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MÁRIO ROGÉRIO DA SILVA BENTO CLASSIFICAÇÃO RACIAL: ENTRE A IDEOLOGIA E A TÉCNICA MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2008

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MÁRIO ROGÉRIO DA SILVA BENTO

CLASSIFICAÇÃO RACIAL: ENTRE A IDEOLOGIA E A TÉCNICA

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULOSÃO PAULO

2008

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ii

MÁRIO ROGÉRIO DA SILVA BENTO

CLASSIFICAÇÃO RACIAL: ENTRE A IDEOLOGIA E A TÉCNICA

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAISÀREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIOLOGIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora daPontifícia Universidade Católica de São Paulo, comoexigência parcial para obtenção do título de Mestre emCiências Sociais, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª TeresinhaBernardo

Pontifícia Universidade Católica de São PauloSÃO PAULO

2008

iii

Banca Examinadora

________________________________

________________________________

________________________________

iv

AGRADECIMENTOS

Os meus mais sinceros agradecimentos:

Ao meu pai, João Bento (in memorian) e à minha mãe, Ruth da Silva

Bento, a quem tudo devo.

A minha querida irmã e amiga Maria Aparecida da Silva Bento (Cida

Bento), a quem devo a iniciação e engajamento neste tema.

Ao Prof. Dr. Hédio Silva Jr., amigo e parceiro de trabalho, companheiro

dedicado no desenvolvimento desta dissertação.

Aos meus amigos, a equipe do CEERT e aos professores que

participaram de minha formação, em especial a Prof.ª Dra. Teresinha

Bernardo, que ao longo desses anos ajudaram a aprofundar meus

conhecimentos.

v

RESUMO

Esta dissertação focaliza a temática da classificação racial, relacionando-a ao

modelo brasileiro de relações raciais, histórico da classificação, suas implicações

ideológicas, metodológicas e técnicas, bem como a relevância do tema para a

implementação de políticas de promoção da igualdade racial.

Examina as categorias empregadas para distinguir preconceito racial de

“marca” e de “origem”, e compara o sistema de classificação racial no Brasil e nos

Estados Unidos, relacionando a lógica e o funcionamento do preconceito racial em

função de origem e intensidade da cor, e os critérios de classificação racial. Também

refere-se ao período escravista, ao modelo brasileiro de relações raciais, ao mito da

democracia racial e à miscigenação, entre outros.

Além disso, problematiza a invisibilidade do racismo como um dos maiores

obstáculos à sua compreensão e enfrentamento – a ausência da informação sobre

cor, sua importância para a visibilização da desigualdade racial, as ações do

Movimento Negro, bem como para implementar políticas públicas igualitaristas.

A relação entre política e informação sobre cor, a supressão da cor do censo

de 1970 e da certidão de nascimento, em 1975, também são analisadas.

Ao final, um exame da experiência de introdução do quesito cor no projeto

Gestão Local, Empregabilidade e Eqüidade de Gênero e Raça: uma Experiência de

Políticas Públicas na Região do ABC Paulista. Tal experiência permitiu estudar e

analisar, em profundidade, as características, desafios e problemas dos processos

contemporâneos de introdução da informação sobre cor, métodos e técnicas

empregados, o envolvimento da comunidade, a consistência dos bancos de dados,

as análises possíveis e os subsídios para o desenho de políticas públicas.

PALAVRAS CHAVES– CLASSIFICAÇÃO RACIAL, QUESITO COR E POLÍTICAS PÚBLICAS

vi

ABSTRACT

This dissertation is focused on the subject of racial classification, relating it to

the Brazilian model of racial relations, classification background, its ideological,

methodological and technical implications, as well as the relevance of the issue to set

up promotional policies of racial equality.

It examines the categories used to distinguish racial prejudice of “brand” and

of “origin”, and compares the system of racial classification in Brazil and in the United

States, relating the logic and the functioning of racial prejudice in terms of origin and

intensity of color, and the criteria of racial classification. It also refers to the period of

slavery, to the Brazilian model of racial relations, to the myth of racial democracy and

miscegenation, among others.

Besides this, it creates a problem for the invisibility of racism as one of the

major obstacles for its understanding and facing – the absence of information on

color, its importance for the visibility of racial inequality, actions of the black

movement, as well as for setting up equalizing public policies.

The relation between politics and information on color, suppression of color in

the census of 1970 and birth certificate, in 1975, are also analyzed.

Finally, a study of the experience of introducing the subject of color in the

project Local Management, Usability and Equality of Gender and Races: an

Experience of Public Policies in the Region of the São Paulo ABC. This experience

enabled the in-depth study and analysis, the characteristics, challenges and

problems of the contemporary introduction processes of information on color,

methods and techniques employed, involvement of the community, consistence of

the database, the possible analyses and subsidies for the outline of public policies.

WORDS KEY - RACIAL CLASSIFICATION, SUBJECT OF COLOR AND PUBLIC POLICIES

vii

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS................................................................................................ IV

RESUMO.................................................................................................................... V

ABSTRACT............................................................................................................... VI

LISTA DE TABELAS .............................................................................................. VIII

LISTA DE GRÁFICOS ............................................................................................ VIII

LISTA DE ANEXOS................................................................................................ VIII

INTRODUÇÃO ............................................................................................................1

CAPÍTULO I – A MARCA DA COR ............................................................................6

1.1 Breve digressão histórica....................................................................................61.2 A transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado ...........................101.3 O 13 de maio .................................................................................................... 131.4 A resistência negra após a abolição ................................................................. 151.5 A invisibilidade do racismo................................................................................ 231.6 A reivindicação da informação sobre cor como instrumento de visibilização.... 27

CAPÍTULO II – DILEMAS DA CLASSIFICAÇÃO RACIAL......................................35

2.1 Panorama dos censos sob o ângulo da classificação racial ............................. 362.2 A supressão da cor do censo de 1970..............................................................452.3 A reação negra à estratégia do silêncio – a reivindicação da informação sobre

cor ..................................................................................................................... 51

CAPÍTULO III – CLASSIFICAÇÃO RACIAL: MARCOS LEGAIS, CONCEITOS,MÉTODOS E EXEMPLOS ........................................................................................ 53

3.1 Significados de raça, cor e etnia....................................................................... 55

3.1.1 Raça.....................................................................................................553.1.2 Etnia .....................................................................................................603.1.3 Afro-brasileiros/afrodescendentes ........................................................ 613.1.4 Cor ....................................................................................................... 623.1.5 Autoclassificação versus heteroclassificação....................................... 64

3.2 A classificação racial nos documentos públicos ............................................... 673.3 Um exemplo de classificação racial no setor privado: o caso da Febraban......73

CAPÍTULO IV – EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DE IMPLEMENTAÇÃO DOQUESITO COR – OS CASOS DE BELO HORIZONTE, SANTO ANDRÉ E SÃOPAULO...................................................................................................................... 75

4.1 Considerações preliminares..............................................................................754.2 A transformação da reivindicação em políticas governamentais: a experiência

pioneira da Prefeitura de São Paulo ................................................................. 764.3 O reconhecimento público da expertise do CEERT na implementação do

quesito cor ........................................................................................................79

4.3.1 A reação dos respondentes..................................................................814.3.2 A estratégia empregada para superar as resistências ......................... 844.3.3 Atividades de sensibilização e capacitação ......................................... 86

viii

4.3.4 A preparação dos atendentes/coletores ............................................... 89

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 92

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................... 96

ANEXOS .................................................................................................................100

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Entrada de imigrantes europeus no Brasil...............................................11

Tabela 2 – Preconceito de origem e marca, segundo Oracy Nogueira .....................18

Tabela 3 – Cronologia da coleta para os censos. .....................................................40

Tabela 4 - Distribuição das respostas à auto-identificação de cor. ...........................42

Tabela 5 - Instituições Publicas com ação afirmativa................................................70

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Inclusão do quesito cor nos instrumentos censitários. ............................41

Gráfico 3 - Perfil dos usuários do sistema.................................................................91

Gráfico 2 - Monitoramento da coleta do quesito cor. .................................................90

Gráfico 4 - Monitoramento do aproveitamento das vagas oferecidas segundocor/raça.....................................................................................................91

LISTA DE ANEXOS

Prontuário civil - Polícia do Distrito Federal.............................................................102

Planilha para cadastramento de interessados nacionais em adoção, perfil dorequerente. ..............................................................................................................103

Planilha para cadastramento de interessados nacionais em adoção, perfil dacriança.....................................................................................................................104

Tela do sistema SIGAE do Ministério Trabalho e Emprego para cadastramento dotrabalhador. ............................................................................................................. 105

Formulário de cadastramento único de beneficiários dos Programas do GovernoFederal. ................................................................................................................... 106

Registro de nascimento com a classificação da cor do registrando conforme Lei6015/73 parcialmente revogada em 1975. ..............................................................107

ix

Registro de nascimento sem a classificação da cor do registrando conforme a Lei6216/75. .................................................................................................................. 108

Registro de nascimento com a classificação da cor do registrando durantetransição dos procedimentos entre a Lei 6015/73 e a lei 6216/75. ......................... 109

Declaração de Óbito................................................................................................ 110

Ficha modelo de qualificação do adolescente, dados processuais e decisões doJuízo da infância e da juventude. ............................................................................111

Ficha de identificação civil, para registros de ocorrências criminais – para políciascivis de todo o país..................................................................................................111

Ficha registro de empregados.................................................................................113

Ficha de alistamento militar..................................................................................... 114

Formulário de alistamento militar – Consulado Geral do Brasil em São Francisco .115

Certificado de dispensa de incorporação ................................................................ 116

Ficha de perfil social, Prefeitura de Santo André – Secretaria de Inclusão social eHabitação ................................................................................................................ 117

Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973...............................................................118

Resolução CEPE 565 – Processo seletivo 2008 - UFSCAR...................................119

Resolução CEPE 543 – Processo seletivo 2008 - UFSCAR...................................120

1

INTRODUÇÃO

Esta dissertação focaliza a temática da classificação racial, relacionando-a ao

modelo brasileiro de relações raciais, histórico da classificação, suas implicações

ideológicas, metodológicas e técnicas, bem como a relevância do tema para a

implementação de políticas de promoção da igualdade racial. O interesse pelo tema

resulta da minha experiência profissional como técnico e pesquisador de uma ONG1

que, há dezessete anos, pesquisa e intervém na área das relações raciais. Mas uma

razão pessoal impulsionou-me para esta empreitada: além da minha vivência

constante com a discriminação racial, desde tenra idade, em 1998 fui vítima da

truculência de um colega que não admitia um executivo negro na mesma empresa.

Retomando o objeto da dissertação, vale lembrar que a classificação racial

está em prática oficialmente no Brasil desde 18722, data do primeiro censo nacional.

A rigor, trata-se de fenômeno presente desde a chegada dos europeus: a técnica de

classificação racial por meio do critério fenotípico foi a chave que permitiu à figura do

escravo ser associada a uma determinada cor – o homem branco já não poderia

mais, como no passado, ser escravizado.

Por força do assim denominado mito da democracia racial3, a sociedade

brasileira foi, historicamente, projetada como a mais harmoniosa da América quanto

às relações raciais. É neste contexto, de três séculos e meio de tráfico transatlântico,

associado à presença indígena, à ocupação européia e, ainda, ao fluxo de diferentes

povos e culturas, que o tema da classificação racial assume uma configuração

complexa e tortuosa.

Ao contrário do que postula o senso comum, a classificação racial de pessoas

está há muito tempo presente nos recenseamentos, mas também em alguns

importantes cadastros públicos.

1 CEERT – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades. Criado no ano de 1990.2 PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia. Cor nos censos brasileiros. Revista da USP, São Paulo, n. 40, dez/fev.1998/1999, p. 123-137.3 CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. 1 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,2000, p. 8.

2

São exemplos disso a certidão de nascimento (até 1975), o formulário de

alistamento militar, de identificação civil, os cadastros das áreas de segurança

pública e justiça4.

Assim, a inclusão do quesito cor em cadastros de pessoas é desigual e

desorganizada, pois, se de um lado despertou o interesse dos órgãos de segurança

pública, por outro não chamou a atenção dos gestores das áreas de saúde,

educação e trabalho, por exemplo. Eis aqui o eixo principal da pesquisa: tudo indica

que onde a inclusão da informação sobre cor pudesse colocar em dúvida o discurso

da democracia racial, tratou-se, cuidadosamente, de omiti-la5. Minha hipótese,

portanto, é que a supressão dessa informação obedeceu à lógica do silenciamento,

do não-dito, um dos pilares do mito da democracia racial. Daí surge uma intrigante

relação entre estatística e ideologia racial. Foi assim que, nos anos 70, o Movimento

Negro brasileiro empunhou a bandeira de tal inclusão em todos os cadastros

públicos, visando diagnosticar e monitorar as relações raciais, viabilizar análises e,

inclusive, revelar situações ocultas pela ausência da informação da cor, a partir do

que estariam criadas as condições para intervenção e superação do problema.

Nos anos 906, a discussão sobre classificação racial volta à tona com

intensidade, devido à adoção de cotas nas universidades públicas, de políticas

antidiscriminatórias e do debate na Câmara dos Deputados, referente ao projeto de

lei do Estatuto da Igualdade Racial, que propõe medidas especiais. Se adotadas

pelo governo federal, tais medidas assegurarão alguns dos direitos fundamentais à

população afro-brasileira.

Na retomada dessa discussão, argumentando contra a classificação racial,

autores7 revelam preocupação com uma suposta dificuldade em fazer tal

classificação, devido à miscigenação. Esse argumento trata a classificação racial

como se fosse uma prática inédita que, teoricamente, teria surgido com a adoção de

cotas nas universidades, ignorando que ela existe oficialmente há mais de 135 anos.

4 SILVA JR., Hédio. Direito de igualdade racial – aspectos constitucionais e penais, doutrinas ejurisprudências. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 16.5 ROSEMBERG, Fúlvia; PINTO, Regina P. Trajetórias escolares de estudantes brancos e negros. In: Educaçãoe Discriminação de Negros, 1988,. Belo Horizonte: IRHJP – Instituto de Recursos Humanos João Pinheiros/FAE/MEC, p. 31.6 SILVA BENTO, M. A. da, SILVA JR., Hédio; LISBOA, M. T. Ocrepúsculo das ações afirmativas. SãoPaulo. [s.n], 2006.7 Yvonne Maggie, Peter Fry, entre outros.

3

Outra preocupação desses autores é a utilização da expressão “raça”, fora do

domínio da biologia. De acordo com Ellis Cashmore, este termo, aplicado aos grupos

de organismos vivos, foi usado pelo menos em quatro sentidos diferentes. No

primeiro, em biologia, refere-se a subespécies, ou seja, a uma variedade de

espécies que desenvolveram características distintas por meio do isolamento.

Atualmente os biólogos preferem a palavra subespécie ou linhagem.

No segundo sentido, “raça” é sinônimo de espécie, como na expressão “raça

humana”. Já no terceiro é usado como sinônimo do que costumamos chamar de

nação ou grupo étnico, como “raça francesa” ou “raça alemã”. Finalmente, raça pode

significar pessoas socialmente unificadas numa determinada sociedade que

considera marcadores físicos, como pigmentação da pele, textura do cabelo, traços

faciais, estatura e coisas do gênero. Para evitar confusão, algumas pessoas

especificam “raça social” quando utilizam raça no quarto significado8.

É interessante observar que especialmente a quarta categoria não deixa de

manter proximidade com o critério do marcador físico, originalmente definido pela

biologia. A novidade é que uma matéria, há tanto tempo vinculada à Biologia, nos

últimos anos assumiu contornos que a transferem para a área das Ciências Sociais,

pois a noção de raça é, cada vez mais, considerada uma construção social.

O termo “raça” perdeu o status de algo com características e traços estáveis

e passou a ser concebido como um fenômeno mutável. A questão predominante

agora é o discurso; a idéia de raça começa a ser investigada menos pelo conteúdo

que se possa descrever e mais pelo aspecto funcional, pelos diversos usos que se

faz dela.

A validade de raça, como conceito, passa a depender de seu emprego.

Cashmore afirma que a principal questão não é o que vem a ser raça, mas sim como

o termo é empregado 9.

Segundo Kabengele Munanga, os conceitos e classificações servem de

ferramentas para operacionalizar o pensamento. Em qualquer operação de

classificação, é preciso estabelecer critérios objetivos com base nas diferenças e

semelhanças10.

8 CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Summus, 2000, Selo Negro, p. 453-456.9 Idem.10 MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia.Cadernos PENESB. Niterói: EdUFF, 2004.

4

Munanga assevera que os naturalistas dos séculos XVIII e XIX não limitaram

seus trabalhos somente à classificação dos grupos humanos em função das

características físicas, mas se deram o direito de hierarquizar, isto é, estabelecer

uma escala de valores entre as chamadas raças.

Observando uma sociedade como a brasileira, na qual as desigualdades mais

persistentes referem-se à característica de raça/cor dos diferentes grupos, autores,

dentre eles Rafael Guerreiro Osório, Marcelo Paixão e Hédio Silva Jr., consideram

extremamente importante a classificação como forma de compreender e explicitar a

hierarquização racial dos grupos11.

Registrados os marcos históricos e conceituais que me inspiraram na

elaboração dessa pesquisa, passarei, então, à organização dos capítulos.

O capítulo 1 aborda as categorias empregadas por Oracy Nogueira para

distinguir preconceito racial de “marca” e de “origem”, comparando o sistema de

relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos, relacionando a lógica e o

funcionamento do preconceito racial em função de origem e intensidade da cor, e os

critérios de classificação racial12.

Também serão tratados o período escravista, o modelo brasileiro de relações

raciais, o mito da democracia racial, a miscigenação, entre outros.

Será problematizada, ainda, a invisibilidade do racismo como um dos maiores

obstáculos a sua compreensão e enfrentamento – a ausência da informação sobre

cor, sua importância para a visibilização da desigualdade racial e ações do

Movimento Negro, bem como para a implementação de políticas públicas

igualitárias.

No capítulo 2, uma análise das iniciativas de classificação racial, das

diferentes categorias historicamente empregadas, a inconstância das categorias dos

censos gerais, a generalização do uso da cor (fenótipo) para a classificação racial

dos brasileiros 13.

A relação entre política e informação sobre cor, e a supressão da cor no

censo de 70 e na certidão de nascimento, a partir de 1975, também serão

analisadas.

11 PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia, op. cit., p. 123-37.12 NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo: T.A. Queiroz EditorLtda., 1985, p. 67-93.13 PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia, op. cit.

5

Serão abordadas, ainda, as técnicas de classificação de cor utilizadas no

Brasil contemporâneo, acompanhadas dos conceitos de raça, etnia, racismo,

discriminação, afrodescendência.

Nesta linha, A cor denominada, de Jose Luis Petruccelli, traz os diversos

aspectos dos processos de construção e utilização das categorias de classificação

das pessoas, segundo as características de cor ou raça14.

O capítulo 3, no contexto dos estudos de Hédio Silva Jr., investiga a coleta e

utilização do dado cor como prática recorrente nos cadastros de segurança pública,

alistamento militar, entre outros. Este dado indica as escolhas feitas pela sociedade

para determinar onde seria imprescindível, ou dispensável, essa informação15.

No capítulo 4, a análise da experiência de introdução do quesito cor no

projeto Gestão Local, Empregabilidade e Eqüidade de Gênero e Raças: uma

Experiência de Políticas Públicas na Região do ABC Paulista, coordenado por Maria

Aparecida da Silva Bento. Tal experiência possibilitou estudar e analisar, em

profundidade, as características, os desafios e problemas dos processos

contemporâneos de introdução da informação sobre cor, métodos e técnicas

empregados, o envolvimento da comunidade, a consistência dos bancos de dados,

as análises possíveis, os subsídios para o desenho de políticas públicas16.

Neste ponto, houve a oportunidade de articular os aspectos conceituais e

teóricos com uma análise empírica, cujo resultado poderá constituir-se numa

contribuição a um dilema atual das Ciências Sociais: sistematizar um modelo útil

para a classificação racial das pessoas, certamente não para fins de violação de

direitos, mas como instrumento de promoção da cidadania. Movido por compromisso

ético e pessoal, escrevi essa dissertação.

14 PETRUCCELLI, Jose Luis. A cor denominada – estudos sobre a classificação racial. Coleção Políticas daCor, Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2007.15 SILVA JR., Hédio, op. cit.16 SILVA BENTO, Maria Aparecida da. O papel da cor raça/etnia nas políticas de promoção da igualdade,anotações sobre a experiência do município de Santo André. São Paulo: CEERT, 2003.

6

CAPÍTULO I – A MARCA DA COR

1.1 Breve digressão histórica

Entre 1550 e 1850, pelo menos 10.000.000 (dez milhões) de africanos

escravizados desembarcaram nas Américas: 40%, no Brasil; 50%, no Caribe e 5%,

nos Estados Unidos. Estima-se que os cerca de 4.000.000 (quatro milhões) de

africanos eram oriundos de diversas regiões, entre Angola e Costa do Marfim.

Estava em curso o sistema colonial.17

Através da navegação marítima, a expansão mercantilista européia

incorporou e subordinou novos territórios. As colônias, que deveriam fornecer

matéria-prima e produtos agrícolas à metrópole, possibilitavam, também, a abertura

de novos mercados. Assim, o escravismo foi a fórmula encontrada para explorar as

terras americanas, fonte de sustentação do capital mercantil europeu e potencial

mercado consumidor das manufaturas das metrópoles. Neste sistema econômico,

baseado na extração e exploração, em larga escala, das riquezas naturais das

colônias, a escravização dos africanos constituiu um dos pilares mestres.

A lógica do escravismo colonial passava pela necessidade de mão-de-obra

abundante e de baixíssimo custo. Inicialmente, tentou-se escravizar os habitantes

das terras descobertas, isto é, os índios, contudo, a baixa densidade dessa

população, as epidemias e campanhas contrárias reduziram as possibilidades e a

rentabilidade de tal mão-de-obra. Ainda assim, paralelamente à escravização dos

africanos, funcionou nos engenhos de açúcar do nordeste, entre 1560 e 1620, um

sistema escravista baseado na captura de índios. No entanto, predominou a

escravização de africanos, seu tráfico e comércio18.

Entre 1550 e 1850, consolida-se o sistema escravista com diversificadas

características19, como a produção para exportação, salvo produção de subsistência;

o tráfico internacional e triangular de escravos; e a subordinação da economia

colonial à metrópole, que impossibilitava uma acumulação de capital que pudesse

favorecer a passagem do escravismo ao capitalismo, sendo essa uma característica

bastante marcante.

17 MOURA, Clóvis.Quilombos – rebeliões da senzala. 2. ed., Rio de Janeiro: Conquista, 1972, passim.18 AZEVEDO, Célia Marinho.Onda negra medo branco. São Paulo: Paz e Terra, 1987, passim.19 MOURA,Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988, p. 220-221.

7

Outras características que devem ser ressaltadas: o latifúndio escravista como

propriedade; a legislação repressora, violenta e sem apelação contra os escravos,

por um lado; e, por outro, a luta incessante dos africanos escravizados.

Cabe destacar, ainda, que o escravismo instala-se e consolida a chamada

economia de plantation, cujas características principais eram20: a dedicação

prioritária, e em grande escala, à atividade agrícola de monocultura ou de

exportação; mão-de-obra escrava abundante; investimento alto e disposição dos

produtos no grande mercado oceânico.

Deste modo, durante quase quatro séculos da história do nosso país, os

trabalhadores escravizados foram os principais produtores da riqueza que sustentou

o desenvolvimento nacional, as fortunas da metrópole e contribuiu para o surgimento

do capitalismo industrial na Europa.

A escravidão estava disseminada por todas as áreas da vida econômica da

colônia.

Pode-se observar que os trabalhadores escravos participavam não apenas

colhendo e plantando, mas desenvolvendo técnicas e profissões exigidas para a

prosperidade e o dinamismo dos engenhos.

No caso das minas, constatava-se a presença do Estado (através de leis,

etc.) – o caráter temporário da extração de minérios e a voracidade da metrópole

resultavam na necessidade de explorá-las com rapidez, incentivando assim a

produtividade.

Quanto à pecuária, havia menos escravos, porém, maior pobreza e condições

mais duras.

No que tange ao território urbano, os escravos desfrutavam de maior

liberdade de movimento, numa sociedade mais variada do que a rural. Eles tinham

acesso a diversos tipos de atividade: artesãos, carregadores, escravos de aluguel,

vendedores, etc.

Os escravos domésticos usufruíam de alguma vantagem em relação aos

demais, contudo, estavam submetidos à vigilância constante dos senhores brancos.

20 CARDOSO, Ciro Flamarion S. A Afro-América: a escravidão no novo mundo. São Paulo: Brasiliense, 1982,p. 31-44.

8

Cabe salientar, ainda, que autores como Raymundo Nina Rodrigues, Oliveira

Vianna, Euclides da Cunha, dentre outros, justificaram a escravidão dos negros,

conferindo à abordagem um status “científico”. Suas teses apoiaram-se em

pesquisas nas áreas da Biologia21 e Antropologia Física, que criaram a idéia de raça

baseada na investigação de diferenças físicas.

Estudos de Raymundo Nina Rodrigues dedicaram-se a medir o crânio e a

largura do nariz para explicar as alegadas tendências inatas dos negros para a

criminalidade. Forneceu, desse modo, as bases para a idéia do negro como um ser

estranho e, conseqüentemente, estigmatizado. Ele defendia, por exemplo, a

existência de dois códigos criminais: um para negros, outro para brancos, que

correspondessem aos diferentes graus de evolução de ambos os grupos. “Não pode

ser admissível em absoluto a igualdade de direitos, sem que haja ao mesmo tempo

igualdade na evolução”, afirmava, em um artigo da Gazeta Médica da Bahia, em

190622.

Na obra Casa grande & senzala23, publicada em 1933, mesmo ano em que

Adolf Hitler assumiu o poder na Alemanha, Gilberto Freyre atacou as idéias racistas

e o determinismo climático, e desafiou a pretensa primazia dos brancos, afirmando a

superioridade técnica do negro sobre o indígena e, inclusive, sobre o branco24.

Neste livro, Freyre relata a importância dos pensadores e estudiosos,

destacando, entre eles, Franz Boas, que separa os traços de raça e herança

genética da influência da cultura e do meio em que se vive, dentro das relações

sociais.

“Foi o estudo de Antropologia, sob a orientação do professor Boas, que primeirome revelou o negro e o mulato no seu justo valor, separados dos traços de raça eos efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerarfundamental a diferença entre raça e cultura, a discriminar entre os efeitos derelações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural ede meio. Neste critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura assentatodo o plano deste ensaio”25.

21Com base nos estudos darwinianos publicados na obra A origem das espécies, realizados com animais evegetais, pensadores, como o francês Joseph-Auguste de Gobineu, o alemão Richard Wagner e o inglês HoustStewart Chamberlain, utilizavam a teoria de seleção natural para tentar explicar a sociedade humana. Concluíramque alguns grupos humanos eram fracos (os dominados) e outros, fortes (os dominadores).22 SILVA Jr., op. cit., p. 19-23.23 FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 47. ed. São Paulo: Global, 2003.24 VENTURA, Roberto. Casa grande &senzala, São Paulo: Publifolha, 2000, p. 20-29.25 Prefácio à primeira edição de Casa grande & senzala, op. cit., p. 32.

9

É sempre importante lembrar que muitos estudos sobre o período colonial e o

sistema escravista procuraram minimizar a violência e a capacidade de resistência e

luta do contingente de escravos. Porém, as expressões da luta travada, no Brasil,

durante o regime escravocrata, estão registradas nas diversas formas de resistência

dos trabalhadores. Da resistência individual e insurreições urbanas, até a criação de

quilombos, tudo foi tentado26.

Das expressões coletivas, os quilombos são as mais conhecidas. Bahia,

Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pernambuco, Paraíba, Região Amazônica,

Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe

conheceram e conviveram com esses agrupamentos de ex-escravos evadidos das

cidades e fazendas. O mais importante deles, o Quilombo de Palmares – Zumbi é a

sua expressão máxima –, resistiu durante um século e materializou um tipo de

sociedade democrática, com a presença de índios e brancos pobres, além dos

negros. A preservação da cultura também desempenhou papel essencial na

resistência coletiva, através das manifestações musicais, dos ritmos, da

indumentária africana e da complexa estrutura cultural do Candomblé27.

Entretanto, as expressões individuais desempenharam papel mais importante,

pois, impedidos de se organizar coletivamente, os escravos foram obrigados a

recorrer a modos bastante engenhosos e radicais de resistência. A recusa em

desempenhar determinados tipos de atividades (eles não tinham direito de escolha)

mostra a importância da resistência individual como estratégia de negação e

confronto com os senhores de engenho. E, na sua forma mais extrema, o suicídio, o

assassinato de senhores, dos filhos, seguido pelo suicídio das mães, as fugas, foram

outras tantas formas de tentar negar a desumanização pretendida pelo

escravismo28.

É na tentativa de desumanizar os escravos, por parte dos senhores, e na

tentativa de os escravos manterem intacta a sua condição de ser humano, que

parece residir a imensa contradição do regime escravocrata.

26 SILVA BENTO, Maria Aparecida da. Cidadania em preto e branco: discutindo relações raciais. 3. ed., SãoPaulo, 2001, passim.27 Idem.28 Idem.

10

A história desta resistência, com todas as suas nuances, ainda está para ser

contada e só muito recentemente despertou o interesse em resgatá-la. No entanto, é

sobre ela que se constrói a história econômica do país.

1.2 A transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado

O empreendimento cafeeiro – abalado fortemente em 1850 e sob crescente

pressão social e política, por um lado, e as rebeliões dos negros (às vezes,

armados), por outro – precisou encontrar uma fórmula que substituísse o trabalho

escravo29.

A partir de 1869, a Assembléia Legislativa da Província de São Paulo tornou-

se palco de acalorados discursos que exaltavam a mão-de-obra européia como ideal

para substituir o escravo e o liberto. Inicia-se a campanha imigrantista – com a

valorização do imigrante branco – e de convencimento da necessidade desse

trabalhador, a fim de promover o progresso no país, formando efetivamente uma

nacionalidade e uma cidadania brancas. Nos anos seguintes, a Assembléia recebeu

vários projetos que avaliavam os “tipos” ideais de trabalhadores – asiáticos, chineses

e africanos foram considerados inferiores ou incapazes30.

Intelectuais e filhos de fazendeiros que haviam estudado na Europa não

escondem a sua simpatia pelas teorias racistas emergentes nesse continente. A

eugenia (higiene racial), a teoria de Darwin transplantada para as sociedades

humanas, os estudos do francês Joseph Auguste Gobineau (sobre as desigualdades

das raças humanas) ecoam nas discussões e nos projetos sobre a formação da

nação. A conclusão era cristalina: a nação teria de ser formada com o “sangue

superior” dos europeus31.

Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a campanha imigrantista visava não

apenas criar mão-de-obra abundante, mas, sobretudo, substituir o liberto e o ex-

escravo pelo imigrante europeu. Não foram somente razões de natureza econômica

que levaram à exclusão do trabalhador nacional, especialmente o negro, das

transformações econômicas e políticas que se avizinhavam, mas, principalmente,

razões ideológicas raciais. Estas razões sustentaram os discursos que

29 FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, v. I e II, 1978.30 AZEVEDO, op. cit., passim.31 SILVA BENTO, op. cit.

11

apresentavam o liberto e o ex-escravo – os mesmos que durante quase quatro

séculos haviam produzido as riquezas da colônia – como incapazes e incompetentes

para as tarefas impostas pelo regime assalariado.

Tabela 1 – Entrada de imigrantes europeus no Brasil32

Períodos Entrada de europeus1851 – 1860 Proibição do tráfico 121.7471861 – 1870 Lei do Ventre Livre 97.5711871 – 1880 Movimento abolicionista 219.1281881 – 1890 Abolição total 525.0861891 – 1900 Apogeu da imigração européia 1.129.315

1851 – 1900 2.092.847Fonte: Morais, Octávio Alexandre de. Imigration in to Brasil: a statical estatementand related aspects. In: Bates, M. The migration of people to Latin America. TheCatholic University of America Press, 1957

O discurso predominante entre os imigrantistas apregoava, abertamente, a

incapacidade do negro para o trabalho livre, a passividade dos nacionais (à exceção

da elite, naturalmente) e outros princípios não menos racistas. Vários estudos

demonstram que o processo imigracionista integrava um projeto que pretendia,

efetivamente, apagar, eliminar a população negra do passado e do futuro que se

descortinava, com o objetivo de embranquecer a sociedade brasileira33.

Contudo, os primeiros imigrantes sofreram com os resquícios da escravidão

mantidos pelos senhores do café. Os primeiros contratos, feitos sem a intervenção

do Estado, obrigavam os imigrantes a trabalharem durante cinco anos, no mínimo,

para pagar os custos da viagem.

Em 1857, em Ibiacaba, houve a primeira revolta de colonos imigrantes contra

as condições de trabalho impostas pelos senhores. O tratamento dado aos primeiros

imigrantes motivou conflitos diplomáticos entre os governos italiano e brasileiro, que

foi obrigado a responder pelos maus tratos infligidos aos imigrantes. Porém, a

campanha imigrantista não parou de crescer34.

32 MOURA,Clóvis, op. cit, p.83.33 SCHWARCZ, Lilia Moritz.O espetáculo das raças cientistas, instituições e questão racial no Brasil –1870/1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 11-28.34 MARAM, Sheldon Leslie.Anarquistas, imigrantes e o movimento operário brasileiro 1890-1920. Rio deJaneiro: Paz e Terra, Coleção Estudos Brasileiros, 1979, v. 34, p. 28.

12

Em 1881, o governo de São Paulo passa a pagar metade dos custos de

transporte, devendo o restante ser saldado pelo imigrante ao fazendeiro que o

importara; em 1884, começa a reembolsar integralmente os gastos com passagens

e, a parti r de 1885, subsidia diretamente o custo de transporte desses trabalhadores.

Conforme Moura, entre 1851 e 1870 aportaram no Brasil 219.318 (duzentos e

dezenove mil, trezentos e dezoito) europeus35.

Entre 1871 e 1920, 3.390.000 (três milhões, trezentos e noventa mil)

imigrantes chegaram ao país, dos quais 1.373.000 (um milhão, trezentos e setenta e

três) italianos, 901.000 (novecentos e um mil) portugueses e 500.000 (quinhentos

mil) espanhóis, dentre outros36.

No ano de 1893, os imigrantes contabilizavam 55% dos habitantes de São

Paulo; 84% dos empregados da indústria manufatureira e artística; 81% dos

trabalhadores do ramo de transporte e 72% dos empregados no comércio. Em 1901,

um estudo sobre a indústria paulista calculou que apenas 10% dos operários

industriais eram brasileiros. Isto significa que ao trabalhador nacional restavam as

funções subalternas, as atividades nas zonas decadentes do café ou o

subemprego37.

Estava consolidada, assim, a exclusão praticamente absoluta do ex-escravo e

do liberto das mudanças econômicas e das oportunidades criadas pela

industrialização crescente. A construção ideológica que caracterizava o negro como

biologicamente inferior – e que justificara, em parte, o escravismo – após a abolição

formal da escravatura, reorientou a sociedade, isentando-a de práticas

discriminatórias. Pela lógica dessa ideologia, a culpa do destino dado à população

negra era do próprio negro que, tendo sido escravo, não era agora capaz de encarar

os desafios das novas exigências do capitalismo emergente, no final do século XIX.

Não era a sociedade que discriminava o negro, mas sim a sua incapacidade

“natural”, que o levava a se afastar da sociedade industrial38.

Neste período, grande parte da literatura especializada em relações raciais

apresenta a construção ideológica da democracia racial, partindo da idéia de que o

Brasil teria sido o único país do mundo onde as relações entre escravos e senhores

35 MOURA, op. cit., p. 35.36 MARAM, op. cit., p.13.37 Idem, p.15-22.38 SILVA BENTO, Maria Aparecida da. Psicologia social do racismo. Petrópolis: Vozes, 2002, passim.

13

foram “abrandadas” pela convivência na “casa grande”, e que esta convivência

favoreceria a formação de uma sociedade racialmente democrática. As inúmeras

versões e a utilização dessa literatura cunharam o mito da democracia racial

brasileira que projetava, com base na suposta convivência harmoniosa entre negros

e brancos, e na propalada tolerância racial da população branca brasileira, a

ausência de discriminação e racismo39.

Outra abordagem, desenvolvida nos anos 50 por pesquisadores da

Universidade de São Paulo, reconhecia a natureza violenta do escravismo brasileiro

e a persistência de práticas discriminatórias após 1888, mas acreditava que o

socialismo transformaria negros e brancos em operários tratados igualmente. A

história não comprovou esta hipótese40.

1.3 O 13 de maio

A partir de meados de 1800, por pressão das metrópoles – que agora

consideravam os países agrícolas compradores de seus produtos – o sistema

escravocrata entrou em declínio. A Inglaterra, por exemplo, passa a condicionar as

relações políticas e econômicas com o Brasil ao fim do tráfico de escravos, o que

ocorre em 1850, devido à pressão por mão-de-obra livre e à decadência do mercado

mundial de açúcar e a derrocada da indústria açucareira.

O café surge como nova cultura e com uma dinâmica surpreendente. A mão-

de-obra demandada é tão grande quanto a da fase açucareira, porém, sem o tráfico

legal de africanos. Inicia-se, então, o chamado tráfico interprovincial, isto é, a

importação de negros de outras províncias, como Pernambuco, Bahia e Ceará. Tais

deslocamentos desarticulam, novamente, a população negra e, muitas vezes,

fragmentam famílias, pois seus membros podiam ser vendidos para diferentes

senhores.

Entre 1860 e 1870 crescem assustadoramente as fugas em massa e os

assassinatos de senhores de escravos. Como conseqüência, aparecem as leis

protetoras, pois o capital investido no escravo deveria ser protegido. Surgem a Lei

dos Sexagenários, a Lei do Ventre Livre, a extinção da pena de açoite, a proibição

39 HASENBALG, Carlos A. Discriminação e desigualdades sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979.40 FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978, v. I e II.IANNI, Octávio. Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

14

de vender, como escravos, membros de uma mesma família para diferentes

senhores, e outros mecanismos que mais protegem a propriedade do senhor do que

a pessoa do escravo. A Lei dos Sexagenários, segundo Clóvis Moura, “serviu para

descartar a população escrava não produtiva, que apenas existia como sucata e

dava despesas aos seus senhores. A Lei do Ventre Livre praticamente condicionava

o ingênuo a viver até os 20 anos numa escravidão disfarçada, trabalhando para o

senhor” 41.

Do ponto de vista econômico, o capital das nações européias mais

desenvolvidas no já instalado sistema capitalista industrial investia em países como

o Brasil, em áreas fundamentais (transporte, iluminação, portos e bancos),

instituindo o trabalho assalariado e acirrando a contradição entre trabalho livre e

escravo.

A crise do sistema escravista abre dois caminhos para a sociedade brasileira

branca da época: de um lado, os senhores da decadente e estagnada região

norte/nordeste, com uma economia condenada e escravos que mais oneravam do

que produziam. De outro, os fazendeiros do café de parte de Minas, São Paulo e Rio

de Janeiro, que entravam agressivamente no mercado mundial e respiravam os ares

do capitalismo industrial em expansão.

A partir de 1871, surge o movimento abolicionista, formado por intelectuais

influenciados por idéias liberais mais radicais. Os caifazes de Antonio Bento

chegaram a organizar fugas de escravos e a apoiar as revoltas e fugas em massa,

que já ocorriam sem o auxílio de ninguém42.

Aumentavam as pressões sobre a escravidão. As revoltas de maior vulto; as

fugas das fazendas, que prejudicavam a produção; a propaganda favorável,

formulada pelos abolicionistas, e o aumento do apoio popular definiam o dilema: ou

se fazia a abolição por cima ou a abolição viria pelas mãos dos próprios negros,

através de medidas radicais, como a divisão das terras senhoriais.

Em 13 de maio de 1888, a princesa assina a Lei Áurea, abortando um

vigoroso movimento de massas que se alastrava assustadoramente, e libertando,

41 MACHADO, Maria Helena P.T. Crime e escravidão. São Paulo: Brasiliense, 1987.42 SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma investigação de história cultural.São Paulo: Companhia das Letras, 2003, passim.

15

formalmente, menos de 20% dos negros, pois a maioria havia conquistado a

liberdade através das leis anteriores, de fugas, ou já tinha nascido livre.

1.4 A resistência negra após a abolição

Vinte anos depois da abolição formal do trabalho escravo, a população negra

reafirmava a sua trajetória de luta.

Em 1910, liderados por João Cândido, o Almirante Negro, os marinheiros da

esquadra apontavam os seus canhões para o Rio de Janeiro, em protesto contra os

castigos corporais e as más condições de trabalho43.

Cinco anos depois, em 1915, nasce O Menelick, propulsor de um fenômeno

singular: a imprensa negra em São Paulo. Em 1916, surgem os periódicos: A Rua e

o Xauter; em 1918, O Alfinete e O Bandeirante; em 1919, A Liberdade; em 1920, A

Sentinela; em 1922, O Kosmos; em 1923, O Getulino; em 1924, O Clarim da

Alvorada e o Elite; em 1928, o Auriverde, O Patrocínio e o Progresso; em 1932, a

Chibata; em 1933, A Evolução e a Voz da Raça; em 1935, O Clarim, O Estímulo, a

Raça e a Tribuna Negra; em 1936, A Alvorada; em 1946, O Senzala; em 1950, O

Mundo Novo; em 1954, Novo Horizonte; em 1957, Notícias de Ébano; em 1958, O

Mutirão; em 1960, O Hífen e Níger; em 1961, Nosso Jornal e em 1963, Correio

d'Ébano 44.

Segundo Clóvis Moura, “esse conjunto de periódicos que se sucedem durante

quase cinqüenta anos influirá significativamente na formação de uma ideologia

étnica do negro paulista e irá influir, de certa maneira, no seu comportamento” 45.

Mantidos pelos próprios negros que os editavam, com a colaboração de

membros da comunidade que se cotizavam para ajudá-los, esses jornais constituem

um fato único no Brasil: revelam a determinação em manter um espaço ideológico e

informativo independente e de servir como veículo organizacional dos negros.

As discussões travadas em suas páginas, a colocação permanente dos

problemas da comunidade negra, as denúncias contra o racismo e a violência

policial contra esses indivíduos resultam na criação de um grande movimento

43 SILVA BENTO, op. cit.44 MOURA, , op. cit., p. 204-217.45 Idem

16

político: a Frente Negra Brasileira, com seus informativos O Clarim da Alvorada e

Voz da Raça.

Criada no dia 16 de setembro de 1931, na Rua da Liberdade, em São Paulo,

pelos negros Francisco Lucrécio, Raul Joviano do Amaral e o famoso líder José

Correia Leite, a Frente Negra teve caráter nacional, com repercussão internacional.

Abrigou milhares de negros e, em face dos êxitos, resolveu transformar-se em

partido político, em 1936. O registro foi concedido, mas em 1937 o golpe de estado

deflagrado por Getúlio Vargas dissolveu todos os partidos, entre eles a Frente Negra

Brasileira. O Estado Novo força um recuo nas organizações democráticas, através

da ação permanente dos órgãos de repressão e vigilância. Nesse período, surgem

os clubes de lazer, dançantes e esportivos46.

Em 1944, o senador Abdias do Nascimento cria o Teatro Experimental do

Negro, que dinamizou a consciência de negritude e editou o jornal Quilombo. Em

1945 surge, no Rio de Janeiro, o Comitê Democrático Afro-brasileiro, que tentou

influir na Assembléia Constituinte com uma ampla plataforma democrática. Anos

depois, em 1949, realiza-se a Conferência Nacional do Negro47.

Por essa mesma época (1936), o poeta Solano Trindade, ex-militante da

Frente Negra cria, em Pernambuco, o Centro de Cultura Afro-brasileira, e em 1945,

no Rio de Janeiro, o Teatro do Povo. Em 1948 forma, com Haroldo Costa, o Teatro

Folclórico Brasileiro. Nesse período, os clubes de lazer proliferaram no interior de

São Paulo – em Campinas, Sorocaba, Piracicaba, São Carlos, Jundiaí, Araraquara,

Catanduva e outras48.

Em 1954, é organizada a Associação Cultural do Negro, com a participação

de José Correia Leite, que editou um Caderno de Cultura Negra. Quatro anos

depois, esta entidade centrou suas atividades nos setenta anos da Abolição,

contando com a participação do Teatro Experimental do Negro, do Teatro Popular

Brasileiro (de Solano Trindade), da Associação Paulista dos Amigos do Homem do

Norte e do Nordeste, do Grêmio Estudantil Castro Alves, da Sociedade José do

Patrocínio e do Fidalgo Clube. Um debate interessante, travado nesta época, dizia

respeito à ideologia que deveria ser adotada pelos negros.

46 SILVA BENTO, op. cit., p. 74-75.47 LEITE, José Corrêa; Cuti, E disse o velho militante José Corrêa Leite. São Paulo, Secretaria Municipal daCultura, 1992, p.145-178.48 BARBOSA, Marcio. Frente Negra Brasileira: depoimentos. São Paulo, Quilomhoje, 1998.

17

Com o golpe militar de 1964, mais uma vez assiste-se ao recuo das

organizações negras e de outros movimentos populares brasileiros, que só voltam a

ganhar impulso em meados dos anos 70. Nesse período, surge uma série de

entidades negras, em São Paulo e no Rio de Janeiro e, no dia 18 de junho de 1978,

durante um protesto nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, é criado o

Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, posteriormente

denominado Movimento Negro Unificado –MNU49.

Assim, manteve-se, através dos tempos, o histórico de resistência e luta da

comunidade negra brasileira que há mais de quatrocentos anos vem lutando, de

todas as formas. Esta luta, entretanto, como a outra, durante a escravidão, não é

sempre um confronto direto com as forças do capital. Trata-se de uma luta surda,

visceral, disseminada por todas as camadas sociais, em todas as instâncias da vida.

No trabalho, na educação, no lazer, os negros confrontam-se com a discriminação e

o preconceito.

Vale ressaltar, em síntese, que esta breve digressão histórica realça uma

nítida tentativa das elites brasileiras, no final do século XIX, de literalmente

branquear o país. É preciso lembrar que, durante três séculos e meio, cerca de

4.000.000 africanos entraram no Brasil, ao passo que, em cinqüenta anos, entre

1850 e 1900, entraram 2.092.847 europeus.

Segundo Hédio Silva Jr., a República foi marcada, inclusive, pela criação de

leis abertamente discriminatórias50. O 13 de Maio resolveu, teoricamente, o

problema do trabalho escravo, mas manteve intactos o racismo, a discriminação e o

preconceito. Diversos autores debruçaram-se sobre este fato. Dadas as

características singulares da obra de Oracy Nogueira, parece-me relevante uma

breve visita aos seus postulados.

Segundo este pensador51, no período pós-abolição a produção acadêmica

sobre a “situação racial” brasileira, no que se refere especificamente ao negro, pode

49 CARDOSO, Marcos Antônio. O Movimento Negro em Belo Horizonte: 1978-1998. Belo Horizonte: MazzaEdições, 2002, p. 40.50 SILVA JR., Hédio. Direito Penal e Igualdade Étnico-Racial in Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial.Coordenado por Flávia Piovesan e Douglas de Souza. Brasília: Secretaria Especial de Promoção da IgualdadeRacial da Presidência da República, 2006, p345-381.51 Estudo apresentado originalmente ao XXXI Congresso Internacional de Americanistas, em São Paulo, de 25 a30 de agosto de 1954, no Symposium Etno-sociológico sobre Comunidades Humanas no Brasil, organizado porFlorestan Fernandes,

18

ser dividida em três correntes52:

1. Trabalhos sobre aculturação, de Nina Rodrigues e Arthur Ramos;

2. Produção de estudos históricos, nos quais se procura mostrar como o negro

ingressou na sociedade brasileira, a receptividade que encontrou e o destino

que nela tem tido. Gilberto Freyre é o principal representante dessa corrente;

3. Investigações para desvendar as relações entre os componentes brancos,

negros e indígenas, que tiveram, dentre seus desbravadores, o próprio Oracy

Nogueira.

O autor destaca que certos estudiosos recusavam-se a aceitar que o

“problema do preconceito racial” fosse uma questão central nos estudos das

relações raciais.

Afirma, ainda, que a expressão “preconceito de marca” é uma reformulação

da expressão “preconceito de cor”.

“Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável,culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aosquais se tem como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a todaou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando opreconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma porpretexto para as suas manifestações, os traços físicos do indivíduo, a fisionomia,os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que oindivíduo descende de certo grupo étnico, para que sofra conseqüências dopreconceito, diz-se que é de origem”53.

Tabela 2 – Preconceito de origem e marca, segundoOracy Nogueira54

Preconceito

Marca OrigemModo de atuar Determina uma preterição Exclusão incondicional do grupo

discriminadoDefinição do membrodo grupo

Critério fenotípico ou aparênciaracial

Proporção hereditária daascendência

Carga afetiva Intelectivo e estético Emocional e intensidade naatribuição da inferioridade

Efeito sobre as rela-ções interpessoais

As relações de amizade cruzamfacilmente a fronteira de cor

As relações são restritas por tabus esanções de caráter negativo

Ideologia Ao mesmo tempo assimila-cionista e miscigenacionista

Segregacionista e racista

Distinção entre dife-rentes minorias

O dogma da cultura prevalecesobre o de raça

O dogma de raça prevalece sobre oda cultura

52 NOGUEIRA, op. cit., p.72-73.53 NOGUEIRA, op. cit., p.78.54 Idem, p.79-91.

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Preconceito

Marca OrigemEtiqueta Enfatiza o controle do

comportamento para evitarsuscetibilidade e humilhação

Enfatiza o controle docomportamento do grupodiscriminado para conter aagressividade do grupo discriminador

Efeito sobre o grupodominador

Consciência da discriminaçãotende a ser intermitente

Consciência da discriminação tende aser contínua e obsedante

Reação do grupodiscriminado

A reação tende a ser individual A reação tende a ser coletiva

Efeito de variaçãoproporcional docontingente minori-tário

A tendência é se atenuar nospontos em que há maior propor-ção dos indivíduos discriminados

A tendência é se agravar nos pontosem que o grupo discriminado émajoritário

Estrutura social A probabilidade de ascensãosocial está na razão inversa daintensidade das marcas

Os grupos discriminador ediscriminado permanecemrigidamente separados, como sefossem duas sociedades paralelas

Movimento político A luta do grupo discriminadotende a se confundir com a lutade classes

O grupo discriminado atua comominoria nacional coesa e, portanto,capaz e propensa à ação conjugada

Entre o preconceito racial de marca e o preconceito racial de origem,

conforme o quadro acima, serão abordadas algumas diferenças apontadas:

1. Quanto ao modo de atuar:

O preconceito de marca é determinado pela preterição. Esse desprezo é

conseqüência do preconceito e da noção de inferioridade do outro, que

coloca o discriminado como um outsider. Permite-se a sua participação,

desde que “compense a desvantagem da cor” por uma habilidade, como

inteligência, educação e situação econômica, entre outras.

Já o preconceito de origem é determinado por uma exclusão

incondicional dos membros do grupo atingido, em relação a situações ou

recursos pelos quais venham a competir com os membros do grupo

discriminador. Esta categoria não condiciona as escolhas dos membros

à superioridade de instrução, à profissão, etc. – eles sempre serão

vedados quando pretenderem usufruir dos bens restritos ao grupo

dominante.

2. Quanto à definição de membro do grupo discriminador e do grupo

discriminado:

20

Para o preconceito por marca, o critério é o fenótipo ou aparência racial,

e varia, subjetivamente, ao olhar de quem observa, devido ao grau de

deferência, amizade, região, classe, etc.

Já o preconceito de origem nos Estados Unidos, por exemplo, por mais

completo que seja o branqueamento – cabelos loiros, pele alva, nariz

afilado, olhos verdes, sem nenhuma característica que possa ser

considerada negróide – o mestiço continuará sendo negro. Não importa

qual seja a sua aparência, por três gerações ele trará a origem do grupo

discriminado e não poderá associar-se ao grupo discriminador.

3. Quanto à carga afetiva:

O preconceito de marca tende a ser mais intelectivo e estético, ou seja,

sua intensidade varia na proporção dos traços negróides que,

detectados em uma pessoa por quem se tem deferência, amizade ou

simpatia, causam o mesmo pesar que causaria uma deficiência.

Desde cedo, incute-se na criança branca a noção de que as

características negróides enfeiam e tornam o seu portador indesejável

para o casamento55.

O preconceito de origem tende a ser mais emocional e irracional, e

assumir o papel de ódio intergrupal, tornando as suas manifestações

mais conscientes e a forma de exclusão, ou segregação, intencional. Ela

será mais intensa no que se refere à atribuição de inferioridade ou traços

indesejáveis aos membros do grupo.

4. Quanto aos efeitos sobre as relações interpessoais:

No preconceito de marca, há relações pessoais de amizade e deferência

que cruzam facilmente a fronteira de raça. Quando o preconceito é de

origem, as relações entre os grupos discriminador e discriminado são

restringidas, por exemplo, por meio de sanções, no caso de matrimônio

inter-racial.

5. Quanto à ideologia:

55 NOGUEIRA, op. cit., p. 82.

21

No preconceito de marca, a ideologia será assimilacionista e

miscigenacionista. Onde o preconceito é de origem, tende-se a uma

ideologia com característica segregacionista e racista.

Entretanto, ao contrário do muito que se falou a respeito de uma suposta

inexistência de discriminação racial no Brasil, em função da inegável miscigenação,

a obra de Oracy demonstra que a marca da pele, nomeadamente a pele diferente da

branca, continuará definindo lugares sociais/não lugares sociais.

Não obstante, autores como Gilberto Freyre lançam um olhar sobre esta

mesma realidade, concluindo que a miscigenação seria um atestado de inexistência

do preconceito racial.

No processo de formação social brasileiro, Freyre valorizou fatores como

ambiente, doenças e hábitos alimentares. É, talvez, o primeiro autor a “valorizar” as

técnicas produtivas e o comportamento físico/corporal dos escravos/negros.

Freyre trouxe importantes contribuições ao pensamento sobre a vida privada

na sociedade patriarcal através do relacionamento, na casa grande, entre senhores

e escravos. De forma inédita, focaliza a intimidade dessa relação e as marcas

deixadas por ela.

“[...] tendência genuinamente portuguesa e brasileira, que foi sempre no sentidode favorecer o mais possível à ascensão social do negro” 56.“[...] encontramos em CGS um vigoroso elogio da confraternização entre negros ebrancos, também é possível descobrir lá numerosas passagens que tornamexplícito o gigantesco grau de violência inerente ao sistema escravocrata, quechega a alcançar parentes do senhor, mas que é majoritária e regularmenteendereçada aos escravos”

57.

Por outro lado, por meio do elogio à miscigenação, Gilberto Freyre (1980, p.

649) foi um dos principais defensores da idéia de que, no Brasil, a escravidão teria

sido suave e amena; os escravos, dóceis e passivos; e os senhores, generosos e

afetuosos em relação aos escravos, fertilizando a idéia (mito) de uma democracia

racial que por muito tempo inspirou o discurso acadêmico e o imaginário social

brasileiros.

“Ao falarmos em mito, nós o tomamos não apenas no sentido etimológico danarração pública de feitos lendários da comunidade (isto é, no sentido grego dapalavra mythos), mas também no sentido antropológico, no qual essa narrativa é

56 FREYRE, op. cit, p. 503.57 BENZAQUEN Araújo, Ricardo de. Guerra e paz – Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nosanos 30. Rio de Janeiro, Editora 34, 1994, p. 48.

22

a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontramcaminhos para serem resolvidos no nível da realidade”58.

Num exercício de aproximação dessas duas teorias – de um lado, Nogueira

afirma que a miscigenação funde as origens, mas mantém intactas as marcas; e de

outro, Freyre, para quem a fusão das origens eliminaria as marcas – criam-se as

condições para o surgimento de uma idéia cara ao país: a negação da problemática

racial. Esta negação será expressa no discurso das elites na historiografia, nas

Ciências Sociais e na identidade dos descendentes de africanos. Passa a prevalecer

a idéia que o não falar, não ver, não visibilizar seria a solução para a estrutura

racializada que marca a história brasileira. Assim, a invisibilização passa a ser uma

estratégia para o modelo brasileiro de relações raciais.

Convém lembrar que, no plano acadêmico, o mito da democracia racial sofreu

um forte abalo em 1950, quando a Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a propósito de um programa para

eliminar o racismo no mundo desenvolvido – encomendou estudos que apontassem

uma “fórmula” brasileira para esta suposta harmonia entre as raças – o resultado

mostrou a face das desigualdades raciais.

Teve início, então, a mudança na imagem das relações entre negros e

brancos. O grupo de cientistas responsável por tais estudos foi coordenado por

Roger Bastide e Florestan Fernandes, com a participação de Octávio Ianni,

Fernando Henrique Cardoso e outros. Eles procuraram contextualizar a situação do

trabalhador negro e começaram a desmitificar a ideologia da democracia racial

brasileira.

“Há, assim, uma crença generalizada de que o Brasil (...) é um país sempreconceitos (é raro o emprego da expressão mais sofisticada ‘democraciaracial’) desconhecendo discriminação de raça e de credo. E praticando amestiçagem como padrão fortificador da raça. A força persuasiva dessarepresentação transparece quando a vemos em ação, isto é, quando resolveimaginariamente uma tensão real e produz uma contradição que passadespercebida. É assim por exemplo que alguém pode afirmar que os índios sãoignorantes, os negros indolentes, os nordestinos atrasados, os portuguesesburros, as mulheres são naturalmente inferiores, mas simultaneamente, declararque se orgulhar de ser brasileiro por que somos um povo sem preconceito e umanação nascida da mistura das raças”59.

58 CARDOSO, Marco Antonio. O Movimento Negro em Belo Horizonte: 1978-1998/ Marcos Antônio Cardoso,Belo Horizonte: Mazza Edições, 2002, p. 96.

59 CHAUI, op. cit., p. 8.

23

Trabalhos das últimas duas décadas vêm revelando que, com a evolução da

sociedade de classes, as desigualdades não só se mantiveram como, em alguns

casos, no Sudeste, por exemplo, recrudesceram. Desmancham-se velhos credos

que atribuíam as desigualdades raciais atuais apenas a um difuso legado do

passado escravista e sua pretensa superação às transformações do sistema

capitalista. É factual que o sistema capitalista é um dos principais mediadores do

racismo, criando e recriando, persistentemente, condições propícias à sua

reprodução. O que não significa que se possa reduzir tudo a uma questão de

classes.

Certo é que, seja em função da tentativa de se negar cabalmente o racismo,

seja pela tentativa de subordiná-lo ao debate sobre classes, a invisibilidade

acompanha a trajetória do racismo brasileiro.

1.5 A invisibilidade do racismo

Em pleno século XXI, o racismo prossegue, ampliando a sua projeção sobre

as vítimas como um mecanismo eficaz de produção de desigualdade e

estigmatização.

O que torna a questão racial difícil de ser tratada em qualquer ambiente? Até

que ponto a invisibilidade do racismo contribui para fomentar a resistência ao

debate?

O conceito de invisibilidade social tem sido aplicado, em geral, quando se

refere às pessoas socialmente invisibilizadas, seja pela indiferença, seja pelo

preconceito, o que nos leva a perceber que a invisibilidade atinge,

preferencialmente, aqueles que estão à margem da sociedade.

A invisibilidade projetada pelo preconceito destitui a pessoa da sua condição

humana e, quando rebaixado, este novo ser torna-se invisível.

O preconceito provoca a invisibilização na medida em que projeta, no outro,

um estigma que anula, esmaga e substitui a sua individualidade por uma imagem

que nada tem a ver com ela.

A imagem do outro é observada através de um vidro escurecido – escuro que

distorce a visão e condiciona o olhar do observador: preconceitos sociais e culturais,

preferências psicológicas, distorções mentais.

24

Através de um sentimento de superioridade, o preconceito tende a

desconsiderar a individualidade, atribuindo aprioristicamente aos membros de

determinado grupo estigmatizado características geralmente grosseiras.

Assim, os componentes básicos do preconceito pressupõem um sistema

social no qual a etiqueta racial tem relevância na distribuição dos lugares sociais, da

mesma forma que tal sistema pressupõe agentes que operem as desigualdades

raciais.

Em alusão à desigualdade, o racismo tem mantido os privilégios60 e ampliado

os mecanismos de exclusão, aponta Zygmunt Bauman. Para ele, é possível

observar que este processo está conectado ao sonho de ordem e pureza.

Segundo Bauman, não há como pensar na pureza sem associá-la

imediatamente à "ordem", ou seja, sem determinar os lugares "justos" e

"convenientes" das coisas. O oposto da pureza, o sujo, o poluído, refere-se às

coisas que estão fora do lugar: “Sapatos magnificamente lustrados e brilhantes

tornam-se sujos quando colocados na mesa de refeições. Restituídos ao monte dos

sapatos, eles recuperam a prístina pureza. Uma omelete, uma obra de arte culinária

que dá água na boca quando no prato do jantar, torna-se uma mancha nojenta

quando derramada sobre travesseiro?”61.

Pelo que se pode apreender do pensamento de Bauman, pureza e ordem

estão intrinsecamente ligadas. No entanto, ele chama a atenção para o fato de que

nem tudo tem um lugar certo, para certas coisas ou tipos de pessoa não foi pensado

nenhum lugar, desta forma, eles sempre estarão fora de lugar.

Estas pessoas são consideradas um obstáculo à harmonia do ambiente,

pertencem a uma categoria de seres humanos que sempre é tratada como sujeira,

uma vez que o ambiente foi planejado sem reconhecer a sua existência. Estas

pessoas não fazem parte do padrão, são estranhas ao grupo, não se encaixam na

ordem vigente, não há lugar para elas.

É por isso que, segundo ele, “a chegada de um estranho tem o impacto de um

terremoto... O estranho despedaça a rocha sobre a qual repousa a segurança da

vida diária. Ele vem de longe; não partilha as suposições locais.... e, desse modo,

60 SILVA BENTO, Maria Aparecida da. Psicologia social do racismo. Petrópolis: Vozes, 2002, passim.61 BAUMAN, Zygmunt.O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.14.

25

"torna-se essencialmente o homem que deve colocar em questão quase tudo o que

ali parece ser inquestionável para os membros do grupo abordado. Ele "... não tem

nenhum status.... e mesmo se tentasse dar o melhor e se fosse bem-sucedido... o

grupo não lhe concederia o crédito da retribuição do seu ponto de vista” 62.

Este mundo sem estranhos, que não tolera o diferente e o novo, é o mundo

das ideologias totalitárias, conhecidas pela tendência para localizar o misterioso, o

que não se define, e buscar a destruição do que não consegue controlar.

No entanto, atualmente, quando se fala da necessidade de respeitar o

diferente e valorizar a diversidade, é preciso outra lógica para lidar com o estranho.

Esta lógica pode gerar um tipo de respeito e convivência com a alteridade que, de

certa forma, acentua o racismo.

E o desconforto frente à necessidade de conviver com a alteridade emerge. O

problema não é como se livrar dos estranhos e do diferente, de uma vez por todas,

mas como viver com a alteridade, diária e permanentemente.

Pode-se reconhecer, aí, a força dos movimentos totalitários: "Os racistas

reconhecem a diferença e querem a diferença", diz Julius Evola sobre o movimento

neofascista italiano63.

É outra roupagem do discurso racista que vai caracterizar o que se entende

por racismo diferencialista: “... Não misturarás o que as culturas, em sua sabedoria,

separaram. Ajudemos, antes, as culturas — qualquer cultura — a seguir seus

separados e, melhor ainda, inimitáveis caminhos. O mundo, então, será tão mais

rico...”64.

Martin Luther King Jr. preocupava-se com este aspecto, pois havia

compreendido que as relações raciais e étnicas se deteriorariam intensamente se o

valor cultural da integração diminuísse, como aconteceu nos Estados Unidos.

Bauman cita em seu livro65 Alfred Schütz, para quem estabelecer os padrões

para incluir e excluir o outro chama-se “fundo de conhecimento à mão” ou sabedoria

de senso comum, aquilo em que acreditamos, sem pensar.

62 BAUMAN, op. cit, p.19.63 Idem, p. 44.64 TAGUIEFF, Pierre-André. In: BAUMAN, op. cit, p. 44.65 Idem, passim.

26

Estigmatizar os traidores ou expulsar os estranhos parece provir do mesmo

motivo de preservação da ordem, de tornar ou conservar o ambiente compreensível

e propício, no caso, de uma única cor/raça.

Todas as sociedades produzem seus estranhos. Mas cada espécie de

sociedade produz sua própria espécie de estranhos e o faz à sua maneira, de modo

inimitável. Os seres humanos que transgridem os limites dos modelos convertem-se

em estranhos.

Neste caminho, Bauman utiliza os conceitos de Lévi-Strauss, trazendo duas

estratégias alternativas: a antropofágica e a antropogêmica. A primeira é uma

estratégia de assimilação – tornar a diferença semelhante, abafar as distinções

culturais e sufocar as tradições. E a outra seria a estratégia de exclusão – confinar

os estranhos dentro de paredes visíveis dos guetos, o que configuraria segregação

explícita ou, ao revés, integrá-los apenas aparentemente, mantendo-os confinados

por paredes invisíveis ou, ainda, expulsar os estranhos para além das fronteiras do

território administrável e, quando isto não for possível, simplesmente destruí-los.

No Brasil, o mundo do trabalho, como os outros espaços da vida social, é um

locus onde podemos observar as principais questões que envolvem a invisibilização,

estigmatização e exclusão. A relação social está historicamente marcada pela

desigualdade e discriminação racial. Contudo, as distâncias que separam negros de

brancos resultam não somente da discriminação ocorrida no passado, mas também

de um processo ativo de preconceitos e estereótipos raciais que legitimam,

permanentemente, procedimentos discriminatórios, garantindo a sua exclusão e

asseguram o fortalecimento dos estereótipos, como num ciclo vicioso.

Estes estereótipos baseiam-se no fenótipo. Segundo Oracy Nogueira66, o

racismo brasileiro manifesta-se segundo a aparência – este é o elemento através do

qual a sociedade brasileira acentua ou reduz o efeito do racismo, ou seja,

estereotipando os traços visíveis da diferença entre negros e brancos.

O mais notório dado de aparência, ou fenótipo, é a cor da pele. Embora esta

seja definida por maior ou menor quantidade de melanina, em grupos oriundos de

regiões intensamente quentes ou de clima frio e moderado, dentro dos sistemas

sociais modernos e contemporâneos ela é, talvez, o mais potente definidor de

66 NOGUEIRA, op. cit.

27

lugares sociais, de forma que, como foi dito no início deste texto, o estigma gera a

exclusão. Tais lugares sociais são sustentados, no imaginário brasileiro, pelo

estigma de “raça” que, mesmo sem fundamento biológico, tem sido usado para

hierarquizar os grupos sociais. Por isso, o conceito raça/cor, como construção social,

é utilizado pela sociedade em processos discriminatórios, mas é negado como

elemento que deve ser reconhecido nas pesquisas como forma de diagnosticar as

diferenças sociais.

Segundo Edith Piza e Fúlvia Rosemberg, no texto Baile da cor 67: “Nas coletas

censitárias e cadastros de instituições públicas e privadas, a ausência da coleta de

cor confere neutralidade aos dados coletados, como se todos os brasileiros, brancos

e negros, experimentassem a educação, a saúde, o trabalho, os salários, a

natalidade, a mortalidade e os direitos de cidadania da mesma forma. Se a cor

aparece como dado, há uma súbita revelação de quão diferente são as trajetórias de

cada grupo, principalmente no interior de outros quesitos coletados e instituídos

como invariantes: sexo, escolaridade, trabalho – emprego/desemprego”68.

1.6 A reivindicação da informação sobre cor como instrumento devisibilização

Considerando-se que raça/cor é um construto subjacente ao controle e

hierarquia sociais, e que apenas o reconhecimento de sua existência, como

realidade social, permite a apreensão da complexidade do racismo, é igualmente

necessário demonstrar a sua existência e o racismo operante através de estratégias

específicas. Uma delas, a mais efetiva e, talvez, eficaz, é a utilização do dado

estatístico, que não deixa margem a argumentos sobre uma suposta “igualdade

social”, da qual a população negra não se apropriaria por uma alegada “inferioridade

natural”.

Neste contexto, a introdução do quesito cor nos cadastros públicos e privados

ganhou destaque. É uma forma ímpar de combater os estigmas, pois permite

evidenciar que o problema não é dos grupos discriminados, mas da sociedade

discriminadora.

67 PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia. Cor nos censos brasileiros. Revista da USP, São Paulo, n. 40, p. 123-37,dez/fev. 1998/1999.68 PIZA, Edith & ROSEMBERG, Fúlvia. A cor dos censos brasileiros. In: CARONE, Iray; SILVABENTO,Maria Aparecida da (org.).Psicologia social do racismo. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

28

A ausência desse dado confere uma neutralidade aos diagnósticos, como se

mulheres e negros experimentassem as condições de trabalho, saúde e educação

de maneira similar. E não é esta realidade que as investigações realizadas pelos

principais órgãos de pesquisas brasileiros revelam quando focalizam as relações

raciais.

A quase inexistência da informação sobre cor/raça nos cadastros de pessoas,

empregados, servidores e usuários de serviços públicos dificulta a coleta de

subsídios que ajudem a formular e operacionalizar políticas públicas de promoção da

igualdade racial.

A questão racial tem importância significativa na estruturação das

desigualdades sociais e econômicas no Brasil. A demanda por reparações originou-

se de processos de quantificação das desigualdades, da visibilização do racismo e

levou a políticas de promoção da igualdade.

O objetivo destas políticas é fazer com que o Estado e a sociedade tomem

medidas para ressarcir os descendentes de africanos negros dos danos

psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos durante e após o

regime escravista.

Observa-se que, atualmente, a defesa das ações afirmativas e a promoção da

igualdade racial são visíveis nas ações do governo. Além disso, rompem os limites

da retórica, das declarações solenes, passando a ser traduzidas em iniciativas

potencialmente tangíveis, articuladas.

Medidas administrativas palpáveis desde 2001, especialmente na esfera do

governo federal, embora desprovidas de política de natureza governamental,

começaram a proliferar, fortalecendo a reivindicação por providências positivas

voltadas à promoção da igualdade, há anos pleiteada pelo Movimento Negro69.

No bojo desta movimentação destaca-se a inclusão da informação sobre cor

em todos os cadastros públicos.

A rigor, trata-se de um fenômeno que ganhou relevância a partir de 1995,

quando as principais entidades e lideranças do Movimento Negro entregaram um

documento ao Presidente da República com um diagnóstico pormenorizado da

69 SILVA BENTO, M. A. da, SILVA Jr., H., & LISBOA, M. T.O crepúsculo das ações afirmativas. São Paulo.[s.n] 2006

29

situação dos negros no Brasil e passaram a assumir, abertamente, a reivindicação

por políticas de promoção da igualdade racial.

Em novembro de 1995, os principais jornais do país registravam a mais

notável manifestação contemporânea de rua organizada pelo Movimento Negro

Brasileiro: a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida

que, em 20 de novembro daquele ano, reuniu cerca de 30.000 (trinta mil) pessoas

em Brasília, quando os coordenadores do evento encontraram-se com o Presidente

da República e entregaram a ele um documento pactuado entre as principais

organizações e lideranças negras do país. Nesse documento pode-se ler:

“Democratização da Informação – inclusão do quesito cor em todo e qualquer

sistema de informação sobre a população, cadastro do funcionalismo, usuários de

serviços internos em instituições públicas, empregados, desempregados, inativos e

pensionistas, e, particularmente, nas declarações de nascimentos, prontuários e

atestado de óbito para que se conheça o perfil da morbidade e da mortalidade da

população negra no país. A criação desta base de dados da população negra é

fundamental para a formulação de políticas públicas específicas para todas as áreas

de interesse da questão racial”70.

Fato é que a Marcha representou não apenas um promissor momento de

ação unificada do conjunto da militância, como também marcou a eleição da

proposta de políticas de promoção da igualdade como um tema de consenso no

discurso da liderança negra.

Algumas ações resultaram destes processos, como o Decreto 1.904, de 13 de

maio de 1996, que instituiu o Programa Nacional de Direitos Humanos, com duas

proposições ligadas à temática das políticas de promoção da igualdade: 1. Inclusão

do quesito cor em todos e quaisquer sistemas de informação e registro sobre a

população, e bancos de dados públicos; 2. Criação de um banco de dados sobre a

situação dos direitos civis, econômicos e culturais da população negra na sociedade

brasileira, que oriente políticas afirmativas para a promoção dessa comunidade71.

Em setembro de 2000, a Presidência da República instituiu um comitê

paritário, composto por representantes de órgãos governamentais, intelectuais e

70 CARDOSO, Edson Lopes. Por uma política nacional de combate ao racismo e à desigualdade racial:Marcha Zumbi contra o racismo, pela cidadania e a vida.Brasília: Cultura Gráfica e Editora Ltda., 1996, p. 24.71 CARDOSO, Fernando Henrique. Brasil, presidência, cartilha-programa nacional de direitos humanos.Brasília, Ministério da Justiça, 1996, p. 29-30.

30

lideranças negras, com a função de promover o debate no plano interno, representar

o país nos foros internacionais pertinentes e elaborar o documento que seria

encaminhado à Conferência sul-africana.

A despeito de todo o debate registrado nos últimos anos, o ingresso das

políticas de promoção da igualdade racial/cotas na mídia, nas casas legislativas e

nos órgãos públicos foi, inquestionavelmente, o processo preparatório da

participação brasileira na Conferência de Durban, cujo auge ocorreu no segundo

semestre de 2001.

O Relatório do Comitê Nacional para a Preparação da Participação Brasileira

na III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e

Intolerância Correlata registra as seguintes formulações, entre outras:

inclusão do quesito raça/cor nos formulários oficiais, nacionalmente padronizados como

Declaração de Nascidos Vivos e de Declaração de Óbito.

inclusão do quesito raça/cor nos formulários de informação e registro do RAIS/CAGED

(Relatório Anual de Informações Sociais) e formulário do público beneficiário do

PLANFOR, em ambos os casos, sob a responsabilidade do Ministério do Trabalho e

Emprego72.

Do conjunto das propostas, a idéia de cotas nas universidades mereceu

destaque especial por parte da mídia, e serviu de estopim para deflagrar um

acalorado debate público.

É assim que, em 2001, irrompe no espaço público e na agenda política do

país um vigoroso debate acerca da oportunidade, necessidade e tipologia de

políticas públicas de promoção da igualdade racial na sociedade brasileira.

A mobilização interna, voltada para a Conferência de Durban, as iniciativas

oficiais e as do Movimento Negro, acrescidas da adoção das propostas de “cotas”,

centralizou sobremaneira a atenção da mídia. Assim, não será exagero afirmar que

nunca houve debate tão intenso nos meios de comunicação.

Refletindo as reivindicações sobre a informação referente à cor/raça, o

relatório da aludida Conferência de Durban contemplou uma rica formulação sobre o

tema:

72 Brasil, Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. Relatório do Comitê Nacional para aPreparação da Participação Brasileira na III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo,Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, 2001, p. 27-28.

31

92. Insta os Estados a coletarem, compilarem, analisarem, disseminarem epublicarem dados estatísticos confiáveis em níveis local e nacional e a tomaremtodas as outras medidas necessárias para avaliar, periodicamente, a situação deindivíduos e grupos que são vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia eintolerância correlata.a) Tais dados estatísticos devem ser desagregados de acordo com a legislaçãonacional. Toda e qualquer informação deve ser coletada com o consentimentoexplícito das vítimas, baseada na auto-identificação e de acordo com asdisposições dos direitos humanos e liberdades fundamentais, tais como normasde proteção de dados e garantia de privacidade. Estas informações não devemser usadas de forma inapropriada;b) As informações e dados estatísticos devem ser coletados com o objetivo demonitorar a situação de grupos marginalizados, bem como o desenvolvimento eavaliação da legislação, das políticas, das práticas e de outras medidas quevisem prevenir e combater o racismo, discriminação racial, xenofobia eintolerância correlata, bem como para o propósito de determinar se quaisquermedidas tenham impacto involuntário desigual nas vítimas. Para este fim,recomenda-se o desenvolvimento de estratégias voluntárias consensuais eparticipativas no processo de coleta, elaboração e uso das informações;c) As informações devem levar em conta os indicadores socioeconômicos,inclusive, quando for apropriado, os de condições de saúde, mortalidadematerno-infantil, expectativa de vida, alfabetização, educação, emprego, moradia,propriedades de terra, saúde física e mental, água, saneamento, energia eserviços de comunicação, pobreza e média de rendimentos disponíveis para seelaborar políticas de desenvolvimento socioeconômico, visando pôr um fim nasdiferenças existentes entre condições sociais e econômicas;

Duas conclusões podem ser imediatamente registradas com base nestas

normas da ONU: 1. a relevância do monitoramento para a sociedade civil e os

movimentos sociais, visto que permite à militância aquilatar a correspondência, a

coerência entre discurso e prática dos gestores públicos, oferecendo subsídios para

a mobilização social e a pressão política; 2. a relevância do monitoramento como

subsídio para a própria ação governamental, visto que oferece uma perspectiva

global dos programas e ações, permitindo correções e ajustes.

A duplicidade das vantagens que podem ser auferidas com o monitoramento

de políticas públicas deve demarcar a atuação da sociedade civil, pois,

independentemente de partidos políticos e/ou pessoas que estejam à frente dos

órgãos públicos, interessa fortalecer a ação dos movimentos sociais tanto quanto

colaborar, sempre que possível, com o trabalho de gestores públicos efetivamente

comprometidos com a execução das políticas.

Convém sublinhar que o exercício de monitoramento de políticas de

promoção da igualdade racial no Brasil, nas três esferas de governo, defronta-se

com dois obstáculos. O primeiro tem a ver, justamente, com a ausência da

informação sobre cor/raça dos beneficiários das políticas públicas, ou, o que é pior, a

inclusão equivocada desta informação.

32

Exemplo deste “novo” problema detectado pelo CEERT foi o formulário de

identificação de pessoas, empregado no cadastramento único para programas

sociais, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que utiliza

cinco categorias para identificar a raça/cor dos beneficiários: branca, negra, parda,

amarela e indígena.

Trata-se, é evidente, da junção de categorias fenotípicas com uma categoria

política (negro), adotada pelo Movimento Negro brasileiro para identificar todos os

descendentes de africanos e cujo fenótipo os sujeita à discriminação racial. É

dispensável afirmar que a categoria “negra”, do referido cadastro, não se confunde

com a categoria “preta”, empregada pelo IBGE e demais instituições de pesquisa

que desagregam a variável racial.

Além disso, a ausência da informação sobre cor nos cadastros das áreas de

educação e saúde, por exemplo, impedem o desenho de indicadores que captem o

impacto de programas de transferência de renda no acesso dos beneficiários

àqueles serviços públicos, dificultando, assim uma apreensão do empoderamento

(parte essencial dos objetivos do programa Bolsa Família, por exemplo) sobre os

grupos raciais.

Não é difícil perceber os problemas resultantes, seja do emprego equivocado

de categorias no cadastramento, seja da inexistência da informação sobre cor nos

serviços previstos nas condicionalidades impostas pelo Bolsa Família.

O segundo obstáculo interposto ao monitoramento refere-se à inexistência de

uma cultura legislativa e administrativa que assegure a previsão orçamentária para

programas e ações que possuam recorte de raça e/ou diversidade.

A inexistência de previsão orçamentária tende a realimentar a velha política

do favor, por meio da qual, não raro, o Movimento Negro é tratado como

mendicante: o administrador de plantão sente-se livre e desimpedido para agir ou

não com “benevolência”, atendendo o pleito ou não, implementando ou não

determinada política, mesmo que prevista em lei.

Vê-se, assim, que a inexistência de rubricas orçamentárias específicas

desvirtua os termos da relação sociedade/Estado, Movimento/Estado, deslocando a

sociedade do seu devido lugar, isto é, titular e destinatária do poder.

33

Retomando as deliberações de Durban, pode-se verificar a preocupação

crescente com o monitoramento de políticas públicas compreendidas não como

exercício de fiscalização, mas como instrumento de contínuo aperfeiçoamento da

gestão dos serviços públicos; vejamos uma outra deliberação da aludida conferência

de Durban:

93. Convida os Estados, as organizações governamentais e as organizações nãogovernamentais, as instituições acadêmicas e o setor privado a aperfeiçoarem osconceitos e métodos de coleta e análise de dados; a promoverem pesquisas,intercâmbios de experiências e de práticas bem sucedidas e a desenvolverematividades promocionais nesta área; a desenvolverem indicadores de progresso ede participação de indivíduos e dos grupos em sociedade que estão sujeitos aoracismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata;94. Reconhece que as políticas e os programas que visam o combate aoracismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata devem estarbaseados em pesquisas qualitativas e quantitativas, às quais se incorpore umaperspectiva de gênero. Tais políticas e programas devem levar em conta asprioridades definidas pelos indivíduos e grupos que são vítimas ou que estãosujeitos ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata

73;

De um lado, representantes governamentais, e de outro, algumas das

principais lideranças do Movimento Negro, esmeravam-se em pronunciamentos

públicos, quase semanalmente, fomentando o debate na sociedade.

Vinculada à Presidência da República, e com status de ministério, foi criada,

no dia 21 de março de 2003, a Secretaria Especial de Políticas da Promoção da

Igualdade Racial, um notável marco de intervenção institucional do Movimento

Negro brasileiro.

Inicialmente por meio de medida provisória, convertida posteriormente na lei

federal 10.678, esta secretaria representa a sinalização do Estado brasileiro para

instituir políticas estáveis e sustentadas de promoção da igualdade racial.

Vejamos a relevância conferida pela secretaria à democratização da

informação sobre cor:

Incluir o quesito raça/cor e etnia em todos os instrumentos de coleta de dados,registros, pesquisas e formulários públicos, para a conformação de um sistemade informação das relações étnico-raciais no Brasil74.

73 Brasil, Ministério da Cultura, Fundação Cultural Palmares, III Conferência Mundial de Combate ao Racismo,Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, Declaração de Durban e Plano de Ação – Traduzidosem Língua Portuguesa, p. 65-67.74 Brasil, Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, PlanoNacional.

34

Finalizando este primeiro capítulo, vale lembrar que a luta por acesso à

informação sobre cor/raça dos brasileiros remete o pesquisador para o histórico da

inclusão/supressão do dado da cor. Segundo Oracy, a miscigenação não significou a

dissolução das cores dos africanos e imigrantes que formaram a nacionalidade

brasileira.

Nos capítulos seguintes, será examinada a ambigüidade do tratamento

conferido pelo Estado brasileiro a este tema: ora a informação é incluída, ora é

suprimida. Como se fosse possível, conforme prognosticou Florestan Fernandes,

que a omissão do dado sobre a cor eliminasse automaticamente o problema.

Em entrevista publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, em 13 de maio de

1979, Florestan Fernandes enfrentava uma interessante indagação: “É possível

estimar a população negra e mulata do Brasil hoje?”.

Respondeu Florestan: “Não. Até 1950, isso ainda era possível, porque as

pessoas respondiam sobre sua cor nos recenseamentos. Quer dizer, o entrevistado

poderia dizer que era branco, preto, amarelo, a cor que ele achasse que era a sua.

Depois, a questão foi retirada. Cortaram a pergunta como se, com isso, cortassem o

problema” (grifo meu)75.

Não só o problema não foi cortado, a despeito do esforço de invisibilização,

como também, atualmente, a luta por igualdade racial configura uma das questões

mais candentes da sociedade brasileira.

Não se pode, entretanto, desenhar qualquer política de igualdade racial sem o

suporte da informação sobre cor. Democratizar essa informação implica tocar numa

ferida exposta, revelando as minúcias da condição de ser negro e ser branco no

Brasil, no passado, conforme já relatado, e certamente também no futuro. Portanto,

o próximo capítulo pretende enfocar duas dimensões da classificação racial: a

político-ideológica, relacionada à ambigüidade da inclusão da informação sobre cor;

e a político-metodológica, referente à inconstância das categorias empregadas pela

demografia para proceder à classificação racial.

75 FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez Editora/Autores Associados, 1989,p. 98.

35

CAPÍTULO II – DILEMAS DA CLASSIFICAÇÃO RACIAL

O silêncio não são as palavras silenciadas

que se guardam no segredo, sem dizer.

O silêncio guarda um outro segredo que omovimento das palavras não atinge.

(M. Le. Bot)

Neste capítulo, pretende-se responder a uma questão que poderia ser

formulada nos seguintes termos: quais razões teriam levado o Estado brasileiro a

incluir, ou omitir, a informação sobre cor em determinados cadastros?

Vale anotar, ainda, que até março de 1975 a Lei dos Registros Públicos

determinava que na certidão de nascimento deveria constar a informação sobre cor.

Dois registros podem ser sublinhados a partir desses dados: 1) além dos

recenseamentos, que não identificam o declarante, há décadas o Brasil instituiu

sistemas de classificação racial individualizados; (2) a cor, isto é, o fenótipo,

predomina como critério empregado para a classificação racial.

Trata-se de informações extremamente úteis, para não dizer imprescindíveis,

a uma abordagem da classificação racial, o que será feito adiante. Por ora, interessa

colocar em destaque o movimento pendular dos censos em relação à informação

sobre cor, bem como a natureza das categorias utilizadas.

Vale assinalar que na perspectiva de Oracy Nogueira, o racismo brasileiro

manifesta-se pela cor, pelo fenótipo, o que terminou informando os métodos e

técnicas de classificação racial historicamente empregados no Brasil76.

A bibliografia sobre o tema não indica o emprego de critérios genéticos como

base para tais classificações. Tanto a demografia quanto os cadastros públicos

utilizaram-se invariavelmente da marca visível – a cor – para o exercício

classificatório.

A seguir, uma breve visita aos recenseamentos no Brasil.

76 NOGUEIRA, op. cit.

36

2.1 Panorama dos censos sob o ângulo da classificação racial

A partir de 1750, a Coroa Portuguesa decidiu fazer um levantamento da

população livre e adulta, apta a ser convocada para a defesa do território. Antes do

censo nacional, houve vários outros, de caráter local ou municipal, como os

realizados no Rio de Janeiro em 1799, 1821, 1838, 1849, 1856, e 1870; em São

Paulo, em 1765, 1777, 1798 e 1836; além de outras cidades brasileiras77.

O primeiro regulamento censitário no Brasil data de 1846, e definiu o caráter

periódico do censo demográfico, fixando um intervalo de oito anos. Em 1850, o

governo teve orçamento para uma operação do porte de um censo demográfico. O

primeiro, então, foi programado para 1852.

Entretanto, a população revoltou-se contra o decreto 797, de junho de 1851,

então conhecido como a lei do cativeiro. Acreditava-se que era uma medida

governamental, com o objetivo de reescravizar os homens de cor. Este episódio foi

suficiente para adiar por mais 20 anos a realização do primeiro censo.

Em 1870, a lei 1.829, de 09/09/1870, determinou que os censos deveriam, a

cada dez anos, cobrir todo o território nacional.

O primeiro recenseamento nacional no país ocorreu em 1872 e recebeu o

nome de Recenseamento da População do Império do Brasil, que coletou a variável

raça como subtópico da condição social, então dividida entre homens livres e

escravizados. As categorias apresentadas foram branco, preto, pardo e caboclo (os

indígenas e seus descendentes);

1880 – Não houve coleta censitária;

1890 – Houve coleta censitária com levantamento da variável raça para a

população geral, desagregada somente no quesito estado civil. As cores aí

estabelecidas foram branco, preto, caboclo e mestiço; caboclo (indígenas e

brancos) e mestiço (indígenas e pretos). Como traço negativo desse censo,

pode-se mencionar o fato de que, na época, não se deu publicidade aos

dados coletados sobre raça;

1900 – Houve coleta censitária, mas não foi coletada a variável raça da

população;

1910 – Não houve coleta censitária;

77 Site IBGE – www.ibge.gov.br. História do Censo do Brasil, 30/01/2008

37

1920 – Houve coleta censitária, mas não foi coletada a variável raça da

população, cuja exclusão foi assim explicada: “(a) supressão do quesito

relativo à cor explica-se pelo fato das respostas ocultarem em grande parte a

verdade, especialmente quanto aos mestiços, muito numerosos em quase

todos os estados do Brasil e, de ordinário, os mais refratários a declarações

inerentes à cor originária da raça que pertencem” 78;

1930 – Não houve coleta censitária;

1940 – IBGE79 foi o novo responsável pelo censo, houve coleta censitária e

passou-se a levantar a cor dos entrevistados, e não mais a raça, com

levantamento da informação desagregada para todos os quesitos da

população. As categorias utilizadas foram branco, preto e amarelo, e os

pardos, categoria criada a posteriori, foram computados os casos de

inadequação com as categorias anteriores, ou quando não responderam à

pergunta, já que as cores foram tanto auto quanto heterodeclaradas;

1950 – Houve coleta censitária com levantamento da informação cor

desagregada para todos os quesitos da população. Os termos definidores

foram: branco, preto, pardo e amarelo; o pardo voltou a aparecer, mas como

um item específico, no caso, todos aqueles que se identificavam como

mestiços (mulato, cafuzo, mameluco, etc.; e todos os indivíduos que

pertencessem a grupos indígenas)80. As instruções para coleta eram

explícitas quanto à autoclassificação.

1960 – Foi o primeiro recenseamento processado eletronicamente e que

utilizou uma amostra de 25% do total dos domicílios. Essa inovação tornou

possível expandir o número de perguntas do questionário. Por outro lado, a

partir desse momento ocorreu um retrocesso na investigação da variável cor

(que, de resto, manteve as categorias anteriores, branca, preta, amarela e

parda) já que esta passou a ser investigada somente nos domicílios da

amostra, deixando de cobrir todo o universo entrevistado. Na verdade, esse

limite perdura até hoje. As categorias do dado cor não variaram em relação ao

censo de 1950.

78 Recenseamento de 1920, apud REGUEIRA: 2004:67. In: PAIXÃO, Marcelo, CARVANO, Luiz M. A.Variável cor ou raça nos interior dos sistemas censitários brasileiros, p. 14.79 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (fundado em 1938)80 PAIXÃO, op cit., p.14.

38

1970 Houve coleta censitária, mas sem o dado cor. A ditadura militar

contribuiu com esta decisão, seja por ter perseguido e cassado as principais

lideranças do Movimento Negro e pesquisadores críticos da realidade racial

brasileira (Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Fernando Henrique

Cardoso, Octávio Ianni), seja por ter colaborado para reforçar o mito da

democracia racial. Assim, após debates no interior do comitê assessor do

levantamento censitário, optou-se pela não inclusão da variável: “A

classificação de cor na sociedade brasileira, por força da miscigenação, torna-

se difícil, mesmo para o etnólogo ou antropólogo. A exata classificação

dependeria de exames morfológicos que o leigo não poderia proceder. Até

mesmo com relação aos amarelos, é difícil caracterizar o indivíduo como

amarelo apenas em função de certos traços morfológicos, os quais

permanecem até a 3ª e 4ª gerações, mesmo quando há cruzamentos. Com

relação ao branco, preto e pardo a dificuldade é ainda maior, pois o

julgamento do pesquisador está relacionado com a ‘cultura’ regional.

Possivelmente o indivíduo considerado como pardo no Rio Grande do Sul,

seria considerado branco na Bahia. Considero as informações sobre cor muito

deficiente. A sua exclusão poderia provocar alguns protestos de sociólogos.

Talvez, convenha correr o risco de ser mais realista81;

1980 – Seguindo os padrões da década de 1960, utilizou-se a auto-

classificação da cor e presença do quesito em uma amostra de 25% do total

de domicílios. Nesse caso é importante mencionar a importância do

Movimento Negro e de pesquisadores do tema, que dentro de um contexto de

redemocratização do país, lograram obter o retorno do quesito cor no

questionário censitário. Vale, finalmente, mencionar que a partir deste

recenseamento igualmente ocorreu a redução da amostra para 10% dos

domicílios (relembrando que a variável cor faz parte desse questionário

específico) As categorias do dado cor não variaram em relação ao censo de

1950;

1991 – Cor para a população geral. Incluíram-se neste censo os indígenas,

com a instrução de ser aplicada apenas aos que residissem em reservas;

81 Recenseamento de 1920, apud REGUEIRA, op. cit.

39

2000 Houve coleta censitária com levantamento da informação cor para a

população geral. As categorias do dado cor não variaram em relação ao

censo de 1991, com a instrução aos coletores de que a categoria indígena

não seria mais restrita somente aos que residissem em reservas.

40

Tabela 3 – Cronologia da coleta para os censos.

Anocenso

decenal

Houverecenseamento?

Houvecoleta

doquesito

cor?

VARIÁVELINDAGADA

Técnica de coleta?Categoriasutilizadas?

1872 Sim Sim Raçaautoclassificação eheteroclassificação

branco,preto,pardo ecaboclo

1880 Não Não - - -

1890 Sim Sim Raçaautoclassificação eheteroclassificação

branco,preto,

caboclo emestiço

1900 Sim Não -1910 Não Não -1920 Sim Não -1930 Não Não -

1940 Sim Sim Corautoclassificação eheteroclassifcação

branco,preto,

amarelo epardo

1950 Sim Sim Cor autoclassificação

branco,preto,pardo eamarelo

1960 Sim Sim Cor autoclassificação

branco,preto,pardo eamarelo

1970 Sim Não -

1980 Sim Sim Cor autoclassificação

branco,preto,pardo eamarelo

1991 Sim Sim Cor ouRaça

autoclassificação

branco,preto,pardo,

amarelo eindígena

2000 Sim SimCor ouRaça

autoclassificação

branco,preto,pardo,

amarelo eindígena

41

Gráfico 1 – Inclusão do quesito cor nos instrumentos censitários.

Quesito cor nos censos nacionais Brasil

73%

27%

Coletado =>1872, 1890,1940, 1950, 1960, 1980, 1991, 2000

Não coletado => 1900, 1920, 1970

Observando o processo histórico da introdução do quesito cor nos censos,

deve-se destacar que, já nos primeiros recenseamentos, houve uma forte tendência

para a inclusão de categorias genotípicas (caboclo, mestiço) ao lado de fenotípicas

(preto, branco, pardo). É preciso ressaltar, ainda, a não-inclusão do grupo indígena,

ao passo que, logo no início dos anos 50, quando tem início a imigração japonesa, o

IBGE cuidou de incluir a categoria amarelo.

Pode-se observar então que, desde o censo nacional de 1872, a

classificação racial utiliza dois critérios na coleta da informação: um deles aponta

para as categorias cromáticas “branco”, “preto” e “pardo”, e o outro remete à

ascendência ou origem racial “caboclo” (ameríndios e descendentes), “mestiço”

(descendentes da união de pretos e brancos), “amarelo” (para a imigração japonesa)

e “indígena”82.

As categorias “branco” e “preto” foram apresentadas como opções desde o

censo de 1872 até 2000. A categoria pardo também tem uma longa trajetória,

porém, em 1890, data do segundo censo nacional, foi substituída pela categoria

mestiço e retornou em 1940, no terceiro recenseamento, mantendo-se até 2000. A

categoria “amarelo” foi acrescentada no recenseamento em 1940 para atender à

migração japonesa, e a categoria indígena foi incluída em 1991, apenas para a

população residente em reservas – no censo de 2000 esta restrição foi eliminada.

82 PETRUCCELLI, José Luis. A cor denominada: estudos sobre a classificação étnico-racial. Rio de Janeiro:DP&A Editora, 2007, p. 23.

42

Por fim, pode-se observar abaixo que, quando o quesito cor é coletado por

meio de pergunta aberta, as categorias branca, preta, amarela e parda estão entre

as escolhas mais freqüentes.

Jose Luis Petruccelli83 relata que a coleta da informação sobre cor, através da

pergunta aberta84, resultou em 143 categorias diferentes. Destas, 77 apareceram

somente uma vez, e 12 referiam-se à nacionalidade, unidade da federação e/ou

origem geográfica.

Estas 143 respostas diferentes ainda incluem variações de categoria que,

segundo o autor, poderiam ser agrupadas sem temor de impugnar a variabilidade

encontrada, citando o exemplo de “morena branca”, “branca morena” e “branca

morena clara”. Há, ainda, outra categoria que merece análise, de acordo com

Petruccelli – a categoria “branco” com 16 variações, diferenciações hierárquicas do

branco “puro”. Seguindo esta proposta, ele agrupou as 143 classificações em 27

grupos de categoria.

Tabela 4 - Distribuição das respostas à auto-identificação de cor.

Critérios de agregação da variável cor para as categorias agrupadas e

distribuição das respostas à auto-identificação de cor (pergunta

aberta)85

Categoria PME 98 % Acumulado

Branca 54,24% 54,24%

Morena 20,89% 75,13%

Parda 10,40% 85,53%

Preta 4,26% 89,79%

Negra 3,14% 92,93%

Morena clara 2,92% 95,85%

Amarela 1,11% 96,96%

Mulata 0,81% 97,77%

Clara 0,78% 98,55%

Morena escura 0,45% 99,00%

Escura 0,38%

Indígena 0,13%

Brasileira 0,12%

Mestiça/mista 0,08%

Loira 0,05%

83 PETRUCCELLI, op. cit., p. 25.84 PME/98 que alcançou 34.045.265 pessoas.85 PETRUCCELLI, op. cit.,p27 e 53.

43

Categoria PME 98 % Acumulado

Branca+ ** 0,04%

Sarará 0,04%

Marrom chocolate 0,03%

Cabo Verde 0,02%

Jambo 0,02%

Vermelha 0,02%

Cabocla 0,02%

Canela 0,01%

Castanha 0,01%

Galega 0,01%

Cafuzo 0,01%

* Não são considerados, na análise, os sem respostas, que alcançaram

0,26%

** Nesta categoria foram incluídas as respostas que qualificavam a cor

branca com algum outro termo complementar

Por fim, convém notar que Clóvis Moura já havia identificado 136

denominações fornecidas pelos brasileiros, no censo de 198086: “O total de 136

cores bem demonstra como o brasileiro foge de sua verdade étnica, procurando,

através de simbolismos de fuga, situar-se o mais possível próximo do modelo branco

tido como superior”87.

Trata-se, conforme demonstrado, de afirmação que deve ser vista com o

máximo de cautela, haja vista que o total de cores diminuiria sensivelmente se fosse

agrupado em cinco grandes categorias.

De todo o modo, cabe realçar que o branco aparece como designação da

condição humana, universal, não-racializado, como se fosse possível um sistema

econômico e político engendrado durante séculos, e que articulava três grandes

grupos étnicos (indígenas, africanos e europeus), ter racializado somente um dos

três segmentos citados.

Cabe resgatar o conceito de invisibilização referido no capítulo 1, com o qual

se pretendeu demonstrar que a retirada da informação sobre cor pode ter obedecido

a uma lógica de invisibilização da própria presença da população negra no país, e

do impacto que o problema racial causa na vida das pessoas. No entanto, a locução

86 ALZUGARAY, Domingo; ALZUGARAY, Catia. Retrato do Brasil. São Paulo: Editora Três, v. 1, 1973 p.112.87 MOURA, Clóvis. A herança do cativeiro. In: ALZUGARAY, Domingo; ALZUGARAY, Catia. Retrato doBrasil. São Paulo: Editora Três/ Política Editora, n.º 10, 1984, p. 112.

44

“homem de cor” 88, usada como sinônimo de negro, relativiza o conceito aqui

abordado, já que neste caso o que se pretende é a invisibilização do branco.

Decerto, um dos efeitos da locução “homens de cor”, evidentemente

falaciosa, é a invisibilização do branco como grupo étnico/racial, ao qual se

vinculavam interesses econômicos e políticos, sem falar, ainda, do aspecto

identitário. Ao pressupor que a racialização seria condição exclusiva dos negros,

pretendia-se invisibilizar o papel desempenhado pelos brancos como grupo de

interesse. Como diz Carlos Hasembalg, a ocultação da figura do branco cumpria o

importante papel de culpabilizar os próprios negros pela sua condição histórica,

econômica e social. Assim, a expressão “problema racial”, “questão racial” é

substituída por “problema do negro”, como se negro e branco não fossem

construções sociais, como se o fenômeno não estivesse associado e como se os

brancos não tivessem a sua cota de responsabilidade na solução do problema.

De outra parte, é igualmente interessante observar que, a despeito do uso de

determinadas categorias fenotípicas, nos recenseamentos e documentos públicos, o

ativismo negro não aderiu àquela nomenclatura, preferindo expressões como “gente

negra”, “mocidade negra”, “a raça”, ou metáforas como “níger” e “ébano” 89.

A aparente contradição é que, se de um lado as categorias empregadas em

classificação, inspiradas em Oracy Nogueira, expressavam elementos fenotípicos, a

nomenclatura adotada no discurso da militância parecia orientada por um critério

essencialmente político: eram negros todos os descendentes de africanos, conforme

expressamente propugnava o jornal Tribuna Negra da 1ª quinzena de setembro de

1935, cuja capa estampava: Pela União Social e Política dos Descendentes da

Raça Negra (grifo meu)90.

Trata-se, aliás, de demarcação que se mantém até os nossos dias, visto que

enquanto o IBGE utiliza os termos preto e pardo, o Movimento Negro

contemporâneo prefere os vocábulos “negro”, “afro-brasileiro”, “afrodescendentes”,

entre outros, que serão objeto de exame no capítulo seguinte.

Com estas considerações, pretende-se chamar a atenção para o fato de que

método e técnicas de classificação racial foram, historicamente, marcados por

88 LEITE, op. cit., p.32.89 Idem, p. 84, 92, 180, 101, 124.90 Idem, p. 124

45

concepções muitas vezes distanciadas da opinião da população negra a respeito da

sua identificação – eles foram formados mais por razões político-ideológicas dos

grupos de poder.

2.2 A supressão da cor do censo de 1970

A década de 70 pode ser considerada um marco no tratamento dispensado

pelo Estado à questão da informação sobre cor, pelo menos por duas razões: 1. a

supressão da cor no recenseamento geral; 2. a supressão da cor na certidão de

nascimento.

Segundo Karin Sant’Anna Kössling: “Como parte da estratégia do escamotear

do racismo no Brasil, o item cor não fez parte dos recenseamentos do IBGE durante

duas décadas, uma vez que os governantes entendiam não haver racismo no Brasil,

‘o brasileiro não tem cor, todos são iguais perante a lei e têm acesso a todas as

oportunidades’. Da mesma forma, o IBGE não teria divulgado dados referentes à

presença do racismo nas relações de trabalho, segundo matéria do jornal Folha de

S. Paulo, de 22/01/82. A reportagem denunciou que o IBGE tinha conhecimento,

desde 1980, sobre o racismo no mercado de trabalho, com dificuldades na

contratação e salários menores para os negros e pardos, mas essa pesquisa do

Departamento de Estudos e Indicadores Sociais foi mantida em sigilo. Essas

medidas revelam a preocupação de sigilo que o regime militar manteve em relação

aos movimentos negros que, por certo, se tivesse conhecimento desses dados,

fortaleceriam os seus argumentos e a sua própria luta”91.

Juana Elbein dos Santos também registra a associação entre o acesso à

informação sobre cor e as reivindicações sociais: “Tendo sido queimados os

documentos e os arquivos referentes ao tráfico dos escravos, e sendo interdita nos

recenseamentos oficiais a discriminação segundo a cor da pele, é difícil proceder à

apreciação exata da evolução e da importância da população de ascendência

africana no Brasil”92.

91 As lutas anti-racistas de afrodescendentes sob vigilância do Deops/SP – 1964-1983. Karin Sant’AnnaKössling. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas. Departamento de História. Pós-graduação em História Social. São Paulo, 2007, p. 112 e 113.(v. notas, 445, 446, 447)92 ELBEIN DOS SANTOS, Juana. Os nagôs e a morte: pàde, àsèsè e o culto égun na Bahia. (trad.)Universidade Federal da Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 27.

46

Neste mesmo período, outra decisão política importante foi tomada pelo

regime militar, a supressão da informação sobre cor da certidão de nascimento.

Tratou-se da edição da lei 6.015, de 30 de junho de 1975, que, entre outras

alterações impostas à Lei dos Registros Públicos, suprimiu o dado da cor, visto que,

até então, a lei apresentava a seguinte redação: “O assento de nascimento deverá

conter: item 2o. o sexo e a cor do registrando”.

Com a nova redação, o quesito cor foi cuidadosamente eliminado do texto

legal.

Assim, a sua larga utilização limitou-se aos formulários das áreas de

segurança pública e sistema prisional – certamente não por mera coincidência.

Os objetivos eram nítidos, evidentes, patentes: ocultar o racismo e, ao mesmo

tempo, enfraquecer a luta anti-racista.

No dizer de Teresinha Bernardo, “as características do mito da democracia

racial, que constitui uma outra dimensão do racismo, à medida que encobre, desfoca

a discriminação, criando a ilusão da harmonia racial” 93.

De seu turno, ao debruçar-se sobre a tipologia dos movimentos sociais, no

livro A Produção da Sociedade94, o filósofo Alain Touraine identifica três

componentes essenciais: a identidade, que é a definição que os agentes têm de si

mesmos; a oposição, isto é, o conflito, que distingue os adversários; e a totalidade,

que refere o campo de domínio posto em disputa.

Quanto mais explícita e visível for a tensão que dá origem a um movimento,

maiores serão as suas probabilidades de acentuar identidades coletivas, conquistar

base de sustentação e se afirmar como expressão política de demandas de um

grupo social.

Vale lembrar que nos EUA, já em 1865, mesmo ano da aprovação da 13a

Emenda à Constituição, que aboliu formalmente o trabalho escravo, os

confederados sulistas derrotados na Guerra de Secessão criaram a Ku-Klux-Klan,

que não apenas assumiu um discurso abertamente racista, como empreendeu ações

terroristas responsáveis pelo enforcamento de cerca de 5.000 negros. Na África do

93 BERNARDO, Teresinha. Negras, mulheres e mães: lembranças de Olga de Alaketu. São Paulo: EDUC, Riode Janeiro: Pallas, 2003, p. 158.94 TOURAINE, Alain. Production de la société. Paris: Seuil, 1993.

47

Sul, o apartheid inscreveu na própria Constituição, com todas as letras, o princípio

da alegada superioridade branca.

No Brasil, o mito da democracia racial cuidava de tornar invisível, o máximo

possível, a discriminação, isolando a luta contra o racismo e robustecendo a idéia de

que, se houvesse um problema em nosso país, este seria de natureza social e não

racial.

Estava em cena o espetáculo da ocultação, do acobertamento, do

encobrimento.

A referida ocultação evidencia a relevância do não-dito, ou, noutras palavras,

a importância do silêncio no discurso da democracia racial brasileira.

“Não constitui exagero afirmar que estudos e pesquisas sobre a educação depopulações brasileiras têm se caracterizado pela negação da discriminação racialatravés do silêncio: silencia-se sobre o tema como estratégia de negação daexistência de diferenças raciais. Reforça-se, assim, o mito, acarinhado pelaspopulações brancas brasileiras, de que vivemos numa democracia racial. Se, deacordo com o mito, conseguimos a implantação terrestre do paraíso racial, se opovo brasileiro, também de acordo com o mito, é destituído de preconceito racial,por que então diferenciarmos nas estatísticas oficiais o que, em princípio e deacordo com o mito, é igual? Se a constituição do país reza em seu 1º artigo quesomos iguais perante a lei, independentemente de sexo, classe, raça, religião,por que nos preocuparmos com as diferenças na condição de vida de negros ebrancos?Revendo a documentação nacional sobre a população negra, nota-se apersistência do ocultamento das desigualdades raciais, isto é, das vantagens eprivilégios da população branca e da discriminação social, econômica e simbólicaque sofre a população negra”95.

Trata-se de um discurso, como se sabe, que serviu ao propósito de

propagandear, nos planos interno e externo, a versão segundo a qual, no Brasil, não

existiria preconceito ou discriminação raciais contra a população negra. No entanto,

estudiosos desse tema, atentos às entrelinhas das palavras, percebem que a

construção do discurso usado para implantar, justificar e legitimar a idéia de paraíso

racial alicerçou-se em informações omitidas, silenciadas ou projetadas, de modo

estereotipado, ao longo da história. Fatos relevantes da história social brasileira

foram apagados, evidenciando que o discurso poderia ter outra composição, caso

viessem à tona elementos outros, como a resistência negra à escravidão, no

passado, ou a reação negra, no presente.

95 ROSEMBERG, Fúlvia, PINTO, Regina P. Trajetórias escolares de estudantes brancos e negros. In: SeminárioEducação e Discriminação de Negros. Belo Horizonte: IRHJP – Instituto de Recursos Humanos João Pinheiros/FAE/MEC, 1988, p. 31.

48

Ao se evidenciar a ocultação, o silêncio, é possível estudar o discurso a partir

do não-dito, em que o não dizer equivale a dizer algo para que outro algo não seja

dito. Assim, ao investigar o não-dito, mostrando o que foi omitido e, ao mesmo

tempo, o que se pretendeu omitir, pretende-se contribuir para o desvelamento do

arsenal argumentativo/discursivo da democracia racial.

Vale lembrar que a preocupação com o fenômeno do silêncio é crescente e

facilmente localizada na produção contemporânea sobre relações raciais no Brasil.

Ricardo Henriques afirma que “a desigualdade racial, em particular, é

desconsiderada ou ocultada pelo confortável manto do silêncio. Silêncio enraizado

no senso comum de uma sociedade convencida da pretensa cordialidade nacional e

do mito da democracia racial. Silêncio que oculta a enorme desigualdade racial a

que estão submetidos os brasileiros”96.

Eliane Cavalleiro observa, em seu trabalho, que a “omissão e o silêncio das

professoras diante dos estereótipos e dos dogmas impostos às crianças negras são

a tônica de sua prática pedagógica”97. No mesmo percurso, Maria Aparecida Silva

Bento parte da premissa de que “a sociedade reproduz as desigualdades ao longo

dos séculos com ampla participação da população, quer intencional, quer

inconscientemente, seja através de ações discriminatórias, seja da omissão frente às

práticas racistas”98. Para Kabengele Munanga, o racismo brasileiro “é caracterizado

por um silêncio criminoso que, além da exclusão sistemática dos negros em vários

setores da vida nacional, prejudica fortemente o processo de formação da identidade

coletiva da qual resultariam a conscientização e mobilização de suas vítimas”99.

Não será mera casualidade a preocupação recorrente dos intelectuais com a

questão do silêncio. O modelo de relações raciais construído na experiência

brasileira prescindiu, ao menos teoricamente, de regras formais, escritas,

organizadas. Esse modelo, por sinal, funda-se em regras informais, não-escritas,

mas, de algum modo, por todos conhecidas. Essa afirmação admite a conclusão de

que o silêncio, o não-dito, muito mais do que o dito, serviu de veículo de

transmissão, balizamento e normatização da conduta discriminatória.

96 HENRIQUES, Ricardo. Desigualdade racial no Brasil. IPEA, Texto para discussão n. 807, 2001.97 CAVALLEIRO, Eliane. Do Silêncio do Lar ao Silêncio Escolar: Racismo, Discriminação e Preconceito naEducação Infantil. Editora Contexto, São Paulo, 2000.98 SILVA BENTO, SILVA Jr.& LISBOA op.cit.99 MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia.Cadernos PENESB. Niterói: EdUFF, 2004.

49

Outro conceito igualmente importante é o do silenciamento, que consiste no

apagamento da presença negra na história brasileira.

Enni Puccinelli Orlandi fala sobre o silêncio e a exclusão, focalizando outro

apagamento: o do indígena. Ela se pergunta: “Como o índio foi excluído da língua e

da identidade nacional brasileira?”100.

De fato, assegura Orlandi, o índio é silenciado, não fala nos textos tomados

como documentos. No entanto, é mencionado pelos missionários, cientistas e

políticos. Para compreender o silêncio, é preciso compreender o discurso destes

atores ao longo da história (500 anos), ou seja, é pela historicidade que se poderá

compreender o discurso e o silêncio101.

Sobre a política do silêncio, Orlandi destaca que, ao dizer algo, apagamos

outros sentidos indesejáveis: “... Assim, fala-se sobre sobre o ‘outro’, para que ele

não fale, pois ele, ao falar, pode distorcer o sentido do discursso que nos

interessa”102.

Isto significa que na política do silêncio está a interdição do dizer, o

impedimento da sustentação de outro discurso103.

É exatamente o que se observa no ato dos militares de suprimir o quesito cor

no censo de 1970 – não se coleta e não se fala no assunto, não existe racismo no

Brasil, vivemos numa democracia racial.

Neste caso, o silêncio é, acima de tudo, aquilo que foi apagado, colocado de

lado, excluído104.

O romance O guarani105 é um interessante exemplo de apagamento da

presença e contribuição negra na formação da nação brasileira.

No momento anterior à abolição, nomes como Luiz Gama valiam-se do texto

literário para manifestar a sua subjetividade e condição peculiar no mundo. No

entanto, apagou-se da literatura o nome de Maria Firmino, contemporânea de Gama,

100 ORLANDI, Enni Puccinelli. As formas do silêncio – no movimento dos sentidos. Campinas: Editora daUnicamp, 1995, p. 59.101ORLANDI, op cit., p. 58.102 ORLANDI, op cit., p. 60.103 Idem, p. 76.104 Idem, p. 106.105 ALENCAR, José. O guarani. 25 ed., São Paulo: Ática, 2002.

50

que publicou Úrsuala em 1859, o primeiro romance abolicionista e um dos primeiros

escritos por uma brasileira, segundo Eduardo de Assis Duarte (UFMG)106.

No campo da temática étnico-racial, o desafio não poderia ser maior.

Diferentes teorias a respeito de racismo e relações raciais no Brasil são

constantemente revisitadas por pesquisadores contemporâneos, na tentativa de

entender não somente o porquê, mas como a nação conseguiu sustentar, durante

séculos, a imagem de democracia racial em meio à recorrente desigualdade.

É neste momento que se cruzam os conteúdos da semiótica e das relações

raciais. Como uma teoria do percurso gerativo do sentido, a semiótica não se

interessa pelo resultado final, o significado; mas sim como algo se organiza para

significar o que significa. Da mesma forma, procedem as teorias da análise do

discurso de matriz francesa.

Assim, parece mais apropriado trabalhar com a idéia de como a sociedade

está organizada para sustentar o mito da democracia racial, ao invés de perguntar

por que o Brasil não se reconhece racista, nem institucional nem cotidianamente. Ao

traçar o percurso das oportunidades – do que ora é silenciado, ora alimenta

estereótipos – mostra-se o discurso que foi estrategicamente apagado para que

outro se sobressaísse. Também aí a semiótica orienta o caminho, posto que só há

sentido na e pela relação entre, pelo menos, dois elementos. Em outras palavras,

um discurso constitui-se, não raro, em oposição a outro discurso107.

A Lingüística e a Semiótica têm papel fundamental na (re)construção

discursiva desse debate. Atualmente surgem, aqui e acolá, trabalhos pioneiros, que

tentam trazer à superfície o que a linguagem (leia-se, o discurso) não ousou

pesquisar. Mais comum, no entanto, é empreender esforços para continuar a

legitimação de escritores canônicos, sem deixar que novos elementos venham

desestabilizar o confortável manto da normalidade, supostamente acadêmica.

106 LEITE, op. cit., p. 87.107 MANGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3 ed. Campinas: Editora daUnicamp, 1997.

51

2.3 A reação negra à estratégia do silêncio – a reivindicação dainformação sobre cor

Mais do que ocultar o racismo e silenciar a luta contra o racismo, é possível

afirmar que a ditadura temia, verdadeiramente, o potencial representado pela

conscientização e organização política da população negra.

Possivelmente indignadas com a supressão da informação sobre cor no

recenseamento de 1970, as entidades e fóruns de discussão passaram a reivindicar

a democratização e o acesso àquele dado, como estratégia de desmascaramento do

racismo e do fortalecimento da luta anti-racista.

Em 1990, por influência da militância negra e de pesquisadores negros, o

IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, então liderado por

Betinho, lança a campanha “Não deixe sua cor passar em branco”, visando mobilizar

e conscientizar a população negra da importância do recenseamento e da

demografia na luta por um país igualitário.

Desde então, o tema da informação sobre cor tem merecido ampla atenção e

vem sendo inserido de forma cada vez mais vigorosa nas formulações do Movimento

Negro, de setores da academia, centros de pesquisas, órgãos governamentais e,

inclusive, no setor privado.

Vale lembrar que o Movimento Negro, um dos mais antigos movimentos

sociais brasileiros, é formado por entidades urbanas e rurais, políticas, culturais,

quilombolas, mulheres, jovens, etc. Todas têm, em comum, duas bandeiras

principais: a luta contra o racismo e igualdade racial, e a defesa da cultura e da

identidade negras.

Nos últimos anos, o Movimento Negro enraizou-se em todo o país e, hoje,

está presente nas capitais e nas cidades grandes, médias e pequenas de todo o

território nacional.

Muitas são as conquistas políticas obtidas pelo Movimento Negro, como:

. desmascaramento do mito da democracia racial;

. criminalização do racismo, tornando-o crime imprescritível e inafiançável;

. mudanças significativas na publicidade, propaganda e televisão, em que se tornou

cada vez mais freqüente a inserção de imagens positivas de negros e negras em

peças publicitárias;

52

. introdução da temática do racismo e da intolerância religiosa na agenda dos

direitos humanos;

. divulgação do caráter eurocêntrico do ensino no Brasil;

. desmistificação do vestibular e conquista de políticas de inclusão de jovens negros

e pobres no ensino superior;

. introdução de informações sobre cor, racismo, discriminação e desigualdades

raciais nos principais centros de pesquisa e de demografia do país;

. introdução do debate sobre racismo em sindicatos, na academia, nos partidos

políticos, em instituições públicas e privadas.

Hoje em dia, como resultado da ação do Movimento Negro, a maioria do povo

brasileiro reconhece a gravidade do racismo e aprova as medidas que vêm sendo

tomadas para superá-lo, como a inclusão do quesito cor em todos os cadastros

públicos e privados. Assinale-se que esta inclusão vem crescendo na última década,

embora num ritmo aquém do esperado.

Conforme será visto nos capítulos seguintes, o Brasil assiste, atualmente, a

dois fenômenos inovadores no campo da informação sobre cor: a tomada deste

tema como bandeira política, por parte do Movimento Negro, e sua utilização como

ponto de partida para a produção de políticas públicas de promoção da igualdade

racial.

53

CAPÍTULO III – CLASSIFICAÇÃO RACIAL: MARCOS LEGAIS, CONCEITOS,MÉTODOS E EXEMPLOS

Basta ser um pouco negro para sê-lo

totalmente, mas para ser branco é necessáriosê-lo totalmente.

Kabengele Munanga

No momento em que esta dissertação está sendo escrita, ações judiciais

isoladas buscam questionar as políticas de cotas nas universidades, utilizando o

argumento da suposta ilegalidade do procedimento de classificação racial, inclusive

disseminando a idéia de que as cotas inaugurariam tal procedimento no país, o que

pode ser facilmente contraditado pelos fatos arrolados no capítulo anterior.

Por esta razão, parece oportuna uma incursão, mesmo breve, nos marcos

legais da classificação racial, antes de se adentrar no território das técnicas e

conceitos.

O sistema jurídico nacional indica diferentes critérios para demarcar a

diversidade que caracteriza a população brasileira. Assim, a Constituição da

República faz menção expressa à cor, raça, etnia bem, como ao adjetivo pátrio “afro-

brasileiro”108.

A mesma tendência pode ser observada nas declarações e convenções

internacionais:

. a Declaração Universal dos Direitos Humanos emprega os vocábulos cor e

raça (art. 2o)109.

. a Declaração sobre raça e preconceito racial também utiliza os termos cor e

raça (art. 1o)110.

. a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Racial111 faz uso das palavras cor e raça (art. 1o)112.

108 SILVA JR., Hédio. Direito de igualdade racial: aspectos constitucionais, civis e penais: doutrina ejurisprudência. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 12,13,30.109 Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 dedezembro de 1948.110 Aprovada e proclamada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, aCiência e a Cultura, reunida em Paris em sua 20ª reunião, em 27 de novembro de 1978.

54

No campo da jurisprudência, isto é, das interpretações fixadas pelos tribunais,

duas decisões chamam a atenção.

A primeira, datada de 2003, foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal no

famoso caso Ellwanger, no qual um editor foi acusado de racismo porque editava

livros que negavam a existência do holocausto judeu e apontavam os alemães como

as verdadeiras vítimas do nazismo.

Neste julgamento, a Corte Suprema acolheu o entendimento de que “raça é,

sobretudo, uma construção social, negativa ou positiva, conforme o objetivo que se

lhe queira dar. Assim, o problema não está na existência ou não de raças, mas no

sentido que se dá ao termo. Se atribuirmos caracteres inerentes, naturais e

inescapáveis, às diferenças físicas, psíquicas, lingüísticas ou etno-religiosas de

qualquer população, estaremos sendo racistas, quase sempre para o mal”113.

A segunda decisão judicial, mais antiga, de 1992, foi tomada pelo Tribunal de

Alçada Criminal de São Paulo, num julgamento que confirmou uma sentença

condenatória fundamentada em prova de reconhecimento pessoal, na qual a vítima

teria reconhecido o autor de roubo não por seus traços fisionômicos, mas

unicamente pela cor de sua pele. O Tribunal entendeu que a cor da pele do acusado

seria elemento suficiente para sustentar o reconhecimento e, conseqüentemente,

manter a condenação de um indivíduo pelo fato perfeitamente simples de ele ser

negro.

Assim manifestou-se o Tribunal: “Reconhecimento pessoal – Identificação

baseada somente na cor – Validade – Entendimento: 66(b) – A afirmação da vítima

de não encontrar condições para reconhecer os agentes não conflita com a

afirmação de ser um deles de cor negra e reconhecê-lo, já que o reconhecimento se

dá pela segura memorização visual de diversos traços característicos de uma

pessoa, ou de um somente, a cor”114.

111 Adotada pela Resolução 2.106-A da Assembléia das Nações Unidas, em 21 de dezembro de 1965. Aprovadapelo Decreto Legislativo 23, de 21/06/1967. Ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968. Entrou em vigor noBrasil em 04/01/1969. Promulgada pelo Decreto 65.810, de 8/12/1969. Publicada no D.O. de 10/12/1969.112 SILVA JR., op. cit., p. 26.113 Supremo Tribunal Federal. Crime de racismo e anti-semitismo: um julgamento histórico no STF: Hábeas-corpus 82.424/RS. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2004, p. 31.114 Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. Apelação 753.603/3, Julgado em 21/09/1992, 12a Câmara,Relator: Afonso Faro, RJDTACRIM 16/141.

55

Deixando-se de lado as várias considerações provocadas por um julgado

deste teor, cumpre assinalar que, no caso, o acusado foi classificado racialmente

pelo Escrivão de Polícia, e, uma segunda vez, pela vítima, do que resultou sua

condenação em um processo-crime. Trata-se, portanto, de um antecedente

jurisprudencial que ratifica a legalidade da classificação racial.

Destes marcos legais e decisões judiciais, dois registros poderiam ser

sublinhados: 1. a cor, isto é, o fenótipo, previsto expressamente na legislação

nacional e na normativa internacional, predomina como critério para a classificação

racial – e inclusive conta com respaldo jurisprudencial; 2. além de declarar

formalmente a legalidade da cor como critério de classificação, o Poder Judiciário

brasileiro, por meio de sua mais alta Corte, admite a idéia de que raça não encontra

fundamento na genética, mas sim em fatores socialmente construídos.

Neste ponto, emerge uma indagação preliminar: em quê consistem os termos

raça, cor, etnia, afro-brasileiros?

3.1 Significados de raça, cor e etnia

3.1.1 Raça

O termo raça, ao menos sob o prisma científico, biológico, é inapropriado para

seres humanos.

As variações biofisiológicas na espécie humana limitam-se ao plano da

aparência física – os fenótipos – e decorrem de necessidades orgânicas (condições

ambientais ou climáticas, proteção dos raios solares), inscritas na cadeia genética de

grupos da espécie espalhados por todas as regiões e respectivos tipos de clima do

planeta.

Embora não tenha validade científica, a idéia de raça integra o senso comum,

sobretudo nas sociedades nas quais a raça (cor) das pessoas influencie a

distribuição das oportunidades e dos lugares sociais.

Deste modo, a impropriedade científica do uso da categoria raça para

classificar seres humanos não impede que o fenótipo dos indivíduos seja

socialmente tratado como atributo racial, o que exige que as políticas de diversidade,

para fins de promover a igualdade, levem em conta a idéia de raça.

56

Cashmore ajuda a compreender o conceito de raça, principalmente

considerando a sua historicidade 115.

Raça definiria um grupo ou categoria de pessoas conectadas por uma origem

comum. Desde o início do século XVI, ela vem sendo usada para se referir a carac-

terísticas comuns, oriundas de uma mesma ascendência. As pessoas desenvolvem

crenças a respeito de raça, assim como a respeito de nacionalidade, etnia e classe,

buscando construir identidades grupais.

As mudanças no uso da palavra “raça” mostram as alterações na

compreensão popular das causas das diversidades físicas e culturais. Pelo menos

até o século XVIII, a explicação para a diversidade vinha do Antigo Testamento.

Segundo Volney J. Berkenbrock, no Brasil colonial, a Igreja Católica recorria à

Bíblia para justificar a escravização do africano. Uma das passagens bíblicas mais

utilizadas era de Gênesis, capítulo 3, versículos 17 e 19. Adão é condenado por

Deus, por causa de seu pecado, a ganhar o seu sustento, e o de sua mulher, com o

penoso cultivo da terra. Os escravos simbolizam, na sociedade cristã, a realidade

desta condenação 116.

As diversidades no fenótipo puderam, então, ser interpretadas de uma das

três seguintes formas: como um desígnio de Deus, como resultado das diferenças

ambientais, independentemente de questões morais, e como fruto de diversos

ancestrais originais. O sentido principal da palavra raça era o de ascendência. No

começo do século XIX, a partir da influência de George Cuvier, anatomista

comparativo francês, considerava-se a diversidade uma expressão de tipos.

Entendia-se que estes eram permanentes, já que essa era uma visão pré-

darwiniana da natureza. O termo “raça” passou a ser usado no sentido de tipo,

definindo seres humanos distintos, tanto pela constituição física quanto pela

capacidade mental. Essa concepção continua até hoje e informa as doutrinas

designadas como “racismo científico”.

O trabalho de Darwin sobre o reino animal inspirou a interpretação de que as

diversidades físicas, entre as pessoas, seriam provenientes de sua diferente herança

genética. O estabelecimento da genética e a teoria da seleção natural, como um

115 CASHMORE, op. cit.116 BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa nocandomblé. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 106-107.

57

campo de pesquisa experimental, tiveram implicações revolucionárias para o estudo

das diversidades raciais, mas, meio século depois da publicação de A Origem das

espécies, em 1859, os antropólogos continuaram a propor classificações raciais do

Homo sapiens, entendendo que assim a natureza das diversidades poderia ser mais

bem compreendida.

Paula Monteiro concorda com o fato de que o estudo das diferenças

humanas, a partir da divisão em raças bem distintas, surge em meados do século

XIX 117.

Em 1935, sir Julian Huxley e A. C. Hadon afirmaram que, na Europa, os

grupos habitualmente chamados de raças seriam mais bem designados como

“grupos étnicos”.

Poucos seguiram o seu conselho. Em diferentes países, o termo “raça” é

usado como construção social. Nos Estados Unidos, por exemplo, uma pessoa de,

digamos, um oitavo de ancestralidade africana e sete oitavos de européia pode se

autodeclarar negra e ser descrita assim pelos outros. Essa designação segue uma

regra social e não genética. Na maioria dos outros países, essa pessoa não seria

classificada como negra.

Na Grã-Bretanha, assim como em outras nações, a lei proíbe a discriminação,

“por motivos de ordem racial” e oferece proteção à “pessoas que não sejam do

mesmo grupo racial” 118.

3.1.1.1 “Raça” - como significante

“Raça” é um significante que se transforma, que significa diferentes coisas

para diferentes pessoas em diferentes lugares na história

Descentralizar o conceito desse modo necessariamente modifica a maneira

de analisá-lo.

Henry L. Gates119 afirma que “raça” tomou-se “um conjunto de diversidades

entre culturas, grupos lingüísticos ou adesões a sistemas de crenças específicas [...]

117 MONTEIRO, Paula. Globalização, identidade e diferença. São Paulo: Novos Estudos, CEBRAP, nº 49,nov./1997.118 CASHMORE, op. cit., p. 447-450.119“Race”, writing and difference, organizado por Henry L. Gates (University of Chicago Press, 1986), reúne

vários artigos publicados anteriormente no volume 12 de Critical Inquiry e aborda aspectos da importância e

58

e muito arbitrária na sua aplicação”. O conceito abarca crenças vagas e incoerentes

a respeito da supremacia branca, ao funcionar como sinônimo de cor de pele e

outras características fenotípicas relacionadas a desvios e inferioridade.

O uso da palavra na nossa língua e, portanto, no nosso discurso, possibilita

focalizar o sentido da diversidade natural em nossas formulações.

O foco recai, então, na língua, mas, como um símbolo de diversidade cultural

e biológica, é um modo de manter a distância entre os grupos soberanos e os

subordinados. A língua é tanto um meio quanto um constituinte ativo do processo de

“racialização”.

As culturas nunca são impermeáveis e o significante “raça” aparece em várias

culturas de resistência às ordens coloniais e racistas.

Nas concepções contemporâneas, “raça” aparece como um modo de

entender e interpretar a diversidade por meio de marcadores inteligíveis.

“Problematizar” o conceito desse modo possibilita desestabilizar as bases

intelectuais sobre as quais ele repousou por muito tempo120.

3.1.1.2 A tentativa de ressurreição do critério biológico

A despeito da habitualidade e da velhice dos procedimentos de classificação

racial adotados pelo Estado brasileiro, e à revelia da legislação, da jurisprudência e

da produção acadêmica contemporânea sobre o tema, uma edição da revista Veja

ilustra o vigor de um movimento que tenta ressuscitar a noção de raça biológica121.

Segundo a revista, pesquisas coordenadas pelos geneticistas Sérgio Danilo

Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais, e Maria Cátira Bortolini, da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, concluíram que os negros brasileiros

por parte de pai têm mais genes europeus do que africanos122.

Uma leitura da matéria, mesmo superficial, não deixa dúvidas do substrato

ideológico: desqualificar as políticas de inclusão racial e empregar supostos critérios

biológicos para tentar definir identidade racial e direitos da população negra

brasileira.

influência da “raça”, uma “presença persistente, porém, implícita” na literatura do século XX.120 CASHMORE, op. cit., 450-453.121 Revista Veja, ed. 2011, de 6 de junho de 2007, p. 82 a 88.122 Idem, p. 88.

59

Já a revista Carta Capital123 apresentou a análise do genoma humano, que

proporciona diagnósticos mais precisos de doenças genéticas, teste de paternidade,

técnicas forenses e a promessa de novas terapias.

No entanto, além de servir à medicina, a genealogia genética tornou-se a

mania da vez. Conforme a referida matéria, estima-se que de 600 a 700 mil pessoas

fizeram testes de ancestralidade genética até o fim de 2007 – número que cresce em

100 mil por ano – em busca de suas raízes, da etnia da qual seriam descendentes.

Tal informação leva alguns a formar comunidades com “irmãos de etnia” nos EUA ou

na África e fazer doações à pátria dos supostos ancestrais africanos ou etnia de

origem.

O geneticista italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza124 explica que, na genealogia

genética, uma coisa é lidar com grandes amostras para definir movimentos regionais

de migrações, o que pode ser confrontado com evidências lingüística, arqueológica

e histórica. Porém, a conclusão de que cada portador individual desse marcador

genético deve ser considerado descendente de quem viveu na região é arriscada,

pois esta análise representa somente um fio de uma trama imensa que envolve toda

a humanidade.

Vale lembrar, a título de comparação, que em 1982 o Coronel Ivan Zanoni

Hausen, então assessor da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, foi severamente

criticado por diversos setores da sociedade, exatamente por tentar aplicar a genética

para identificar “índios puros” entre a etnia Xakriabá.

Veja-se, a propósito, o depoimento de Paulo Suess, então Presidente do

Conselho Indigenista Missionário – CIMI: “Quem reduz a questão da ‘identidade

étnica’ a uma questão genética e se esquece dos fatores culturais, sociais, políticos

e históricos, não resta dúvida, é racista” (grifo nosso)125.

No mesmo sentido, a nota publicada pela Comissão Nacional dos Bispos do

Brasil, CNBB, no dia 28 de abril de 1982: “Repudiamos energicamente a aplicação

de quaisquer ‘critérios biológicos de sangue’ em populações indígenas para verificar

sua identidade étnica. Com antropólogos do país, consideramos tal procedimento

123 COSTA, Antonio Luiz M.C., Em busca do pedigree, Carta Capital, ano XIV, ed. 479, de 23 de janeiro de2008, p. 8-12124 CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca. Genes, povos e línguas. São Paulo: Cia. das Letras, 2003 (uma dasprimeiras obras de divulgação sobre o tema).125 Jornal Porantim – em defesa da causa indígena, ano IV, n. 39, Brasília, maio de 1982, p. 4-5.

60

como racista, lembrando métodos nazistas e ofendendo princípios éticos e cristãos”

(grifo nosso)126.

É intrigante constatar que este mesmo método, quando aplicado à população

negra brasileira, não gerou nenhum tipo de protesto, apenas da militância negra e

anti-racista e de uns poucos acadêmicos comprometidos com a defesa da igualdade

racial.

3.1.2 Etnia

O conceito de etnia baseia-se em atributos culturais compartilhados por

membros de um determinado agrupamento e se refere a um conjunto de dados,

como língua, religião, costumes alimentares, comportamentos sociais.

Os grupos indígenas, ciganos, a comunidade judaica, a comunidade islâmica,

entre outras, podem ser citados como grupos étnicos presentes em nosso país.

Trata-se, pois, de um fenômeno cultural, mesmo sendo baseado,

originalmente, numa percepção comum e numa experiência de circuntâncias

materiais desfavoráveis.

O termo é oriundo do grego ethnikos, adjetivo de ethos, e se refere a povo ou

nação. “Étnico” descreve um grupo que tem algum grau de coerência e

solidariedade, composto por pessoas conscientes, ao menos de modo latente, de ter

origens e interesses comuns. Um grupo étnico é um conjunto de pessoas unidas ou

proximamente relacionadas por experiências compartilhadas.

O termo define, portanto, a característica predominante de um grupo que se

reconhece, de algum modo (normalmente, vários), distinto. A consciência de

pertencer a um grupo étnico assume uma característica, que é passada de geração

para geração. Diferentes línguas, crenças religiosas e instituições políticas tornaram-

se parte de uma bagagem étnica, e as crianças são criadas para aceitar isso.

Cashmore conclui que: (1) etnia é o termo utilizado para abarcar vários tipos

de respostas de diferentes grupos; (2) o grupo étnico baseia-se nas apreensões

subjetivas comuns, seja das origens, dos interesses, seja do futuro (ou, ainda, uma

combinação destes); (3) a privação material é a condição mais propícia para o

126 Jornal Porantim, op. cit.

61

crescimento da etnia; (4) o grupo étnico não tem de ser uma “raça”, no sentido de

ser considerado, pelos outros, como algo inferior – apesar de haver uma forte

superposição desses dois conceitos e muitos grupos que se organizam etnicamente

serem, freqüentemente, designados por outros como “raça”, (5) a etnia pode ser

usada para vários propósitos diferentes – algumas vezes, como manifesto

instrumento político, outras, como simples estratégia de defesa diante da

adversidade; (6) a etnia pode vir a ser uma linha divisória cada vez mais importante

na sociedade, embora nunca esteja inteiramente desconectada dos fatores de

classes127.

3.1.3 Afro-brasileiros/afrodescendentes

Extraída da Constituição Federal, mais precisamente do adjetivo pátrio afro-

brasileiro, esta expressão tem a característica de valorizar o laço comum de

procedência geográfica/cultural, do continente de origem dos membros da

população negra brasileira, independentemente de aparência, atributos fenotípicos,

tom da pele, etc.

É interessante notar que a literatura aponta o espaço religioso afro-brasileiro

como locus de surgimento desta expressão. Com efeito, Cida Nóbrega e Regina

Echeverria afirmam que entre os dias 10 e 19 de janeiro de 1937 ocorreu, no

Terreiro do Gantois, o 2º Congresso Afro-brasileiro – o primeiro foi realizado por

Gilberto Freyre, em 1934. Deste segundo congresso participaram Babalaô

Martiniano do Bonfim, Mãe Menininha, Mãe Aninha (Ilê Opo Afonja), Bernardino da

Paixão (nação Angola), Procópio (Ogunjá) e Manoel Falefá, da Formiga128.

O fato destacado pelas autoras permite inferir que a expressão afro-brasileiro

pode ter surgido como resposta a duas questões: 1) demarcar a matriz africana do

Candomblé, religião cuja liturgia, em terras brasileiras, guarda extraordinária

analogia com aquela ainda hoje praticada no continente africano; 2) agregar, sob a

rubrica “afro”, os três principais segmentos religiosos legados dos africanos: as

nações Ketu, Angola e Jêje. É assim que a semântica pode ter servido para

equacionar duas reivindicações de natureza essencialmente política, ainda que

127 CASHMORE, op. cit., p.196-203.128 NÓBREGA, Cida e ECHEVERRIA, Regina. Mãe Menininha do Gantois – uma biografia, Salvador,corrupio. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 94.

62

situadas no campo religioso – a pertença à Africa e a indivisibilidade das teologias

dos diferentes segmentos do Candomblé.

Atualmente empregado como sinônimo de negro, o termo afrodescendente

não exige a presença, ou mensuração, de caracteres físicos comuns à população

negra, visto que enfoca não o aspecto da aparência, e sim a marca de ascendência,

designando, portanto, a identidade do conjunto dos brasileiros baseada na

ascendência africana.

A título de ilustração, vale realçar que a expressão em foco configura,

também, uma espécie de antídoto interposto pela militância à tentativa de segmentar

a população negra, com base na cor da pele. A exemplo da provocativa e

significativa frase “100% negro”, afro-brasileiro designa não uma categoria

geográfica, cromática ou genética, mas sim uma categoria política: é negro quem é

tratado socialmente como tal. Ou, em outra perspectiva, sendo descendente de

africano, negro é.

3.1.4 Cor

A cor da pele, dos olhos, dos cabelos é um dos aspectos que varia na espécie

humana, e está ligada à quantidade de melanina existente no organismo, devido à

necessidade do organismo de se proteger das características climáticas das

diferentes regiões do planeta.

No entanto, em determinado período histórico, a cor foi fortemente associada

à idéia de evolução. Esta associação ocorreu em meados do século XIX, quando

Johann-Friedrich Blumenbbach (1752-1840) definiu os tipos raciais: caucasiano,

mongol e etíope, aos quais foi acrescentado o americano e malásio129.

As culturas foram hierarquizadas em termos de saturação de cor – da mais

escura (primitiva) à mais clara (civilizada), definindo as suas unidades culturais

(australiana, taitiana, asteca, chinesa, italiana) no interior do espectro conhecido de

raças humanas130.

A cor ficou vinculada à idéia de evolução. Uma das características do homem

primitivo era a pele escura e a pequena estatura, as suposta feiúras e

129 MONTEIRO, op. cit.130 Idem.

63

promiscuidade, e a violência. Esta representação negativa da pele escura pode ser

observada em diferentes partes do mundo. Fanon,131 psicanalista negro, escreveu:

“Quando a civilização européia entrou em contato com o negro... todo o mundo

concordou: esses negros eram o princípio do mal... negro, o obscuro, a sombra, as

trevas, a noite, os labirintos da terra, as profundezas abissais...”132.

Maria Aparecida da Silva Bento133 destaca que na representação do negro

brasileiro este fenômeno é transparente, conforme pode-se observar nos estudos de

Otávio Ianni134, Fúlvia Rosemberg135, Célia Silva136 e muitos outros que se ocupam

do tema. Tais estudos revelam que na, comunicação visual, o negro aparece

estigmatizado, depreciado, desumanizado, adjetivado pejorativamente, ligado a

figuras demoníacas.

Constata-se assim que, como em outras partes do mundo, no Brasil a cor da

pele é largamente empregada como critério de classificação das pessoas.

E, provavelmente, pela força desta característica fenotípica, amplos debates

sobre o significado da cor da pele sempre sacudiram nossa sociedade, e ainda que

de maneira instável, desde 1872, data do primeiro recenseamento geral, os

brasileiros vêem sendo classificados segundo diferentes categorias cromáticas.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, responsável pelo

censo da população, tem utilizado categorias para classificar a raça/cor das

pessoas: branco, preto, pardo, amarelo, indígena. Embora ainda polêmicas, essas

categorias originam-se de pesquisas feitas com a população e são utilizadas pelos

principais institutos de pesquisa do país.

Segundo o IBGE, brancos são considerados os de aparência e pele branca;

pretos são aqueles que têm pele bem escura; pardos, os de pele mais clara porque

são mestiços – filhos de brancos e pretos, de indígenas e brancos ou de indígenas

e pretos; amarelos são os asiáticos – japoneses, chineses, coreanos; e indígenas

131 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1980.132 Idem, p. 154.133 SILVA BENTO, op. cit.134 IANNI, op cit.135 ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Global, 1985.136 SILVA, Ana Célia da. Cor e posição simbólica: o lugar do negro na modernidade. Caxambu, 1991. (Mimeo)[Trabalho apresentado no GT Temas e Problemas da População Negra no Brasil, no XV Encontro Anual daANPOCS, Caxambu, 15 a 18 de outubro de 1991]

64

são os descendentes dos índios brasileiros – cabelos muito lisos, pele bronzeada,

traços mais acentuados dos olhos137.

No entanto, surge uma questão fundamental quando se pensa em

classificação pela cor: quem faz esta classificação – o coletor da informação ou

quem vai passar por um processo de classificação?

3.1.5 Autoclassificação versus heteroclassificação

Embora haja recomendações internacionais para que se adote sempre a

autoclassificação em pesquisas ou registros que coletam o dado raça, etnia ou

outras características ligadas à identidade dos indivíduos, existe uma vasta

discussão se esse método de identificação seria adequado ao Brasil. Segundo

Rafael Guerreiro Osório138, essa discussão nasceu principalmente do trabalho de

intelectuais dos EUA que estudam países da América Latina, especialmente o Brasil

e a Colômbia, para empreender análises comparativas sobre o caráter das relações

raciais nestes e em seu país. A polêmica centra-se na categoria parda. Alguns,

como bem resumem Telles & Lim139, postulam que na América Latina os mulatos

seriam menos discriminados do que nos Estados Unidos, gozando de uma posição

intermediária entre os pretos e os brancos. Dessa forma, a dicotomia racial

importante seria entre pretos e não pretos, em vez de entre brancos e não brancos.

Obviamente, esta perspectiva interessa a muitos: o problema das relações raciais no

Brasil instala-se entre os próprios negros e não entre negros e brancos.

Uma ampla literatura afirma que a autoclassificação é imprecisa porque a

ascensão social tende a embranquecer as pessoas. Assim, as pessoas que

carregam menos traços negros em sua aparência tenderiam a se considerar

brancas, bem como as pessoas mais abastadas, igualmente, tenderiam à escolha do

branco. Osório questiona: se, por exemplo, a grande diferença nas médias da renda

domiciliar per capita de negros (pretos ou pardos) e brancos fosse considerada,

seria possível perguntar quanto dessa diferença, na verdade, deve-se ao fato de a

137 PIZA e ROSEMBERG, op. cit.138 OSÓRIO, Rafael Guerreiro. O sistema classificatório de “cor ou raça” do IBGE. Brasília: IPEA, 2003.139 139 TELLES, E. E.; LIM, N. Does it matter who answers the race question? Racial classification and incomeinequality in Brazil. Demography, v. 35, n. 4, nov. 1998.

65

reivindicação da brancura ser maior entre os mais ricos, e menor entre os mais

pobres140.

Uma possível forma de se contornar esse problema e que, à primeira vista,

poderia conferir maior objetividade à classificação, seria a classificação da cor dos

sujeitos pelos entrevistadores ou outros responsáveis pelo registro da informação,

aponta o autor. Eles poderiam ser treinados para reconhecer os diferentes

“fenótipos” e classificá-los, sem recorrer à identidade racial subjetivamente

construída e percebida pelo sujeito da classificação. Entretanto, se os problemas

relativos à autoclassificação são ocasionados pelas características particulares da

ideologia racista brasileira, que permitiria a mudança da cor para os mais abastados

e/ou para os que possuem poucos traços da ascendência africana, não há nenhuma

garantia, a priori, de que os entrevistadores também não venham a branquear os

entrevistados mais ricos e os tipos de aparência limítrofe. No fundo, a escolha pela

autoclassificação ou heteroclassificação é uma opção entre subjetividades: a do

sujeito da classificação ou a do observador externo.

Portanto, a heteroclassificação não é, necessariamente, mais objetiva do que

a autoclassificação, conclui Osório. Ele afirma que há, pelo menos, três

levantamentos que permitem comparar a composição racial da população, obtida

pela auto e heteroclassificação. Foi possível avaliar as relações entre ambas, em

situações nas quais entrevistados e entrevistadores não viam, no quesito, algo

capaz de trazer vantagens ou desvantagens pessoais141.

A primeira pesquisa que possibilitou a comparação entre hetero e

autoclassificação intitula-se “As eleições de 1986 em São Paulo” e se baseou em

uma amostra pequena (573 casos) e restrita a São Paulo (capital), em 1986. Os

resultados da comparação foram analisados por Valle Silva142.

Cabe salientar que os dois métodos de determinação da cor concordaram em

76% dos casos. No segundo estudo, um levantamento do Datafolha, em 1995,

140 VALLE SILVA, baseado em trabalhos pregressos que constatam a variação socioeconômica daautodeclaração de cor, também considera que “se as observações dos pesquisadores que têm trabalhado aquestão da identidade racial brasileira, de Wagley a Sansone, são corretas e socialmente significativas, então oquadro que hoje temos sobre as diferenças socioeconômicas entre os grupos de cor pode ter sido pintado emcores excessivamente fortes” (1999a, p. 117).141 Ou seja, consideram-se fidedignas e sinceras ambas as classificações, mesmo quando discordantes.142 VALLE SILVA, op. cit.

66

igualmente foi possível estabelecer uma comparação. O grau de concordância entre

os dois registros de cor também foi elevado – 72%.

Finalmente, Osório destaca143 um terceiro levantamento que permite estudar

os dois métodos de identificação – a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde

(PNDS), de 1996, na qual o grau de concordância entre as respostas foi ainda mais

elevado – 89%.

O fato de, em todos os levantamentos, haver um alto grau de concordância é

esperado, uma vez que entrevistadores e entrevistados compartilham, em algum

grau, as mesmas percepções sobre raça. A experiência internacional, segundo

Osório, mostra resultados similares, mesmo que relacionada a classificações de raça

bem diferentes. Smith144, por exemplo, ao analisar o mesmo problema no contexto

da Pesquisa Social Geral (GSS) dos EUA, constatou níveis de concordância ainda

maiores: no mínimo 94% entre a classificação do entrevistado e a do entrevistador.

É interessante notar, ainda, que o sentido da discordância é invariavelmente o

do embranquecimento dos entrevistados, pelos entrevistadores.

Silva Bento trata a questão do embranquecimento de um ângulo que vem de

encontro do que foi colocado aqui. São os olhares sobre o negro que ascende, ou

que tem uma escolaridade mais elevada, que buscam embranquecê-lo: “Não é por

acaso que todos os estudos que tratam da problemática do branqueamento, aqui

entendido como desejo de ser branco, manifestado pelo negro, associam-no ao

desejo de ascensão social. Branqueamento e ascensão social aparecem como

sinônimos quando relacionados ao negro. Parece-nos que isso decorre do fato de

que essa sociedade de classes se considera como um ‘mundo dos brancos’ no qual

o negro não deve penetrar” 145.

Mais à frente, ela afirma: “Estudos publicados pelo INSPIR – Instituto Sindical

Interamericano pela Igualdade Racial são contundentes em revelar que, quanto mais

aumenta a escolaridade do negro, mais a discriminação se revela nos diferenciais de

remuneração entre negros e brancos. Ou seja, são os momentos em que o negro vai

ascender, ou ‘trocar de lugar’ com o branco. O negro fora de lugar. Isso pode

143 OSÓRIO, op. cit.144 SMITH, T. W. Measuring race by observation and self-identification . Chicago: National Opinion ResearchCenter, 1997 (GSS Methodological Reports, 89).145 SILVA BENTO, op. cit., p. 52.

67

significar que esse negro fora de lugar, isto é, ocupando o lugar que o branco

considera exclusivamente dele, foi escolhido como alvo preferencial de análises

depreciativas – o negro que embranquece – nos estudos sobre relações raciais”146.

Nogueira147 explica este fato, a partir do ideal de brancura148: o

embranquecimento poderia ser interpretado como uma “gentileza” dos

entrevistadores com os entrevistados, à luz da ideologia racial. Finalizando esta

breve abordagem sobre auto e heteroclassificação racial, Osório enfatiza que,

aparentemente, a autoclassificação parece engendrar uma distribuição de cor mais

acurada do que a heteroclassificação, embora os resultados desta não desautorizem

o seu uso.

3.2 A classificação racial nos documentos públicos

Como já mencionado, em sete documentos públicos, no mínimo, os

brasileiros são classificados racialmente com base na cor da pele:

. cadastro do alistamento militar; cadastro de identificação civil – RG, (SP, DF,

etc.); formulário de adoção das varas da infância e adolescência do estado de São

Paulo; cadastro das áreas de segurança pública e sistema penitenciário; cadastro

dos adolescentes presos; certidão de óbito; certidão de nascimento (a cor era

assinalada até 1975).

O IBGE classifica os brasileiros em pretos, pardos, amarelos, brancos e

indígenas.

Desde a primeira metade do século passado, o decreto-lei149 que dispõe

sobre as estatísticas criminais prescreve, ainda que de modo semidissimulado150, a

classificação racial de vítimas e acusados, por meio do critério da cor. A propósito,

146 Idem, p. 53.147 NOGUEIRA, op. cit.148 O uso de moreno como um eufemismo para não se referir a pessoas como negras, pretas ou pardas é aexpressão perfeita dessa etiqueta das relações raciais. É comum as pessoas se referirem a fulano, que é negro,como “aquele moreno”, ainda que fulano não tenha o menor problema em se declarar negro, preto ou pardo. Éuma espécie de concessão polida para não “depreciar” o sujeito pela alusão ao que se entende como sua condiçãoracial.149 Decreto-lei 3.992, de 30 de dezembro de 1941150 Tal adjetivação justifica-se pelo fato de que, ao enumerar os dados a serem coletados, o referido diplomanormativo omite cuidadosamente a informação sobre cor. Contudo, nos modelos de formulários anexos aodecreto, a cor está rigorosamente presente em todos eles.

68

este mesmo critério é empregado na classificação racial dos autores de ato

infracional (adolescentes)151.

Observando o Anexo de tal decreto-lei, não restam dúvidas de que compete

ao escrivão de polícia identificar os caracteres individuais contemplados nos

formulários, ou seja, o referido decreto determina a heteroclassificação racial. Trata-

se, portanto, de um precedente legal que autoriza a heteroclassificação.

Mais recentemente, atendendo solicitação de entidades do Movimento

Negro152, foi incluída a informação sobre cor/raça dos empregados nos formulários

da Relação Anual de Informações Sociais – RAIS e no Cadastro Geral de

Empregados e Desempregados – CAGED. Neste caso, não há orientação quanto à

técnica a ser utilizada na coleta dessa informação.

Também devido a reivindicações das entidades negras153, está prevista a

“inclusão do quesito cor em todos e quaisquer sistemas de informação e registro

sobre a população e bancos de dados públicos”, sem que nenhuma referência seja

feita à técnica a ser utilizada.

Há, contudo, outro banco de dados, no qual o método empregado é o da

autoclassificação: o Cadastro Nacional de Identificação Civil154, a partir do qual é

emitida a cédula de identidade, o Registro Geral das pessoas naturais – conhecido

popularmente como RG. A cor é lançada, em regra, pelas próprias pessoas

(autoclassificação).

Este cadastro poderá tornar-se uma solução objetiva, viável e disponível para

a solução do problema da classificação racial. Isto porque as propostas em

tramitação no Congresso prevêem, no plano imediato, a autoclassificação e, a médio

prazo, a inclusão da informação sobre cor nas certidões de nascimento. Trata-se,

contudo, de uma técnica que pode ser facilmente atacada – sobretudo judicialmente

– pela insegurança jurídica que dela decorreria, pela carga de subjetividade na

informação lançada e pela alta possibilidade de ocorrência de fraudes. No limite,

tendo em vista a altíssima probabilidade de ações judiciais referentes ao critério da

cor, terminaria sendo delegado ao próprio Estado – Poder Judiciário – a palavra final

151 Segundo o disposto no Comunicado no 373/97, de 3 de junho de 1997, editado pela Corregedoria Geral deJustiça do Estado de São Paulo. Publicado no Diário Oficial do Estado, no dia 05 de junho de 1997.152 DOU de 27/10/99.153 O decreto 1.904, de 13/05/96, que institui o Programa Nacional de Direitos Humanos.154 Disciplinado pela lei 9.454/97.

69

sobre classificação racial (por meio da cor) dos indivíduos. A título de ilustração,

basta pensar que, em princípio, qualquer pai ou mãe poderia registrar seu filho como

preto ou negro.

De outra parte, o formulário do qual deriva o denominado Certificado de

Alistamento Militar (CAM), emitido pelos três ramos das Forças Armadas, também

contém a informação sobre a cor do alistando. Nesse caso, a pergunta aberta,

usada na área de Segurança Pública, é substituída por categorias predeterminadas,

cabendo ao funcionário das Juntas de Alistamento Militar proceder ao

enquadramento em uma das seguintes categorias cromáticas: branca, morena,

parda, parda clara, parda escura e preta.

Via de regra, os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional adotam

o método da autoclassificação racial. O famoso projeto de lei 3.198, de 2000, do

senador Paulo Paim, denominado Estatuto da Igualdade Racial, que defende os que

sofrem preconceito ou discriminação devido à etnia, raça e/ou cor, propõe a

reinclusão da informação da cor nas certidões de nascimento, por meio de uma

alteração na Lei dos Registros Públicos.

O uso de documentos públicos como critério para a classificação racial

A fórmula adotada pela Universidade de Brasília e Universidade Federal de SãoCarlos

Matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo, do dia 8 de janeiro de 2008,

informava que “51% das universidades estaduais adotam ações afirmativas”, sendo

que o subtítulo destacava a questão da classificação racial: “O critério mais utilizado

pelas instituições é o da autodeclaração, ou seja, a cor da pele ou etnia é definida

pelo próprio aluno”155.

Segundo o jornalista Antônio Góis, autor da matéria, “um levantamento feito

pelo Laboratório de Políticas Públicas da Uerj (Universidade do Estado do Rio de

Janeiro) mostra que 51 instituições públicas oferecem, por meio de cotas ou

bonificação no vestibular, vantagens a alunos negros, pobres, de escola pública,

deficientes ou indígenas”156.

155 Folha de S. Paulo. Edição de 8 de janeiro de 2008, caderno Cotidiano, p. 5.156 Idem.

70

A matéria destacava as seguintes instituições:

Tabela 5 - Instituições Publicas com ação afirmativa

Estados e universidades públicasTipo de ação

afirmativa Estados e universidades públicasTipo de ação

afirmativa

Rio de Janeiro Bahia

Uerj (Universidade do Estado do Rio deJaneiro)

(C) (N) UEFS (Universidade Estadual de Feirade Santana)

(C) (N)

UENF (Universidade do Norte-Fluminense)

(C) (N) UFBA (Universidade Federal da Bahia) (C) (N)

Uezo (Centro Universitário Estadual daZona Oeste)

(C) (N) UFRB (Universidade Federal doRecôncavo da Bahia)

(C) (N)

Faetec (Fundação de Apoio à EscolaTécnica do Rio de Janeiro)

(C) (N) Uesc (Universidade Estadual de SantaCruz)

(C) (N)

UFF (Universidade Federal Fluminense) (B) Uneb (Universidade do Estado da Bahia) (C) (N)

Minas Gerais Cefet-BA (Centro Federal de EducaçãoTecnológica da Bahia)

(C) (N)

UEMG (Universidade Estadual de MinasGerais)

(C) (N) Maranhão

Unimontes (Universidade Estadual deMontes Claros)

(C) (N) UFMA (Universidade Federal doMaranhão)

(C) (N)

UFJF (Universidade Federal de Juiz deFora)

(C) (N) Paraíba

São Paulo UEPB (Universidade Estadual daParaíba)

(C)

Unifesp (Universidade Federal de SãoPaulo)

(C) (N) Pernambuco

Unicamp (Universidade Estadual deCampinas)

(B) (N) UPE (Universidade Estadual dePernambuco)

(C)

Famerp (Faculdade de Medicina S.J. doRio Preto)

(B) (N) UFRPE (Universidade Federal Rural dePernambuco)

(B)

USP (Universidade de São Paulo) (B) Cefet-PE (Centro Federal de Educ.Tecnológica de Pernambuco)

(C)

UFABC (Universidade Federal do ABC) (C) (N) Rio Grande do Norte

Fatec (Faculdade de Tecnologia - SãoPaulo)

(B) (N) UFRN (Universidade Federal do RioGrande do Norte)

(B)

Facef (Centro Universitário de Franca) (C) (N) Cefet-RN (Centro Federal de Educ. Tec.do Rio Grande do Norte)

(C)

UFSCar (Universidade Federal de SãoCarlos)

(C) (N) Piauí

Espírito Santo UFPI (Universidade Federal do Piauí) (C)

Ufes (Universidade Federal do EspíritoSanto)

(C) Sergipe

Amazonas Cefet-SE (Centro Federal de EducaçãoTecnológica do Sergipe)

(C)

UEA (Universidade do Estado doAmazonas)

(C) Paraná

UFPR (Universidade Federal do Paraná) (C) (N)

71

Estados e universidades públicas Tipo de açãoafirmativa

Estados e universidades públicas Tipo de açãoafirmativa

Pará UEPG (Universidade Estadual de PontaGrossa)

(C) (N)

UFPA (Universidade Federal do Pará) (C) (N) UEL (Universidade Estadual deLondrina)

(C) (N)

Ufra (Universidade Federal Rural daAmazônia)

(C) UTFPR (Universidade TecnológicaFederal do Paraná)

(C)

Tocantins Rio Grande do Sul

UFT (Universidade Federal doTocantins)

(C) UFRGS (Universidade Federal do RioGrande do Sul)

(C) (N)

Distrito Federal UERGS (Universidade Estadual do RioGrande do Sul)

(C)

UnB (Universidade Federal de Brasília) (C) (N) UFSM (Universidade Federal de SantaMaria)

(C) (N)

ESCS-DF (Escola Superior de Ciênciasda Saúde)

(C) Santa Catarina

Goiás UFSC (Universidade Federal de SantaCatarina)

(C) (N)

UEG (Universidade Estadual de Goiás) (C) (N) USJ (Centro Universitário de São José) (C)

Mato GrossoTipo de ação afirmativa

Unemat (Universidade do Estado deMato Grosso)

(C) (N) (C) = Cotas (sistema no qual há reservade um percentual de vagas nauniversidade para um determinado grupo)

Mato Grosso do Sul (B) = Bônus (política que oferece a um grupo específico pontosa mais no vestibular, mas sem reservar um percentual devagas)

UEMS (Universidade Estadual de MatoGrosso do Sul)

(C) (N) (N) = Beneficia negros (universidades que, em uma açãoafirmativa, optaram por fazer um corte racial em favor dosestudantes pretos ou pardos)

Alagoas

Ufal (Universidade Federal de Alagoas) (C) (N)

No entanto, o respeitado jornalista deixou de sublinhar os casos da

Universidade de Brasília e da Universidade Federal de São Carlos, nos quais a

autodeclaração, uma vez questionada, é substituída pela apresentação de

documentos, seguindo orientação dada pelo Centro de Estudos das Relações de

Trabalho e Desigualdades – CEERT.

Preocupadas com possíveis questionamentos judiciais da autodeclaração, a

UnB e a UFSCar solicitaram um parecer técnico do CEERT, elaborado pelo jurista

Hédio Silva Jr., que desenvolveu uma fórmula que combina a autodeclaração com a

utilização de registros públicos de cor/raça.

72

Por exemplo, nos termos da resolução157 que dispõe sobre a implantação da

reserva de vagas aos cursos de graduação da UFSCar, no Programa de Ações

Afirmativas158, o critério adotado na identificação da cor (raça) dos candidatos

negros (pretos e pardos) e indígenas será a autodeclaração, seguindo-se a

classificação adotada pelo IBGE, desde já advertindo que a dúvida aludida no edital

refere-se à cor autodeclarada pelo aluno:

Artigo 19. Qualquer cidadão, candidato ou não, também poderá suscitar dúvidaquanto às declarações ou informações prestadas por candidato ao processoseletivo, mediante manifestação consubstanciada, encaminhada por escrito àPró-Reitoria de Graduação, no prazo de até 3 (três) dias úteis contados a partirdo último dia assinalado para a matrícula da respectiva chamada.Artigo 20. No caso de decisão do Pró-Reitor de Graduação ou de dúvidasuscitada por terceiros, quanto ao enquadramento de candidato no ingresso porreserva de vagas, será assegurado ao candidato cuja inscrição é questionada odireito de apresentar documentação idônea que comprove a veracidade de suasdeclarações, tais como o prontuário do alistamento militar, o registro denascimento ou o prontuário de identificação civil, dele próprio ou de seusascendentes diretos (pai ou mãe), ou ainda outro documento dotado de fé públicano qual esteja consignada cor diversa de branca, amarela ou indígena.§1º. O candidato deverá instruir as razões de recurso, ou a contestação à dúvidasuscitada, com certidão ou cópia autenticada de, no mínimo, um dos documentosreferidos no caput deste artigo.§2º. A apresentação de, ao menos, um documento satisfazendo a condiçãoaludida no caput deste artigo fará prova suficiente para resolver a controvérsia,assegurando a matrícula em vaga destinada a negros (pretos e pardos).§3º. A não apresentação, no prazo de 5 (cinco) dias a partir da notificação, dedocumento que satisfaça a condição aludida no caput deste artigo implicará naperda do direito de ingresso por reserva de vagas destinadas a negros (pretos oupardos).

Trata-se, evidentemente, de fórmula que aproveita os bancos de dados sobre

cor/raça dos brasileiros para evitar que questionamentos sobre critérios de

classificação sirvam de pretexto para paralisar a implementação de políticas de

promoção da igualdade racial.

Uma vez que estas informações foram coletadas pelo próprio Poder Público,

elas adquirem o atributo de “fé pública”, isto é, presunção de verdade.

Duas observações: 1. a primeira diz respeito ao raciocínio empregado para a

classificação, ou seja, a dedução – se o documento público não certificar hipótese

de pessoa branca, amarela ou indígena, ela será considerada negra para fins das

políticas de ação afirmativa; 2. a segunda é que tal dedução estende-se por uma

geração – ainda que o candidato não tenha registros públicos que o identifiquem

157 Resolução CEPE nº 565/07, de 05 de dezembro de 2007, Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão daUniversidade Federal de São Carlos.158 Idem, artigo 6º, inciso III, parágrafo 4º.

73

como negro, ele será considerado negro se aqueles registros assim identificarem

seus pais, independentemente de sua aparência e/ou fenótipo.

3.3 Um exemplo de classificação racial no setor privado: o caso daFebraban

Neste ponto, cabe ressaltar que não apenas o setor público vem se

ocupando, cada vez mais, da temática da classificação racial.

Em maio de 2007, a Federação Brasileira de Bancos – FEBRABAN assinou

um contrato de prestação de serviços com o CEERT, com o intuito de estabelecer as

bases para o desenvolvimento de um programa nacional de valorização da

diversidade. Um dos principais pressupostos era a realização de um recenseamento

geral dos cerca de 430 mil empregados do setor, desagregando-se a cor, dentre

outras informações.

Um exame dos termos do aludido contrato, bem como do projeto anexo,

oferece elementos interessantíssimos de reflexão, inclusive pelo ineditismo da

proposta.

A política de valorização da diversidade é definida como um conjunto de

medidas que visam promover a inclusão e a igualdade de oportunidades e de

tratamento aos membros de grupos discriminados em função da cor, raça, etnia,

origem, sexo, deficiências, idade, religião e orientação sexual, cujo principal objetivo

é garantir o desenvolvimento sustentável das corporações.

A execução da referida política de valorização da diversidade assenta-se em

quatro diretrizes fundamentais:

. a identificação e revogação de quaisquer práticas administrativas

incompatíveis com a valorização da diversidade, bem como a remoção de quaisquer

fontes de discriminação, direta ou indireta;

. a adoção de orientações e normas escritas voltadas à valorização da

diversidade, com o objetivo de inscrever tal política como valor duradouro da cultura

organizacional;

. o estabelecimento de objetivos e indicadores que possibilitem o

monitoramento do impacto e da eficácia da política de valorização da diversidade;

74

. a aplicação da política na relação com a cadeia produtiva, com a

comunidade, com o terceiro setor, etc.

A política de valorização da diversidade é também relacionada com a própria

riqueza ambiental e cultural brasileira e em valores éticos fundados na busca da

igualdade e da justiça. Destaca-se que, além de ser um aspecto da responsabilidade

social, representa, igualmente, um interesse corporativo orientado para os objetivos

do negócio.

Ao menos três considerações são invocadas como fundamentos de validade

da referida política de valorização da diversidade:

. a responsabilidade social do setor bancário reconhece que a sociedade

brasileira necessita empreender medidas concretas para superar práticas

discriminatórias que dificultam a inclusão social de homens e mulheres prejulgados

devido à cor, raça, etnia, origem, sexo, deficiências, idade, religião e orientação

sexual;

. experiências levadas a efeito em outros países, em diferentes corporações,

demonstram que a valorização da diversidade aglutina desempenho, inovação,

criatividade, versatilidade e agilidade, favorecendo a realização do negócio e

melhorando a imagem da empresa;

. a valorização da diversidade deve ser assumida como um compromisso

permanente da cultura organizacional dos bancos, como instrumento de erradicação,

a longo prazo, dos preconceitos e discriminações presentes na sociedade brasileira.

Concluindo, cabe destacar que a classificação racial estará amparada por

uma ampla campanha de comunicação corporativa, por meio de várias mídias, como

vídeos, cartazes, folders, visando preparar os bancários para responderem

corretamente à indagação sobre cor/raça. A técnica empregada, de

autoclassificação, utiliza as mesmas categorias do IBGE.

Por último, mas não em último, vistos os aspectos históricos, as implicações

políticas e ideológicas, as lutas sociais em torno do tema, além dos parâmetros

legais, conceituais, metodológicos e, ainda, os exemplos contemporâneos de

classificação racial, será examinado, a partir do próximo capítulo, os desafios e

possibilidades de experiências concretas de implementação da informação sobre cor

no âmbito de prefeituras municipais.

75

CAPÍTULO IV – EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DE IMPLEMENTAÇÃO DOQUESITO COR – OS CASOS DE BELO HORIZONTE, SANTOANDRÉ E SÃO PAULO

4.1 Considerações preliminares

Neste capítulo abordarei experiências contemporâneas de implementação do

quesito cor em agências públicas.

Trata-se de experiências das quais participei ativamente como técnico do

Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT, conforme

mencionado na introdução deste trabalho.

Por esta razão, ao escolher os procedimentos metodológicos e técnicos159

desta investigação, procurei adotar, como balizas, as preciosas lições de Teresinha

Bernardo: “O fato de existirem tais relações entre mim e os sujeitos da pesquisa em

nada diminui nem aumenta os acertos ou erros de minhas interpretações. Nunca

acreditei na neutralidade científica, mesmo quando esse princípio vigorava no

mundo acadêmico, no interior das ciências humanas. Penso que neutralidade, para

muitos cientistas sociais, significava poder. Em outras palavras, ser neutro era

qualidade que poucos possuíam, ou seja, somente os verdadeiros cientistas, pois

estava ligada à aquisição de saber verdadeiro. Ademais, ninguém duvida da relação

traçada por Foucault entre saber e poder”160.

Também valiosos os ensinamentos de Antônio Joaquim Severino: “ ‘Qualquer

pesquisa, em qualquer nível, exige do pesquisador um envolvimento tal que seu

objetivo de investigação passa a fazer parte de sua vida’; a temática deve ser

realmente uma problemática vivenciada pelo pesquisador; ela deve lhe dizer

respeito. Não, obviamente, num nível puramente sentimental, mas no nível da

avaliação da relevância e da significação dos problemas abordados para o próprio

pesquisador, em vista de sua relação com o universo que o envolve. A escolha de

159 “Entende-se por métodos os procedimentos mais amplos de raciocínio, enquanto técnicas são procedimentosmais restritos que operacionalizam os métodos, mediante emprego de instrumentos adequados”; sobremetodologia, o autor refere as metodologias epistemológicas mais gerais, quais sejam, “positivista,neopositivista, estruturalista, fenomenológica e dialética”. V. Antônio Joaquim Severino. Metodologia dotrabalho científico, p. 162 e 150, respectivamente.160 BERNARDO, Teresinha. Mulher vento: lembranças de campo. Ciências sociais na atualidade: realidade eimaginários. São Paulo: Paulus, 2007, p. 255-256.

76

um tema de pesquisa, bem como a sua realização, necessariamente é um ato

político. Também, neste âmbito, não existe neutralidade”161.

Tendo em mente estas diretrizes recomendadas por dois cientistas sociais

brasileiros, optei, neste capítulo, por uma pesquisa com base numa série de

relatórios produzidos pelo CEERT162 acerca das experiências focalizadas, bem como

em relatos e análises constantes de livros e artigos assinados por integrantes

daquela instituição.

Certamente, não há como controlar um componente propriamente empírico

que, às vezes, irá emergir não como resultado de trabalho de campo realizado com

a finalidade específica desta monografia, mas como conseqüência inevitável da

minha participação direta e prolongada no planejamento, execução e relatoria das

atividades que geraram os documentos analisados. Afinal, o sujeito, um dos

protagonistas da experiência focalizada, agora debruça-se sobre ela na condição de

pesquisador.

A partir deste estágio, portanto, acrescentarei às retomadas históricas,

contextualizações e pesquisa bibliográfica uma pesquisa documental, visando

robustecer a demonstração dos pressupostos político-ideológicos subjacentes à

temática da informação sobre cor.

Antes, porém, impõe-se um breve resgate histórico, incluindo um panorama

da experiência pioneira de implementação do quesito cor na atualidade – aquela

realizada na Prefeitura de São Paulo, no início dos anos 90.

4.2 A transformação da reivindicação em políticas governamentais: aexperiência pioneira da Prefeitura de São Paulo

A Prefeitura de São Paulo, durante a gestão de Luiza Erundina (1989-1992),

protagonizou a primeira iniciativa contemporânea de implementação do quesito cor.

Pelo menos dois fatores contribuíram de forma mais decisiva para este

evento: 1. a inscrição da informação sobre cor como uma reivindicação social,

bandeira política cada vez mais presente no discurso e na prática do Movimento

161 Citação direta do Severino, ao lado de citação indireta de A.M.M. Cintra (SEVERINO, Antônio Joaquim.Metodologia do trabalho científico. 22 Ed. São Paulo: Cortez, 2002, p. 145)162 Pesquisa: gestão local, empregabilidade e eqüidade de gênero e raça. Um experimento de política pública naregião do ABC Paulista. São Paulo, CEBRAP, 2000. [Relatório de Pesquisa]

77

Negro163; 2. a presença de ativistas e pesquisadores negros na administração

municipal, nomeadamente na área de saúde, o que permitiu uma ação, no interior do

governo, comprometida com a democratização da informação sobre cor.

Vejamos alguns dos principais marcos cronológicos desta experiência164:

Março de 1990 – Criação do Centro de Epidemiologia, Pesquisa e Informação

(Cepi);

Maio de 1990 – Realização do seminário Quadro Negro de Saúde – Implantação do

Quesito Cor no Sistema Municipal de Saúde, cujo objetivo foi sensibilizar os

profissionais da área e definir como deveria ser feito o registro do quesito cor dos

usuários do Sistema Municipal de Saúde. Um grupo de trabalho (GT) informal foi

criado para este fim;

1991 – Distribuição de cartazes e cartilhas relativas ao tema, produzidos pelo grupo,

com divulgação no Jornal do Ônibus e no Boletim Saúde Informa, da Secretaria

Municipal da Saúde. Houve, também, atividades locais sobre o tema e a distribuição

de textos selecionados, visando embasar a discussão. Foram realizados, ainda, dois

seminários: na Administração Regional de Saúde ltaquera/Guaianazes, que

envolveu funcionários e a população da região, e no distrito de Ermelino Matarazzo;

Março de 1992 – Publicação da Portaria 492/92 que oficializa o Grupo de Trabalho

responsável pelo quesito cor, coordenado por Penha Lúcia Valério e constituído

pelos seguintes órgãos e pessoas: Centro de Epidemiologia, Pesquisa e Informação

(Cepi) – Penha Lúcia Valério Ramos e Rosa Maria Tomaz, com colaboração de

Marcos Drumond Júnior; Centro de Orientação e Atenção à Saúde (Coas) – Edna

Roland; Centro de Formação dos Trabalhos em Saúde (Cefor) – Edna Muniz de

Souza e Maria do Carmo Sales Monteiro; Coordenadoria Especial do Negro (Cone)

– Maria Aparecida de Laia; Distritos de Saúde – Arlete Lourdes lzidoro e Roseli de

Oliveira; Administrações Regionais de Saúde. Coube ao GT do quesito cor captar as

demandas dos Distritos de Saúde e Administrações Regionais de Saúde; promover

o retorno das discussões, em nível regional, acompanhar tecnicamente as análises e

estudos provenientes da coleta de dados do Sistema Municipal de Informação de

163 Vale lembrar que o Programa de Ação do Movimento Negro Unificado (uma importante organização negranascida em 1978) de 1984, não fazia menção à informação sobre cor. No entanto, dois anos depois, os jornaiseditados pelo Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo járeferiam aquela reivindicação no catálogo das bandeiras políticas. Movimento Negro Unificado. Programa deAção. São Paulo, 1984 (mimeo).164 BATISTA, Luís Eduardo e KALCKMANN, Suzana (org.) Seminário Saúde da População Negra de SãoPaulo 2004, São Paulo, Instituto de Saúde, 2005, texto Maria Aparecida da Silva Bento, p 133 a 154.

78

Saúde – SP (Simis); expandir a discussão para outros setores do governo e

comunidade, a partir das articulações existentes em nível local.

Dezembro de 1992 – Realização do seminário É Preto no Branco: Vencendo a

Conspiração do Silêncio, no qual foi lançado o caderno É Preto no Branco e relatado

o trabalho inicial de implantação do quesito cor no Sistema Municipal de Saúde;

Esta experiência pioneira padece, no entanto, de registros significativos no

que se refere aos dados coletados.

Maria Aparecida Silva Bento165 desenvolveu uma análise cuidadosa deste

experimento, a partir da percepção das ativistas e técnicas que pressionaram a

administração a implementar o quesito cor, destacando-se, sobretudo, o processo

político que resultou naquela implementação.

Vale realçar, no entanto, que o pioneirismo da Prefeitura de São Paulo

estimulou a replicação da experiência em outros lugares e serviu como plataforma

para a elaboração de métodos e técnicas adequados à inclusão do quesito cor.

A experiência de implementação do quesito cor ocorreu na área de saúde,

quando o Sistema de Informação da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo

redefinia os seus indicadores socioeconômicos por meio do reconhecimento das

condições de saúde da população. Esta redefinição tinha por objetivo identificar as

necessidades mais prementes da população em relação à saúde, o que permitiria

desenvolver e adequar as ações de planejamento e gerenciamento dos serviços de

saúde às suas necessidades (cadernos-Cefor, 1992).

Assim, a coleta e análise do quesito cor, pelo Sistema de Informação da

Secretaria Municipal de Saúde, permitiram observar, em princípio, o peso das

condições socioeconômicas de saúde dos diferentes grupos raciais. Por outro lado,

possibilitou identificar a importância da variável racial na incidência de doenças,

segundo os diferentes grupos, pois dados relativos a outros países multirraciais

demonstraram que essa variável é associada a incidência de doenças, como

diabetes, hipertensão e miomas166.

165 BATISTA; KALCKMANN, op. cit., p. 136-138.166 Idem, p. 138-139.

79

4.3 O reconhecimento público da expertise do CEERT naimplementação do quesito cor

A segunda experiência contemporânea de implementação do quesito cor

ocorreu na Prefeitura de Belo Horizonte, na gestão do prefeito Patrus Ananias, atual

(01/2008) Ministro de Estado do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

Merece destaque a valiosa contribuição prestada pelo seu Secretário de Governo,

Luis Soares Dulci, que ocupa o cargo de Ministro Chefe da Secretaria Geral da

Presidência da República.

Com a finalidade de implementar a Convenção 111 da Organização

Internacional do Trabalho (OIT)167, a Prefeitura de Belo Horizonte assinou convênio

com o CEERT em fins de 1995168, iniciando um programa voltado ao diagnóstico das

desigualdades de raça que pudesse orientar a elaboração de políticas de promoção

da igualdade, bem como estimular a valoração positiva da diversidade étnico-racial.

O programa subdividiu-se em três áreas distintas: educação, saúde e

trabalho.

O objetivo específico do projeto foi introduzir o recorte das relações raciais

nas políticas públicas das referidas áreas, destacando-se, particularmente, a área da

saúde, na qual procedeu-se a introdução do quesito cor, a capacitação de 220

gestores, a realização de campanha (folders e cartazes) voltada aos usuários, a

produção de materiais educativos e o desenvolvimento de estratégia de

comprometimento da instituição com o princípio da igualdade racial.

Belo Horizonte destaca-se, também, pela contratação de uma ONG, situada

em São Paulo, para oferecer subsídios técnicos à implementação do quesito cor.

É precisamente neste período que o CEERT passa a ser reconhecido pelo

acúmulo de conhecimento e expertise na implementação do quesito cor.

Desde o seu nascimento, em 1990, o CEERT realiza pesquisas e intervenção

focalizadas na valorização da diversidade e na superação de todas as formas de

discriminação no trabalho, nos serviços públicos e no acesso à Justiça.

167 Ratificada pelo Brasil por meio do decreto 62.150, de 23 de janeiro de 1968, foi solenemente ignorada até1992, data em que o CEERT elaborou uma reclamação, denunciando o seu descumprimento pelo governobrasileiro, reclamação esta encampada e encaminhada à OIT pela CUT – Central Única dos Trabalhadores. AConvenção 111 trata da discriminação em matéria de emprego e profissão.168 SILVA BENTO, Maria Aparecida. O papel da cor raça/etnia nas políticas de promoção da igualdade,anotações sobre a experiência do município de Santo André. São Paulo, CEERT, 2003.

80

Com ênfase na temática racial e de gênero, mas contemplando também

outras formas de discriminação, como a deficiência, idade e orientação sexual, o

CEERT acumula experiência na produção de conhecimento e no desenvolvimento

de métodos e técnicas apropriados à execução de projetos de inclusão de grupos

socialmente desfavorecidos.

Inicialmente, o trabalho voltava-se à capacitação de dirigentes sindicais,

treinamento de funcionários do Ministério do Trabalho, sensibilização e mobilização

de empresas, estudos qualitativos sobre discriminação no emprego, elaboração de

cláusulas de promoção da igualdade em acordos coletivos de trabalho.

O resgate da Convenção 111 da OIT, aludido no item anterior, traduziu-se, no

plano político, na organização de uma campanha nacional pela implementação dos

direitos previstos naquele tratado.

A instituição promoveu uma série de pesquisas qualitativas, focando a

introdução da informação sobre cor em cadastros de pessoal, procedimentos para a

coleta desta informação, instrumentos para diagnósticos de discriminação direta e

indireta no trabalho, campanhas de sensibilização e conscientização, técnicas de

mobilização e co-responsabilização de gestores e empregados, preparação de

ambientes para políticas de diversidade.

A partir de 1996, a entidade passou a buscar convênios e contratos com

órgãos públicos, visando introduzir a informação sobre cor em cadastros de usuários

de serviços públicos, bem como o desenvolvimento de programas voltados à

promoção da igualdade na gestão de recursos humanos. Parcerias e prestação de

serviços resultaram em projetos inovadores nos municípios de Belo Horizonte,

Recife, São Paulo, Campinas, Jundiaí, entre outros.

Ao acúmulo anterior, vieram somar-se as lições aprendidas com a experiência

de Belo Horizonte e, posteriormente, Santo André.

Percebe-se que a implementação do quesito cor tem implicações que vão

muito além da simples inscrição de “quadrinhos” com categorias nos quais o

respondente assinala um “x”.

Grosso modo, pode-se dizer que aquela medida dá ensejo a três ordens de

problemas: 1. resistência por parte dos agentes públicos responsáveis pela coleta da

informação; 2. resistência por parte dos usuários dos serviços examinados

81

(respondentes); 3. necessidade de medidas educativas, capazes de criar um

ambiente favorável a uma correta compreensão e resposta ao quesito cor.

Vejamos cada um deles.

4.3.1 A reação dos respondentes

Na avaliação do processo de coleta do quesito cor, seja na experiência

mineira, seja também em Santo André169, eram visíveis as dificuldades provenientes

da pergunta “Qual é a sua cor?” (por parte dos atendentes) e, como conseqüência,

das respostas (por parte dos usuários). Os atendentes apontaram a perplexidade

dos usuários com a pergunta e o não-envolvimento com o processo, o que

freqüentemente resultava em grande número de abstenções nessa declaração. Por

parte dos atendentes, ficou evidente o constrangimento e o restrito conhecimento

sobre a questão racial no Brasil.

“Como definir quem é negro e quem é branco no país? Como determinar a cor,quando não se fica para sempre negro no Brasil, quando se ‘embranquece’ pordinheiro e se ‘empretece’ por declínio social? É certo que, nos momentos deatrito, nos contatos diários com a polícia ou com a discriminação, a cor é definidapelo costume e passa longe da teoria. Mesmo assim, no país se ‘joga com a cor’,de maneira a utilizá-la como instrumento em diferentes situações sociais emesmo políticas”170.

Diante disso, estimulou-se a reflexão sobre a razão da coleta desta

informação. Algumas respostas a esta pergunta foram:

. conhecer melhor a população a ser atendida;

. direcionar as políticas para os diferentes segmentos;

. orientar campanhas pedagógicas.

As fichas preenchidas pelos atendentes171 permitiram coletar dados sobre as

percepções e dificuldades com a coleta do quesito cor, entre as quais:

169 Refiro-me ao projeto de implementação do quesito cor na Central de Trabalho e Renda – CTR (agênciapública de emprego) de Santo André. A CTR tem por finalidade contribuir para a (re) inserção do trabalhador nomercado de trabalho por meio de ações do Sistema Público de Emprego, de maneira integrada e articulada ,visando o fortalecimento da cidadania. Faz o cadastramento e encaminhamento de trabalhadores a postos deemprego, orientação e capacitação profissional, estímulo à geração de renda e orientação sobre direitostrabalhistas. O projeto teve início em 1999 e terminou em 2003.170 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Racismo no Brasil. São Paulo: Publifolha, 2001 (Folha explica) p. 66.171 Pesquisa: gestão local, empregabilidade e eqüidade de gênero e raça. Um experimento de política pública naregião do ABC Paulista. São Paulo, CEBRAP, 2000. [Relatório de Pesquisa]. (mimeo)

82

Dúvidas sobre o critério de classificação adotado pelo IBGE, percebidas

por meio de comentários como: “Quem são os pardos?” Ou “Raça amarela

inclui todos os tipos de orientais – chineses, japoneses, coreanos?”.

O conceito de autoclassificação não estava bem compreendido para o

usuário, nem para os atendentes;

A abordagem do tema gerava constrangimento para alguns atendentes, o

que era explicitado por meio de perguntas do tipo: “Como solicitar ao

trabalhador que diga a sua cor, sem que isso pareça preconceito contra

trabalhadores (as) negros (as), ou cause indignação nos brancos (as)?”

O tempo de atendimento também constituiu foco de preocupação,

principalmente quando o trabalhador pedia explicações ou questionava a razão da

pergunta sobre a cor.

Algumas das perguntas mais freqüentes:

Isso não é preconceito contra o trabalhador negro?

Isso não é preconceito contra o trabalhador branco?

Mas o que será feito com esses dados?

O preconceito sempre existiu e não vai mudar, não adianta.

Essa pesquisa vai ter interferência no oferecimento da vaga? O trabalhador negro

vai ter mais vantagem?

E quem tem mais de 40 anos também não consegue entrar no mercado de trabalho.

O preconceito não é só com o negro.

Empregador é dono e tem o direito de escolher quem quiser para ser o seu

empregado.

Em uma ocasião, uma mulher negra disse que, se concorresse a uma vaga

com uma branca e não fosse escolhida, não seria em razão do preconceito, mas

simplesmente porque o empregador não achou que tivesse capacidade para ocupar

aquela vaga. Ela não associava o fato de estar desempregada (ou ter sido preterida)

à sua cor.

Nos plantões coordenados pela equipe do CEERT nos postos de coleta da

informação sobre cor, também foi possível identificar que o fato de a pergunta “Qual

é a sua cor?” aparecer logo na primeira tela do formulário do cadastramento,

juntamente com os dados de identificação pessoal (nome, endereço, estado civil),

causava uma reação imediata de espanto no usuário.

83

A grande maioria dos trabalhadores, ao ser abordada, identificava-se como

“moreno”, no caso de resposta espontânea. O interessante é que essa resposta

vinha carregada de dúvidas. A partir do momento em que o atendente apresentava o

cartão com as opções de cor, o trabalhador pensava bastante antes de responder e

terminava se classificando como pardo. Mas era muito comum o questionamento

quanto ao uso desse termo. Muitos afirmavam desconhecer essa classificação,

achavam que era utilizada apenas para definir “a cor do papel de pão”.

Alguns trabalhadores pardos (segundo o olhar do plantonista), ao serem

questionados sobre qual era a sua cor/raça, devolviam a pergunta ao atendente: “O

que você acha?”. O atendente mostrava o cartão. O trabalhador dizia que, na sua

certidão, estava pardo. O atendente refazia a pergunta: “Então, o(a) senhor(a) se

classifica como pardo?”, e o trabalhador respondia: “Não, sou branco”. É

interessante notar que havia uma tendência muito forte de o trabalhador172 migrar

para o quesito que achava mais conveniente na situação, numa espécie de

argumento: “Já que posso escolher, vou ser branco”, talvez acreditando que a sua

resposta fosse interferir na conquista da vaga.

O trabalhador branco respondeu, diversas vezes, com ironia, deixando

explícito, nas entrelinhas, algo como: “Não está vendo?” ou: “Sou branco, quero uma

vaga de emprego, não tenho nada a ver com essa campanha”.

Alguns atendentes, quando o usuário se classificava como moreno, não

explicavam que a classificação deveria ser feita de acordo com as definições do

formulário. Limitavam-se a classificá-lo como pardo.

Os atendentes ficavam constantemente constrangidos diante do trabalhador

negro. Estes, por sua vez, demonstravam receio em responder, mas quando eram

informados da campanha, respondiam sem grandes questionamentos.

Os trabalhadores que mais questionavam eram aqueles que, socialmente,

são considerados brancos, mas que, no momento do atendimento, se deparavam

com o termo pardo. Muitos achavam a pergunta ofensiva e preferiam classificar-se

como “moreno”, mas como esse termo não fazia parte da classificação, “aceitavam”

a classificação de pardo.

172 Constata-se que o tempo do cadastramento é curto para uma reflexão sobre a cor do trabalhador – é possívelsupor que ele nunca havia sido questionado sobre isso antes.

84

4.3.2 A estratégia empregada para superar as resistências

Em face das tensões observadas nas experiências de Belo Horizonte e de

Santo André, iniciou-se, então, um processo de capacitação e monitoramento do

trabalho dos funcionários da Central de Trabalho e Renda na coleta da pergunta

“Qual é a sua cor?”, simultaneamente à organização de uma campanha informativa

voltada aos usuários dos serviços oferecidos pela CTR.

Para essa campanha, elaborou-se um material explicativo com as seguintes

informações: “A Central de Trabalho e Renda quer conhecer melhor a população

andreense. Este trabalho visa a promoção de igualdade de direitos, oportunidades e

tratamento para grupos da população historicamente discriminados. Para isto é

necessário conhecer melhor a distribuição e composição dos moradores da cidade,

principalmente quanto a sua cor/raça. Assim, no momento do atendimento, é

importante que você responda qual é a sua cor, da mesma forma que é respondido

qual o seu sexo, estado civil, RG. Você pode ajudar nisso. Responda corretamente

os dados para o preenchimento do cadastro”.

Esse trabalho exigiu esforço para mobilizar os agentes envolvidos na

pesquisa, bem como para organizar reuniões, seminários e palestras, considerados

formas efetivas de assegurar o envolvimento dos funcionários e gestores em todas

as etapas do projeto, além da formação dos técnicos na metodologia utilizada. As

reuniões e seminários possibilitaram, ainda, um processo contínuo de discussão e

amadurecimento dos temas entre os funcionários e gestores, ampliando a reflexão

sobre a importância de políticas públicas voltadas à superação das desigualdades

de gênero e raça, na região.

Vale lembrar que, devido às dificuldades de reconhecer as desigualdades

raciais e o racismo no Brasil, coletar a cor dos usuários do serviço público não é uma

tarefa fácil. A experiência na CTR e os referenciais de outros municípios mostram

que se trata de um procedimento embaraçoso e complexo, que se manifesta na falta

de informação dos funcionários, gestores e usuários sobre a importância de se obter

esse dado como uma estatística na elaboração de políticas públicas.

Assim, visando assegurar a disponibilização de informação e a adequada

capacitação desses três atores no tema, a iniciativa da CTR considerou o acúmulo

das lições obtidas com os erros e acertos observados em experiências anteriores de

85

implementação do quesito cor em administrações municipais, como a da Prefeitura

de São Paulo (1989-1992) e a de Belo Horizonte (1993-1996).

Essas experiências não tiveram continuidade, pelo menos nos propósitos

iniciais de implementar o quesito em uma área-piloto, a saúde, para depois expandi-

las para outras áreas.

Desenvolver tal trabalho exigiu um longo processo de aproximação com os

servidores públicos e o estabelecimento de parcerias com setores da sociedade civil.

Além disso, campanhas difundiram as informações e o envolvimento da comunidade

que iria responder ao quesito sobre cor.

As experiências foram bastante significativas na ampliação do debate e na

definição de novos parâmetros para as políticas públicas. Com isso, reforça-se a

necessidade de coletar o quesito cor em todos os organismos sociais que prestem

serviços ou empreguem pessoal – um importante definidor de condições sociais,

junto com o quesito sexo. Porém, esse trabalho deve vir, sempre, acompanhado de

um rigoroso processo de capacitação, assim como da acuidade no tratamento

estatístico e na divulgação dos resultados.

Na segunda fase do desenvolvimento do projeto-piloto, os eixos para as

atividades tiveram, pois, caráter formativo, informativo, organizativo e de articulação,

especialmente com relação aos diversos atores envolvidos no processo de

implementação do quesito cor na área escolhida, a CTR.

Esse processo exigiu o envolvimento não apenas dos funcionários da CTR,

mas também dos gestores de várias áreas da PMSA173, já citadas, sob a

coordenação do CEERT.

A fim de reforçar o trabalho com o banco de dados da CTR, propôs-se uma

bolsa de treinamento técnico174, cujo objetivo era integrar e preparar um profissional

da área de informática para colaborar no manuseio e na tabulação dos dados

coletados, bem como no controle e monitoramento do percentual de cor (não

declarada).

Contribuíram também para as atividades, sobretudo na capacitação de

coletores e gestores, outros profissionais do CEERT com formação em diferentes

173 Prefeitura Municipal de Santo André.174 SILVA BENTO, Mário Rogério da. Relatório de bolsa de treinamento técnico. FAPESP, 2002.

86

áreas das Ciências Humanas e experiência em projetos de políticas públicas, e na

implementação do quesito cor na Prefeitura de Belo Horizonte.

4.3.3 Atividades de sensibilização e capacitação

Em Santo André, a primeira atividade de sensibilização, cujo objetivo era o

envolvimento de atores no processo que se iniciava, foi o seminário Quesito Cor e a

Experiência de Implementação na Prefeitura de Belo Horizonte, no dia 8 de

novembro de 2001, que contou com a participação de 40 pessoas, representantes

de diferentes áreas da Prefeitura, dos movimentos de mulheres e negros, e

representantes da CTR.

Posteriormente, três workshops temáticos destinaram-se a um público misto:

funcionários e gestores da CTR, representantes das diferentes áreas da PMSA e

instituições parceiras, totalizando cerca de 100 pessoas, cada um175. Este público

compunha-se de pessoas de nível técnico e universitário, que ocupavam posições

hierárquicas diferenciadas.

O primeiro workshop, Usos (e Desusos) do Quesito Cor no Brasil, ocorreu em

22 de fevereiro e 1º de março de 2002, com o intuito de deslanchar o processo de

implementação do quesito cor na CTR.

O segundo workshop, Monitoramento da Implementação do Quesito Cor,

aconteceu nos dias 4 e 5 de julho de 2002, com os seguintes objetivos: dar

continuidade ao monitoramento da implementação do quesito cor; avançar no

processo de capacitação dos funcionários da CTR, funcionários e gestores da

PMSA; avaliar a primeira etapa de implementação do quesito cor.

O terceiro workshop, Avaliação do Projeto, aconteceu nos dias 22 e 23 de

novembro de 2002 e teve, como principal objetivo, avaliar todo o processo de

implementação e monitoramento na CTR, além das mudanças que já haviam sido

diagnosticadas no banco de dados, prenunciando o sucesso da campanha.

Pretendeu, também, formular propostas para políticas públicas de eqüidade de

gênero e raça na região do ABC Paulista.

175 Para facilitar a participação e não prejudicar o atendimento aos usuários da CTR e PMSA, os workshopsforam realizados em dois dias, garantindo a mesma pauta para os dois grupos distintos.

87

A programação dos workshops contemplou temas diferenciados, visando

despertar a reflexão por meio de conhecimentos já adquiridos e também de estímulo

a novos aprendizados, de acordo com a seguinte estrutura:

1. Integração e entrosamento grupal. Jogos interativos permitiram integrar o

grupo e ampliar as potencialidades individual e coletiva. Como recurso,

utilizou-se a música, que estimula a expressão da emoção, integrada ao

movimento, e facilita a comunicação e reflexão sobre o assunto a ser

abordado. A programação desenvolveu-se com aquecimento físico,

apresentação lúdica dos participantes e uma breve reflexão sobre o

envolvimento de cada um com o tema. Entre as exposições teóricas houve

jogos de descontração e relaxamento, o que possibilitou maior

participação do grupo.

2. Reflexões sobre referenciais históricos e teóricos da questão racial. Houve

debates sobre a questão racial, por meio de exposição dialogada,

utilização de vídeos e aplicação de técnicas de grupo, com o intuito de

estimular a visão crítica dos participantes. Em cada workshop, as questões

levantadas eram diversificadas; no entanto, em todos enfatizou-se o

histórico sobre as relações raciais, lutas e conquistas para garantir a

cidadania e os direitos. Como referencial para a implementação do quesito

cor, foram apresentadas experiências anteriores em administrações

públicas e nas empresas. Focalizou-se, ainda, o tratamento da questão

racial no cotidiano, a partir da reflexão sobre a discriminação

institucional176.

3. Exercícios de classificação da cor. Consistiu no estímulo aos participantes

para que exercitassem a definição da cor das pessoas por meio de fotos

ou da autoclassificação. Com isso, pretendeu-se debater o significado da

hetero e autoclassificação, bem como as dificuldades de um e outro

procedimento. Acima de tudo, objetivou-se refletir sobre a inexistência de

critérios científicos rígidos para esse procedimento, acentuando que a

autoclassificação é a técnica mais ética e eficaz, considerando-se a

realidade brasileira.

176 Como as instituições operam com base em linhas racistas sem admiti-lo, ou até mesmo reconhecê-lo, e comotais operações podem persistir mesmo em face das políticas oficiais geradas para a remoção da discriminação.

88

4. Avaliação continuada. Significou um momento muito importante do

trabalho, pois permitiu a expressão dos sentimentos, dúvidas e

dificuldades. Foi possível redesenhar o trabalho, de acordo com as

perspectivas apontadas pelo grupo.

Tomados estes conteúdos em perspectiva, fica nítido que o que se pretendia

era desvendar as implicações decorrentes da implementação do quesito cor como

um dado a ser compulsoriamente coletado, de forma a quebrar argumentos

restritivos à coleta que nascem do desconhecimento de sua importância, e da idéia

preconcebida de que não é necessário treinar os sujeitos.

A convivência diária com a questão da cor, no espaço profissional, pode

diminuir, ou mesmo desfazer, em usuários e servidores, o “medo” de falar sobre

cor/raça/etnia, e provocar a perspectiva de tratar essa temática como objeto de

interesse público.

Assim, o processo de treinamento que envolveu oficinas sobre os conceitos

básicos (discriminação, racismo, preconceito, estereótipo), a história das relações

raciais no Brasil e as estatísticas da discriminação, em diferentes áreas, parece ter

sido fundamental para alavancar o debate dentro da instituição. A abordagem de

temas delicados, como os processos de identificação racial, o significado de ser

branco no Brasil, o fracasso das instituições em garantir tratamento igualitário a

todos os brasileiros foi feito num contexto participativo, que possibilitou uma nova

compreensão para negros e brancos.

Com o avançar do processo e a introdução concreta do quesito cor no

sistema de informação, surgiram as primeiras estatísticas comparativas da condição

de negros e mulheres. Nesta etapa, as oficinas com funcionários tornaram-se mais

propositivas, uma vez que estes ofereceram excelentes sugestões de ações de

combate às desigualdades no cotidiano de trabalho e/ou de promoção da igualdade.

Assim, a experiência demonstrou que a quebra do silêncio institucional sobre

relações raciais configura-se como o primeiro passo na implementação do quesito

cor.

89

4.3.4 A preparação dos atendentes/coletores

A partir do primeiro workshop de capacitação dos atendentes da Central de

Trabalho e Renda, eles foram orientados a fazer a pergunta “Qual é a sua cor?” para

todos os usuários (no primeiro atendimento e no retorno), de acordo com o que

constava na ficha de atendimento. No retorno, a orientação era para que

perguntassem apenas àqueles que não tivessem declarado a cor nos atendimentos

anteriores a 27 de maio de 2002 (ou seja, aos usuários atendidos até o dia do

primeiro workshop, em cuja ficha constava “cor não declarada”).

Para facilitar o contato, os usuários recebiam um “cartão” com as alternativas

de classificação de cor, igual àquelas que constam nos formulários. O usuário

escolhia, então, uma das alternativas, que o atendente registrava no sistema para

inserir ou atualizar o dado.

Solicitou-se a todos os atendentes/coletores que lessem os textos básicos

sobre o tema: (a) a inclusão do quesito cor nas coletas de perfil de funcionários de

empresas e usuários de serviços públicos e privados (O Baile da Cor)177; (b)

informação é a melhor arma contra o racismo e a discriminação (Manual para

Coletores do Quesito Cor). Também disponibilizou-se uma espécie de “minibiblioteca

circulante” sobre o tema178. Cada um dos exemplares podia ser emprestado por

uma semana. Outros materiais, como cartazes, folhetos e banners, foram criados

pela equipe de pesquisa (com apoio do GT da Prefeitura e acompanhamento do GT

Quesito Cor) e utilizados como suporte à campanha com os usuários da CTR.

Os atendentes dispunham, ainda, de uma ficha de monitoramento, elaborada

com o intuito de sistematizar as informações de ocorrências semanais, que era

preenchida e devolvida todas as sextas-feiras para análise e encaminhamentos

posteriores.

A responsabilidade cotidiana de acompanhar o trabalho dos atendentes ficou

a cargo de integrantes da CTR. No entanto, a avaliação continuada do trabalho foi

feita por meio de reuniões mensais e workshops, coordenados pelo GT Quesito Cor.

177 PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia.Cor nos censos brasileiros. Revista da USP, São Paulo, n. 40, p. 123-37, dez/fev 1998/1999.178 Composta por textos e/ou livros que são referências sobre o tema.

90

As reuniões mensais aprofundaram os temas relativos à questão racial e

coleta do quesito cor, de acordo com as temáticas dos workshops, já descritos.

O quesito cor já fazia parte do perfil para cadastrar os usuários no banco de

dados SIGAE179 em julho de 2002 (início do monitoramento). Porém, nos registros

anteriores à implementação do projeto, o dado cor fora coletado de forma

inadequada, considerando-se o grande volume de “Não declarados”.

Os dados para este estudo foram obtidos a partir do banco de dados da

unidade de Santo André da Central de Trabalho e Renda, no período de 07/2002 a

10/2002 (relativo ao atendimento realizado em cada mês). Para avaliação dos dados

históricos, utilizou-se o banco de dados geral da Central de Trabalho e Renda.

A eficácia da estratégia de superação das resistências pode ser aferida por

números incontestáveis: em Santo André, no início do processo, havia 67,4% de

respostas na categoria “cor não declarada”; no final, este número havia caído para

3,5%.

A coleta adequada do quesito cor possibilitou uma visão mais precisa dos

usuários da CTR, bem como avaliar a situação da população não-branca no

mercado de trabalho do município.

179 Sistema de Gestão das Ações de Emprego (Ministério Trabalho e Emprego).

0

1 0

2 0

3 0

4 0

5 0

6 0

7 0

C o r / R a ç a n ã o d e c la r a d a

N a o d e c la ra d a

N a o d e c la ra d a 6 7 .4 4 0 .5 3 1 .6 2 3 .2 3 . 5

H is to r ic o J u l-0 2

A u g -0 2

S e p -0 2 O c t- 0 2

.

Gráfico 2 - Monitoramento da coleta do quesito cor.

91

Gráfico 3 - Perfil dos usuários do sistema

COR / RAÇA SANTO ANDRÉ 10/2002

Parda

Negra

Nao declarada

Indigena

Branca

Amarela

Foi possível avaliar o resultado dos encaminhamentos de candidatos para as

vagas disponíveis e o impacto da raça/cor nas escolhas e colocação efetiva do

trabalhador. O gráfico a seguir aponta, de forma evidente, que os negros e pardos,

com o mesmo perfil dos brancos e amarelos, têm um menor aproveitamento dos

encaminhamentos.

Gráfico 4 - Monitoramento do aproveitamento das vagas oferecidas segundo cor/raça.

12,50%

13,00%

13,50%

14,00%

14,50%

15,00%15,50%

16,00%

Branca Indigena Negra Parda

% de aproveitamento dos Encaminhamentos10/2002

Colocação

92

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As experiências de implementação do quesito cor, em Belo Horizonte e Santo

André, confirmam que o tratamento deste tema não pode prescindir de uma

consideração óbvia, apenas aparentemente: o impacto do racismo. Vale dizer, o

impacto que a temática da discriminação racial tende a causar no plano das

subjetividades possui alto potencial de influência, positiva ou negativa, no ânimo dos

atendentes, respondentes e gestores.

Com Hannah Arendt, aprendemos que “os homens são seres condicionados:

tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma

condição de sua existência. (...) O que quer que toque a vida humana, ou entre em

duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da

existência humana. É por isto que os homens, independentemente do que façam,

são sempre seres condicionados. Tudo o que espontaneamente adentra o mundo

humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição

humana. O impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentido e

recebido como força condicionante. A objetividade do mundo – o seu caráter de

coisa ou objeto – e a condição humana complementam-se uma à outra; por ser uma

existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas, e

estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não-mundo, se estes artigos

não fossem condicionantes da existência humana”180.

Neste mesmo diapasão, Max Weber, analisando a ação humana, registra

quatro modalidades básicas:

tradicional (orientada pelos hábitos vigentes);

afetiva (orientada pelas emoções);

racional com relação a valores (feita por convicção, fé ou dever); e

racional com relação a fins (em que a racionalidade reúne

estrategicamente meios e fins).

Para o sociólogo alemão, nenhuma das quatro motivações incide

isoladamente sobre a ação humana, mas sim concorrentemente, destacando que “é

um fato conhecido que os indivíduos se deixem influenciar fortemente em sua ação

180 ARENDT, Hannah. A condição humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2001, p. 17.

93

pelo simples fato de estar incluídos numa ‘massa’ especialmente limitada (objeto das

investigações da ‘psicologia de massas’, à maneira dos estudos de Le Bon); trata-se

pois, de uma ação condicionada pela massa. Esse mesmo tipo de ação pode se dar,

também, com um indivíduo sob influxo de uma massa dispersa (por intermédio da

imprensa, por exemplo), influxo este percebido por esse indivíduo como proveniente

da ação de muitas pessoas”181.

Em referência à matéria, acentua Miguel Reale: “O primeiro dever do

estudioso, ao aplicar o método fenomenológico, é procurar afastar de si todos os

preconceitos, todos os prejuízos porventura formados a respeito do mesmo

fenômeno, notadamente quanto à sua transcendência, ou realidade fora da

consciência (‘epoqué’ fenomenológica). Devemos colocar-nos em um estado de

disponibilidade perante o objeto, no sentido de procurar captá-lo, na sua pureza,

assim como é dado na consciência, sem refrações que resultem de nosso

coeficiente pessoal de preferências, para poder descrevê-lo integralmente, com

todas as suas qualidades e elementos, recebendo-o ‘tal como se oferece

originariamente na intuição (descrição objetiva)’”182.

Levando-se em conta que a consciência individual apresenta-se enlaçada à

consciência social (Weber), ou os efeitos do condicionamento social a que todo o ser

humano está submetido (Arendt), é possível conjeturar que a exposição dos

indivíduos, desde tenra idade, à reiterada veiculação de representações distorcidas

das relações raciais (seja por meio da linguagem, da educação, seja dos meios de

comunicação) pode dificultar uma apreensão racional da relevância da informação

sobre cor, terminando por dar ensejo a preconceitos e ilações.

Portanto, uma premissa a ser permanentemente levada em consideração é

que os agentes envolvidos nestes processos devem estar sempre alertas, vigilantes,

atentos para que os seus credos e predileções não aflorem, a ponto de comprometer

a consistência e qualidade do seu trabalho. Daí a extraordinária importância da

informação, da reflexão, da sensibilização.

Se, no passado, o racismo ocultou a informação sobre cor, no presente o

manuseio daquela informação pressupõe necessariamente uma visão – mesmo

panorâmica – da complexidade e do caráter estruturante do racismo no Brasil.

181 WEBER, Max. Economia y sociedad. México, Fondo de Cultura Economica, v. I, 1974, p. 5.182 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 362.

94

A título de conclusão, vale lembrar alguns dos marcos que podem ser

inferidos desta dissertação, no que se refere ao tratamento da temática da cor.

Com a história, aprendemos que a mesma ambivalência e ambigüidade que

caracterizam o modelo brasileiro de relações raciais alcançam os domínios da

informação, ou desinformação, sobre cor. Os três grandes grupos étnicos

responsáveis pela fundação da nação podem ser associados a grupos de cores – se

adotarmos o fenótipo para a classificação destes. A condição de ser branco nunca

foi objeto de dúvidas, controvérsias, disputas técnicas ou metodológicas. Conforme

ensina Maria Aparecida da Silva Bento, parece que a condição de ser branco teria

sido encapsulada pela condição humana. O branco é o humano, o universal. Por

isto, tantas vezes a expressão homem de cor pressupunha que os brancos não

fossem portadores de cores.

Já a condição de ser negro parece ter, historicamente, incomodado a

sociedade brasileira, seja pela pluralidade de sinônimos, seja pelos infindáveis

debates sobre a miscigenação como uma possível diluição das fronteiras de cores.

Miscigenação que, como vimos, criou um amplo espectro de gradação de cores,

mas nem por isso fez desaparecer os três grupos originais de cores.

Nas sociedades em que a cor da pele não possui relevância na distribuição

de oportunidades e no exercício de direitos, certamente há pouco sentido na

associação entre a cor da pele e a noção de raça. Já naquelas em que

determinados grupos de “cores” estão concentrados em lugares sociais previsíveis,

a noção de raça emerge não como constructo científico, mas como construção social

ancorada nas evidências do cotidiano.

Como o discurso da democracia racial tentava fazer crer que a miscigenação

teria suprimido as fronteiras raciais, ao mesmo tempo em que postulava ampla

igualdade de oportunidade a todos os grupos raciais, a informação sobre cor passou

a ser vista como ameaça à estabilidade discursiva da democracia racial. Mas, ainda

assim, determinados cadastros, como na área de segurança pública, não seguiram

aquela tendência, instituindo um silencioso, mas eficiente, sistema de classificação

racial.

A outra contradição é que se, historicamente, o Brasil possui sistemas de

classificação racial, este tema só ganhou relevância no momento em que a

95

população negra passou a exigir os seus direitos, isto é, enquanto poderia ter sido

utilizada para violar direitos, a classificação racial “ia muito bem, obrigado”. Quando

passou a ser invocada para o exercício de direitos, o que era supostamente natural

passou a ser visto como um drama.

É neste contexto que a classificação racial é assumida por setores da

sociedade civil como bandeira política, diante da qual o Estado passa a ser obrigado

a dar respostas. A experiência contemporânea demonstra que não se pode

compreender as nuances e implicações da classificação racial sem ter uma noção

básica do fenômeno do racismo.

Se o Estado ainda hesita em instituir uma política nacional voltada para a

classificação, a sociedade civil, sobretudo ONG’s como o CEERT, produzem

conhecimento, orientam experiências, difundem informação, disponibilizam técnicas

e métodos aproveitados, inclusive, pelo setor privado.

As profundas transformações pelas quais o Brasil passou nos últimos anos,

em termos de reconhecer a gravidade do racismo e adotar fórmulas práticas para

sua superação, recolocaram na agenda do Movimento Negro, como também na da

própria academia, o complexo, intrigante e desafiador tema da classificação racial.

Ao concluir este trabalho, espero ter destacado alguns dos fatos históricos,

dos marcos conceituais, políticos, legais e metodológicos que perpassam o ato

inevitavelmente arbitrário de classificação de pessoas. Se o debate puder ser

alimentado com algo além de impressões pessoais e/ou preconceitos, considero

realizada a missão de demonstrar a complexidade que envolve a matéria. Se, no

passado, silenciaram a informação sobre cor, no presente o diálogo, a reflexão, o

confronto de idéias afiguram-se como única via por meio da qual a sociedade

estabelecerá as convenções aptas a garantir que todos os brasileiros usufruam da

igualdade de oportunidade e de tratamento.

96

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WEBER, Max, Economia y sociedad, vol. I, México: Fondo de Cultura Economica,1974.

100

ANEXOS

101

Prontuário civil - Polícia Distrito Federal

102

Prontuário civil - Polícia do Distrito Federal

103

Planilha para cadastramento de interessados nacionais em adoção, perfil dorequerente.

104

Planilha para cadastramento de interessados nacionais em adoção, perfil da criança.

105

Tela do sistema SIGAE do Ministério Trabalho e Emprego para cadastramento dotrabalhador.

106

Formulário de cadastramento único de beneficiários dos Programas do GovernoFederal.

107

Registro de nascimento com a classificação da cor do registrando conforme Lei6015/73 parcialmente revogada em 1975.

108

Registro de nascimento sem a classificação da cor do registrando conforme a Lei6216/75.

109

Registro de nascimento com a classificação da cor do registrando durante transiçãodos procedimentos entre a Lei 6015/73 e a lei 6216/75.

110

Declaração de Óbito

111

Ficha modelo de qualificação do adolescente, dados processuais e decisões doJuízo da infância e da juventude.

Ficha de identificação civil, para registros de ocorrências criminais – para políciascivis de todo o país.

112

113

Ficha registro de empregados

114

Ficha de alistamento militar

115

Formulário de alistamento militar – Consulado Geral do Brasil em São Francisco

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASILMINISTÉRIO DAS RELAÇÕESEXTERIORESCONSULADO-GERAL DO BRASIL EMSAN FRANCISCO

FORMULÁRIO DE ALISTAMENTOMILITAR

(Preencher a máquina ou em letra deforma)

(PLEASE TYPE OR PRINT)

DADOS PESSOAIS:

Nome / Name_________________________________________________________________

Ocupação/ Occupation____________________ Estado Civil / Marital Status _______________

Escolaridade / Highest Education Degree___________________________________________

Nascimento / Date of Birth: ______/_________/________ _________________ _____Dia/Day Mês/Month Ano/Year Cidade/City Estado/State

Endereço residencial Nos Estados Unidos / Residential Address in the US:________________________________________________________________________________

Número, Avenida/Rua, Apto./Number, Street/Ave., Apt. #

_____________________ ______________ _________________ ________________Cidade/City Estado/State Código Postal/ZIP Code País/Country

Nome dos pais/Name of Parents:

__________________________________________________________Nome do pai / Father’s Name

___________________________________________________________Nome da mãe / Mother’s Name

Altura/Height: ___________ ___________Metros/Meters centímetros/centimeters

Cor da pele/Skin Color___________________

Cor dos cabelos _____________________ Cor dos olhos/Eyes Color_________________

Sinais particulares (se houver)/Birth marks, scars (if any)_____________________________________

_____________________________________Telefones para contato / Telephone numbers: (_____) _______________ (_____) ______________

Residência/Home Trabalho/Work

Data/Date _______/_________/______ ______________________________________Dia/Day Mês/Month Ano/Year Assinatura do declarante / Signature

116

Certificado de dispensa de incorporação

117

Ficha de perfil social, Prefeitura de Santo André – Secretaria de Inclusão social eHabitação

118

Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973.

Art. 54. O assento do nascimento deverá conter: (Renumerado do art. 55, pela Lei nº 6.216, de1975).

1°) o dia, mês, ano e lugar do nascimento e a hora certa, sendo possível determiná-la, ouaproximada;

2º o sexo e a cor do registrando;

2º) o sexo do registrando; (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975).

3º) o fato de ser gêmeo, quando assim tiver acontecido;

4º) o nome e o prenome, que forem postos à criança;

5º) a declaração de que nasceu morta, ou morreu no ato ou logo depois do parto;

6º) a ordem de filiação de outros irmãos do mesmo prenome que existirem ou tiverem existido;

7º) Os nomes e prenomes, a naturalidade, a profissão dos pais, o lugar e cartório onde secasaram, a idade da genitora, do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílioou a residência do casal.

8º) os nomes e prenomes dos avós paternos e maternos;

9º) os nomes e prenomes, a profissão e a residência das duas testemunhas do assento.

9o) os nomes e prenomes, a profissão e a residência das duas testemunhas do assento, quandose tratar de parto ocorrido sem assistência médica em residência ou fora de unidade hospitalar oucasa de saúde.(Redação dada pela Lei nº 9.997, de 2000)

119

Resolução CEPE 565 – Processo seletivo 2008 - UFSCAR

RESOLVE

…………………………………………………………………………………………….

120

Resolução CEPE 543 – Processo seletivo 2008 - UFSCAR

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