para que clame e implore tanto mais por tal fé, dizendo juntamente com o pai do possesso no evangelho: "O Senhor, ajuda minha falta de fé" [Mc 9.41, e com os apóstolos: "Ó Senhor, aumenta-nos a fé." [Lc 17.5.1

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Dessa forma, a pessoa aprende que tudo é graça de Deus, o sacramento, o pcrdão e a fé, até que deixe de confiar em suas próprias forçasia, desespere de si iiresma, deposite sua esperança unicamente na graça de Deus e a ela se ape- ~ L I C sem cessar.

19. A penitência e o Sacramento da Penitência são duas coisas diferen- tes. Como dissemos acima, o sacramento consiste em três coisas: na palavra de Deus, que é a absolvição, na fé nessa absolvição, e na paz, que é o perdão dos pecados que certamente se segue ã fé. Mas a penitência também é dividi- cln em três partes: contrição, confissão e satisfação.

Na contrição existem vários abusos, conforme indicamos acima; o mes- i110 ocorre também com a confissão e a satisfação. Existem muitos livros cheios destas coisas, mas, infelizmente, poucos sobre o Sacramento da Peni- tSiicia. Onde, porém, o sacramento acontece corretamente na fé, a penitência - contrição, confissão e satisfaçáo - é fácil, e não há o perigo de que ela se-

i:] demais ou de menos. Pois a fé no sacramento nivela todo solo acidentado e cobre todos os vales. Quem tem a fé no sacramento não pode errar, nem na contrição, nem na confissão, nem na satisfação; e mesmo que erre, isso não Ilie fará mal algum. Entretanto, onde não há fé também não há contrição, coiiiissão e satisfação suficientes. É dai que provêm tantos livros e ensina- iiiciitos sobre a contrição, a confissão e a satisfação, com que muitos cora- <fies são amedrontados, se confessam frequentemente, sem saber se se trata iIc pecado diário19 ou mortal. Desta vez, vamos nos deter um pouco neste as- siiiito:

20. O pecado diário pode ser confessado unicamente a Deus, não ao sa- ccrdote. Com isso, contudo, surge uma outra pergunta: o que é pecado diário c 11 que é pecado mortal? Nunca houve e nunca haverá um mestre que seja rviidito ao ponto de dar uma regra segura para distinguir os pecados diários ilos mortais, com exceção das transgressões graves dos mandamentos de I)ciis, tais como adultério, assassinato, roubo, mentira, calúnia, falsidade, irclio e coisas semelhantes. Além disso, apenas a Deus compete julgar que 011- iros pecados ele considera mortais. É impossivel ao ser humano reconhecer ijso, como diz S1 18 [191.12: "Ó Deus, quem pode reconhecer todos os seus pecados? Purifica-me dos pecados ocultos." Por esta razão, na confissão pri- vtidn têm lugar apenas os pecados que reconhecemos abertamente como pe- i.;i(los mortais e que oprimem e amedrontam a consciência no momento. Pois sc tivkssemos que confessar todos os pecados, precisariamos confessar-nos a lodo iiistante, visto que nunca estamos sem pecado nesta vida. Também nos- s:is hoas obras não são puras e sem pecado. Mas não é sem proveito confessar l:iiiil)6iii pecados pequenos, especialmente se não estamos conscientes de ne- i i l i i i i i i pecado mortal. Pois, como dissemos, no sacramento é ouvida a pala- vi:i <Ic 1)ciis e a fé é mais e mais fortalecida. E mesmo que alguém não coufes- s:issc iiada, seria proveitoso, por causa dessa fé, ouvir muitas vezes a absolvi-

I H 1Ii.n <I<,.Y <,r licri,/ uu,idft4esforrn lo,?.~. no original. I ' ) I'rr;i<l<ih < l i A i i o i , v f i u r~ccsict<>s veiii;ii.;. seviindo ii <loiitriiia romana.

ção e a palavra de Deus, para que, assim, nos acostumemos a crer na remis- são dos pecados. É por isso que eu disse: é a fé no sacramento que faz tudo, seja a confissão demasiada ou insuficieiite. Tudo vem para o bem daquele que crê no sacramento e na palavra de Deus.

Quanto á satisfação, que isto seja o bastante: a melhor satisfação é não mais pecar e fazer todo bem ao próximo, seja ele inimigo ou amigo. Essa sa- iisfação raramente é mencionada. É só com orações impostas que se quer pa- gar por tudo.

21. Essa é a autoridade sobre a qual Cristo diz, em Mt 9.6ss., aos escri- has incrédulos: "Para que vocês saibam que o Filho do homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados, disse ao paralítico: Levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa. E ele levantou-se e foi para casa. Quando as pessoas viram isso, admiraram-se e louvaram a Deus, que deu tal autoridade aos seres humarios." Pois essa autoridade de perdoar os pecados outra coisa não é senão o que iim sacerdote - sim, caso necessário, qualquer cristão - pode dizer ao outro, sentenciando com alegria, ao vê-lo aflito e amedrontado em seus pecados: "Tem bom ânimo, teus pecados estão perdoados." [Mt 9.2.1 E quem aceita e crê nisto como palavra de Deus, a esta pessoa eles certa- mente estão perdoados. Onde, entretanto, não existe a fé, de nada adianta, mesmo que Cristo e Deus mesmo pronunciassem aquela sentença, pois Deus não pode dar a quem não quer ter. E não quer tê-lo quem não crê que lhe te- nha sido dado. Essa pessoa presta uma grande desonra à palavra de Deus, co- mo dissemos acima. Vês, portanto, que toda a Igreja está cheia de perdão dos pecados, porém são poucos os que o aceitam e recebem. É porque os outros não crêem nele e querem se garantir com suas próprias obras.

Assim, é verdade que um sacerdote realmente perdoa o pecado e a culpa, mas não pode conceder ao pecador a fé que aceita e recebe o perdão. Esta fé é Deus quem deve dar. Não obstante, o perdão é verdadeiro, tão verdadeiro como se Deus mesmo o proferisse, seja ele apreendido pela fé ou não. Essa autoridade de perdoar pecados e , assim, de pronunciar um veredito em lugar de Deus ninguém possuía no Antigo Testamento, nem o sumo sacerdote, nem o menor sacerdote, nem o rei, nem os profetas, nem qualquer membro do po- vo, a não ser que lhe fosse especialmente ordenado por Deus, como aconte- ceu com Natã em relação a Davizo. No Novo Testamento, porém, todo cris- tão tem essa autoridade, onde não houver um sacerdote disponível. Ele a tem através da promessa de Cristo, feita quando disse a Pedro: "O que desligares na terra será desligado no céu." [Mt 16.19.1 Se ele tivesse dito isto exclusiva- mente a Pedro, não teria dito, em Mateus 18.18, a todos em geral: "O que vocês desligarem na terra será desligado no céu." Aqui ele fala a toda a cris- tandade e a cada cristão em particular. Assim, o que há de grande em relação a um cristão é que Deus não pode ser amado e louvado plenamente se não nos

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fase dado ouvir mais d o que uma pessoa se dirigindo a nós em tal palavra. O r a , o mundo está cheio d e cristãos, mas ninguém repara nisso nem agradece :r Deus.

Em resumo: t udo é proveitoso nada é prejudicial

quem nào crê, é prejudicial nada é proveitoso

Um Sermão sobre o Santo, Venerabiiíssio Sacramento do Batismo'

I>. M. A.'

Neste segundo sermão da trilogia de 1519, dedicada a duquesa Margarida de Braunschweig e Luneburgo, Lutero deiiionstra qiie Palavra e sacramentos formain o centro da fonte de toda a vida, sem o qual não pode haver fé salvadora. Em 1537 con- firma, nos Artigos de E.smolcoIde (lII,VIII,10), que "Deus não quer tratar com nós Iionieiis de outra maneira seiião mediante a sua palavra externa e pelos sacramentos." O sacraniento não é apenas sustentado pela Palavra; ele é "Palavra vi~ivel", isto é, torna a Palavra concreta na vida do cristão.

O tratado é ainda livre de polêniica, einbora já corrija um conceito em uso na Igreja do fim da Idade Média: o Batismo não elimina o pecado, mas o perdoa e o ata- ca. Até 1523 Liilero aceitou a ordem de Batismo da Igreja de então, em uso na Igreja de Roma em Wittcnber~. Só em 1526 abreviou essa ordem drasticamente. oorém nada - acrescentoii. Encontramo-la como apêndice ao Catecismo menor e em várias ordens dc culto. Ern 1520 ia entrou eiii riolêmica com os anabatistas'. mas a oartir de 1528 co- nieçou coni lima nova explicacão e defesa do Batismo. Escreveu a dois pastores uma carta A re.speilo do rchaiisrrrod e pregou quatro serm6es sobre o Batismo. Estes for- mam a base para sua exposição nos catecisinos em 1529. De 1528 a 1539 pregou ao to- do 23 sermões sobre o Batisino, o que mostra a grande importância que via n e t e sa- cramento de entrada na comunhão dos santos. Lutero tomava muito a sério o Batis- riio: não é obra humana, mas dc Deus, baseada especialmeiite na sua ordem dada em Mc 16.16 e Mt 28.18s.

1.utero entende que Deus honra sobremaneira iiosso Batismo no batismo de seu Filho. Porque é iiiseparávcl da morte de Cristo, o Batismo não pode ser repetido. Ele dá Cristo urna vez por todas ao batizado e o separa de todos os deniais seres humanos: anora é oovo de Cristo lsecão 2). Seeuiido o oadrão da triloeia. Lutero encontra três . . , " " . coisas importantes no Batistiio: o sinal, o significado, a fk. O sinal acontece de manei- ra ripida: rnergulha-se a criança na água e tira-se da água. Lutero preferia a iinersão.

I Eyn Sermo" von dem heyliyen Hoch wirdipm Socrameni der Toujfe, WA 2.727-37. Tradu- ção de Annemarie H6hn r Luis M. Sander.

2 Doutor Marlinho. agostiniano. 3 Anabatirtas (do grego, com o sentido de "rebatirar") era título dado em crítica aos rrfor-

madoics radicais que não queriam aceitar o Batismo de infantes. Eles próprios não aceita- vani o titulo cama correto. 6 difícil ou mesmo impossivel determinar sua origem. Centros do século XVI incluem Zurique, Suíça; Zwickau e Wittenberg, na Saxônia; Morávia; No- roeste da Alemanha e 0s Paises Baixos; Münster, na Westfália; região do Reno e Sudoeste da Alemanha. Entre os mais conhecidos teólogos estão Meno Simons (menonitas) e Tomás Milii1,er.

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Siin ordem de Batismo de 1523 ainda prescrevia o mergulho da criança na pia batia- rri;iI. Hucerse Zwingliob preferiam o regar com água. Lutero julga que o significado é iiiiportante: o mergulhar significa o morrer para o pecado, e o tirar da água significa o i~.ssuscitar, pela graça, do novo ser humaiio. Mas o significado iião se cumprc total- iticiite durante a vida: é necessário morrer. Assilii, o Batismo significa, em última aná- lirc. a morte e ressurreição no último dia (seção 7). E verdade que o Batismo já nos faz iiiorrer e renascer sacramentalmente, mas a obra total do sacraniento ainda não se i.i~iiipletou. Somos sacramentalmente puros e sem pecado. Na realidade. poréni, con- ii~iiiamos no pecado, mas começamos a crescer em piii-era c inocêricia. Na rxpiicação <I:! Carta aos Gálatas Lutero expande este conceito. falando do sirnul iusrus e( 0ecr.o- lor (simultaneamente justo e pecador) que somos como cristãos. Ele sabc que temo5 i.citidicòes para uma nova vida, uois Deus se aliou a nos i>elo Batismo. nos dá o seu Es- ~iirito santo e nos preparou pais o últinio dia. ~izeiidoque Deus cumpre a soa aliaii- c:(, Lutero pode apelar e di7,er: cumpre o teu Batismo (seção 9). L.utero concorda coiii Agostinho7 que diz: "O pecado é totalmente perdoado no Batismo; não iio sentido de (liic deixasse de existir, mas de que não é imputado." (Seção 11.)

A terceira parte iniportante é a fé. É a aceitação firme da promessa de Deus de rliie a nossa pureza vem da imputação de Deus, da sua aliança, da sua misericúrdia. "Se crês, tens" é o desafio de Lutero (seção 15). Ele cntende que o Batisiiio faz duas coisas: perdoa o pecado e nos arma para que o pecado se afaste de no,. Entende que t i i i Credo Apostólico há uma referência ao Batisnio quando confessamos: "Grei« (...) tiii ~icrdão dos pecados."

Ueritro desta perspectiva I.utero compreende também o sofrimeiito do cristão (se- c5ii 16). O sofrimento é proveitoso porque afasta o pecado. Quem quer livrar-sc do ~icc;~do precisa morrer. Ora, o pecado não gosta de morrer. Por isso sofrer e morrer ~>i>ilcin ser tão dolorosos. Mas, conclui, o pecado que trouxe a morte niorre com a iiioitc. Ileus nos colocou em várias ordens para aprendermos a nus exercitar na vida i-r isi;i, nias também a sofrer. Lutero crê que não há voto maior do que o voto do Batis- ~ I I C I : i> voto de derrotarmos o pecado e iios tornarmos saiitos pela graça de Deus; farer- I I I C I ~ iiossa carne morrer e recebermos, pela fé, a vida de Cristo em nós.

O tratado foi escrito em alemão e publicado por João Grunenberg de Wittenberg. A lirimeira edição saiu no dia 9 denovembro de 1519. Entre 1519e 1523 houve 16edi- i'ijc\ cin Wittenberg, Leipzig, Nürnberg e outras cidades. Em 1543 houve tradução pa- I:I ( I 1;ttim.

Martim C. Warth

5 Mariinho Bucer (Butzer ou Kulihorn; 1491-1551), nasceu em Sélestat (Schlettstadt), na Al- \!icia. Ransa, e faleceu em Cambridge, Inglaterra. Era dominicano, estudou Teologia em I lcidclberg. Erasmo o inclinou ao protestantismo, tornando-se um dos reformadores da é1iiica. Foi influenciado por Lutero no Debate de Heidelberg, ern 1518. Introduziu a Refor- iii;t ciii Hstrasburgo em 1523. Para evitar divisdes, propôs compromissos e usou afirma~des iliihias. Quando se aproximou de Zwlnglio recebeu as criticas de Lutero. Em Augsburgo (1530) coiicordou com a posicão luterana, mas se negou a assinar a Con/issdo de Augsbur- i,,. Ajii<loii depois a formular a Con/issdo lelropolitano (Estrasburgo, Constan~a. Mem- iiiiriueti e I.indau). Na Dieta de Ratisbona (Regensburg) procurou unir protestantes e católi- co\ ri,~~i;irios. Quando recusou assinar o fnlerirn recebeu convite do arcebispo Cranmer pa- i;, Iccioriiir Teologia em Cambridge e para auxiliar na Reforma da Inglaterra.

1, t 'I'. i>)>. 425,s.. nota 4. 7 ( ' I . 11. 11,. tiola H , p. 67, nota 46 e p. 401, nota 4.

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1. Em grego, Batismo chama-se baptismoss; em latim, mersio9. Isto sig- nifica que algo é totalmente submerso na água, que o cobre por completo. Embora em muitos lugares não mais seja costume submergir e mergulhar as crianças na água batismal, mas apenas derramá-la com a mão sobre elas, o antigo costume deveria ser mantido. E seria apropriado que -em conformi- dade com o termo "batismo" - a criança ou qualquer outro batizando fosse imerso por inteiro na água, batizado e então tirado da água. Além disso, na língua alemã a palavra Tauffo indubitavelmente provém da palavra Tieffe"; portanto, que se mergulhe bem fundo o que é batizado. Isto também é exigi- do pelo significado do Batismo: ele significa que o velho ser humano, bem como o nascimento pecaminoso de carne e sangue, deve ser totalmente afoga- do pela graça de Deus, como ainda ouviremos. Por isso, dever-se-ia fazer jus- tiça ao significado e dar um sinal apropriado e completo.

2. O Batismo é um sinal externo ou uma insígnia, que nos aparta de to- das as pessoas não batizadas, para que, através dele, sejamos reconhecidos como um povo de Cristo, nosso guia, sob cujo pendão (que é a santa cruz) lu- tamos continuamente contra o pecado. Por isso, devemos considerar três coi- sas no santo sacramento: o sinal, o significado e a fé. O sinal consiste em mergulhar a pessoa na água em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. No entanto, não a deixamos dentro da água, mas a tiramos novamente. Por isso utilizamos a expressão auss der Tauff gehabenlz. Portanto, o sinal deve conter ambas as partes: o colocar na água do Batismo e o tirar deia.

3. O significado é um morrer bem-aventurado do pecado e uma ressur- reição na graça de Deus, de modo que o velho ser humano, concebido e nasci- do em pecado, é afogado, e um novo ser humano, nascido na graça, surge e se levanta. Assim, em Tt 3.5, S. Paulo chama o Batismo "um banho de novo nascimento", pois neste banho se nasce novamente e se é renovado. Também Cristo diz em Jo 3.3,5: "Se vocês não nascerem de novo, da água e do Espiri- to (da graça), não podem entrar no reino dos céus." Pois assim como uma criança é tirada do ventre de sua mãe e nasce, sendo, por tal nascimento car- nal, um ser humano pecador e um filho da irail, da mesma forma o ser huma- no é tirado d a água do Batismo e nasce espiritualmente, tornando-se, me- diante esse nascimento, um filho da graça e um ser humano jus:ificado. Des- ta maneira, os pecados se afogam no Batismo e surge a justiça em lugar do pecado.

4. O significado do Batismo - o morrer ou afogar-se do pecado - não se realiza inteiramente nesta vida, até que o ser humano morra também cor- poralmente e se transforme completamente em pó. O Sacramento ou sinal do

8 Baplismos significa o submergir, o banhar, a lavar. 9 Menio significa a imergir, a submergir, o jogar-se na água, o afogar.

10 13alisnlo. I I I'r<iliiridera. 12 I'iiikdti dti &gua do Batismo. 13 ( ' 1 . 2.3.

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13;iiisrno se realiza depressa, como vemos com nossos próprios olhos, mas o sigiiilicado, o Batismo espiritual, o afogamento do pecado, dura enquanto vivciiios e só é consumado na hora da morte. Então a pessoa é verdadeira- iiiciite imersa na água batismal e se realiza o significado do Batismo. Por is- sii, esta vida nada mais é que um incessante batizar espiritual até a morte. E iliiciii é batizado é condenado a morte, como se, ao realizar oBatismo, o sa- cri-dote dissesse: "Vê, tu és carne pecaminosa; por isso te afogo em nome de I>ciis e te condeno á morte em seu nome, para que todos os teus pecados mor- i-;i~ii e pereçam contigo." Neste sentido, S. Paulo diz em Rm 6.4: "Somos se- ~iiiltados c o u ~ Cristo para a morte pelo Batismo." E quanto antes a pessoa iiiorre depois do Batismo, tanto mais cedo é consumado seu Batismo. Pois o ~iccado não acaba totalmente enquanto vive este corpo, que foi concebido tão iiitcgralmente no pecado, que o pecado e sua natureza, como diz o profetald: "I;iii pecados fui concebido e em desvirtudes me carregou minha mãe." [SI 5 1.5.) Para tal natureza iião há rembdio algum, a não ser qiic ela inorra e se :iiiiqiiile juntamente com seu pecado. Assim, a vida de um cristão não é outra coiw do que um começar a morrer ditosamente, desde o Batismo até a sepul- liii-a. Pois Deus quer renová-lo totalmente no último dia.

5. Do mesmo modo, o tirar da água batismal passa depressa, mas o seu \ipiiificado, o nascimento espiritual, a multiplicação da graça e da justiça, tu- ~ I i i isso certamente inicia com o Batismo, mas dura também até a morte, sim, :ti? o iiltimo dia. Só então se realizará por completo o que o tirar da água do I1:iiisiiio significa. Então ressuscitaremos da morte, dos pecados, de todo iii:il , puros em corpo e alma, e viveremos eternamente. Então, completamen- ic iir:idos da água do Batismo e nascidos perfeitos, vestiremos o verdadeiro I I ;ije hntismal'r da vida imortal no céu. E como se os padrinhos dissessem, ao iii;iiciii a criança da água batismal: "Vê, teus pecados foram afogados ago- i :i, e iiós te recebemos, em nome de Deus, na vida eterna e inocente." Pois do iiic\iiio inodo, no último dia, os anjos vão tirar todos os cristãos batizados e ~lii<lii\(is e consumar então o que significam o Batismo e os padrinhos, como ( 'iihto di/ em Mt 24.31: "Ele enviará os seus anjos e eles lhe reunirão os seus ~.\i.olliid»s, dos quatro ventos, de uma a outra extremidade dos céus."

O. Antigamente, este Batismo foi anunciado no dilúvio de Noé, quando ~ o i l i ~ o iiiiiiido foi afogado, com exceção de Noé, com três filhos e suas mu- Ilicic\; :to lodo, oito pessoas foram conservadas na arca. O fato de que as ~ii" . \ i>; i \ < I t i iiiiii~do morreram afogadas significa que os pecados são afogados 111, 1l;iiiiiiio. I'orém o fato de que as oito foram preservadas na arca, junta- iiiciiic cr)iii toda espécie de animais, significa que o ser humano é salvo atra- i . ~ . H:iiisriio, COIIIO S. Pedro explica em sua segunda epistolal6. Só que o l i . i i i . . i i i< i C i i i i i dilúvio muito maior do que aquele. Enquanto aquele dilúvio

1 . 1 ( 1 \.iIiiiisi:i C cli;iiti;«li> liui I.iiier<> tiiiriblm de profcla rrii wntido anil>li>. 1 ' I i i!,iir l i ;ki l \c i i ; i l 1ii;iiicii ci,iii qiie se cobre o infuiiie batizado siiriholira i, niaiilo <Ia jiiati~;i

I ~ i i t i l < i i i i i r I \ f ~ 1 . 1 0 1 qi!e <i t>;ili,;i<l<, içcrl>c pcl;i fk cinl <'ri\lii. 1 0 ( ' I > I'r 2 . r I I'i. 1.2lb.

afogou apenas as pessoas que viviam naquele ano, o Batismo ainda afoga to- da sorte de pessoas pelo mundo todo, desde o nascimento de Cristo até o últi- mo dia. E é um dilúvio d a graça, a o passo que aquele foi um dilúvio da ira. É o que anuncia o Salmo 28[29].10: "Deus fará um novo e continuo dilúvio." Pois sem dúvida são batizadas muito mais pessoas do que morreram afoga- das no dilúvio.

7. Em conseqüência, certamente é verdade que, ao sair do Batismo, uma pessoa é pura e sem pecado, totalmente sem culpa. Mas muitos não entendem isso corretamente. Acreditam que não existe mais pecado algum e então fi- cam preguiçosos e negligentes em mortificar a natureza pecaminosa. O mes- mo acontece com algumas pessoas depois de se confessarem. Por isso, como dissemos acinia, deve-se entender isso corretamente e saber que a nossa car-

I ne, enquanto viver nesta terra, é por natureza ma e pecaminosa. Para fazer frente a isso, Deus arquitetou um plano: quer recriá-la totalmente. E o que Jr 1 8 . 4 ~ ~ . anuncia: "Quando o vaso não lhe saiu bem, o oleiro jogou-o nova-

I mente ao monte de barro, amassa-o e faz então um outro vaso de seu agrado. Assim (diz Deus) são vocês na minha mão." Em nosso primeiro nascimento não saímos bem. Por isso, Deus nos joga de volta à terra através d a morte e

i I nos recria no último dia, para que então saiamos bem e estejamos sem peca-

do. Ele dá inicio a esse plano no Batismo, que significa a morte e a ressurrei-

i ção no último dia, como foi dito. E por isso, no que diz respeito ao significa- d o ou sinal do sacramento, os pecados já estão mortos com o ser humano, e este já ressuscitou; o sacramento, portanto, já se realizou. Mas a obra do sa- cramento ainda não se realizou de todo, isto é, a morte e a ressurreição no ú1- timo dia ainda estão a nossa frente.

8. Assim, a pessoa está completamente pura e sem culpa de um modo sacramental''. Em outras palavras, isto q u b dizer que ela tem o sinal de

I Deus, o Batismo. Este indica que todos os seus pecados hão de morrer, e que também ela há de morrer na graça e ressuscitar no último dia, para viver eter- namente, sem mácula, sem pecado, sem culpa. Portanto, por causa do sacra- mento é verdade que ela está sem pecado e sem culpa. No entanto, como isso ainda não está consumado e ela ainda vive na carne pecaminosa, ainda não está sem pecado e sem mácula em todos os sentidos; ela apenas começou a tornar-se pura e inocente. Por isso acontece que, quando a pessoa chega a certa idade, manifestam-se os desejos pecaminosos naturais da ira, da impu- dicicia, da concupiscência's, da avareza, da soberba e coisas semelhantes. Ne- nhuma delas existiria se todos os pecados tivessem sido afogados e mortos no sacramento. Por enquanto, seu afogamento através da morte e da ressurrei- ção no último dia somente está indicado. Assim, em Rm 7.18 São Paulo se la- menta - e com ele todos os santos - que são pecadores e têm pecado em sua natureza, embora tivessem sido batizados e fossem santos. E que, enquanto vivcmos, os desejos pecaminosos de nossa natureza se fazem sentir sempre.

~~. .

! 17 I \ t i r i , i i>c i< i \ os pecados r20 perdoados e o batizado e perfeito ela fé. Este é o ponto de ~ p i i i i ~ l : i ~ ' . i i ; i detiii>llstrar a perfeição na vida ainda imperfeita.

I X I ,,,h. !i<> iiiiyiii;il .

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9. Perguntas: "De que me serve então o Batismo, se não apaga nem afasta completamente o pecado?" Aqui é preciso compreender e discernir corretamente o Sacramento do Batismo: o proveito do venerabilissimo Sacra- mento do Batismo consiste em que, nele, Deus se alia19 e se une contigo num pacto gracioso e consolador.

Em primeiro lugar, é preciso que te entregues ao Sacramento do Batismo e seu significado, isto é, que desejes morrer juntamente com os pecados e ser renovado no último dia, conforme denota o sacramento e expusemos acima. Deus aceita isto de ti e faz com que sejas batizado. A partir desse momento, ele começa a te renovar e te infunde suagraça e seu Espírito Santo. Este co- meça a matar a natureza e o pecado e a preparar-te para morrer e res~uscitar no último dia.

Em segundo lugar, é preciso que te comprometas a perseverar nisso, des- truindo, enquanto viveres, teu pecado mais e mais, até a morte. Também isto é aceito por Deus, que te exercita durante toda a tua vida com muitas boas obras e uma variedade de sofrimentos. Com isto, realiza o que desejaste no Batismo: ser livrado do pecado, morfer e ressuscitar, renovado, no ultimo dia, consumando, assim, o Batismo. E por esta razão que lemos e vemos co- mo ele fez com que seus amados santos fossem tão torturados e sofressem muito, a fim de que, mortos logo, cumprissem o Sacramento do Batismo, morressem e fossem renovados. Pois se isso não acontece e não temos sofri- mento nem exercício, a natureza maligna derrota o ser humano, fazendo com que este anule o proveito do Batismo e caia em pecado, permanecendo o ve- lho ser humano de antes.

10. Enquanto subsiste esse teu compromisso com Deus, este, por sua vez, age graciosamente contigo e se compromete contigo no sentido de não te imputar os pecados que estão em tua natureza após o Batismo. Ele não os considerará nem te condenará por causa deles. O que lhe basta e agrada é que estejas em contínuo exercicio e alimentes o desejo de destruir esses pecados e de te livrar deles com teu morrer. Por isso, ainda que maus pensamentos ou desejos se manifestem e ainda que, por vezes, peques e caias, se tornares a te erguer e a entrar na aliança, teus pecados já se foram por força do sacramen- to e do pacto, como diz São Paulo em Rm 8.1. A má e pecaminosa inclinação natural não condena ninguém que crê em Cristo, desde que não siga essa in- clinação nem se submeta a ela. E o evangelista S. João afirma em sua episto- Ia: "Se alguém cair em pecado, temos um intercessor perante Deus, Jesus Cristo, que se tornou um perdão de nossos pecados." [I Jo 2.ls.l Tudo isso acontece no Batismo, em que nos é dado Cristo, como ouviremos no próximo sermãozu.

19 Sich verbinden, no original, significa "fazer uma aliança" e , ao mesmo tempo, "assumir um compromisso" (cf. H . H. BORCHERDT &C. MERZ, eds.. Morlin Lulher; ausge- wahlte Werke, 3 ed., MUnchen. Chr. Kaiser, 1951, v . 1, p. 535).

20 Um sermdo sobre o venerobilissimo Sacramenlo do sonlo e verdadeiro Corpo de (ticlo r sobre os irmandades. pp. 4 2 5 s deste volume. i

11. Se, pois, nXo existisse esse pacto e se Deus, misericordiosameiiie, não fizesse vistas grossas, não haveria pecado tão pequeno que não nos condenas- se, porque o juizo de Deus não tolera pecado algum. Por essa razao, não há consolo maior sobre a terra do que o Batismo, pelo qual entramos no juizo da graça e misericórdia, que não condena o pecado, mas o expulsa com mui- tos exercícios. Neste sentido, Santo Agostinho faz uma bela afirmação: "O pecado é totalmente perdoado no Batismo; não no sentido de que deixasse de existir, nias de que iiZo é imputado."" E como se ele dissesse: O pecado cer- tamente permanece em nossa carne até a morte, manifestando-se sem cessar; mas enquanto nele não consentimos nem permanecemos, ele está ordenado pelo Batismo de tal forma que não condena nem é prejudicial, sendo, pelo contrário, extirpado diariamente mais e mais, até a morte. Por isso, ninguém deve se assustar quando sentir maus desejos e paixões, nem desanimar mes- mo que caia em pecado, mas lembrar-se de seu Batismo e consolar-se alegre- mente com ele, tendo em vista que, no Batismo, Deus se comprometeu a ma- tar o pecado dele e a não imputá-lo para a conderiação, desde que não consin- ta nem permaneça no pecado. Também os pensamentos e desejos de ira, e mesmo a queda, não devem ser motivo para desâiiimo. Devem, pelo contrá- rio, ser aceitos como uma exortação de Deus no sentido de que a pessoa se lembre de seu Batismo e do que Deus lhe disse naquela ocasião, que invoque a graça de Deus e se exercite na luta contra o pecado, e que até deseje morrer para conseguir livrar-se do pecado.

12. Temos que ocupar-nos agora com a terceira parte do sacramento: a fé. Isto quer dizer que creiamos firmemente que o sacramento não apenas sig- nifica a morte e ressurreição no Último dia, pelas quais o ser humano é reno- vado para viver eternamente sem pecado, mas que também certamente inicia e opera isso e nos une com Deus, de forma que queiramos, até a nossa morte, matar o pecado e lutar contra ele; que creiamos firmemente que Deus, por sua vez, quer levar isso em conta e nos tratar graciosamente, não nos julgan- do com todo o seu rigor, pois não estamos sem pecado nesta vida, até que nos tornemos puros através da morte. Compreendes, assim, como uma pessoa fi- ca sem culpa, sem mácula e sem pecado no Batismo, permanecendo, não obs- tante, cheia de muita má inclinação; assim sendo, ela só pode ser chamada de pura no sentido de ter começado a tornar-se pura e de possuir um sinal e um pacto dessa pureza e de dever tornar-se cada vez mais pura. Por causa disso, Deus não considerará a impureza remanescente da pessoa. Assim, sua pureza deve-se mais á imputação graciosa por parte de Deus do que a seu próprio ser, como diz o profeta: "Bem-aventuradas são as pessoas cujos pecados são perdoados. Bem-aventurada é a pessoa a quem Deus não atribui seu pecado." (SI 31[32].1s.) Esta fé é a mais necessária, pois é a razão de todo consolo. Quem não a tem, há de desesperar em pecados. Pois o pecado que permanece após o Batismo faz com que todas as boas obras não sejam puras perante Deus. Por isso, devemos apegar-nos resoluta e ousadamente ao Ba-

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tismo e contrapô-lo a todo pecado e terror da consciência, dizendo humilde- mente: "Sei muito bem que não tenho nenhuma obra pura. Porém fui batiza- do, e através do Batismo Deus, que não pode mentir, fez uma aliança comi- go, para não me imputar meu pecado, mas para matá-lo e eliminá-lo."

13. Compreendemos, pois, agora que a inocência que recebemos no Ba- tismo tem esse nome inteiramente por causa da misericórdia de Deus, que ini- ciou isso, tem paciência com o pecado e nos trata como se não tivéssemos pe- cado. A partir disso, entendemos também por que na Escritura os cristãos são chamados filhos da misericórdia, povo da graça e pessoas da benevolên- cia de Deus? porque começaram a ficar puros pelo Batismo, porque, pela misericórdia de Deus para com o pecado remanescente, não são condenados, até que se tornem completamente puros através da morte e no último dia, conforme manifesta o Batismo com seu sinal. Por isso, enganam-se muito aqueles que acham que ficaram inteiramente puros pelo Batismo. Em sua ig- norância, deixam de matar seu pecado; não querem considerar o pecado co- mo tal, mas persistem nele. Com isso, reduzem seu Batismo a nada, apegam- se apenas a algumas obras exteriores, sob as quais a soberba, o ódio e outras maldades naturais, que não percebem, só se fortalecem e aumentam. Não, não é assim. O pecado, a má inclinação, deve ser reconhecida como pecado verdadeiro, e sua inocuidade deve ser atribuída à graça de Deus. Ele não quer imputar-nos o pecado, desde que o combatamos com muitos exercícios. obras e sofrimentos e, por fim, o matemos com o morrer. Ele não perdoará os pecados das pessoas que não agirem assim, porque não cumprem o Batis- mo e seu compromisso e obstaculizam a obra, já iniciada, de Deus e do Batis- mo.

14. O mesmo vale para aqueles que acham que podem anular e desfazer- se de seus pecados através de satisfação21. Chegam ao ponto de desvalorizar o Batismo, como se nada mais precisassem dele além do fato de terem sido tira- dos da água batismal. Não sabem que o Batismo conserva sua força por toda a vida, até a morte, sim, até o último dia, como foi dito acima. Por isso, acham que podem anular o pecado de outra forma: através das obras. Desta forma, criam para si mesmos e para os outros uma consciência má, aterrori- zada e insegura, e desalento na morte. Não sabem a quantas andam com Deus e acreditam que o Batismo está perdido por causa do pecado e de nada aproveita. Toma cuidado para não entrares nessa! Porque, como dissemos, tendo caído em pecado, a pessoa deve lembrar-se de seu Batismo com toda a força, como Deus firmou um pacto com ela naquela ocasião, comprometen- do-se a perdoar-lhe todos os pecados, desde que ela queira lutar contra eles até a morte. Nesta verdade e aliança de Deus deve-se confiar alegremente. Então o Batismo volta à sua obra e ao seu poder, e o coração volta a estar sa- tisfeito e alegre, não por causa de obras ou satisfação próprias, mas por cau-

22 Cf. I Pe2.10; Lc 2.14; Ef 5.1. 23 Como era ensinado na Igreja de Roma; quanto A satisfação como parte do Sacramento da

Penitência, cf. p. 23, nota 9 e p. 65, nota 34.

sa da misericórdia de Deus que, no Batismo, prometeu mantê-la eternamen- te. A essa fé devemos apegar-nos de tal modo que, mesmo que todas as cria- turas e todos os pecados nos assaltem, nós nos agarremos a ela. Pois quem se deixa afastar desta fé transforma Deus num mentiroso em relação ao com- promisso por ele assumido no Sacramento do Batismo.

15. Esta fé o diabo contesta mais do que qualquer outra coisa. Se a der- rubar, terá vencido. Pois também o Sacramento da Penitência, sobre o qual já falamosu, se fundamenta neste sacramento, visto que só são perdoados os pecados daqueles que foram hatizados, isto é, daqueles a quem Deus prome- teu perdoar seus pecados. Desta forma, o Sacramento da Penitência renova e aponta novamente para o Sacramento do Batismo, como se, na absolvição, o sacerdote dissesse: "Vê, Deus te perdoou agora teu pecado, conforme te pro- meteu outrora no Batismo e conforme agora me ordenou, por força das chave+; agora entras novamente na obra e essência do Batismo." Se crês, tens. Se duvidas, estás perdido. Assim vemos que, através do pecado, o Batis- mo é impedido em sua obra, qual seja, o perdão e a morte do pecado; mas o Batismo somente é aniquilado quando não se crê em sua obra. É a fé que der- ruba os obstáculos a obra do Batismo. Portanto, tudo depende da fé. Falan- do com clareza: perdoar o pecado e livrar-se do pecado ou expulsá-lo são duas coisas diferentes. A fé alcança o perdão dos pecados, mesmo que não estejam expulsos por inteiro. Expulsá-los, contudo, é exercitar-se contra eles e, por fim, morrer. Então o pecado sucumbe por completo. No entanto, am- bas as coisas são obra do Batismo. Assim, o apóstolo escreve aos hebreus - que tinham sido batizados e cujos pecados tinham sido perdoados - que se livrassem do pecado que os assediava26. Pois enquanto creio que Deus não quer me imputar os pecados, o Batismo está em vigor e os pecados estão per- doados, mesmo que persistam em grande parte. Depois se segue sua expulsão através de sofrimento, do morrer, etc. É este o artigo que confessamos: "Creio no Espírito Santo, na remissão dos pecados", etc. Isto diz respeito es- pecialmente ao Batismo, no qual acontece o perdão por meio da aliança de Deus conosco. Por isso não se deve duvidar desse perdão.

16. Segue-se, por conseguinte, que o Batismo torna proveitosos e úteis todos os sofrimentos e, em especial, a morte, de modo que tenham que servir à obra do Batismo, isto é, para matar o pecado. Pois agora não pode ser de outra forma. Quem quer cumprir o Batismo e livrar-se do pecado precisa morrer. O pecado, no entanto, não gosta de morrer, razão pela qual torna a morte tão amarga e horrível. Deus é tão gracioso e poderoso que o pecado, que trouxe a morte, é, por sua vez, expulso com sua própria obra (a morte). Há muitas pessoas que querem viver para tornar-se piedosas e que dizem que gostariam de ser piedosas. Agora, não existe maneira ou caminho mais curto para isso do que através do Batismo e de sua obra, isto é, sofrer e morrer. O

24 Um sermdo sobre o Sacramento do Penitência. pp. 4 0 1 s ~ . 25 Isto é, do oficio das chaves, o ministbrio da canfissâa e absolvição de pecados. 26 Cf. Hb 10.22s.

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fato de não quererem isso mostra que não sabem bem como tornar-se piedo- sas nem querem sê-lo. Por essa razão, Deus instituiu vários estados nos quais devemos exercitar-nos e aprender a sofrer. A algumas pessoas ordenou o es- tado matrimonial; a outras, o estado espiritual; a outras ainda, o estado de governante. E ordenou a todas as pessoas que se afadiguem e trabalhem, pa- ra mortificar a carne e acostumá-la com a morte. Pois para todos os batiza- dos o Batismo transformou a tranqüilidade, a comodidade e a satisfação des- ta vida em veneno, como um obstáculo a sua obra. Pois nessas condições nin- guém aprende a sofrer, a morrer de bom grado, a livrar-se do pecado e a cumprir o Batismo. Pelo contrário: só aumenta o amor a esta vida e o horror a vida eterna, o medo da morte e a fuga do aniquilamento do pecado.

17. Olha agora para a vida das pessoas. Há muitas que jejuam, oram, fa- zem peregrinações e têm exercícios semelhantes, acreditando que, com essas coisas, estão acumulando muitos méritos e conquistando um lugar elevado no céu. Contudo, jamais aprendem a matar seus maus vícios. Dever-se-iam orientar o jejum e todos os exercicios no sentido de subjugar o velho Adão, a natureza pecaminosa, e de acostumar-nos a prescindir de tudo o que é luxúria nesta vida, preparando-nos assim diariamente mais e mais para a morte, para que se cumpra o Batismo. Todos esses exercícios e esforços não deveriam ser medidos conforme o número ou a magnitude, mas conforme a exigência do Batismo. Isto é: cada um assuma o exercício e a quantidade deste que lhe se- jam úteis e bons para subjugar a natureza pecaminosa e prepará-la para a morte, reduzindo e multiplicaildo tais exercícios na medida em que os peca- dos diminuam ou aumentem. Assim, essas pessoas vão e assumem isto e aqui- lo, fazem ora isto, ora aquilo, unicamente conforme a aparência externa e o prestígio da obra, desistindo depois com rapidez. Desta maneira, tornam-se completamente inconstantes, de modo que nunca chegam a ser nada. Por causa dessas coisas, algumas pessoas se quebram a cabeça e estragam a saú- de, ao ponto de não serem úteis nem a si mesmas nem a outras pessoas. Tudo isso são frutos da doutrina que nos dominou, fazendo-nos crer que estamos sem pecado após a contrição ou o Batismo, que fazemos as boas obras não para aniquilar o pecado, mas para acumular uma quantidade delas livremen- te para si mesmo, ou ainda para satisfazer pelos pecados cometidos. Para tanto contribuem os pregadores que não pregam com sabedoria as lendas e obras dos queridos santos, fazendo delas um exemplo para todos. Desta for- ma, os néscios caem na armadilha e provocam sua perdição com os exemplos dos santos. Deus deu a cada santo sua maneira e sua graça particulares para cumprir seu Batismo. Porém o Batismo, juntamente com seu significado, es- tabeleceu uma medida comum para todos, de modo que cada um, dentro de seu estado, se examine no sentido de descobrir que forma lhe será mais pro- veitosa para cumprir o Batismo, isto é, para matar o pecado e morrer, a fim de que fique leve e suave o fardo de Cristo e essas coisas não sejam feitas com angústias e preocupações. Aesse respeito diz Salomão: "O trabalho dos tolos só os atormenta, pois não conhecem o caminho a cidade." [Ec 10.15.1 Pois assim como estão apavorados aqueles que querem ir a cidade, mas não acham o caminho, da mesma forma acontece com estes: toda a sua vida e to-

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do o seu trabalho se Ihes tornam azedos, e não obstante nada conseguem. 18. Aqui cabe agora a pergunta comum se o Batismo e o voto que nele fi-

zemos a Deus são mais ou maiores do que os votos da castidade, do sacerdh- cio e do estado espiritual, já que o Batismo é comum a todos os cristãos, ao passo que se crê que os membros do clero possuem um voto especial e supc- rior.

Resposta: a partir do que dissemos até aqui é fácil responder a esta qiics- tão. No Batismo todos nós fazemos o mesmo voto: matar o pecado e tornar- nos santos pela obra e graça de Deus, a quem nos oferecemos e nos sacrifici- mos como barro ao oleiro; nisso não há ninguém que seja melhor do que os outros. Mas para cumprir o Batismo, de modo que o pecado seja destruido. não pode haver uma única forma e um único estado. E por isso que eu disse que cada um deve se examinar para ver em que estado melhor pode aniquilar o pecado e reprimir a natureza. Portanto, é verdade que não há voto supt.- rior, melhor e maior que o voto do Batismo. O que mais se pode prometer além de expulsar todo o pecado, morrer, odiar esta vida e tornar-se santo'? No entanto, alguém pode, para além deste voto, comprometer-se com,um cs tado que lhe seja conveniente e proveitoso para cumprir seu Batismo. E coriio se duas pessoas fossem a uma cidade: uma pode preferir andar por uma 11-i

lha, a outra, caminhar pela estrada, cada uma como achar melhor. Desta iii;i neira, quem optar pelo estado matrimonial passa pelas dificuldades e sofri- mentos próprios deste estado, no qual impõe um fardo a sua natureza, para que ela se acostume ao prazer e ao pesar, evite o pecado e se prepare para ;i

morte de uma forma melhor do que poderia fazê-lo fora desse estado. Quciii. porém, procura mais sofrimento e quer preparar-se para a morte em poiic~i tempo, mediante muito exercício, e alcançar logo o efeito de seu Batismo, dc ve optar pela castidade ou pela ordem espiritual. Porque um estado espiri tual, se é o que deveria ser, deve estar cheio de sofrimento e tormento, p;ir;i que possa exercitar seu Batismo mais do que no estado matrimonial, acosiii- mando-se, através desse martírio, a receber a morte com alegria, e para que alcance, dessa forma, a finalidade de seu Batismo. Acima deste estado 119 ainda um outro elevado: o estado de governante no regimento espiritiial, vi>- mo bispo, pároco, etc. Estas pessoas, muito bem exercitadas com sofriiiicii tos e obras, devem estar sempre prontas para a morte, a morrer não s 0 p ( i i

sua própria causa, mas também por causa daqueles que lhes são subordiiiii dos. Em todos estes estados, porém, não se deve esquecer a medida, ;iciiiiii mencionada: que devemos exercitar-nos de forma tal, que apenas o pcc;iilo seja expulso, não devendo orientar-nos pelo número ou pela grandeL;! <li15

obras. Contudo, infelizmente, assim como nos esquecemos do Batisiiio r 110

que significa, do que nele prometemos e de como devemos conduzir-tios cii i

sua obra e atingir sua finalidade, da mesma forma também nos esqiiccciiios dos caminhos e estados, ao ponto de quase não sabermos mais para qiic I ; i i i

estados foram instituídos ou como devemos portar-nos neles para ciiiiiliiir 11

Batismo. Tudo isso virou pompa, restando quase que apenas uma aparêriciii mundana, como diz Isaías: "A tua prata virou espuma, e teii viiilio I'icoii agiiado." [Is 1.22.1 Que Deus tenha miserichrdia! Amém.

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19. Visto que o santo Sacramento do Batismo é uma coisa tão grande, r.r:iciosa e consoladora, devemos empenhar-nos seriamente no sentido de dar giiiqas, louvor e honra a Deus por isso, com cordialidade e alegria, sem ces- s:ir. Pois receio que a ingratidão tenha feito por merecer que ficamos cegos, iiio tendo sido dignos de reconhecer tal graça. E embora todo o mundo este- \,c c ainda está cheio do Batismo e da graça de Deus, nós nos desencaminha- iiii~s para nossas medrosas obras próprias, depois para as indulgências e fal- sos consolos dessa espécie. Achávamos que não podiamos confiar em Deus a ii.'L« ser que antes fôssemos piedosos e tivéssemos satisfeito pelo pecado, co- iiio se quiséssemos comprar ou pagar a graça de Deus. Quem não aceita que a giaça de Deus o tolerará como pecador e o salvará, e espera somente pelo jui- 'o. certamente não se alegra em Deus e não consegue amá-lo nem louvá-lo. Mas se ouvimos que, na aliança do Batismo, ele aceita a nós, pecadores, nos piliipa e dia após dia nos purifica, e se cremos nisso firmemente, então o co- i:iqX« só pode ficar alegre, amar e louvar a Deus. Assim diz ele no profeta: "Eu os pouparei como um pai poupa seu filho." [MI 1.17.1 Por isso, é neces- hfiiio que agradeçamos a bendita majestade, que se mostra tão cheia de graça c iiiiscricórdia para conosco, pobres vermes condenados, e que engrandeça- iiiob e reconheçamos a obra" tal como ela é em si.

20. Devemos, no entanto, precaver-nos para que não se introduza ai iiiiia falsa segurança que diga consigo mesma: "Já que o Batismo contém i ; ~ i i i ; i graça e é uma coisa tão grandiosa, pois Deus não nos imputará nossos pccndos, e, assim que nos arrependermos do pecado, tudo estará em ordem I io r I'orça do Batismo, por enquanto vou viver e fazer minha própria vonta- ilc. Mais tarde ou na hora da morte me lembrarei de meu Batismo." Sim, cer- 1;iiiiciiie o Batismo é uma coisa tão grandiosa que, quando te arrependes dos pccndos e invocas o pacto do Batismo, teus pecados são perdoados. Mas, ao ~icc:iics tão petulante e deliberadamente, confiante na graça, toma cuidado i~iic o juizo não te pegue e se antecipe ao teu arrependimento, e que, mesmo iliic eiitão queiras crer ou confiar no Batismo, por uma determinação de Deus ;i i i i i i tribulação se torne tão grande que tua fé não consiga subsistir. Se mes- 1110 os que não pecam ou os que caem por mera fraqueza dificilmente perma- iiccciii, onde ficará a tua petulância, que tentou e zombou da graça? Ande- iiios, portanto, em temor, para que possamos conservar as riquezas da graça ( l i I>ciis com firme fé e agradeçamos por sua misericórdia com alegria e para i i i i l i ic. Amém.

7.7 'i<. ilc Ik'ils r i< i Hatirrrio.

1 Um Sermão sobre o Venerabilíssio Sacramento do

Santo e Verdadeiro Corpo de Cristo e sobre as irmandades,

do Doutor Martinho Lutero, Agosüniano 1

INTRODUÇÃO

Este terceiro sermão da trilogia dedicada á duquesa Margarida de Braunschweig e Liineburgo em 1519 é a primeira afirmação maior de Lutero quanto à Santa Ceia. Ainda não faia de assuntos controvertidos, como o sacrificio da missa ou o modo da presença real de Cristo, mas já ataca o problema da comunhão sob as duas espécies para os leigos e delineia uma nova perspectiva quanto a transubstanciação e ao uso do sacramento. Seu apêndice sobre os sodalicios ou as irmandades da época o leva a con- siderações de ordem ética, decorrentes da comunhão na Santa Ceia e relativas ao con- vívio social precário dos cidadãos e dos trabalhadores. Os sodalicios eram centros de auto-interesse grupai. que levavam a um orgulho espiritual e a uma conduta imoral, longe da comunhão dos santos preconizada pela Santa Ceia.

A Santa Ceia é, para Lutero, um dos assuntos centrais para a vida da Igreja. De 1519. quando escreveu este sermão, até 1544, quando fez sua Breve confissão a respei- to do santo sacramento2, Lutero escreveu uma dúzia de obras im~ortantes aue reve- lam o seu pensamento a respeito da Santa Ceia. Muitas obras foram motivadas por controvérsias com a I~reia de Roma, contra os sectários íMuntzer3) e os sacramentá- rios (Zwinglio3. A exposição clássica veio em 1527/28 contra a dupla frente dos roma- nistas e dos sectários. A controvérsia atravessa o Colóquio de Marburgo (1529), a

1 Eyn Sermon von dem Hochwirdigen Sacroment des Heyligen Waren Leychnorns Chrirli Und von den Bruderschofflen Docforis Morlini Lulher Augusliners. WA 2,742-58. Tradu- cão de Walter O. Schlunn. ~~~~~~ rr

2 Kurrrr BekennIni.7 vom heiligen Sakromeni, WA 54,141-67. 3 Tomás Müntzer (ou Münzer; ca. 1489/91b1525) foi zntusiasta alemão, pregador em Zwik-

kau, 1520. Procurou ultrapassar Lutero como reformadar. Era fanático asceta e anabatis- ta. Construiu uma religião em revelasão direta. Afirmou ter iluminasão por uma luz inter- na em visdes e sonhos. Foi lider na Guerra dos Camponeses, derrotado em Frankenhausen e decapitado.

4 Ulrico Zwinglio (1484-153 I ) , nasceu em Wildhaus, Sui~a. e o fundador da Igreja Reforma- da Suíça. Recebeu uma educa~ão humanistica. Tornou-se sacerdote em Glarus (1506-1516), de onde acompanhou, como capelso, o exército em batalhas na Itália; foi sacerdote em Einsiedeln (1516-1518). ondecombateu as indulgências, e em Zurique, ande ficou de 1519 até ao fim da vida. Estudou especialmente o Novo Testamento e os pais da Igreja. Encontrou-se com Erasmo em 1515. Desistiu de sua pensão papal em 1520, mas sua obra reformatória s o iniciou em 1522, quando escreveu contra o jejum obrigatório. Em 1522 contraiu secretamente nupcias, que só fez público em 1524. Escreveu a primeira dogmática evangélica alemã (Auslegung und Begriindung der Schlussreden), como resultado de 67 te- res que defendeu, afirmando que o Evangelho deve ser a regra de fé e vida. Removeu qua-

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Concórdia de Wittenberg (1536) e termina na luta contra Bullingers em Zurique e con- tra as manobras de Schwenckfeld6 em 1544.

A posição de Lutero se baseia nas palavras da instituição. Para ele, deve haver um realismo escriturístico, que significa a presença corporal de Cristo no sacramento. As- sim como o Cristo humanado estava na terra no corpo, da mesma forma ele é recebido corporalmente na Santa Ceia. No sermão de 1519, Lutero enfatiza que a Santa Ceia é iim selo que garante e um sinal que aponta e dá a salvação. Como dá o corpo e o san- gue de Cristo, assim confere a salvação que significa. E a ponte ou o veiculo pelo qual i) dom vem a nós e pelo qual nós vamos à vida eterna. As palavras "por vocês" exigem uiua fé pessoal e conferem o dom da graça de Deus.

Como nos outros sermões da trilogia, também neste Lutero encontra uma divisão ein três partes: 1. o sacramento ou sinal; 2. o significado do sacramento; 3. a fé neces- sária. Já define melhor um sacramento quando diz que "o sacramento deve ser exte- rior e visível, em uma forma ou espécie corporal" (seção I). Lutero ainda concorda com o uso corrente de que o povo só receba a hóstia e o sacerdote tome o vinho a vista do oovo. mas iá u r o ~ õ e o recebimento dos dois elementos oelos leinos. Isto lhe valeu . . . iiiieJiiiamenre, rnemK! ante5 do haial dc 1519, iiin \ i.>lciiio 313q11r. Jil pdrlC dd duque .Itiire da SakGnia'. A 27 dc rle7emhro o diiauc \r. rliir.ixai..t oiiii;llniciire 20 cleiiai 1 . r ~ <ler~co da Saxânia8 e, depois, aos bispos saiões de Meissen e Merseburgo. Já a 15 de

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dros e estátuas, bem como amúsica, dasigrejas. Oculto era no vernáculo. Maitciros foram fechados. Opôs-se aos anabatistas. Encontrou-se com Lutera no Colóquio dc Marburgo, cm 1529. Na Dieta de Ausgburgo de 1530 apresentou sua própriaconfirsão. Organizou po- liticamente alguns cantdes da Suisa, mas a maioria ficou católico~romana. Na guerra que surgiu Zwinglio participou como capelão e foi morto. Zwinglio diria que produzia suas próprias conclusdes teológicas, mas a influência de Liitero parece bem provavel em alguns aspectos. No entanto ambos diferiam muito, apesar de ambos sereni bons músicos e bons professores. Zwinglia defendia a pena capital para descrentes r sempre estava engajada po- liticamente. Embora ambos reconhecessem a Escritura coma autoridade filial ein religião, Zwinglio tinha uma tendência de valorizar muito a razão r o huniaciismo.

5 João Henrique Bullinger (1504-1575) era reformador suíço, deixando a Igreja Romana em 1522. Foi sucessor de Zwinplio como nasiar nrincioal de Zuriaiie e lidei da Rrfurnia na Sui- ça alemã em 1531. ~ j u d o u a fazer a primeiro conjssão helvéiico e concliiiu com Calvino a Consenso figurino. Ainda trabalhou na Segundo confjssão helvélica e escreveu uma histó- ria da Reforma.

h Gaspar Schwenckfeld (Schwenkfeld, Schwenkfcldt, Kaspar Schwenkfeld von Ossig; C a s ~ ipçi. Caspar, ca. 1489/90-1561) era mistico protestante. Não era ordenado pastor. Foi com ielheiro da corte em Liegnitz, 1518-1523. Apoiou a Reforma em 1517/1518, ajudou a irilrodiid-Ia na Silésia, mas em breve se afastou da Reforma. Rejeitou a jiistificaqão, a E s ~ ciiiiira como única fonte e norma de fé, a eficácia dos racramcntos como meios da graça, H;iii\ciio de infantes e a Confi.xsão de Augsburgo. Foi perseguido em niuitos lugares. Seus hcgiiidorrs são conhecidos como schwenckfeldianos.

1 l i i r a i . o Barbiido (1471-1539), duque da Saxônia Aibertina. Nasceu em Drcsden, ale ma^ rilici. Kecrhcu c aceitou as 95 teses de Lutero c atacou a corrup~ão da Igreja, mas se opor te- ri:t,riicriic A doutrina da grasa de Lutera e a rua rejei~ãa do Concilio de Constanca. Perre- rp,iii ir i>$ Ii~teraiios e proibiu os seus escritos. Promoveu a Debate de Leipzig (1519) e publi- tini ii~ii Ncivo Testamento.

H Iir<lcrico 111 (1463-1525), "a Shbio", duque e eleitor da Saxânia Ernesrina (1486-152s). 0it;ilido c111 1519 Maxirniliano I faleceu. foi oferecido a Fiederico Ill o titiilo de imoerador. ~ii:i\ <leclilii>ii ciii favor dc Carlos V. Não casou, mas teve dois filhos e uma filha com Aria Wcllri. I ( i t i cri\ino deviito, iras As vczes desviado. Fez peregrinasão à Palestina em 1493. i9iiilr colnrvoii ;i ccilet;ir celiqiiias. Eni 1520 tinha 19.013, a maior colesão de reliquia~ da Alrtii;ilili:i. 1:iii I521 :ih:iii<Ii>iiiii~ ;i vcrieracãa dar reliqiiias. Fiindou a Uiiiveridadc de W i t ~ tcr~ltwp, ctu 1502. c<>loc;t~~clo Oii~no+ ~p~~~icssoc~s , COITIC, .Joà~ von Staupit~, Karlstadt c i r -

junho de 1520 o papa Leão X9 correspondeu e condenou 41 dos alegados erros de Lu- tero. E este ainda não havia tocado em pontos controvertidos como o sacrifício da missa.

Sua linpuaxem quanto à maneira da oresenca real do corno e do saneue de Cristo . . . na Santa Ceia ainda sugere a ~inguagem'usada.~ara a trans"bstanciaçã~. Mas já há uma diferença essencial, ~ o i s admite a continuidade do oão e do vinho auando diz (se- ção 16) que Cristo "põs i o pão sua verdadeira carne nacura1 e , no vinho; seu verdadei- ro sangue natural". Entende que "ao mesmo tempo em que o pão é transformado em seu verdadeiro corpo natural, e o vinho em seu verdadeiro sangue natural, tão verda- deiramente também nós somos incluídos e transformados no corpo espiritual". Logo, rejeita a transubstanciação, como efetivamente a condena no ano seguinte no seu Da cutiveiro babilônico do Iprejulo. Já fala claramente da "carne sob o oão" e do "san- gue sob o vinho", evitando a identificação proposta na transubstanciação.

Lutero oferece uma interpretação pratica sobre o aue o coruo e o sangue si~nifi- - cam na vida dos que deles "a Santa Ceia. Fala da pãlavra grega synnxis e da palavra latina communio para demonstrar que na Santa Ceia nós formamos com Cristo e todos os santos um só corpo e comunhão. Todas as propriedades espirituais ' de Cristo e dos santos são propriedade comum de todos os que participam da Santa Ceia com fé. Também os nossos pecados são transferidos para Cristo, e herdamos o seu amor.

A terceira parte importante é a fé, da qual tudo depende. Então a comunhão é um "alegre e opulento banquete de casamento e regalo [que] teu Deus preparou para ti so- bre o altar" (seção 18). Por isso Lutero lamenta que muitos iam à Santa Ceia sem fé, pensando num opusgrulum opere operulum (uma obra aceitável por ter sido realiza- da), quando na realidade a Santa Ceia deve levar a um opus operunfis, isto é, a uma boa obra que nos faz agir na fé. A bênção deste sacramento é a comunhão e o amor. Tomamos parte em Cristo e todos os santos e permitimos que todos os cristãos tomem parte na nossa vida. Esta é a verdadeira unidade dos irmãos cristãos, e não a que é pra- ticada nos sodalicios e nas irmandades, aue servem até Dara fins oecaminosos.

O posfácio é de uma edição do ano Seguinte. ~ u t e r o já tomo; conhecimento de acusações quanto à distribuição dos dois elementos para os leigos.

mãos Schurff. Pagou as despesas de doutoramcnto de Lutero em 1512, o protegeu, mas nunca se encontrou com ele. Nào permitiii que Lutero fosse levado a Roma em 1518, mas conseguiu que pudesse se defender diante de Caetano (ap6s a Dieta de Augsburgo de 1518), diante de Miltitz (Conferência de Altenbureo. na cara de Esoalatino. 1519) e na Dieta de

dia de sua morte tomou a Santa Ceia sob i s duas espécies. 9 Leão X (Giovanni de Medici; 1475-1521) foi papade 1513 a 1521. Nasceu em Florença, ltá-

lia; foi cardeai em 1488, com 13 anos. Foi a papa mais notável da Renascença, que promo- veu as ciências e as artes. Usou siia influência na interesse de sua famiiia Medici. O abusa financeiro dos recursos provindos das indulgências criadas por ele para completar a cons- triicão da Basilica de São Pedro em Roma deu ensejo para Lutero escreve: as 95 teses e ini- ciiir ;I Reforma. Não compreendeu a importância de Lutero e a excomungou em 1521. Fez i i ~ l i : ~ ciiocordata com Francisco I da França.

10 / ) i ' < ' ~ t ~ l l l l ' i l ~ ~ r ~ hilhylonica ecclesi~eproeludiurn, WA 6,497-573 (a ser publicado no v. 2 des- I:, ~ ~ ~ l ~ ~ ~ ~ ~ , , ] .

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O tratado foi escrito em alemão. A primeira edição é de João Grunenberg em Wittenberg, nos primeiros dias de dezembro de 1519. Em 1525 já havia 14 ediçdes em alemão, e em 1524 houve uma em latim. A versão usada para a tradução já tem anota- çdes de ediçdes posteriores.

Martim C. Warth

1. O santo Sacramento do Altar e do santo e verdadeiro Corpo de Cristo também'l contém três coisas que é preciso saber: a primeira e o sacramento ou sinal; a segunda, o significado desse sacramento; a terceira, a fé nessas duas coisas; pois em todo sacramento deve haver essas três coisas. O sacra- mento deve ser exterior e visível, em uma forma ou espécie corporal. O signi- ficado deve ser interior e espiritual, no espírito da pessoa. A fé precisa juntar esses dois, de modo que tragam proveito e sejam praticados.

2. O sacramento ou sinal exterior está na forma e espécie do pão e do vi- nho, assim como o Batismo na água, porém de maneira tal que se usem o pão e o vinho comendo e bebendo, assim como se usa a água para imersão ou as- persão. Pois o sacramento ou sinal recisa ser recebido ou pelo menos deseja- do para que possa trazer proveito Muito embora atualmente não sejam da- I das ambas as espécies ao povo todos os dias, como acontecia antigamentq- o que também não é necessário -, os sacerdotes as desfrutam diariamente diante do povo; basta que o povo deseje o sacramento todo dia e, atualmen- te, o receba sob uma única espécie, assim como a Igreja cristã o determina e dá.

3. Tenho para mim, entretanto, que seria bom que a Igreja, num conci- lio geral, tornasse a determinar que ambas as espécies fossem dadas a todas as pessoas, assim como aos sacerdotes. Não porque uma única espécie não se- ja suficiente, pois o desejo da fé certamente já basta. Assim diz Santo Agostinho'? "Para que ficas preparando a barriga e os dentes? Crê somente, e já desfrutaste o sacramento."ll Acontece que seria conveniente e bonito se a espécie e forma ou sinal do sacramento fossem oferecidos não parcialmen- te, em uma parte apenas, mas integralmente. Da mesma forma, afirmei a res- peito do Batismo" que, por causa da integridade e perfeição do sinal, seria

I 1 Coma nos dois sermões anteriores desta triiogia. I2 Cf. p. 36, nota 8, p. 67, nota 46 e p. 401, nota 4. 13 Sermo 112, capltulo 5, in: Migne PL 38.615. 14 Na secão 1 de Um sermdo sobre o .santo, venerabiltssimo Sacramento do Ralismo. p. 415.

mais condizente imergir na água do que aspergi-la. Ocorre que esse sacra- mento significa uma união completa e uma comunhão indivisa dos santos (como haveremos de ouvir), que é indicada de maneira deficiente e inadeqiia-. da com uma única parte ou porção do sacramento. Ademais, o perigo coin o cáliceir não é tão grande como se acha, uma vez que o povo raramente vai a este sacramento, e principalmente porque Cristo, que sem dúvida sabia de tci- do perigo futuro, quis, mesmo assim, instituir ambas as espécies para que to- dos os seus cristãos delas fizessem uso.

4. O que este sacramento significa ou opera é comunhão de todos os san- tos. E por esta razão qiie se costiima chama-lo, na linguagem comum, dc synaxis ou communio, isto é, comunhão; e communicare, em latim, signific;~ receber essa comunhão, o que, no vernáculo, chamamos de ir ao sacramentoió. A razão disso é que Cristo forma um corpo espiritiial com to dos os santos, assim como o povo de uma cidade constitui uma comunidadc c um corpo, sendo cada cidadão membro do outro e da cidade inteira. Da mcs. ma maneira, todos os santos são membros de Cristo e da Igreja, que é uma ci dade espiritual e eterna de Deus. Ser aceito nessa cidade significa ser recebido na comunhão dos santos, ser incorporado ao corpo espiritual de Cristo, sci feito membro seu. Em contrapartida, excommunicare significa tirar da c i ~ ~ munhão, separar um membro desse corpo, o que, no vernáculo, significa excomungari7, porém com distinções, conforme exporei no sermão seguiriiv sobre a excomunhãols.

Portanto, receber este sacramento em pão e vinho não é outra coisa sc não receber um sinal certo dessa comunhão e incorporação em Cristo e todos os santos; é como dar a um cidadão um sinal, um documento ou alguma oii tra insígnia, para que ele tenha certeza de que será cidadão da cidade, niciii bro dessa comunidade. Assim diz São Paulo em I Co 10.17: "Nós, que parli cipamos de um único pão e de um único cálice, somos todos um só pão e i i i i i

só corpo." 5. Essa comunhão consiste em que todos os bens espirituais de Cristo c

de seus santos1? são compartilhados e comunicados a quem recebe esse sacr:i. mento; por outro lado, todos os sofrimentos e pecados também passam ;i sci comuns, de modo que amor é aceso por amor, levando a união. E para I'ic:ii na tosca comparação sensitiva: é assim como, numa cidade, cada cidad:li~ passa a participar do nome, da honra, da liberdade, dos negócios, costiiiiirs, tradições, do auxilio, assistência, proteção, etc. dessa cidade; em contraparli da, ele participa de todos os perigos, incêndios, inundações, inimigos, (!;i mortandade, dos prejuizos, taxas e impostos, e coisas semelhantes. I'iii!,

i 5 Isto (., o perigo de ser derramado o vinho. I 6 Zum socromeni gehen, no original. 17 Yn den bon fhun, no original. 18 Um sermòo sobre a excomunhão (Eyn Seliermon von drm Bann, WA 6,03-75; a \ci ~ i i i I > l i c i i l i ,

n o i,. 2 deita coleção). I9 I.iiiero ainda inclui as obra5 supereiogaróriai dos santos, como 6 doutrina ria lucri;i ilr I(ii

mii.

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quem quer desfrutar também precisa contribuir e pagar amor com amor. Aqui se vê que quem causa algum mal a um cidadão, causa mal a cidade e a todos os cidadãos; quem faz bem a um cidadão, merece o favor e a gratidão de todos os outros. O mesmo vale para o corpo físico, conforme diz São Pau- lo em 1 Co 12.25s., ao explicar este sacramento em sentido espiritual: "Cui- dem os membros uns dos outros. Se um membro sofre, todos sofrem com ele; se um deles passa bem, os outros se regozijam com ele." Vemos, portanto: se dói o pé de alguém, mesmo que seja só o dedinho, o olho se volta para ele, os dedos o tocam, o rosto se franze e todo o corpo se inclina em sua direção; to- dos se ocupam com o minúsculo membro. Em contrapartida, cuidar bem dele faz bem a todos os membros. Para entender este sacramento, é preciso guar- dar bem essa comparação, pois a Escritura a utiliza por causa das pessoas simples.

6. Neste sacramento, portanto, a pessoa recebe, através do sacerdote, um sinal certo da parte do próprio Deus de que, dessa forma, ela é unida a Cristo e a seus santos, participando de todas as coisas, de modo que o sofri- mento e a vida de Cristo, bem como os de todos os santos, passam a ser dela

\ própria. Assim sendo, quem lhe faz mal, fá-lo a Cristo e a todos os santos, conforme ele diz através do profeta: "Quem tocar em vocês toca na menina do meu olho" [Zc 2.81; em contrapartida, quem lhe faz bem, fá-lo a Cristo e a todos os seus santos, conforme ele diz em Mt 25.40: "O que vocês fizeram a um de meus pequeninos, a mim o fizeram." Por outro lado, a pessoa tam- bém deve compartilhar de todos os fardos e adversidades de Cristo e de seus santos, contribuindo e desfrutando da mesma forma que eles. Consideremos mais de perto esses dois [aspectos].

7. Não é um único adversário que nos causa mal. Há, em primeiro lugar, o resto de pecado remanescente na carne após o Batismo, a inclinação á ira, ao ódio, a soberba, à impudicicia, etc., que nos atribula enquanto vivemos. Aqui precisamos não só da ajuda da comunidade e de Cristo, no sentido de lutarem conosco contra isso; também é necessário que Cristo e seus santos in- tercedam por nós perante Deus, para que o pecado não nos seja imputado se- gundo o rigoroso juizo de Deus. E para nos fortalecer e nos animar contra es- ses pecados que Deus nos dá esse sacramento, como se estivesse dizendo: "Olha, muitos são os pecados que te atribulam; toma este sinal, com o qual te afianço que o pecado atribula não somente a ti, mas a meu filho Cristo e a todos OS seus santos no céu e na terra. Por isso, não percas o ânimo e fica confiante; não estás lutando sozinho. Ao teu redor há muita ajuda e assistên- cia."

A respeito desse pão diz o rei Davi: "O pão fortalece o coração do ser humano." [SI 104.15.1 E em outras passagens ainda a Escritura atribui a este sacramento" a propriedade de fortalecer, como em At 9.19, referindo-?e a

20 Lutero usa aqui o termo "sacramento", como depois em Do cofiveiro bobil8niro da Igreja, exclusivamente para os elementos fisicos do sacramento: pão e vinho. Dai a comparacão com outras passagens que não tratam da Santa Ceia.

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São Paulo: "Ele foi batizado e recebeu o alimento, tendo sido fortalecido." Em segundo lugar, o espírito maligno nos assalta ininterruptamente com muitos pecados e adversidades. Em terceiro lugar, o mundo, que está cheio de maldade, provoca e persegue, e de forma alguma é bom. Por fim, nossa própria consciência suja nos atribula por causa de pecados cometidos; o mes- mo ocorre com o medo da morte e dos tormentos do inferno. Tudo isso nos cansa e desanima, caso não buscarmos e encontrarmos força nessa comu- nhão.

8. Quem estiver sem alento, debilitado por sua consciência pecaminosa, assustado com a morte, ou de coração oprimido por alguma outra causa c quiser livrar-se, dirija-se alegremente ao Sacramento do Altar e deponha scii pesar na comunidade, busque ajuda junto a todo o corpo espiritual, assini como um cidadão, ao sofrer um prejuízo ou uma desgraça no campo causada por seus inimigos, queixa-se junto aos membros do conselho municipal e aos concidadãos e pede ajuda. Por isso nos são dadas neste sacramento a inco- mensurável graça e misericórdia de Deus, para que, ali, deponhamos toda ;I

aflição, toda a tribulação, passando-as a comunidade e principalmente :i Cristo, e para que a pessoa possa, com alegria, fortalecer-se, consolar-se e di zer a si mesma: "Se sou pecador, se cai, se me atinge este ou aquele inforiii- nio - pois bem, vou, por isso, ao sacramento e tomo de Deus um sinal de que a justiça de Cristo, sua vida e seu sofrimento estão em meu favor junta- mente com todos os santos anjos, com as pessoas bem-aventuradas no céu c com todas as pessoas piedosas sobre a terra. Se tiver que morrer, não estarei sozinho na morte; se vier a sofrer, eles sofrem junto comigo. Todo o meu iii- fortúnio se tornou comum a Cristo e aos santos, pois tenho um sinal certo dc seu amor para comigo." Vê, este é o fruto e uso deste sacramento, em virtiitlc do qual o coração deve ficar alegre e forte.

9. Por conseguinte, quando desfrutaste ou quiseres desfrutar este sacr;i- mento, precisas, em contrapartida, ajudar a carregar as adversidades da co- munidade, conforme foi dito. Mas quais são elas? Cristo no céu bem como os anjos com os santos não sofrem adversidades, exceto quando a verdade c :I

palavra de Deus são prejudicadas. Como dissemos, eles são atingidos incliisi- ve por todo sofrimento e amor de todos os santos sobre a terra. Teu coraq3o deve, pois, entregar-se ao amor e aprender que este sacramento é um sacrii- mento do amor e que, assim como tu recebes amor e assistência, deves, POI

tua \r./, demoii\lrir amor e a>>i\tC.n;ia 3 Cristo nu PCSSO:~ dr' Seu, I~C.L.\~II:I o . f'oi, d:\c niaguar-te roda desonra iiifligi.i;i a Crido ein ,i13 \ i ~ ~ i t ; i I).II:I vra, toda miséria da cristandade, toda injustiça sofrida pelos inocentes; to<l:is essas coisas existem em abundância em todas as partes do mundo. Eiii rclii ção a elas, precisas opor resistência, agir, interceder e, quando não piidcrcs fazer mais, deves ter compaixão sincera. Vê, é isto o que significa carrcg:ii. de tua parte, a desgraça e as adversidades de Cristo e de seus santos. Entíio se cumpre o dito de Paulo: "Levem as cargas uns dos outros, e assim ctinipriiilo a lei de Cristo." [Gl 6.2.1 Vê, assim tu carregas a todos, e assim todos, I,or sua vez, (e carregam, e todas as coisas são em comum, tanto as boas qiiaiito as más. Eiitão todas as coisas ficam leves e o espírito maligno não coriscgiie

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prevalecer contra a comunidade. Ao instituir o sacramento, Cristo disse: "Is- to é o meu corpo, oferecido por vocês; isto é o meu sangue, derramado por vocês; sempre que o fizerem, lembrem-se de mim" [Lc 22.19s.1, como se esti- vesse dizendo: "Eu sou o cabeça, quero ser o primeiro que se dá por vocês, quero participar de seu sofrimento e sua desgraça e carregá-los para vocês, para que também vocês, por sua parte, procedam dessa maneira para comigo e uns para com os outros, permitindo que tudo seja comum em mim e comi- go. Deixo-lhes este sacramento como um sinal certo de tudo isso, para que não me esqueçam, mas se exercitem diariamente nisso e se lembrem do que fiz e continuo fazendo em favor de vocês, para que possam fortalecer-se e também para que um carregue o outro dessa maneira."

10. Esta é também a primeira das razões por que este sacramento é usado muitas vezes, enquanto que o Batismo é usado uma íinica vez. Pois o Batismo é um inicio e uma entrada em uma nova vida, na qual nos sobrevêm muitissi- mas adversidades, com pecados e sofrimentos, alheios e próprios. Temos ai o diabo, o mundo, a própria carne e consciência, como dissemos; eles não ces- sam de nos perseguir e acossar ininterruptamente. Por isso, precisamos de força, assistência e ajuda de Cristo e de seus santos, o que nos é prometido aqui como num sinal seguro, pelo qual somos a eles unidos e neles incorpora- dos, sendo todo o nosso sofrimento deposto na comunidade.

E por esta razão que, para as pessoas que não sofrem desgraça, não ex- perimentam medo ou não sentem seu infortúnio, este santo sacramento pou- co ou nenhum proveito traz; é que foi dado exclusivamente àqueles que ne- cessitam de consolo e força, que têm um coração pusilânime, que estão com a consciência amedrontada, que padecem tentação de pecados ou já caíram ne- la. O que haveria ele de efetuar nos espíritos livres e seguros que não necessi- tam dele nem o desejam? Pois a mãe de Deus diz: "Ele enche de bens apenas os famintos e conforta os amedrontados." [Lc 1.53.1

11. Por isso, para que os discípulos se tornassem dignos e aptos para este sacramento, ele os entristeceu primeiro, confrontando-os com sua despedida e morte, o que Ihes causou dor e pesar. Além disso, assustou-os profunda- mente ao dizer que um dentre eles haveria de trai-lo. Quando ficaram cheios de tristeza e medo, aflitos com a dor e o pecado da traição, então estavam dignos, e ele lhes deu seu santo corpo e os fortaleceu novamente. Com isso, ele nos ensina que este sacramento é força e consolo para as pessoas entriste- cidas e amedrontadas pelo pecado e pelo mal. E o que também diz Santo Agostinho: "Este alimento procura somente uma alma faminta e de nada fo- ge tanto quanto de uma alma saciada e repleta, que não precisa dele."21 As- sim, os judeus tiveram que comer o cordeiro da Páscoa com ervas amargas, ás pressas e de pé, o que também dá a entender que esse sacramento busca al- mas sequiosas, carentes e pesarosas. Agora, quem quer e deve compartilhar da desgraça de Cristo e de todos os cristãos, colaborar com a verdade, com- bater a injustiça, ajudar a carregar as necessidades dos inocentes e os sofri-

21 Enorr. inpsaim. XXI, in: Migne PL 36.178.

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mentos de todos os cristãos, encontrará desgraça e adversidade suficiente, sem contar o que a natureza má, o mundo, o diabo e o pecado lhe impõem diariamente. Também é desígnio e vontade de Deus nos perseguir e acossar com tantos cães e nos preparar ervas amargas por toda parte, para que ansie- mos por esse fortalecimento e nos alegremos com o santo sacramento, a fini de que estejamos dignos, isto é, desejosos dele.

12. Cristo quer que o sacramento seja muito usado também para que nos lembremos dele e, seguindo o seu exemplo, nos exercitemos em tal comu- nhão. Pois se não mais fôssemos confrontados com o exemplo, também a co- munhão cedo acabaria esquecida. E o que, infelizmente, vemos agora: não obstante rezarem-se muitas missas, a comunhão cristã, que deveria ser prega- da, exercitada e confrontada com o exemplo de Cristo, desaparece por com- pleto, ao ponto de quase não mais sabermos para que serve esse sacramento c como se deve fazer uso dele; sim, infelizmente muitas vezes até destruímos ;i comunhão através das missas, pervertendo tudo. Isso é culpa dos pregadores que não pregam o Evangelho nem os sacramentos, mas suas invencionices humanas a respeito de toda espécie de obras e maneiras de viver corretamcii- te. Outrora, porém, se praticava este sacramento tão corretamente e se ensi- nava o povo a entender essa comunhão tão bem, que chegavam a reunir taiii- bém os alimentos e bens materiais na igreja para distribui-los aos carentcs. como escreve Paulo em 1 Co 11.21. É daí que permaneceu na missa o teriiio collecta, isto é, uma coleta comum, como quando se junta um fundo comuni para dar aos pobres. Naquela época também tantos tornaram-se mártires c santos. Então havia menos missas, mas muita força ou fruto proveniente de-. Ias. Então um cristão se preocupava com o outro, um ajudava o outro, um i i - nha compaixão do outro, um carregava o fardo e a desgraça do outro. Agorci isso se desvaneceu, restando apenas muitas missas e muito receber desse s:i- cramento, sem que seu significado seja compreendido e praticado.

13. Não é difícil encontrar pessoas que gostam de desfrutar, mas 1130 querem contribuir. Isto é: gostam de ouvir que neste sacramento Ihes é pril- metido e dado auxilio, comunhão e assistência de todos os santos. Elas, cii- tretanto, não querem retribuir a comunhão, não querem ajudar o pobrc, 10. lerar os pecadores, cuidar dos miseráveis, solidarizar-se com os que sofrciii, interceder pelos outros. Também não querem apoiar a verdade, buscar o iiir- Ihoramento da Igreja e de todos os cristãos empenhando seu corpo, seiis hciis e sua honra. Elas não o fazem porque temem o mundo, porque não qiierciii ter que sofrer desfavor, prejuízo, vergonha ou morte, embora Deus qiicii;~ que, por causa da verdade e do próximo, elas sejam deste modo impelid:is ; I

desejar tão grande graça e força desse sacramento. Estas são pessoas qiic hiis cam seu próprio proveito, ás quais este sacramento de nada serve, assiiii c0 mo é insuportável o cidadão que quisesse ser apoiado, protegido e tàvorcci<l~~ pela comunidade, mas que, em contrapartida, não servisse à comuiiid:iclc I. nada fizesse por ela. Nós, pelo contrário, precisamos deixar que os males diih outros também sejam nossos, se queremos que Cristo e seus santos assiiiii;~iii os nossos males; assim a comunhão se torna plena e se faz justiça no s;icr:i~ mento. Pois onde o amor não cresce diariamente e transforma a pcssoo dc 1811

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Deus preparou para ti sobre o altar. Então entenderás o que significa a gran- de ceia do rei Assuero2); então verás o que são as bodas em que Deus abateu seus bois e cevados, conforme está no evangelhox; então teu coração ficará verdadeiramente livre e seguro, forte e corajoso contra todos os inimigos. Pois que pessoa haveria de temer qualquer adversidade, se tem certeza de que Cristo, juntamente com todos os santos, está com ela, compartilhando com ela todas as coisas, sejam boas ou más'? Assim, lemos em Atos 2,46s. que os discípulos de Cristo partiam e comiam este pão com grande alegria no cora- ção. Uma vez que essa obra é tão imensa que a pequenez das nossas almas não poderia desejá-la, quanto mais esperar por ela ou contar com ela, é bom e necessário ir muitas vezes ao sacramento, ou então exercitar e fortalecer es- sa fé diariamente na missa; é a fé que importa, e é por causa dela que ele tam- bém foi instituído. Pois se duvidas, intliges a Deus a maior desonra e o consi- deras um meiitiroso infiel; se não consegues crer, então faz um pedido neste sentido, conforme dissemos acima no outro sermão2'.

19. Trata então de te dedicar a manter comunhão com todas as pessoas e de jamais excluir alguém por ódio ou ira, pois este sacramento da comunhão, do amor e da união não tolera discórdia e desunião. Deves deixar-te tocar pe- las deficiências e necessidades dos outros como se fossem tuas próprias, e oferecer teus bens como se fossem deles, assim como Cristo age para contigo no sacramento. E isto o que significa ser transformado um no outro pelo amor, tornar-se de muitas partes um só pão e uma só bebida, abandonar a forma própria e assumir uma forma comum.

É por isso que difamadores, juizes arbitrários e violentos e os que des- prezam as outras pessoas têm que receber a morte no sacramento, conforme escreve S. Paulo em 1 Co 11.29. Pois não procedem com seu próximo em conformidade com aquilo que buscam junto a Cristo e com o que mostra o sacramento; nada de bom desejam ao próximo, não se solidarizam com ele, não lhe dão a mesma assistência que pretendem receber de Cristo. Caeni en- tão na cegueira de nada mais saber fazer neste sacramento do que temer e honrar ao Cristo presente com suas rezas e devoções. Uma vez feito isto, pen- sam estar tudo cumprido a contento, quando na verdade Cristo deu o seu corpo para que fosse praticado o significado do sacramento, a comunhão e a conduta no amor. Ademais, Cristo dá menos valor a seu próprio corpo natu- ral do que a seu corpo espiritual, isto é, á comunlião de seus santos. O que lhe importa mais, particularmente neste sacramento, é que a fé em sua comu- nhão e na comunhão dos santos seja bem praticada e se torne forte em nós, e que, em conformidade com ela, também pratiquemos adequadamente a nos- sa comunhão. Eles não percebem essa intenção de Cristo; não obstante, vão lá diariamente, celebram e ouvem missa em sua devoção. Entretanto, perma- necem um dia como o outro; sim, chegam até a ficar piores a cada dia que passa, mas nem mesmo se dão conta disso.

23 Cf. Et 1 . 5 ~ ~ . 24 Cf. Mt 2 2 . 2 s 25 Um sermão sobre o Sorromenio do Penilência, seção 18, pp. 409s.

Por isso nota bem: é preciso que cuides mais do corpo espiritual do que do corpo natural de Cristo, e é mais necessária a fé no corpo espiritual do qtic no corpo natural. Pois o natural sem o espiritual nada adianta neste sacr;i- mento; é preciso que ocorra uma transformação e que ela seja exercitad;~ através do amor.

20. Muitos há que, descousiderando essa permuta do amor e da fé, se fiam em que a missa ou o sacramento sejam, como dizem, opusgratum op<,r<. operati26, ou seja, uma obra que, por si mesma, agrada a Deus, mesmo qiic não agradem as pessoas que a praticam. Concluem dai que é bom ter muitis- simas missas, mesmo que sejam celebradas de forma indigna, pois o prejuiro seria das pessoas que as rezam ou usam de modo indigno. A cada um deixo :I

sua opinião, mas essas fábulas não me agradam, pois, falando desse jciii~, não haverá nenhuma criatura ou obra que, por si mesma, não agrade a Dciis. conforme está escrito em Gn 1.31: "Deus olhou todas as suas obras, e t oc l ;~~ lhe agradaram." Que frutos hão de vir do mau uso do pão, do vinho, do o11 ro e de quaisquer coisas boas, mesmo que em si mesmas agradem a I>eiis'! Ora, condenação é o que resulta disso. O mesmo vale aqui: quanto mais 1111

bre o sacramento, tanto maior é o prejuízo que o seu abuso traz para t«d:i :I

comunidade. Pois o sacramento não foi instituído em função de si mesmo. de modo a agradar a Deus, mas por nossa causa, para o usarmos corretameiii~,. nele exercitarmos a fé e, por ele, nos tornarmos agradáveis a Deus. Se é apc nas opus operatum27, ele nada efetua senão prejuízo em toda parte. Ele prcci sa tornar-se opus operantis28. Assim como pão e vinho, por mais que agr:i

26 Cf. a inrroduqão a este escrita. 27 Opus operarum (aqão feita) 6 uma expressão usada na teologia romana desde o rtciilo I I1 I

para garantir o valor da sacramento cama meio da graça. Os luteranos rcjeitarani a c11 r i

são ooraue oodia ser usada oara desienar a salvacao aelas obras. Alexandre de Ha lc \ (118

zada pelos sacramentos da antiga alianca) teria sido em vão. Assim os sacramentos <I;, i i i t v i i

aliança agem exopere operato, isto é, valem por sisos, sem qualqucr ato adicioiinl <I:, iiliiiii Tomás ainda pressupôs a fé como a causa do efeito do sacramento na pessoa. Ho;ivriiliiiii

(m. 1274) considerou a fé como suplemento ao opusoperatum. Depois se coiicloiii i l i i r i, 11. é disoensável. Assim Duns Escoto ím. 1308) e Gabriei Biel ím. 14951 ootarani riXo i i i ~ i i i t i i i

dos mortais, rejeicão valuntiria). Escoto e Biel parecem ter negada apcnar qiic ci;i iiri r.,.ii rio primeiro crer para dar valor aos sacramentos (cama hoje pensam alguiis y i i i l i o \ cv;iiipi.

licos). sem negar a necessidade da fé após ou com o recebimento dos sacrariciiio\. N;i ?i>(, ca da Reforma a interpretasão comum parece ter sido a de quc bastava <i <,,H,\ <,pi,rnr,,,,t, , i

aplicasão pura c simples do sacramento, para, através desta hoa ohra, recchci ;i &,,~;ic,;i iIiv na. Esta interprelaqão foi combatida por Lutero e pclas colifi$sdes Iiitel;iii;i\. i ~ t i i . iii,,ii.ii

iam a necessidade da fé como receptor da giaca de Deu< ofrrecidii como Iieiiefii.iii I>c.IcI,, ..,i

crameot09. 28 (Jptis o,per<rnii,s (aqao do agente) e uma rxprrwiu ii\ada vara afiriiiar qi ic :i\ i i > c i i l i q i r i i l i i

;agcntc afetam a cfichcia da As\icn 05 do~~;ttista\ i~firnxxvit~~~ q t ~ c c > \ V I C ~ ; ~ L ~ C ~ I I O < ~ ~ I I I , ! ~ii\tradi,i ~ x r algué~n quc iniciecia r i r crcoiiii~ii~;i<lo ii$<i ci;iiii v!$li<lor. I.i,p,ii. ir i l i , i ; i i l u r .i

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dem a Deus em si mesmos, nada efetuam senão prejuízo caso deles não se fi- zer uso, da mesma forma não basta realizar o sacramento (isto é, opus opera- tum); ele também precisa ser usado na fé (isto é, opus operantis). E é de se te- mer que, por causa dessas perigosas interpretações, nos sejam tiradas a força e a virtude do sacramento e que a fé desapareça por completo mercê da falsa segurança do sacramento executado.

Tudo isto provém do fato de verem neste sacramento mais o corpo natii- ral de Cristo do que a comunhão, o corpo espiritual. Cristo na cruz também foi uma obra executada que agradou a Deus, mas nela os judeus tropeçam até o dia de hoje, pois não a transformaram numa obra proveitosa na fé. Por is- so, cuida que o sacramento seja para ti um opus operantis, isto é, uma obra proveitosa, e que ele agrade a Deus não por causa de sua essência, mas por causa de tua fé e do bom uso que dele fazes. A palavra de Deus também agra- da a Deus em si mesma, mas é prejudicial para mim quando não agrada a Deus também dentro de mim. Em suma, essa conversa de "opus operatum, opus operantis" não passa de vãs palavras humanas, que mais atrapalham do que ajudam. E quem poderia enumerar todos os terriveis abusos e supersti- ções que diariamente se multiplicam neste venerabilissimo sacramento, al- guns dos quais são tão espirituais e santos que quase poderiam seduzir um an- jo? Em resumo: quem quiser reconhecer esses abusos, que se proponha o uso e a fé nesse sacramento acima descritos, isto é, seja uma alma aflita e famin- ta, a desejar sinceramente o amor, a ajuda e o apoio de toda a comunidade, de Cristo e de toda a cristandade, e não duvide que haverá de recebê-los na fé; em seguida, entre em comunhão com todos no mesmo amor. Quem não conceber e ordenar seu ouvir ou rezar a missa e seu receber o sacramento a partir disso, erra e não faz uso bem-aventurado deste sacramento. E por isso também que o mundo é assolado por pestilências, guerras e outros tormentos terriveis, pois com muitas missas apenas provocamos mais desgraça ainda.

21. Percebemos agora quão necessário é este sacramento para os que es- tão à morte ou precisam colocar em risco corpo e alma, para que não sejam deixados sozinhos nessa situação, mas sejam fortalecidos na comunidade de Cristo e de todos os santos. E por isso que Cristo também o instituiu e ofere- ceu em meio a angústia e ao perigo extremos de seus discípulos. Visto que to- dos nós estamos diariamente cercados por toda sorte de perigos e que, por fim, haveremos de morrer, devemos agradecer, amável e humildemente, com todas as nossas forças, ao misericordioso Deus por nos ter dado esse sinal gracioso. É com ele que Deus nos conduz e leva (se a ele nos atemos firme- mente pela fé), através da morte e por entre todos os perigos, para si mesmo, para Cristo e todos os santos.

Por isso também é útil e necessário que o amor e a comunhão de Cristo e de todos os santos aconteçam ocultamente, de modo invisível e espiritual, e

validade do sacramento dependia da fé de quem a adrninisiiava. Lutero usa a expressão num outro sentido, afirmando que o sacramento só é eficaz quando a pessoa que o recebe faz bom uso dele pela fé. No entanto Lutero não defende a uso da expressào, mas julga que deve ser evitada para nào confundir.

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que nos seja dado apenas um sinal corporal, visível e exterior dos mesmos. É que se esse amor, comunhão e apoio fossem evidentes como a comunhão temporal das pessoas humanas, não seríamos fortalecidos nem exercitados no sentido de confiar nos bens invisiveis e eternos ou de desejá-los; antes, se- ríamos exercitados em confiar apenas nos bens temporais e visiveis, ficando tão habituados a eles que não abriríamos mão deles de bom grado e seguiria- mos a Deus somente na medida em que nos precedessem coisas visiveis e pal- páveis. Desta forma, seríamos impedidos de jamais chegar a Deus, pois, parti chegarmos até ele, todas as coisas temporais e perceptíveis devem desaparecer e nós devemos nos desacostumar delas por completo.

Por isso, a missa e este sacramento são um sinal no qual nos exercitamos e habituamos a largar todo amor, ajuda e consolo visíveis, e a confiar n o amor, auxílio e apoio invisíveis de Cristo e de seus santos. Pois a morte tira todas as coisas visíveis e nos aparta dos seres humanos e das coisas temporais, contra o que precisamos da ajuda das coisas invisiveis e eternas. Estas nos sâo apresentadas no sacramento e no sinal, ao qual nos atemos pela fé até que iis recebamos também de modo perceptível e evidente.

Desta forma, o sacramento é para nós um vau, uma ponte, uma porta. uma embarcação e uma maca na qual e pela qual passamos deste mundo parti a vida eterna. Por isso, tudo depende da fé, pois quem não crê se assemelha t\ pessoa que deve cruzar as águas, mas está tão desalentada que não confia ii;i embarcação, tendo, assim, que ficar e não podendo jamais ser salva, porque não toma lugar nem quer fazer a travessia. É nisso que dão o apego as coisas sensiveis e a fé não exercitada, para a qual se torna amarga a travessia sobrc o Jordão da morte. Ademais, o diabo ainda contribui cruelmente para que 21s.. sim aconteça.

22. Isto ficou representado outrora em Josué 3 .7s . Depois de os filhos de Israel terem atravessado o Mar Vermelho sem molhar os pés - no que i'-. cou indicado o Batismo -, assim atravessaram também o Jordão. Os sacer- dotes, porém, ficaram parados com a arca no Jordão, de modo que a ágiici abaixo deles escorreu embora, enquanto que a água acima deles elevou-se fci- to um monte, no que está indicado este sacramento. Ao pregarem a nós e nos darem este sacramento, os sacerdotes carregam e seguram a arca no Jordão. [isto é,] Cristo e a comunhão de todos os santos em meio a morte ou ao peii- go. Se cremos, as águas que estão debaixo de nós passam, isto é, as coixis temporais e visíveis nada nos infligem, mas fogem de nós. Porém aquelas qiic estão acima de nós elevam-se a uma grande altura. São elas as terriveis e ator mentadoras imagens daquele mundo, [que vemos] na hora da morte [c qiicl nos assustam como se estivessem prontas a nos assaltar. Se, contudo, não TIOS

importarmos com elas e passarmos de largo com uma fé firme, cbegareiiios incólumes e de pés secos na vida eterna.

Temos, portanto, dois sacramentos principais na Igreja, o Batisnio c o Pão. O Batismo nos introduz a uma nova vida sobre a terra, o Pão nos coii.~ duz, passando pela morte, á vida eterna. E os dois estão indicados pelo Mar Vermelho e pelo Jordão, bem como pelas duas terras, situadas além e a(liitiii do .lordáo. Por isso o Senhor disse na Ceia: "Não beberei deste vinho ai6 o

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dia em que o hei de beber, novo, com vocês no reino de meu Pai." [Mt 26.29.1 É a tal ponto que este sacramento está voltado e ordenado para o for- talecimento contra a morte e para a entrada na vida eterna.

Concluindo: o fruto deste sacramento é comunhão e amor, pelos quais somos fortalecidos contra a morte e todo o mal, de modo que a comunhão se- ja em dois sentidos: por um lado, desfrutamos de Cristo e de todos os santos; por outro, deixamos que todos os cristãos também desfrutem de nós, no que eles e nós pudermos. Assim, o amor de si mesmo que busca seu próprio pro- veito, tendo sido extirpado por este sacramento, permite a entrada do amor que busca o proveito da comunidade e está voltado para todas as pessoas. Desta forma, constitui-se, através da transformaçã,o do amor, um único pão, uma só bebida, um só corpo, uma comunidade. E esta a autêntica unidade cristã e fraterna. Por isso, queremos ver agora como se relacionam e se coa- dunam com isto as irmandades, exteriormente brilhantes e tão numerosas ho- je em dia.

Das Irmandades

1 . Vejamos, em primeiro lugar, as más práticas das irmandades. Uma delas é a de prepararem uma comilança e bebedeira, mandarem rezar uma ou várias missas, ficando então o resto do dia, a noite inteira e mais o dia seguin- te dedicados ao diabo. Ali não se faz outra coisa senão o que desagrada a Deus. Foi o espírito maligno quem inspirou esse desvario, fazendo-o chamar de irmandade, embora seja antes uma vagabundagem e uma prática comple- tamente pagã, para não dizer porca. Ao invés de se tolerar semelhante desati- no, seria muito melhor que não houvesse irmandade alguma no miindo. As autoridades civis e as municipalidades, juntamente com o clero, deveriam to- mar medidas no sentido de acabar com isso, pois com essa prática se inflige grande desonra a Deus, aos santos e também a todos os cristãos, fazendo do culto e dos feriados um escárnio para o diabo. Pois os dias santos devem ser comemorados e santificados com boas obras, e a irmandade também deveria ser uma reunião especial para boas obras. No entanto, ela acabou virando uma caixinha para comprar cerveja. Que têm a ver Nossa Senhora, Santa Ana, São Sebastião ou os nomes de outros santos com tua irmandade, se ali não há outra coisa senão comilança, bebedeira, desperdício de dinheiro, alga- zarra, gritaria, conversa fiada, dança e perda de tempo? Nem mesmo uma porca toleraria ser padroeira de semelhante irmandade. Por que então se cau- sa tanta tribulação aos queridos santos, abusando de seu nome para essas sem-vergonhices e esses pecados e desonrando e blasfemando as suas irman- dades com semelhantes maldades? Ai de quem faz e de quem tolera essas coi- sas!

2. Caso se quisesse manter uma irmandade, dever-se-ia fazer uma coleta e alimentar uma ou duas mesas de gente pobre, mandando servi-las por amor a Deus; dever-se-ia jejuar no dia anterior e ficar sóbrio durante o feriado, ocupando o tempo com oração e outras boas obras. Então Deus e seus santos

seriam autenticamente honrados; isso também traria melhora e daria niii bom exemplo aos outros. Ou então se deveria juntar numa caixa comuiii, ca- da ramo de artesanato por si, o dinheiro que se pretende gastar com bcbida, para que, em caso de necessidade, se possa ajudar um colega de oficio neccs- sitado a se estabelecer ou emprestar a ele, ou prover honradamente um jovcrn par do mesmo oficio com os recursos desta mesma caixa comum. Isto é qiic seriam autênticas obras fraternas, que tornariam a irmandade agradável a Deus e a seus santos; de bom grado seriam eles padroeiros de tal irmandade. Caso, porém, não se pretenda fazê-lo e se queira continuar com a velha hipo- crisia, exorto que não se faça isso nas festas dos santos, também não sob sei! nome ou sob o nome da irmandade. Tome-se outro dia útil e deixe-se em pnL o nome dos santos e de suas irmandades, para que não reajam dando uma l i - ção. Muito embora não se passe um dia sequer com semelhantes práticas scrii [que seja inflingidal desonra, deve-se poupar mais as festas e o nome dos stiii- tos, pois essas irmandades se dão o nome de santos e, sob esta égide, proiiio- vem a obra do diabo.

3. Existe ainda outro mau costume entre as irmandades. Trata-se dc i i i i i i i

maldade espiritual, de uma mentalidade falsa, que consiste em acharerri qiic sua irmandade não deve beneficiar ninguém senão eles mesmos, aqueles qiic constam em seu registro ou que para ela contribuem.Essa maldita opiiiifio maligna é pior ainda do que a primeira maldade, constituindo uma razão 1701

que Deus permite que das irmandades saia tal escárnio e blasfêmia de Deiih. com comilanças, bebedeiras e coisas assim. Pois nelas aprendem a buscar ;i .;i mesmos, amar a si mesmos, ser fiéis somente entre si, não se importar coiii os outros, julgar-se melhores e pretender maiores privilégios junto a Deus do que os outros. Desta forma, desaparecem a comunhão dos santos, o aiiiui cristão e a verdadeira irmandade, instituída no santo sacramento. Desta foi ma, cresce neles o amor egoísta, que não é outra coisa senão contestar e pcr. turbar, com essas numerosas irmandades exteriores, voltadas para as obriis. ;i

irmandade una, interior, espiritual, essencial e comum de todos os saiiios. Quando, então, Deus vê essa atividade perversa, ele, por sua vez, taiii-

bém a perverte - conforme se encontra no Salmo 17[18].26: "Com os pcr- versos tu te mostras perverso"" -, fazendo com que, através das suas ir- mandades, eles mesmos se façam objetos de ezcárnio e infâmia, e os expiils;~ da irmandade comum dos santos, A qual eles resistem e com a qual não colii- botam, lançando-os em sua irmandade glutona, beberrona e devassa. Lilc o faz para que os que não buscaram nem intencionaram mais do que seii iriic- resse próprio encontrem o que Ihes cabe; mesmo assim, ele os cega de rriodo u não reconhecerem esse descalabro e ignomínia, embelezando sernelliaritc ilc- satino com o nome dos santos, como se fosse algo muito bom. Além disso. ele lança alguns tão fundo no abismo, que chegam a ufanar-se publicaiiieiiic. dizendo que quem estiver em sua irmandade não pode ser condenado, a>iiio se o Batismo e o sacramento, instituídos pelo próprio Deus, fosseiii iiiciios

29 Mir den vorkerefen vorkerestu dich, no original

44 1

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importantes e certos do que as invencionices de suas cabeças obcecadas. As- sim Deus haverá de lançar na vergonha e ofuscar aqueles que, com seus lou- cos modos e os porcos costumes de suas irmandades, insultam e blasfemam as festas de Deus, seu nome, os seus santos, e que o fazem em prejuízo da ir- mandade cristã comum, emanada das chagas de Cristo.

4. Por isto, a fim de aprender a compreensão e o uso corretos das irman- dades, deve-se conhecer e discernir o que verdadeiramente distingue as ir- mandades. 'A primeira irmandade é a divina, celestial, de todas a mais nobre, que é superior a todas as outras, assim como o ouro é superior ao cobre ou ao chumbo. Trata-se da comunhão de todos os santos, da qual se falou acima, na qual todos nós somos irmãos e irmãs.'Ela é tão intima que jamais se pode- rá conceber outra mais intima; pois ali há um [só] Batismo, um Cristo, um sacramento, um alimento, um Evangelho, uma fé, um Espírito, um corpo es- piritual, e cada qual é membro do outro. Nenhuma outra irmandade é tão profunda e íntima. A irmandade natural é, sem dúvida, uma carne e um san- gue, uma herança e uma casa; mesmo assim, precisa dividir-se e misturar-se com outro sangue e outra herança. As irmandades partidaristas têm um [só] registro, uma missa, um só tipo de boa obra, um [mesmo] dia comemorativo, uma [mesma] contribuição e, como acontece atualmente, uma [só] cerveja, uma comilança e uma bebedeira. Nenhuma vai tão fundo a ponto de criar um [só] espírito, pois este somente é criado pela irmandade de Cristo; por isso, quanto maior, mais geral e ampla ela for, tanto melhor ela é. Todas as outras irmandades, então, devem ser ordenadas de forma tal, que constantemente tenham diante de si a primeira e mais nobre, tenham em alta consideração unicamente a ela e, com todas as suas obras, não busquem seu próprio inte- resse, mas as pratiquem por amor a Deus, pedindo a Deus que preserve e me- lhore diariamente essa comunhão e irmandade cristãs. Onde, portanto, surgir uma irmandade, ela deverá caracterizar-se pelo fato de sobressair perante ou- tras pessoas, fazendo algo de especial em prol da cristandade, com oração, jejum, esmola, hoas obras, não procurando seu próprio proveito ou recom- pensa, também não rejeitando ninguém, mas servindo a toda a comunidade da cristandade como livres servidores.

Onde houvesse essa mentalidade correta, Deus, por sua vez, também da- ria a ordem correta, de sorte que as irmandades não acabariam arruinadas com a glutonaria. Isso resultaria em bênção, no sentido de se juntar um fun- do comum com o qual se ajudaria também exteriormente a outras pessoas. Então as obras espirituais e corporais das irmandades andariam em sua or- dem certa. E a quem não quiser seguir esta ordem de sua irmandade aconse- lho que se desligue da irmandade e a deixe de lado; ela lhe causará dano em corpo e alma.

Caso, porém, disseres: "Se não recebo algo de especial nairmandade, de que me adianta ela?", respondo-te: bem, se procuras algo de especial, de que tc adiantará a irmandade masculina ou feminina? Serve a comunidade e às outras pessoas conforme o costume e a maneira do amor, e tua recompensa por estc amor não deixará de chegar. sem que a busques e desejes. Mas se o servico c a recompensa do amor te parecem pequenos, é sinal de que tens uma

442

irmandade pervertida. O amor serve livre e gratuitamente, razão por que Deus, por sua vez, também lhe dá todo bem livre e gratuitamente. Como to- das as coisas devem suceder no amor, para que possam agradar a Deus, tam- bém a irmandade precisa existir no amor. Ora, o que é feito em amor caracteriza-se por não procurar o que é seu, nem seu [próprio] proveito, mas o dos outros, e sobretudo o da comunidade.

5. Voltemos novamente ao sacramento. Visto que a comunhão cristã nunca esteve tão mal como atualmente, diminuindo a cada dia que passa, principalmente nos mais altos escaldes, e visto que todos os lugares estão cheios de pecado e torpeza, não deves considerar quantas missas se realizam, ou quantas vezes é ministrado o sacramento, pois é por isto que as coisas fi- cam piores, em vez de melhorar. Considera, isto sim, o quanto tu e os outros crescem no significado e na fé desse sacramento; nisto é que está a melhona. E quanto mais constatares que estás incorporado na comunhão de Cristo e de seus santos, tanto melhor a tua situação, isto é, se constatares que estás fican- do forte na confiança em Cristo e em seus amados santos, de modo que te- nhas certeza de que te amam e estão contigo em todas as afliçdes da vida e da morte. E, por outro lado, deve preocupar-te o declínio ou a queda de todos os cristãos e de toda a comunidade em cada cristão; teu amor deve ser com- partilhado com qualquer um; deves estar disposto a ajudar todo mundo, a não odiar ninguém, a compadecer-te de todos e a interceder por eles. Vê, se a obra do sacramento andar bem, muitas vezes haverás de prantear, lamentar e chorar por causa do miserável estado da cristandade de hoje. Mas se não tive- res essa confiança em Cristo e em seus santos, e se não te atribular nem como- ver a miséria da cristandade e de cada próximo, acautela-te em relação a to- das as outras hoas obras, pelas quais acreditas ser piedoso e alcançar a salva- ção. Com certeza serão pura hipocrisia, aparência e impostura, porque são desprovidas de amor e de comunhão, sem os quais nada existe de bom. Pois, summa summarum, plenitude legis est dilectio3o, o amor cumpre todos os mandamentos31. Amém.

[Posfdcio na edição C:] Sem qualquer necessidade, algumas pessoas rejeitaram este sermão pela

razão de eu ter dito, no terceiro artigo, que me parece bom que um concílio cristão determinasse que ambas as espécies sejam dadas a todos. Escancara- rama boca a ponto de dizer que isso seria errado e escandaloso. Que Deus no céu tenha misericórdia de passarmos por uma época em que Cristo, o nobre Senhor e Deus, é insultado e blasfemado publicamente por seu próprio povo, ao ponto de se difamar sua ordem como sendo um erro. Teria sido suficiente deixá-lo11 como uma ordem permitida e que, se não se quisesse transformá-lo em mandamento, também não fosse considerado proibido ou errado. Mas

30 Resumindo tudo: o amor 6 a plenitude da lei. 31 Cf. Rm 13.10. 32 S ç . a celebraçsa sob ambas as espécies.

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peço que eles tenham a gentileza de dar uma boa olhada no segundo e terceiro artigos, nos quais afirmei claramente que uma espécie é suficiente. Fiquei sa- bendo ainda que meus escritos somente são rejeitados por aqueles que nunca os leram nem querem lê-los; a estes envio minhas saudações e informo que não me importo com seu parecer cego e injurioso. Enquanto Deus permitir que eu viva, não estarei disposto a tolerar que, de maneira tão atrevida, con- denem e blasfemem Cristo, meu Senhor, chamando-o de mestre herético, es- candaloso e sedicioso. Podem contar com isso.

Índices

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Índices

ANTIGO TESTAMENTO Deuteronamio 1 Reis

Gênesis ~~

1.2 108 n. 156 28.65 97 1.31 52 n. 45,437 28.65% 109 2.24 242 n. 4 32.36 42 2 Reis 3.18 356 32.39 75 4.4 141.372 n. 114 6.16s. 396

2 Crônicas

33 240 n. 7

Êxodo Ester

1.5~s. 436 n. 23

1 Samuel

Levítico

26.36

Números

2 Samuel

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Lamentaçóes de Jeremias

Ageu

2.9 329 Ezequiel

Zacarias

Eclesiastes

Malaquias

Cantares

Sabedoria

Jeremias Isaías

Jonas

3 69 n. 54

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NOVO 'TESTAMENTO

Romanos

Marcos

João

Atos dos Apóstolos

1.15s. 322 n. 92

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5.22 243 2.11 132 n. 222, 1.5-7 212 5.24 63, 243,256, 155 n. 280 1.8 378

356 3.14 193, 196 2.17 373 6.2 128, 185 n. 377, 3.15 193 2.19 97 n. 126

I 391,431 4.8 16

6.4 161 5.14s~. 69 n. 53 6.7 105 1 Timóteo 6.10 105

2 Corlntios

1 Tessalonicenses

2 Tessalonicenses

Tiago

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4.4 384 n. 141 2 Joáo Apocalipse 4.18 95, 104 n. 143 4.20 380 1 319 1.7 252 n. 14 5.1 367 10 193 3.19 69

14.13 105,390 21.2, 9 178 n. 352

3 João 21.27 44,117n.182, 362 n. 88

1 319

Abelardo, Pedro, 31 n. 2. Antão, 318 n. 84. Abraão, 58,239s., 278s. Antonino, 11 1, 167. Acicio, 328. Aauiies. 347. Ágata,150. ÁAo, 80 n. 78,328 n. 109,349 n. 64. Agnes, 171. Aristóteles, 13s., 17s., 31 n. 3, 36, Agostinho, 13, 15, 36, 38, 40s., 43, 39s., 52s., 61, 86 n. 103, 122 n.

46s., 52s., 67, 68 n. 47, 74, 81 n. 167, 120 n. 191, 164 n. 304, 84, 96, 102, 105s., 127s., 139, 167s., 170, 250 n. 9, 264, 338, 146. 161-3. 202 n. 14. 207. 213. 368s.. 372. 218; 221, g1,274,282,292,303; 305,317, 321,323,327, 336,338, 342,345,353-6,360,362s., 378- 81,401,405,414,428,432.

Arostinho de Ancona. 111.167. . , ~ r b e r t o de Hohenzoiiem (= de Mo-

xúncia), 26 n. 19. 139 n. 238. 177 n. 350; 199. Alherto Magno, 250,402 n. 8. Alexandre VI, 119,179 n. 353. Alçxandre de Hales, 16 n. 16, 166s.,

437 n. 27. Altisiodorense (v. Guilherme de Au-

xirre). Aiiil>rósio. 91. 96. 157. 162. 295.

323, 345,401 n.'4. '

Ai~isilorf. Nicolau von, 233 n. 2.

Atanásio, 80, 167 n. 315, 318 n. 84, 328 n. 109.

Auer, Joáo, 231 n. 16. Augusto, 314.

Banissio, Jacó, 205 n. 24. Basílio, 161 n. 298. Beehr, Cristóvão, 232. Beier, Leonardo, 35,37. Benedito 11,327. Bemardo de Botono, 113 n. 171. Bemardo de Claraval. 68. 154. 213. . - .

245,249,252,317,'355. Biel. Gahnel. 13 n. 5. 14-6. 18. 20. . . .

47 n. 33,437 n. 27.' Boaventura, 62. 112-4, 130, 163s..

166,337,437 n. 27. Bdcio, 18 n. 22. Bonifácio. 85. 218. 370 n. 108. ~onifácio'~111,299,316s. Borgia. César, 179 n. 353. Braun, João. 14 n. 9. Brenz, João, 36.

Bncer, Martinha, 36,414. Bugenhagen, 80 n. 78. Buüinger, João Henrique, 426. Burguense (v. Paulo de Bnrgos). Buterico, 91 n. 114.

Caetano, Tomás, 70 n. 55, 199-226, 230s., 260,263,427 n. 8.

Caifás, 196,203. Calwio, Joáo, 426 o. 5. Capito, wolf&ng, 36 n. 6,402s. Capreolo, João, 337. Carlos V. 36 n. 6. 176. 200. 230 n. . .

12,259,426 n. 8. Cassiodoro, 91 n. 115, 327 n. 103. Catanei, Vanozza, 119 n. 188. Catão, 184. Catarina. 165. ~ecilianó, 74 n. 62. Celestino IV, 323 n. 93. C&=, Júlio, 314. Cesário de Arles, 370 n. 108. Cfcero, 61.202. Cipião, 184. Cipriano, 80, 85, 91, 162,218,270s.,

289,305,321s., 327,332,348s. Cirilo de JemsalEm, 330. Clemente, 273 n. 15. Clemente V, 129 n. 215,316s. Clemente VI, 203s. Constança, 324. Consthcio 11, 328. Constantino I. 74 n. 62, 171. 258,

116. Constantino IV, 259,327. Comélio, 218. Cranmer, 36 n. 6,414 n. 5. Crasso, 29, 187. Crisóstomo, João, 162,274,328.

d'Ailly, Pedro, 18,20. DBmaso. 220 n. 70.329. ~ z e l . 64. Davi, 71.75, 383. Diçii), XO n. 80, 150 n. 269,270 n. 9,

274 11. 15. IXiiiCii-i<). 274 n. 15.319 n. 88.

Dionísio Arwpagita, 91. Donato, 74 n. 62, 336 n. 13.

Eck, João, 257-63, 269, 270 n. 8, 333-47, 356, 363, 366, 368-72, 374.377.

EleutEko, 327 n. 100. Enéias, 347. Epifhio de Chipre, 328. Erasmo de Roterdã, 35 n. 3, 36 n. 6,

80 n. 81, 86 n. 101, 120 n. 195, 167 n. 312,261,346 n. 45,414 n. 5,425 n. 4.

Escoto, João Duns, 13, 15, 78 n. 73, 91 n. 116, 111 n. 165,112n. 167, 337, 348,367,437 n. 27.

Esculteto de Brandenburgo, 55. Espalatino, Jorge, 35s., 55,201,233,

250,333,335 n. 9,344,385,401, 427 n. 8.

Esperidião, 118. Esteváo, 285,290. Esteváo (bispo romano), 80 n. 80,

270 n. 9. Eudóxia, 274 n. 16. Eueênio 111. 154. ~ngên io IV; 204 n. 21. Eulógio de Alexandria, 288,324. Eusébio de Cesaréia, 80 n. 79, 91 n.

115,327 n. 103,328. Eusébio da Panmia, 328. EustSquio de ~ntioquia, 331. Evágno, 318,320,350. Evódio,297.

Fabíola, 91. Felipe de Feilitsch, 205 n. 24. Féiix, 321. F6lix 11, 328 n. 109. F6lix V, 204. ~ernandez, Pedro, 404 n. 14. Filipe, o Belo, 259 n. 13. Francisco I. 230 n. 12. 259 n. 13.427

n. 9. Francisco de Assis, 249 n. 3. Frederico 11. 191. ,

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Sadoleto. Jacó, 223. Sakkas, Ámmonius, 273s. n. 15. Sad, 383. Schart, Marcos, 385. Schuiz, Jerônimo (v. Esculteto de

Brandenbureo). Schurff, 427 n.'8.. Schwenckfeld, Gaspar, 426. Severino, 25,135. Silbereisen, Elisabeth, 36 n. 6. Silvestre 1,258,269. Sirnons. Meno. 413 n. 13. Sixto 1i,~171 i 330. Sixto IV, 83. 131,179 n. 353,204. Spiegel. Jac6,205 n. 24. Staupitz, João von, 22, 35, 57, 201,

215,385,402,426 n. 8. Steinbeis, Wenzel, 231 n. 16.

Tauier, Joáo, 98,135. Twdósio, 91 n. 114, 167 n. 315,329

Teodósio 11,218 n. 66. Teófdo de Alexandria. 328. Terápio, 80. Tetzel, Joáo, 24 n. 13, 26 n. 19,66 n.

37s., 80 n. Xls., 86 u. 103, 137 n. 233, 199,229 n. 7,263 n. 31,340 n. 29.

Tiago, 326,331. Tiago, o Menor, 326,331. Tomás de Aauino. 13. 16 n. 16. 31.

n. 17,402,437 n. 27. Tom4,331. Tmtvetter, 35. Turno, 347.

Urbano V, 181 n. 361. Ursino, 329 n. 114. Usingen, 35. Utzmai, Bartolomeu, 231 n. 16.

Vaientino, 327 n. 101. Valeriano, 171 n. 329. Val6rio (bisao de Hinona). 401 n. 4.

& ,, Valéric '(&radar romano), 27 n.

23, 171 n. 330. ~alla;Laurêncio, 120. Vesáiia, Joáo, 120. Vicente (Ferrer). 108. Vicente de ~e r&o, 379. Virgíiio, 126. Vftor I. 327.

Waiter de Mortagne, 31 n. 2. Weller, Ana. 426 n. 8. Wimpina, Conrado, 66 n. 37 e 39,70

u. 56, 80 n. 81s.. 86 n. 103, 340 n. 29.

Wyclif, João, 259,260 n. 14, 340.

ÍNDICE REMISSIVO

Absolvição, 21, 23, 90s., 145-7, 172, - poderldever do sacerdote de 376,405-8,410s.; conceder a, 76,264,370,407s. -dos mortos, 86; Abscondidade de Deus (v. Deus, ahs- -necessidade da f6 para a, 76-8, condidade de).

145-7.406; Ação humana

- B d fora da graça, 356; -6 ou boa ou má, 347, 352-4,

362,367. Adáo, 68,95, 101,243s.. 422. Adversidade (v. m b d m Tribulacãotol. o ,.

235s., 255,'431-3. Agostinianos, 13, 35, 37 n. 9, 55,57,

199-201, 263 n. 26, 337 n. 21, ?X5

Albieenses. 305 n. 68.

~mor,272,303,361,363s., 442s.; - à criatura, 236: - a ~ r i s t o l ~ e u s ; 15s., 20, 235s..

300-2, -de Cristo (v. Cristo, amor de); -de Deus (v. Deus, amor de); -expulsa o medo, 94-6,104; -falta de. 101.264.364.374: . . . . . -humano, 53s.; - à justiça, 368s.; -ao próximo (v. tambdm Obras,

boas e Obras de amor), 243-8, 436;

-no purgatório, 25, 100-7; - e Santa Ceia, 431, 433s.. 436,

440. Anabatistas, 413. Anjo(s), 386, 395-7. Anticristo. 259.293.326. . . . Apelação

-ao co~icllio, 201,204s., 227-32; -ao oaoa. 201.215.

371s.; -livre, 46s., 262, 264, 337, 345,

366s., 369,371s., 374. A~ianismola~ianos, 349. Arrependimento (v. Penitência). Autoridade(s) (v. m b l m Papa, au-

toridade do e obediência ao, e Igreja. obediência à) - rcsist@ncia à(s), 176s.. 180; - siijeii;L> à@), 272s., 305- 14.

-por imersk, 413-5,428s.; - e morte, 414-24; -nos dá Cristo, 418; - ordem de, 413s.; -pacto do, 418-24; -partes do, 413s.; - e remissão dos pecados, 360s.,

413s., 418-21,424; - e renascimento (v. Renasci-

mento e Batismo); - e Sacramento da Penitência,

421; - e salvação, 416; -significado do, 414-24. -sinal do, 413-7,419s.

Begardos, 96, 139,163,185. B&nção(s), 242. Beneditinos, 218 n. 63. Blblia (v. Escritura). Bispo(s), 23, 88, 118-20,218,279s.;

-autoridade do papa sobre o($, 287, 291, 298, 301, 304, 316, 382s.;

-igualdade dos, 318-21, 328s., 383;

-ofício do, 283, 326-8; - sagração dos, 322s., 341,381-3.

Blasfêmia, 236, 293, 307, 323, 341. 365,389,441-4.

Boêmios (v. tamblm Hussitas), 261, 315, 343, 352.

Cânones, 264,287s., 298-300,369s.; -aboliçáo dos, 136, 183; -autoridade dos, 62,286s.; -como declarações de penas im-

postas por Deus, 143; - impstos somente aos vivos, 23.

82-94; - penitenciais, 23, 29, 82-8.

C m e (v. tamblm Ser humano, na- tureza carnal do), 355, 358s.. 361, 432: -mortificação da (v. Mortitic;i-

ç k ) . Castidade, 238,423. Cá tms , 259. Ciu(s), 9')s.;

- inlradn n o rcirio dos, 29.44.48, 67, 1 17. 100.247;

Page 231: Martinho Lutero - V.1 obras selecionadas de lutero,  os primordios, escritos de 1517 a 1519

Chaves. oflcio das, 74-82, 401, 404, 408; -abuso do, 180, 188,408; -dado à Igreja, não s6 a Pedro

e seus sucessores, 272-80, 296s.. 41 1s.

-desprezo do, 147s. - desvalorizado velas indnleên-

L

cias, 144s. -fé no, 76-8, 145-7, 166; - relaç& com o p"rgat6rio, 24,

120-7; -restrito a terra. 81s.. 124-6: -reverência d&da ' ao, 147s.,

180,408; - wmo tesouro da Igreja, 27, 172,

209; -valor vara a remissão. 74. 172.

Cisterciens'es, 213 n. 47,249. ' Clero, 309s., 312s. Coleta, 433,440. Comunhão (v. também Igreja como

comunhão dos crentes, Santa Ceia, comunhão na e União) -interna e externa da Igreja, 192-

4, 197s.; - privação da (v. Excomunhão).

r 'c~iiçflio autoridade do, 351; - alitoridade em relação ao papa (v. Papa e concaios);

- taiibilidade do. 260. 343. 348s.. . , , 351, 356.

<',>iiçflio Africano, 288,341-3, 351. ('onçflio de Basiléia, 204, 205 n. 23,

143,350s. ('oiicíiio de Calcedônia. 289. IV <:oiicaio de ~a r t ago , 321. r 'oiiiflio de Coustança, 260, 338,

340-3,348-51,356, 367,383. r '<,iicflio de Constantinopla, 329. V < 'i>ncfio de Latráo, 59 n. 11,70 n.

55, 11811. 185,317n. 81. [ ' , ~ ~ l ~ f l i < , de Nickia, 80 n. 78 e 79,

LSX, 265, 305, 330s., 341-3, 351, .1X1.

I I ('oiicflio dç Isia, 118 n. 185. ('oiiçflio ilc Roma, 343, 351 (v. n.

08). ('oiicllii~ i I i Viiiinc, 12') n. 215. ('oiii.ii~~isçCiiçia, Ih, 05s.. 117, 243,

255. 70 I, :ltds., :I(>'>.

Condenação, 68, 198, 211, 388s.. 408,437.

Confianca (v. também F 8 - . -na criatura, 45s., 168; -em CristolDeus, 42, 78. 95s.,

109s., 136, 144-7, 174, 234, 239, 255, 393-5, 404s., 420, 434,443;

-falta de, 95s., 98, 145-7; -nas indulgências, 26, 136, 154s..

157: -nas óbras, 44,78,239,254,405,

407-9,411,420,424; -em si mesmo. 49. 146s.. 408. . .

Confissão (v. também Pecados, con- f ~ s ã o dos), 21, 25 n. 16, 31, 64, 76,141s., 233-40;402,409s.

Consciência, 213s., 231, 302s., 345, 353; -alegria da, 174,403s., 407; -paz de, 76, 95, 146, 213, 254,

400.405.408: . . . -tormento da, 75s., 95, 146s.,

173, 235, 251-4, 317, 388, 399s., 404,407- 10,420,431s.

Consolo, 76, 117, 146, 174, 249, 255, 385s.. 393, 395. 404s.. 409. . . 419; 431s.

Contemplação -do sofrimento de Cristo.

249-56. Contrição, 23, 25, 29, 31s., 76, 89%

114, 122s., 135, 141-3, 145-9, 168, 187, 264, 356, 371, 402,

Conversão, 32,73. Corpo, 144;

-de Cristo, 429; -um ~6,434,440.

Credo, 276,414. Cristo

-amor a (v. Amor a Cristo); -amor de, 392,434; - cmz de, (v. Cmz de Cristo); - Es~úi to de. 144: -como e ~ e ~ ~ l o , 244-6,248,250,

255s., 325; - irnarem de. 390.393: u . . . -justiça de, 53, 144, 169, 242,

434s.; iiiCritos de, 27, 160, 163-72; - çiii 116s [xld i'&, 53;

- obedikncia de, 392; -obra de, 53, 242, 244, 251%

254s.; -participação em, 143s., 210; -posse de, 53,242; -ressurreição de, 145,254,392; -como sacramento, 250-5; -sofrimento de, 49s., 249-56; -tribulação de, 392s.; -união wm, 144,209s., 242-4; - o único cabeça da Igreja. 331s. - " .

Cmz, 29, 189; -do cristão. 50.52.67.339: . . . -de Cristo (v. tamblm Sofri-

mento de Cristo), 49 n. 38, 49-51,386.390-2;

-dá vida ao mundo, 183; - sabedoria da, 49-52; -teologia da (v. Teologia da

cruz); -con~o verdadeira relíquia, 169s.

Cmzadas, 305 n. 68. Culoa (v. também Remissão da cul-

pa), 363. Cúria Romana, 21, 154, 177, 179 n.

353, 200s.. 203, 215, 224 n. 73, 225, 259, 292, 300s., 312, 317, 323.

Decálogo (v. tambJm Mandamentos), . . 19,234'-39,357.

Decretaisldecretos papais, 62, 72 n. 60,205-7, 316s.; -opostas à Escritura, 206s., 210,

216-9,221,280,298,306,317,

-relativos ao primado do papa, 272s., 284-315,32Os., 381.

Demônios. 179. Descanso, dia de, 237. Desespero, 24, 96-100, 195, 254,

404,408,410; -em relação à capacidade huma-

na. 48s.. 78: - daconthçã&, 78, 146,254.

Deus - tihscondidade de 42.49s.; - iuiior a (v. Amor a Deus); - iiiiior <l i , 53s., 255; - ioiiliççiiiicnio de, 49s.;

,:l(,ri:i <!c (v . < ;I6ria de Deus);

-graça de -(v. também Graça), 27s., 75-79,243,253,398,400, 407-10,415,418s., 424,431;

-humilha o ser humano, 42,75s.; -ira de. 98s.. 153. 157. 184.

i8ss., i96,251,388; -juizo de (v. também Juizo), 42,

235.361-5.409.419; -justiça de (;. ~ustiça de Deus); -lei de, 40, 313,358s.. 361-3; -mandamentos de (v. Manda-

mentos de Deus); -misericórdia de, 42, 239, 243,

356. 362-5. 367. 407. 419-21. , . 424; 43 1; '

-nome de, 236; -obras de, 42-4, 48, 52, 75s.,

1 hVi ---, -6dio a, 389; -perdão de (v. Remissão da culpa

e Remissão dos pecados); - orovidência de. 66:

-verdade de. 230:

421,431-3,435,439-41. Dilúvio, 416s. Dinheiro

-pelas almas no purgatório, 24, 28s.. 132-4, 138, 141s., 229:

-igreja busca, 21, 28s., 60, 80, 140, 149, 155-7, 175, 186-8, 225.262. 316. 377. 382.

Direito c k ô ~ c o , 56,62,203 n. 15. Discipulado (v. Seguimento de Cris-

to). Domi~icanos, 131 n. 220,199,202 n.

13. 224 n. 75. 230. 250 n. 9. 263 n. 26,305 n. 68,402 n. 8.

Donatistas, 74, 179, 280, 336,401 n. 4,437 n. 28.

Dúvida, 166, 210-2, 353, 394, 397, 406s., 421,436.

Escolástica (v. Teologia escolástica). Escritura, 184,269, 335s.;

-abuso da, 66, 204, 206, 217-9,

Page 232: Martinho Lutero - V.1 obras selecionadas de lutero,  os primordios, escritos de 1517 a 1519

-autoridade da, 56, 62. 163, 201, 205,207s., 214s.. 219,221,260, 268.284s.. 315.348.378:

-e autoridáde papal; 201, 204, 207s., 221,231,265,269,375;

-interpre%ão da, 88s. n. 108, 214s., 268,279,303, 305.

Esmolaís). 31s.. 64-6.442. Espada(sj.

-doutrina das duas, 183s.; -poder da, 312s.

Esperança, 16; -em Cristo, 48, 146,249; -em Deus, 45s., 410; -pregação da, 48.

I-;spírito Santo, 23, 43, 69, 87, 155, 219,228,300,329,342,350,375, 414,418; -atuação do, 160,210; - e f6.380: - g a i a justificante do, 139; -e Igreja, 378; - oecado contra o. 236.268.407. . . .

liuc-tia (v. Santa Ceia). livangelho, 173s., 355;

-ensina a amar as penas, 149, 174;

- ignorhcia do, 134,3 17; -pretendo pelos pregadores de

indulgências, 26s., 134, 149, 178, 181;

-revela justiça de Deus, 241,243; -tesouro do, 173, 175; - valor do, 158s., 178.

I~xçomunhão, 162, 191-198, 231, 429; - para falsos pregadores de indul-

~&ncias, 179-81; - ile L.utero, 260; - morte em estado de, 180, 197; -dos mortos, 86s.

I xti:iv~eante. 317:

I,:izcr <i CIUC csttB cm si, 16s., 46-9, 345, 306.

1'6 ( V . t,,?,t/>/Wl ~:<~nlii~zl'+)

-de Ahraáo, 211,213,278s.; -das almas que partem, 100s.; -em CristolDeus, 144-6, 211,

216,234,239,254s., 393; -defínida, 211-13; - exercicio da, 212; - falta de, 409; -e graça, 211; -e Igreja, 259, 276, 285, 290,

292.294-7.378-81; -justiça da, 241; -e justificação (v. rambem Justifi-

cação pela fQ, 52s., 76-80,145- 7. 174. 210-3. 242s.. 264. 371-4; '

-ante a morte, 386; -necessidade da, 76-9, 144-7,

204,254, 353,390-2,394,405- 12,419,426;

-como obra de Deus, 144, 254, 197: -. . ,

- e obras, 52s., 372s.; - e oficio das chaves (v. Chaves,

oficio das, f€ no); -e palavra de Deus, 211, 216,

254,264,405- 12; -e paz (v. Paz atravds da fé); -de Pedro 380s.; - e pregação, 380; -na promessa de DeuslCristo,

76-9,211,234,402s., 405; - e sacramentos, 77s., 81, 146s.,

204. 211-3. 387s.. 393s..

Filosofia -na teologia (v. tambern Teologia e Aristóteles), 13s., 17s., 36, 39s.

Franciscanos, 62 n. 22, 83 n. 91, 130 n. 218, 131 n. 220, 204 n. 20,249, 305 n. 68,337 n. 19,402 n. 8.

G161ia -do cristão, 242; -de Deus, 44s., 174,236; -na lei, 51; -do ser humanol~r6~ria. 44s..

51s., 236,245,333-6;382; -teologia da (v. Teologia da g16-

ria).

'atividáde da,' 16.18-20, 33,48, 52s., 173s.. 368:

-aumento di, 264.374s.; -busca da, 48.366; -de Deus (v. Deus, graça de); - e f6 (v. F€ e graça); -imagem da, 390s., 398; -e indulgências, 175s., 180; -infusão da, 75-7, 360; - e lei, 18-20,48, 173s., 198,369; - e natureza. 16s.: . ~. -necessidade da, 18-20, 338,

345.352s.. 366. 369; -e obras, 19,352,368,372,404; -preparação para a, 16s., 48,345.

Heregeslheresia, 138-40, 141, 162, 184s.. 216. 222.224s.. 232.257s..

368s., 374,3j9s., 383. Humildade, 42s.. 48, 174, 216, 243,

272,285,306,308. Hussitas (v. tambkm Boêmios), 96 n.

125.

Idolatria, 152. Igreja(s), 74, 178,314;

-amor A, 185; -autoridade da, 378-81; -como comunhão dos cren-

teslsantos (v. famb6m Santa Ceia, comunhão na), 276, 279s.;

-exclusão da (v. Excomunhão): . , - e f€ (v. F6 e Igreja); - greea/oriental. 285-7.290.351; . . . - & l d a d e de &das as, 296; -de Jemsal6m como primeira e

mãe de todas as Igrejas, 291; -latina, 285,289, 327; -obediência A, 205, 210, 215,

237: -e palavra de Deus, 259, 277,

293s., 296; - wder da. 183.195-7: -reforma d q 55,188; ' - remissão de penas pela, 377; - Romana (v. tambem Primado do

papa), 62, 116. 205, 215, 217s.,

221s., 229,258,262,301,304s., 316s., 320,329s., 378,380;

-e sacramentos, 296. Indulgências, 21-9, 83, 112-6,

128-32,135-90,214,264,377; -cartas de, 25s., 29, 136, 143-5,

157,404; - controvkrsia sobre as, 21s., 55s.,

58, 60-2, 201, 205, 229-31, 339s.;

-como declaração pública da re- missão divina, 23,25,92, 144s.;

-como defeito da boa obra, 264, 376:

-ensinam a temer as penas, 25, 110, 152, 170;

-falsa segurança nas, 25s., 29, 117, 132s., 136, 154s., 157,254, 424: -

-e graça (v. Graça e indulgên- cias);

-limitações das, 21s., 24-6, 28, 86.92-4,113-6,128-32,150-2, 182s., 404;

-não são os m6ritos de Cristo e dos santos, 27, 160-71, 204, 208-10, 219s., 225s., 264, 375s.;

-não s& ordenadas, 26, 34, 143, 149, 151, 153;

- e obras, 25s., 31-4, 114, 150-2, 164-6.180s.. 225s.: .

- pregaçáolpregadores de, 24, 26-8, 58. 60. 99, 112, 136-43, 154-9,1?7,1Xi, 184,229,340;.

-de proveito s6 para criminosos ou preguiçosos, 33s., 92s., 153, 165, 168, 176, 346;

-como remissões de penas, 21, 23-5, 31-4, 92s., 136, 140s., 152, 155, 162, 165s., 170, 178, 189,208,229, 376;

-como simonia, 151, 155, 159; -tesouro de, 27, 174s.. 187s.; -valor das. 225s.: - vendaivendedores de, 24, 26-9,

58, 1M). 115s.. 133s.. 140, 175- . . 8,339.

Inferno, 99s.; -imagem do, 385, 389, 391s.,

394,398; -medo do (v . Medo do inferno);

Page 233: Martinho Lutero - V.1 obras selecionadas de lutero,  os primordios, escritos de 1517 a 1519

- vit6ria sobre o, 391s.. 398. Intercessão

-e seu atendimento por Deus, 133;

-de Cristo perante Deus, 169, 430;

-da Igreja, 24, 132-4; -do papa, 24, 69, 119-21,

126-32.134: , . -dos santos, 430.

irmandades, 425,440-3. Irmãos Moravianos, 96 n. 125.

Jejum, 31s., 64-6, 250, 253, 404, 422,440,442.

Jesus Cristo (v. Cristo). Judeus, 250,253,281; 291,393,395,

432,438. Juízo (v. também Deus, julzo de),

105, 108s., 211, 213; -medo do (v. Medo do juízo).

Juramento. 236.300-4. Juristas, j8, 187, 217, 221, 272s.,

292. Justiça

- amor à (v. Amor à justiça); - concomitante com pecado, 361-

Fi . . -do cristão, 241-8; -de Cristo (v. Cristo, justiça de); - impossfvel sem pecado, 357,

361-7; - e lei, 40s.; -do ser humano, 40s.

Justiça de Deus, 89s., 241-3; -adquirida pela fé, 52,241-3; -penas exigidas pela, 71s.

Justificação pela fB (v. também F€ e justificação). 52, 56, 76-80, 146s., 166, 210-3, 241-3, 264, 371-4,386.

i .ei(s) - canônica (v. Cânones); -civil, 85; -çuinpriinento da, 18-20, 174,

358s.. 361.365s.. 443; . . - dç ~>cus (v. ~ c u s ; lei de); - c I!vangclll<l. 173s.; - ç gra<;d (v . <;ra<;a c lei);

- humana, 3 13; -humilha, 42,48; -da Igreja, 88,316s.; -e ira de Deus, 48,51; - e justiça (v. Justiça e lei); - e morte, 40.51. 173; -como palavra de destruição,

171: . . ., -e pecado, 40-2, 48s., 51, 173s.,

198,368s. Leigos, 28s.. 185-9, 234, 275, 309s.,

312. Liberdade, 149, 183.

Mandamentos (v. também Decálogo) -de Deus, 73, 150s., 156, 179s.,

235-9, 304, 306, 321, 345,363, 365s.;

-dos seres humanos, 235,304. Maniquelsmolmaniqueus, 15, 336,

379s.. 401 n. 4. ~ártires; 79s., 162, 170, 290,292. Marfio, 85, 162. Medo

- e amor (v. Amor expulsa o me- do);

-do inferno, 95, 107s., 431; -do juízo, 95,107s.; -dos moribundos, 24,94-6; -da morte, 68, 94-8, 100-3, 117,

385,387s. 431; -como punição do purgatório,

24, 100-4. MBritos (v. também Cristo, mBritos

de e santos, mBntos de) -de Cristo e dos santos não sáo o

tesouro das indulgências, 27. 160-71, 204, 208-10, 219s., 225s., 264, 375s.;

-de Cristo são o tesouro da Igreja, 163,220,264,375;

- distribniçáo de, 172; -faltam nas indulgências, 34,

114,149,151,156; -não asseguram a salvação, 422; -no purgatório, 24, 105-7, 264,

374s. Missa

-abusos da, 251,433,436-8; -beneíícios da, 251, 253, 256,

433,436;

464

-pelos mortos, 28s., 137, 186; - e proclamação do Evangelho,

158s.; - sacriflcio da. 425.427.

Morte -atitudes frente à. 100s.: -e Batismo (v. ~a.tismo e morte); -imagem da, 385, 388, 390, 392,

394,398; -e lei (v. Lei e morte); -libertação das penas atravé.s da,

84s.. 91-4; -e libertação do pecado, 414-24; -medo da (v. Medo da morte); -como necessidade extrema, 87; -preparação para a, 385-98; - e Santa Ceia, 438-40; -submissão à, 264,371, 374; -vitória sobre a, 390-2.398.

Mortificação, 23, 65s.. 169, 243s., 356,414,417,421-3.

Mundo, 431-3.

Natureza, 435; -e graça (v. Graça e natureza); -do ser humano (v. m b é m Ser

humano. natureza casnal do).

Obras -abuso das, 50,354,407s.; -de arnor, 25s., 32s., 150-2; -boas, 66, 163, 235, 243, 264,

356-68, 404, 408s., 418s., 422, 440-2

-dos c~entesljustos, 43s., 52s., 21 1,359;

-de Deus (v. Deus. obras de): , . -e fB (v. FB e obras); -e graça (v. Graça e obras); - e indulgências (v. Indulgências e

obras); -&i lei. 352; -de irada adianta111 para ;i justifi-

cação, 52,174,372,404s.; -de satisfação, 31s.. 229,254; -do ser humano (v. também Ação

humana), 41,43s., 243; -uso correto das, 404.

Opere operati, non opere operantis, 251. ~ ~

Opus operantis/operah.tm 427,437s. Oracão (v. m b l m Intercessão). 26.

f54, 250, 253, 355s., 362-4i.366; 397,422,440, 442; -oelas almas. 110. 119-21.

127-33; - fB no atendimento da. 397; -pelos fracos, 69; -de ManassBs, 239s.; -como parte da satisfação, 31s..

64-6.

Pais, honra devida aos, 237. Pais da Igreja, 56, 62, 205,207,297,

335s., 343,383. Palavra de Deus (v. rambém Escntu-

ra), 283,438; - contaminação da, 179,310,315: . ~ . -dignidade da, 158; - e fé (v. FB e palavra de Deus); - induleências são referidas 8.

26s.,?58; - ministerio da, 313; - e o papa (v. Papa e palavra dç

Deus); -e sacramento (v. Sacramento c

Paiavra). Pãlio, 298,300,341,370,382. Páo, no sacramento, 430s. Papa

-e o amor a Cristo, 281-4; - autoridade/poder/jurisdição do,

68-72, 78s., 83, 131s., 167, 172, 184, 190, 201, 204, 219, 258-60, 272, 283-5. 289-98, 378;

-e autoridades seculares, 305-14, 328;

-como bispo universal, 21 X. 323s., 341s.;

-brasão do, 28, 183; - e concílios, 201, 204, 207, 221.

228, 350s.. 383; - dcçrclos do (v. I>ccrçli~is 1 , ~ s -

40s

Page 234: Martinho Lutero - V.1 obras selecionadas de lutero,  os primordios, escritos de 1517 a 1519

pais>; -e a fd de Pedro, 258,269,279s.,

284,289; -(m)falib'iüdade do, 154, 221,

228,260, 285; -intercessão do (v. Intercessão do

papa); -e a lei de Deus, 228s.; -obediência ao, 176-8, 202s.,

228s., 231,290, 340; -e a palavra de Deus (v. tambkm

Escritura e autoridade papal), 208,281,284, 301,303, 305;

-poder sobre o purgatório, 24, 118-32, 186,229;

-primado do (v. Primado do pa- pa)

-remissão de culpa, penas e pe- cados pelo, 23-5, 27, OS., 73s., 110-116, 120-32, 144-8, 264, 377:

Paz (v. também Consciencia, paz de), 29, 189s.; - atravds da f6,76-80,146-410; - ante a morte, 390.

Pecado(s), 244.263s.. 352s.. 368; - na'boa obra, 2&, 356-67,410,

419s.; - conf~são dos (v. também Con-

fusão), 42,233-40,387,393; -imagem do, 385, 388-90, 392,

394,398; -dos justos, 43, 354-6, 361-5,

367; - e lei (v. Lei e pecado); -libertacão do (v. tambkm Re-

missa; dos Pecados), 254, 390-2,398,414-24;

-mortal. 28 n. 27.43-6.93. 182. 234s., 555, 362, i67,387,410; '

-morte do. 415-7.421s.; - Mio do, 369; '

-original, 239,243,356,360; - pregação do, 48; - c presunção, 47s.; - piinição do, 32; - riçi~iiliççiincnto do. 42.48. 75s.. , . . .

246,252-4; rçinmisçç após Batisiiio, 263, 150, :IhOs., 363, 367;

- i i~ i i i ss~o ilos (v. Rctiiiss5o dos

- íribulação causada pelos, 430-3; -venial, 28 n. 27, 44, 46, 93,

162s.. 182, 235. 263, 355s..

Pena(s) -amor às, 25,104, 148s., 170s.; - canônicas, impostas pela Igreja,

23. 25. 31-3. 70s.. 86-94. 11Ó-6; .

-es@ies de, 32s., 68-71, 80; -evangélica, 68s., 264,369s.; - como ídolo, 152; -imaginária, 32, 71; -impostas por Deus, 32s., 69s.,

114,169,170s., 264, -do inferno, 96- 100; -do purgatório, 23-5, 32, 87-90,

94,96-103, 109s., 264; -remissão das (v. Remissão das

nenas): A ..

-superadas pelo amor, 101, 104s., 110;

-tomadas prejudiciais pelo medo, loos., 104.

-conceito de, 21-3, 57s., 63-8, 72s., 263s., 339, 368s., 402s., 410;

-evangélica, 65; -necessidade de, 354-6; -Sacramento da, 21-3, 31s.,

63-7,90s., 211,401-12,421. Perdão (v. Remissão da Culpa, Re-

missão das penas e Remissão dos pecados).

Pereerinacão. 149s.. 170,404,422. . . Pessoa

-privada 247s.; - ofiblica 247.

~latoksmo, 202 n. 13. Pobres, 26, 33, 54, 150, 152, 196,

247-9,433,440; - wmo tesouro da Igreja, 27,171.

Predestinação, 16s., 386, 389, 391, 194. .. ..

Primado do papalda Igreja Romana, 265, 269-332, 340-3, 350s., 381- 4; -argumentos da razso c da histó-

ria. 315-18.326-32:

340; 342,'350s.; 382s.; - fundamentação bíblica. 272-84,

298, 320,324-6; -fundamentação dos cânones e

dos decretos navais. 284-315: ~ ~ . A . - posição dos pais da Igreja, 318-

24.340.384. . . Próximo

-amor ao (v. Amor ao próximo); -mandamentos relativos ao. 287-

9. Purgatório, 99s., 103, 105-7, 264,

339,371,374s.; -amor no (v. Amor no purgató-

rio); -autoridade do papa sobre as al-

mas no, 24,118-32,134; -crescimento em amor no, 24,

100-7; -existência do, 96, 105-7; - libertação das almas no, 24s.,

28s., 34, 133, 135, 186; - mdrito no, 24, 105-7; -penas do (v. Penas do purgató-

rio).

Razão, 63,205,264,338,374. Redencão (v. Salvação). ~eltquim

-de Cristo, 169s.; -dos santos. 170.

Remissão da &Ip& 21, 23, 25, 68, 73-82. 143. 169. 178. 182, 187, 229,264,403-12; 417.'

Remissão dos pecados (v. também Pecado, libertação do) 73-82, 213, 363, 367; - e Batismo (v. Batismo e remis-

são dos pecados); -certeza da, 76s.; -no c&, 75; -por CristolDeus, 33, 64, 144,

404, - <lçclarnçáo pbhlica da, 23, 25,

, . -na terra, 75.

Remissão das penas (v. também In- dulgências), 78s., 86s., 110-7, 135, 141-3,172,264,377,403.

Renascimento -e Batismo. 414-24.

Ressurreição (v. rambkm Cristo, ressurreição de), 416-24.

Sabedoria (v., tambkm Cmz, sahedo- na da), 174, 251.

Sacerdócio -antigo e novo, 81s., 299s.; -de Cristo náo transferido a Pe-

dro e ao papa, 217. Sacerdote(s) (v. tambérn Clero), 118-

20,307s., 313,323; -ódio aos, 185s.; -ordenação do, 322s.; -poder das chaves do, 24, 69s.,

76,79, 146s., 264, 369s.; -remissão da culpa atravds do,

75s., 146s. Sacramento(s), 386;

-conceito de, 401s.; -dignidade humana para o(s),

394s., 432s.; -e fd (v. F6 e sacramentos); -honra devida aos, 387s.; -como meios da graça, 77, 400,

426; -como obra de Deus, 393, 397,

413; -e Palavra, 213,393-5,405,410,

413; -e promessa de Deus, 386, 395.

403; -como sinais, 192s., 405,439; -como sinais de f6, esperaiiqi c

amor. 192s.: -como sinais da graça, 140,

393s.. 396,398,407,438; . . -como sinais do prop6sito de

Deus, 393; -virtudes dos. 387s.

Sacramento do Aitar (v. Santa Ciki). Salvação, 239;

- c Batismo (v. I3;itisrrio i s;ilv;i- ç"111);

- cirio~;i d;i. 107- 10, 170 . 157.

Page 235: Martinho Lutero - V.1 obras selecionadas de lutero,  os primordios, escritos de 1517 a 1519

264,374; - exwmunhão a serviço da, 194s.; -pela f6,402; -imagem da, 398; -pelas obras, 402; - e Santa Ceia, 426,439.

Santa Ceia, 387, 393. 395s., 401, 425-44; -abusos da, 437s.; - e amor (v. Amor e Santa Ceia); -comunhão na, 427,429-43; -sob as duas esp&cies, 425-9,

443s.; -exclusão da (v. Excomunhão); -partes da, 428; - presença de Cristo na, 425-7,

435; -promete e concede pessoa e

obra de Cristo e dos santos, 435;

- e salvação (v. Salvação e Santa Ceia);

- sienificado da. 426. 428-35, 4y8-40,443;

-sinal da, 426, 429-32, 434s., 439;

- e vida eterna, 439s. Santificacão (v. Renascimento e Ba-

tismo; Santos, 429;

-blasfêmia contra os. 236,440-2: -comunhão dos, 386; 393; 395s.;' -exemplo dos, 422; - invocação dos, 236,397; - m6ritos dos, 27, 160-3, 207-9,

264; -morte dos, 387,390; -penas sofridas pelos, 162; - veneração dos, 150,440s.

Satisfação, 21,25, 31-3, 64-6, 71-3, 78, 89s., 115,402-4,407,410s.; - confiança erranea na, 254,420,

422; -no purgatório, 264.371.

Seguimento de Cristo, 29, 169, 189s. Ser humano

- ação do (v. Ação humana); -amor do (v. Amor humano); -como espírito, 361; -inclinado ao mal Dor natureza.

15s.; -justiça do (v. Justiça do ser hu-

mano); -natureza carnal/pecaminosa do,

42,235,361,415-23,433; -obras do (v. Obras do ser huma-

no). Simonia, 151, 179, 183,298. Simul iushu etpeccafor. 414. Soberba, 44-8, 93, 236, 245s., 255,

307,420. Sodallcios (v. Irmandades). Sofistas, 81,214,262,264,318,349,

368,372-4,377. Sofrimento

- do(s) cristão(s), 50, 52, 67, 255, 414,418,420-4,432s.;

-de Cristo (v. Cristo, sofninento de);

-como verdadeira relíquia, 169s. Superstição, 235s., 250s.

Teologia - e Aristóteles, 13s., 17s.. 36,

39s.. 53. 61 n. 17. 167. 250 n. 9: -da &r; 36,49-52,56, 169-71;

249,260,386; - escolástica (v. ramb6m Escolás-

tica), 13s., 15-20, 167, 169, 178, 179 n. 357,215,224 n. 73 e 77, 225 n. 79,249,337s., 343, 345,360,362;

-da glória. 36.50. 170s.

Tesouro -da Igreja, 21, 27, 127-9,

159-174,209,220; -de induleências não 6 o minto

de ~ r i s t g e dos santos, 27,160- 71,204.208-10.219s.. 264. . .

Tomisrnoltomistas, 215, 230, 337, 342s., 367,402 n. 9.

Transubstanciação, 425,427. Tnbulaçáo, 29, 190, 255, 392s., 398,

404.407.409.431. ~rindade, 18. Turcos, 70, 170, 178s., 271, 281,

283,315.

Último dia, 414,416-20. União

-com os crisláos. 429-40:

-com Cristo (e os santos) na -Cristo como, 390; Santa Ceia (v. tamb6m Cristo, -eterna, 416,422, 426,430s.; união com). 429-40. - imaeem da. 398. . .

Unidade vingança, 247s' 255. -dos crentes, 427,429,440; Virtude, 17,353. -na Igreja, 271s., 304s. Vontade (v. também Arbllriii c l )I.II!<.

vontade de), 338,345.W; -cativeiro da, 15, 38, 40s.. 0'); . . ~

Vddenses, 259. - m i natureza da, 15, 19s.. 43. Verdade (v. tambkm Deus, verdade - u k 6 livre fora &i jir;i<:i. I i.

de), 7-02, 214-7, 231, 333-6, 342, voto($, 236,382; 345,348s.. 352,408. -do Batismo, 414,423;

Vida -dos cl6rigos, 423.