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MARIVALDA GUIMARÃES SOUSA
O RIO CACHOEIRA AQUÉM DE SUA POESIA: imaginário das águas e
sustentabilidade ambiental através do turismo litorâneo de Ilhéus -BA
ILHÉUS – BAHIA
2005
MARIVALDA GUIMARÃES SOUSA
O RIO CACHOEIRA AQUÉM DE SUA POESIA: imaginário das águas e
sustentabilidade ambiental através do turismo litorâneo de Ilhéus -BA
Dissertação apresentada, para obtenção do título de Mestre em Cultura & Turismo, à Universidade Estadual de Santa Cruz e Universidade Federal da Bahia. Área de Concentração: Memória, Identidade e Expressões culturais Orientadora: Profa Dra Maria de Lourdes Netto Simões
ILHÉUS – BAHIA 2005
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MARIVALDA GUIMARÃES SOUSA
O RIO CACHOEIRA AQUÉM DE SUA POESIA: imaginário das águas e
sustentabilidade ambiental através do turismo litorâneo de Ilhéus -BA
Dissertação apresentada, para obtenção do título de Mestre em Cultura & Turismo, à Universidade Estadual de Santa Cruz e Universidade Federal da Bahia. Área de Concentração: Memória, Identidade e Expressões culturais Orientadora: Profa Dra Maria de Lourdes Netto Simões
Ilhéus-BA,
_____________________________________________ Maria de Lourdes Netto Simões – Profa Dra.
UESC/DLTA (Orientadora)
_____________________________________________
Milton Araújo Moura – Prof. Dr. UFBA-BA
_____________________________________________ Ada de Freiras Maneti Dencker - Profa Dra.
USP- SP
DEDICATÓRIA
Para os meus familiares,
Especialmente minha mãe Isabel, meu exemplo maior a ser seguido,
Para Célio, presença firme e amorosa de todos os momentos,
Para nossas filhas Maíra e Isabel Luci, duplicações de um amor integral,
Para o meu sobrinho e afilhado Afonso Augusto,
E para a minha querida mana, Marlúcia, apoio enérgico nos corriqueiros momentos de “malemolência”.
In memorian
Para minha inesquecível Vó Orminda, amorosíssima presença de uma infância que ainda não se consumiu,
Para meu querido tio Vivaldo que tantas vezes me levou para nadar em outro cachoeira,
Para o meu querido e saudoso painho Manoel,
Para Cyro, Telmo e Val, poetas do rio,
Ao Rio Cachoeira, na pessoa de suas de populações ribeirinhas,
dedico.
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AGRADECIMENTOS
À Universidade Estadual de Santa Cruz, à Universidade Federal da Bahia, à CAPES e ao Departamento de Mestrado em Cultura & Turismo, pela oportunidade de realização do curso.
À Profa. Dra Maria de Lourdes Netto Simões (adorável Tica), pela orientação, amizade e apoio indispensáveis para uma caminhada acadêmica segura e, sobretudo, de vida.
A todos os professores do mestrado, em especial ao Prof. Dr. Dr. Helio Estrela Barroco e à Profa Dra Sandra Maria Pereira do Sacramento, pelo apoio e dedicação.
Às amigas Aline, Gisane e Silmara pela amizade sincera, companheirismo e apoio: indispensáveis.
A todos os amigos e colegas do mestrado, Moabe Breno, Letícia (Lelê), as Cíntias, o divertidíssimo Adailson Henrique, Nina, Ailson, Adriana, Ana Paula, Mailane, Renata e Anninha Grammont e Leonardo, cada um em sua especificidade de ser cada um: inesquecíveis.
À secretária Graça Argolo, pela eficiência e cordialidade e a todos os funcionários do mestrado pela presteza e zelo.
Ao Núcleo de Bacias Hidrográficas da UESC, na pessoa de seu coordenador, Prof. Dr. Neylor Calasans, pelas fotografias gentilmente cedidas e que compõem este trabalho, nossos agradecimentos.
Aos pescadores e contadores de ‘causos’ da comunidade ribeirinha do Banco da Vitória, especialmente Seu Ozias, Tum, Pepeu, Pedro Silva, Miraldo, Nado e D. Enedina, pelos depoimentos que direcionaram a pesquisa. A todos vocês meus sinceros agradecimentos.
A toda minha família, em especial, Célio, companheiro prestimoso e incansável, que na cumplicidade dos pequenos atos do cotidiano é o apoio desta travessia, e de tantas outras,
Ao meu cãozinho Freddie, fiel companheiro das madrugadas dissertativas.
A todos que de alguma forma contribuíram para a realização deste trabalho, meus sinceros agradecimentos.
RIO CACHOEIRA
Cada cidade ou região tem o seu rio, com sua gente, águas, bichos e lendas. Escorrendo sentimentos líquidos, cada pessoa carrega no
coração o rio de sua cidade. Cachoeira é como se chama o rio que atravessa a minha cidade. Já
teve lavadeiras e areeiros, quando ainda não existia a represa próxima à Ponte Velha. Baronesas não ficavam entulhadas entre as pedras pretas, espalhadas em vários trechos do rio. Bocas de vômito
não despejavam detritos nas águas claras. Lavadeiras estendiam roupas que coloriam as inúmeras pedras. Cores e cantos davam um
belo visual ao velho rio. Cyro de Mattos
Rio
Que rio é esse sem brilhinhos na correnteza ?
Que rio é esse sem corredeiras, pitus e lavadeiras?
Esse não é o rio da minha aldeia Esse é o que restou do rio da minha aldeia.
Tica Simões
Um rio. Um outro rio...
No tempo E no espaço Alterações...
Mari Guimarães
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O RIO CACHOEIRA AQUÉM DE SUA POESIA: imaginário das águas e sustentabilidade ambiental através do turismo litorâneo de Ilhéus -BA
Autora: Marivalda Guimarães Sousa Orientadora: Maria de Lourdes Netto Simões
RESUMO
Fonte de subsistência e de criação literária, o Rio Cachoeira, valioso patrimônio natural da Região Sul-baiana, é tomado como tema deste estudo pela importância socioambiental e cultural, bem como pelo potencial para o turismo que apresenta, especialmente, na comunidade ribeirinha do Banco da Vitória, localizada no km 8 da Br-415, no eixo da rodovia Ilhéus/Itabuna. A exuberante beleza paisagística e a riqueza cultural ali presentes possibilitaram o estudo de seu imaginário, ficcionalizado nos causos assombrosos contados pelos pescadores locais. O estudo constata o estado de degradação do rio Cachoeira, decorrente da intensa poluição de suas águas; evidencia o seu valor histórico (Rio-caminho); e ressalta o seu potencial cultural para o turismo local, através da Literatura Oral (Rio-recre(i)ção). O texto dissertativo também apresenta reflexões ecológicas sobre a transformação do outrora rio-provedor, fonte de sustentação ambiental, no agora rio-grande-lixeira em que se tornou, devido aos maus tratos que o rio vem recebendo ao longo de toda a bacia. Conclui que tal fato interfere, sobremaneira, na sustentabilidade turística litorânea de Ilhéus, devido ao lançamento de esgotos sem tratamento diretamente no estuário de Coroa Grande, espalhando-se em seguida pelas praias ilheenses. Com base nessas análises, o estudo afirma que o meio ambiente (natural e cultural) preservado se constitui na principal matéria-prima de uma destinação turística, e sugere um roteiro turístico baseado no potencial do Rio Cachoeira.
THE CACHOEIRA RIVER AQUÉM DE SUA POESIA: The water imaginary and sustentabilidade ambiental através do turismo litorâneo de Ilhéus -BA
Autora: Marivalda Guimarães Sousa Orientadora: Maria de Lourdes Netto Simões
ABSTRACT
Fountain of subsistence and literary creation, the Cachoeira river, valuable natural patrimony from southern region of Bahia, is the theme is this study due the cultural and environmental importance, and for touristic potential that presents, specially, at Banco da Vitoria community, localized 8 km from Ilhéus to Itabuna. The exuberant paisagistic beauty and the cultural wealth presents there, allowed the imaginary study fictionalized in dreadfull tales related by local fishermen. The study presents the degradation level of Cachoeira river, caused by pollution show the historic value (“Rio-caminho”); and the cultural potential. Through oral literature (“Rio-recre(i)ação”). The dissertate text presets too ecological reflections about the “Rio-provedor” transformation, environmental sustentation fountain, in the actual “Rio-grande-lixeira” that was transformed, due the bad treatments that the river is receiving along the basin. It´s concluded that such fact influence, mainly, in the touristics sustentability of Ilheus, due the untreated sewerage throwing direct in he “Coroa Grande” estuary affecting the beaches of Ilhéus. Based in this analyses the study report that the protected environment (natural and cultural) constitute the main row material of a touristics destination, and suggest a tourists route based in the Cachoeira river potential.
19
LISTA DE FIGURAS
Figura 01: Costa marítima de Ilhéus - foz do rio Cachoeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
14
Figura 02: Drenagem exorréica do Rio Cachoeira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72 Figura 03: Vista panorâmica de Ilhéus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. 73
Figura 04: Vista panorâmica de Ilhéus – Foz do Rio Cachoeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
74
Figura 05: Áreas de manguezais – Coroa Grande . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
75
Figura 06: Canoagem Rumo ao Mato Virgem - MARAMATA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
75
Figura 07: Vista aérea do Porto de Ilhéus - Coroa Grande. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
Figura 08: Córrego poluído que deságua diretamente nas praias ilheenses . . . . . . . .. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
77
Figura 09: Esgoto sem tratamento desaguando na Praia do Marciano, Ilhéus-BA . . . . . . . 77
Figura 10: Invasão dos manguezais - Ilhéus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
79 Figura 11: Moradores da Rua do mosquito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
79 Figura 12: Mapa Hidrológico- Município de Ilhéus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
82
Figura 13: Mapa municípios que integram a Bacia Hidrográfica do Rio Cachoeira. . . . . . . . . . .
83
Figura 14: Baronesas - Eichhornia crassipes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
84
Figura 15: Ponte Miguel Calmon sobre o rio Cachoeira – Itabuna/BA. . . . . . . . . . . . . . . . 85
Figura 16: Multiplicação desordenada de macrófitas aquáticas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
Figura 17: Mortandade de peixes do rio Cachoeira, zona urbana de Itabuna . . . . . . . . . . . .
86
Figura 18: Barragem Rio Cachoeira – Itabuna /BA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
Figura 19: Praia do Malhado, encobertas por baronesas – Ilhéus BA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
87
Figura 20: Praia do Malhado- Ilhéus BA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
87
Figura 21 :Lavadeiras do Salobrinho – Ilhéus/BA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
Figura 22: Lavadeiras do Banco da Vitória - Ilhéus/BA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
88
Figura 23: Vista parcial da cidade de Itabuna. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
89
Figura 24: Esgoto sobre o rio Cachoeira – Itabuna/BA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................
89
Figura 25: Grande enchente de 1967- Itabuna/BA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
Figura 26: Grande enchente de 2002 – Itabuna/BA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
90
Figura 27: Fazenda Monte Alto- Ilhéus/Itabuna, km 9 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
91
Figura 28: Fazenda Monte Alto – rio cheio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Figura 29: Rio Cachoeira - rodovia Ilhéus/Itabuna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
92
Figura 30: Rodovia Ilhéus/Itabuna – km 8 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
107
Figura 31: Rio Cachoeira –Banco da Vitória- km 8 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
Figura 32: Porto fluvial – Banco da Vitória – km 8 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
108
SUMÁRIO Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VII
Abstract . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VIII
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .
11
2. REVISANDO CONCEITOS em favor de um turismo cultural . . . . . . . . . . . . .
25
2.1. Relacionando cultura e turismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . .
. . . ..
26
2.2. Re-visitando a história: colonização portuguesa e subordinação cultural 47
2.3. Rio-Caminho:mais um foco da história . . .. . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . 52
3. DE RIO-PROVEDOR A RIO-GRANDE-LIXEIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
64
3.1. Degradação e poluição dos rios: uma realidade global que se reproduz localmente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
65
3.2. O rio Cachoeira e as suas implicações socioambientais: aspectos das comunidades ribeirinhas do Banco da Vitória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
82
4. RIO-RECRE(I)AÇÃO – potencialidades culturais do Rio Cachoeira através da Literatura Oral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
4.1. Potencialidades culturais: a literatura oral e o imaginário do Rio Cachoeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
105
4.2. Questões terminológicas da Literatura oral no contexto da contemporaneidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
111
4.3. O fictício e o imaginário: tessitura e constituição nas narrativas orais dos ribeirinhos do Banco da Vitória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .. . . .
4.4. Rio Cachoeira: um possível roteiro turístico-cultural . . . . . . . . . . . . . . . .
115
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS E SUGESTÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140
6. REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
146
7. APÊNDICE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154
104
135
21
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Bahia possui uma área litorânea de mais de mil quilômetros de extensão. O impacto
dessa informação suscita a imagem de um magnífico postal turístico. Tal magnitude se revela
por meio de centenas de quilômetros de praias extremamente belas e diversificadas, além da
grande variedade e riqueza dos seus ecossistemas.
Nesse aspecto, o litoral sul do Estado se destaca em virtude da sua localização
geográfica, situada em uma zona tropical, onde o sol brilha o ano todo, o que contribui
efetivamente para uma temperatura bastante agradável das suas águas marítimas e fluviais.
Inserido nesse espaço marcadamente aquático, o município de Ilhéus se destaca em
virtude de seu patrimônio natural cujo espaço é composto pela Mata Atlântica remanescente,
inúmeras praias de areias claras, densos coqueirais, grandes áreas de manguezais, rios,
cachoeiras, lagoas, enseadas, encostas, ilhas (inclusive fluviais) e APAS (Áreas de
Preservação Ambiental - Itacaré/Serra Grande e Lagoa Encantada). Assim sendo, oferece
grande vocação turística por uma série de características favoráveis, destacando-se também o
modus vivendi de sua população, pela singularidade de seus costumes, crenças e tradições.
Ilhéus faz-se notar também pela sua história (sede da Capitania de São Jorge dos Ilhéus, no
século XVI; centro irradiador da cultura do cacau, no século XIX), bem como pelas
manifestações culturais, com ênfase em sua literatura, que é reconhecida nacional e
internacionalmente, através de seu maior representante: Jorge Amado.
Em relação às vias de acesso, Ilhéus é considerada como o portão de entrada para a
Costa do Cacau. Localizada a 465 km de Salvador, capital do Estado, contando com o Porto
Internacional do Malhado, com o aeroporto Jorge Amado e uma malha rodoviária de acesso a
diversos municípios. Localizada em um espaço geograficamente privilegiado, a cidade é
cercada pelas águas e pela Mata Atlântica. O centro da cidade fica situado em uma ilha que é
formada pela foz dos rios Almada, Cachoeira e Fundão, formando um complexo estuário
conhecido como Coroa Grande.
De valor ecológico inquestionável, o estuário de Coroa Grande é responsável pelo
equilíbrio e manutenção dos recursos marinhos naquela localidade, pois são áreas de
reprodução, alimentação e refúgio para muitas espécies de peixes, crustáceos e moluscos,
devido à presença de uma extensa área de manguezais, matas ciliares e de restingas em seu
entorno. Também no âmbito socioeconômico, o estuário de Coroa Grande é de suma
importância para um grande número de pessoas que dependem da pesca, da comercialização
de crustáceos e do turismo como fonte de renda.
No prolongamento de Coroa Grande, fica a Baía do Pontal, com uma paisagem de
grande beleza cênica. O encontro das águas do mar com a foz dos três rios forma um amplo
espelho d’água que banha o bairro de Pontal e o Centro Histórico, onde ficam os principais
monumentos da cidade, inclusive o antigo Porto de Ilhéus, responsável pela exportação de
cacau até os anos 50.
Naquele local, onde outrora funcionou a zona comercial de Ilhéus, estão instalados
diversos bares e restaurantes, formando um lugar bastante aprazível. Além disso, a Baía do
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Pontal constitui-se em excelente área de lazer, pois apresenta grande potencialidade para a
prática de vários esportes náuticos como esqui, windsurfe, jet-ski, caiaque, regatas à vela ou a
remo, “banana boat” e ainda passeios de barco ou em chalanas, etc. Anualmente acontece no
local uma das etapas de natação do Pan-americano de Triathlon, um evento que gera grande
circulação de turistas na cidade.
Não obstante, toda esse potencialidade natural para o turismo, a qualidade das águas
do estuário de Coroa Grande e, por conseguinte, da Baía do Pontal encontra-se comprometida
com a intensa poluição, proveniente do excesso de esgotos in natura e efluentes domésticos
ali depositados. Trazidos pelos rios que deságuam diretamente no estuário, tais detritos
espalham-se, em seguida, pelas praias ilheenses, tornando-as inadequadas para o uso humano.
Além disso, a ineficiência de saneamento básico no local é uma realidade facilmente
observável, devido à presença de diversas redes de esgotos sem tratamento.
O problema da poluição aquática da Baía do Pontal e, por conseguinte, das praias
ilheenses, constitui-se apenas a ponta do iceberg que nesse estudo visamos abordar: O rio
Cachoeira aquém de sua poesia: imaginário das águas e sustentabilidade ambiental
através do turismo litorâneo de Ilhéus – BA, pois o rio Cachoeira, antes mesmo de ser um
elemento inspirador dos poetas grapiúnas, constitui-se em uma unidade socioambiental de
grande valor ecológico para toda a Região Sul-baiana. Desse modo, o estudo do imaginário
das águas é abordado em duas vertentes principais: do ponto de vista ecológico que trata das
condições atuais de poluição e degradação do rio, relacionando-se questões de
sustentabilidade ambiental e socioeconômica, visando o turismo local (capítulo II); e, do
ponto de vista literário, que aborda o fazer literário das populações ribeirinhas do Banco da
Vitória, concernentes aos causos narrados oralmente pelos pescadores daquela localidade
(capítulo III). Nessa perspectiva, entendemos que os estudos turísticos podem contribuir para uma
investigação de problemas relacionados ao setor, podendo tornar-se um grande aliado para a
preservação do meio natural e cultural de uma destinação turística, podendo, inclusive, alertar ou
sugerir possíveis soluções nas tomadas de decisões daquilo que precisa ser potencializado ou
reconfigurado no município de Ilhéus, a fim de garantir a sustentabilidade do segmento.
Embora haja indícios consistentes de que os três rios que compõem o estuário de
Coroa Grande estejam poluídos, trataremos especificamente do Rio Cachoeira, no trecho
compreendido entre o km 8 da rodovia BA 415 (Banco da Vitória) até a Baía do Pontal, em
Ilhéus, local de maior apelo turístico em virtude da paisagem formada pelo rio e pela Mata
Atlântica (Fig. 01).
No caso específico do rio Cachoeira, a poluição e degradação vêm se espalhando ao
longo de toda a bacia que abrange também os rios Salgado e Colônia, percorrendo uma área
Banco da Vitória
Baía do Pontal
Rio Fundão
Aeroporto Jorge Amado
Estuário Coroa Grande (lixeira)
Rio do Engenho
Rio Almada Rio Cachoeira
Figura 01: Costa marítima de Ilhéus - foz do rio Cachoeira –referências acrescentadas pela autora. Fonte http://www.cdbrasil.cnpm.embrapa.br/ba
25
de drenagem aproximada de 4.600 km, até chegar ao seu destino final, a Baía do Pontal. A
crescente degradação é provocada pela falta e pela deficiência de saneamento básico, pelos
dejetos orgânicos e inorgânicos e pela grande quantidade de lixo jogado em suas margens. Em
muitos locais desse percurso, é possível observar que a rede fluvial é utilizada para o
lançamento de esgotos, sem qualquer tratamento, sobretudo nos municípios de Itabuna e de
Ilhéus, os quais possuem maior contingente populacional.
No âmbito socioeconômico, não há dúvida de que a crise da lavoura cacaueira tenha
acelerado o ritmo de degradação do rio Cachoeira. A relação que se estabelece, nesse sentido,
é que o desemprego de milhares de trabalhadores rurais provocou a migração de enorme
parcela dessas pessoas sem renda e sem qualificação para outros serviços que, por um esforço
de sobrevivência, passaram a ocupar grandes áreas de manguezais e terrenos muito próximos
ao rio Cachoeira, aumentando, sistematicamente, o volume de lixo e efluentes domésticos ali
depositados.
A constatação dessa realidade indica o nível de complexidade do problema que, em tal
conjuntura, requer esforços urgentes e determinação por parte de toda a sociedade envolvida, ainda que
o problema de poluição dos rios, decorrente das irrefletidas ações humanas, não se restrinja unicamente
à Região Sul-baiana, uma vez que esse comportamento vem se repetindo em nível mundial. É
importante observar que as dificuldades ambientais e socioeconômicas que advêm do elevado nível de
poluição e degradação do rio Cachoeira comprometem o potencial turístico da região, sobretudo de
Ilhéus, que apresenta o seu ambiente litorâneo como atração principal.
Considerando-se o potencial natural e cultural da área de entorno do rio e evidenciada
a sua importância para o desenvolvimento social da região, mas ao mesmo tempo constatando
o seu estado de degradação, o presente estudo se baseia na premissa de que o meio ambiente
(natural e cultural) preservado se constitui na principal matéria–prima do turismo. Tal
reflexão se propõe a afirmar que a ausência e/ou a deficiência de estratégias que garantam a
prevenção de qualquer tipo de degradação, ou atitudes de destruição, ou ainda de descaso com
o meio ambiente, geram impactos que inviabilizam a sustentabilidade ambiental,
comprometendo todo e qualquer projeto cultural e turístico. Assim sendo, parece imperativo
que a harmonia, o equilíbrio e os cuidados físicos e socioculturais das regiões receptoras
formam a base para que a atividade turística possa ser efetuada de forma sustentável.
A paisagem composta pelo rio Cachoeira e pela Mata Atlântica em seu entorno, no
trecho da BA 415 (Fig. 01), constitui-se em um cenário de grande apelo visual. A
originalidade do roteiro fica também por conta do valor cultural, engendrado pela presença
das fazendas de cacau, facilmente observáveis da rodovia, bem como pela riqueza cultural das
comunidades ribeirinhas instaladas entre o rio e a rodovia. Além disso, um fator importante
que agregaria valor à atividade turística naquela área é a riqueza do imaginário dessas
comunidades que se manifestam através de expressões da Literatura Oral. Portanto, um
roteiro que pode ser explorado turisticamente tanto através da rodovia, como através do rio
em seu trecho mais navegável, no sentido Itabuna/Ilhéus e vice-versa.
A observação empírica da beleza paisagística do rio Cachoeira no referido trecho, bem
como o seu estado de degradação atual, motivou e justificou o recorte da área delimitada por
esta pesquisa. Tais constatações, visivelmente comprováveis, fundamentaram a formulação da
hipótese de que o meio ambiente natural e o cultural relacionado ao Rio Cachoeira, se
devidamente revitalizado, é favorecedor de um roteiro turístico cultural diferenciado e
também do turismo litorâneo de Ilhéus. Desse modo, a análise proposta tem como foco de
discussão a sustentabilidade turística do município de Ilhéus, levando-se em consideração a
poluição das águas do rio Cachoeira e, por outro lado, objetiva sugerir sobre a formatação de
um possível roteiro turístico cultural no rio Cachoeira, no trecho da rodovia Ilhéus/Itabuna.
Assim a pesquisa apresenta como objetivo geral: trazer reflexões para o
estabelecimento de estratégias de revitalização do rio Cachoeira, visando a sua
27
sustentabilidade socioambiental, tendo em vista a sua potencialidade turística, com destaque
para o trecho que compõe a rodovia Ilhéus/Itabuna na BA-415. Tendo como objetivos
específicos: a) identificar dados históricos sobre o rio Cachoeira, ressaltando-se a sua
importância enquanto patrimônio histórico regional; b) identificar, recolher e catalogar as
narrativas orais que abordam o imaginário do rio Cachoeira e da mata em seu entorno; e c)
suscitar o turismo cultural nessa região através da divulgação dessas narrativas.
A pesquisa toma como fundamento norteador a sustentabilidade socioambiental, tendo
como base os princípios ecosóficos, uma vez que estes envolvem uma re-articulação ético-
política dos três registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da
subjetividade humana (GUATTARI, 2001), conforme as suas representações sociais, políticas
e histórico-culturais, no sentido de re-orientar o comportamento humano ecologicamente,
tendo em vista que o homem está no epicentro das questões ambientais.
Em se tratando de sustentabilidade turística, a locução aqui empregada envolve
pelos menos três fatores que são considerados indissociáveis: qualidade, continuidade e
equilíbrio (RATTO, 2004). Esses, por sua vez, estão atrelados a outros fatores mais gerais:
ambientais, socioculturais e econômicos. Essa relação, em conjunto, é fundamental quando se
projeta, prioritariamente, assegurar uma melhor qualidade de vida para todos os habitantes de
uma destinação turística, bem como para os seus visitantes. Com efeito, não há mais como se
pensar em atividades turísticas sem associá-las à utilização sustentável da sua principal
matéria-prima, o meio ambiente.
Elemento motivador deste estudo, o turismo é aqui abordado como uma atividade
socioeconômica que envolve “uma combinação complexa de inter-relacionamentos entre
produção e serviços, em cuja composição integra-se uma prática social com base cultural,
com herança histórica, a um meio ambiente diverso, cartografia natural, relações sociais de
hospitalidade, troca de informações interculturais” (MOESCH, 2000, p. 9; grifos nossos). Por
conta dessa demanda, o segmento turístico, de uma forma geral, implica em ações públicas e
privadas, pois exigem grandes investimentos financeiros e tecnológicos, voltados
inicialmente, para atender as necessidades das populações endógenas e, posteriormente, dos
turistas. Nesse sentido, o turismo pode ser abordado como uma atividade que pode
proporcionar resultados que permitam o desenvolvimento socioespacial da sociedade
envolvida (SOUZA,1999), cuja base deve estar indissociavelmente relacionada à questão
ambiental (RUSCHMANN, 1997; BARROS, 2000). Nessa perspectiva, o turismo é
abordado, nesse estudo, como uma prática sociocultural que pode se tornar em um grande
aliado para motivar a preservação do meio natural e cultural de uma destinação
turística.
Tendo em vista a indissocialibidade entre os termos cultura, meio-ambiente e turismo,
pretendida para este trabalho, optamos por uma discussão mais ampla sobre a fundamentação
teórica em capítulo próprio (Revisando conceitos, primeira parte).
Os procedimentos metodológicos da pesquisa foram efetuados em três etapas. Na
primeira etapa, foram realizadas pesquisas bibliográficas sobre turismo, visando observar a
sua inter-relação com os estudos sobre cultura e o meio ambiente, este na perspectiva da
poluição das águas dos rios em um contexto mundial e, em seguida, sobre o caso específico
do rio Cachoeira através das produções acadêmicas da UESC (ASSIS, 2001; GOMES, 2003;
PINHO, 2001) e também através de sites da internet. Na segunda etapa, foram efetuados
estudos sobre História oficial da Região, a fim de efetuarmos um levantamento bibliográfico
sobre a história local com enfoque maior no rio Cachoeira. Devido à escassez de material
sobre o assunto, encontramos muitas dificuldades nesta fase, principalmente por falta de
registros. Na terceira e última etapa, foi efetuado o trabalho de campo propriamente dito, com
29
a finalidade de selecionar qualitativamente as pessoas a serem entrevistadas com o objetivo
prático de atender o nosso objeto de estudo: recolher as impressões sobre as condições atuais
do rio Cachoeira através de representantes da comunidade, bem como, encontrar expressivos
contadores de causos, por se tratar de uma prática muito comum entre os pescadores e demais
grupos sociais que lidam diretamente com o rio, como os areeiros, as lavadeiras, etc. Como o
rio encontra-se muito poluído, as lavadeiras dificilmente foram encontradas. Desse modo,
optamos pelos pescadores, que apesar das condições das águas contaminadas do rio,
sobrevivem ainda da pesca extrativa.
A pesquisa de campo ficou definida em duas vertentes principais: 1) recolha de relatos
sobre as atuais condições do rio e 2) recolha do imaginário dos ribeirinhos, ficcionalizado sob
a forma de Literatura Oral. Para obtenção dos relatos, foi preciso, primeiramente, ganhar a
aquiescência dos moradores daquela comunidade. Para isso, foram efetuadas diversas visitas
de inserção, a fim de estabelecer um clima de confiança e de tranqüilidade entre o pesquisador
e os entrevistados. Superadas as primeiras dificuldades, foram selecionadas pessoas com
idade acima dos cinqüenta anos, que se mostraram interessados em contar as suas
experiências de vida e também os causos vivenciados ou escutados dos mais velhos, quando
jovens. Os critérios para a seleção dos entrevistados foram respaldados pelo objetivo de se
estabelecer um breve paralelo entre as condições atuais e as transformações ocorridas no rio
Cachoeira num espaço de tempo entre dez e vinte anos, além da recolha das narrativas, como
já foi mencionado. Esse procedimento permitiu selecionar 6 pescadores, dentre os quais, uma
senhora de 92 anos, e um areeiro. Os demais entrevistados situados numa faixa etária entre 50
a 60 anos. Conforme mencionamos, não foi possível contactar as lavadeiras, visto que
tivemos dificuldades tanto em relação aos horários, bem como aos locais, por serem mais
isolados e de difícil acesso.
As entrevistas foram efetuadas durantes os meses de maio, junho e julho de 2004,
geralmente nas quintas e sextas feiras, no período da tarde. Levando-se em conta os inúmeros
relatos aqui apresentados, advertimos que as datas de recolha das entrevistas não foram
registradas especificamente para não ficarem repetitivas, bem como pelo fato de que a falta de
registro individual das mesmas não altera qualitativamente o teor dos conteúdos apresentados.
Assim, a metodologia empregada realizou-se de forma exploratória e participante
onde, enquanto pesquisadora, assumimos a postura de mediadora, de intérprete da voz do
contador. No período que antecedeu a recolha das narrativas, as entrevistas foram semi-
estruradas em observância dos dados pessoais dos entrevistados, fator importante para a
interpretação dos relatos em momentos posteriores. Estabelecido um clima de confiança e
tranqüilidade com os entrevistados, as narrativas foram coletadas através de entrevistas
conversacionais (ANDRADE, 1999), de forma semidiretiva, centradas na temática do rio e a
mata em seu entorno. Desse modo, as entrevistas foram tomadas sob a forma de anotações,
algumas vezes foram gravadas, mas como muitos não se mostraram à vontade, as anotações
foram priorizadas.
Com base em todas essas considerações, o estudo sobre a sustentabilidade litorânea de
Ilhéus e o imaginário do Rio Cachoeira, ficou estruturado em 3 capítulos. O primeiro,
REVISANDO CONCEITOS - em favor de um turismo cultural – encontra-se dividido em
três subcapítulos. O primeiro, Relacionando cultura e turismo, tece considerações gerais
sobre o turismo enquanto um fenômeno sociocultural cuja complexidade epistemológica se
apresenta em constante processo de re-elaboração. Faz referência ao largo campo de
investigações acadêmicas que o turismo permite efetuar, em virtude de sua natureza inter,
multi e transdisciplinar (DENCKER, 1998), o que permite o avanço dos estudos turísticos
enquanto um fenômeno cultural. O texto faz uma revisão conceitual do turismo a partir de
31
uma visão cultural e assinala que a diversidade de definições, tipificações e formas de praticar
o turismo estão atreladas às diferentes épocas e áreas do conhecimento, assinalando que as
questões que envolvem a atividade turística têm em seu núcleo de discussões o ser humano.
Acrescenta ainda que as estratégias de sustentabilidade do segmento turístico precisam estar
diretamente subordinadas aos critérios de planejamento que, por sua vez, precisam ser
estabelecidos ecosoficamente (GUATTARI,2001), visando ao, desenvolvimento
socioespacial (SOUZA, 1999) da destinação turística em virtude da indissociabilidade entre
cultura, meio-ambiente e turismo. O segundo e o terceiro, Re-visitando a história:
colonização portuguesa e subordinação cultural e Rio-caminho: mais um foco da
história, respectivamente, faz referência aos procedimentos de expansão marítima européia
que proporcionaram a formação de domínios coloniais que acabou determinando a
subordinação sociocultural, econômica e política de países colonizados, como o Brasil.
Aborda o rio Cachoeira como lugar de passagem (GILROY, 2001) para as primeiras
incursões portuguesas em terras ilheenses no período de implantação das Capitanias
hereditárias e, séculos depois, dos sergipanos e aventureiros, inclusive europeus, no período
de desbravamento e implantação da lavoura cacaueira. Nessa perspectiva o rio Cachoeira é
abordado como o entre-lugar (BHABHA, 1998), o local dos hibridismos culturais
(CANCLINI, 2000), o ponto de entrecruzamento entre os mais variados grupos étnicos aqui
apresentados de uma forma simplificada: índios (que, quando não expulsos, foram
massacrados aos milhares), os negros (aqui trazidos como escravos), e o homem branco de
descendência européia (que não se restringe aos portugueses, etnocentricamente considerado
como o principal elemento civilizador da região). Marcado pelas expedições estrangeiras em
busca de ouro, o rio-caminho testemunhou a escravização e exterminação de diversos grupos
étnicos indígenas, fatos que alteraram para sempre o curso da história local (BARBOSA,
1997; BARROS, 1915; CAMPOS, 1981; FREITAS e PARAÍSO, 2001; SILVEIRA, 2002;
VINHÁES, 2001). O capítulo mostra ainda que o rio Cachoeira teve papel crucial na
formação das vilas e cidades da região ao longo de suas margens, um procedimento que
apesar de comum na história da humanidade, não interfere absolutamente na singularidade e
significância da história local.
O segundo capítulo, DE RIO-PROVEDOR A RIO-GRANDE-LIXEIRA – trata das
implicações socioambientais e econômicas advindas da poluição e degradação do Rio
Cachoeira, devido ao mau uso e o mau gerenciamento dos recursos hídricos, tendo em vista
que as suas águas se tornaram receptoras de detritos domésticos e industriais de toda ordem.
Insere a problemática da escassez de água doce como um comportamento generalizado em
todo o mundo, com grande repercussão em nossa região, apesar de ser considerada abundante
em recursos hídricos (DORST, 1973). Aborda ainda a necessidade iminente de revitalização
do rio Cachoeira em virtude dos inúmeros transtornos causados pelo seu atual estado de
degradação, com ressonâncias no âmbito sociocultural, econômico, político e também
turístico local, mais especificamente do turismo litorâneo de Ilhéus (FIDELMAN, 2004).
Evidencia a importância do rio Cachoeira enquanto uma unidade socioambiental de grande
importância para toda a Região Sul-baiana, sobretudo para as populações ribeirinhas cujo
vínculo de sobrevivência encontra-se extremamente prejudicado devido ao grau de poluição e
degradação de suas águas. Traz reflexões para o estabelecimento de estratégias de preservação
dos mananciais e a contenção de despejo de efluentes industriais e esgotos domésticos nas
águas do rio Cachoeira, visando a sua recuperação para o bem comum das comunidades
endógenas, bem como para os visitantes, tendo em vista a seu potencial para o turismo em
virtude da beleza paisagística que proporciona aos transeuntes, especialmente, no trecho.da
rodovia Ilhéus/Itabuna, na BA415
33
E, finalmente, o terceiro capítulo, RIO-RECRE(I)AÇÃO – potencialidades culturais
do Rio Cachoeira através da literatura oral – que aborda o imaginário do rio Cachoeira,
concernente aos causos narrados oralmente pelos pescadores que ocupam as suas margens,
especificamente no Banco da Vitória, município de Ilhéus, localizado na BA 415 da rodovia
Ilhéus/Itabuna (CASTORIADIS, 1982; ISER, 1996). Trata-se de narrativas que são
elaboradas no cotidiano, a partir da experiência individual de cada contador em sua labuta
diária, na intimidade com as águas do rio Cachoeira. A singularidade dessas narrativas não se
limita apenas ao seu valor estético, mas em sua força representativa, no valor sociocultural
que as revestem, pois evidenciam um ethos cultural característico do lugar. A análise decorre
de dois questionamentos principais: 1- de que modo a Literatura oral pode contribuir para o
estudo dos processos históricos-sociais da construção das identidades culturais de uma
localidade? 2- de que modo o estudo da Literatura oral pode contribuir para com a
sustentabilidade da atividade turística de Ilhéus? Abordadas como literatura oral
(CASCUDO, 1984), como formas simples (JOLLES, 1975), ou ainda como literaturas da voz
(ZUMTHOR, 2000) por definir os elementos fundamentais da vocalidade e da performance
(centrada no ato imediato da comunicação), estas narrativas apresentam caráter de etnotexto
(SANTOS, 1995, p. 39), isto é, um “discurso que um grupo social, uma coletividade, elabora
sobre sua própria cultura, na diversidade de seus componentes, e através do qual reforça e
questiona sua identidade”. A finalidade da recolha e tratamento científico desses causos,
enquanto expressões da Literatura Oral, é contribuir para a inserção e valorização de uma
prática social que está se perdendo por falta de tratamento adequado. O estudo assinala que a
preservação, valorização e divulgação dessas narrativas, por expressarem a cultura local,
aliada à formatação da paisagem ao longo do Cachoeira no trecho da BA 415, podem ser
tomadas como instrumentos potencializadores do turismo, não só naquela localidade, mas do
turismo regional, por proporcionar uma experiência diferenciada ao turista que deseja
conhecer e vivenciar a cultura local. Por se tratar de um discurso que apresenta caráter de
etnotexto, a recolha e análise dessas narrativas podem contribuir para o entendimento de uma
cultura regional de características próprias, além permitir a inclusão de vozes suprimidas e
subalternas (MOREIRAS, 2001), quase sempre excluídas no processo de planejamento
turístico.
Na estruturação deste texto dissertativo, fotografias ilustrativas do rio Cachoeira, bem
como de mapas e imagens aéreas de Ilhéus, foram incorporadas ao trabalho. Inúmeras
fotografias foram cedidas gentilmente pelo Núcleo de Bacias Hidrográficas da UESC, na
pessoa de seu coordenador, Prof. Dr. Neylor Calasans; outras, são de autoria do pesquisador
Prof. Dr. Célio Kersul do Sacramento (CKS), do Departamento de Ciências Agrárias e
Ambientais (DCAA), UESC, que autorizou a utilização das mesmas. Em ambos os
casos, os créditos foram conferidos na citação de fontes.
O roteiro utilizado nas entrevistas e os respectivos relatos obtidos nesta pesquisa são
apresentados na íntegra como apêndice com a finalidade de oportunizar maiores
esclarecimentos sobre a sua execução.
Esta dissertação se conclui, todavia a pesquisa não se encerra. Como desdobramento
das observações feitas e do material recolhido, posteriormente será aprofundada a pesquisa
sobre o imaginário dos ribeirinhos do Banco da Vitória, trabalho esse inserido no projeto
integrado Expressões Culturais e Turismo: patrimônio e desenvolvimento – EXCUL,
coordenado pela Profa Dra Maria de L. N. Simões, e que conta com o apoio financeiro da
FAPESB.
35
2. REVISANDO CONCEITOS em favor de um turismo cultural
Águas são muitas e infindas. E em tal maneira é graciosa que querendo aproveitar dar se a nela tudo por bem das águas que tem.
Pero Vaz de Caminha
O turismo pode atuar como instrumento de sensibilização, de orientação e de equilíbrio entre o desgaste que nós estamos causando com o desenvolvimento
econômico e a necessidade de preservar nosso patrimônio. Sílvio Magalhães Barros
2.1. Relacionando cultura e turismo
O turismo, uma atividade milenar, constitui-se em um fenômeno sociocultural de
características e dimensões qualitativas e quantitativas tão diversas que demanda análises sob
a ótica de várias ciências. A complexidade de sua natureza epistemológica, que se encontra
em contínuo processo de re-elaboração, comprova essa realidade.
Um dos pontos de discussão sobre o turismo diz respeito às inúmeras possibilidades de
investigações acadêmicas no atual contexto da contemporaneidade, pois, como já foi
sinalizado, os estudos turísticos constituem objeto de análise de diversas disciplinas. Assim
sendo, a diluição de fronteiras disciplinares que abrangem tais estudos deve-se ao uso de
conceitos e métodos de ciências consideradas já consolidadas (DENCKER, 1998). Disciplinas
como a Antropologia, a Sociologia, a História, a Geografia, a Economia, a Ecologia e a
Literatura, dentre tantas outras, têm contribuído para o entendimento do turismo enquanto um
campo de conhecimento que encerra uma infinidade de discussões que dizem respeito às
várias implicações históricas, socioculturais e, sobretudo, ambientais. Tais des-limites
epistemológicos, inerentes à condição pós-moderna (BHABHA, 1998), propiciam o
levantamento de problemáticas que ultrapassam os aspectos meramente econômicos do
turismo, como, aliás, é mais freqüentemente abordado, devido à sua inegável posição de
destaque na economia mundial.
São essas condições de multidisciplinaridade, de interdisciplinaridade e de
transdisciplinaridade que possibilitam o avanço dos estudos acadêmicos no campo teórico do
turismo, permitindo uma abordagem mais ampla do fenômeno em sua complexidade. Por
conseguinte, apreender o turismo como um campo transdisciplinar de estudo permite acolher
diversos olhares críticos, mas, por outro lado, também proporciona algumas dificuldades,
37
pois, conforme Dencker (op. cit., p. 28), o turismo tomado como “objeto de estudo de várias
disciplinas está sujeito à influência de diferentes paradigmas, o que prejudica a formação de
um corpo teórico específico”.
Nesse sentido, a multiplicidade de definições, tipificações e formas de praticar o
turismo, também se encontram em processo de re-elaboração, pois como a história do turismo
tem demonstrado, as definições estão vinculadas às diferentes épocas, bem como às diferentes
áreas do conhecimento.
Segundo Oliveira (2000), entre o final do século XIX e início do século XX, muitas
definições de turismo perderam a validade por fraqueza de fundamentação. Dentre as mais
antigas conceituações, o autor destaca a do economista austríaco Hermann von Schullard que,
em 1910, definiu o turismo como “a soma das operações, especialmente as de natureza
econômica, diretamente relacionadas com a entrada, a permanência e o deslocamento de
estrangeiros para dentro e para fora de um país, cidade ou região” (idem, p. 31).
Como podemos observar, tal definição acha-se claramente vinculada ao foco de estudo
do referido economista, não obstante, ressalvando-se a data em que foi estruturada tal
definição, esse procedimento pouco se modificou de lá para cá.
Sem negligenciar a fundamentação econômica em relação ao fenômeno turístico e, ao
mesmo tempo, levando-se em consideração que a cultura, em seu sentido antropológico,
envolve todos os aspectos realizáveis pela sociedade humana, vale reafirmar que as questões
que envolvem a atividade turística têm em seu núcleo de discussões o ser humano. No caso do
presente estudo que, em princípio, trata da relação do meio ambiente (natural/cultural) como
matéria-prima do turismo, compartilhamos da idéia de que o homem é parte integrante e
definidora desse meio. Assim, o turismo é aqui abordado como uma invenção cultural, um
produto resultante da própria necessidade de deslocamento que move a espécie humana desde
os seus primórdios.
Numa perspectiva diacrônica, basta um retrospecto histórico do turismo para entendê-
lo como um atributo da criatura humana devido à sua própria inquietação, força
impulsionadora e incessante, que determina, dentre outras coisas, a eterna busca pela
novidade bem como por melhores condições de vida. Aliás, dados históricos afirmam que,
desde as eras mais remotas, a história da humanidade está intrinsecamente ligada à sua
dispersão pelo mundo.
Conforme Ignarra (2001), a atividade turística, no sentido etimológico da palavra –
viagem de descoberta, de exploração, de reconhecimento -, começou desde quando o homem
deixou de ser sedentário e passou a viajar. Historicamente, com o propósito de incrementar e
expandir o comércio com outros povos; depois, as viagens exploratórias, com a finalidade de
colonização, estimularam o homem a se deslocar de seus locais de origem.
Na tipologia do turismo contemporâneo, as motivações de deslocamento estão
associadas ao prazer de viajar para se conhecer novos lugares, novas culturas. Nesse sentido, a
busca incessante pelo diferente, e não apenas pela diversidade, parece estimular o turista-
viajante a aspirar por novas experiências, novos conhecimentos, novas descobertas, num
exercício que permite defrontar hábitos, costumes, tradições, com o propósito de re-conhecer,
em si próprio e nos outros, as semelhanças e/ou diferenças culturais. Em suma, a ânsia pela
novidade, pelo desconhecido reformula constantemente as motivações e o desejo por novas
aventuras. Desse modo, as implicações socioculturais desencadeadas pelas viagens de
deslocamento, conforme Ianni (2000, p. 14), “desvenda alteridades, recria identidades e
descortina pluralidades”.
39
Na contemporaneidade, a necessidade de se evadir da rotina causticante do cotidiano,
da correria sufocante do acelerado mundo capitalista que delibera o consumo desregrado,
também determina, conforme Carlos (1999), as formas de lazer não mais como uma atividade
espontânea, mas como mais uma necessidade cooptada pela sociedade de consumo que
transforma tudo o que toca em mercadorias. Nessa conjuntura, o turista vem se tornando cada
vez mais um elemento passivo ante a artificialidade dos empreendimentos turísticos,
participando, desse modo, de um mundo fictício e mistificado de lazer, o que não é mau de
todo. No entanto, essa artificialidade produzida pela denominada ‘indústria’ do turismo é
responsável pela manipulação de desejos e gostos, já que especificam e orientam escolhas,
produzindo um “modelo geral do estar satisfeito como consumidor de lazer” (idem, p. 34,
grifos da autora).
Nesse sentido, conceber o turismo como uma invenção cultural humana determina
uma opção teórica que privilegia a cultura como ponto de partida de análise do presente
estudo. Importante ressaltar que o termo cultura aqui utilizado, numa perspectiva
antropológica, inclui em seu escopo todas as possibilidades de realização humana, isto é,
ultrapassa o conceito de ‘civilização’ e/ou de ‘refinamento intelectual’, termos que remetem à
superada idéia de hierarquização cultural. Na esteira dos Estudos Culturais, toda e qualquer
manifestação cultural humana é singular em sua própria essência, independentemente de sua
localização geográfica, porquanto cada cultura possui seus próprios critérios de avaliação,
uma vez que só a espécie humana apresenta em sua essência a capacidade de “ordenação (e
desordenação) do mundo em termos simbólicos” (SAHLINS, 1997, 41).
De acordo com Sahlins (idem), o crescente interesse epistemológico pela cultura nas
Ciências Humanas, incluindo-se aí o turismo, deve-se à abrangência do fenômeno que o termo
designa e distingue como
A organização da experiência e da ação humanas por meio simbólicos. As pessoas, relações e coisas que povoam a existência humana manifestam-se essencialmente como valores e significados – significados que não podem ser determinados a partir de propriedades biológicas ou físicas. [...] um macaco não é capaz de apreciar a diferença entre água benta e água destilada – pois não há diferença, quimicamente falando. (p. 41)
Tais observações encontram ressonância em Castoriadis (1982) quando afirma que no
mundo histórico e social tudo o que é instituído encontra-se indissociavelmente entrelaçado
com o simbólico que, por sua vez, tem no imaginário um componente essencial. É desse
modo que as culturas geram símbolos os mais diversos que se manifestam por meio de
normas, valores, crenças, hábitos, costumes e tradições que constituem as identidades, uma
vez que conformam os “repertórios de ação e representação, adquiridos pelo homem enquanto
membro de uma sociedade” (WARNIER, 2000, p. 16).
Partindo desses pressupostos, buscamos compreender o turismo, em uma perspectiva
mais ampla, como um fenômeno que é instituído socialmente (CASTORIADIS, op. cit.), pois
os estudos turísticos não podem se restringir a investigações puramente objetivas e
sistemáticas em relação aos setores econômico-administrativos. Mas, um campo de estudo
que, mais do que permite, necessita de uma análise mais profunda no âmbito da subjetividade
humana, principalmente no que se refere à crescente degradação do meio ambiente natural. A
constatação dessa realidade em nível global, na qual a atividade turística acha-se inserida, tem
gerado grandes preocupações conforme as atuais condições de sobrevivência do homem no (e
do) planeta.
Ainda que subjacente a uma visão um tanto tecnicista, Moesch (2000), num esforço de
uma argumentação sistemática desses fatos, propõe uma definição mais abrangente do
turismo, porquanto demonstra a relação de interdependência entre cultura, meio ambiente e
turismo.
O turismo é uma combinação complexa de inter-relacionamentos entre produção e serviços, em cuja composição integra-se uma prática social com base cultural,
41
com herança histórica, a um meio ambiente diverso, cartografia natural, relações sociais de hospitalidade, troca de informações interculturais. O somatório desta dinâmica sociocultural gera um fenômeno, recheado de objetividade/subjetividade, consumido por milhões de pessoas, como síntese: o produto turístico (op. cit, p. 9, grifos nossos).
Tais considerações levam ao entendimento de que já está mais do que evidenciado que
não se pode compreender a atividade turística sem associá-la ao uso sustentável do patrimônio
ambiental. As ações desordenadas do homem nesse setor, em virtude da ausência de
planejamentos que viabilizem a preservação do meio natural e cultural, têm causado sérios
estragos nas localidades receptoras.
Conforme Rodrigues (1999, p. 55), o turismo é uma atividade que “produz espaços
delimitados e espacialmente destinados a um determinado tipo de consumo – o consumo da
natureza – através dos denominados ‘serviços’ do turismo”. É, pois, desse modo, que os
recursos naturais (esgotáveis) e culturais (dinâmicos por natureza) tornam-se mercadorias. E o
que é mais grave, na opinião da autora, é que a “produção espacial” para atender a demanda
turística, contrariamente aos princípios de sustentabilidade, atende aos mesmos preceitos da
produção capitalista, isto é, destrói as próprias condições de produção.
As inquietações de Rodrigues, sobre a problemática ambiental relacionada ao turismo,
alertam para a necessidade de se promover uma política de sustentabilidade que “precisa ser
construída socialmente [...], desenvolvendo-se em contínua progressão a capacidade de
pensar, que é a essência da natureza humana”, de modo que a sociedade do ter, caracterizada
pelo consumo desregrado e irresponsável, seja substituída pela sociedade do ser. Nesta
sociedade do ser, defende Rodrigues, “o que seria mais importante de ser contabilizado e que
seria considerado investimento seriam os recursos empregados no atendimento das
necessidades sociais” (2000, p. 44, 45; grifos nossos).
É oportuno comparar essas apreciações com as de Guattari (2001), quando o autor de
As Três Ecologias adverte que o planeta Terra passa por um período de intensas
transformações técnico-científicas que engendram desequilíbrios ecológicos que inviabilizam
a vida em sua superfície. Por conseqüência desses acontecimentos, Guattari afirma que os
modos de vida humanos, individuais e coletivos, caminham também para uma progressiva
deteriorização.
O eixo de argumentação do referido autor se baseia no fato de que o avanço
tecnológico, produzido pelo perverso sistema capitalista, atingiu um nível tão intolerável que
interfere demasiadamente na vida humana. A produção em massa de bens materiais que visa
exclusivamente o lucro com base em um consumo desenfreado e a padronização de
comportamentos gerada pelo consumo da mídia, dentre outros fatores, parece comprometer a
capacidade de pensar e de agir dos indivíduos.
Segundo Guattari (op. cit), as pessoas parecem inertes ante a gravidade dos problemas
que o mundo vem enfrentando em nível global. A ameaçadora destruição progressiva do meio
ambiente e o conseqüente crescimento da miséria e exclusão social da grande maioria da
população mundial, sobretudo nos países do terceiro mundo (denominação patética e
discriminatória), como é o caso do Brasil, têm se caracterizado como situações insustentáveis
que necessitam de soluções em caráter de urgência. Além disso, percebe-se um evidente
despreparo das instâncias políticas e executivas para apreender essa problemática no conjunto
de suas implicações em busca possíveis resoluções.
Nessa mesma linha de pensamento, Anthony Giddens (1991) enfatiza que a sociedade
vive as conseqüências geradas pela modernidade. Para Giddens, todas essas transformações
desastrosas que o mundo vem enfrentando constituem o “lado sombrio da modernidade”, uma
vez que o trabalho industrial não só submeteu aos seres humanos uma disciplina maçante,
43
como também criou “forças de produção” em ritmo extremamente dinâmico e acelerado,
capazes de causar um desgaste sem precedentes ao meio ambiente material.
Para enfrentar tais circunstâncias, Guattari (p. 8) propõe uma revolução em escala
planetária em que só uma ecosofia, “uma articulação ético-política entre os três registros
ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana) é que
poderia esclarecer convenientemente tais questões”. Conforme o filósofo, a ecosofia social
consiste em desenvolver práticas específicas que tendem a modificar e a reinventar maneiras
de ser no seio da família, no contexto do dia-a-dia, no trabalho, nas relações de vizinhança.
Nessa ótica, a questão fundamental seria reconstruir o conjunto das modalidades do ser-em-
grupo; a ecosofia mental, visando-se a re-inventar a relação do sujeito com o corpo, com o
fantasma (entenda-se aí, o inconsciente), com o tempo que passa, com os mistérios da vida e
da morte, buscando também antídotos para a uniformização midiática e telemática, o
conformismo das modas, as manipulações de opinião pela publicidade, etc. Desse modo, o
filósofo parece nos propor uma desrobotização gradativa e continuada do ser humano, pois
somente dessa forma o homem poderia enfrentar e resolver os desequilíbrios provocados pela
própria espécie.
Num contexto de grandes diferenças sociais, Guattari questiona os modos dominantes
de valorização das atividades humanas que se restringem a um império do mercado mundial
(o capitalismo pós-industrial que o autor prefere qualificar como CMI – Capitalismo Mundial
Integrado) onde as economias voltadas exclusivamente para o lucro engendram pauperização
absoluta e irreversível de regiões inteiras. Para o filósofo é preciso que se opere uma
verdadeira revolução política, social e cultural de modo a reorientar os objetivos de produção
tanto dos bens materiais como dos bens imateriais.
Guattari (p. 9) também chama atenção para o fato de que “as forças produtivas vão
tornar disponível uma quantidade cada vez maior do tempo de atividade humana potencial”.
Essas considerações estão intrinsecamente relacionadas à crise do desemprego bem como ao
aumento da marginalidade em escala mundial. Desse modo as disparidades socioeconômicas
e histórico-culturais existentes em todo o mundo geram tensões que se repercutem com
grande intensidade de conflitos de toda ordem: socioculturais, políticas e, principalmente,
ambientais.
Nessa perspectiva, De Masi (2000, p. 139) explica que “foi com o advento da indústria
que o trabalho assumiu uma importância desproporcionada, tornando-se a categoria
dominante na vida humana, em relação à qual qualquer outra coisa – família, estudo, tempo
livre – permaneceu subordinada”. Ao que tudo indica, esse fato deve ter contribuído
efetivamente para com a robotização humana, comprometendo-lhe o direito de escolher, de
pensar em soluções criativas para os seus problemas cotidianos.
Segundo De Masi, o aumento do tempo livre é decorrente de uma sociedade pós-
industrial que tem delegado as tarefas repetitivas e cansativas às máquinas. Nesse contexto,
sua proposta é tornar o ócio uma ferramenta que promova a criatividade humana, de modo a
oportunizar o aprimoramento pessoal fora do trabalho através de atividades que proporcionem
prazer e qualidade de vida, isto é, tornar o ócio uma atividade produtiva. Nesse caso, a
atividade turística parece encaixar-se perfeitamente como uma alternativa para o ócio criativo.
No entanto, faz-se necessário levar em consideração que se trata de um olhar bastante otimista
do sociólogo italiano, já que não condiz com a realidade que, por sua vez, tem se mostrado
preocupante em termos do aumento do desemprego estrutural e da crescente violência que
vem se espalhando no mundo inteiro.
45
Assim, o turismo, enquanto atividade de lazer e/ou de descanso surge como uma
alternativa que poderia preencher o tempo disponível das pessoas. Entretanto, contrapondo-se
a esta idéia, não podemos esquecer que a atividade turística, ainda em vias de
“democratização”, conforme as facilidades tecnológicas alcançadas ao longo da nossa era,
acha-se ainda restrita a quem possui condições de usufruir dessa prática mediante
remuneração. O que não acontece com a imensa maioria da população, pois o modelo de
desenvolvimento, em que o turismo também se acha inserido, gerou um processo dialético de
exclusão/inclusão, fundamentado no poder aquisitivo de classes sociais mais favorecidas
economicamente, o que não implica em afirmar que tais condições não possam ser alteradas
em favor daqueles que se apresentam sob a condição de subalternidade deste sistema.
Levando-se em conta todas essas considerações, Guattari (p. 8) afirma que o turismo
pode se resumir “quase sempre a uma viagem sem sair do lugar, no seio das mesmas
redundâncias de imagens e de comportamento”, apesar do deslocamento físico do turista.
Esta sensação de “viajar sem sair do lugar” pode ser decorrente do longo e contínuo
processo de mundialização cultural a que estamos todos submetidos conforme Ortiz (1998).
Diferentemente da globalização, que se articula diretamente com os fatores de produção,
distribuição e consumo de bens e serviços voltados para um mercado mundial, a
mundialização cultural, que supostamente atinge todo o mundo é, na opinião de Ortiz, “um
fenômeno social total que permeia o conjunto das manifestações culturais” (idem, p. 30), que
contribui para o aspecto homogeneizante dos lugares a serem visitados. Todavia, a idéia
totalizante de que o mundo pode estar subjugado a uma homogeneização cultural em nível
global, preconizada por Ortiz, é, do ponto de vista global, no mínimo, questionável. Para isso,
basta observarmos as desigualdades socioeconômicas e culturais em todo o mundo, seja em
nível de produção/consumo, ou seja, de poder aquisitivo, de educação e demais condições
essenciais à sobrevivência humana nos mais diversos contextos socioculturais. A dissonância
dessas condições, observáveis nas diversas culturas humanas, torna perceptível as grandes
disparidades socioeconômicas a que todos estamos sujeitos. Desse modo, deduzimos que
tanto o processo de globalização como o de mundialização cultural operam em níveis
diferenciados, conforme as especificidades de cada região.
Stuart Hall, por sua vez, faz uma crítica às alarmantes proposições sobre a
homogeneização cultural em nível global. Hall, com base no argumento de Kevin Robin,
afirma que a globalização explora a diferenciação local.
Ao lado da tendência em direção à homogeneização global, há também uma fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e da ‘alteridade’. Há, juntamente com o impacto do ‘global’, um novo interesse pelo ‘local’. A globalização (na forma da especialização flexível e da estratégia de criação de ‘nichos’ de mercado), na verdade, explora a diferenciação local. Assim, ao invés de pensar no global como ‘substituindo’ o local seria mais acurado pensar numa nova articulação entre ‘o global’ e o ‘local’ (op. cit., p. 77; grifos do autor)
Além disso, o fato de a globalização ser muito desigualmente distribuída ao redor do
globo, é mais provável que se produza, nessas circunstâncias, novas identificações globais e
novas identificações locais, conforme adverte o autor. A globalização pode ainda se tratar de
um fenômeno essencialmente ocidental (processo de ocidentalização, por exemplo). Segundo
Hall, são as “imagens, os artefatos e as identidades da modernidade ocidental, produzidos
pelas indústrias culturais das sociedades ‘ocidentais’ (incluindo o Japão) que dominam as
redes globais”, (ibidem, p. 79).
Num contexto denominado como supermodernidade, caracterizado por Marc Augé
(1994) como a era dos excessos, devido à superabundância de fatos e de informações, o termo
não-lugar é utilizado para designar os espaços públicos de rápida circulação como os
aeroportos, rodoviárias, estações de metrô, supermercados, hotéis, parques de lazer, etc. A
produção desses não-lugares tem relações estreitas com o turismo contemporâneo. Para Augé,
47
o não-lugar se opõe ao lugar antropológico, pois esse, ao contrário do primeiro, visa a ser
identitário, cultural, espacial e historicamente definido.
Carlos (1999), também se apropria do termo não-lugar para descrever os espaços
produzidos e/ou transformados artificialmente para atrair os turistas. A autora afirma que a
‘indústria’ do turismo, voltada inteiramente para o lucro imediato, transforma tudo o que toca
em artificial, criando, desse modo, espaços sem memória, mundos fictícios e mistificados de
lazer
onde o espaço se transforma em cenário para o ‘espetáculo’ para uma multidão amorfa mediante a criação de uma série de atividades que conduzem a passividade, produzindo apenas a ilusão de evasão, e desse modo, o real é metamorfoseado, transfigurado, para seduzir e fascinar. Aqui o sujeito se entrega às manipulações desfrutando a própria alienação e a dos outros (idem, p. 26)
Mais adiante a autora explica como o espaço produzido pela ‘indústria’ turística perde
o sentido de lugar, transformando-os em simulacros porque constitui um presente sem
profundidade, sem história, sem identidade, sem memória, pois não há qualquer vínculo
cultural, trata-se de um espaço do vazio. Inversamente, o lugar é, conforme Carlos (idem, p.
28), o “produto das relações humanas, entre homem e natureza, tecido por relações sociais
que se realizam no plano do vivido, o que garante uma rede de significados e sentidos que são
tecidos pela história e cultura civilizadora produzindo a identidade”.
Nesse sentido, para se eleger o turismo como uma alternativa de soerguimento
socioeconômico em uma determinada localidade, em um contexto geral, algumas ponderações
precisam ser feitas, pois a elaboração de um plano estratégico que viabilize a sustentabilidade
do segmento é imprescindível, tomando como ponto de partida a preservação das identidades
culturais do lugar através de uma ação conjunta por parte de seus organizadores e habitantes.
No Brasil, particularmente na região Sul Baiana, onde a cultura turística ainda
encontra-se em fase de desenvolvimento, os atrativos naturais e culturais ficam relegados,
quase sempre, ao segundo plano, tanto por parte do poder público (estado, município) como
das empresas privadas que se preocupam demasiadamente com o empreendimento em termos
financeiros, visando, na maioria das vezes, aos lucros imediatos. Não obstante, o que ocorre
com freqüência é uma busca desenfreada em se produzir mercadorias para serem consumidas
nas mais diversas situações. Nesse prisma, as manifestações culturais transformam-se também
em mercadorias e ficam, deploravelmente, reduzidas a categorias de espetáculo.
Subutilizadas, as manifestações culturais, muitas vezes designadas pejorativamente como
folclore, tornam-se, desse modo, um ‘bem cultural’ totalmente desvinculado do cotidiano de
seus moradores, incidindo no problema da artificialidade excessiva. Aliás, como bem
recomenda Menezes (1999), a cultura precisa ser localizada na totalidade da vida social e não
como um segmento compartimentado, que passa a existir exclusivamente no momento de sua
performance.
Com base nessas reflexões, levamos em consideração que há ainda muitos turistas que
não se importam, e até mesmo preferem ter as suas viagens devidamente programadas, onde
tudo é controlado pelos profissionais do trade turístico a fim de se evitar quaisquer tipos de
imprevistos (se é que isso é possível!). A artificialidade e a monitoração de horários para
“ver” (diferentemente de conhecer) as paisagens, os ditos ‘espetáculos culturais’, parecem não
os incomodar, entretanto, corre-se o risco de ficarem impassíveis, pois fica difícil estabelecer
qualquer tipo de interação, e o espetáculo cultural pode tornar-se vazio de significado. É
possível que esses turistas estejam mais ansiosos por ‘comparecer’ aos locais predeterminados
pelo pacote turístico, com a possibilidade de aquisição de souvenires e as previsíveis
fotografias – a prova concreta de que realmente visitaram o lugar.
Entretanto, ao lado desses, surgem os turistas de vanguarda que, segundo Avighi
(2000), cada vez mais, buscam a realização pessoal, pois desejam compreender a cultura e a
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história dos lugares a serem visitados. São turistas que “mantêm viva a eterna chama interior
do viajante” e por isso trocam a simples curiosidade por inquietações individuais, pois
desejam realmente novas experiências, novos intercâmbios culturais. Nesse sentido, “o
viajante, de uma forma geral, é movido primeiramente por um sentimento de liberdade, de
vontade, do desejo de ir em busca do dessemelhante”.(SOUSA, 2004, s/p)
Nesse sentido, são turistas que estão sendo preparados para compreender que as
paisagens são ambientes construídos e que, por isso mesmo, demandam interpretação, pois
não se trata de um “suporte passivo, mas uma entidade ativa, integrante e testemunha de uma
dinâmica cultural que se constrói no tempo e se manifesta no espaço” (OLIVEIRA, op.cit, p.
225). Daí, o crescente número de turistas que procuram evitar a rigidez dos pacotes turísticos,
afinal, a vida cotidiana, por si só, já estabelece uma rotina bastante estressante.
As paisagens por serem extremamente variadas estão sujeitas às mais diversas
interpretações. Uma pessoa que apenas vê a paisagem não ultrapassa a condição de
espectador. De acordo com Tuan (1980, p. 12) “o mundo percebido através dos olhos é mais
abstrato do que o conhecido por nós através de outros sentidos.” Segundo o autor, o turismo
tem utilidade social e beneficia a economia dos destinos receptores, entretanto, não une
verdadeiramente o homem à natureza, uma vez que
a apreciação da paisagem é mais pessoal e duradoura quando está mesclada com lembranças de incidentes humanos. Também perdura além do efêmero, quando se combinam o prazer estético com a curiosidade científica. O despertar profundo para a beleza ambiental, normalmente acontece como uma revelação repentina. Este despertar não depende muito de opiniões alheias e também em grande parte independe do caráter do meio ambiente. As cenas simples e mesmo as pouco atrativas podem revelar aspectos que antes passavam despercebidos e este novo insight na realidade é, às vezes, experienciado como beleza. (Cornish Vaughn apud TUAN, op. cit, p. 110)
Desse modo fica subentendido que para se agregar valor turístico a uma determinada
paisagem, esta deve estar associada aos seus aspectos culturais, inclusive científicos, de modo
a oportunizar experiências diferenciadas a um turista que apresenta condições de compreender
e respeitar as culturas locais, seus hábitos e suas tradições.
Assim sendo, o que precisa ser feito para que ao turista-viajante seja possível
ultrapassar a contemplação da paisagem por si só? Afinal, o que esse turista, desejoso de
novas experiências, espera encontrar além de uma bela paisagem? Para que isso ocorra
verdadeiramente, tornar-se-ia necessário compreender a cultura do lugar? E quanto aos
habitantes locais que estão diretamente envolvidos nesses ambientes, o que pensam em
oferecer aos seus visitantes para que se sintam bem recebidos? Como inspirar boas impressões
sem correr o risco de se perder a naturalidade dos gestos cotidianos que delineiam, de certa
forma, a visão de mundo da comunidade receptora? É sabido que as comunidades receptoras
despreparadas em seu exercício de acolher os turistas estão sujeitas a ter a sua cultura não
apenas alterada, devido os contatos interculturais, mas devassada por visitantes mal-educados,
que não sabem respeitar nem as diferenças culturais nem tampouco as peculiaridades
ambientais dos locais a serem visitados.
Esses questionamentos apontam aspectos verdadeiramente conflitantes que certamente
exigem investigações mais aprofundadas. São contradições que abrangem problemáticas
condizentes às disparidades socioeconômicas, culturais e ambientais, que envolvem ainda o
caráter universalista de padronização de atendimento aos turistas em termos de comodidade e
de amabilidade receptora. Se as comunidades encontram-se organizadas e bem instruídas,
procuram mostrar aos seus visitantes as peculiaridades naturais e culturais daquela localidade
aos turistas desejosos de encontrar algo diferente do seu local de origem. Estas questões
envolvem, certamente, grupos sociais distintos em seus mais diversos aspectos, sejam
socioculturais, de cunho econômicos, políticos e ambientais, dentre muitos outros.
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Por outro lado, estudos recentes apontam que o turismo, além de promover o
desenvolvimento socioeconômico de uma localidade, pode se tornar um grande aliado na luta
pela preservação do meio natural e cultural de uma destinação turística. Contudo, como
qualquer empreendimento gerado sob a égide do capitalismo, e isso é um fato, requer grandes
investimentos financeiros, planejamento criterioso, fundamentado em dados técnicos de
pesquisas e participativo entre o poder público e entidades privadas, juntamente com as
comunidades receptoras a fim de que se evite a degradação da paisagem e da cultura do lugar,
das quais depende, principalmente, a população local.
Nesse sentido, Ruschmann (1997.) explica porque o planejamento é indispensável para
se obter um desenvolvimento turístico mais seguro, equilibrado e em harmonia com os
recursos físicos, culturais e sociais das regiões receptoras. É preciso evitar que o turismo
destrua as bases que o fazem existir, adverte. Nesse sentido todos os cuidados devem ser
tomados a fim de se minimizar os impactos causados pelo setor turístico.
Segundo Cooper et al (2003) o turismo, como todas as atividades de empreendimento
industrial, sempre acarretará impactos sobre o meio ambiente físico. É fato que os turistas, ao
se deslocarem, visitam o local para consumir o produto turístico. Desse modo, é inevitável
que a atividade turística não esteja associada aos impactos ambientais e culturais. Entretanto,
os referidos autores acreditam na possibilidade de se gerenciar o turismo com planejamento
apropriado em respeito às características naturais do lugar, intentando-se reduzir de forma
significativa os impactos negativos e estimular os positivos.
Para se reduzir os impactos negativos vale recorrer à implantação de um programa de
educação ambiental, intentando-se a construção de saberes que envolvam a conscientização
dos moradores a respeito do valor cultural que possuem, inclusive com ganhos em relação à
auto-estima dos envolvidos, tornando-os capazes de identificar e solucionar os problemas
advindos não só do processo de instauração do turismo, tornando-os verdadeiros defensores
de seu patrimônio natural e cultural. Todas essas questões, evidentemente, estão relacionadas
à sustentabilidade do empreendimento turístico uma vez que garantem não só a preservação
de sua principal matéria-prima (o meio ambiente natural e cultural) ao mesmo tempo em que
promovem melhor qualidade de vida aos seus habitantes, garantem experiências marcantes
aos seus visitantes, contribuindo para o equilíbrio que garante a continuidade de diversas
práticas turísticas possíveis de acordo com o ambiente e a cultura local.
Na perspectiva de atender às necessidades materiais e imateriais das populações
endógenas, o planejamento turístico deve priorizar e manter uma infra-estrutura básica
considerável (saneamento, saúde, vias de acessos, energia, comunicações, etc.), serviços
públicos de apoio aos moradores bem como aos turistas (transportes decentes, segurança
eficiente, serviços bancários, comércio atrativo, postos de abastecimento, etc.) e serviços que
normalmente estão mais voltados para os visitantes (hospedagem, restaurantes,
entretenimentos, eventos, serviço de informações turísticas dentre outros). Todos esses
investimentos são considerados essenciais para o desenvolvimento socioespacial (SOUZA,
1999) de uma localidade, porque, à priori, beneficiam os residentes locais e, por conseguinte,
os seus visitantes que serão mais bem acolhidos. Tais prioridades comportam estratégias
importantes que contribuem para garantir a sustentabilidade e o desenvolvimento do
empreendimento turístico de uma localidade.
Cooper et al (op. cit., p. 188) asseguram que “planos de melhoria ambiental para criar
áreas mais atrativas, incluindo a renovação urbana, projetos de recuperação e planos de
conservação” são benefícios que o turismo pode trazer para uma localidade. Aliados a esses
fatos encontram-se a geração e a manutenção de emprego e renda para os habitantes locais,
mas, para que isso realmente ocorra, é bom lembrar que o planejamento turístico deve ser
53
abordado como um processo continuado, que precisa ser constantemente reavaliado, devido à
sua própria dinamicidade, na tentativa de estar (democraticamente) em consonância com as
identidades locais. Assim, o envolvimento da comunidade poderá definir com segurança o
rumo do planejamento e o sucesso do empreendimento. Planejar é preciso, sobretudo no
turismo, quando se decide a produzir um futuro desejado para um número maior de
beneficiados.
Souza (op. cit.), em seu artigo “Como pode o turismo contribuir para o
desenvolvimento local?”, faz ressalvas importantes quanto ao uso do termo
‘desenvolvimento’ em relação à atividade turística. Para Souza, o termo deve abranger
também as problemáticas sociais vigentes, dadas as proporções do que vem acontecendo no
mundo em nível global. Despido de sua carga ideológica capitalistófila, ou seja, livre de seu
sentido puramente econômico, o termo ‘desenvolvimento’ deveria “designar um processo de
superação de problemas sociais, em cujo âmbito uma sociedade se torna, para seus membros,
mais justa e legítima”. (idem, p. 18; grifos do autor). A fim de demonstrar a perspectiva de
suas reflexões, e reduzir ambigüidades, Souza optou pela expressão desenvolvimento
socioespacial por abranger questões que relacionam conquistas nos mais diversos aspectos
que precisam ser resguardados em uma comunidade como o meio social (a cultura, a
economia, a política, etc.) e o meio natural.
Sobre o significado do turismo em concordância com o desenvolvimento
socioespacial, Souza considera o estabelecimento da autonomia coletiva como ponto
fundamental na gestão dos recursos socioespaciais. De acordo com a s suas reflexões,
O desenvolvimento socioespacial pressupõe que uma coletividade tenha autonomia para gerir os seus destinos (ou seja, eleger, ela própria e conscientemente, as suas prioridades e os meios para concretiza-las), até mesmo para disciplinar o turismo conforme os seus interesses e as suas necessidades. [...] Se a maioria da população não puder participar livremente da gestão dos recursos socioespaciais de seu município, o turismo (e outras atividades) dificilmente corresponderão às suas
expectativas e casarão com os seus interesses; dificilmente, portanto, o turismo tenderá a trazer desenvolvimento socioespacial duradouro. (ibidem, p. 20; grifos nossos)
Com base nessas orientações, presume-se que as condições determinantes para se
estabelecer o desenvolvimento socioespacial, especialmente, no âmbito do turismo, exigem
análises diversas que direcionem a implantação de políticas adequadas, tendo em vista não só
a implementação de equipamentos físicos, imprescindíveis ao incremento da atividade
turística, visando a rentabilidade dos empreendimentos do setor, mas, sobretudo, o bem estar
da comunidade receptora, como já o dissemos anteriormente.
Na conjuntura atual, em que a degradação ambiental tem alcançado níveis alarmantes,
o turismo, tanto quanto qualquer outra atividade socioeconômica, também promove impactos
de ordem negativa, e isto é um fato. Baseando-se em dados da realidade vigente, muitos
pesquisadores da área têm demonstrado grandes preocupações com a questão da
sustentabilidade do empreendimento turístico, evidenciando-se problemáticas que envolvem
questões socioculturais, históricas, políticas, ideológicas e ambientais, com destaque para o
desgaste das paisagens que, em muitos casos, tem atingido proporções consideradas
irreversíveis.
De acordo com Ruschmann (op. cit.), a finalidade de um planejamento turístico deve
consistir em ordenar as ações humanas sobre o ambiente natural de maneira sustentável. A
constatação de que o turismo contemporâneo é um grande consumidor de natureza, tem
provocado grandes preocupações no âmbito ecológico, visto que os turistas acreditam que
pelo fato de entrarem em contato com a natureza encontrarão o equilíbrio perdido na
desgastante vida cotidiana, principalmente aqueles que vivem nos grandes centros urbanos.
Na tentativa de resguardar o meio ambiente e garantir a atratividade das destinações
turísticas, várias formas de turismo consideradas como alternativas têm surgido: ‘turismo
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brando’, ‘turismo responsável’, ‘turismo cultural’ ‘turismo ecológico’ ou ‘ecoturismo’, etc.
Entretanto, uma política de prevenção parece ser ainda a melhor opção. Do contrário, como
bem enuncia a sabedoria popular, “é melhor prevenir do que remediar”. Então, está mais do
que provado que é preciso incentivar políticas de prevenção antes mesmo de se pensar em
preservação. Para isso a educação ambiental, voltada para o estabelecimento de uma cultura
turística, por parte dos moradores e, por conseguinte, dos visitantes, pode ser a melhor e a
mais viável das soluções.
Quando falamos de atrativos, sejam eles naturais ou culturais, estamos considerando
que, antes mesmo de serem identificados, inclusive com a participação e aprovação da
comunidade receptora, é indispensável desenvolver estratégias que garantam a prevenção de
qualquer tipo de degradação. Conscientizar e despertar nas pessoas (habitantes locais, turistas,
viajantes, passantes) o desejo de proteger para manter, defender para resguardar um bem,
um patrimônio natural ou cultural, depende de atitudes aparentemente simples, mas que só
funcionam em um conjunto de ações que vise o bem de toda uma coletividade.
Assim, o propósito de se evitar e/ou se tentar reduzir os impactos negativos causados
ao meio ambiente, inclusive com os que são provenientes dos segmentos turísticos, contribui
para o estabelecimento de ações que podem contribuir para serem altamente compensatórias,
tendo em vista a promoção de um turismo próximo do que pode ser considerado como uma
atividade socioeconômica sustentável, tendo como objetivo maior assegurar uma melhor
qualidade de vida para todos, das populações presentes e futuras. Somente dessa forma o
turismo poderia subsidiar estratégias de preservação do meio ambiente como um todo.
Para tanto, faz-se necessário prover os incentivos indispensáveis à formatação dos
produtos turísticos, abalizados por uma infra-estrutura que seja capaz de atender à demanda,
de modo que se evite a sobrecarga de visitantes, cujos danos provocados aos atrativos naturais
e/ou culturais podem ser irreversíveis. Além disso, a falta de um planejamento turístico
adequado pode causar interferências no modus vivendi da população receptora de forma muito
agravante. A apropriação e o uso indevido de bens culturais, sejam materiais ou imateriais,
por exemplo, alteram os valores socioculturais e proporcionam a descaracterização dos
costumes e das tradições, o que compromete irremediavelmente a identidade cultural de um
lugar.
A partir dessas considerações gerais que envolvem questões culturais e ambientais,
voltadas para o segmento turístico da Região Sul-baiana, elegemos o Rio Cachoeira como
objeto de estudo desta pesquisa, enfocando a problemática da poluição de suas águas em
nuances socioculturais (inclusive históricas e literárias) e ambientais como tema de
averiguação da sustentabilidade dos segmentos turísticos de Ilhéus. Verificamos que a
constante e crescente ameaça de descaracterização da paisagem litorânea, relacionada à
poluição de suas praias, está intimamente relacionada ao aumento da quantidade de efluentes
não tratados, despejados diretamente ao longo de toda a bacia do Rio Cachoeira. Ao alcançar
a Baía de Pontal, onde o rio tem a sua foz, a poluição aquática se espalha ao longo do litoral
ilheense, tornando as praias impróprias tanto para as populações endógenas, como para os
seus visitantes. Desse modo, a problemática que se relaciona diretamente com o turismo local
diz respeito à degradação do meio ambiente como um todo, bem como da ausência de
planejamento turístico regional, temas que serão discutidos especialmente no segundo
capítulo. Em contrapartida, o estudo visa também a demonstrar a importância do rio
Cachoeira enquanto patrimônio cultural da região do ponto de vista histórico, conforme
veremos a seguir.
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2.2. Re-visitando a história: colonização portuguesa e subordinação cultural
A História do Brasil, dita oficial, iniciou-se na Bahia por conta de um percurso que
começou e se completou estrategicamente entre as margens de dois rios intercontinentais. Foi
da praia do Restelo, /*às margens do Tejo, que partiram as caravelas dos conquistadores
portugueses que tencionavam refazer a trilha marítima percorrida por Vasco da Gama em
direção às Índias. Foi a partir desse porto que os lusitanos cruzaram o Oceano Atlântico e
alcançaram a dita “ilha distante”, quando as naus portuguesas chegaram à costa brasileira e
ancoraram “em frente à boca de um rio”, dando início à colonização portuguesa no Brasil,
conforme o relato de Caminha,
E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra, indo os navios pequenos adiante por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, doze, nove braças até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras, em frente da boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos e dali avistamos homens que andavam pela praia, cerca de sete ou oito, segundo os navios pequenos disseram, por chegarem primeiro. Ali lançamos fora os batéis e esquifes. E vieram logo todos os Capitães das naus a esta nau do Capitão-mor e ali conversaram. E o Capitão mandou no batel em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E assim que ele começou a ir para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte (SIMÕES, H., 1999, p.115, grifos nossos)
Documento também conhecido como a “certidão de nascimento do Brasil”, a carta de
Caminha pode ser analisada do ponto de vista de um testemunho1, ou seja, como um relato
extremamente cuidadoso de alguém que presenciou, ouviu e/ou vivenciou os acontecimentos,
evidenciando, inclusive, em determinadas passagens, o olhar deslumbrado de um estrangeiro
em terras estranhas.
1 Vale aqui esclarecer o entendimento de testemunho como performances autoficcionais, porquanto no testemunho, “a estratégia de construir uma experiência vivida e de exibi-la, como representativa de práticas e usos socioculturais, é esgrimida, de forma mais ou menos consciente, como legitimação do discurso” (RAVETTI, 2001, p.10, grifos da autora). Daí, a possibilidade da discussão sobre a Carta Caminha poder ser considerada ficção (SIMÕES, 1995).
Apesar das descrições de deslumbramento feitas por Caminha, a ocupação portuguesa
em solo brasileiro, como é sabido, só se deu de fato por volta de 1530, com a implantação do
sistema das capitanias hereditárias, intentando-se resguardar toda a costa das invasões
francesas e holandesas, visto que as terras brasileiras já eram consideradas como patrimônio
lusitano.
Por certo, a constatação gradativa das riquezas ambientais presentes em território
brasileiro, aliada à promessa da existência de muito ouro e prata, determinou a nossa
colonização justamente quando as viagens de exploração marítima foram substituídas pelas
expedições terrestres, com objetivo de invadir e dominar os espaços considerados
privilegiados em recursos naturais. Nesse sentido, nossos rios serviram de caminho para as
expedições que, por sua vez, contribuíram para com a escravização dos índios, bem como
para a fundação de vilas e cidades. De modo semelhante, tais procedimentos também se
processaram aqui na Região Sul-baiana, onde o rio Cachoeira se tornou o rio-caminho, um
lugar de passagem para as incursões portuguesas, no período da implantação das Capitanias
Hereditárias, conforme registros oficiais da história local.
Em um contexto nacional, os procedimentos de colonização portuguesa
proporcionaram a formação de domínios coloniais que, ao serem presididos pela lógica
mercantilista e também religiosa, acabou determinando a subordinação sociocultural,
econômica e política dessas “novas terras”, dentre outras adversidades que foram e continuam
sendo mantidas até os nossos dias atuais.
A repercussão desses fatos contribuiu de forma espantosa para a transformação do
espaço físico e cultural das terras então colonizadas por dominação portuguesa. Disso
resultante, o processo de hibridação que abrange diversas mesclas interculturais (CANCLINI,
2000) entre as etnias envolvidas (brancas, indígenas e negras), apresenta até os dias atuais a
59
prevalência cultural portuguesa, devido à herança ideológica infundida e absorvida ao longo
de cinco séculos de imposição cultural.
Para compreender tais procedimentos, em acrescentamento ao discurso histórico
oficial, faz-se oportuno trazer à tona o pensamento de Ianni (2000) quando afirma que a
história dos povos está atravessada pela viagem, seja como realidade ou como metáfora.
Um texto clássico a esse respeito é a obra O Atlântico Negro (2001), na qual o
sociólogo inglês Paul Gilroy utiliza a imagem de um navio em movimento pelo espaço
Atlântico entre a Europa, América e África para refletir sobre a dinâmica cultural da diáspora
negra - intensamente marcada pela violência histórica da escravidão desde que o primeiro
navio negreiro saiu da África em destino às terras que lhes seriam sempre alheias, nunca deles
próprios. Dentre outros aspectos, a obra discute vários temas relacionados às questões étnicas
e aborda aspectos históricos, socioculturais, políticos e antropológicos dessas dolorosas
“passagens” para o negro africano, nesses caminhos marítimos. Todavia, causou-nos
estranhamento o fato de que apesar de o Brasil fazer parte desse espaço simbólico que autor
nomeou como Atlântico Negro, a realidade afro-brasileira, sobretudo a baiana, não foi
conectada ao tema proposto pelo referido autor.
Com base nessas considerações, observamos que, nesse caso, a origem do Brasil,
enquanto nação, está vinculada a uma viagem incursionada através do Atlântico. Desse modo,
este espaço marítimo passa a representar aquilo que Bhabha (1998) designa como in-between,
isto é, o local onde se processam e se articulam as diferenças culturais em trânsito. É, pois,
nesse sentido que o Atlântico Sul passa a representar o caminho, o lugar de passagem, o local
dos hibridismos culturais, onde emerge, em momentos de transformações históricas,
articulados pelas diferenças entre as mais diversas e distantes culturas, o ponto de intersecção
ou de entrecruzamentos culturais (BHABHA, op. cit.).
No Brasil, a sobreposição cultural dos conquistadores europeus junto aos povos
africanos - em seu doloroso processo diaspórico -, somados ainda a dos povos sul-americanos
- que também na sua enorme diversidade contribuíram para a formatação de uma “nova
nação” -, não implicou em torná-la necessariamente homogênea. Ao contrário, os preceitos
hierarquizantes de assimilação cultural, de absorção de uma cultura por outra, imposta pela
força bruta da aculturação que se respaldou na miscigenação e no aniquilamento desses povos
tidos como “inferiores”, agora estão sendo substituídos gradativamente pelos preceitos de
integração, onde se procedem a preservação identitária e a reivindicatória dos grupos étnicos
submetidos a constantes confrontações em sua dinâmica cultural. Isso, quando não anulados
completamente no processo civilizatório.
O Brasil, durante a sua formação colonial, esteve submetido a uma somatória de
confrontos entre as mais diversas identidades que, num jogo de amalgamentos culturais,
resultou, desde os primeiros séculos de ocupação e exploração, em verdadeiras ilhas
socioculturais, cujo formato dissonante parece permanecer até os dias atuais. Segundo Bosi
(1994, p.11), essas “ilhas sociais (Bahia, Pernambuco, Minas, Rio de Janeiro, São Paulo)
deram à Colônia a fisionomia de um arquipélago cultural. E não só no facies geográfico.”
Essas “ilhas sociais”, simbolicamente instituídas por fatores geográficos,
socioeconômicos e históricos, prevalecem até os dias atuais, contudo não se prendem a
fronteiras territoriais demarcadas linearmente de estado para estado, como Bosi parece supor.
Como é sabido, as fronteiras, as demarcações territoriais e culturais são bem mais relativas do
que parece supor (BORDIEU, 2002). A prova disso é que o estado da Bahia, em sua extensa
dimensão territorial, apresenta peculiaridades ambientais e culturais que se diferenciam
localmente de região para região, dentro do próprio estado. Tais peculiaridades, provenientes
de um conjunto de ações humanas localizadas, são o que constituem o patrimônio cultural, dando
61
feições diferenciadas de lugar para lugar. Em contrapartida, são essas mesmas diferenças que
promovem a diversidade cultural humana - elemento bastante apreciado na qualificação de
um produto turístico.
O fato é que essas diferenças acabaram por criar um país marcadamente multicultural,
o que tem contribuído de forma decisiva como mais um suporte de atração turística a ser
explorado em cada região, em cada localidade, a exemplo da singularidade cultural que a
Região Sul-baiana apresenta, entre tantas outras localidades do Estado. São peculiaridades
históricas e culturais que foram edificadas com base nas relações interétnicas, exercidas pela
presença dominadora do europeu e a conseqüente escravização indígena, além da vinda dos
escravos negros africanos que, por sua vez, tiveram papel fundamental durante os ciclos
econômicos de expansão colonialista, especialmente o da cana-de-açúcar e do ouro, bem
como no início da implantação da lavoura cacaueira sul-baiana.
Em seu artigo Multiculturalismo Intelectual Fernandez (2005, s/p), discute noções
em relação ao termo, que consideramos pertinentes a este estudo. Segundo esse autor o
multiculturalismo, em uma conotação positiva,
refere-se à coexistência enriquecedora de diversos pontos de vista, interpretações, visões, atitudes, provenientes de diferentes bagagens culturais [em que] as várias óticas devem ser consideradas em pé de igualdade [onde] não tem sentido falar de contradição, só de diferença. [...] O multiculturalismo apregoa uma visão caleidoscópica da vida e da fertilidade do espírito humano, na qual cada indivíduo transcende o marco estreito da sua própria formação cultural e é capaz de ver, sentir e interpretar por meio de outras apreciações culturais. O modelo humano resultante é tolerante, compreensivo, amplo, sensível e fundamentalmente rico: a capacidade interpretativa, de observação e até emotiva, se multiplica.
Nesse entendimento, de respeito às diferenças, de compreender as particularidades
culturais, fruto de revisionistas e críticos culturalistas da contemporaneidade, torna-se
oportuno enfatizar a discussão dos fenômenos estéticos e filosóficos a partir de uma
perspectiva pós-colonial, inclusive, visando à contestação da hegemonia cultural, embora não
se encerrando nela. Assim sendo, ter noção das diferenças é ter respeito às necessidades
particulares de cada grupo que reivindica o seu reconhecimento, enquanto uma entidade
marcada por uma história e uma visão de mundo que lhe é própria; isso contribui para a
permanência da diversidade cultural entre os grupos humanos, num permanente exercício de
remoção das hierarquias étnicas criadas no perverso âmbito da colonização.
Diante do que foi exposto, há uma necessidade em se rever o foco pelo qual a
memória histórica e cultural da antiga Capitania de São Jorge dos Ilhéus foi escrita, tendo em
vista um melhor entendimento da constituição identitária da Região Sul-baiana que não se
restringe apenas ao ciclo do cacau, apesar de tão amplamente divulgada pela literatura
regional.
Com efeito, retomar a história dita tradicional significa tomar conhecimento de uma
perspectiva que foi privilegiada no passado. No entanto, a recuperação e a re-visão do passado
no tempo-espaço ocorrido, mesmo prevalecendo uma visão hegemônica, pode contribuir para
re-dimensionar e esclarecer as transformações socioculturais pelas quais a região esteve
submetida e, dessa forma, re-focar o presente, visando a incluir uma parcela maior de atores
sociais, nesse processo civilizatório.
2.3. Rio-caminho: mais um foco da história
Em se retomando a História local, dados oficias informam que foi por volta de 1536
que a foz do rio Cachoeira se tornou o caminho de passagem para as primeiras incursões
européias nas terras ilheenses. Com efeito, as águas do rio Cachoeira testemunharam a
chegada da esquadra do castelhano Francisco Romero, quando alcançou o estuário hoje
conhecido como Baía de Pontal. Movido pela necessidade de conhecer e tomar posse das
63
terras doadas por D. João III a Jorge de Figueredo Correia, a esquadra de Romero, após
aportar na ilha de Tinharé e fundar a vila no Morro de São Paulo (localizado ao sul de
Salvador, capital do Estado), optou por procurar um “local mais apropriado, apresentando
defesas naturais, grande fertilidade do solo e boa aguada” (BARBOSA, 1997, p. 26).
Nesse período, o vastíssimo lote da Capitania de São Jorge dos Ilhéus ocupava a
região central do Brasil e media cerca de cinqüenta léguas de largura em todas as direções,
localizando-se entre a Capitania da Bahia e a Capitania de Porto Seguro, tendo dois rios como
limites: o Jequiriçá, ao sul; e o rio Grande ou Jequitinhonha, ao norte (CAMPOS, 1981).
Trilhando o caminho marítimo até chegar à Baía de Pontal, o lugar escolhido para
sediar a capitania passou a ser a península abrigada por quatro ilhéus, pois oferecia uma
posição estrategicamente perfeita para a defesa de previsíveis invasões estrangeiras, já que era
um local resguardado pelo mar e pelos rios, dentre os quais o rio Cachoeira. Por outro lado,
era também necessário promover o povoamento rápido da costa, pois, como era de interesse
da metrópole, ficaria mais fácil resguardar extensões cada vez maiores do litoral. Sob esses
aspectos, o local escolhido oferecia ainda grandes vantagens para o desenvolvimento
comercial, já que podiam contar com um porto para o escoamento do pau-brasil, da cana-de-
açúcar e, mais tarde, dos produtos de subsistência como a mandioca cultivada pelos índios e a
carne proveniente do sertão das Minas Gerais, que eram enviados para as capitanias vizinhas.
A região, densamente coberta por florestas, era povoada pelos Tupiniquins, mais para
a costa, e pelos temidos aimorés, em seu interior, o que configurou alguns problemas para a
penetração dos colonos naquelas terras. Conta-se que foi com o auxílio dos Tupiniquins que
Romero deu início à exploração do pau-brasil, cujos troncos eram transportados ao longo dos
rios e, posteriormente, para a plantação da cana-de-açúcar justamente nas margens do rio
Cachoeira, onde o cultivo se desenvolveu consideravelmente (CAMPOS, 1981; VINHÁES,
2001).
Foi, portanto, naquele local, cercado pela abundância das águas, no cume do atual
outeiro de São Sebastião, que a Vila de São Jorge dos Ilhéus foi fundada, cujas magníficas
terras, banhadas pelo rio Cachoeira, ficavam situadas bem
no centro da orla marítima da capitania [...] um local que apresentava excelentes condições estratégicas e para o comércio, num promontório formado pelo mar e por um rio navegável, apresentando pelagoso e abrigado fundeadouro, vigiados os dois pontais da sua barra por sendos morros. Além disso, a região circunjacente dava aparências de grande fertilidade, tanta a exuberância da vegetação que a revestia, sendo ao mesmo tempo abundante de águas correntes. Assim ficaria magnificamente ubicada a vila. (CAMPOS, op.cit., p. 11-12, grifos nossos).
Não há dúvida que, no âmbito econômico, as boas condições geográficas de solo, de
clima e a grande quantidade de rios existentes no local foram fundamentais para a construção
e o desenvolvimento dos engenhos e da Capitania como um todo. Segundo Barros (1915, p.
33), “toda a Capitania era abundantíssima de mananciais, sendo as chuvas mui freqüentes; e o
terreno, montuoso e coberto de vegetação vigorosa, prometia a esse distrito, quando bem
cultivado, toda a sorte de riqueza e de prosperidade”. Certamente que foi com esse intuito que
Romero escolheu aquele sítio para o estabelecimento da sede da capitania.
Nas incursões feitas pelas armadas locais, a título de exploração e aldeamento dos
índios, o rio Cachoeira tornou-se o rio-caminho, um dos principais canais de penetração para
desbravar a região, inclusive fazendo-se cenário de terríveis massacres provocados pelos
donatários e ouvidores da Capitania contra os nativos Tupiniquins e Aimorés. Ao processo de
conquista, seguiu-se a crescente ocupação com intensa devastação das florestas e aldeamento
dos índios. Nesse sentido, a fundação de vilas e arraiais ao longo ao longo do rio Cachoeira,
primou pela abertura de rotas de penetração, visando a implantar e desenvolver o comércio
entre as vilas, tendo o porto de Ilhéus como escoadouro dos produtos vindos do sertão.
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Nesse sentido, o rio Cachoeira foi palco de muitos fatos históricos importantes e, por
isso, que devem ser retomados e re-interpretados com a finalidade de valorizá-lo enquanto
patrimônio histórico da região. São fatos que ilustram a nossa História desde o período de
colonização, no século XVI, passando por períodos de decadência econômica da Capitania até
o período de implantação da lavoura cacaueira, no século XIX, que acabou por estabelecer
uma identidade regional em função dos denominados “frutos de ouro”.
É fato que o rio Cachoeira também registrou a passagem de célebres figuras que
integram a história nacional, a exemplo dos três primeiros governadores Gerais, Tomé de
Souza, Duarte da Costa e Men de Sá. Esse último, então, se tornara dono da sesmaria do
Engenho de Santana, situada às margens do Rio de Engenho2. Também o rico empreendedor
florentino Lucas Giraldes, donos de seis engenhos, tornando-se mais tarde o terceiro donatário
da Capitania (BARBOSA, 1997).
Segundo Barros (1915), o rio Cachoeira começou a ser explorado, em sua parte mais
navegável, isto é, no trecho entre Ilhéus e o Banco da Vitória, por volta de 1553. Naquela
época, o Padre Luiz Soares de Araújo, referindo-se ao rio, escreveu a El-Rei, dizendo que
A vila possuía várias ruas: do porto, nova matriz, de São Sebastião, da cadeia, do Colégio, de São Bento, e uma praça; travessas da matriz, de João de Sousa, e de Inácio Jorge. Era o único núcleo de população da freguesia, porém às margens do rio Cachoeira, - cujas fontes ainda não estavam descobertas, dizendo apenas que procedia das minas, - havia moradores nos lugares denominados Cupipe, Maria Jape, São João, Tanguape, Tabuná, Pasto, Matendipe, Camurupi, Bando do Furtado e Pirataquicé. Navegavam-no sumacas, barcas, lanchas e canoas. [...] Noutro tributário do Cachoeira, o Fundão, de curso mui breve, havia ainda moradores nos sítios chamos Jaguaripe, Jacaraipe e São Francisco. Tanto no Sant’Ana como no Fundão trafegavam canoas, barcos, e lanchas de pescaria. (CAMPOS, 1981, p. 35, grifos nossos)
2 Ainda hoje podem ser observadas as ruínas do referido engenho de açúcar, que prosperou no início da colonização às margens da Ribeira de Sant’Ana. Naquele local, bastante aprazível para visitações, conhecido como povoado do Rio de Engenho, localizado a 20 km ao sul da atual Ilhéus, encontra-se a Capela de Santana, considerada a terceira mais antiga do Brasil, construída no século XVI, em 1537, pelos jesuítas, tombada pelo Serviço de Patrimônio, Artístico e Cultural do Brasil.
A incumbência de catequização indígena e educação religiosa dos colonos, inclusive
nos locais próximos ao rio Cachoeira, coube aos padres Manoel da Nóbrega, Leonardo Nunes
e Diogo Jâcome, os primeiros obreiros da Companhia de Jesus, em terras ilheenses. Estes
lutaram pela manutenção da fé e do poder da Igreja na Colônia, assim como os demais
jesuítas. Segundo Campos (op. cit. p. 31), naquele período, era comum os padres saírem a
“percorrer as ruas do vilarejo tangendo uma campainha, e disciplinando-se pelos que estavam
em pecado mortal, pela conversão dos índios, e pelas almas do Purgatório, conforme
publicavam no biedomadário e cruento passeio expiatório”
Também outros catequistas como Antonio Pires, João de Azpilcueta Navarro, Vicente
Rodrigues e outros se ocupavam dos índios que viviam nas margens do rio cachoeira, no seu
referido trecho navegável (SILVEIRA, 2002, p. 3).
Personalidades conhecidas da História nacional, como o sertanista Francisco Bruza
Espinosa, bandeirante que, em meados de 1553, embrenhou-se nas matas à procura de pepitas
de ouro, juntamente com o Padre Manoel da Nóbrega e sua equipe, em missão jesuítica,
trilharam caminhos pelo rio Cachoeira. Segundo Silveira (op. cit, p. 5), após uma intensa
caminhada de quatro dias, Espinoza e os mencionados jesuítas “chegaram na margem de um
rio de águas muito claras que correndo entre enormes pedras escuras formavam pequenas
cachoeiras”.
Naquele lugar, as árvores eram ferradas em forma de cruz, para facilitar na
identificação dos transeuntes. Foi assim que nasceu a Villa das Árvores Ferradas, ponto de
pouso para as expedições que avançavam em direção ao sertão de Minas Gerais. As
expedições que saíam de Ilhéus passavam pela Vila de Nossa Senhora da Escada das
Olivenças (atual Olivença), no sentido leste-oeste; seguiam o curso dos rios, até chegar
naquele sítio. Por muito tempo a Vila de Ferradas foi utilizada como rota dos vaqueiros que
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traziam gado do sertão mineiro para Ilhéus, intensificando o comércio em todo o seu percurso,
nas proximidades do rio Cachoeira. Nascedouro do município de Itabuna, Ferradas compõe
hoje um dos bairros periféricos dessa cidade que fica em torno de 30 km da costa ilheense.
A partir de 1570, é sabido que muitas entradas e bandeiras, utilizadas como formas de
penetração para o interior, passaram pelo rio-caminho em busca de pepitas de ouro e da prata
que, segundo as notícias que se espalhavam, brotavam com facilidade nas barrancas dos rios.
A busca pelas pepitas de ouro foi tão intensa nesse período que foi retomada e ressignificada
até mesmo um século depois sob o pretexto de existir uma Cidade Encantada, localizada
entre as águas dos rios Una do sul, Una-Mirim, Cachoeira e Pardo3.
Em 1595, o rio-caminho deu passagem também aos franceses. Considerados como
hereges, os franceses saquearam e devastaram a pequena vila de Ilhéus. O rio Cachoeira
abrigou também as tropas holandesas da esquadra do almirante Lichthardt que
desembarcaram no Pontal, em 1638 para saquear a vila,
Fez limpa em várias caixas de açúcar e em muitos toros de pau-brasil, colocados nas barrancas do rio. Não tardou a reação. Indignados, os habitantes se alçaram e enfrentaram o inimigo. Durante muitas horas foi renhido o desforço contra os invasores e atroz carnificina. Atônitos diante das sucessivas baixas, foram obrigados a recolher-se aos seus barcos e velejar para o Norte (BARROS, 1915, p. 62).
Ainda por volta desse período, o rio Cachoeira foi palco de diversos outros episódios
históricos, envolvendo desditosos sacrifícios humanos, particularmente dos indígenas.
Segundo Silveira (op. cit.), o capitão português João Gonçalves da Costa, que muito utilizou o
rio Cachoeira para fazer as suas incursões em direção ao sertão de Conquista (atual Vitória da
Conquista), foi o que mais se destacou pela as suas ações devastadoras contra os aimorés.
3 É possível que a Cidade Encantada não passe de uma re-visitação ao imaginário dos índios mexicanos que contavam aos aventureiros espanhóis sobre a existência do El Dorado, a Cidade Perdida dos Incas toda construída em ouro. O acrescentamento de detalhes fantásticos e mirabolantes, por conta da imaginação desses aventureiros, deve ter exercido um grande fascínio sobre os europeus de modo a induzi-los a conhecer a América e explorá-la (Vide El Dorado, 2005, s/p).
Também o sertanista João Amaro, contratado pelo Visconde de Barbacena, chefiando uma
entrada, exerceu “cruel matança de gueréns e pataxós praticadas ao longo das barrancas do
rio” (SILVEIRA, 2002, p. 76).
Esses episódios sangrentos causaram muitas reações nos jesuítas que intensificaram
ações no sentido de proteger os índios através da catequese, o que tornou possível o
surgimento de missões nos povoados e aldeias instaladas às margens do rio Cachoeira.
Do ponto de vista econômico, este período, que antecedeu a implantação da lavoura
cacaueira na região Sul-baiana, foi marcado por um grande marasmo comercial em virtude da
decadência dos engenhos de cana-de-açúcar. De acordo com FREITAS e PARAÍSO (2001),
as maiores dificuldades foram atribuídas aos constantes avanços dos colonos europeus em
áreas indígenas e, como ficou evidenciado, houve muitos massacres. Além disso, o
aldeamento e a catequização jesuítica dos nativos que sobreviveram contribuíram de forma
incisiva para o processo de aculturação dos mesmos.
De acordo com Adonias Filho, o ciclo do cacau iniciou-se efetivamente em 1746, com
o desbravamento e a conquista de terras, sendo que o seu cultivo só se desenvolveu porque
teve um solo e um clima organicamente apropriados para ele. Como se sabe, o Theobroma
cacao, por ser uma planta que precisa de sombra e umidade, adaptou-se perfeitamente à
região, devido à boa distribuição das chuvas e à presença maciça da Mata Atlântica.
Aí, em todo esse tempo, nas funduras das grandes florestas, em todo o que foi uma guerra contra a natureza, gerou-se uma violenta saga humana no ventre mesmo da selva tropical. Saga que, fermentando matéria artística e ficcional, concorreu para configurar o que realmente é um complexo de cultura regional. O cacau, à proporção que altera a paisagem, a empurrar e diminuir a selva, a abrir fazendas, a estabelecer um sistema de comércio, conforma culturalmente uma região (AGUIAR FILHO, 1976, p. 14).
No decurso de uma lavoura que irrompeu vigorosamente, a dita “civilização
cacaueira” se projetou e se configurou. A lavoura cacaueira engendrou novos hábitos,
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costumes, o comportamento sociocultural do homem sul-baiano. Em termos simbólicos, o
homem grapiúna4 organizou o seu mundo e passou a ver o cacau como o “fruto de ouro”.
Conforme Castoriadis (1982), tudo o que é instituído culturalmente encontra-se
indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Este tem por essência o imaginário que, por
sua vez, faz gerar normas, valores, crenças, tradições, etc.,que constituem as identidades,
podendo facilmente ser flagrados, conforme as atitudes cotidianas de um povo. Assim, de
uma forma simbólica, o El Dourado passou a existir, provocando migrações mais acentuadas
no período de consolidação da lavoura cacaueira.
Através das narrativas literárias de diversos autores regionais, com ênfase nas obras de
Jorge Amado e Adonias Filho que percorreram o mundo, o cacau acabou por engendrar o
perfil cultural da região, tornando a Região Sul-baiana conhecida em todo o mundo em
virtude do lucro gerado pela lavoura, refletindo tanto no interior, com a criação e
emancipação de cidades, como na capital baiana.
Com efeito, a implantação da lavoura cacaueira trouxe inúmeros aventureiros, dos
quais os sergipanos, bem como diversos grupos estrangeiros que aqui chegaram com o intuito
de enriquecimento rápido. Naturalmente que, por uma questão de sobrevivência e de conforto,
esses grupos instalavam-se ao longo dos rios. Com o passar do tempo, foram se formando as
colônias que, sucessivamente, se transformaram em imensas fazendas particulares. Outras
ainda, de maior extensão, passaram progressivamente de vilas às cidades, como é o caso de
Itabuna que se desenvolveu às margens do rio Cachoeira, a partir de Vila de Ferradas.
A título de ilustração, foi no outrora vilarejo de Ferradas, na Fazenda Auricídia, em
1912, que nasceu o célebre filho de desbravadores de terras, o escritor Jorge Amado. Em sua
4 Termo popularizado por Jorge Amado em Gabriela cravo e canela (1958) para designar os grandes plantadores de cacau. Grapiúna vem do tupi: guirá - gra por aglutinação = pássaro + pi = branco + una = preto => pássaro preto e branco. (Euclides Neto, 1997, p76)
extensa obra sobre a saga do cacau, Amado conta como os desbravadores se tornaram os
lendários “coronéis do cacau”. Importante ressaltar, aqui, principalmente do ponto de vista
antropológico, o quanto as obras de Jorge têm contribuído para ampliar o conhecimento sobre
a história e a cultura Sul-baiana.
Mas o desbravamento de terras não foi executado de forma fácil. Em um contexto
geral, muitos desses desbravadores chegavam por via marítima, a bordo de pequenos navios.
Muitos enfrentaram grandes obstáculos para adentrar as imensas e densas florestas. Isto,
naturalmente, exigia muita coragem desses aventureiros. Por um lado a presença ameaçadora
dos índios - os verdadeiros donos e, por isso mesmo, defensores do lugar. Dou outro, as feras
(onças, caititus, capivara, raposa, macacos, etc.), a grande quantidade de répteis existentes
(jacaré e inúmeros tipos de serpentes peçonhentas) e, como se não bastasse tudo isso,
achavam-se sujeitos às mais diversas epidemias, sendo a febre tifóide a mais temida. Por
outro lado, as condições ambientais, a riqueza da mata e a diversidade da fauna possibilitavam
caça e pesca abundantes, garantindo-lhes a sobrevivência e, com muita luta, riquezas.
No início da implantação da lavoura (até 1860), as áreas ocupadas pelos cacaueiros
estavam restritas aos vales dos rios, devido à necessidade de adaptação da árvore aos terrenos
e do grau maior de umidade. Além disso, os rios eram aproveitados como vias naturais de
escoamento dos frutos das roças, que eram transportados nos lombos dos burros, trazidos
pelos tropeiros5, até o porto fluvial do Banco da Vitória. De lá seguiam pelo rio Cachoeira até
Ilhéus. Em seguida, eram enviados para Salvador, de onde o cacau era exportado para a
Europa (FREITAS e PARAÍSO, op.cit.).
Com a implantação da lavoura cacaueira, muitas povoações surgiram e progrediram
como pouso de tropas em função do comércio dos chamados “frutos de ouro”. O Banco da
5 Pessoas que conduziam o cacau mole ou seco nos burros (EUCLIDES NETO, 1997, p.111)
71
Vitória foi uma dessas povoações que conheceu um surto de progresso no período, servindo
como primeiro porto fluvial, um local de muitos encontros interculturais.
O rio Cachoeira também determinou o direcionamento das estradas construídas na
Região. No período que se seguiu à expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, o
Marquês de Barbacena, um senhor de engenho em Ilhéus, lançou o projeto de abrir uma
estrada ligando Ilhéus a Vitória da Conquista e, por conseguinte, alcançar Minas Gerais. Este
traçado passava, nas proximidades do rio Cachoeira, na altura da Vila de Ferradas. Com a
abertura desta estrada, surgiram os primeiros comerciantes, passando, mais tarde, a ser
administrada pelos jesuítas.
Segundo FREITAS e PARAÍSO (2001), a estrada era vista como promissora já que
acompanhava o percurso dos rios Pardo e Cachoeira, sendo abundante em águas e vários
aldeamentos, fatores considerados essenciais para oferecer boas condições de apoio aos
viajantes, inclusive como locais de pouso para os tropeiros
Segundo Campos (Op.cit., p 192), o capuchinho Frei Ludovico de Liorne, que se fixou
na Vila de Ferradas por volta de 1816, enfrentou muitos problemas quando o Conde dos
Arcos, o então governador, resolveu “mudar os índios gueréns aldeados em Almada para um
ponto da estrada de Ilhéus ao sertão da Ressaca, que então se abria na margem do rio
Cachoeira, [num] lugar denominado Ferradas, a oito léguas de Ilhéus e doze de Almada”.
Outras visitas ilustres, trazidas pelas águas do Atlântico, chegaram a Ilhéus, como o
naturalista e também príncipe Maximiliano Alexandre Felipe de Wied-Neuwied, oitavo na
linha sucessória que tinha o seu principado em Neuwied no Reno, em 1815. Motivado em
pesquisar os costumes e artefatos indígenas, além de fósseis e petroglifos, o príncipe
percorreu as florestas da região, passando pelo rio Cachoeira, indo até os sertões de
Conquista. (SILVEIRA, 2002)
Para conhecer a Mata Atlântica de perto, o rio Cachoeira se configurou, mais uma vez,
em um caminho que permitiu, em 1817, aos bavaros naturalistas Johann Baptiste von Spix e
Carl Friedrich Phillipp von Martius adentrar as florestas em seu famoso itinerário
investigatório que envolveu todo o Brasil de norte a sul, oportunizando, assim, pesquisas
sobre botânica, etnografia, fitogeografia, lingüística, etc, cujas experiências encontram-se
relatadas em Viagem pelo Brasil (SPIX E VON MARTIUS, 2005), uma obra que certamente
é referência para os estudos sobre as condições naturais do Brasil da época.
Em 1860, foi a vez do Arquiduque Maximiliano d’Áustria, irmão mais novo de
Francisco José I, Imperador da Áustria-Hungria e Rei da Boêmia. Segundo relatos
(CULTURAS LUSÓFONAS, 2004), o arquiduque deixou registrada a sua passagem pelas
terras de Ilhéus em um livro intitulado Mato Virgem, uma obra manuscrita, ainda sem
tradução para o português. Conta-se que o arquiduque se hospedou na Fazenda Vitória,
situada à margem direita do rio Cachoeira, do proprietário suíço Barão Ferdinand von Steiger-
Munssingen, localizada nas proximidades do Banco da Vitória onde fez boas caçadas. A
beleza do local impressionou o arquiduque naquela época. Todavia, ainda hoje, apesar da
crescente degradação ambiental daquela localidade, a paisagem impressiona aos transeuntes
que podem desfrutá-la, ainda que rapidamente, ao passar pela movimentada rodovia
Ilhéus/Itabuna, na BA-415.
As visitas dos Maximilianos a Ilhéus foram retomadas e re-configuradas sob a forma
de um evento turístico cultural, promovido pela Universidade do Mar e da Mata –
73
MARAMATA6, que acontece anualmente, durante a última semana do mês de janeiro. O
evento, Canoagem Rumo ao Mato Virgem, é evocativo às viagens dos dois naturalistas e
conta com o apoio da Marinha. Nesse evento são reunidos inúmeros pescadores em suas
rudimentares embarcações (canoas, pequenos barcos e jangadas) que saem do Morro de
Pernambuco, local onde fica sediada a Maramata, passam pela Baía de Pontal, seguindo pelo
estuário de Coroa Grande e depois pelo rio Cachoeira até o Banco da Vitória, trecho onde o
rio é navegável. Nesse percurso, podem ser vistas as ilhas fluviais Mutucujê e Frade, a Serra
da Onça, a Fazenda Vitória e a Ladeira do Príncipe.
Pelo valor histórico, bem como pela beleza paisagística, riqueza cultural de seus
habitantes, este roteiro, se devidamente formatado, tomando como base os princípios
sustentabilidade ambiental (natural e cultural), poderia ser explorado em favor do turismo
local. Entretanto, obstáculos de ordem ecológica, com ênfase na poluição e degradação do rio
Cachoeira bem como do desmatamento das matas, além dos problemas de ausência de política
pública básica e a falta de infra-estrutura, são fatores que impedem a apropriação desse espaço
para a exploração turística.
Nesse propósito, o capítulo que se segue visa a discutir a degradação e a poluição do
rio Cachoeira em suas implicações socioambientais e turísticas, relacionadas ao turismo
litorâneo ilheense, que tem em suas praias os seus maiores atrativos.
6 Trata-se de uma Fundação instituída e mantida pelo município de Ilhéus, cuja finalidade é produzir,
sistematizar e difundir conhecimentos na área de recursos ambientais, visando à sua preservação e utilização auto-sustentável através de estudos, pesquisas, cursos, palestras, seminários, oficinas de trabalho, produção de material informativo e também através eventos de massa, dentre outros. Vide www.maramata.org.br
3. DE RIO-PROVEDOR A RIO-GRANDE-LIXEIRA
Projetos que dependem muito de áreas de grande beleza podem tornar-se inviáveis se degradarem o meio ambiente.
Cooper et al
Do meu crescimento do rio eu peguei experiência... eu avisava que não sujasse a água.
Sou criado no Banco da Vitória. Fico mais bem no rio do que em casa.
Eu queria que esse rio tivesse mais uma oportunidade de ficar limpo...! Osmário Bonfim de Oliveira (Seu Tum)
75
3.1. Degradação e poluição dos rios: uma realidade global que se reproduz localmente
A existência de tudo o que é vivo em nosso planeta depende de um fluxo contínuo de
água. Componente fundamental da dinâmica da natureza, a água impulsiona todos os ciclos
ecológicos, de modo que sustenta a criação.
Por conta disso, os rios constituem-se em margens do habitat humano desde as mais
remotas civilizações. Por uma questão de sobrevivência e também pela própria comodidade, a
espécie humana sempre buscou viver próximo aos rios. As razões para esse procedimento
milenar são bastante elementares, uma vez que o homem aprendeu a lidar com as águas dos
rios em seu favor, dando-lhes diversas funções, dentre as quais a de rio-provedor, fonte
imprescindível de água doce, além de ser uma poderosa fonte de subsistência e também de
riquezas.
Tanto no campo físico, através da pesca, da fertilidade de suas margens e irrigação de
terras para o plantio, como no campo do imaginário, o rio-provedor surge como símbolo de
fertilidade, de renovação e, também, de morte. Sendo assim, o mesmo rio que alimenta,
refrigera, banha, transporta e é usado em muitas opções de lazer, é o mesmo que faz
sociedades inteiras padecerem. Como se sabe, muitos povos não foram capazes de fazer frente
às flutuações climáticas impostas pelas águas, ante as devastadoras inundações, bem como,
nos prolongados períodos de secas. Dessa forma, o rio que é provedor passa, por vezes, por
circunstâncias descaracterizadoras do seu indicativo mais relevante, seja por conta de
intempéries climáticas ou por adversidades da natureza, situações circunstanciais e
temporárias.
Assim, os rios têm fundamental importância histórica para o desenvolvimento da
humanidade, isto é, para a sua fixação em terras, viabilizando a criação de núcleos estáveis
que deram origem às primeiras cidades. Impulsionados por melhores condições de habitação e
de sobrevivência, diferentes povos da antiguidade buscaram regiões férteis e úmidas, ou seja,
próximas aos rios, para desenvolverem as suas civilizações, como o antigo Egito, que
floresceu às margens do Nilo e a Mesopotâmia que surgiu entre os rios Tigre e Eufrates. Essas
civilizações milenares, dentre tantas outras, tiveram as suas estruturas culturais, sociais,
históricas, políticas e econômicas subordinadas aos regimes de seus respectivos rios.
Como se sabe, a distribuição e a disponibilidade espacial de água doce no mundo é
muito desigual. Sendo assim, o volume de água existente em cada região, sob a forma de rios,
lagos ou aqüíferos, acaba determinando inúmeros aspectos de organização cultural das
sociedades humanas. Sob esse aspecto, é possível afirmar que a insuficiência e ou a falta de
água potável em determinados locais do globo tenha motivado a dispersão de muitos povos
pelo mundo em busca de lugares com melhores condições de sobrevivência.
Nessa busca incessante por melhor qualidade de vida, a intimidade crescente com as
águas dos rios, seguramente, tornou possível vencer muitos temores, muitos obstáculos e foi
assim que o homem aprendeu a dominar os recursos hídricos com tanta inventividade.
Construiu diques, aquedutos e canais de irrigação que permitiram lidar com as enchentes,
transporte de água e secas prolongadas. Com isso, passou a irrigar terras desertas, ampliando
as áreas de cultivo e, por conseguinte, reduziu o problema de desabastecimento agrícola.
Desse modo, a condição de rio-provedor enquanto fonte de subsistência não ficou restrita à
aqüicultura e à pesca extrativista. Tais conquistas foram fundamentais para o estabelecimento
e prosperidade de diversos grupos humanos em sua trajetória civilizacional.
77
Certamente que a formação de cidades, seguindo as trilhas das águas, facilitou
diversos aspectos da vida humana, contribuindo, inclusive, para a formação de um ambiente
bastante favorável ao avanço sociocultural e tecnológico. Ao longo da história, o
estabelecimento de cidades promoveu o crescimento populacional e determinou maior
demanda de produtos e mercadorias. Com o aumento da produção agrícola, o comércio se
expandiu, exigindo maior rapidez nos sistemas de produção, o qual acabou impulsionando a
revolução industrial que, através de uma economia densamente extrativa, conduziu a uma
acelerada degradação do meio ambiente em escala global. Também nesse processo, os rios
aparecem como provedores, porque foi a partir de seu potencial é que foram criadas as rodas
hidráulicas, a máquina a vapor, a usina hidrelétrica, etc.
Conforme as atividades humanas foram se ampliando, tornando-se mais complexas e
diversificadas, outros usos foram sendo impostos aos rios, todavia, sem qualquer preocupação
com a sustentabilidade ambiental, com a preservação desses recursos, seja por
desconhecimento ou por descaso. Além disso, a elevada ocupação humana nas proximidades
dos rios, contribuiu muito para ampliar os impactos que passaram a interferir
progressivamente no ciclo hidrológico7, por conta do desmatamento excessivo e a da
urbanização desordenada.
Assim, a poluição aquática começou com a deposição dos dejetos humanos e de
animais ao longo dos mananciais, dos leitos dos rios e lagos e, ainda, por infiltração nos
lençóis d’água. É justamente neste ponto que os rios passaram a exercer funções
concomitantes, no mínimo, contraditórias: à função primordial de rio-provedor foi acrescida a
função adversa de rio-grande-lixeira. Ao contaminar os rios com a deposição de esgotos e os
7No ciclo hidrológico as águas dos oceanos e dos continentes se evaporam e se condensam sob a forma de nuvens, voltando à Terra por precipitação, reabastecendo esses mesmos aqüíferos, além de manter, por infiltração, o nível dos lençóis freáticos durante o ciclo. A redução do volume de água aproveitável da Terra ocorre devido à poluição e à contaminação contínua das águas, ocasionando problemas no meio ambiente como um todo.
mais variados tipos de lixo, tanto nas encostas como dentro deles, o homem colocou em
perigo a própria vida.
Segundo Dorst (1973), o agravamento da poluição das águas, deve-se a fatores
quantitativos e qualitativos. No primeiro caso, o crescimento demográfico, sobretudo, nos
centros urbanos, se destaca tendo em vista o aumento proporcional de dejetos orgânicos, uma
vez que as cidades passaram a devolver um volume cada vez maior de águas usadas ou
incompletamente depuradas através dos esgotos e de usos industriais. Assim, a devolução dos
resíduos da vida coletiva é um problema tão antigo quanto o próprio homem. Desde as mais
antigas civilizações a atitude humana em relação aos detritos permanece a mesma: despejá-los
na natureza, sem racionalizar as conseqüências desse comportamento. No plano qualitativo –
embora estes fatores não estejam dissociados -, o que ocorre é que com o evento da revolução
industrial, a produção de lixo inorgânico, menos suscetíveis de reabsorção, aumentou
vertiginosamente, tornando esses impactos cada vez mais desastrosos. Deste modo, os
resíduos químicos, vêm se acumulando e, conseqüentemente, envenenando a atmosfera, a
terra e as águas, transformando os rios em grandes-lixeiras, repercutindo nos mares e nos
oceanos.
Nesta dimensão de análise, importa ressaltar que, embora abundantes em nosso
planeta, as águas que cobrem 3/4 da superfície terrestre estão nos mares e oceanos, de modo
que são impróprias para o consumo humano. Em contrapartida, quase toda a água doce do
mundo está concentrada nas geleiras, secundariamente, nos lençóis freáticos e só uma fração
mínima está disponível ao homem e aos outros organismos sob a forma de rios, lagos, lagoas,
bem como, na umidade do solo e na atmosfera. Nesse particular, o Brasil aparece com grande
vantagem, pois detém 13% das reservas de água doce do Planeta, todavia, com elevado índice
de poluição dos rios e mananciais.
79
É certo que não faltam referências bibliográficas quando se trata deste assunto. No
entanto, questões que envolvem a poluição das águas dos rios e a desigual distribuição de
água doce no planeta nunca estiveram tanto em voga, face o risco iminente de sua
esgotabilidade. Inúmeras são as previsões relativas à escassez da água, não obstante, o volume
total de água no planeta permaneça o mesmo desde a sua criação, em virtude do ciclo
hidrológico. No entanto, essa resposta pode estar no mau uso e também do mau
gerenciamento dos recursos hídricos, por não se respeitar, por exemplo, os limites
estabelecidos pela natureza em seu permanente exercício de reconstituição.
O nível de degradação dos ambientes aquáticos é tão devastador que os ambientalistas
têm se mostrado excessivamente apreensivos com a situação atual do planeta. O tema tem
sido alvo de numerosas conferências, debates e campanhas regionais, nacionais e
internacionais, a exemplo do III Fórum Mundial da Água, realizado em Kyoto, em Março de
2003 e a Cúpula da Água realizada em Johanesburgo em agosto de 2002, o IV Diálogo Inter
Americano de Recursos Hídricos e a Conferência de Bonn sobre Água Doce, em dezembro de
2001. Em 2004, a CNBB, lançou a Campanha da Fraternidade com o tema Fraternidade e
água, com o lema Água, fonte de vida, visando a conscientizar a sociedade de que a água é
uma necessidade de todos os seres vivos e um direito da pessoa humana.
De uma maneira geral, todos esses eventos e campanhas têm ressaltado, em seu
conjunto, a necessidade de se reformular o gerenciamento dos recursos hídricos, visando o
abastecimento e a produção agrícola e industrial. Nesse sentido, a água é imprescindível para
a redução da pobreza e o desenvolvimento sustentável. Já chegamos a um ponto em que já se
faz imperativo encontrar meios de depuração das águas utilizadas, de transformar os detritos
tóxicos resultantes das indústrias e demais atividades humanas. Todavia, como esses
processos são muitos dispendiosos, ao homem parece mais fácil fingir que não está vendo os
devires que esses detritos, lançados indevidamente nos rios, são capazes de sobrecarregar a
natureza e inviabilizar a vida no planeta. Como se sabe, dependendo do nível de poluição, o
seu tratamento, tanto em termos técnicos quanto financeiros pode vir a ser impraticável. Daí a
importância da prevenção.
De acordo com a "Previsão Ambiental Global 3", do Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente (PNUMA), apenas metade da população mundial tem acesso à água
potável, sendo que
Metade dos rios do mundo estão seriamente devastados ou poluídos e aproximadamente 60% dos 227 maiores rios do planeta foram grave ou moderadamente comprometidos por represas ou outras obras de engenharia, 80 países sofrem com escassez de água e 40% da população mundial sofre, hoje, com a falta de água (JARDIM-LIMA, 2003).
Diante de dados tão significativos, o que está em jogo nos dias atuais é, além da
quantidade, a qualidade desse finito elemento que já é considerado escasso em muitas regiões
do planeta. Em se tratando de deficiência de água potável, a questão que logo se impõe é o
seu aspecto social, porque, além de viabilizar a sobrevivência humana, a água proporciona
dignidade à vida dos indivíduos através do atendimento de necessidades básicas, como
alimentação, higiene e saneamento.
Se um rio deixa de ser provedor e passa a ser utilizado como uma grande-lixeira –
como está acontecendo com tantos rios no mundo e, especificamente, no Rio Cachoeira - suas
águas tornam-se inviáveis para o consumo humano e industrial. Sem água de qualidade, a
integridade e o funcionamento dos ecossistemas aquáticos, juntamente com o sistema
terrestre, ficam inteiramente comprometidos. Ressaltando-se que a diversidade da fauna e
flora das águas continentais está inteiramente relacionada com os mecanismos de
funcionamento dos rios e demais fontes de água doce, pois a dinâmica desses ecossistemas
depende de uma série de fatores que são interdependentes.
81
Conflitos gerados a partir desta realidade têm tomado grandes proporções de miséria
social em todo o mundo. A indigência hidrológica é uma forma de pobreza cruel, muito difícil
de se solucionar, pois gera fome e doenças, distancia o homem da condição de cidadão e do
conhecimento ecológico. Aqui, a sustentabilidade ambiental está sujeita à sustentabilidade
social e vice-versa, porque são indissociáveis. Embora essa afirmação pareça redundante,
torna-se incompreensível as razões pelas quais se pressupõe uma indiferença, ou até mesmo,
uma passividade generalizada, ante à necessidade de preservação dos ambientes aquáticos,
sobretudo quando se sabe que leis jurídicas foram criadas em prol de sua proteção.
Nessa perspectiva, o documento intitulado Declaração Universal dos Direitos da
Água, redigido pela ONU, em 1992, propõe nos itens 7 e 8, respectivamente
A água não deve ser desperdiçada, nem poluída, nem envenenada. De maneira geral, sua utilização deve ser feita com consciência e discernimento para que não se chegue a uma situação de esgotamento ou de deterioração da qualidade das reservas atualmente disponíveis.
A utilização da água implica em respeito à lei. Sua proteção constitui uma obrigação jurídica para todo homem ou grupo social que a utiliza. Esta questão não deve ser ignorada nem pelo homem nem pelo Estado.
Com efeito, a degradante condição de rio-grande-lixeira se concretiza e se avoluma à
medida que as cidades se desenvolvem, já que há um aumento crescente de resíduos tóxicos
resultantes das diversas atividades humanas. Trata-se, portanto, de um equívoco histórico que
vem se reproduzindo e se agravando muito rapidamente, apesar do risco iminente de escassez
de água potável em nível global (até mesmo em regiões tão abundantes em rios, como a
região Sul-baiana), porquanto os níveis de poluição e contaminação8 dos rios vêm atingindo
patamares realmente preocupantes em nossos dias.
De um modo geral, o descompromisso com a natureza é tão flagrante, que não
precisamos ir muito longe para se obter um exemplo desse tipo de comportamento 8 Sobre contaminação por agentes poluentes do Rio Cachoeira, Vide PINHO, A.G. Estudo da Qualidade das Águas do Rio Cachoeira - Região Sul da Bahia. Ilhéus, 2001 -PRODEMA/UESC (Dissertação de Mestrado).
generalizado, como é o caso do rio Cachoeira, uma unidade socioambiental de grande valor
cultural para toda a Região Cacaueira do Sul da Bahia. De forma bastante evidenciada, o rio
tem sofrido exaustivamente, ao longo das duas últimas décadas, os maus tratos que lhe impôs
à condição de rio-grande-lixeira.
Se analisarmos com maior cuidado essas questões, nada fictícias (embora o rio
Cachoeira sustente o imaginário grapiúna de diversos escritores e contadores de causos),
veremos que a poluição das águas dos rios e mananciais tem um efeito devastador na vida de
todos: homens, animais e plantas. Desse modo, não há como se desvencilhar de uma situação
que já é caótica para muita gente, seja pela ausência de água, seja pela sua qualidade e
também pelo nível de sua contaminação. Como os rios são águas em movimento, por onde
eles passam levam consigo o que lhes compõe a massa líquida. As propriedades químicas e
físicas da água contribuem para que isso aconteça, já que ela é considerada como um solvente
universal, devido a sua alta capacidade de dissolver uma grande diversidade de compostos,
orgânicos e inorgânicos.
A situação é ainda mais grave quando a drenagem do rio é do tipo exorréica, como o
rio Cachoeira que, em seu trajeto até alcançar o litoral ilheense, recolhe em seu leito toda a
sujeira depositada em suas águas ao longo das cidades que fazem parte do seu percurso (Fig.
02).
Figura 02: Drenagem exorréica do Rio Cachoeira – Itabuna Coroa Grande,Ilhéus-BA Fonte: www.cdbrasil.cnp.embrapa.br/ba
83
Desse modo, a contaminação das águas se espalha, gerando grandes desequilíbrios
ecológicos que se repercutem de forma incisiva, tanto no âmbito sociocultural como no
econômico. No caso de Ilhéus, há um enorme comprometimento no litoral, devido a poluição
e do escoamento de detritos nas praias, as quais constituem um de seus maiores atrativos
turísticos, conforme podemos observar na Fig. 03.
Elemento dos mais importantes para a manutenção da vida, hoje, mais do que nunca, o
homem depende da água para viver, pois com o desenvolvimento industrial e tecnológico,
cada vez mais surgem novas utilidades para esse finito elemento que possibilita diversas
atividades humanas, inclusive em função do lazer. Sendo assim, convém mencionar que em se
tratando de turismo, ao longo da história, os ambientes aquáticos são muitos valorizados como
fonte de entretenimento e, por isso mesmo, precisam estar em boas condições de preservação.
No caso do rio Cachoeira, há uma necessidade iminente de sua revitalização. Afinal, não há
mais como se pensar em se projetar uma destinação turística sem associá-la aos princípios de
sustentabilidade ambiental.
Figura 03: Vista panorâmica de Ilhéus Fonte: www.tcviagens.com.br/ ios.htm
Numa perspectiva turístico-ambiental - grande filão que vem sendo explorado em todo
o mundo com a denominação de eco-turismo - o município de Ilhéus se sobressai pelo
patrimônio natural acentuadamente aquático que possui. Potencial que poderia ser mais bem
aproveitado para atividades turísticas, envolvendo práticas esportivas ecológicas,
principalmente as náuticas. Entretanto, os impactos causados pela poluição das águas do rio
Cachoeira, somadas às dos rios Almada e Fundão, que compõe o estuário de Coroa Grande,
impedem essa possibilidade de exploração turística (Fig. 04).
Conforme podemos observar nas figuras 05 e 06, o estuário de Coroa Grande é
composto de áreas de grande apelo visual, apesar dos altos índices de degradação: poluição de
suas águas e desmatamento em seu entorno. Tais procedimentos têm desencadeado grandes
desequilíbrios ecológicos naquela área. Um espaço que, se revitalizado, poderia ser utilizado
para um turismo diferenciado, levando-se em conta a diversidade dos ecossistemas ali
existentes (que ainda resistem), bem como pelo valor histórico que possui para a Região Sul-
baiana.
Figura 04: Vista panorâmica de Ilhéus – Foz do Rio Cachoeira Fonte: www.uesc.br/intercambiouniversitario/ilhéus
85
Segundo Oliveira (2000), o patrimônio natural de uma localidade constitui-se em
matéria-prima, ainda bruta, do turismo, pois reúne os elementos criados pela natureza que, por
suas peculiaridades, podem ser utilizados como atrativos turísticos. Desse modo, faz-se imprescindível
preservar justamente aquilo que transformou o local em uma atração. Em Ilhéus, é notório que a sua
principal matéria-prima, o meio ambiente aquático, não tem recebido os devidos cuidados para
transformá-lo em um patrimônio turístico.
Figura 05: Áreas de manguezais – Estuário de Coroa Grande Fonte: CKS
Figura 06: Canoagem Rumo ao Mato Virgem - Evento anual realizado pela Universidade do Mar e da Mata - Maramata Fonte: CKS
Nessa ótica, as imagens majestosas do litoral Ilheense, divulgadas pela mídia, cujo
visual é composto pela Mata Atlântica remanescente, um mar azul de águas (que um dia
foram) transparentes, margeado por quilômetros de belas praias de areias claras, densos
coqueirais, grandes áreas de manguezais, rios, cachoeiras, lagoas, enseadas, encostas, ilhas,
etc, dando uma impressão de paraíso terrestre, não condiz com a realidade vigente do ponto
de vista ecológico, pois apesar de toda a sua potencialidade ambiental o nível de poluição das
águas é bastante elevado.9. Isso, certamente frustra o turista que deseja ultrapassar a
contemplação da paisagem, conhecer de perto o local e, certamente, vivenciar as delícias
propaladas (Fig. 07).
Desse modo, se o meio ambiente se constitui na principal matéria–prima de uma
destinação turística (RUSCHMANN, 1997), é mais do que evidente a necessidade de sua
preservação, tanto para as populações endógenas que o integram como para os visitantes que
desejam usufruí-lo de forma sustentável, isto é, sem degradar os recursos que o tornaram
9 Vide ASSIS, M. V. G. Impacto do despejo de esgotos domésticos e percepção ambiental. Estudo de caso: estuário do Rio Cachoeira, Ilhéus, BA, 2001 (Monografia especialização em Oceanografia –UESC).
Figura 07: Vista aérea do Porto de Ilhéus - Estuário de Coroa Grande, Fonte: http://www.transportes.gov.br/bit/portos/ilheus/poilheus.htm
87
possível. No entanto, a realidade circundante em Ilhéus contraria totalmente tais princípios,
como podemos observar nas Figs. 08 e 09, a seguir.
A falta de planejamento turístico em Ilhéus, com base nos princípios de
sustentabilidade ecológica, é uma realidade flagrante por diversas razões: poluição das águas
dos rios e balneários, a exemplo da instância hidromineral de Olivença10; a conseqüente
10 Vide DÓRIA, M. A. A, Olivença: uma estância hidromineral? Ilhéus, 2003. CULTURA E TURISMO -UESC (dissertação de mestrado).
Figura 09: Esgoto sem tratamento desaguando na Praia do Marciano, Ilhéus-BA
Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas -UESC
Figura 08: Córrego poluído que deságua diretamente nas praias ilheenses Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas -UESC
poluição das praias e pelo excesso de lixo doméstico descartado nos rios e mananciais;
desmatamento predatório crescente da Mata Atlântica, até mesmo em áreas de preservação;
depredação da fauna aquática, inclusive com o risco iminente de escassez e contaminação de
peixes e crustáceos, principalmente dos siris e caranguejos, assim como da fauna terrestre.
Um outro fator que contribui de forma incisiva para o aumento da poluição das águas
do estuário de Coroa Grande e, por conseguinte, das praias ilheenses, é o aterramento dos
manguezais naquelas proximidades, além de se constituir em uma grave ameaça ao meio
ambiente como um todo. Um caso a ser citado é o da “Rua do Mosquito”, localizada ao lado
do terminal rodoviário de Ilhéus (Figs. 10 e 11). Naquele local vivem inúmeras famílias na
mais absoluta indigência social. As instalações desordenadas dos casebres geram
desmatamento descontrolado e o aumento na produção de lixo e de efluentes domésticos que
são depositados nas proximidades do estuário de Coroa Grande. É, pois, a partir dessas
constatações que concluímos que o referido estuário se transformou em uma grande-lixeira, já
que se tornou em um verdadeiro repositório de toda espécie de detritos.
Importante ainda ressaltar que os manguezais são ecossistemas de alta produtividade,
pois compõem a base de uma cadeia alimentar que envolve inúmeros organismos, inclusive o
homem que fica no extremo desta cadeia. De acordo com Gomes (2005, s/p.), “a fauna
associada ao manguezal consiste de dois grupos: os que o habitam permanentemente em seu
ciclo vital (moluscos, crustáceos) e aqueles que o freqüentam periodicamente para abrigo,
desova e alimentação na fase de crescimento como os peixes e os mamíferos”.
Resultantes do mau uso e do mau gerenciamento humano, todos esses problemas
acham-se entrelaçados e contribuem sobremaneira para o agravamento da miséria social no e
do município. Todavia, dentre todos problema abordados, não há dúvida de que a
contaminação e a escassez das águas é a mais preocupante, já que o homem não é o único
89
usuário, pois os ecossistemas pedem por água mais limpa para a fauna aquática, aves e demais
animais. Sem água de qualidade a biodiversidade fica comprometida.
Nesse sentido, embora seja óbvio, vale enfatizar que uma destinação turística não
condiz com miséria social, tampouco com o meio ambiente, sua principal matéria-prima, em
estado crescente de deterioração, de completo descaso por parte das autoridades relacionadas
Figura 10: Invasão dos manguezais – “Rua do Mosquito”, localizada ao lado do terminal Rodoviário de Ilhéus Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas - UESC )
Figura 11: Moradores da rua do mosquito; esgoto a céu aberto que cai diretamente no estuário de Coroa Grande. Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas - UESC
ao setor de gerenciamento dos recursos hídricos, bem como dos organismos públicos e
privados responsáveis pela preservação do meio ambiente. Não é mais possível dissimular
uma realidade que já se faz evidente a tantos anos.
Contudo, em se tratando da problemática ambiental e a sua relação com o turismo, o
que acontece em Ilhéus (e cidades circunvizinhas) não é muito diferente de outros lugares do
mundo, pois este é um comportamento mundial. Inclusive em locais consagrados enquanto
destinações turísticas que vem se prejudicando com o alto índice de poluição de suas águas.
Em Veneza, por exemplo, uma cidade de grande apelo turístico mundial, a poluição aquática e
atmosférica levou a Itália a declarar, em finais de 2001, emergência ambiental. Como se não
bastasse, o aumento do fluxo de embarcações em seus famosos canais está provocando a
erosão de importantes edifícios históricos. Da mesma forma, no Egito, o rio Nilo - berço de
uma das mais antigas civilizações humanas - e na Índia, o rio Ganges - sagrado para os
hindus, encontram-se igualmente poluídos, devido aos resíduos orgânicos e industriais não
tratados, procedentes de hotéis, hospitais e sistemas de esgotos que são despejados em seus
respectivos leitos.
Embora não haja fundamento racional que justifique o comportamento humano em
continuar depositando nos rios toda a espécie de imundícies, transformando-os literalmente
em grandes-lixeiras há milênios, apesar do risco iminente de desabastecimento de água doce
em nível global, apesar de todas as leis e artigos jurídicos de proteção às águas em vigor no
mundo inteiro que prevêem multas e punições para os órgãos públicos e privados que
exerçam mau gerenciamento dos recursos hídricos ou que poluem os rios e mananciais, como
compreender a persistente e irrefletida atitude humana de manter e continuar poluindo os rios?
Como compreender que aos rios, outrora provedores, fontes de vida e de sustentação deste
planeta, seja dado o fatídico destino de se tornarem em rios-grandes-lixeiras?
91
Talvez a visível abundância das águas tenha criado no homem, desde as épocas mais
remotas, a falsa idéia de sua inesgotabilidade. Juízo falso e comprometedor pelo qual nós,
destruímos as nossas próprias condições de vida, o nosso próprio habitat, tendo em vista os
altos índices de poluição do planeta, com ênfase no envenenamento das águas dos rios. A
realidade circundante tem demonstrado a vulnerabilidade a que se acha submetido o meio
ambiente: um desequilíbrio ecológico crescente no Brasil e no mundo e que se repercute de
forma tão desastrosa em nossa região, tendo no rio Cachoeira, um caso clássico a ser
analisado.
A Declaração de Estocolmo de 1972 afirma que o homem é, ao mesmo tempo, criatura
e criador do seu ambiente e isto lhe dá a devida responsabilidade pelas alterações boas e más
que tem provocado em seu habitat. Seria muito bom e sensato se essa liberdade de ação fosse
usada para o bem comum de todos. A natureza, em toda a sua grandeza agradeceria.
Conforme o princípio 2 da referida declaração,
Os recursos naturais da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna e, especialmente, amostras representativas dos ecossistemas naturais, devem ser salvaguardadas no interesse das gerações presentes e futuras, mediante planejamento e ou gestão cuidadosa, como apropriado (In: PELEGRINI, 1997, p. 176).
Efetuadas todas essas considerações, mostrando, inclusive, as implicações sociais que
advém da problemática da degradação e poluição das águas do rio Cachoeira, analisaremos
em seguida como esses assuntos estão inseridos na realidade diária das populações ribeirinhas
carentes que moram no Banco da Vitória, no município de Ilhéus, localizado na rodovia daBA
415, no km 8. Com base no testemunho (MOREIRAS, 2001; RAVETTI, 2001), constituídos
pelos relatos dos pescadores locais faremos uma avaliação mais detalhada sobre os danos
socioambientais vivenciados por estes representantes da comunidade, selecionados conforme
o grau de intimidade e relação de sobrevivência e convivência com o rio Cachoeira.
3.2. O rio Cachoeira e as suas implicações socioambientais: aspectos das comunidades
ribeirinhas do Banco da Vitória
A Bacia do Rio Cachoeira é formada pelo próprio Cachoeira e pelos rios Colônia e
Salgado e está localizada na parte leste da região sudeste do sul da Bahia, entre as
coordenadas 14°42'/15°20' de latitude S e 39º01'/40°09' W de Greenwich. Encontra-se
limitada ao norte pelas bacias dos rios Almada e de Contas; ao sul, pelas bacias do rio Una; a
oeste pela bacia do rio Pardo; e a leste, pelo Oceano Atlântico (Fig. 12).
Figura 12: Mapa Hidrológico- Município de Ilhéus Fonte : ANDRADE (2003)
93
O rio Cachoeira nasce a 260 km do litoral, na serra do Itaraca, no município de Vitória
da Conquista e sua área de drenagem é de aproximadamente 4600 km. Ao longo de sua
trajetória, o Cachoeira desempenha o imprescindível papel de rio-provedor, provendo, de forma
direta, água e alimento às populações mais carentes, ou ainda, dando suporte à pecuária, agricultura e uso industrial. Suas águas
banham vários municípios que nasceram nas proximidades de suas margens: Firmino Alves,
Itaju do Colônia, Itapetinga, Santa Cruz da Vitória, Itororó, Floresta Azul, Ibicaraí, Jussari,
Itapé e, finalmente, Itabuna até chegar em Ilhéus, desaguando no Atlântico (Fig. 13).
A extensão de cobertura e de uso dessa rede hidrográfica denota a sua relevância
histórica e socioambiental para toda a Região Sul-baiana que apresenta como principais
atividades econômicas a agropecuária, a indústria, o comércio e, de forma ainda incipiente, o
turismo, com maior ênfase nas áreas litorâneas.
Figura 13: Municípios que integram a Bacia Hidrográfica do Rio Cachoeira Fonte: ANDRADE (2003)
Apesar de se tratar de um patrimônio natural e cultural da referida região, o outrora rio
de águas transparentes e de expressiva piscosidade tornou-se, de forma mais acentuada nas
duas últimas décadas, em uma grande-lixeira, ou seja, um enorme recipiente para toda
espécie de efluentes. Ao longo da referida bacia é possível observar a sua crescente
degradação, já que toda a rede fluvial é utilizada para o lançamento indevido de esgotos in
natura e depósito de lixo doméstico, hospitalar e industrial. Em Itabuna e Ilhéus, o índice de
poluição das é ainda mais crítico, tendo em vista ao maior contingente populacional existente
nesses dois municípios, os quais somados totalizam cerca de 450 mil habitantes11.
Em conjunto, todos esses detritos despejados no rio contribuem para a proliferação de
bactérias e fungos que, por sua vez, desencadeiam o consumo elevado do oxigênio diluído nas
águas, agravando ainda mais a poluição do rio Cachoeira. Conhecido como eutrofização, este
processo decorre do enriquecimento de nutrientes fornecidos pelos esgotos sem tratamento e
contribui efetivamente para a proliferação descontrolada de macrófitas aquáticas, sendo as
mais proeminentes as do tipo Eichhornia crassipes, comumente conhecidas como baronesas
(Fig. 14).
11 A contingência populacional e o índice de poluição são considerados diretamente proporcional quando se verifica a ausência ou deficiência de saneamento básico o qual envolvem a construção de redes de esgoto com sistema de tratamento, abastecimento de água e principalmente a remoção do lixo. Um problema que denuncia a ineficiência e o descaso de políticas públicas em favor do meio ambiente e, por conseguinte, do cidadão. Desse modo, o problema do rio Cachoeira não é de um município apenas, mas de toda a bacia que o compõe.
Figura 14: Eichhornia crassipes -baronesas Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas - UESC
95
Em baixas densidades, a Eichhornia crassipes é considerada benéfica, pois contribui
para a depuração da água, tendo em vista sua eficiência em absorver nutrientes e metais
pesados do ambiente (FIDELMAN, 2004). Por outro lado, o seu crescimento excessivo causa
inúmeros impactos, visto que acarretam o detrimento gradativo da fauna e da flora, atuando
ainda como verdadeiros criadouros de mosquitos que se reproduzem na base de suas folhas.
Retratando o ápice do crescimento das baronesas, as figuras 15 e 16 evidenciam a dimensão
do problema.
Figura 15: Ponte Miguel Calmon sobre o rio Cachoeira – Itabuna/BA Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas - UESC
Figura 16: Multiplicação desordenada de macrófitas aquáticas Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas - UESC
Em Itabuna, o rio Cachoeira fica praticamente todo encoberto pelas baronesas. Como a
água está sempre suja e empoçada é comum se observar uma enormidade de peixes
agonizantes na superfície em busca de oxigênio. O agravamento dessa situação ocasiona, por
vezes, expressiva mortandade dos peixes, conforme podemos observar na Fig. 17.
Durante os períodos de vazão, sobretudo quando ocorrem as enchentes, o Cachoeira
lança toneladas de baronesas em toda a zona costeira da região, cobrindo extensos trechos de
praias, inviabilizando, assim, as atividades turísticas e de recreação nas áreas litorâneas (Fig.
18).
Figura 18: Grande massa de macrófitas em destino ao litoral ilheense - Barragem Rio Cachoeira – Itabuna /BA Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas - UESC
Figura 17: Mortandade de peixes do rio Cachoeira, zona urbana de Itabuna Fonte: JORNAL AGORA, dez. de 2003
97
Conforme Fidelman (2004), a ocorrência de macrófitas nas praias da região, sobretudo
no verão, período de maior escoamento do Rio Cachoeira, implica na redução de tempo de
estada do turista, devido às condições impróprias de utilização, resultando em grandes
prejuízos ao setor turístico e demais setores associados. No entanto, o que agrava realmente a
situação é a quantidade de lixo que vem junto com as baronesas, conforme podemos observar
nas figs. 19 e 20.
Figura 19: Praia do Malhado – trecho encoberto por lixo e macrófitas Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas - UESC
Figura 20: Praia do Malhado – Ilhéus -BA Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas - UESC
Apesar do nome, o rio não possui nenhuma cachoeira importante ao longo de seu
curso. É navegável por canoas e jangadas em trechos descontínuos, devido ao afloramento de
granito e gnaisse que tornam o seu leito encachoeirado (SILVEIRA, 2002). É, portanto, um
rio de leito rochoso que apresenta acentuada declividade e diversas corredeiras até às
proximidades do Banco da Vitória, em Ilhéus, onde a maré invade-o por vários quilômetros,
permitindo a navegação por barcos de médio porte até aquela localidade. As figuras 21 e 22
mostram o local preferido das lavadeiras no Salobrinho e Banco da Vitória, respectivamente.
Nos primórdios da civilização grapiúna, o rio era conhecido como Cachoeyra da Villa,
depois se tornou Cachoeiras do Itaúna que na linguagem tupi significa “pedra preta”.
Segundo Silveira (Op. cit.), o rio inspirou o nome da cidade de Itabuna, tendo em vista que o
município nasceu e cresceu ao longo de suas margens, tornando-se a quarta cidade mais
importante economicamente do Estado em função da lavoura cacaueira. Assim, o rio
Cachoeira se constitui em seu maior referencial paisagístico, atravessando-a numa extensão
média de 12 km de área urbana (Fig. 23).
Figura 21: Lavadeiras do Salobrinho- Ilhéus/BA Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas
Figura 22: Lavadeiras do Banco da Vitória – Ilhéus/BA Fonte: CKS
Figura: 16 Fonte:
99
Conforme a divulgação em jornais locais, a situação atual do rio Cachoeira é bastante
grave, tanto em termos de qualidade como de quantidade de água. Conforme Calasans (2004),
coordenador do Núcleo de Bacias Hidrográficas do Rio Cachoeira - UESC, “é muito esgoto
pra pouca água”. A redução do volume de suas águas tem se tornado incompatível com o
lançamento cada vez maior de efluentes não tratados ao longo da bacia (Fig. 24). Além disso,
com a deficiência dos serviços de limpeza urbana, muito lixo é levado pelas enxurradas para
dentro do rio, transformando-o, literalmente, em uma grande-lixeira.
Figura 23: Vista parcial da cidade de Itabuna Fonte: CKS
Figura 24: Esgoto sobre o rio Cachoeira – Itabuna/BA Fonte: CKS
Nessa perspectiva, o problema de poluição das águas rio Cachoeira repercute
negativamente de forma incisiva no plano socioeconômico da região como um todo. Se a sua
degradação é sinônimo de prejuízo para toda a sociedade, sobretudo no âmbito ecológico, o
problema de sua degradação precisa de uma solução, porque embora visivelmente condenado
pelas ações predatórias sofridas ao longo de toda a bacia, o rio Cachoeira ainda resiste.
Alimentado pelas chuvas, que ocorrem com maior intensidade durante a primavera e o
verão, é justamente aí que as suas águas se renovam e o rio cresce de forma surpreendente,
modificando completamente a paisagem. Em Itabuna, é muito comum, durante esses períodos,
juntar uma grande multidão em torno do rio para apreciar a força de sua correnteza. E, assim,
o rio passa a ser o comentário de todos diante da ameaça que se processa.
Por diversas vezes o itabunense foi surpreendido com grandes enchentes, quase
sempre catastróficas, com destaque para as de 1914 e de 1967 pelo teor de destruição causado,
deixando parte das cidades ribeirinhas submersas. O que ocorre é que quando chove muito nas
cabeceiras, as temidas “trombas d’água”, o rio acaba ultrapassando as suas margens,
provocando grandes inundações. Afinal, é o rio Cachoeira que drena as chuvas de toda a
região, desde as suas nascentes sertanejas até desaguar em Ilhéus. As figuras 25 e 26 dão a
dimensão do impacto e os estragos causados pelas enchentes do Cachoeira nos anos de 1967 e
2002.
Figura 25: Grande enchente de 1967 Fonte: www.itabuna-ba.com.br
Figura 26: Grande enchente de 2002 Fonte: www.itabuna-ba.com.br
101
De acordo com Rocha (2003), o itabunense tem uma relação topofílica e, ao mesmo
tempo, topofóbica com o rio Cachoeira. Ou seja, ao rio são associados sentimentos e
significados conflitantes, pois ao ultrapassar a condição física de rio-provedor, o Cachoeira
ocupa, no fluir de suas águas, o imaginário de suas populações e se transforma no rio-símbolo
de fertilidade, renovação e esperança, mas também, de destruição e morte, fazendo brotar aos
borbotões os poemas, os contos, os causos, as crendices e também as superstições.
Diante das memoráveis enchentes protagonizadas pelo rio, é possível observar a
perplexidade humana ante o espetáculo que a natureza promove, da força indomável das
águas que tudo carrega: animais mortos, móveis, árvores arrancadas pela raiz, moitas imensas
de baronesas, caixotes, enfim, coisas que ficaram inadvertidamente ao alcance das águas,
inclusive pessoas que se afogaram tentando salvar objetos pessoais, ou por não resistir ao
fascínio das águas. Quando o rio Cachoeira se agiganta, segue espalhando a sua força
higiênica pelo caminho, em direção ao litoral. Invade a rodovia, fazendas, isola pessoas, deixa
os ribeirinhos estarrecidos. Ao longo da rodovia Ilhéus/Itabuna, as águas ganham força e, por
vezes, impedem o trânsito entre as duas cidades. A força das águas modifica completamente a
paisagem, conforme as figuras 27 e 28.
Figura 28: Fazenda Monte Alto – km 17 Ilhéus Fonte: Núcleo de Bacias Hidrográficas -UESC
Figura 27: Fazenda Monte Alto – Km 17BA 415 Fonte CKS
Conforme o relato de Seu Ozias Antério dos Santos, pescador há mais de 29 anos,
estabelecido no do Banco da Vitória, ver a enchente chegar, deixou-o estarrecido.
Na enchente de 67 eu tava com 21 anos. Lembro como se fosse agora. Eu me lembro desde quando chegou a primeira cabeçada d’água. A chuva começou no dia 23 de dezembro. Passou a noite toda chovendo. No dia 25, no Natal, eu tava no meio do rio e vi quando chegou a primeira pancada... vem assim... como uma onda do mar, pegando tudo, levando tudo que encontrar pela frente: árvore, bicho, gente, tudo... se você tiver no rio cê tem que correr porque é muito, muito rápido. Num instante alaga tudo e a tendência é muito assustadora. Inda mais agora que vem com muito bagaceira. A gente procura logo se sair senão ela leva tudo mesmo!
No diálogo encetado sobre as enchentes, Seu Ozias rememora o que o seu pai lhe
contou sobre a grande enchente de 1914.
Na de 14 eu nem sonhava ainda... meu pai contou que a de 14 foi ainda a maior que teve. Foi a que abriu esse ribeirão. A de 80 foi grande, mas nada se compara a essas duas. Tá perto de vim outra... com certeza, nós já tamo até esperando... Olha, minha comadre! Eu gosto mesmo é quando o rio tá cheio.
Quando o rio enche...! Dificilmente num morre uma pessoa. Aqui o povo acredita que quando tem enchente, enquanto o rio não leva uma pessoa, ele não pára de encher. Isso é uma realidade!
Entretanto, nos períodos de estiagem, o Cachoeira parece ‘clamar’ por água de tão
seco, no dizer dos ribeirinhos, pois é muito sofrimento para os peixes e também para eles
próprios que ficam sem a principal fonte de subsistência, além do mau cheiro que o rio exala
devido ao excesso de lixo atirado tanto nas margens como dentro do rio (Fig. 29).
Figura 29: Rio Cachoeira – Rodovia Ilhéus/Itabuna, km 14 Fonte: CKS
103
Segundo Seu Miraldo, o rio Cachoeira já está morto, uma vez que o esgoto cai direto
no rio e mesmo pagando IPTU, o que considera um absurdo, não há rede de tratamento,
desabafa. Mas apesar da afirmação ressentida, nota-se que há esperança em vê-lo recuperado:
O rio ainda dá para ficar bem, embora as pessoas joguem lixo nas margens mesmo tendo coleta de lixo. É ignorância. Pessoa que tem filho, tem neto... o lixo transmite doença! E o poder público não entra com ação nenhuma. É só fazer propaganda para conscientizar.
O perigo maior é a água que é contaminada. Os esgotos de Itabuna que cai no rio... restos do matadouro é jogado no rio! Não tem fiscalização. A churrascaria de um amigo nosso foi fechada por causa do esgoto a céu aberto.
D. Enedina, uma senhora de 92 anos, nascida e criada no Banco da Vitória, pela idade
e pela relação afetiva e de sobrevivência com o rio se constitui em uma especial testemunha
das alterações sofridas pelo rio Cachoeira ao longo de todos esses anos. Ela conta que
trabalhou muito na roça, mas como o dinheiro era pouco, para ajudar o marido a criar os oito
filhos, ela pescava e lavava de ganho no Cachoeira. A fartura era tanta que “se pegava pitu até
de mão”, isto é, sem qualquer utensílio de pesca como rede, jereré, tarrafa ou munzuá. Depois,
era só vender na pista (na rodovia Ilhéus/Itabuna)
O rio hoje tá muito mudado. Naquele tempo era um rio bom. Tinha muito peixe. Hoje tá escasso pra pessoa ganhar o pão. Água fedendo, as pessoas adoece, muita poluição, muito esgoto sendo despejado... isso entristece. Antigamente todo mundo ia lavar roupa no rio. Ficou perigoso por causa da sujeira e dos malandro.
Não há mais como mudar o rio. O esgoto cai direto no rio...
É em torno dessas agressões ecológicas que o rio Cachoeira, outrora fonte provedora
de vida e de sustentação, passou, devido ao mau uso de suas águas, à conseqüente condição de
rio-grande-lixeira. Todavia, para as carentes comunidades ribeirinhas, o rio Cachoeira é ainda
o rio-provedor, a principal fonte de subsistência de inúmeras famílias: alimentação, trabalho,
higiene e lazer, apesar das más condições de suas águas. É ainda o rio que gera vidas e
mantém as sobrevidas de humildes pescadores, lavadeiras, areeiros, trabalhadores rurais e
vendedores ambulantes. Embora se sintam consternados, esses grupos sociais são movidos
por um sentimento de esperança pela recuperação do rio. Sentimento que se revela na voz
eloqüente e emocionada de Seu Tum, filho de D. Enedina que o criou graças aos recursos
retirados do rio. Seu Tum é testemunha diária dos impactos sofridos pelo Cachoeira.
O rio para mim é ... o que eu posso dizer...? ...É uma roça frutífera porque toda vez que eu vou lá eu colho. Foi de lá que eu comecei, que eu criei família. Tenho tudo de lá.
Ah! Eu queria que esse rio tivesse mais uma oportunidade de ficar limpo...! O rio hoje não tem mais agasalho, não tem esconderijo para os peixes. As pessoas cortam as árvores e os peixes vive no aberto. Peixes não dormem no aberto. Nosso rio está de uma maneira não do modo que eu alcancei. Reduziu muito a quantidade de peixes.
Antigamente tinha muito rubalo, tambaqui, crumatá, bagre africano, tucunaré verdadeiro e o comum. O tilápio ta acabano porque o [tipo] que a CEPLAC botou come os ovos das outras. Quando eu pego um eu abro a boca deles e tiro as ovas e jogo no rio.
... Sinto hoje a falta de emprego... hoje o rio num dá mais para se lavar roupa. Cai tudo dentro d’água. O sangue do matadouro cai todo no rio. Para mudar esse problema que nós tamo acontecendo hoje era bom que tivesse uma fiscalização desde Itaju donde ele nasce. A sujeira começa de Itabuna. Podia tirar aquela rede de esgoto. A fiscalização do IBAMA. A gente vê fiscalização pra venda, pra madeira, mas não tem pra água... A água tá preta, tá como se fosse um sumo escuro. Quando chega o verão vai piorando. O peixe não dá para encontrar o outro. Morre muito peixe. Morre o pitu, morre o camarão, o siri, o tilápio. Morre quantidade de peixes. A água era limpa. Nós tinha de fartura. Nunca faltou nada para o pescador. Hoje o pescador só pega se for ‘profissional’.
A exposição de Seu Tum demonstra a convicção de quem viu, ouviu e vivenciou uma
realidade que encontra ressonância nos testemunhos dos outros entrevistados, pelo simples
fato de tratar de experiências comuns, compartilhadas na dor da perda gradativa do rio. Nesse
sentido, um misto de aflição e impotência é o sentimento mais comum entre esses grupos
sociais. Situação facilmente observável nas comunidades ribeirinhas do Banco da Vitória.
Mas o vivido dos ribeirinhos se constitui também de doces lembranças, quando da
limpidez de suas águas que serviam para os mais longos e prazerosos banhos. Conta-se que a
água era tão limpa que até se podia beber, da fartura de peixes: robalo, tainha, tucunaré,
tilápia, pratibu, acari, piau, etc.; e de crustáceos em abundância: pitus, camarão, calambau,
curuca. Pescas de qualidade que podiam ser comercializadas sem medo de contaminação.
Segundo Seu Ozias,
105
Há doze, quinze anos atrás eu pegava 15/20 kg de pitu por noite. Hoje não pego nem 300 g. Nós não tem mais pitu aqui. Nem tem mais fartura de peixe.Já peguei 100 kg de peixe, hoje não pego mais nada. Tá ficando muito difícil. A multidão é muita de pescadores. Muita gente com a situação ruim que corre para o rio.
Quando é questionado sobre a qualidade atual das águas e o que pode ser evitado para
não piorar ainda mais o nível de poluição, Seu Ozias responde que se sente muito mal, mas
que não tem jeito a dar, pesca ainda apesar de toda a sujeira que vem do lixo e do matadouro,
inclusive, fez denúncia no rádio de um curtume que jogava toda a sujeira no rio.
A senhora sabe... tem o IBAMA, mas não adianta nada... O rio não tem trato nem pela prefeitura, nem pelo estado. Os esgotos é o que há de mais grave. É preciso dar o tratamento básico no rio. Quando as autoridades limpar a cabeça do rio, ter mais higiene... a sujeira vem toda para o Banco.
Na memória de muitos, o Cachoeira é o rio das margens adornadas por ingazeiras, dos
imensos bambuzais anunciando a exuberante presença da Mata Atlântica, abrigo de tantas
espécies silvestres como as lontras (tantas vezes confundidas com o nego d’água) e os jacarés
que eram vistos com freqüência nas proximidades ou dentro do rio. Há dez, vinte anos atrás,
adentrando-se um pouco mais na mata era possível ver com facilidade “uma enormidade de
bichos”: porcos-do-mato, raposas, antas, caititus, capivaras, pacas, cotias, preás, guaxinins,
tatus, sariguês, quatis, tamanduás-bandeira, bichos-preguiça e macacos, como o guariba, o
sagüi e o jupará12. Todos eram passíveis de serem caçados, não como um esporte, mas como
fonte segura de alimentação. Por outro lado, várias espécies de serpentes peçonhentas se
constituíam em grande perigo para os passantes, sobretudo para os lavradores das roças de
cacau, causando-lhes por muitas vezes a morte. Contudo a recompensa maior se achava no
canto e na diversidade das aves: araras, papagaios, garças, perdizes, codornas, jacutingas,
jacus, curiós, canários, juritis, tucanos e macucos dentre tantos outros13.
12 Considerado como um dos principais disseminadores da lavoura cacaueira, pelo hábito de comer a polpa do cacau e depois enterrar a semente. 13 Sobre a fauna, os dados foram recolhidos através de entrevistas conversacionais com os moradores do Banco da Vitória, sendo posteriormente confirmados em Barbosa (1977).
Hoje, no entanto, segundo o relato dos entrevistados, a realidade que se observa é
bastante diferente devido aos impactos sofridos pela intensa e continuada degradação do rio,
bem como pelo desmatamento das matas ciliares, abrigo de muitas espécies, inclusive para o
sombreamento dos peixes em desova.
Como bem rememora o ex-areeiro, Seu Pedro Silva, que criou os 15 irmãos tirando
areia do rio,
Antigamente, o rio era saudio, tanto que a gente tomava banho, bebia a água. No rio dos anos 70 a gente sentia prazer, tinha muitos ingazeiros em suas margens. Criei a minha família tirando areia do rio. Depois o rio foi ficando fundo demais, eu tive que ir trabalhar no matadouro...Hoje as pessoas correm muito perigo de doença: febre, gripe muita, muitas ostras que oferecem perigo da gente se cortar. [referência aos caramujos]
Hoje eu fico triste só de ver o rio. Não posso sequer tomar banho. Antigamente se podia até beber a água do rio de tão limpa que era. Dava para ver o fundo do rio, a senhora acredita? A tristeza é muita, não posso nem pescar. O rio já teve muito peixe, muito pitu, siri, calambau, beré, tucunaré, robalo.
De acordo com Tuan (1980), o apego à terra do pequeno agricultor ou camponês é
profundo porque conhecem a natureza e ganham a vida com ela. Desse modo a topofilia que
se estabelece entre o rio e o pescador se forma na intimidade física, da dependência material e
também pelo fato de que o rio passa a ser um repositório de lembranças. No caso do rio
Cachoeira, percebe-se entre os entrevistados um saudosismo que parece alimentar a esperança
de revitalizá-lo.
Um fator que tem contribuído decisivamente para o aumento da degradação do rio é o
desmatamento crescente da Mata Atlântica, potencializada pela crise econômica na lavoura
cacaueira, iniciada no final dos anos 80. Tal crise foi desencadeada pelos baixos preços no
mercado internacional e pela baixa produtividade e também pelo alastramento da “vassoura
de bruxa”, doença provocada pelo fungo Crinipellis perniciosa. Assim, a lavoura que antes
tinha caráter conservacionista através do sistema cabruca (cacaueiro cultivado à sombra de
107
árvores nativas), foi cedendo lugar ao desmatamento e as áreas cultivadas foram
transformadas em pastagens.
Nesse sentido, a crise da lavoura cacaueira por ser responsável pelo alto índice de
desemprego regional, especialmente dos trabalhadores rurais, desencadeou um expressivo
processo de ocupação/invasão das margens do rio Cachoeira. Não obstante, toda a sujeira que
se faz perceptível pela cor enegrecida e fetidez da água, inúmeras famílias sobrevivem
mediante ao que o rio ainda oferece, mesmo estando expostos a diversos tipos de doenças
infecciosas14, veiculadas pelas águas poluídas e/ou pelo consumo de peixes contaminados,
além do excesso de lixo exposto nas áreas próximas do rio. Trata-se de pessoas que vivem em
condições de absoluta indigência, onde as crianças são as maiores vítimas. É evidente que
essas ocupações contribuem para agravamento do índice de poluição do rio.
Nesse contexto, a degradação contínua do rio Cachoeira alcança níveis que interferem
nos mais variados setores que estão relacionados às condições de vida de seus habitantes,
principalmente os que se encontram mais próximos dessa triste realidade, no caso, os
ribeirinhos. Entretanto, em maior ou menor grau, a poluição aquática atinge a vida de todos os
moradores da região. Por se tratar de uma questão notadamente de sustentabilidade ambiental,
há uma grande ressonância no âmbito sociocultural, econômico, político e também turístico
local, mais especificamente de Ilhéus pelas razões já apresentadas.
Assim, enfocar a sustentabilidade ambiental, buscando soluções viáveis para o
problema da poluição e degradação do rio Cachoeira e dos demais problemas dele
decorrentes, é fundamental para que se possa estabelecer o desenvolvimento socioespacial
(SOUZA, 1999) necessário à implementação de um turismo consolidado em bases
14 Dadas às condições atuais do rio Cachoeira, inúmeras doenças como cólera, disenteria, febre tifóide, gastroenterite, giardise, hepatite infecciosa, leptospirose, salmonelose, escabiose, vários tipos de verminoses, dentre muitas outras, podem chegar facilmente às populações mais carentes através de banhos, ingestão da água ou de peixes contaminados.
ecosoficamente definidas, uma vez que se faz imprescindível a superação dos problemas
sociais e modificar a atitude antiecológica de cada indivíduo. Nessa ótica, resolver as
necessidades básicas das populações envolvidas, sobretudo de educação ambiental, pode
contribuir para re-formular o pensamento e, por conseguinte, modificar a atitude de cada
indivíduo. Dessa forma, as transformações partiriam do individual para o coletivo.
Esta é uma tarefa que certamente precisa ultrapassar a meta comum de conscientização
ambiental, da qual estamos tão habituados a ouvir: “que estamos destruindo o planeta”, “que
precisamos pensar nas gerações vindouras”, etc., até porque tais procedimentos não têm
desencadeado ações concretas.
Diante de tais constatações, o que precisa realmente ser feito a fim de reverter essa
realidade indesejável que tão imprudentemente criamos? A passividade e a indiferença
humana ante os desastres ecológicos que nós próprios desencadeamos, a exemplo do que está
acontecendo com o rio Cachoeira, são aspectos extremamente intrigantes, já que envolve a
própria sobrevivência humana no planeta.
Evidentemente que não há nada de novo nessas discussões, mas em se tratando do rio
Cachoeira - uma unidade socioambiental de grande importância para toda a região - muitas
pesquisas e programas ambientais foram e estão sendo realizados através da UESC em
conjunto com outras instituições, visando a sua revitalização. O Programa de Recuperação da
Bacia do Rio Cachoeira, por exemplo, foi implantado com o propósito de salvar os três rios que compõe a
bacia: Colônia, Salgado e o Cachoeira. O programa previa ações permanentes de educação ambiental às
populações ribeirinhas, re-plantio de árvores nativas, criação de pesqueiros, tratamento de esgotos e
retiradas de lixões de suas margens e de seus afluentes. Apesar de todos esses requisitos básicos, por
diversas razões, o programa não obteve o êxito esperado.
109
Em entrevista ao jornal local, A Região (2004), o professor Neylor Calasans,
coordenador do Núcleo de Bacias Hidrográficas da UESC, afirmou que a universidade é
principalmente uma instituição de pesquisa e ensino e, apesar de ter a parte de extensão, não é
o seu papel executar as ações, porque na verdade isto depende muito da mobilização pública para que
as prefeituras envolvidas possam, efetivamente, ir a busca de soluções.
Os pronunciamentos do professor demonstram claramente que há um impasse entre os
principais órgãos públicos responsáveis pelo Programa de Recuperação da Bacia do Rio
Cachoeira. Afinal, de onde devem partir as primeiras ações que realmente viabilizem traçar
metas executáveis em favor da revitalização do rio Cachoeira? Nesse sentido, parece-nos
prioritário resolver primeiramente as questões que dizem respeito a essa transferência de
responsabilidades que comprometem a eficiência dos órgãos públicos envolvidos.
Em relação à UESC, enquanto um órgão público de fundamental importância na
propagação de conhecimentos e execução de imprescindíveis atividades de pesquisa, vale
reafirmar a sua posição de agenciador político, papel imprescindível que precisa operar com
maior resolução para que se torne possível promover, o desenvolvimento socioespacial
(SOUZA, 1999) de sua área de abrangência.
Um dado que nos intriga muito, em relação à ineficiência dos órgãos públicos ante a
degradação do rio Cachoeira, é que nos cursos de graduação e pós-graduação da UESC, nas
mais diferentes áreas de conhecimento, o rio Cachoeira é o tema escolhido de inúmeras
pesquisas que normalmente resultam em artigos, monografias e dissertações, sobretudo ao
longo desses últimos anos, considerados os mais críticos de sua história. Cabe aqui uma
reflexão: o que acontece com os trabalhos acadêmicos depois de defendidos e divulgados? A
resposta que conhecemos é exatamente aquela que não podemos ou não mais deveríamos
admitir, pois, estas pesquisas ficam, na verdade, engavetadas, guardadas na biblioteca, em
stand by, esperando que algum órgão público, de preferência, assuma o encargo de desvendá-
las e, se possível, avaliar as sugestões que precisam ser efetuadas em favor das comunidades a
serem beneficiadas, protegidas. No entanto, em se tratando de estratégias de recuperação,
seguidas de estratégias de preservação de um patrimônio natural e cultural tão importante para
as conhecidas terras do cacau como o rio Cachoeira, esses cuidados deveriam ser, no mínimo,
do interesse de todos.
Diante dos desequilíbrios socioambientais que vêm se intensificando cada vez mais no
mundo, Guattari (2001) sugere que é preciso re-articular os três registros ecológicos, o do
meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana, para que seja possível re-
orientar o comportamento humano, inclusive, para modificar os mecanismos de produção
dos quais somos tão dependentes, seja de bens materiais ou imateriais. A reflexão do filósofo
implica em uma re-avaliação de tudo que a engenhosidade humana foi capaz de construir e,
conseqüentemente, destruir a natureza, afim de que se torne possível identificar os equívocos
que precisam ser reparados o quanto antes. Afinal, os exemplos negativos servem para que
não mais se repitam decisões e situações anteriores.
Segundo Tuan (1980, p. 1), o homem é, de fato, o dominante ecológico e o seu
comportamento “deve ser compreendido em profundidade e não simplesmente mapeado”.
Assim sendo, não se deve subestimar a diversidade e a subjetividade humanas, pois
Sem a autocompreensão não podemos esperar por soluções duradouras para os problemas ambientais que, fundamentalmente, são problemas humanos. E os problemas humanos, quer sejam econômicos, políticos ou sociais, dependem do centro psicológico da motivação, dos valores e atitudes que dirigem as energias para os objetivos.
Em se tratando da degradação do rio Cachoeira, não há dúvida de que muitas coisas
precisam ser revistas: a sua re-valorização enquanto patrimônio natural e histórico-cultural da
Região Sul-baiana pode vir a ser uma boa motivação, um bom re-começo em prol de sua
111
recuperação e preservação. Enxergar o Cachoeira com olhos de visitante, também é preciso.
Segundo Tuan (idem, p. 75), “o visitante, freqüentemente, é capaz de perceber méritos e
defeitos, em um meio ambiente, que não são mais visíveis para o residente”.
Embora a potencialidade turística de Ilhéus - e cidades circunvizinhas, vale ressaltar -
seja notável pela ambiência e riqueza cultural, isso não é o bastante para transformá-la em
uma destinação turística bem sucedida. Conforme pudemos observar, além da falta de infra-
estrutura básica e aproveitamento adequado dos atrativos que possui, há uma negligência
generalizada com o meio ambiente, onde a pessoa humana é também parte integrante desse
meio. Com efeito, não há dúvida de que a poluição visível do rio Cachoeira, aliada às más
condições das comunidades ribeirinhas, fornece uma imagem bastante desfavorável aos
visitantes.
Assim, o problema é bastante complexo, sobretudo, em relação ao grande contraste
sociocultural e econômico que envolve as comunidades ribeirinhas em questão. A realidade
de muitas pessoas que dependem exclusivamente do rio para sobreviverem é muito penosa,
pois não há outras opções econômicas, outros recursos, e o rio é realmente parte integrante da
dessas comunidades. Trata-se, portanto, de cidadãos cujos direitos a uma vida digna parece ter
sido negado ou esquecido, apesar de mundialmente assegurados pela Declaração de
Estocolmo em 1972. Conforme o princípio 1, que proclama o direito e responsabilidade do
homem com o meio ambiente:
O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar; e é portador da solene obrigação de proteger e melhorar esse meio ambiente, para as gerações presentes e futuras. (In: PELEGRINI FILHO, 1997, p. 175; grifos nossos).
Uma localidade pode até ser detentora de um patrimônio natural e cultural expressivo,
como é o caso de Ilhéus. No entanto, para que esse potencial se transforme em patrimônio
turístico, em recursos que possam ser utilizados para atrair o turista, faz-se necessário, além
dos investimentos em saneamento básico e infra-estrutura, o planejamento criterioso e
participativo, visando a responsabilidade e o benefício de sua população, sobretudo no que se
refere à sustentabilidade do meio ambiente.
Segundo Oliveira (2000), a sustentabilidade do turismo deve envolver a tomada de
medidas que viabilizem delinear primeiramente estratégias de preservação tanto do
patrimônio natural, como o cultural de uma localidade.
No entanto, em relação ao Rio Cachoeira que, pelas razões apontadas, interfere
indiretamente na sustentabilidade turística de Ilhéus, trata-se especificamente de um caso de
revitalização, uma vez que o rio tem dados sinais evidentes de esgotamento, inclusive
comprovados cientificamente, conforme demonstramos ao longo deste capítulo.
Diversos autores, dentre os quais Figueiredo (2000), ressaltam a importância da
educação ambiental para a atividade turística, inclusive como uma forma de melhor conhecer,
divulgar e preservar os recursos naturais e culturais de uma destinação que se pretende
turística, como é o caso de Ilhéus. Nesse sentido, um programa ativo e permanente de
revitalização do rio Cachoeira, visando a sua recuperação, se justifica devido a sua
importância enquanto patrimônio natural e cultural da Região Sul-baiana.
O capítulo que se segue visa a demonstrar as potencialidades culturais do rio
Cachoeira concernente ao imaginário da comunidade ribeirinha do Banco da Vitória, que
dentre outras expressões artísticas se manifesta através da Literatura oral, onde o rio e mata
em seu entorno são tomados como cenários dos causos narrados pelos pescadores. Elementos
de representações culturais, a divulgação dessas narrativas, aliada à formatação da paisagem
ao longo do Cachoeira no referido trecho da BA 415, podem contribuir para a ampliação de
113
ofertas de atrações culturais daquele espaço, proporcionando uma experiência diferenciada ao
turista que deseja conhecer e vivenciar a cultura local.
4. RIO-RECRE(I)AÇÃO – potencialidades culturais do rio Cachoeira através da Literatura oral –
Tenho uma alma ribeirinha que percebe a essência do que há no visível, por intermédio do imaginário
João de Jesus P.Loureiro
Esses doces fantasmas da água costumam estar ligados às ilusões factícias de uma imaginação que quer divertir-se.
Gaston Bachelard
Contar uma estória, ou compreendê-la, pressupõe o conhecimento dos meios e modos de produzir sentido em determinada cultura.
José Luís Jobim
115
4.1. Potencialidades culturais: A literatura oral e o imaginário do Rio Cachoeira
Um rio tem histórias para contar e verdades que não pode ocultar. Um rio que
reúne uma população inteira em seu entorno é o mesmo que é capaz de gerar um valor
simbólico, um sentimento de pertença ou até mesmo de indiferença ante uma realidade que
identifica e ao mesmo tempo flagra a incompetência ecológica de um povo.
Símbolo de fluidez heraclitoniana, o rio Cachoeira é o rio cuja transitoriedade de
suas águas, atualmente escassas e fétidas, parece sugerir o fluxo contínuo da existência
humana em sua incansável luta pela sobrevivência. Apesar da desastrosa transformação do rio
Cachoeira - outrora rio-provedor, agora em rio-grande-lixeira -, imposta pelos maus tratos
que lhes foram e continuam sendo infligidos pelas ações antrópicas, o rio é tomado
constantemente como fonte inspiradora para os poetas, prosadores e contadores de causos
regionais que contemplam suas águas, suas margens.
No que concerne à criação literária, o rio Cachoeira é ainda o rio-provedor, pois é o
rio que sustenta o imaginário dos poetas grapiúnas e de suas populações pesqueiras e
ribeirinhas, pessoas simples, na sua maioria, que nutrem um sentimento topofílico pelo rio
(TUAN, 1980). É o rio que carrega consigo a memória de muitos, daqueles que tiveram a
oportunidade de conhecê-lo quando de águas limpas, claras e brilhantes. Dada a sua
indiscutível importância socioambiental, atuando inclusive como coadjuvante na constituição
histórica regional, é o rio-tema-inspirador das mais diversas produções intelectuais, sendo
permanentemente ficcionalizado na poesia e na prosa de renomados escritores regionais como
Telmo Padilha, Cyro de Matos, Valdelice Pinheiro, Ritinha Dantas, Hélio Pólvora, Anísio J.
S. Cruz, dentre muitos outros.
Por outro lado, o rio Cachoeira também se faz presente no imaginário dos ribeirinhos e
se revela, dentre outras formas de expressão, através de narrativas orais, aqui abordadas como
Literatura Oral, uma prática social antiga que está se perdendo, tanto pela falta de tratamento
adequado que inclua a sua valorização, bem como pela falta de espaço e de tempo no agitado
mundo contemporâneo. Como se sabe, no atual contexto de uma suposta homogeneização
cultural (ORTIZ, 1994), os conteúdos dinâmicos da memória social, em especial, os
transmitidos oralmente, estão sujeitos às peripécias imperativas do tempo, sob pena de serem
descaracterizados em sua essência e, sobretudo, esquecidos.
Entretanto, Hall (1999) afirma que apesar de as identidades nacionais estarem se
desintegrando como resultado da homogeneização cultural, as identidades locais estão sendo
reforçadas como uma forma de resistência à globalização.
Essa declaração lança claramente um foco de valorização das diversidades culturais.
Nesse sentido, privilegiar a cultura, como foco de discussão nos estudos turísticos, pode
contribuir para o reconhecimento do turismo como um fator favorável à preservação das
identidades culturais de uma destinação turística.
Desse modo, averiguar, registrar e analisar o imaginário do rio Cachoeira, concernente
à Literatura oral, que ainda se faz presente nas áreas ribeirinhas, pode contribuir para a
compreensão das identidades culturais dessas comunidades e também para revitalizar suas
tradições.
Embora essas manifestações culturais não se restrinjam aos ribeirinhos residentes no
Banco da Vitória, a opção por essa comunidade, mais especificamente neste capítulo, foi
conduzida, primeiramente, pelo teor paisagístico local, já que a paisagem se constitui em um
dos fundamentais elementos que mais influenciam na competitividade turística. Nesse caso,
117
por se tratar de um cenário que é composto pelo rio Cachoeira e pela Mata Atlântica em seu
entorno, pode ser explorado turisticamente tanto através da rodovia (Fig. 30), como através do
rio em seu trecho mais navegável, no sentido Itabuna/Ilhéus ou vice-versa (Figs. 31 e 32).
Além disso, levamos em consideração que a paisagem demanda interpretações culturais, uma
vez que é parte integrante e testemunha de uma dinâmica sociocultural que se “gesta e se
produz através da criação intersubjetiva” (OLIVEIRA, 2002, p. 225).
Figura 30: Rodovia Ilhéus/Itabuna – km Fonte: CKS
Figura 31: Rio Cachoeira –Banco da Vitória- km 8 Fonte: CKS
Muitos outros fatores contribuíram em favor da apreciação da literatura oral no Banco
da Vitória. Primeiro, saber que não basta a exuberância da paisagem para transformá-la em
uma destinação turística, pois a sua formatação é imprescindível, inclusive, em prol de sua
própria preservação. Segundo, para ultrapassar à simples condição contemplativa da
paisagem, a fim de torná-la diferenciada, mais duradoura e capaz de despertar emoções aos
visitantes, faz-se necessário evidenciar os seus aspectos culturais para que possa ser
interpretada e, por conseguinte, devidamente valorizada, não apenas em favor do segmento
turístico, mas, principalmente, para o benefício das populações endógenas. Terceiro, a
preocupação em se preservar o meio natural deve incluir também a preservação do elemento
humano em todas as suas instâncias enquanto cidadão, pois este é, antes de tudo, parte
integrante e decisiva desse meio. Quarto, a recolha e análise dessas narrativas podem
contribuir para o entendimento de uma cultura regional de características próprias, além de
permitir a inclusão de vozes suprimidas e subalternas (MOREIRAS, 2001), quase sempre
excluídas no processo de planejamento turístico.
Com base nessas considerações, a divulgação e o tratamento literário dessas narrativas,
aliada à formatação da paisagem ao longo do rio Cachoeira no mencionado trecho daBA 415,
Figura 32: Porto fluvial – Banco da Vitória – km 8 Fonte: CKS
119
podem contribuir para a ampliação de ofertas de atrações turísticas da Região Sul-baiana,
proporcionando uma experiência diferenciada ao turista que, conforme Simões (2001, s/p),
“reúne condições de ser o elo na cadeia de transmissão sobre as qualidades da sociedade/lugar
visitado; que interpreta e respeita a cultura local”. Nesse caso, o turismo, enquanto uma
atividade que proporciona intercâmbios culturais, assume papel de relevância, já que pode
contribuir para a valorização e preservação desses bens simbólicos.
Nessa perspectiva, a sustentabilidade turística que se propõe, passa, como já
mencionamos anteriormente, por uma re-avaliação da subjetividade humana, segundo as suas
representações sociais, políticas e histórico-culturais (GUATTARI, op. cit.). Como o
instituído encontra-se indissociavelmente entrelaçado com o simbólico e este, por sua vez,
tem no imaginário um componente essencial (CASTORIADIS, op.cit.), a literatura oral,
enquanto objeto social, se constitui em importante fonte de pesquisa desses processos na
construção identitária de uma determinada localidade - fator determinante na diferenciação e
valorização das culturas, um dos aspectos fundamentais na qualificação das destinações
turísticas, vale acrescentar.
Desse modo, o rio Cachoeira é mais do que fonte de vida para aqueles que habitam
suas margens. É também fonte de criação literária. Isto ocorre quando o rio, juntamente com a
mata em seu entorno, ultrapassa a sua condição física e é percebido pelos ribeirinhos como
cenários ou como coadjuvantes na constituição de histórias que dão vida a seres assombrosos
como a mulher de sete metros, que fica vagando na rodovia Ilhéus/Itabuna; a dona das
águas, que impõe respeito ao rio; o nego d’água que assusta os pescadores quando distraídos;
os compadres que viraram biatatás e que dão carreira nas pessoas desavisadas; a caipora
dissimulada que faz o ribeirinho se perder na mata; o lobisomem cachorrão comedor de
criancinhas; as tarrafas e canoas encantadas que desaparecem no rio; as visagens, também
conhecidas como as almas penadas dos que se afogaram no rio.
Pertencentes ao vasto campo da cultura popular, no sentido daquilo que é feito pelo e
para o povo, estas manifestações atestam a riqueza cultural do Banco da Vitória, uma vez que
revelam informações históricas, etnográficas, sociológicas e, portanto, identitárias. Contudo, o
fato de estarem sujeitas a uma dinâmica que é própria da oralidade – pois apresentam menor
formalidade e maior expressividade no ato da performance em relação ao texto escrito -, estas
narrativas são passíveis a constantes re-formulações. Além disso, a falta de seu
aproveitamento enquanto um evento cultural, por exemplo, pode contribuir para o
esquecimento das mesmas.
Para a análise proposta, os relatos foram coletados através de entrevistas
conversacionais (ANDRADE, 1999), semidiretivas, centrada na temática e nos indivíduos
representativos de cada locus, sem o estabelecimento prévio de duração, de modo a propiciar
uma atmosfera de tranqüilidade e confiança, o que possibilitou aos entrevistados se
expressarem com maior espontaneidade.15 Nesse sentido, a postura do pesquisador (ouvinte) é
a de tornar-se um mediador, uma testemunha (MOREIRAS, op.cit.) da performance
autoficcional (RAVETTI, op.cit) do contador de causos e, também, coadjuvante do processo
de elaboração das narrativas, inclusive na transcrição das mesmas, já que a passagem do vocal
para o escrito é, conforme Zumthor (1993), repleta de confrontações, mais do que transcrição,
é transcriação.
Partindo de uma visão etnoliterária (SANTOS, 1995), a pesquisa fundamentou o
tratamento das narrativas nas concepções de Moreiras e Ravetti (2001) quanto à ótica do
testemunho por admitir a introdução de vozes subalternas no discurso disciplinar; na 15 Sobre maiores detalhamentos da metodologia aplicada vide “Procedimentos metodológicos” nas Considerações iniciais.
121
perspectiva antropológica, baseou-se em Iser (1996) para o entendimento da articulação entre
o fictício e o imaginário no processo da criação literária, no caso, da produção oral; e, na
perspectiva estética, em Zumthor (2000), para o entendimento das questões inerentes à
performance, centrada no jogo de expressão e percepção entre o contador e o (s) receptor (es)
no ato imediato da comunicação
Na esteira dos Estudos Culturais, o conceito de etnotexto torna-se relevante, pois como
afirma Santos (Op. cit., p. 39), trata-se do “discurso que um grupo social, uma coletividade,
elabora sobre sua própria cultura, na diversidade de seus componentes, e através do qual
reforça e questiona sua identidade”. Desse modo, o etnotexto propõe uma leitura cultural do
texto literário. A Literatura Oral é, pois, um discurso que possui características de etnotexto.
Daí a pertinência do seu estudo, tanto no âmbito antropológico como no âmbito do estético.
Sendo assim, antes de esboçarmos o material coletado e suas respectivas análises,
algumas discussões terminológicas serão necessárias, devido à polissemia e à complexidade
teórica que envolve as pesquisas demandadas pela Literatura oral.
4.2. Questões terminológicas da Literatura oral no contexto da contemporaneidade
A terminologia Literatura oral foi criada oficialmente por Paul Sèbillot, em 1881, com
o intuito de unir e definir as manifestações culturais transmitidas por processos não grafados.
Trata-se, portanto, de uma definição de fronteira que visa a diferenciar e limitar os campos de
ação do oral e do escrito. Desse modo, a Literatura oral se manifesta, conforme Cascudo
(1984), mediante um corpus extremamente amplo e variado: mitos, lendas, contos, causos,
adivinhas, canções, sagas, rezas, ritos e provérbios transmitidos exclusivamente por via oral,
de geração para geração.
Apesar de possuir um corpus tão extenso de análise, Cascudo (idem) apresenta quatro
características fundamentais da Literatura oral: a antiguidade, uma vez que é impossível
identificar a data de seu surgimento; a persistência, pois são transmitidas de geração para
geração através dos séculos, onde são reformuladas, mas não esquecidas; o anonimato da
autoria, o que a faz de todos e de ninguém; e a oralidade, voz anônima do povo que tem na
sonoridade, na entonação e no ritmo, além dos gestos, os grandes aliados que reforçam o
significado da mensagem. Tais recursos são denominados por Zumthor (2000) como
elementos performáticos.
Na tentativa de uma definição compatível com os estudos literários, malgrado a
riqueza e complexidade do objeto em estudo, os gêneros que constituem a Literatura oral
passaram a ser designados por Jolles (1976) como formas simples. Uma locução adjetiva que
parece atribuir uma certa depreciação ante a hierarquia dos gêneros, criada pela tradição
acadêmica. Todavia, o autor denuncia que, pelo fato de se tratar de manifestações artísticas
que “não são apreendidas nem pela estilística, nem pela retórica, nem pela poética, nem
mesmo pela escrita” (idem, p. 20, grifo do autor), a história literária e a crítica literária
negligenciaram, em seus métodos de interpretação do sentido, a elucidação do significado
dessas formas, deixando-as para a etnografia ou outras disciplinas mais ou menos estanhas
aos estudos literários, o cuidado de ocupar-se disso.
Com o processo de deshierarquização do cânone literário, no entanto, essas narrativas,
outrora marginalizadas, atualmente são consideradas como uma importante fonte de estudo,
tanto nas vertentes da crítica literária, como no âmbito cultural, sobretudo em pesquisas que
visem a compreender e realçar as diversidades culturais de localidades a serem analisadas.
123
Além disso, as narrativas orais podem contribuir para o entendimento do comportamento
humano em relação aos fenômenos naturais, bem como em relação à sua própria história,
tradições, hábitos, valores, medos, crenças e superstições que, estabelecidas pelo imaginário,
constituem a sua identidade. Pode mostrar, ainda, a utilidade e o sentido das instituições
sociais que determinam o comportamento coletivo da comunidade em estudo.
Segundo Jolles, a força que impulsiona os estudos literários passa por critérios que
estão orientados em três direções: o estético (beleza), o histórico (sentido) e o morfológico
(forma). São instâncias que se empenham em apreender conjuntamente o fenômeno literário
em sua totalidade. Entretanto. conhecer e explicar as diversas formas literárias, incluindo-se a
forma oral, tem sido um grande desafio para os teóricos da literatura desde o seu surgimento.
Importante observar que a função da literatura, enquanto uma atividade artística
comunicadora, vai além do entretenimento, da informação, documentação ou simples
passatempo. Como se sabe, a literatura vem desvendando, de maneira própria e inconfundível,
a natureza incógnita e sempre surpreendente do ser humano, independentemente da sua forma
de manifestação, seja oral ou escrita.
Como todas as coisas estão sujeitas às peripécias e necessidades do tempo, para o
lingüista francês Paul Zumthor (2000), trata-se de Literaturas da voz (no plural), justamente
por abranger elementos fundamentais da vocalidade, da performance e também da recepção,
onde a presença da voz e do corpo desempenha papel fundamental. Conforme o autor, a
vocalidade é plena de materialidade, pois envolve o empenho do corpo do locutor que, ao
estabelecer uma situação comunicativa, coloca em ação simultânea o emissor, o texto (oral) e
o receptor. Assim, elementos subjetivos como a entonação e o ritmo da voz, as pausas, aliados
às várias formas do olhar e dos gestos, a memória do locutor, a finalidade da transmissão, bem
como o espaço físico e temporal, utilizados para reforçar o significado da mensagem,
contribuem para desencadear reações especiais nos ouvintes no exato momento da
performance. Centrada no ato imediato da comunicação, cada performance torna-se singular,
visto que se estabelece em um “contexto ao mesmo tempo cultural e situacional” (idem, p.
36).
Para Zumthor, a performance é um momento privilegiado da recepção, onde um
enunciado é realmente percebido. No entanto, vale mencionar, que o termo não se restringe
exclusivamente à oralidade. A performance é possível, sim, no ato da leitura solitária, só que
em níveis diferenciados.
Na situação performancial, a presença corporal do ouvinte e do intérprete é presença plena, carregada de poderes sensoriais, simultaneamente, em vigília. Na leitura, essa presença é por assim dizer colocada entre parênteses; mas subsiste uma presença invisível, que é manifestação de um outro, muito forte para que minha adesão a essa voz, a mim assim dirigida por intermédio do escrito, comprometa o conjunto de minhas energias corporais.
[...] A performance com audição acompanhada de uma visão global da situação de enunciação, é a performance completa, que se opõe da maneira mais forte, irredutível, à leitura de tipo solitário e silencioso. (ibidem, p. 80, 81)
Todas essas considerações são necessárias, pois definem fronteiras que visam a
diferenciar-se e a limitar o campo de ação do oral e do escrito. Nesse sentido, a linguagem
oral apresenta mais recursos em termos de expressividade, mesmo se apresentando através de
um suporte aparentemente efêmero como a performance e a vocalidade. Entretanto, essa
efemeridade se dilui graças à faculdade dos mecanismos de resistência das narrativas orais
(antiguidade, persistência, anonimato da autoria e oralidade), tornando-se reiterável em seu
processo comunicativo. É assim que a Literatura Oral se mantém e se propaga pelo mundo,
variando conforme os ambientes, as ocasiões e as culturas, como outrora afirmou Cascudo.
Segundo Jerusa Pires Ferreira (2000), Zumthor representa um divisor de águas nos
estudos medievais e de poéticas do oral, pois dissolveu dicotomias obsoletas, discutiu e
ampliou a noção de texto literário e criou uma plataforma de atuação em que a voz, o corpo, a
125
presença desempenham um importante papel. Passando pelas teorias da comunicação e da
cultura, deixando-nos a percepção de que o texto se tece na trama das relações humanas.
Estabeleceu ainda diferença de conceitos entre oralidade e vocalidade, cuja posição teórica é
a de contemplar desde os textos tradicionais da voz viva aos que se transmitem pelos mais
diversos suportes e mediações (grifos nossos).
Nesse contexto, estudos recentes têm demonstrado que, na contemporaneidade, a arte
designada como popular ganha mais força e prestígio no espaço acadêmico. A necessidade de
retorno às raízes de um mundo supostamente mais autêntico, com menor formalidade e maior
expressividade e liberdade criadora, desencadeia maior interesse por expressões com tais
características. Burke (1989) afirma que a pesquisa sobre cultura popular está muito além de
se restringir aos historiadores, pois há muito tempo se constitui em um objeto de investigação
que é compartilhado pelos sociólogos, antropólogos, folcloristas, historiadores da arte e
estudantes de literatura, portanto, perfeitamente cabível em relação aos estudos turísticos que
privilegiam a cultura como foco de discussão e sustentabilidade turística de uma localidade,
como é o caso deste estudo.
4.3. O fictício e o imaginário: tessitura e constituição nas narrativas orais dos ribeirinhos
do Banco da Vitória
Na tarefa de examinar o imaginário do rio Cachoeira, concernente aos causos narrados
pelos ribeirinhos do Banco da Vitória, interessa-nos abordar, primeiramente, como o fictício e
o imaginário, enquanto disposições antropológicas distintas, se articulam, de forma interativa
e organizada, no processo de constituição dessas narrativas (ISER, 1996).
De acordo com Iser, não há definições ontológicas nem do fictício nem do imaginário,
porquanto só podemos apreendê-los mediante uma descrição operacional de suas
manifestações observáveis. Nesse sentido, o termo imaginário não pode ser confundido com
conceitos como fantasia, faculdade imaginativa ou imaginação, pois estes termos envolvem
uma ampla carga de tradição, sendo freqüentemente justificados como faculdades humanas
distintas. Para Iser, o imaginário se apresenta de “modo difuso, informe, fluido e sem um
objeto de referência, manifestando-se em situações que, por serem, inesperadas, parecem
arbitrárias, situações que ou se interrompem ou prosseguem noutras bem diversas” (idem,
p.14). Iser também afirma que o imaginário existe na vida real, no entanto, precisa ser
ativado, uma vez que o imaginário “não é um potencial que ativa a si mesmo, mas uma
instância que precisa ser mobilizada por externo, seja pelo sujeito (Coleridge), pela
consciência (Sartre) ou pela psique e pelo sócio-histórico (Castoriadis), o que não esgota as
possibilidades de ativação” (ibidem, p.259), ao contrário, multiplica as suas possibilidades de
manifestações.
Castoriadis (1982), por sua vez, define imaginário como “criação incessante e
essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir
das quais somente é possível falar-se de ‘alguma coisa’. Aquilo que denominamos ‘realidade’
e ‘racionalidade’ são seus produtos.” (1982, p. 13). Para Castoriadis imaginário é sinônimo de
coisa inventada,
quer se trate de uma invenção ‘absoluta’ (uma história imaginada em todas as suas partes), ou de um deslizamento, de um deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos de outras significações que não suas significações ‘normais’ ou ‘canônicas’. [...] Nos dois casos, é evidente que o imaginário se separa do real, que pretende colocar-se em seu lugar (uma mentira) ou que não pretende fazê-lo (um romance) (ibidem, p. 154)
É o que ocorre, por exemplo, quando narrativas são criadas para explicar um
fenômeno natural ou ainda para falar de algo que é inerente ao ser humano, como ditar
127
normas de comportamento diante de certos acontecimentos, através de uma linguagem repleta
de imagens e de símbolos. Essa combinação geralmente é muito utilizada nos gêneros
denominados por Jolles (1976) como formas simples (mitos, lendas, contos, causos, etc), uma
vez que exigem e permitem, em conformidade com as culturas, interpretações diferenciadas.
De acordo com Iser, o fictício (que é intencional) e o imaginário (espontâneo) servem
de contexto um para outro num processo de interação que funciona como uma matriz
geradora da qual emerge a Literatura (Oral). Nesse processo, a estrutura duplicadora do
fictício, regulada pelos atos do fingir (seleção, combinação e auto-evidenciação), re-formula
o real e, conseqüentemente, interfere na compreensão da realidade. É nesse sentido que os
causos narrados pelos ribeirinhos ultrapassam o mundo real em que estão inseridos, tornando-
se ficção que, em sua etimologia, significa fingimento, re-criação do real, coisa imaginária.
Laplantine e Trindade (1997) fazem distinções importantes entre os termos real e
realidade. Conforme as referidas autoras, a realidade corresponde a tudo que existe
independentemente da nossa vontade. Por outro lado, o real é a “interpretação que os homens
atribuem à realidade. O real existe a partir das idéias, dos signos e dos símbolos que são
atribuídos à realidade percebida” (ibidem, p.12).
Também em relação às distinções entre o simbólico e o imaginário, Laplantine e
Trindade afirmam que o imaginário evoca e mobiliza as imagens de modo que utiliza o
simbólico para expressar-se e existir. Por conseguinte, o imaginário é uma das formas de
interpretação simbólica do mundo e, portanto, da realidade.
Nessa ótica, os processos de simbolização, isto é, os processos de substituição
de uma coisa por aquilo que a significa, são fundamentais para a compreensão e o
entendimento das culturas. “É a simbolização que permite que as informações sejam
processadas, que a experiência acumulada seja transmitida e transformada” (SANTOS,
1985, p.42)
Das muitas narrativas recolhidas na pesquisa (que integrarão um vídeo-documentário a
ser elaborado posteriormente como desdobramento desta dissertação), aqui tomamos para
análise narrativas que sinalizam temáticas de interesse para turismo. Para compreender a
essência desse imaginário específico que se ficcionaliza nessas narrativas orais, abordamos
essas manifestações artísticas como elementos de representações culturais, que expressam,
através de uma linguagem própria, o pensamento de um povo, a essência de sua cultura.
No Banco da Vitória, os grupos sociais que sobrevivem diretamente do rio Cachoeira -
em sua maioria pescadores, lavadeiras, areeiros e trabalhadores rurais desempregados -,
costumam contar causos que supostamente “aconteceram” dentro e/ou nas proximidades do
rio. Trata-se de narrativas orais que, em geral, abordam o cotidiano dessas pessoas; somando-
se a isso a liberdade criadora e imaginativa de seus contadores. Em tais narrativas, as
situações reais, o simbólico e o imaginário são tecidos conjuntamente como resultado de
experiências vividas e/ou inventadas. São causos em que os contadores são, normalmente, as
personagens principais, testemunhas ou simplesmente ouvintes dos episódios narrados,
conforme podemos observar no relato do Sr. Fernando Borges da Silva, mais conhecido como
Seu Pepeu, pescador por mais de 20 anos,
Meu pai, era o maior mentiroso do mundo. Quando eu tinha uns 17 anos ele dizia
que lá em frente à [fazenda] Cordilheira, bem na beira da estrada, aparecia uns
vultos vagando por ali. Dizia que tinha um padeiro que ia e vinha com um cesto
cheio de pão. Quando ele dizia que queria pão o padeiro nunca atendia e sumia
tudo. (Entrevista concedida em 15 de agosto de 2004)
129
O trecho em que fica localizada a fazenda Cordilheira, às margens do rio Cachoeira,
no km 18 daBA 415 é, de forma recorrente, o cenário dos causos narrados pelo Seu Pepeu.
Talvez pelo fato de se ter nas proximidades um cemitério naquela localidade, faça aflorar o
imaginário com causos que abordam vultos pela estrada, as ditas visagens. Durante as fases
de recolha, pudemos observar as interferências diretas das histórias orais no comportamento
dos entrevistados, com reações que vão do assombro ao riso.
Um fato curioso e que nos chamou a atenção é que os causos são quase sempre
acompanhados de uma explicação racional para os fenômenos que foram (supostamente)
vivenciados pelos pescadores. Em boa parte, testemunhas são solicitadas para comprovar os
fatos. A este respeito, pudemos observar também uma grande influência das religiões
seguidas pelos contadores, pois muitos ao se declararem evangélicos, conforme os preceitos
religiosos, não poderiam mentir. Apesar disso, nunca desmentiam totalmente que foram
testemunhas visuais dos episódios narrados. Fato que poderemos constatar a seguir com o
causo narrado de forma muito espirituosa pelo Seu Osmário, pescador desde criança, naquela
localidade. Seu Tum, como é conhecido entre os seus companheiros, é um senhor de 54 anos,
estudioso dedicado da Bíblia
O finado Vavá, pai de Alfredo, xingava muito. Ele era ferreiro. Ele usava um fole pra fazer as peças dele. Ele tinha o costume de toda às seis horas ir tomar banho no rio e ficar esquentando na Pedra de Guerra. Às 6:40, mais ou menos, estava tudo escuro e apareceu pra ele a imagem de um homem dentro d’água. Ele tinha mais de dois metros. Tava nu. Mas a gente só via da cintura pra cima. O homem tava assim parado com os braços encruzados. Pergunta a Zé Evanildo e Jatobá que também conhece esse caso. Todo mundo viu. Lorinho [o valentão do lugar] pegou o facão e foi atrás do tal homem e não encontrou nada. Quando chegou lá não tinha mais ninguém. Olha, eu sou evangélico e não posso contar uma coisa negativa. Eu tenho que contar o testemunho que eu vi (grifos nossos).
A Pedra de Guerra a qual o Seu Tum se refere é, na voz dos moradores, um “lajedão
que vai até o Iguape”. Eles acreditam que se trata de uma rocha cuja dimensão alcança uma
média aproximada de uns 15 km. É nesse lugar que geralmente aparecem as assombrações, as
visagens. Foi ali, na Pedra de Guerra, que o Seu Tum se deparou por mais de uma vez com o
Nego D’água.
No rio também já apareceu o Nego d’água na Pedra de Guerra e na poço das Freiras. Foi visto duas vezes. Ele é um anão, escurinho e forte, careca e tem a cabeça redondinha. Tem mais de vinte anos que eu vi. Quando você chega perto dele ele cai n’água espalhando muita água. Quer dizer que ele tem volume, né? Essas coisas a gente via era com a lua clara.
Para Seu Tum o Nego D’água, um ser aquático que vive no fundo do rio Cachoeira,
mas que gosta muito de ficar se esquentando em cima de um rochedo, existe de verdade, tanto
que a prova maior é que “ele tem volume” e molha quem está por perto.Também conhecido
como caboclo d’água, é uma assombração que se manifesta através de uma figura de
aparência humana distorcida, de cor escura, com a cabeça grande e redonda; é tronchudo, isto
é, de baixa estatura e muito forte, pois são capazes de virar as embarcações que lhes
desagradam; às vezes surgem, conforme os relatos, com uma grande cabeleira dura de tão
enlameadas, ou se apresentam como carecas de um único olho, localizado bem no meio da
testa.
Segundo afirmam os pescadores do Banco da Vitória, o Nego D’água gosta de
aparecer nu e tem o poder de se transformar em qualquer coisa para assustar os ribeirinhos,
além disso, eles são muito ágeis, no entanto, se tornam razoáveis se receberem fumo ou pinga.
Coisas que, normalmente, fazem parte dos apetrechos dos pescadores.
Trata-se de um mito que também é recorrente na Lagoa Encantada (Ilhéus) entre os
ribeirinhos daquela localidade. Conforme o relato de seus moradores, o Nego D’água tem
mãos e pés de pato e são bem escurinhos e adoram virar as canoas e desaparecer em
seguida16.
16 Vide SANTOS, R. S. 2004. O encanto da lagoa O imaginário histórico-cultural como elemento propulsor para o turismo cultural na Lagoa Encantada. Ilhéus/UESC [Dissertação de Mestrado em Cultura & Turismo].
131
Há registros de que o tal caboclinho costuma assustar as populações ribeirinhas,
localizadas na região do Vale do Rio São Francisco, sendo uma das mais temidas
assombrações entre os moradores. Dependendo do local onde aparece, o Nego D’água
assume diferentes formas, inclusive são capazes se transformar em outros animais
assustadores com o intuito de apavorar ainda mais os pescadores, principalmente os que
gostam de pescar à noite, bem como as lavadeiras.
De uma forma geral, o Nego D’água apresenta características que se assemelham aos
Sacis pela forma endiabrada como agem, apavorando a todos que encontra pela frente, bem
como pela sua cor e agilidade de deslocamento. Apresenta semelhanças também com a
Caipora que, segundo Cascudo (1976) é uma figura indígena pequena e forte, coberta de
pelos, doida por fumo e aguardente.
Segundo Seu Ozias, 59 anos, pescador a mais de 30 anos, o Nego D’água já o fez
passar por situações muito vexatórias quando era jovem:
Por causa do Nego d’água eu saí uma vez correndo assustado. Sempre ouvi falar do
Nego d’água. Aconteceu que um dia eu tava pescando e a rede enganchou na
pedra. Aí, eu mergulhei. Quando eu tava lá embaixo eu me lembrei do Nego e saí na
carreira. Minha mulher falou: Ôxe! Já voltou da pescaria?!! É... Não tinha peixe...
Quando a gente é jovem, até o barulho de pau rangendo assusta nós. De dia, tudo
bem, todo mundo tem coragem de olhar o que é, mas de noite...!!!
Por aqui aparece muito pau que range, parecendo a Caipora. Muitas vezes eu
deixei de entregar a comida de meu pai, que trabalhava na roça. E ele ficava lá com
fome. Tudo isso por causa do medo da Caipora. Se ela pegasse um...
A caipora é, segundo Cascudo, um duende que é considerado como o guardião da
floresta, por isso ele amedronta os caçadores com a fim de expulsá-los e proteger os animais.
É uma espécie de assombração que apronta toda sorte de ciladas, desorientando aqueles que
penetram a floresta através da simulação de ruídos: assobia, estala os galhos, dando falsas
pistas, fazendo com que o ribeirinho se perca na mata.
Todavia, o Seu Tum tem uma explicação curiosa sobre o encantamento da
Caipora
Essa história de se perder na mata por causa da Caipora, sabe por que é que
acontece? Não sabe menino, quando tá caçando passarinho? Pois ele se perde
porque enche os bolsos de pedra e sai com o badoque atrás dos passarinhos.
Quando vai ver, já tá perdido no mato e depois fica dizendo pra mãe que foi a
Caipora. Caipora, meu pai nunca contou pra nós. Mas meu pai já se perdeu na
mata.
A explicação de Seu Tum demonstra a necessidade que tem o homem em
refletir sobre as próprias ações, visando a esclarecer os comportamentos diante do
perigo, bem como criar, inventar soluções para as ameaças que surgem em seu
cotidiano e que fogem ao seu controle.
A maneira como o imaginário de seres assombrosos se propaga ultrapassa os
limites de tempo e de espaço. Assume variantes que, conforme Cascudo (1986, p.34),
se constituem em “enredos com diferenciações que podem trazer as cores locais,
algum modismo verbal, um hábito, frase, denunciando, no espaço, uma região e no
tempo, uma época”.
A aparição do Nego d’água é denominada pelos entrevistados como visagens.
Há também quem afirme que o Nego d’água não passa de uma capivara ou uma lontra
que, ao ver o homem, assustada, mergulha imediatamente no rio, provocando um certo
estardalhaço. Percebe-se aí uma contradição, pois ao mesmo tempo em que se procura
demonstrar a existência concreta do caboclo d’água, adimite-se que, na verdade, trata-
se de seres providos do devaneio poético (BACHELARD, 2002), ou seja, frutos da
livre imaginação.
133
Nesse contexto, há uma máxima popular que diz: “De noite, todos os gatos são
pardos”, isto é, na escuridão da noite, impossível se discernir o que se vê. À noite, para
interpretar a realidade, a percepção se modifica, outros sentidos se tornam ainda mais
aguçados. Nesse caso, os sentidos auditivos, acompanhados de uma visão turva,
ativam o imaginário, gerando explicações assombrosas.
Conforme Tuan (1980, p 12), “o mundo percebido através dos olhos é mais
abstrato do que o conhecido por nós através de outros sentidos. Os olhos exploram o
campo visual e dele abstraem alguns objetos, pontos de interesse, perspectivas”. Nesse
sentido, a percepção da realidade
é a resposta dos sentidos aos estímulos externos, como a atividade proposital, na
qual certos fenômenos são claramente registrados, enquanto outros retrocedem para
a sombra ou são bloqueados. Muito do que percebemos tem valor para nós, para a
sobrevivência biológica, e para propiciar algumas satisfações que estão enraizadas
na cultura. (ibidem, p. 4)
Mas, em se tratando de um devaneio, por que o mesmo mito ocorre, apesar das
peculiaridades que apresentam enquanto variantes, em outras regiões do país, mostrando,
inclusive, pontos em comum que se evidenciam através dos elementos selecionados e
combinados através do imaginário específico de cada cultura? Ao que tudo indica, trata-se dos
mecanismos de resistência da Literatura oral (antiguidade, persistência, anonimato da autoria
e a oralidade).
De acordo com Cascudo (1976, p. 37), uma característica geral dos mitos e das
tradições fabulosas no Brasil é que
os nossos são mitos de movimento, de ambulação, porque recordam os velhos períodos dos caminhos, dos rios, das bandeiras, de todos os processos humanos de penetração e vitória sobre a distância. Quase sempre são mitos cuja atividade é apavorar “quando passam” ou “correm”. Curupiras, Caiporas, Mapinguaris, Sacis, Lobisomens seriam ineficazes em atitude hirta, como uma parada de monstros.
Mesmo nos rios, lagoas e mar, os seres assombrosos não têm pouso fixo. Nadam para aqui e para além. [...] A nossa Iara é campeã de distância a nado livre...
De uma forma emblemática, isto que dizer que os mitos andam, viajam por distâncias
incomensuráveis do imaginário humano, oralmente, de boca em boca, de geração para
geração.
Um outro aspecto que Cascudo chama a atenção é sobre o caráter híbrido dessas
narrativas, uma vez que se percebe a influência de diversas etnias que compõe o imaginário
da Literatura oral. Por isso, “um exame dos tipos fabulosos mostra a hibridez de todos, sua
confusão fisiológica, dando-os como somas espontâneas de reminiscências diversas.” (ibidem,
p. 185)
Por outro ângulo de análise, as obras do filósofo francês Gaston Bachelard que
abordam o estudo do imaginário a partir das evocações perceptivas dos quatro
elementos primordiais (ar, água, terra e fogo) contribuem para o entendimento dos
elementos selecionados e combinados no processo de constituição das narrativas.
Ao dedicar-se ao estudo psicológico da imaginação, Bachelard valoriza a
liberdade criadora, o devaneio poético enquanto tomada de consciência a partir das
experiências evocadas através da percepção desses elementos. No livro A Água e os
sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria (Martins Fontes, 2002), por exemplo,
Bachelard elaborou um estudo psicológico sobre as várias percepções das águas por
meio de textos míticos e literários (prosa e poesia). A água substancial como mestre do
devaneio poético se desdobra em diversas imagens simbólicas: águas claras,
primaveris, correntes, profundas, suaves, violentas, bem como, a água combinada a
outros elementos como o fogo, a terra e a noite.
A água, representada pelos rios, lagoas, mares, mangues, etc; o fogo que aparece
através de chamas e grandes fachos luminosos em outras histórias, como é o caso do mito do
Biatatá (que será apresentado a seguir); o ar que, além da sua necessidade básica, pode ser
considerado como o responsável direto pelas combustões provocadas pelos biatatás; e a noite,
135
a grande coadjuvante das estórias, um dos ingredientes básicos de que se utiliza a Literatura
Oral em suas manifestações, porque liberta a imaginação, o devaneio total, a fantasia. A noite
é, sem sombra de dúvida, o elemento primordial que faz aflorar os medos, as superstições, as
crendices, conforme afirma Bachelard (ibidem)
A noite é uma substância, a noite é a matéria noturna. A noite é apreendida pela imaginação material. E como a água é a substância que melhor oferece às misturas, a noite vai penetrar as águas, vai turvar o lago em suas profundezas, vai impregná-lo (2002, p. 105)
A seleção, a combinação e o autodesnudamento desses elementos são explicados por
Iser (1999) como atos intencionais do fingir17 no jogo interativo entre o fictício e o imaginário
no processo de constituição dessas narrativas. É justamente a estrutura duplicadora desses atos
que possibilita a concretização do fictício, uma vez que possibilita a liberação do imaginário
de modo que, num processo de interação entre ambos a obra literária se concretize.
O mito do Biatatá18, que também faz parte do imaginário do Rio Cachoeira, é uma das
mais conhecidas expressões da Literatura oral e se apresenta em diversas variantes em todo o
território nacional. Também conhecido por “Boitatá”, “Baetatá”, “Batatá”, “Bitatá”,
“Batatão”, “Cumadre Fulôzinha”, “João Galafuz”, “Mbaê-Tata”, cuja origem do nome vem
do tupi mboi (cobra) e tatá (fogo)– é, de uma forma geral, uma assombração que se manifesta 17 1. Seleção – faz incursões nos campos referenciais extratextuais, transgredindo-os ao recolher elementos que serão reposicionados e incorporados ao texto, com a finalidade de engendrar novas formas. Esses elementos selecionados continuam subordinados ao campo de referência que o originou. O ato de seleção invade também outros textos (escritos ou orais, não importa), produzindo, desse modo, a intertextualidade.
2. Combinação – lida com as funções convencionais da denotação e da representação; é também onde ocorrem as transgressões intratextuais de limites, que vai do léxico aos personagens. Em relação aos significados lexicais, os agrupamentos estão indissociavelmente ligados, quer se trate de palavras cujos sentidos foram excedidos, quer se trate de territórios semânticos no interior do texto cujos limites foram transpostos pelos personagens.
3. Auto-indicação ou autodesnudamento – ocasiona um ato de duplicação peculiar designado pela expressão como se que, por sua vez, indica que o mundo representado no texto deve ser visto como se fosse um mundo, embora não o seja, pois o mundo textual não significa aquilo que diz. O como se (fosse) “cria um espaço entre o mundo empírico e sua transformação em metáfora para o que permanece não dito.” (ibidem, p. 70)
18 Sobre o mito de biatatá e suas variantes vide SOUSA, M.G. 2004. Literatura oral e o imaginário
das águas: o caso do biatatá em pedras – município de Una/BA. Ilhéus/UESC [monografia
(Especialização em Estudos de |Literatura Comparada –UESC)]
por meio de uma gigantesca cobra-de-fogo que vive nas águas e que aparece apenas à noite.
Em algumas culturas, esse monstro desempenha o papel de proteger os campos contra
incêndios, em outras, é a força causadora deles no intuito de assustar os homens e expulsá-los
de seu ambiente.
Segundo Seu Ozias,
Os mais velhos sempre contavam que existia o biatatá, quando eu tinha uns 14 anos. O problema do biatatá era o compadre e a comadre pecarem. Quando eles morrem viram o biatatá e ficam batendo facho. Numa moita de bambu eu vi, junto com a minha tia, por volta das 7:30, 8:00 da noite uma coisa facheando. Quando subiu na moita eram duas tochas de fogo. Minha tia dizia que via sempre.
Muitas outras visagens aparecem no rio Cachoeira, como é o caso das canoas e
tarrafas encantadas. Conforme as experiências noturnas de Seu Tum,
Antigamente o Banco tinha um gerador que funcionava até as dez da noite. Quando eram dados dois sinais antes de desligar pra valer, todo mundo corria para casa, pois na encruzilhada apareciam muitas visagens. Depois que o Seu Lindote, fiscal do posto, morreu, sempre aparecia alguém no rio e desaparecia logo depois. Alfredo é testemunha disso.
Um certo dia saímos, eu e Alfredo, de uma maré vazante e a lua tava clara e nós
vimos uma canoa enorme no meio do rio. Era a canoa de Seu Alagoano que tirava
areia do fundo do rio. Vimos a canoa solta no rio. – Vamos pegar aquela pra nós
ganhar um dinheiro? Disse pro Alfredo. Nós pelejamos pra pegar a canoa, mas a
agente nunca que conseguia pegar. Eu remava naquela direção e quando a gente
tava chegando pertinho a canoa sumia. A canoa ficava invisível.
D. Enedina, uma senhora de 92 anos, também evangélica, conta que nunca viu nada de
estranho no rio Cachoeira, mas reafirma que o tio falava dos vultos de canoa que aparecia
deslizando sozinha sobre as águas. Uma canoa que por mais que se remasse nunca se
conseguia alcançar.
Meu tio contava que via umas coisas quando ia pescar. Diz que quando jogava a tarrafa, outra logo aparecia. Aparecia também vultos de canoa... era as visagens!
137
De acordo com Seu Ozias, as visagens são almas penadas, pantomimas19 daqueles que
morreram afogados no rio Cachoeira.
Contam que pessoas [que já morreram] do Banco costumam ficar em cima das
pedras. Eu mesmo já amanheci o dia, mas nunca vi nada... Hoje não aparece mais,
porque antigamente era mais... as visagens apareciam. As pessoas ficavam
penando...Hoje, a devassidão tá demais. Ninguém tem mais o poder de ver mais
nada porque ninguém cumpre mais nada. Essas coisas com certeza existe. Quando
não existe a gente vendo, tem no sonho. Já vi contar que quando uma pessoa mata o
outro, aí nas encruzilhadas vira as pantomimas da pessoa. Quando a gente vê, a
gente sente um arrepio. Muita gente contava de pessoas que morriam afogado ali no
poço da [fazenda] Pirataquissê. Lá apareciam muitas visagens.
Ainda em relação às visagens, Seu Pepeu esclarece, com muito humor, as situações em
que, tomado de medo durante as pescarias noturnas, era impossível não ficar imaginando
coisas assombrosas diante de qualquer ruído.
Uma noite, eu tava pescando ali por perto da Cordilheira, quando eu jogava a
tarrafa, fazia um barulho assim: toc-toc. E cada vez mais ia aumentando o toc-toc.
Eu já tava invocado. Fui ficando cabreiro, pois era bem enfrente ao cemitério.
Parei assustado! Quando tô assim parado, vi foi uma latinha que batia na pedra.
Sabe o que acontecia? Quanto mais eu chegava junto, mais a latinha batia na
pedra. O que é a imaginação, né? E eu pensando que era alma penada. Muita coisa
acontece na beira do rio...
Uma vez ali mesmo, perto da Cordilheira, tinha uns dez dias após a enchente eu
joguei a tarrafa em um canto e a dita enganchou e desci cabreiro. Tive a impressão
que tinha pisado na cabeça de uma pessoa, pois tinha uns cabelos se mexendo.
Fiquei sem ânimo durante uns cinco minutos. O coração disparou! Quando fui
olhar... era um coco verde cheio de cabelo de tanto que ele ficou na água. Foi tudo
19 O sentido aqui empregado é o de almas que aparecem fazendo gestos aterrorizantes.
um susto. Nada foi real. Naquela época o rio era limpo, não tinha limo, não tinha
essa goga que tem hoje (grifos nossos).
Segundo Bachelard (op.cit., p. 18) a “imaginação é a faculdade de formar imagens que
ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. A imaginação inventa mais que coisas e
dramas, inventa vida nova.”
Uma análise que se propõe a demonstrar como o imaginário se processa, é
perceber que a imaginação criadora de Seu Pepeu corresponde a uma espécie de botão
acionador que ativa o imaginário. Nessa perspectiva, o imaginário pode ser apreendido
como uma “solução fantasiosa das contradições reais” (LAPLANTINE e TRINDADE,
1997, p. 24).
O próprio Seu Pepeu admite a força criadora da imaginação.
À noite eu sempre ouvia um barulho. Quando ia ver era uma capivara. Aqui tem
uma palha que tem um brilho à noite, chamada patioba. Quando o venço balança
ela de noite parece uma pessoa de branco vagando.(grifos nossos)
Trata-se, pois, de um contexto pelo qual o imaginário é ativado no sentido de
permitir uma construção que necessariamente não corresponde a todos os aspectos da
realidade, mas que possui alguma conexão com ela. Aqui, a estratégia do imaginário é
tão somente deslocar a apreensão da realidade de tal modo que possibilite criar "novas
relações inexistentes no real" (LAPLANTINE e TRINDADE, 1997, p. 25).
Por isso não exigem comprovação ou verificação com o real. É, portanto, outra
instância, coisa imaginária, capacidade que se restringe ao homo sapiens em atribuir
soluções, nem sempre práticas, para os acontecimentos que compõem o seu cotidiano.
Na construção imaginária da realidade, a memória ocupa um papel
fundamental. A recuperação da memória é imprescindível para a compreensão da
constituição de um lugar. No entanto, a memória não se restringe apenas a um
139
instrumento que possibilita a explorar o passado por si mesmo, mas é também um
meio que possibilita entender como se deram as vivências de um grupo social em um
determinado lugar.
Barreto (2000) enfatiza a importância que assume o trabalho de recuperação da
memória, visto que o mesmo pode levar tanto ao conhecimento como à valorização do
patrimônio, principalmente por parte dos próprios habitantes locais. Desse modo,
numa perspectiva turística, a preservação da memória, através da recuperação das
narrativas orais do Banco da Vitória, pode contribuir para a preservação de um bem
cultural, além de tornar possível a valorização cultural daquela localidade
É, pois, através da memória, que Seu Miraldo, um senhor de 55 anos, pescador
por hobby desde criança, conta a espantoso (e trágico) causo do Lobisomem
Cachorrão que apareceu no Banco da Vitória, tendo a Mata Atlântica como o
principal cenário.
Minha mãe contava caso de lobisomem. Diz que tinha uma mulher... (isso foi no tempo da quaresma e foi verdade mesmo) que tinha um marido e um nenenzinho. Eles vinham passando pelo mato de noite. Tavam indo para a casa, eu acho. De repente, o marido se afastou prá dentro do mato e sumiu, deixando a pobre sozinha. Mas isso era para ele se espojar no lugar dos outros animais e virar o lobisomem. Aí apareceu o cachorrão querendo engolir o menino. E a mulher subiu numa árvore, assombrada gritando pelo marido pra socorrer ela e o menino e nada do marido chegar. O menino tava enrolado em um xale e o cachorrão tentava pegar o menino mas só conseguia arrancar os fiapos do xale. E ela ficou em cima da árvore esperando que ele desistisse. Quando o marido apareceu o lobisomem já tinha ido embora. Aí ela disse: “Mas fulano, onde é que tu tava, que te gritei tanto e tu não apareceu? Bom, sei que quando foram dormir ela olhou para os dentes dele e viu que tava cheio de fiapos do xale do menino. Ela saiu e pegou o machado e matou o marido.
Também o Seu Pedro, ex-areeiro, mas ainda pescador, de 58 anos, nascido e criado no
Banco da Vitória, nos contou a sua experiência pessoal com o lobisomem.
Quando eu tinha uns dez anos, eu vi o lobisomem. Eu tinha o costume de levantar de madrugada e sair de casa, perambulando pela rua. Naquele tempo a luz do bairro só ficava acesa até as 10:00 da noite. Quando vi, corri ligeiro e fiquei assombrado. Era um bichão preto, de uns quatro metros, grande como um homem. Vi somente uma vez. Nunca mais saí de casa tarde da noite. Pai e mãe falavam que tinha lobisomem. Que na quaresma o bicho era um homem que só saía no escuro, que ele corria 7 léguas, tirava a roupa, se espojava no lugar de outros animais e
virava bicho. Depois, saía correndo pelas sete encruzilhadas para no tempo certo desvirar, serão ele ficava lobisomem para sempre.
De acordo com Cascudo (op. cit, p. 145), o lobisomem nos foi trazido pelos colonos
europeus. É, pois, um mito que aparece “em todos os países e épocas, com histórias
espelhadas, sob nomes vários, registrados nos livros eruditos”. O autor cita a tradição clássica
de Licaon, rei da Arcádia, que tentou matar Zeus e o deus o castigou, dando-lhe a forma
vulpina. Segundo a lenda, Licaon, tornado lobo, teria que se abster de comer carne humana
durante dez anos para voltar à forma humana. Nesse sentido, não há dúvida de que o mito,
está associado à prática antropofágica de eras precedentes.
Cascudo associa o mito também à história dos fundadores de Roma, Rômulo e Remo,
que teriam sido criados por Acca Laurentia, uma prostituta, loba, termo que designava as
mulheres que rondavam as vielas e lugares escuros em busca do amor furtivo. A loba de
Roma tornou-se sagrada e foi deificada através de festejos denominados como Lupercais, uma
manifestação de estilo orgiástico que incluía ritos de flagelação e que previam, inclusive, a
matança de lobos e cães, cujos sangues e peles adornavam os moços que saiam correndo e
uivando pelas ruas de Roma, açoitando os transeuntes a fim de promover a purificação.
Dessa forma, os romanos espalharam o mito em todos os recantos das terras
conquistadas. Onde “o animal fantástico foi assimilando peculiaridades locais, deformando-
se, nacionalizando-se, mas com os traços característicos que o fazem uno, inconfundível e
completo no quadro geral do fabulário popular” (CASCUDO, op. cit. 150). Alterações que
pudemos observar na narrativa de Seu Miraldo.
A metamorfose vulpina é tema de muitas outras culturas, que visam a justificar as
razões morais para o castigo divino. Todavia, no Brasil, a explicação portuguesa para o
fenômeno perdura, como por exemplo, o fato de uma mulher que possuir sete filhos, um deles
está condenado a virar lobisomem; justifica-se o castigo por relações incestuosas entre irmãos,
141
primos e, incluídos também nessa classe, os compadres. Nota-se, portanto, que o mito assume
importante papel social, enquanto provedor da ordem ética e moral entre as sociedades
humanas.
Já o causo da Mulher de Sete Metros, é uma lenda que se faz muito presente no
imaginário popular, particularmente da região Sul-baiana. Embora já exista a sua forma
impressa em folhetos de cordel, isso não a exclui do corpus daquilo que denominamos como
Literatura oral (em princípio, restrita à oralidade), pois apresenta características próprias que
segundo Jolles (1976, p. 146), “se realizam na vida e na linguagem sob o domínio de uma
disposição mental” para a imitação de que resultam, de modo semelhante, os outros gêneros,
denominados como formas simples (idem).
A versão do poeta e xilógrafo Minelvino Francisco Silva, intitulada “A mulher de sete
metros que apareceu em Itabuna”, publicada na Antologia Baiana de Literatura de Cordel,
pela Secretaria da Cultura e Turismo em 1997, é, na verdade, a escritura da voz (SANTOS,
1995), é re-criação escrita de uma expressão literária que se manifestou, primeiramente, na
forma oral.
Como se sabe, o intercâmbio entre a oralidade e a escrita é um processo antigo, a
exemplo dos contos recolhidos e registrados por Charles Perrault, na França do século XVII,
bem como, os irmãos Grimm que, no século XIX, pesquisaram a Literatura Oral com o
objetivo de reafirmar a nacionalidade alemã. Este foi um período fortemente marcado pela
busca e valorização das tradições e costumes populares, enquanto elementos representativos
de identidade das nações européias. Algo muito parecido que está acontecendo na
contemporaneidade com o movimento de recomposição das tradições ameaçadas por uma
suposta mundialização cultural.
Nessa perspectiva, convém mencionar que a passagem do oral para o escrito está
sujeita às várias modificações, onde as mudanças de ambientes e de suporte (principalmente
da palavra oral ao texto escrito) ocasionam alterações tanto de forma como de conteúdo.
Um exemplo a ser citado a esse respeito é o mito da Mãe-d’água, que ao passar da
oralidade para a versão escrita sofreu diversas modificações e, por conseguinte, geraram
outras lendas: o Ipupiara – um monstro meio homem, meio peixe, afogador de índios; a Uiara
– versão portuguesa da sereia; e também uma variação da Iara, inclusive narrada por José de
Alencar em O Tronco do Ipê, em que figura uma moça de longos cabelos verdes e anelados,
que vive no fundo do lago; Até mesmo o poeta baiano Sosígenes Costa apropriou-se desse
tema ao escrever Iararana, um longo poema narrativo que cria um mito de fundação da
Região Cacaueira do Sul da Bahia. De acordo com Paes (1959, p.7) “Iararana é a falsa iara, a
iara branca, mestiça, nascida da violação da mãe d’água do Jequitinhonha por Tupã-Cavalo, o
centauro invasor”.
Nesse jogo de revezamento entre as produções orais e escritas, cabe-nos observar a
narrativa do Seu Nado, morador na referida comunidade que, apesar de não querer se
identificar, nos contou sobre a sua experiência imaginária na infância com a Mulher de Sete
Metros
Quando eu era menino, na base de uns 13 anos, eu tava na rua com outros meninos conversando. E uma pessoa do grupo contou o caso da Mulher de Sete Metros que aparecia na estrada pra pegar a gente. Quando deu o primeiro sinal que a luz ia apagar, todo o mundo saiu na carreira pra casa. Quando eu tava voltando, que eu fui atravessar a rodagem, vi uma figura enorme também atravessando. Saí correndo disparado pensando que era a Mulher de Sete Metros. Cheguei em casa gritando: “Me acode que a Mulher de Sete Metros quer me pegar!!” No outro dia, fui ver que era o primo de um morador daqui que tinha chegado. Ele era muito alto e cabeludo.
Não há dúvida de que a performance do contador, ao narrar este caso, fez toda a
diferença e garantiu muitas risadas aos presentes.
143
A fim de estabelecermos um pequeno quadro comparativo do imaginário local,
observaremos agora o cordel intitulado “A mulher de sete metros que apareceu em
Itabuna” do poeta Minelvino Francisco Silva (1997), que optamos por transcreve-lo na
íntegra a título da riqueza de significados que apresenta, bem como visando à divulgação de
uma material tão precioso para a Região Sul-baiana.
Vou contar uma história Da região grapiuna Pra moça velha e rapaz Que mora nesta comuna, Da mulher de sete metros Que apareceu em Itabuna Diz o povo por aí Que a meia noite não saía Que está aparecendo De Itabuna até à praia Uma mulher com sete metros Vestida de mini-saia Dizem que uma mulher De cor assim: amarela... Só com dois dentes na boca, Pois ela é quase banguela, Não tem quem não se assombre Ouvindo a risada dela. O chofer Manoel de Souza De Ilhéus vinha correndo Em sua bela rural, Lá bem distante foi vendo Uma mulher no asfalto Com um sinal lhe fazendo. Dando um sinal de parada O motorista parou, Que a mulher ia crescendo Ligeiramente notou E a mulher foi crescendo Com sete metros ficou. O motorista assombrado Fez logo o Pelo-Sinal A mulher deu uma risada Que foi tão descomunal Que só o bafo da boca Quase que vira a rural O pobre motorista Ficou todo arrepiado
E naquele mesmo instante Com o motor já ligado Saiu em cento e quarenta Correndo desesperado. Um chofer de caminhão Que já se acostumou Conquistar toda mulher Conforme alguém me contou Com a mulher de sete metros De madrugada encontrou. De Ferradas pra Itabuna Vinha ele madrugada No clarão dos dois faróis Viu uma mulher na estrada Disse consigo: É aquela Que vai ser minha amada! Quando foi chegando perto Ele o seu carro parou Pra onde ela ia O chofer lhe perguntou, Se ela estava calada Calada mesmo ficou. Prá onde vai minha querida? Se pôs ele perguntar – Entre logo no meu carro Que nada vai lhe custar – A mulher ficou calada Fingindo não escutar. O chofer continuava A mesma cousa a dizer, A mulher sem dizer nada Se pôs somente a crescer, O motorista assombrado Saiu doidinho a correr. Pedro e Chico pescadores No Salobrinho pescando Quando foi a meia noite Começaram palestrando
Em relativo a coragem Cada qual mais se gabando. Chico disse: Eu sou um homem Que nada me mete medo! Eu pego alma de anzol Mato na unha do dedo, Já peguei um lobisomem E amarrei num rochedo! O Pedro disse: Eu também Não tenho medo de nada... Eu pego onça de mão Por mais que esteja assanhada, Eu já surrei uma caipora Que deixei morta, estirada.... Então cada um ali Contava o talento seu – Por não Ter medo de nada De medo nunca correu A mulher de sete metros Nessa hora apareceu. Assim que viram a mulher No momento conheceram Que era a de sete metros Pela estrada correram A carreira foi tão grande Que até as calças perderam. Na cidade de Uruçuca Fez um assombro fatal A mulher de sete metros Apareceu afinal Deixando uns assombrados E outros no hospital O velho Zé Pé de Suia Que é muito resolvido Certa noite foi à rua Vinha lá do “Pau-Caído” Já perto do cemitério Ele escutou um gemido Quando ele ouviu o gemido Seu corpo todo tremeu Quem será que geme aqui?... Pensou assim no seu eu, A mulher de sete metros Adiante apareceu Ficou ela da altura De um dos postes da luz, O velho Zé Pé de Suia Fazendo o sinal da Cruz Disse a ela: - eu te requero Em nome do Bom Jesus! Me diga como é o seu nome
E o que veio aqui fazer Que vive assombrando ao povo Fazendo a gente correr, Vestindo de mini-saia Qual o seu proceder?... Não se assombre Que agora vou me envergar, Pois vou contar o meu caso Para você escutar E dizer à mocidade Para não se enganar. E ali se envergou No joelho pôs a mão, O velho Zé Pé de Suia Sentiu-se alto do chão, A mulher de sete metros Deu começo a explicação: Eu morri de mini-saia E no céu não pude entrar, esta roupa escandalosa... Não deixou me aproximar Voltei ao mundo outra vez E aqui vivo a penar.
Com ninguém posso falar Todos têm medo de mim... quando eu apareço a um Já correm dizendo assim: É a mulher de sete metros!!! Me consideram um Caim Mas agora resolvi Vou fazer uma campanha Às moças de mini-saia Do Brasil até Espanha Que eu quero levar pra casa Da velha mãe de Pantanha... Também estou resolvida E agora vou fazer Ajuntar todas as mocinhas Que brincam com bambolê E levar todas comigo Pra ensinar a remexer Também estou resolvida A não dar passo perdido Vou fazer uma coleção Da mulher falsa ao marido Que a velha mãe de Pantanha Não atende o seu gemido. Eu estou bem preparada Para o que der e vier, Quero outra coleção Do homem falso à mulher
145
Que eu vou levar de presente Para a mãe de Lucifer Quero outra coleção Desde o pequeno ao graúdo Dos beberrões de cachaça, E de rapaz cabeludo Que a velha mãe de Pantanha Ela precisa de tudo... Outra bela coleção Eu quero fazer com zelo: Da mulher que faz fuxico E da que corta o cabelo E das que pintam as pestanas Parecendo um desmantelo!... Quero preparar com calma Outra bela coleção Do homem que não trabalha Para ganhar o seu pão E rouba as coisas dos outros Sem ter outra profissão Também outra coleção Agora quero fazer De todos os maus vizinhos Que fazem mau proceder A velha mãe de Pantanha Ensina tudo a viver!
Conforme mencionamos anteriormente, em se tratando de Literatura oral não há como
se delimitar uma fonte inicial. No entanto, é possível se buscar o caminho percorrido e a
convergência de temas que persistem em lugares distintos, as influências entre os mesmos, a
força e a representatividade identitária dessas narrativas.
Há, pois, nos textos apresentados sobre a Mulher de Sete Metros, a presença
incontestável do imaginário popular regional. Nesse sentido, a Literatura oral contribui
efetivamente para o estudo e entendimento da mentalidade popular local, pois sua força viva e
sonora se faz presente na voz anônima do povo. Ao mesmo tempo, denuncia comportamentos,
costumes, crenças, superstições, decisões e julgamentos que são instituídos culturalmente.
Mais que isso, as narrativas aqui analisadas apresentaram soluções práticas do dia-a-dia dos
ribeirinhos que, muitas vezes, utilizavam-se de causos assombrosos para conter a criançada
longe de situações perigosas. Mantida pelas fontes perpétuas de seu imaginário, a prática de
contação de histórias ainda se faz presente no Banco da Vitória.
No entanto, a riqueza desse imaginário não se esgotou. Pelo contrário, há ainda muitos
mistérios por se desvendar, muitas histórias a serem recuperadas e preservadas para que
possam despertar, nas gerações vindouras, a essência de uma cultura tão singular como a da
Região Sul-baiana, uma região que se destaca e se diferencia até mesmo das outras regiões do
Estado.
Com efeito, reavivar, estimular, rememorar tais manifestações é também possibilitar a
revitalização de uma tradição que deve ser valorizada, difundida e, especialmente,
compartilhada com seus visitantes. Além disso, a Literatura oral do Banco da Vitória pode
vir a ser a oportunidade plausível de salvar do silêncio a história e a cultura dos grupos
subordinados daquela localidade.
II
Essas observações são pertinentes, pois justificam a valorização e a inserção dos
contadores de causos do Banco da Vitória no discurso disciplinar. Quem já teve o privilégio
de ouvir histórias da boca de um contador expressivo tem noção do prazer que é compartilhar
de uma reunião onde a inventividade e a imaginação se manifestam através de uma linguagem
livre, especial, porque envolvente. Uma prática que possibilita o intercâmbio contínuo de
experiências entre o contador e o (s) ouvinte (s), todos envolvidos em um mundo fictício onde
prevalecem o riso, o encantado, a fantasia, o mistério.
4.4. Rio Cachoeira: um possível roteiro turístico-cultural
Muito discorremos sobre o valor socioambiental e histórico do rio Cachoeira para a
região, das atuais condições de degradação em que o rio se encontra e, em decorrência disso,
das dificuldades socioeconômicas de suas populações ribeirinhas, especialmente dos grupos
sociais que dependem diretamente do rio para sobreviver, como os pescadores e as lavadeiras
(De rio-provedor a rio-grande-lixeira). De uma forma geral, demonstramos como esses
fatores estão inter-relacionados e como interferem diretamente (e indiretamente) na
sustentabilidade turística do município de Ilhéus. Evidenciamos, ao longo desse estudo, a
importância do rio, tanto do ponto de vista ecológico como do ponto de vista afetivo, através
dos relatos dos ribeirinhos do Banco da Vitória. Ao recolhermos tais impressões, através das
visitas locais e das entrevistas, pudemos constatar a relação de dependência socioeconômica e
também o elo afetivo estabelecido entre aqueles moradores e o rio. Todos esses fatores
pesquisados, de uma forma conjunta, evidenciam a urgência de revitalização do rio Cachoeira.
III
Se, por um lado, o meio ambiente (natural e cultural) se constitui na principal matéria-
prima do turismo, então, podemos deduzir que, no sentido inverso, e com muito otimismo, o
turismo pode contribuir como um processo desencadeador de estratégias de revitalização do
rio Cachoeira. De que modo isso seria possível, se o rio já se encontra visivelmente
degradado? Possivelmente, através da formatação de um roteiro turístico cultural no percurso
em que o rio corre paralelo a BA 415, da rodovia Ilhéus/Itabuna em seu trecho mais
navegável, isto é, entre o Banco da Vitória (Km 8), passando pelo estuário de Coroa Grande,
chegando até a Baía de Pontal (vide figuras: 01, 05, 06, 31 e 32, correspondentes ao roteiro).
Na verdade, esse roteiro já existe e é realizado sob a forma de um evento anual através
da Maramata (Universidade do Mar e da Mata). No entanto, tal passeio se restringe a se fazer
o referido percurso sem qualquer evocação cultural que proporcione aos visitantes o
conhecimento sobre a parte histórica do rio, que é extremamente rica, pois envolve épocas
que remontam à colonização portuguesa, ao desbravamento da matas para a implantação da
lavoura cacaueira, a dizimação e o processo de aculturamento dos índios através do
aldeamento feito pelos jesuítas, do transporte do cacau efetuado pelo rio, quando sequer havia
a uma estrada, etc. (vide Capítulo Rio-caminho: mais um foco da história). Nem, tão pouco,
se tem conhecimento do potencial artístico, condizentes à contação de causos, narrados pelas
comunidades ribeirinhas que habitam aquelas áreas. Talvez pelo fato de se tratar de pessoas
de condições sociais muito humildes, e também pela falta de conhecimento formal, são
incluídos na programação desse evento de uma forma muito superficial, que se resume numa
pequena competição de remos, em canoas bastante rudimentares.
Com base nessas constatações, idealizamos um roteiro turístico-cultural no rio
Cachoeira que contemple o valor cultural do rio, incluindo-se aí, as populações ribeirinhas,
uma vez que o potencial paisagístico por si só torna-se insuficiente para se manter uma
IV
programação turística. É preciso colaborar para a construção de um turismo cultural
sustentado em bases políticas de preservação tanto do patrimônio natural como do patrimônio
cultural, comprometido não apenas com os interesses econômicos vigentes mas,
principalmente, com o desenvolvimento e o bem estar dessas comunidades, visando garantir a
memória social e, ao mesmo tempo a valorização por parte dos habitantes locais. Nesse caso,
a riqueza cultural presentes naquele local, seja através dos fatos históricos ali ocorridos, seja
através de manifestações da Literatura oral, onde o imaginário das águas é aflorado e
ficcionalizado nos causos narrados pelos pescadores locais, justificam a sua formatação.
Para a realização desse roteiro, passeios de barcos e chalanas, com estrutura adequada,
seriam programados, inclusive com guias turísticos treinados que pudessem contar os
episódios importantes sobre a história local. A bordo, contadores de causos seriam uma
atração à parte com suas histórias assombrosas e cheias de imaginação; professores e
estudantes poderiam utilizar tal roteiro para aulas-vivas de ecologia, biologia, geografia,
dentre outras; tudo isso seria formatado em virtude do potencial ecológico que o trecho
apresenta, pois o rio, apesar da poluição de suas águas, tendo a Mata Atlântica em seu
entorno, torna o percurso bastante atrativo, além da riqueza da biodiversidade ali presentes (as
quais ainda resistem).
Perpassando o roteiro, noções de educação ambiental seriam apresentadas aos
participantes, alertando crianças e adultos para a real necessidade de preservação da natureza,
através de uma experiência cultural rica e diferenciada. Nesse contexto, a sustentabilidade
turística se faria presente através de estratégias de revitalização e de preservação do rio e das
matas ciliares em virtude de sua formatação turística, além de contribuir para a inclusão de
uma prática social como a contação de histórias realizadas pelos moradores locais. Nesse
sentido, a ação da UESC poderia ampliar-se, inclusive através do seu Programa de
V
Intercâmbio Universitário, treinando professores das redes pública e privada, tendo em vista a
execução de um programa de educação ambiental.
Certamente que há uma distância muito grande em se planejar e se executar tal
projeto, uma vez que seriam necessários investimentos tanto por parte do poder público como
por parte da iniciativa privada. Além disso, seria imprescindível traçar estratégias de
revitalização do rio em toda a sua extensão, tendo em vista todos os fatores que levantamos,
com maior ênfase na questão do equilíbrio ecológico, pois sem ele não há sustentabilidade
ambiental e, nem tampouco, sustentabilidade turística. Sob esse aspecto, sem tratar a questão
ecosoficamente, isto é, sem colocar o homem no centro dessas questões, a execução de
quaisquer planos de revitalização do rio Cachoeira ficam realmente inviáveis.
Desse modo, se a pesquisa em turismo contempla investigações de problemas
relacionados ao setor, por isso mesmo deve alertar ou sugerir possíveis soluções na tomada de
decisões daquilo que precisa ser potencializado ou reconfigurado em uma destinação turística.
Os estudos turísticos podem auxiliar também na formatação de um planejamento que se ajuste
ao produto que se deseja oferecer aos visitantes, fazendo com que os mesmos levem a melhor
impressão do lugar. Assim sendo, identificar e avaliar os problemas relacionados ao meio
natural pode contribuir e muito para impedir que, no futuro, toda essa riqueza ambiental do
rio Cachoeira se perca no tempo e no espaço. No tempo, pela ausência de memória e, no
espaço, pela própria degradação do meio ambiente.
Nessa perspectiva, o turismo pode contribuir como um elemento motivador de
estratégias de revitalização e de preservação, pois a inter-relação entre o turismo e meio
ambiente é um fato incontestável. O turismo pode impulsionar, sim, o desenvolvimento
socioespacial das comunidades receptoras, mas somente quando esse é gestado com base nos
VI
princípios de sustentabilidade, isto é, quando visa a manter a qualidade do meio ambiente de
que tanto dependem os residentes locais e, também, os visitantes.
VII
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS E SUGESTÕES
Cabe à educação patrimonial proceder à escuta e à mediação dos sujeitos sociais portadores de tradições, de saberes e fazeres que, em sua diversidade, constroem
atrativos geradores de significação e integradores da identidade e identificação cultural. É a sua responsabilidade sensibilizar e conscientizar as comunidades em
torno de seus valores e tradições, inserindo tais práticas na vida sustentável, resgatando e preservando o imaginário coletivo e o patrimônio representativo da
cultura, no eixo temporal e espacial. Eny Kleyde Vasconcelos Farias
Pensar um futuro turístico implica antes de mais nada a realização da cidadania. Yázigi
VIII
Conforme ficou evidenciado, Ilhéus é uma cidade predominantemente aquática. Com
quase cem quilômetros de praias exuberantes, o município conta com inúmeros atrativos
naturais, cuja paisagem, de grande beleza cênica, é constituída de restingas, recifes, ilhas,
baías e manguezais, além dos remanescentes da Mata atlântica como suas fazendas
centenárias de cacau, tendo ainda como vantagem as facilidades de acesso a esses recursos, o
que demonstra que, no âmbito paisagístico, existe um grande potencial turístico a ser
explorado. Entretanto, o mesmo não pode ser dito em relação ao equilíbrio ecológico desses
recursos naturais, considerando-se que a qualidade das águas, das quais dependem esses
atrativos, se encontra em um crescente processo de poluição. Desse modo, a poluição aquática
interfere sobremaneira, na sustentabilidade ambiental de Ilhéus, uma vez que põe em risco as
possibilidades de uso desses atrativos em favor de um turismo local.
As informações recolhidas pela pesquisa, através de estudos bibliográficos sobre o rio
Cachoeira e também nas entrevistas realizadas com os moradores do Banco da Vitória,
demonstraram que em Ilhéus, o descuido e o descompromisso com os princípios de
sustentabilidade ambiental são flagrantes, não obstante o conhecimento comum de que a falta
de cuidados com o meio ambiente (natural e cultural) ocasiona desequilíbrios ecológicos que,
convém ressaltar, não comprometem apenas a atividade turística e setores associados a
segmento, mas, interferem, principalmente, nas condições gerais de vida de seus habitantes.
Por outro lado, assim como o rio Cachoeira, há indícios de que os outros rios (Almada,
Fundão, do Engenho) que compõem o estuário de Coroa Grande, também se transformaram
em grandes-lixeiras, pelas mesmas razões mencionadas. A obviedade desses fatos, por si só,
já isenta qualquer dúvida a respeito da poluição de pelo menos uma grande parte das praias
ilheenses. Isto, sem contar com os esgotos que escoam livre e diretamente nas praias, como é
o caso da Praia dos Marcianos, do Pontal, da Avenida, das Praias do Sul, principalmente.
IX
No caso específico do rio Cachoeira, foi verificado que as suas condições atuais de
degradação são decorrentes de um comportamento generalizado do desrespeito e,
principalmente, da ineficiência e do descaso de políticas públicas em favor do meio ambiente
e, por conseguinte, do cidadão. A derrubada de matas ciliares, a deficiência de saneamento
básico e falta de remoção de lixo ao longo de toda a bacia do rio Cachoeira foi constatada
como problemas graves e sem perspectivas imediatas de solução. Além desses fatores, o
desmatamento crescente tem diminuído a capacidade de retenção de águas em seu leito.
Conforme foi constatado, o fato de o rio Cachoeira receber, ao longo de toda a bacia,
esgotos e toda a forma de detritos orgânicos e inorgânicos, alterou a sua função principal
enquanto um recurso natural provedor de alimento, sustentação e lazer, sobretudo, para
grande parcela da população que vive em seu entorno. Como mais um agravante, a indigência
social, decorrente da crise da lavoura cacaueira compromete a sustentabilidade turística de
Ilhéus. E aqui cabe uma observação que apesar de óbvia, se faz necessária: turismo não
combina com miséria.
Tal situação, que contribui para a escassez e a contaminação de peixes, impede o
exercício de profissões, de extrema importância socioeconômica, como a dos pescadores e
lavadeiras. Assim, além de favorecer para um desequilíbrio social muito grande, o estado de
degradação do rio provoca inúmeras doenças contagiosas que, principalmente, atingem as
populações ribeirinhas, devido ao seu maior contato com o rio e consumo de peixes
contaminados. Também o desmatamento excessivo e a retirada de grande parte das matas
ciliares, aliados à grande quantidade de lixo depositado em suas margens, são constatações
que, conforme verificamos, evidenciam a gravidade e complexidade de um problema, cujas
soluções, ou pelo menos a tentativa delas, não podem mais ser adiadas.
Se o rio Cachoeira se transformou em uma grande-lixeira - de uma forma muito mais
intensificada nos últimos dez, quinze anos -, e este processo é decorrente das ações antrópicas
X
descontroladas, isto significa que, em se retirando as tais ações desordenadas, haveria
possibilidade de recuperação do nosso precioso curso d’água. Embora saibamos que a
resolução desses problemas não seja tão simples, a conscientização dessa grave situação e a
possibilidade de reverter esse quadro, nos torna mais ecosoficamente responsáveis.
A pesquisa permitiu verificar que muitos fatores contribuíram (e continuam a
contribuir) para com a crescente poluição e contaminação do litoral ilheense. O nível de
poluição do rio Cachoeira vem aumentando consideravelmente ao longo dos anos, conforme o
crescimento populacional das cidades que compõem a bacia, uma vez que implica numa
maior produção de dejetos e de águas residuais. Como o saneamento básico não tem
acompanhado o ritmo de crescimento da população, há, obviamente um desequilíbrio muito
grande cuja tendência é aumentar sempre, tornando a situação cada vez mais insustentável.
A partir dessas análises, observamos que os problemas que envolvem a degradação
contínua do rio Cachoeira estão diretamente relacionados ao do crescimento da indigência
social no município, que inclusive tem alcançado patamares bastante significativos.
Desse modo, a falta e/ou ou a insuficiência de saneamento básico em Ilhéus, bem
como em Itabuna e em outras cidades circunvizinhas (aliás, esta é uma realidade geral na
região, conforme pudemos constatar), compromete de forma extremamente negativa o
segmento turístico litorâneo de Ilhéus, em virtude de que praias poluídas se constituem em
focos de numerosas enfermidades, que estão relacionadas diretamente às águas marinhas, à
areia, bem como aos alimentos servidos, em geral mariscos (com grandes chances de estarem
contaminados). Aliado a esses fatores que estão diretamente relacionados à sustentabilidade
ambiental, a falta de planejamento turístico contribui também, para a redução do fluxo de
turistas.
Tendo em vista que a sustentabilidade socioambiental deve anteceder as preocupações
que envolvem o turismo, constatamos o quanto a resolução do problema ambiental está
XI
relacionado às mudanças de comportamento do homem. O homem é, de fato, o determinante
ecológico e, sendo assim, constitui-se no epicentro do problema. Nesse sentido, ao se pensar
em educação ambiental é preciso levar em consideração a diversidade e a subjetividade de
cada grupo humano, de cada grupo social, pára que seja possível re-orientar o indivíduo
ecologicamente.
Já em relação ao turismo litorâneo de Ilhéus, os resultados dos dados analisados
impõem a questão: até quando um ambiente natural, de beleza tão exuberante como o litoral
ilheense, resistirá a toda essa carga de detritos despejados em suas águas? A análise das
imagens paradisíacas, divulgadas pela mídia, ratificaram tal questionamento que trazemos
para essas reflexões conclusivas: quantos desses locais podem estar condenados a não mais
existirem daqui a dez, quinze anos, talvez? As imagens retratam espaços aparentemente
perfeitos para o chamado turismo de natureza, ou ecoturismo como preferem alguns. Locais
que só de olhar é um refrigério para alma, para revigorar as energias desfeitas, ou ainda para
praticar diversos tipos de esportes, principalmente, os náuticos. Mas aí um problema se
instala: como usufruir deste paraíso, sem, no entanto, correr o risco de contaminação? Afinal,
quais são os limites de segurança que a saúde pública de uma destinação que, a exemplo de
Ilhéus, pretende apostar no turismo como uma atividade de soerguimento econômico sem, no
entanto, ao que parece, associá-lo aos princípios de sustentabilidade do segmento turístico?
É certo que a situação ainda não é irreversível; mas o que os resultados da pesquisa
apontam é que se logo não forem tomadas medidas enérgicas, que atentem para a preservação
dos recursos naturais dos quais estamos tratando, essas previsões poderão vir a se confirmar.
Uma prova incontestável disso é que, pelo menos há uns vinte anos atrás, o rio Cachoeira não
tinha as feições de grande-lixeira que tem hoje.
Desse modo, é evidente que o problema de degradação e poluição das águas do rio
Cachoeira está intimamente relacionado à deficiência de um programa de educação ambiental
XII
que precisa ser efetivado em todos os níveis sociais com base em princípios ecosóficos. Nesse
sentido, entendemos que o turismo pode contribuir para motivar a preservação tanto da
natureza como da cultura local, já que se trata de instâncias que são indissociáveis.
XIII
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XXI
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XXII
APÊNDICE
XXIII
ROTEIRO ENTREVISTA
1. Sexo ( ) M ( ) F
2. Nome completo ___________________________________________-
3. End. _______________________________________________
4. Data de Nascimento __________________ Idade ______________
5. Escolaridade. Qual a última série que o (a) senhor (a) concluiu? ______________
6. Qual a sua profissão?_________________
6.1 O que faz atualmente? _________________
6.2 Renda ____________________
7. Há quanto tempo o (a) senhor (a) mora nesse lugar? _____________________
8. Quais as vantagens de viver próximo a rodovia? E as desvantagens?
9. Como o (a) senhor (a) se sente morando nesse lugar?
9.1. como é o seu cotidiano?
10. Que significado o Rio Cachoeira representa para o sr?
11. O que o sr sente quando olha para o rio?
12. Como é a sua relação com o Rio? O sr já pescou nesse rio?
12.1. como está a qualidade da água? Como era antes?
12.2. Que tipos de peixes ainda se encontram no rio?
13. Como o sr. gostaria de ver o rio?
14. Que tipo de perigo o rio apresenta para a comunidade?
15. O sr conhece estórias sobre o rio? Conhece alguém que sabe?
16. Alguém da sua família possuía ou possui o hábito de contar causos acontecidos aqui nesse local?
17. O sr tem uma estória para contar sobre o rio?
XXIV
PEDRO CONCEIÇÃO SILVA [negro]
1. R. Dois de Julho, 15, Banco da Vitória 2. 18.10.46 --- 58 anos 3. 1a série primária 4. Pesca como lazer; foi areeiro e hoje está aposentado como servidor público, 1 SM 5. Nasceu no Banco, gosta do lugar devido à tranqüilidade. 6. Não vê desvantagens em morar perto de uma BR tão movimentada. [vive em local um
pouco afastado da BR] 7. Sente-se bem, tem amigos e parentes, convivência boa com todos 8. Toma conta de um pequeno comércio (bomboniere); é cristão, procura viver em paz 9. Vê o rio como fonte de renda. Criou os irmãos (15) tirando areia do rio. O rio foi
ficando fundo demais, teve que trabalhar no matadouro. “Quando o rio tinha água era melhor, hoje não existe mais areia”
10. Fica triste ao olhar para o rio, não pode sequer tomar banho, anteriormente se podia até beber a água do rio de tão limpa que era. “dava para ver o fundo do rio”
11. Afastou-se do rio. Sente-se doente devido à poluição. Sente-se mal, pois não consegue pescar. Já pescou muito de anzol. Anteriormente pegava até siri de anzol. O rio já teve muitos peixes como pitu, siri, calambau, beré, tucunaré, robalo. Nos anos setenta se pescava muito com bomba.
A água está poluída. Quando limpa servia até para beber ainda tem pilape (tilápia), tainha...
13. Como antigamente: saudio, que a gente tomava banho, bebia a água. No rio dos anos 70 sentia prazer, tinha muitos ingazeiros em suas margens. - saudosismo
14.As pessoas correm muito perigo de doença: febre, gripe muita, muitas ostras que oferecem perigo de se cortar com as ostras.
15. Nos anos 60 uma mulher foi tomar banho e o cabelo dela saiu com um nó que precisou cortar o cabelo. Foi porque ela xingou muito a mãe... No rio tem uma Pedra de Guerra [lajedão] que vai até o Iguape.
16.Seu Zé Vieira que mora na Duque de Caxias, tem 70 anos.
[Sobre o passeio da Maramata – muito movimento no Banco da Vitória. É muito bom!] turismo
17. Aos 8 anos viu o diabo porque tinha xingado muito. Estava dormindo e acordou assustado. De tanto medo, nunca mais xingou; aos 10 viu assombração: o lobisomem. Tinha o costume de levantar de madrugada e sair de casa, perambulando pela rua. Naquele tempo a luz do bairro só ficava acesa até as 10:00 da noite. Quando viu, correu ligeiro e ficou assombrado. Era um bichão preto, de uns quatro metros, grande como um homem. ?Vi somente uma vez. Nunca mais saí de casa tarde da noite. Pai e mãe falavam que tinha lobisomem. Que na quaresma o bicho era um homem que só saía no escuro, que ele corria 7 léguas, tirava a roupa, se espojava no lugar de outros animais e virava bicho. Saía correndo pelas sete encruzilhadas para no tempo certo desvirar, serão ele ficava lobisomem para sempre.
XXV
MIRALDO CARDOSO NASCIMENTO [cor parda]
1. Praça Guilherme Xavier, 132, Banco da Vitória 2. 1/8/49 – 55 anos 3. 3a série primária 4. Aposentado. Foi feirante, firma de terraplenagem (tratorista), motorista de carro pipa; costumava pescar quando jovem, dos 12 aos 20 anos. - 4,5 SM 5. 30 anos 6. Pista muito perigosa, muitos amigos foram atropelados. Viu muitas batidas. 7. Sente-se bem. Nasceu em S. José, chegou no Banco aos 2 anos de idade. 8. viúvo, é da Igreja católica, lugar tranqüilo 9. Responde em tom dramático: “O rio tá morto. Conseguiram matar o rio. Fico muito triste de ver o rio assim do jeito que ta. Já tomei muito banho no rio .ta muito poluído. A água tá muito contaminada. Tem muita é micose...”. 10. Muita tristeza 11. Só vai ao rio pescar para distrair. O peixe tá contaminado. O esgoto cai direto no rio, não tem rede de tratamento e paga IPTU. “Um absurdo” 12. “Eu queria ver o rio como de Correntina (na Lapa) com a água cristalina. O peixe pode até não tá contaminado, mas a água tá. O rio ainda dá para ficar bem, embora as pessoas joguem lixo nas margens mesmo tendo coleta de lixo 13. . É ignorância. Pessoa que tem filho, tem neto... o lixo transmite doença. E o poder público não entra com ação nenhuma. É só fazer propaganda para conscientizar.” 14. “O perigo maior é a água que é contaminada. Os esgotos de Itabuna que cai no rio. Restos do matadouro é jogado no rio. Não tem fiscalização. A churrascaria de um amigo nosso foi fechada por causa do esgoto aberto”. 15. “Já vi fala de pessoas que pescam à noite. Pessoas que jogam a tarrafa e vê outra pessoa jogando adiante e quando tenta chegar perto nunca tem ninguém. São visagens que aparece no rio”. 16. “Tem o caso da mulher que xingava muito a mãe. Um dia ela foi tomar banho no rio lá pela 6 da noite. Eu vi. O cabelo da mulher virou um bombril que teve que cortar de tão grande que tava o nó. Ela tinha um cabelão. Isso aconteceu mesmo porque eu vi. Foi de tanta que ela xingou a mãe. Era um povo assim sem respeito. Mas logo eles foram embora. ” 17. “Minha mãe contava caso de lobisomem. Diz que tinha uma mulher... (isso foi no tempo da quaresma e foi verdade mesmo) que tinha um marido e um nenenzinho. Eles vinham passando pelo mato de noite. Tavam indo para a casa, eu acho. De repente, o marido se afastou prá dentro do mato e sumiu, deixando a pobre sozinha. Mas isso era para ele se espojar no lugar dos outros animais e virar o lobisomem. Aí apareceu o cachorrão querendo engolir o menino. E a mulher subiu numa árvore, assombrada gritando pelo marido pra socorrer ela e o menino e nada do marido chegar. O menino tava enrolado em um xale e o cachorrão tentava pegar o menino mas só conseguia arrancar os fiapos do xale. E ela ficou em cima da árvore esperando que ele desistisse. Quando o marido apareceu o lobisomem já tinha ido embora. Aí ela disse: “Mas fulano, onde é que tu tava, que te gritei tanto e tu não apareceu? Bom, sei que quando foram dormir ela olhou para os dentes dele e viu que tava cheio de fiapos do xale do menino. Ela saiu e pegou o machado e matou o marido.
Informações adicionais: “Antigamente o rio era estreito e fundo. De 1967 para cá,
depois da enchente – era ingazeira de um lado e do outro. Aos poucos, as areias e as
ingazeiras foram acabando
XXVI
OSMÁRIO BONFIM DE OLIVEIRA (Seu Tum) [cor parda]
1. Rua Aldair, 52, Banco da Vitória 2. 1950 – 54 anos 3. Até 3o ano primário 4. Pescador e soldador (conserta fogões) 5. Pesca todos os dias. Duas vezes por dia e deixou de pescar à noite. 6. Na calcula. +_ 1 SM. No inverno é melhor porque o rio tem mais água. 7. Mora desde que nasceu no Banco da Vitória 8. Vê vantagens. Em 2003 a comunidade recusou a construção de uma FEBEM no local. 9. Sente-se feliz, não tem do que reclamar. Pescando ganho R$ 3,00 hoje, R$ 5, 00 amanhã. To esperando a aposentadoria. Pago a Capitania e o INPS. 10. O rio para mim é ... o que eu quero dizer...? [parou para pensar um pouco] É uma roça frutífera porque toda vez que eu vou lá eu colho. Foi de lá que eu comecei, que eu criei família. Tenho tudo de lá. 11. Sinto hoje que foi a falta de emprego... hoje o rio não dá mais para se lavar roupa. Cai tudo dentro d’água. O sangue do matadouro cai todo no rio. Para mudar esse problema que nós tamos acontecendo hoje era que tivesse uma fiscalização desde Itaju donde ele nasce. A sujeira começa de Itabuna. Que podia tirar aquela rede de esgoto. A fiscalização do IBAMA. A gente vê fiscalização pra venda, pra madeira, mas não tem pra água. [disse um tanto aborrecido e com conhecimento de causa]. 12.1. A água tá preta.tácomo se fosse um sumo escuro. Quando chega o verão vai piorando. O peixe não dá para encontrar o outro. Morre muito peixe. Morre o pitu, morre o camarão, siri, pilápio. Morre quantidade de peixes. A água era limpa. Nós tinha de fartura. Nunca faltou nada para o pescador. Hoje o pescador só pega se for profissional. 12. Rubalo, tambaqui, crumatá, bagre africano, tucunaré verdadeiro e o comum. O pilápio ta acabano porque o que a CEPLAC botou come os ovos das outras. Quando eu pego um eu abro a boca deles e tiro as ovas e jogo no rio. 13. Eu gostaria de ver o rio limpo. O rio hoje não tem agasalho, não tem esconderijo para os peixes. As pessoas cortam as árvores e os peixes vivem no aberto. Peixes não dorme no aberto. Nosso rio está de uma maneira não do modo que eu alcancei. Reduziu muito a quantidade de peixes. 14. É quando ta poluído. No verão você pega um pouco d’água e vai verificar que tá amarga. Temos dois braços de água. O canal sul e o canal norte. Hoje não se navega mais. O rio tá seco, não tem como passar mais. Nem peixe. 15. Na Pirataquissê tem um poço fundo. A água é fria. Tem várias qualidade de águas. É onde está a criação [o berçário] – lugar mais fundo onde ficam os peixes. 16. Do meu crescimento do rio eu peguei experiência... eu avisava que não sujasse a água. 17. Já fiz muito livramento [salvou ]. Sou bom nadador e bom mergulhador. Fiz muitos amigos no Rio. 18. Sou criado no Banco da Vitória. Fico mais bem no rio do que em casa. Eu queria que esse rio tivesse mais uma oportunidade de ficar limpo...!’ Nosso rio é um rio que deve ser fiscalizado vinte quatro horas por dia.
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
A enchente de 67 inundou totalmente o Banco. Alagou totalmente a estrada. Foi quando o rio enlargueceu, ficando mais raso. Pedra de guerra – lajedo enorme- Marinha proibiu de detonar
XXVII
HISTÓRIA DE VIDA
Filho de pescadora (D. Enedina – 92 anos). Quando criança a mãe levava os oito filhos para pescar. O pai era tropeiro, por isso a mãe pescava para sustentar a casa. Pescavam de jereré e de tarrafa de tucum tingida com murta, depois vendiam camarão no bairro. Quando estavam maiores vendiam na pista (Br 415). Continua pescando no Rio Cachoeira.
Foi para S. Paulo como “mecânico de fogão”. Vive até hoje assim. Tem seis filhos e pesca para sobreviver desde os nove anos. No verão o rio vira lama e produz muitos micróbios, dá urubu. Ficou enfermo de cólera e acha que foi da água suja do rio. Quando criança, o rio era o banheiro.
FATOS CURIOSOS
Na década de 70 praticavam tourada na antiga praça da feira. [indícios de portugueses ou espanhóis]
Antigamente o Banco tinha um gerador que funcionava até as dez da noite. Quando eram dados dois sinais antes de desligar pra valer, todo o mundo corria para casa, pois na encruzilhada apareciam muitas visagens. Depois que o Seu Lindote, fiscal do posto, morreu, aparecia alguém no rio e desaparecia logo depois. Alfredo é testemunha disso.
Um certo dia saímos, eu e Alfredo, de uma maré vazante e a lua tava clara e nós vimos uma canoa enorme no meio do rio. Era a canoa de Seu Alagoano que tirava areia do fundo do rio. Vimos a canoa solta no rio. – Vamos pegar aquela pra nós ganhar um dinheiro? Disse pro Alfredo. Nós pelejamos pra pegar a canoa, mas a agente nunca que conseguia pegar. Eu remava naquela direção e quando a gente tava chegando pertinho a canoa sumia. A canoa ficava invisível.
O finado Vavá, pai de Alfredo, xingava muito. Ele era ferreiro. Ele usava um fole pra fazer as peças dele. Ele tinha o costume de toda às seis horas ir tomar banho no rio e ficar esquentando na Pedra de Guerra (uma laje de mais de 30 metros). Às 6:40, mais ou menos, estava tudo escuro e apareceu pra ele a imagem de um homem dentro d’água. Ele tinha mais de dois metros. Tava nu. Mas a gente só via da cintura pra cima. O homem tava assim parado com os braços encruzados. Pergunta a Zé Evanildo e Jatobá que também conhece esse caso. Todo mundo viu. Lourinho [o valentão do lugar] pegou o facão e foi atrás do tal homem e não encontrou nada. Quando chegou lá não tinha mais ninguém. Olha, eu sou evangélico e não posso contar uma coisa negativa. Eu tenho que contar o testemunho que eu vi.
No rio também já apareceu o Nego d’água na Pedra de Guerra e na Laje das Freiras. Foi visto duas vezes. Ele é um anão, escurinho e forte, careca e tem a cabeça redondinha. Tem mais de vinte anos que eu vi. Quando você chega perto dele ele cai n’água espalhando muita água. Quer dizer que ele tem volume, né? Essas coisas a gente via era com a lua clara.
Aparece também muito pau que range, parecendo a Caipora. Muitas vezes deixei de entregar a comida de meu pai, que trabalhava na roça. E ele ficava lá com fome. Tudo isso por causa do medo da Caipora.
Essa história de se perder na mata por causa da Caipora´-, eu porque é que acontece. Não sabe menino, quando tá caçando passarinho? Pois ele se perde porque enche os bolsos de pedra e sai com o badoque atrás dos passarinhos. Quando vai ver, já tá perdido no mato e depois fica dizendo que foi a Caipora. Caipora, meu pai nunca contou pra nós. Mas meu pai já se perdeu na mata.
XXVIII
Depois que Deus me deu o discernimento da escritura e uma pessoa de Ciência disse que a gente era da geração do macacão, eu peguei a Bíblia para mostrar para ele que a gente não é da geração de macaco.
Fomos criados no rio e vimos muita coisa por aqui... Tinha o areão. Areia que sumiu. Não tivemos draga...
“Mas tivemos a draga humana. Eu mesmo já tirei muita areia” – Afirmou S. Pedro [impacto das ações humanas]
NADO – Não quis se identificar. Um rapaz de aparentemente uns 33 anos de idade contou um episódio sobre a Mulher de Sete Metros (mito criado pelo poeta Minelvino e que incutia medo nas crianças...)
Quando eu era menino, na base de uns 13 anos, eu tava na rua com outros meninos conversando. E uma pessoa contou o caso da Mulher de Sete Metros que aparecia na estrada pra pegar a gente. Quando deu o primeiro sinal que a luz ia apagar, todo o mundo saiu na carreira pra casa. Quando eu tava voltando, que eu fui atravessar a rodagem, vi uma figura enorme também atravessando. Saí correndo disparado pensando que era a MSM. Cheguei em casa gritando: “me acode que a MSM quer me pegar!!” No outro dia, fui ver que era o primo de um morador daqui que tinha chegado. Ele era muito alto e cabeludo.
OZIAS ANTÉRIO DOS SANTOS
1. 10/06/1945 - 59 anos
2. R. da União, Sítio Beira Rio, Km 8, Banco da Vitória.
3. 2o ano primário.
4. Pescador por mais de 29 anos e continua pescando. A renda não é fixa, atualmente a situação é bastante ruim, pois não há peixes.
5. Vive no Banco desde que nasceu. Veio para o sítio em 1969
6. Vantagens de morar no lugar - O melhor lugar que existe devido o contato com o rio; conhece toda a região vendendo mariscos.
7. Cotidiano - É pescar. “Amanheceu o dia e eu não fui nas águas, fico desassossegado”.
8. Vive sossegado – vive só; sente que as pessoas não sã solidárias.
9. Não sai, bota o manzuá [armadilha] para pegar os peixes – coloca à tarde e tira pela manhã;
XXIX
10. “O valor que o rio tem é igual a de uma roça que produz, valor maior que uma roça. É natureza. Não botemos nada e lá a gente só faz colher. É uma obra de Deus que nos serve para alimentar” – Criou toda a família, 8 filhos e dezesseis pessoas ao todo. “ O rio é fonte de vida. E das melhores. Há muitos anos ele mais limpo, agora está maltratado. Adoeci no rio por mode de resfriado.” - “Trabalhei em firma mas o salário não dá. Hoje o rio ta fraco mas a gente arruma despesa”
11. Sente-se um pouco mal, mas não tem jeito a dar. “ Temos o IBAMA, mas não adianta nada. O rio não tem trato nem pela prefeitura, nem pelo estado. [O que deve ser evitado?] Os esgotos é o que há de mais grave. É preciso dar o tratamento básico no rio. Quando as autoridades limparem a cabeça dório, ter mais higiene... a sujeira vem toda para o Banco. [E apesar disso ainda pesca, com toda a sujeira que vem do lixo e do matadouro; Fez denúncia no rádio de um curtume que jogava toda a sujeira no rio.
12. “Há 12,15 anos atrás eu pegava 15/20 kg de pitu por noite. Hoje não pego nem 300 g. Nós não tem mais pitu aqui. Nem tem mais fartura de peixe.Já peguei 100 kg de peixe, hoje não pego mais nada.táficando muito difícil. A multidão é muita de pescadores. Muita gente com a situação ruim que corre para o rio”
13. Peixes ainda encontrados: tucumaré, pilape
14. A água desbota. Fica escura, verde, barrenta na cheia. Enverdece por causa do limo nas pedras.
15. “Gostaria de ver ele com água. O rio seco é tristeza para nós. Com água o rio fica mais limpo. O rio cheio não se pode facilitar. Quem não tem costume pega febre.”
16. “Os mais velhos sempre contavam que existia o biatatá quando eu tinha uns 14 anos. O problema do biatatá era o compadre e a comadre pecarem. Quando eles morrem viram o biatatá e ficam batendo facho. Numa moita de bambu eu vi, junto com a minha tia, por volta das 7:30, 8:00 da noite uma coisa facheando. Quando subiu na moita eram duas tochas de fogo. Minha tia dizia que via sempre.”
“Contam que pessoas (que já morreram) do Banco ficam em cima das pedras. Eu mesmo já amanheci o dia, mas nunca vi nada... Umas 20 pessoas que morreu. Hoje não aparece mais, porque antigamente era mais... as visagens apareciam. As pessoas ficavam penando...Hoje, a devassidão tá demais. Ninguém tem mais o poder de ver mais nada porque ninguém cumpre mais nada. Essas coisas com certeza existe. Quando não existe a gente vendo, tem no sonho. Já vi contar que quando uma pessoa mata o outro, aí nas encruzilhadas vira as pantomimas da pessoa. Quando a gente vê, a gente sente um arrepio. Muita gente contava de pessoas que morria afogado ali no poço da Pirataquissê,” aparecia muitas visagens.”
“Por causa do Nego d’água eu saí uma vez correndo assustado. Sempre ouvi falar do Nego d’água. Aconteceu que um dia eu tava pescando e a rede enganchou na pedra. Aí, eu mergulhei. Quando eu tava lá embaixo eu me lembrei do Nego e saí na carreira. Minha mulher falou: Ôxe! Já voltou da pescaria?!! É... Não tinha peixe... Quando a gente é jovem, até o barulho de pau rangendo assusta nós. De dia, tudo bem, todo mundo tem coragem de olhar o que é, mas de noite...!!!”
“Quando o rio enche, dificilmente num morre uma pessoa. Aqui o povo acredita que quando tem enchente, enquanto o rio não leva uma pessoa, ele não pára de encher. Isso é uma realidade”
XXX
[E as enchentes?] “Na enchente de 67 eu tava com 21 anos, lembro como se fosse agora. Eu me lembro desde quando chegou a 1a cabeçada d’água. A chuva começou no dia 23 de dezembro. Passou a noite toda chovendo. No dia 25, no Natal, eu tava no meio do rio e vi quando chegou a primeira pancada... vem assim como uma onda do mar, pegando tudo, levando tudo que encontrar pela frente: árvore, bicho, gente, tudo... se você tiver no rio ce tem que correr porque é muito rápido. Num instante alaga tudo e a tendência é muito assustadora. Inda mais agora que vem com muito bagaceira. A gente procura logo se sair senão ela leva tudo mesmo”
“Na de [enchente]14 eu nem sonhava ainda... meu pai contou que a de 14 foi ainda maior que teve. Foi a que abriu esse ribeirão. A de 80 foi grande, mas nada se compara a essas duas. Tá perto de vim outra... com certeza, nós já tamo até esperando. Olha, minha comadre. Eu gosto mesmo é quando o rio tá cheio”. ESPERANÇA, RENOVAÇÃO
“Quando eu coloco as artes [munzuá], eu só peço a Deus que tenha algo para mim”
“Eu acredito que existe a dona das águas. Por isso eu nunca xingo. Não sofro porque sempre adquiro o necessário. Não sofro por pescaria porque tudo que Deus me dá eu agradeço. Existe criatórios, mas aí acaba. Aí no rio nunca acaba. Fica mais fraco, mas nunca acaba... Tudo o que eu tenho foi dado pelo rio...”
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
Trabalhou desde os 6 anos no Pirataquissê com o pai na fazenda de cacau. Depois na construção civil. Trabalhou na fundação da UESC por dois anos e quatro meses.
A fazenda mal-assombrada – o dono da fazenda dizia que dava a fazenda a qualquer um que não saísse correndo de lá. As pantomimas era caça...
ENEDINA BONFIM DE OLIVEIRA (mãe de Seu Tum)
1. Praça Guilherme Xavier, 87
2. 10/01/1912 – 92 anos
3. ‘Não estudou.
4. Aposentada, trabalhou muito na roça, mas o dinheiro era muito pouco.Para ajudar o marido a criar os oito filhos pescava no Rio Cachoeira e lavava de ganho. Pegava pitu de mão. Nasceu na Fazenda Cachoeira.
5. Desde os 21 anos (71 anos)
6. O lugar era mais tranqüilo. Criou seus filhos livremente.
7. Atualmente plantas sua hortinha.
XXXI
8. “O Rio hoje tá muito mudado. Naquele tempo era um rio bom. Tinha muito peixe. Hoje tá escasso pra pessoa ganhar o pão. Água fedendo, as pessoas adoece, muita poluição, muito esgoto sendo despejado... isso entristece. Antigamente todo mundo ia lavar roupa no rio. Ficou perigoso por causa da sujeira e dos malandro.”
9. A relação com o rio é de subsistência. Quando era mais moça costumava ir de canoa para Ilhéus, costumava fachear também, mas nunca viu nada estranho no rio.
10. Tainha, robalo, carapeba, camarão. Hoje não tem mais em quantidade. A CEPLAC
11. “Limpo como era, onde todo mundo, as famílias iam e ficavam na beira do rio” – RIO-RECREAÇÃO
12. “Meu tio contava que via umas coisas quando ia pescar. Diz que quando jogava a tarrafa, outra logo aparecia. Aparecia também vultos de canoa... era as visagens”.
13. “Eu nunca vi nada!
14. Não há mais como mudar o rio. O esgoto cai no rio. [visão pessimista/ ausência de esperança]
FERNANDO BORGES DA SILVA - Seu Pepeu – FAZENDA ALIANÇA – km 9
1. 28/5/54 -50 anos
2. 5o ano primário, pescador, já foi motorista profissional da empresa Águia Branca, viveu em Santos (SP) durante 8 anos.
3. pescador profissional – “colonizado” – Associação Zé Neguinho, era motorista profissional da Águia Branca, viveu em Santos/SP por oito anos.
4. Tá difícil hoje porque acabou o cacau. Acabou a grandeza. As fazendas se acabando, que não tem mais emprego, vai tudo pro rio
O rio é um meio de sobrevivência. É um presente da natureza. Um presente que Deus nos deu. Uma maravilha. Dá uma tristeza quando agente corre o grampo e só desce lixo.
Isso é bíblico, é falta de amor à natureza, falta de consciência. Fim de geração, não tem mais jeito. Se Itabuna bota cinqüenta fiscais não tem como evitar lixo no rio. A coleta é boa. Não é culpa da prefeitura,mas consciência das pessoas. É triste.
Tristeza de ver a poluição, desmatamento, tirada de areia contribui para destruição do Cachoeira.
O IBAMA não liga. Se preocupa com a natureza, mas não é tanto. O IBAMA só dá importância as coisas grandes. Para o pescador... não tem atenção pra gente.
A luta pela sobrevivência é grande com toda essa escassez
XXXII
Os peixes de Itabuna ficam agoniados... foi tanto projeto que já fizeram...!
O povo precisa ter mais respeito com o rio. Se as margens ficassem mais arborizada isso ajudaria um pouco. Mas não tem mais jeito. A ambição não deixa! Tira o direito da gente. A desigualdade social acaba com a natureza.
As doenças nossas são provocadas pela poluição. Todos os detritos dos hospitais cai no rio.Verminose, ameba. A falta de conhecimento da palavra de Deus é a causa de muito descuido com o rio. Quando passamos a observar a palavra de Deus entendemos que a desobediência a Deus é que nos faz sofrer. A ignorância.
À noite eu ouvia um barulho. Quando ia ver era uma capivara. Aqui tem uma palha
que tem um brilho à noite, chama patioba. Quando o venço balança parece uma pessoa
de branco vagando.
Meu pai, o maior mentiroso do mundo. Quando eu tinha uns 17 anos ele dizia que lá em frente à (fazenda) Cordilheira, bem na beira da estrada, aparecia uns vultos vagando por ali. Dizia que tinha um padeiro que ia e vinha com um cesto cheio de pão. Quando ele dizia que queria pão o padeiro nunca atendia e sumia tudo.
Uma noite, eu tava pescando ali por perto, quando eu jogava a tarrafa, fazia um barulho assim: toc-toc. E cada vez mais ia aumentando o toc-toc. Eu já tava invocado, pois era bem enfrente ao cemitério. Parei assustado! Quando tô assim parado, vi foi uma latinha que batia na pedra. Sabe o que acontecia? Quanto mais eu chegava junto, mais a latinha batia na pedra. O que é a imaginação, né? E eu pensando que era alma penada. Muita coisa acontece na beira do rio...
Dez dias após a enchente eu joguei a tarrafa em um canto e a dita enganchou e desci cabreiro. Tive a impressão que tinha pisado na cabeça de uma pessoa, pois tinha uns cabelos se mexendo. Fiquei sem ânimo durante uns cinco minutos. O coração disparou! Quando fui olhar... era um coco verde cheio de cabelo de tanto que ele ficou na água. Foi tudo susto. Nada foi real. Naquela época o rio era limpo, não rinha limo, não tinha essa goga que tem hoje.