mario_ferreira_dos_santos_-_filosofia_e_história_da_cultura_03

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    FILOSOFIA

    E

    HISTRIA DA CULTURA

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    COLEO DOS GRANDES TEMAS SOCIAIS

    Fazem parte desta coleo as seguintes obras de Mrio Ferreira

    dos Santos:

    1) Tratado de Economia I vol.

    2) Tratado de Economia H vol.3) Filosofia e Histria da Cultura I vol.4) Filosofia e Histria da Cultura II vol.5) Filosofia e Histri a da Cultura m vol.6) Anlise de Temas Sociais I \ ii.7) Anlise de Temas Sociais II \ ol.8) Anlise de Temas SociaiS III vol.

    9) O Problema Social

    MRIO FERREIRA DOS SANTOS

    F I L O S O F I AE

    HISTRIA DA CULTURA

    III VOLUME ^ . .,HT0 M. D^ OCH* i*Frr^AQUUCO D -i C D

    ~ 1BJ t&J&Lm

    WMMIm*-r*

    LIVRARIA E EDITORA LOGOS LTDA.Rua 15 de Novembro, 137 8. andar Telefone: 35-6080

    SAO PAULO BRASIL

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    l. a edio Maro de 1962

    ADVERTNCIA AO 10EITOR

    Sem dvida, para a Filosofia, o vocabulrio demxima importncia e, sobretudo, o elemento etimol

    gico da composio dos termos . Como, na ortogra fiaatual, so dispensadas certas consoantes (mudas, entretanto, na linguagem de hoje), ns as conservamosapenas quando contribuem para apontar timos quefacilitem a melhor compreenso da formao histrica do termo empregado, e apenas quando julgamosconveniente chamar a ateno do leitor para eles.Fazemos esta observao somente para evitar a estranheza que possa causar a conservao de tal grafia.

    MRIO FERREIRA DOS SANTOS

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

    N D I C E

    O Pensam ento da Idade Mdia 11

    As Ideolog ias do Sculo XVII I 19

    O Socialismo Utpic o e o Socialismo Cientfico 29

    O Papel da Caracter ologia nos Estudo s Sociais 39

    Anlise dos Tipos Caracterolgico-Sociais 47

    O Tipo Teocrtico 55

    Esquema Genrico do Exam e dos Tipos 61

    Exam e do Tipo Teocrtico 63

    Exam e do Tipo Aristoc rtico 91

    Exam e do Tipo do Empre srio Utilit rio 103

    Exa me do Tipo Social do Servid or 135

    Da Corrupo dos Ciclos Culturai s 145

    Cooperao dos Fac tore s Corruptivos de um Ciclo Cultura l .. 161

    O Nihilismo Empre saria l na Filosofia Moderna 169

    Teorias Natu rali stas da Sociedade 189

    Antes da Catstro fe 195

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    O PENSAMENTO DA IDADE MDIA

    No se pode, para se ter uma ideia clara do que desejam os mostrar neste nosso trabalho , deixar de pa rt ir doexame do pensamento social, que precedeu ao de Montes-quieu e Rousseau. O descon tentamento, que lavrava desdeo movimento da Reforma, levou a muitos a se dedicarem aoestudo das ideias que Plato esboara em sua "Repblica",e no mais extenso dos seus dilogos "Das Leis" . Nesse pe

    rodo, chegaram a ser construdas inmeras comunidadesideais, e abundavam as descries relativas a um mundoideal, em que o leo e o cordeiro poderiam viver como irmos. Nota-se em todos os escritos desse gnero, o intu itode voltar Idade de Ouro, fugir da realidade em que se vivia, construindo aquilo que Munford, com muito acerto, chamou poster iorment e de "utopias dle evaso". Desejavamtodos alcanar a uma sociedade esttica e sem mutaes,que assegurasse aos homens a maior soma possvel de bemestar.

    A "Nova Atlntid a", de Bacon, surge em 1629. To

    ms Campanella, que foi contemporneo de Bacon, escreveu"A Cidade do Sol". Segundo o auto r, esta ficava em altomar , e se chegava a ela aps uma longa viagem. No hdvida que penetrava na elaborao dessas obras, a influncia das estranhas descries relativas aos povos amerndios. Contudo, o modelo platnico influa sempre, comoinflura na utopia de James Harrigton, "Oceana", publicada em 1656.

    O movimento protestante preparava e facilitava a formao de Estados soberanos independentes e justificava emgrande parte os ideais e as prticas dos homens de negcios,dos burgueses em suma.

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    As descobertas abriam um novo campo para o homemde negcios. As estranha s mercadorias, os novos productoseram possibilidades que tra ria m lucros imensos. Atr air asatenes para as terras distantes era um modo de activaro interesse dos consumidores, uma espcie de propagandageral para promoo de vendas, sem o tecnicismo de nossosdias, mas trazendo em suas segundas intenes os mesmosmotivos.

    Seria uma maneira abstracta e parcial de ver a cons-truco dessas utopias e da publicao sempre crescente delivros de viagem como productos apenas de um mvel interessei ro dos mercadores. Mas do que no padece dvida, que tal mvel estimulava em muito a propagao desses relatos, que, por sua vez, correspondiam ao desejo dos povosem conhecer o que at ento estivera oculto, e satisfazer odesejo de encontrar em novas frmulas sociais o que substitusse as velhas formas, que no continham mais em seus

    quadros os desejos de reforma, e no podiam sopitar o descontentamento que crescia constantemente.

    No se pode negar, neste ponto, o papel que o calvinis-mo teve, como no se pode menosp rezar a sua influnciana sociedade francesa.

    A atitude activista do calvinismo ante a vida correspondia perfeitamente ao mpeto burgus, e bem sabemos queessa religio foi poderosa para a formao, embora inconsciente, de indivduos de mentalidade capitalista, como mostra Troeltsch em seu livro "The Social Doctrines of theChristian Churchs" (Trad. inglesa de 1931).

    No podemos tambm deixar de salientar a influncia

    que tiveram os escritos "anti-tirnicos", que surgiram nodecorrer do sculo XVI e entre eles a obra de maior repercusso desse perodo, que foi sem dvida "Vindiciae contratyrannos", atribuda a Dwplessis-Mornay, cujo aparecimento em 1579 serviu de base para trabalhos posteriores, comoo "De jure regni apud Scotos" (1579), de autoria de GeorgeBuchanan, e "De Rege et Regis institutionis", de Jua n deMariana (1605), jesuta, irmo de Suarez.

    Para alguns a "Vindiciae" era de autoria de Languet,mas os estudos mais modernos nos autorizam a aceitar a paternida de de Duplessis Mornay. Er a este um huguenote.Ora, os huguenotes eram partidrios dos feudatrios provin-

    FILOSOFIA E HISTRIA DA CULTURA 13

    ciais contra o Estado Nacional e, sobretudo, lutava Duples-sis-Mornay contra o absolutismo de Lus XIII.

    Encontramos neste livro os principais problemas suscitados pelos contractualistas e revolucionrios dos sculosposteriores. Par te o autor da sociabilidade natu ral do homem, e aceita a tese de que os homens viviam originariamente em grupos totalmente livres do controle social externo.

    O autor da Vindiciae defendia a doutrina da soberaniapopular. O povo fora originaria mente livre e independente,e possua todo o poder poltico. Ao construir o Estado, noentregava esse poder, mas apenas o delegava aos seus representa ntes e governantes. Por isso o povo maior queo rei, e seus representantes so, portanto, superiores a este.

    O governo do rei estabelecia-se graas a um duplo contracto . Primeir amente era feito um pacto entre Deus, o

    povo e o rei, no qual estes dois ltimos concordavam em obedecer a Deus, e o rei prometia governar para glria deDeus.

    O segundo contracto era entre o rei e povo, em que o reiaceitava governar com justia, e o povo se comprometia,dentro dessas condies, a obedec-lo.

    Cabia, assim, ao povo o direito de resistir autoridadergia , desde que ofendesse as reg ras ditadas por Deus. Oautor examinava ps limites dessa resistncia e o modo como deviam proceder nas diversas situaes.

    preciso considerar as condies em que se encontravaa Europa desse perodo, que vai da Idade Mdia ao Renascimento, sobretudo nessa fase em que se manifesta umatendncia crescente para amar-se e cultuar-se tudo quantopertencia Antiguidade clssica. Esta passava a ser umexemplo de afirmao da independncia do esprito humano. Actualizava-se, dos gregos, apenas o que afirmava aliberdade, o que dava autonomia e dignidade ao homem.

    Embora o humanismo surja como um rebento do Renascimento, seu sentido profundamente amplo. Par a Ja-

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    cob Burckhardt o humanismo significa o descobrimento dohomem. O homem torn a a encontrar a si mesmo e afirma--se no s como indivduo mas tambm como "humanidade".

    J o termo "humanista" no s aplicado queles quese dedicam ao estudo de tudo o que constitui a cultura clssica, mas tambm atribudo aos que se dedicam ao estudodo homem em suas relaes, e que propem reformas paraa vida social, e novas escalas de valores, diferentes e algumas vezes opostas escala de valor que vigorara durante aIdade Mdia.

    Propriamente, esse desabrochar do humanismo no seopunha ao que o Cristianismo construra sobre o homem.Mas o que, na verdade, realizava era uma renovao, umaampliao tambm do que permanecera virtualizado durante aquele longo perodo. No de admira r, portanto, queo termo "humanista" apresente, assim, uma certa eqivoci-dade, pois seu contedo noemtico vrio, e algumas vezesat exemplares opostos so classificados de "humanistas". preciso reconhecer que h sempre, na histria da Europa,a predominncia de certo humanismo, pois presente o desejo de valorizar o homem. Mas a varin cia desse valorizar e dos valores que lhe so predicados que permite distinguir uma das outras e tambm caracterizar os aspectosque so tpicos desse perodo, em que se transformou totalmente a fisionomia da histria europeia.

    Poderamos at propor, e nesta afirmao encontrarelementos para fundament-la: que o que d a verdadeirafisionomia ao humanismo dos sculos XV e XVI no propriamente o desejo de retorno Antiguidade clssica,pois a preocupao humana, volvida para tais estudos, j

    vem de muito mais longe, quando se estabelecem os primeiros contactos da cultura europeia com a rabe, que lhe fornece o conhecimento que perdera dos grandes exemplares dacultura greco-romana, mas sobretudo o desejo que se manifesta, desde a Guerra dos Cem Anos, de renovar o homeme a sua vida, de cujas razes julgamos receber seu principal alimento desse grande perodo vivido na Frana, quedespertou no homem europeu um novo querer e novos apetites (1).

    (1) Na Anlise dos Tema s Sociais, volt aremo s a est udar est emomento histrico, apresentando novos argumentos e novas contribuies.

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    Sentiam todos a necessidade de um novo tipo humano,em face da crise que abalara o mundo durante os anos decisivos da Guerr a dos Cem Anos. o anseio de abr ir os horizontes, esse desejo fustico de que posteriormente falarSpengler. H um querer, um novo "patho s da distnc ia",no como um sentir de separao, mas como um sentir daproximidade da distncia, um ir alm de si mesmo e umaconsequente afirmao da individualidade, submetida atento aos quadros da "sociedade feudal e fechada". So osanseios da "sociedade aberta", que sempre se caracterizampor um desper tar da liberdade. E que maior smbolo dessasituao e dessa poca do que a florao estupenda das utopias renascentistas, que so a afirmao mais eloquentedesse mpeto incontido?

    Afirma-se agora a pessoa humana, no mais como umtomo social, que apenas parte de um conjunto harmonicamente estructurado, mas como o possuidor de razes toprofundas, que transcend em a prpr ia humanidade. O homem ento algo que mais do que le mesmo, e a afirmao do indivduo agora a actualizao de aspectos que ultrapassam ao campo do conjunto social. No , pois, deadmirar que entre os msticos cristos desse perodo houvesse tantas afirmaes existencialistas, muito mais profundasat que as agitadas em nossos dias.

    Estamos naquele perodo que se aproxima do sculoXVI.

    Volvem-se aos torneios medievais, cultivam-se, na Itlia, as maneiras cortess j esquecidas, como se cultiva outr a vez Plato. A atmosfera ital iana torna-se cada vezmais nacional. Volve-se, sim, par a a Antiguidade, mas o

    verdadeiro sentido outro. Luta-se contra o absolutismodos prncipes poderosos. o "Pr nc ipe" de Maquiavello osmbolo dessa poca, o prncipe, que recebe receitas polticas para tornar-se o libertador, o absolutista que empreendeo caminho da liberdade. Algo paradoxa l, algo novo, quesurge para indicar vivamente a alternncia dessa poca, queapresenta um carcter: a luta da liberdade contra o absolutismo. No que essa luta estivesse desaparecido da vidahumana, mas sem dvida estivera amortecida durante o longo perodo medieval em que os olhos estavam voltados paraoutras realidades.

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    0 humanismo, nesse perodo, j havia se instalado emRoma, e na cria papal apresentara seus frutos.

    Mas preciso buscar razes mais longnquas. preciso no esquecer o imenso papel que teve o movimento cis-tercense, cuja Abadia de Cluny o smbolo desse perodo, e

    que So Bernardo de Clairvaux o exemplo mais elevadoda religio ainda senhorial, do ascetismo rigoroso e severo,que se opunha s manifestaes livres dos instintos naturaisda poca cavalheiresca.

    Olhemos par a a imponente abadia de Cluny. Pareceainda um poderoso e agressivo castelo. algo que surgeda terra , mas que se liberta da terr a. Algo que se elevaacima dela, que dela se desprende. E o ascetismo senhorialde Bernardo de Clairvaux algo que se desprende da terra, uma luta sem quartel contra os instintos, a submissototal da terra ao esprito, a humildade que oculta o mandodescomedido, a decidida orientao firme, que leva a umAbelardo, que flutua por entre suas antteses, frieza doclaustro, onde morrer afinal.

    o homem voltando-se de costas vida.

    Mas o homem quer encontr ar a realidade. Irrompena Universidade de Pari s a polmica das universais. Ondea realidade: na coisa ou nos conceitos? A pergu nta insistente e as respostas variam. Toda a inteligncia mobilizada par a resolver a controvrsia que surge. O homemquer agora achar a essncia do mundo. E toda essa polmica simboliza, por sua vez, o perodo de profundas renovaes que se inaugura, pois cada uma das posies declaraque o homem afirma-se agora ante si mesmo e ante as coisas.

    O homem, nesse perodo, universaliza-se cada vez mais.A luta agora pelo domnio do universal. Essa polmica outro smbolo, e os grandes representantes desse momento, porque inauguram e asseguram o domnio humanodas universais, so Alberto Magno e Toms de Aquino.

    O Papado perde a sua fora, embora aparentementeparea ainda possu-la. O homem ocidental, o homem moderno, nasce nesse perodo. Dante fora o homem dos doisperodos. um producto do que passou, mas sua obra abr eo caminho par a as novas perspectivas. O Renascimento inevitvel!

    FILOSOFIA E HISTRIA DA CULTURA 17

    na luta dessa alternncia entre o passado e o presente de ento, que o renascimento italiano aflora com novasafirmaes. A antiguidade clssica o pretexto, pois oque na verdade h o desejo da afirmao universal, humanista, j que o homem volve agora os olhos para horizontes mais largos.

    Sente-se a necessidade de conceber a vida de outra maneir a. impossvel prosseguir no campo das tradies consagrada s. H uma corrente que toma uma s direo, e aAntiguidade o pretexto . Inicia-se o humanismo como ummovimento meramente intelectual, parecendo tratar-se apenas da investigao dos conhecimentos antigos, como sefosse apenas um assunto de cultura e ilustrao.

    Mas, na verdade, j h um novo tipo de homem que seforma e se fortalece, um tipo egocntrico, com uma vivncia prpria , com uma experincia interio r. Os humani stasno se contentam, porm, com um trabalho meramente indi

    vidual de pesquisa e de ilustrao. Tornam-se propagandistas, levam suas ideias e seus descobrimentos a toda parte.Compreende-se agora o smbolo de Maquiavello.

    Mas h outro smbolo que esplende, aqui, marcando osurgimento do homem moderno de uma maneira ainda maisefectiva e enrgica.

    Cristvo Colombo. Figura dinmica e intensa doRenascimento, nele vemos a coincidncia do anseio lucrativo(que nos vai explfcar o homem do capitalismo, que to profundamente estudar em nossos dias Werner Sombart) e oideal. Tem le um imenso poder pessoal. o tipo do empresrio, um conottieri moderno, e que termina por revolucionar a Histria. A descoberta da Amrica abre umnovo captulo para a humanidade.

    Todo o trabalho, que antecedera o perodo das grandesnavegaes, fizera-se lentamente.

    Por volta de 1250 a 1319, j havamos assistido s lutas dos grmios na Flandres e, depois os movimentos semi--proletrios dos anos de 1338, 1384, de 1395 e a grande sublevao popular em Paris de 1357, com essa espantosa figura frente, o aougueiro Etienne Mareei. Faltava m, contudo, ideologias a esses movimentos.

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    Os movimentos religiosos desse perodo revelam mpetos libertrios, a reforma surge, e um anseio de democraciaavassa la os povos. Busca-se a liberdade, luta-se por ela,quer-se romper os vnculos do passado. O ambiente pro pcio ecloso das utopias.

    Desaparece aos poucos o mundo cavalheiresco, enquanto a burguesia se impe cada vez mais. Novas foras ir rompem, que lutam pela sobrevivncia e pela afirmao,que j prenunciam o mpeto de domnio que depois delase apossar.

    Revela-se esse mpeto nas modas que eclodem no sculo XIV, com suas extravagncia s escandalosas. A luta contra o tradicionalismo, e a licenciosidade torna-se desenfreada. A dissoluo invade todos os sectores, avassalaat o alto clero.

    Mas sempre h a alternncia das formas opostas. Um

    ressurgimento mstico, quase pantes ta, manifesta-se a tra vs de um Meister Eckhardt, de um Ruysbroeck.

    Surge, ento, o grande movimento da reforma, depoisdo malogro do conclio de Basileia. Combate-se a escolstica, procura-se volver ao primitivismo cristo. o perodo de Erasmo e de Lutero. Todos os elementos revolucionrios e subversivos encontram ambiente para novas ecloses. A revoluo toma um carcter universal.

    A cincia moderna desabrocha, e a concepo coperni-cana invade o mundo intelec tual. Quem pode negar o imenso papel que teve a descoberta de Colombo para a vitriadas novas ideias cientficas? E que imenso papel a viagem

    de circunavegao do mundo de Ferno de Magalhes, queconfirma a esfericidade da terra?

    A tenso europeia descarrega-se para os novos mundosdescobertos, e Portugal e Espanha do ao mundo novos mundos. O Papado cede ante os dois conquistadores, e divideo mundo entre eles, como consta do Tratado de Tordesilhas*.

    AS IDEOLOGIAS DO SCULO XVIII

    incontestvel a influncia que a Revoluo Industrialexerceu na formao das ideologias do sculo XVIII, semque tal influncia negue o papel de outros factores, entreos quais queremos salientar os conhecimentos acerca dosindgenas americanos, brasileiros, etc.

    Dentre os papis importantes exercidos pela revoluoindustrial, podemos salientar as transformaes revolucio

    nrias que se processaram em vrios sectores tcnicos e nadiviso do trabalho , assim como o aumento e facilidadesdos trans portes . Nota-se, alm da criao de fbricas, umaconcentrao constante do proletariado em cidades industriais, com uma disciplina de trabalho e uma reduo dopoder do artesanato, que vo influir decididamente numanova viso dos problemas sociais, tambm influenciados pelos resultados econmicos e pela formao de novos subesta-mentos sociais.

    Sem dvida que o progresso da tcnica permitiu ummaior desenvolvimento da cincia aplicada, sem que neguemos o valor dos estudos e investigaes tericas . O aban

    dono cada vez maior da ferramenta pela mquina foi apouco e pouco diminuindo a influncia do artesanato.

    A produco em maior escala, e a preos de custo maisbaixos, permi tiu o desenvolvimento das operaes comerciais. Como consequncia, novas relaes sociais e culturais foram estructurando-se, pois o fomento natural da indstria exigiu a aplicao de novos capitais, assim comoa uma subordinao cada vez mais constante das classestrabalhadoras ao capital.

    Por outro lado, as normas sociais vigentes no erammais congruentes com o avano do capitalismo, que no podia deixar de exigir cada vez mais liberdade para a sua

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    aco e no podia tolerar os privilgios feudais ainda existentes, que lhe obstaculizavam o desenvolvimento.

    Senhora j do poder econmico, a burguesi a queri aparticipar do poder poltico, e no s participar dele, mast-lo em suas mos. As teorias at ento dominantes, quedavam nobreza um valor superior ao resto da populao,eram um obstculo aos desejos burgueses . No entanto, asideias da "bondade natural", da bondade do homem primitivo das selvas, era um argumento em favor dos direitosda burguesia, pois, neste caso, os direitos dos nobres notinham nenhum fundamento j que todos eram naturalmente iguais.

    Na luta pelos direitos polticos, a burguesia no podiadeixar de desenvolver e estructurar firmemente todas aquelas ideias que justificavam os direitos que ela queria possuir. O bom selvagem era o bom cidado e, finalmente, obom burgus.

    Mas a revoluo industrial trouxe consigo as grandesconcentraes proletrias e o aumento da misria das classes trabalhadoras, o que era inevitvel num desenvolvimento que se fazia desordenadamente. O descontentamento das massas trabalhadoras era inevitvel, e o quadro demisria no poderia deixar de impressionar vivamente osespritos humanitrios, os quais propunham solues e, da,as utopias desse perodo, que, pela influncia dos conhecimentos cientficos, foram agregando, a pouco e pouco,no s razes de ordem tica, mas tambm de ordem sociolgica.

    Pode-se dizer, sem o menor receio, que a Revoluo In

    dustrial foi a gestadora da sociologia cientfica de nossosdias.

    A primeira tentativa de soluo, ante os problemas quesurgiam da complexidade social, ocasionados pela revoluoindustr ial , foi inegavelmente esse conjunto de ideias quepodemos englobar sob o nome genrico de "liberalismo econmico" . Ora, a tese fundam ental do libera lismo econmico era a "ordem natural" e a "bondade natural" do homem,que "le bon bourgeois" tambm possua, j que at os selvagens a revelavam.

    Havia necessidade de justificar filosoficamente o "lais-sez faire". Era o liberalismo econmico o remdio que se

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    oferecia aos males resultantes da revoluo industrial, enquanto que os fundamentos coloniais e antiquados do mercantilismo medieval eram um bice ao novo desenvolvimento.

    Os propugnadores do liberalismo econmico foramaqueles autores do sculo XVIII, que passaram para a histria da Economia com o ttulo genrico de fisiocratas. Emsuas ideias gerais, defendiam o individualismo, e fundavam--se na convenincia da inactividade estatal, para combatera legislao ainda vigente. Salientam-se, entre esses autores, Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781), ao lado doescocs Adam Smith (1723-1790). Seus estudos inf luramna teoria-trabalh o do valor, posteriormente defendidapor Ricardo e os socialistas. As teorias de Smith influram decididamente nas ideias fundamentais da nova classecapitalista, e teve discpulos que grav aram par a sempreseus nomes na histria da Economia, como sejam ThomasRobert Malthus (1766-1834), David Ricardo (1772-1823),James Mill (1773-1836), etc. Pode-se, contudo, notar facilmente que a doutrina de Smith ma is bafejada pelooptimismo que as de seus discpulos, mas em todos h sempre a crena na "boa ordem natu ral das coisas". Na F ran a, teve o liberalismo econmico seus grandes cultores emJean Baptiste Say (1767-1832) e Frdric Bastiat (1801--1850).

    Muitos consideram o liberalismo econmico uma ideologia capitalista, afisim como o socialismo seria uma ideologia proletria . H restrices, contudo, a fazer a essasafirmaes pois inegvel a influncia das ideias sobre abondade natural, e vrias vezes recorre-se ao exemplo dosprimitivos para justificar que h uma boa ordem, que surgecia natureza das coisas e do homem, sem a necessidade dainterveno do Estado, que desvirtua a realidade, pela suaaco artificial e falsa (1 ).

    H trs fases que so nitidamente distinguveis no desenvolvimento utpico na Europa. Na primeira fase, propriamente medieval, que alcana os primrdios do Renascimento, as utopias fundam-se ainda no pensamento cristo

    (1) Preci sarem os, em Anlise dos Tema s Sociais, a nossa posio sobre o liberalismo econmico.

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    e sobretudo catlico. Preten dem elas apenas a realizaodos ideais cristos, que os homens haviam esquecido. No um anseio de algo que supere os fundamentos religiososda sociedade, mas, ao contrrio, a realizao plena do quefoi pregado no Cristianismo como a verdadeira vida crist.

    No perodo do Renascimento, as utopias no se opemao Cristianismo, mas apresentam formas sociais que deveriam ou poderiam viver ao lado da sociedade crist.

    no perodo das ideologias da idade moderna, ondeencontraremos o divrcio entre o pensamento cristo e opensamento social, onde a questo social examinada, e soproposta s solues que nem sempre se coadunam com osprincipais preceitos do Cristianismo.

    Poderamos sintetizar, dizendo que as utopias da idademdia so religiosas; as do Renascimento, laicas; e as daidade moderna, genuinamente revolucionrias, e predomi

    nantemente acrists, embora no anticrists.Alm dos diversos aspectos que temos salientado nos

    vrios captulos, que compem este trabalho, queremos salientar outros que muito contribuem para a boa compreenso do material que necessitamos par a a justificao denossa tese.

    Nos comeos da Idade Mdia, houve modificaes profundas na forma de produco. A especializao cresceucada vez mais, e ao chegar ao Renascimento j possua umaheterogeneidade, que anunciava o que seria em nossa poca.

    No s a diviso do trabalho permitiria essa especia

    lizao, mas tambm contriburam, como factores importantes, a complexidade da vida cultural, o desenvolvimentoda economia monetria, o crescimento da secularizao, aquebra do isolamento em que se encontrara a Europa desdeas lutas com os rabes, para, agora, romper novos horizontes, abrir novas perspectivas.

    O artesanato encontra pela frente a figura do empresrio, que organiza a produco artesanal, montando comunidades inteiras de trabalhadores a domiclio. J numabase de grande especializao, surgem as fbricas, cujoaparecimento se d antes da mquina a vapor, complexio-na-se a especializao do conhecimento, e surgem aqui os

    FILOSOFIA E HISTRIA DA CULTURA 23

    precursores dos antroplogos, dos economistas, dos cientficos da poltica e dos socilogos especializados.

    Foi inegavelmente no sculo XVIII que a concepo do"bon s auva ge" ganhou em extenso e em intensidade. preciso ressaltar a obra do jesuta Franois Lafitau "His-toire des descouvertes et conqutes des Portugais dans le

    Nouveau Monde", Paris, 1773, onde le prossegue a descrio do indgena brasileiro, fundando-se e corroborando ostestemunhos ante riores. Mas foi sua obra "Moeurs desSauvages Amricains Compares aux Moeurs das AnciensTemps", publicado em Paris, em 1724, que merece especialdestaque, pois encontramos a um precursor da doutrina deJean Jacques Rousseau.

    Grande estudioso do assunto, examina Lafitau, a semelhana que h entre o estado natural dos ndios americanos e os povos da antiguidade.

    Entretanto, o livro de maior repercusso no sculoXVIII foi a obra do Padre Raynal, que teve, naquela poca,20 edies e cerca de 50 edies clandestinas. Apesar deapresentar muitos defeitos, falhas e inexactides, teve esselivro um importante papel na formao das ideologias quese desenvolveram e actuaram durante os perodos tempestuosos da Revoluo Francesa.

    DIDEROT E A ENCICLOPDIA

    Nunca demais encarecer o imenso papel que teveDnis Diderot na formao das ideias revolucionrias do

    sculo XVIII em dian te. Grande a obra de Diderot, emuitos de seus livros foram publicados com os nomes deseus contemporneos, mas h em todos um imenso materialmuito important e. Dentre os homens que realiza ram a"Encyclopdie", inegavelmente, Diderot foi o que exerceumaior influncia. Homem de grande saber, dotado degrande memria, possua um vasto conhecimento em quasetodos os sectores.

    No foi Diderot um panegirista dos ndios americanos,mas, de qualquer forma, no se opunha opinio geral.Em suas "euvres Completes", vol. VI, pgina 451 em dian-

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    te (Ed. Garnier), no fragmento "Essaie sur le charactrede 1'homme sauvage", afirma a bondade natural, que se revela pelo amor liberdade, pelo brio, pelo esprito de justia, pela inocncia, pela resignao, pela indiferena comque aguarda a morte, pela capacidade de seguir a sua razo

    e no deixar-se a rr as ta r por preconceitos. Tambm emseu "Supplement la voyage de Bougainville" (OeuvresCompletes, Vol. II ), le ratif ica e corrobora as suas opinies, afirmando a bondade natural dos habitantes doTahiti.

    importante o papel que exerceu a "Encyclopdie" ou"Dictionnaire raisonn des sciences, des arts et des mtiers"nas ideias fundamentais das ideologias da Revoluo Francesa.

    PARALELO ENTRE O PENSAMENTO DE PLATO E

    O DE ROUSSEAU

    A sociedade humana, para Plato, tem sua origem emserem heterogneas as necessidades dos homens em comparao s dos outros animais, o que o leva, como consequncia, diviso do trabalh o. Por carecer de bens diversos e,consequentemente, ser vrio o seu apetite pelas coisas, impossvel ao homem satisfaz-lo por si mesmo, o que o levaa uma multiplicidade de aces productivas, mais facilmente feitas por uns que por outros, o que gera a diviso dotrabalho, que uma raiz predisponente, sem dvida, da

    cooperao, do apoio mtuo, que fundamenta as sociedadestribais primitivas.

    Este o esquema fundamental do pensamento platnico, e sobre le que constituir toda a constelao esquemtica da "Repblica". Pa ra le, o Estado uma unidadeintegra da pelos que tm necessidade e pelos que trazembens capazes de satisfaz-los. So assim consumidores eproduct ores. Se todos os produc tores so consumidores, ainversa no , na Economia, verdadeira.

    A di ferenciao fundamental dos homens e das suasaptides faz que uns sejam pescadores, outros caadores,cutros teceles, etc. Ademais, a diviso do trabal ho revela

    FILOSOFIA E HISTRIA DA CULTURA 25.

    que, graas a essa cooperao, o homem capaz de conseguir maior nmero de bens em troca de menores esforosdo que se cada um tivesse de obt-los exclusivamente peloseu nico esforo.

    de se notar, o que no tem sido feito pelos que estudam a obra platnica, que, nesta, est incisiva e latente abase do seu mtodo, e tambm da sua profunda posio filosfica. A verdade no uma criao do homem, nemo homem gera do nada as coisas que cria. O homem ocaptador das verdades, que j esto a desde toda eternidade, porque a verdade j est dada desde sempre, eternae coeterna com o Ser, o Bem supremo. Ns, seres, vindosdesse Ser, esquecidos da verdade, graas nossa experincia, catharsis da nossa actividade intelectual, captamo-lanovamente, esesquecemo-la (e no em vo que verdade,em grego, aletheia, que significa o que desesquecido),tornamos a conhec-la. Assim o homem, em sua forma pr imitiva e mais natural, heterogneo por natureza, reveloudesejos vrios e necessidades vrias, que exigiam o aplaca-mento, que s poderia ser conseguido com o uso de bens porsua vez heterogneos, cuja produco exigia a heterogeneidade das funes productoras, o que gerou a diviso do trabalho pela limitao do tempo, que impedia que cada umfosse capaz de suster-se normalmente a si mesmo sem auxlio dos outros. Mas esse auxlio mtuo revelou, por sua vez,que a cooperao dos esforos gera a diminuio do esforode cada um na obteno da maior soma de bens, verdadeque a vida e a experincia revelaram ao homem, e que, infelizmente, at hoje, os povos ainda no compreenderam emtoda a sua extenso.

    Nota-se, assim, que os fundamentos esquemticos da"Repblica" de Plato fundam-se em realidades experimentadas pelo homem, em verdades que estavam esquecidas, epassaram a ser desesquecidas. Dizer-se que Pla to meramente um utopista, na acepo pejorativa que esse termotoma certas vezes, um grave erro.

    Uns precisam dos outros. O homem, que sulca os campos para o plantio, precisa do ferreiro, e este do mineiro,assim como o sapateiro, do couro dos bois do criador.

    E foi o aumento da produco, graas cooperao dosfactores daquela, homogneos enquanto foras vivas detrabalho, mas heterogneos quanto aos resultados finais,

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    o que permitiu um superavit, e surgissem as possibilidadesdo escambo entre povos diversos, que trocavam entre si oque sobrava de suas mais exigentes necessidades. E da,atravs das trocas, o comrcio e o progresso tcnico, queaquele iria exigir com o decorrer do tempo.

    a vida que ensina que cada um se revela melhor noque mais apto. E se h escolha, escolhem-se os mais ap tospa ra as funes. Numa tribo primitiva, no se escolhepara dirigir a caa o que mais simptico, nem o que maisdemagogicamente afirme que o mais capaz, mas sim o quese revelou como tal. A demagogia a nada consegue, massim a aptido j demonstrada. Escolhem-se os melhoresent re os bons e mais aptos. Essa sabedoria na escolha, quepreside sempre s tribos primiti vas, era o que admiravaPlato, e le tambm sabia que surgia nessa capacidade ju-dicativa de razes suficientes naturai s. No entanto, ao verc espetculo da democracia grega, tal no se dava. A "canalha suja e graxenta do Pireu", por ser mais numerosa,

    predominava sobre os mais cultos e mais capazes, e era,consequentemente, mais facilmente escolhida, por proporem,demagogicamente, a soluo mais fcil dos problemas dasmultides. A democracia grega no podia cheirar bem aoelfato nobre e aristocrtico de Plato. E ademais era umaexcrescncia para le, e anti-n atural . Volvia, por isso, osolhos para as formas primitivas, que revelavam maior sabedoria. E como no era possvel ao ateniense voltar a viver o primitivismo, Plato no pregava retornos naturistas,mas apenas retorno s formas mais sbias, e da a necessidade da diviso das classes habilitadas cada qual s funesque o Estado (a Repblica) exigia. Enquanto a escolhano recasse sobre os dignamente escolhidos (os melhores,

    cristos), e que a esses coubesse a direo dos negcios pblicos, a sociedade estava sujeita a ser arrastada pelos mpetos da sem-razo, do irracionalismo profundamente afectivo das massas humanas.

    A utopia platnica , assim, uma utopia involucionriaem certo sentido, pois no prope um retorno das formasde vida, mas sim das formas judicativas no mbito social--poltico. A autoridade no par a le apenas o resultadode uma investidura, por que essa autoridade, por no possuir o mrito in trnseco, torna-se odiosa. A verdade iraautoridade a da funo, a que imanente ao que a possui.

    FILOSOFIA E HISTRIA DA CULTURA 27

    A investidura, nesse caso, apenas o reconhecimento pblico, chancelando de jure o que j existe de facto.

    Se voltamos agora a Rousseau, encontramos em seu"Discours sur 1'origine et les fondements de 1'inegalit..."uma descrio idlica da vida primitiva, inegavelmente influda pelo conhecimento que tinha da vida primitiva e belados ndios brasileiros. Rousseau reproduz em muitos aspectos a descrio platnica. Seus olhos esto voltados pa raa, Amrica. le quem fa la: "N o ouso assim falar desta snaes felizes que no conhecem, at, o nome dos vcios que

    t ns custamos tanto a reprimir; destes selvagens da Amrica, dos quais Montaigne no hesita preferir a simples enatural polcia, no somente s leis de Plato, mas at, a1udo o que a filosofia poder jamais imaginar de mais perfeito para o governo dos povos." "Le bon sauvage" inegavelmente o factor predisponente mais importante na formao da concepo utpica de Rousseau. Tal afi rmat ivaprovocou repulsas. E cont ra Rousseau ergueram-se os ar

    gumentos de Stanislas Leczinski, rei da Polnia, e tambmde Gautier, na Frana, que negavam, com argumentos infundados e exagerados, a bondade natural do selvagem.

    Tais acusaes contriburam at para maior renome deRousseau, porque suas ideias encontravam um campo acessvel e j predisposto a aceit-las. Na obra acima citada("Discours sur les sciences et les arts", Ed. Neuchtal, Paris, 1764, no prefcio), h outras passagens em que afirmaa sua crena firme em uma "idade de ouro", como tambmo afirmava Plato.

    A obra de Rousseau influiu sem dvida em toda a Frana, no sendo infesas essas influncias at em Lus XVI eem Maria Antonieta, que, em sua corte, procuravam viver,com os cortesos, formas naturais campestres, realizandoretornos naturez a propostos por Rousseau. inegvel ainfluncia do pensamento de Rousseau sobre as ideologiasde Cabet, Louis Blanc e at sobre o anarquismo de Prou-dhon, apesar de considerar-se este um adversrio intransigente do "cidado de Genebra".

    Cabet par tiu depois para o Novo Mundo, par a fundaruma repblica de crentes, entregues a uma vida natural deacordo com suas ideias utpicas de um socialismo comunitrio.

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    Valtando ao pensamento de Plato, criticam-no alguns,como Hume, que sua concepo errnea, pois implica umconhecimento anter ior prp ria experincia. Os homensperceberiam, sem nenhuma experincia anterior, o valor dacooperao e da diviso do trabalho, e, como resultante dessa percepo, iniciariam relaes sociais.

    Ademais, embora muito pri maria ment e, observa-se adivso do trabalho ent re os animais. O que inicia a sociedade a natural tendncia do homem associao, e noa reflexo da sua utilidade. E inegvel que factores pre disponentes ecolgicos tiveram influncia na formao dasociedade humana.

    A crtica, procedente em certos aspectos, no o emoutros, pois, nesse caso, a associao seria sempre posteriore o problema surgiria de qualquer forma, ante a Filosofia.A doutrina platnica , infelizmente, mal compreendida. Noh passagens na sua obra em que afirme que o homem no

    seja coexistente com a sociedade. Mas h sociedade e sociedade, o que convm distinguir. Por ser um bissexuadoe exigir em sua infncia o apoio demorado maternal, o serhumano natur almen te social. Surge de qualquer modoem sociedade, e nela persiste. Mas o que Plato quer salientar a heterogeneizao complexa da sociedade que seforma pela multiplicidade dos apetites, que correspondema heterogeneidades naturais do homem, considerado comoindivduo. A sociedade coexistente com o homem, mas asua complexidade segue-se a posteriori.

    O SOCIALISMO UTPICO E O SOCIALISMOCIENTFICO

    As grandes perturbaes sociais e econmicas, queafectaram sobretudo a classe mdia e o proletariado, devido Revoluo Industrial, fomentaram diversos planos deleforma social, em face do agravamento da misria e dainjustia. Mas esses planos utpicos caracterizavam-se,sobretudo, pela falta de um contedo histrico e sociolgicomais profundo, e eram constitudos, em sua maior parte, de

    solues desejadas, e no propriamente congruentes com arealidade social de ento. Essas ideias, pela falta de factores reais mais consentneos, e por serem mais productosda imaginao e fundarem-se apenas na vontade dos homenspara a sua realizao, sem apoio nos factos, mereceram acensura posterior dos socialistas chamados cientficos, queembora aceitando muitas das premissas mais antigas, nodeixavam de salientar o carcter ficcional de tais reformas,que mais correspondiam aos desejos longamente alimentados, do que s possibilidades reais histricas da sociedadeeuropeia.

    Apesar de tudo, fazendo justia a essas doutrinas, se

    as compararmos com as utopias que vo at o sculo XVII,eram elas mais prticas e mais solidamente constitudas narealidade dos factos, o que, contudo, no impediu que sofressem a crtica demolidora dos psteros, muito embora,em muitos aspectos, imponha-se hoje uma reviso, pois havia, nessas mesmas utopias (e aqui a acepo a pejor ativa), muito mais realidade histrica e fundamentos mais slidos, que em muitas das doutrinas posteriores, que se julgavam altamente cientficas, com fundamentos to poderosos que a sua inevitabilidade seria indesvivel.

    O socialismo utpico caracterizava-se por opor-se decididamente s fundamentais p remissas do liberalismo. A

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    sociedade, entregue a si mesma e s suas leis, geraria o quesempre gera ra: a opresso, a explorao do homem pelohomem, a misria imensa de quase todos, e a riqueza incomensurvel de poucos privilegiados. Combatia, assim, oromantismo na poltica, e defendia a tese de que o intelecto

    e a vontade humana so suficientes para organizar umaordem social capaz de assegurar o direito de todos e evitaras exploraes de quase todos por uma minoria privilegiada.

    Sustentavam que a natureza humana producto dascondies sociais e que se estas fossem devidamente mudadas, mudar-se-ia consequentemente o proceder do homem.Pode o homem, com a razo, construir uma ordem socialmais justa, assim pensava Fourier.

    Uma figura extraordinria do chamado socialismo utpico sem dvida Saint-Simon (1760-1825). le o pre cursor da sociologia de Comte, e tambm do "socialismo

    crist o". Seus discpulos mais famosos foram Enfant ine eBazard, que afirmaram os princpios comunistas do cristianismo primitivo, que tanto impressionaram Saint-Simon,e assim como Leroux, que defendeu a ideia da igualdadesocial e moral dos homens (tese cuja origem e fundamentos so influenciados pelo conhecimento da vida dos amerndios) e, posteriormente, Comte, que tentou sistematizartudo numa ampla doutr ina, com apoio em fundamentoscientficos e elementos da cincia social.

    Mas, o mais extremado dos utopistas franceses foi semdvida Franois Marie Charles Fourier (1772-1835). Acreditava que bast aria a reforma da ordem social par a refor

    mar os homens. Sua comunidade cooperativa ou "fal ans-trio" seria a base dessa sociedade, que se comporia de umafederao de falanstri os. Suas ideias, se pouco influramna Europa, tiveram grande repercusso na Amrica, ondese iniciaram a fundao de muitas sociedades fourieristas.

    Outro utopista notvel foi Etienne Cabet (1788-1856),cujos discpulos tentaram realizar, no Texas e em Illinois,comunidades experiment ais por le preconizadas. Ent re osingleses, podemos salientar Robert Oiven (1771-1858), cujavida agitada e activa deixou uma obra realmente proveitosa, que foi a cooperao, base do sistema cooperativistade nossos dias. Ent re os anarqui stas, podemos citar Wil-

    FILOSOFIA E HISTORIA DA CULTURA 31

    liam Godtvin (1756-1836) e o maior de todos desse perodo, que certamente Pierre Joseph Proudhon (1809-1865),que lutou vigorosamente contra o Estado burgus, atacando o Estado policaco, certo e confiante de que a ordem ea anarquia podiam realizar-se plenamente, assegurando umasociedade perfeita, sem a necessidade da coaco da lei e o

    direito.Pode-se considerar Proudhon como um marco que se

    coloca entre o "socialismo utpico" e o "socialismo cientfico", esse socialismo de transio, que antecede a pocamoderna.

    Marx, no incio, saudou-o como um socialista cientfico. Posteriormente lhe negou os mritos que proclamara,por motivos que oportunamente veremos. Mas seja comofr, h em Proudhon teses de tal actualidade que no sejus tif ica, de modo algum, o abandono em que jazem suasobras, nem os problemas e temas que exps, os quais, sedevidamente examinados, poderiam ainda oferecer muitascontribuies, que em grande parte auxiliariam a dissiparo clima de confuso em que vivem as ideias sociais daactualidade.

    Outra figura do socialismo, cuja importnctia convmassinalar, a de Fernando Lassalle (1825-1864), que sepode considerar o grande defensor do socialismo de Estadae precursor, sob muitos aspectos, das doutrinas totalitrias,que tm agitado a#nossa poca.

    Louis Blanc (1813-1882), que teve um papel to importante na revoluo de 1871, na Commune de Paris, sustentava o papel do proletariado na formao da nova socie

    dade e um dos precursores do sindicalismo e do socialismo guildista.

    Uma rpida anlise desse perodo nos mostra claramente que as condies de vida, cheias de perturbaes econmicas, que haviam sido provocadas pela Revoluo Industrial, naturalmente fizeram aumentar os mpetos hu-mani tari stas . Na amlgam a das ideias que vinham dasdiversas utopias do passado, encontrava-se o fermento dosnovos conhecimentos e, sobretudo, a influncia que as novasideias cientficas teriam naturalmente de exercer sobre o^pensamento social.

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    A Revoluo Comercial, que surge na poca do mercantilismo, provocara a formao de utopias de evaso. O retorno natureza ou a uma forma social primitiva era umdesejo de fuga to fia predominante.

    Na poca de Revoluo Industrial, as utopias, que surgem, tem um outro sentido. Tentavam apenas eliminar osobstculos para a conquista do bem-estar e para a soluodos problemas sociais complexos, sem abandono, porm, dasconquistas da tcnica e da civilizao. A natureza humanano se realizava plenamente porque era obstaculizada pelaestructura social, cuja reforma pacfica ou violenta permitiria que o homem alcanasse o que desejava para o seubem.

    No estvamos mais no campo das utopias religiosasda Idade Mdia, nem nas utopias de evaso do Renascimento, mas nas quimeras que se propunham herdar a cul

    tura e a civilizao, pondo-as porm ao servio das populaes empobrecidas e miserveis.

    O liberalismo econmico, sob a gide do manchesteris-mo, o "laissez faire", tinha impedido, sem dvida, um grande nmero de reformas que se impunham. Em nome da liberdade econmica, o homem ficava cada vez mais escravizado em benefcio de uma minoria. Er a natu ral que istogerasse o dio indevido contra tal doutrina, que fora falsificada intencionalmente para servir aos interesses de poucos.

    Era necessrio elaborarem-se leis preventivas, dar assistncia social aos pobres, e preparar uma legislao que limitasse o poder dos dominadores, mas via-se que as leis quesurgia m, no trazi am as melhoras prometida s. Er a natural que o desespero se apossasse das multides e que asideias revolucionrias encontrassem um campo propciopa ra se disseminarem. E este foi o espetculo dum mundoonde se construiu uma vasta literatura rebelde, e os mpetos revolucionrios explodiam em movimentos sangrentos."Tudo isto preparava, inegavelmente, o ambiente para a entrada espetacular na histria de Marx e Engels.

    FILOSOF IA E HISTRIA DA CULTURA 33

    COMENTRIOS

    Se as ideologias revolucionrias aparentam ter abandonado as premissas fundamentais do homem natural e dabondade natural do homem, tal viso corresponde realidade dos factos.

    No ano de 1787, dias antes da Revoluo, Babeuf, discpulo de Rousseau, pregava a bondade natural do homem.Afirmava le que a perfeita igualdade s poderia se construir onde o solo no fosse de ningum. Harmand, respondendo s objeces de um jacobino, que procurava justificar no estado de natureza a desigualdade humana, exclamav a: "No Estado de natureza, le (o mais fraco) podiadisputar seus alimentos s feras, enquanto os homens maisferozes do que elas, lhe obstaram esta faculdade pela sujeio socia l; de sorte que no se sabe o que mais se deveadmirar, se a insensibilidade impudente do rico, se a pacincia virtuosa do pobre" (1).

    Cabet, Louis Blanc e at Proudhon foram incansveisadversri os de Rousseau. Contudo, todos eles aceitaram atese da bondade natural do homem, e da se oporem violncia. Georges Renard afirma que os revolucionrios de1848 criam na bondade natural e no foram poucas as vezes em que se fundavam nos textos que descreviam a vidados povos amerndios, para deles extrarem elementos comque fundamentavam as suas teses.

    O MARXISMO

    Sem dvida, o rompimento entre Marx e Proudhon um dos acontecimentos mais importantes na histria do socialismo. Esse momento decisivo, pois Marx, que at ento mostrara admirao pela obra de Proudhon, passou aatac-lo, o que o levou, em sua obstinao, a colocar-se emposio diametralmente oposta.

    No vamos por ora estabelecer uma sntese da teoriamarxi sta. Interessa-nos ela, contudo, sob o ngulo dautopia.

    (1) Jau rs : La Convention dans L'Histoire Socialiste>, Vol.2, pg. 1496. Ed. J. Pouff Paris).

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    De Hegel, aproveitou Marx o mtodo dialctico e tambm a sua f sem limites no papel do Estado . Aqui vemosque se apresenta diametralmente em oposio ao pensamento proudhoniano, no segundo aspecto, pois se de certo modoProudhon aceitava algo da dialctica hegeliana, negava va

    lor sntese.De Feuerbach e de Heeren, colheu a tese do materialismo histrico, assim como de Ricardo, e Rodbertus, a teoria sobre o trabalho-va lor. A ideia da plus-valia, le a encontrou nas obras de Thompson, como a da luta de classes,em Louis Blanc e em Proudhon.

    Sismondi afirmara que os capitalistas iriam cada vez.mais se enfraquecer, devido concentrao da riqueza emsuas mos, tese que fundamental do marxism o. Aceitara possibilidade de uma sociedade sem classes, ou melhor, deuma sociedade primit iva sem classes, inegavelmente aaceitao de uma realidade j vivida pelos povos amerndios, embora tambm tenha sido vivida pelo mischpat judaico. Aceitava tambm o princpio de certos direitos naturais, tese que vem dos utopistas do Renascimento, influenciada sem dvida, como j o mostramos, pelos conhecimentos adquiridos sobre os amerndios. A idade de ouro pa raeles se daria no futuro, assim como o era para Saint-Simon.O homem realizaria o que, messinicamente para Marx, seria realizado pelo proletariado.

    Afirmava Marx claramente, no seu famoso "Manifesto Comunista", que era necessrio destruir os bices queimpediam as massas proletrias de realizar uma sociedadesem classes, o que uma afirmao da bondade natural dohomem.

    Engels, em "L'Origine de la Famille", diz:"Quando se organize novamente a produco sobre a

    base de uma associao livre e igual dos productores, a sociedade desterrar toda a mquina do Estado para o lugarque ser ento mais adequado para ela o museu de antiguidades, junto com a roca e o machado de bronze".

    Lenine, em "O Estado e a Revoluo", cita tambm estapassagem. Ela clara e evidente. Mostra bem a aceitao de que j houve uma sociedade de productores livres,na qual no havia necessidade da violncia organizada doEstado.

    FILOSOF IA E HISTORIA DA CULTURA 35

    E onde se vivia essa situao seno entre os primitivos americanos? E qual a meta de toda evoluo? Alcanar uma sociedade sem classes e sem Estado, uma sociedadeque ser uma sntese das conquistas tcnicas, culturais dacivilizao, que a anttese da sociedade primitiva, e a tesedesta em sua natureza exuberante e livre. O marxismo

    prega, assim, a sntese da tese do primitivismo amerndiocom a anttese da sociedade tecnizada, numa sntese de umasociedade altamente tecnizada, mas livre. inte ressanteobservar-se que o ideal supremo e final dos marxistas omesmo dos anarquistas filsofos, a sociedade sem a coacodo Estado poltico, a sociedade livre de productores e consumidores associados.

    No precisamos alongar-nos mais para justificar anossa tese. Mas podemos salient ar ainda que, no socialismo fabiano, nas novas doutrinas anarquistas de Kropotki-ne, a tese do homem natural manifesta, bem como o noanarquismo de Bakunine, de Malatesta, de Luigi Fabbri e,modern amente, no de Rudolf Rocker.

    Em todo o longo processo das utopias, que vem desdeo Renascimento, o exemplo da vida dos povos amerndios,serviu, no s para construir ideias sobre a bondade natural do homem, mostrar o valor da vida social primitiva,como tambm impregnou as mais belas pginas dos utopistas, sendo desde a, uma prova corroboradora, um exemplodecisivo para testemunho e validez destas ideias.

    COMENTRIOS FINAIS

    Por possuir a capacidade judicativa, por poder julgaro que se d, e o que tem, com o que poderia ser, pode ohomem, comparando-a com a perfeio especfica, aquilatara incongruncia de suas normas de vida social, poltica eeconmica com as perfeies das quais tem le uma possevirtual, como j examinamos.

    Aps verificar toda a gnese das utopias, sem naturalmente haver esgotado as possibilidades pensamentais sobretema de tanto valor, o que ficou evidenciado que, ondeest o homem, est a utopia.

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    S6 MRIO FER REI RA DOS SANTOS

    Conhece o homem em sua vida, quer individual, quersocial, ou intelectual, em todos os sectores, um estado deinsegurana (de insecuritas) e de risco, como bem salientou Peter Wust.

    So essas manifestaes que evidenciam a diferenaespecfica do homem, a sua rationalitas, pois sendo le pessoa, capaz de sentir-se como portador de um papel em cadauma das situaes dramticas da sua vida psicolgica, capaz ainda de, graas liberdade judicativa, julgar o queh, o que se d aqui e agora, dentro da ordem determinadados factos, com o que se poderia dar de melhor e de maiselevado, ainda no determinado pelos factos, h aqui umarevelao da capacidade judicativa, fonte e origem de todasas suas renovaes, de suas novas experincias; em suma,da sua heterogeneidade e do seu progresso social. Jama isa realidade, que se desenvolve aos olhos humanos, podersatisfazer plenamente seus anseios, porque, nestes, h ummpeto que vem dessa capacidade judicativa, dessa tmeseparablica, que lhe permite sempre ver, no que h, o quepoderia ser de melhor ou pior.

    Essa condio humana a base da utopia. No podeo animal bruto realizar sonhos utpicos, pois no possuindo le a capacidade judicativa, mas apenas a de exerccio,segue os azares da vida, obediente natureza, qual jamaisdiz um no.

    O homem, porm, dada a sua natureza pode opor-se,com a sua conscincia, prpria natureza, pode lutar contra ela, domin-la, como em certos aspectos j o conseguiu.

    que o homem, a no ser que socialmente outros lheimpeam, possui, alm da capacidade judicativa, a liberdade de exerccio e de escolha entre valores e entre possveis futuros. E assim como pode sonhar sobre o que evitaria a incongruncia em que vive, pode, ademais, pr-seem aco para modificar a prpria ordem de sua vida social.

    o que se verifica com as utopias.

    Depois do vasto e amplo exame que fizemos atr avsdas pgi nas precedentes, conclui-se, de modo inequvoco,que os conhecimentos obtidos sobre os indgenas americanos, sobretudo brasileiros, foram definitivos para consolidar os anseios utpicos, e mais ainda, para dar-lhes um

    FILOS OFIA E HISTORIA DA CULTURA 37

    contedo mais real, pois as ideologias, que os justificavam,fundavam-se, por sua vez, no conhecimento de que sereshumanos primrios viviam em regies distantes, demonstrando que o ser humano capaz de viver outras situaese outras normas de vida, o que dava ao europeu uma certeza e uma esperana. Sem a descoberta da Amrica e sem

    o conhecimento da vida dos amerndios, as utopias europeias permaneceriam por mais tempo no terreno meramente ideal, e no teriam conseguido fundar-se em ideologiasmais ou menos filosficas, e, sobretudo, a influncia dessasideologias no teria alcanado um to vasto poder de propagao como conheceram.

    E isso foi o que provamos.

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    O PAPEL DA CARACTEROLOGIANOS ESTUDOS SOCIAIS

    O facto de aproveitarmos, como o fazem Corman, Si-gaud e outros caracterlogos modernos, a velha classificao astrolgica, quanto aos tipos humanos (marcianos, ter ra, jupiterianos, etc), no significa nenhuma adeso sideias fundamentais da Astrologia, nem tampouco que afirmemos a influncia dos ast ros sobre os temperamentos eat sobre o carcter das pessoas. E no poderamos fazertal afirmativa nem neg-la tampouco, porque qualquer das

    duas posies seriam temerrias, j que, ante os actuais conhecimentos cientficos que dispomos, nem podemos afirmarque h decisivamente tal influncia ou no.

    Apenas aproveitamos a velha classificao porque, entre tantas outras propostas modernamente, ainda a quemelhor corresponde realidade caracterolgica e a que melhor dispe, em ordens nitidamente definidas, a heterogeneidade dos temperamentos.

    Assim como a classificao de Hipcrates fora abandonada por influncia dos preconceitos prprios do empresrio econmico adorador do progresso mercantil, tc

    nico e tcnico-cientfico, que julga que a afirmao de hoje superior que se fz ontem, e que o dia de amanh superasempre o dia anterior retorna aquela classificao hojemais poderosa do que nunca. Depois dos decisivos trab alhos de Priot, achamos tambm, e nisto seguimos os maisilustres caracterologistas, que a velha classificao astrolgica ainda a melhor e na falta de outra, que realmentea supere, preferimo-la por nos facilitar a melhor compreenso dos temas caracterolgicos.

    * * *

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    No h necessidade de percorrer o longo roteiro dasclassificaes tipolgicas que a Caracterologia construiudesde os antigos egpcios e gregos at os nossos dias . E arazo bem simples, como j o mostramos nos trabalhosem que nos dedicamos a este tema : que tai s classificaesobedeciam a aspectos mais abstractos, a aspectos separadosmentalmente pelo classificador, que esquecia sistematicamente de considerar outros de mxima importncia, e semos quais no seria possvel considerar-se o ser humano coma segurana desejada.

    Restou afinal como a mais segura, e hoje ressurgidacom as honras dos aplausos dos cientistas, a velha classificao hipocrtica dos quatro temperamentos: o sanguneo,o linftico, o bilioso e o nervoso (o fleumtico o linfticopositivo, activo, equilibrado entre extremos).

    No quer tal dizer que se deva desprezar as outra sclassificaes que so vlidas, quando tomadas dentro decerto mbito. Sim, podemos dizer que um tipo enequtico

    (no sentido de Krestschmer) um bilioso nervoso, extrovertido (no sentido junguiano), activo, segundo tantos, etc.H sempre positividades nessas classificaes. No h,porm, apenas essa positividade. Esta a razo por quenenhuma dessas classificaes satisfez, e tambm porque avelha classificao hipocrtica foi a que se manteve commais segurana, e perdurou atravs dos sculos para surgirhoje em plena juventude na tipologia moderna.

    No propomos uma classificao tipolgica com o intuito de substit uir as outras . De modo algum. Nossa inteno apenas dar uma vivncia da realidade do que vemos e assistimos no espetculo que nos oferecem os nossos

    semelhantes.No vasto panorama humano, encontramos seres tar

    dios, crepusculares, que olham a vida e as coisas como oscambiantes de um longo entardecer, e que nas rvores notam apenas a beleza das suas folhas e das suas flores. Sohomens que consideram apenas as roupagens vivas, o esplendor das aparncias, a superficialidade dos acontecimentos, as exterioridades eloquentes. So homens da decadncia, de gestos lentos e belos, e at do maneirismo das postur as. A verdade, para eles, a epiderme das coisas.Assim um tipo teocrtico crepuscular v, na religio, os

    FILOSOFIA E HISTRIA DA CULTURA 41

    ritua is, as cerimnias caprichosas, os requintes do luxo,prende-se forma exterior das manifestaes virtuosas, afilantropia s escncaras, o humanitarismo cercado de cerimnias, sem que se negue as boas intenes e a sinceridade de suas atitudes. Se um tipo aristocrtico, maisamigo das ordens de cavalaria, preocupa-se com as rvoresgenealgicas, tendentemente corteso, gosta das empresastemerrias ante espectadores, com flamantes manifestaes.Cultiva as maneiras elegantes e a sua viso do mundo prende-se ao mbito das formas exteriores e julgar tudo pelaaparncia, preocupando-se mais pelas combinaes, pelos,acordos que revestem formalidades. Se forem intelectuaise estudiosos, os teocratas se ocuparo com a exegese dos temas religiosos e virtuosos; o aristocrtico crepuscular de-dicar-se- ao classicismo, deliciando-se na leitura dos autores que escrevem com punhos de rendas. Se fr poltico,o teocrata cuidar da inviolabilidade das formas, e preo-cupar-se- sobretudo que as exterioridades no sejam nem.de leve manchadas, enquanto o aristocrata gostar das campanhas brilhantes, com discursos acadmicos, das reuniescheias de beleza, dos banquetes pomposos, dos manifestos,altissonantes e cheios de beleza, do estilo cuidadoso dos discursos, das grandes paradas cheias de fausto.

    Se o homem crepuscular fr um empresrio utilitrio,,dedicar-se- solidificao de sua empresa, com a exteriorizao de sua presena. Seus escritrios sero requinta -damente luxuosos, seus papis timb rados com gosto, sua,presena cheia de 'cambiantes. Conhecer uma pitada deeconomia e outra de poltica, o suficiente para manter umaleve e bril hante conversao, mas rpida . Ter sempreuma frase feita para cada circunstncia, manifestar umgosto verstil pelas coisas do conhecimento, para que o julguem culto e tudo far para que brilhe com cores nos ambientes onde vive.

    Se fr um servidor, crepusculejar por entre ideias sociais vrias, ter tendncias por muitas coisas em nenhumase aferrando, e ser um servidor discreto em sua actividade nunca alcanando a maestria, mas parecendo ser maisdo que realmente . Suas afeies sero tambm passag eiras, porque cambiantes e tardios sero os seus sentimentos,suas preferncias e suas opinies. Hoje ser um rebelde,amanh um radical, depois um reformista apenas, se se de-

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    d iar poltica, e mud ar de ideias segundo as circunstncias.

    So todos estes homens da tarde, dos longos entarde-ceres, dos crepsculos demorados, das atitudes outonais,que pervivem em todas as pocas e em todos os povos. Mash tambm homens da noite, esses interrogadores das tre

    vas, esses retrados do silncio, pesquisadores incansveis.Se fr um teocrata, demorar-se- no estudo aprofun

    dado, no exame do corao humano, e sua pesquisa buscaras mais profundas intimidades do ser, ali onde o homem seabism a e se funde com a divindade. Ser um religioso, ouum virtuoso em profundidade, um pesquisador infrene.

    Se fr um aristocrata, dedicar-se- realizao de umafaanha de profundas consequncias. No lhe atraem ossales, mas o recesso do gabinete de estudo, o exame dasobras mais profundas da lite ratu ra humana. Se ler Plato, no admirar apenas a beleza dos seus dilogos, mas

    desejar perscrutar por entre as passagens o pensamentoesotrico que Pla to ocultou. Os ouropis da glria comumno lhe atr aem, como at ra i ao crepuscul ar. No_ lhe importam os aplausos, mas a conscincia de que realiza o seudever na pesquisa mais elevada. Se um cient ista, noquer ser apenas um brilhante exemplo do seu mister, masum incansvel estudioso, que no se preocupa em brilharnos cargos ostentosos, mas em ter o seu tempo dedicado aoestudo e ao aperfeioamento do seu saber. No lhe preocupam os ttulos, como acontece com o primeiro, mas a obraque vai realizar.

    um empresrio utilitrio, homem da noite, dedicar-

    -se- ao estudo dos elementos tcnicos, elaborar cuidadosamente estudos em profundidade do funcionamento do seumister. Querer descobrir meios mais fceis par a alcanara resultados maiores e mais duradouros. No lhe sat isfaruma pitada de economia ou de finanas, mas dedicar-se-ao estudo, investir pelos sectores do conhecimento, da filosofia, das cincias culturais, investigar as bases econmicas das empresas, preocupar-se- no com frmulas, mascom conhecimentos que assegurem, no o xito momentneo, mas a obra de grandes realizaes . Julga que podecontribuir para o amanh, e tudo far por consegui-lo.

    FILOSOFIA E HISTRIA DA CULTURA 43

    um servidor noturno, no perde le seu tempo nasestreis reunies dos companheiros e na tomada de posiopoltica cambiante em torno de homens, mas aprofunda-seno conhecimento da questo social, sem tomadas de posioprvias, buscando libertar-se de preconceitos. V nos seusirmos de classe homens como os outros de outras classes,que tambm exploram as necessidades alheias, que tambm

    cometem as mais flagrantes injustias, e que no so melhores por serem mais pobres. No se ilude com as fanfarr as das palavra s de ordem. Procur a saber, interro gar.Busca, guarda o silncio, escolhe em suas horas de folga oestudo mais til e mais profundo. No se dedica exteriorizao, mas elevao de si mesmo. um homem quesabe que conseguir erguer-se, atingir uma posio intelectualmente mais elevada e por isso dedica-se a alcan-la.

    Esses homens da noite so interrogadores, buscam respostas e no se satisfazem com as primeiras que lhes do.Sabem que a melhor resposta a que tarda a vir, a que procurada demoradamente, e no a que queima roupa dada por qualquer sacripanta da poltica, da arte, do saber.

    Mas h outros que no mais interrogam as trevas, masaguard am ansiosos a alvorada que se aproxima. So homens da madrugada, cujos olhos esto postos num ideal,num amanh a ser conquistado.

    um teocrata homem da madrugada, ei-lo que esperauma redeno do* homens, o reino de Deus realizado naTer ra. Ei-lo que prega o amor, no com os lbios, mascom o corao. Quando fala de paz, no a paz comumdas estagnaes, mas a paz profunda dos coraes iluminados por uma luz redentora. um aristo crata que espera

    a elevao do homem, a ascenso contnua da humanidade,a prxima ou remota conquista de uma humanidade de fortes, de verazes, de homens dignos, orgulhosos de sua virtude e de seu domnio sobre as fraquezas. o propagandista de um ideal mais alto. um empresrio utilitr iohomem da madrugada, ei-lo sonhando com grandes realizaes, ei-lo pregando normas que assegurem aos seus paresuma vida superior, onde as normas ideais sejam obedecidase cumpridas. um Mau, um Ford. um servidor homem da madrugada, le um idealista, um pregador convicto e cheio de sinceridade de um ideal de liberdade e de

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    elevao do homem simples, do servidor, que, para salvar-sedo estado em que se encontra, precisa ter f em suas ideias. o propagan dista de ideais. Esses homens so semprepropagandistas de ideias e tambm os grandes criadores denovas doutrinas, nos sectores em que actuem. No indicamos outros exemplos, porque na Histria eles sobejam.

    Mas h ainda homens do meio-dia, homens da hora deluzes sem sombras, homens da hora meridiana, sem cambiantes, da plenitude do sol no znite.

    Se para o homem da tarde, o que v nas rvores so asfolhas e as formas dos galhos, o homem da noite v nelao smbolo do mistrio da vida, mas o homem da madrugadav nela a semente que se afirmou, e o homem do meio-diaos frutos para os homens e para os pssaros, que ela dadivosa oferecer.

    Pois bem, so assim os homens. E nessas combinaes, porque somos sempre um pouco menos ou um pouco

    mais nessas imensas combinaes poderemos compreendermuito da heterogeneidade dos nossos semelhantes no dinamismo de sua vida.

    No possvel pensar que um factor econmico actuisobre um homem hiertico do mesmo modo que actua sobreum mercador. No possvel que um mercador crepuscular, ou noturno, ou da madrugada, ou do meio-dia, reajamdo mesmo modo.

    H povos tardios, como h povos noturnos, da madrugada e do meio-dia, e pode-se dizer que todos, em todos osciclos culturais, tendem dinamicamente a viver esses momentos. Todo ciclo cultural, em seu momento inicial, vi

    sualiza uma madrugada, aprofunda-se na vivncia noturnade suas locubraes mais cuidadosas, realiza-se no meio--dia outonal da colheita dos frutos, e perde-se na longa decadncia dos crepsculos.

    E como h povos, h tambm homens e h doutrinase h posies tericas que so noturnas, ou crepusculares,ou matinais ou meridianas.

    H uma lei de Filosofia Concreta : todo factor actuanum actuado proporcionadamente natureza deste. Osfactores extrnsecos (predisponentes) actuam dentro dos li-

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    mites da emergncia de um ser. E essa emergncia, no quese refere ao homem, implica elementarmente tambm o seutemperament o e o seu carct er. A Histria no o repositrio de foras mecnicas. O homem no apenas um serda natureza , mas da cultura. H frustrabilidades possveis,segundo os temperamen tos e os caractere s. E essa frus-trabilidade que permite ao homem salvar-se da mecnica.No mister que neguemos toda e qualquer validez ao historicismo, como o propem Popper e outros, para que salvemos a liberdade humana. No; basta ao homem ser umente capaz de dizer no natureza, como realmente o , para que a sua liberdade seja sempre alcanvel.

    a sua capacidade de recusa que lhe garante essa possibilidade. E o que provaremos ai nda.

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    ANLISE DOS TIPOS CARACTEROLGICO-SOCIAI&

    O estudo caracterolgico-psicolgico e noolgico dos tipos caracterolgico-sociais poderia ser mais extenso do queo que apresentamos. Contudo, para a clareza das nossasteses, a serem demonstradas na parte concreta desta obra,onde reduziremos o conjunto do que estudamos a algumasteses fundadas nos mtodos dialcticos da nossa filosofiaconcreta, daremos, aqui, os elementos fundamentais para ajust ificao da nossa concepo, que nos permi tam melhorcompreender a Histria, melhor interpret-la, admitir como fundada a doutrina historicista, enquanto admite que avida humana segue determinada linha, mas esquecendo deacrescentar que a segue quando entregue aos azares dosacontecimentos, cabendo, ainda, ao homem a esperana deforjar o seu prprio destino quando alcanar em plenitudeo acto humano.

    Ora, como se demonstrou de modo apodtico na Filosofia Concreta , no podemos considerar concretamente um ser,enquanto no consideramos a sua emergncia e a sua pre-disponncia. uma maneir a abstracti sta e supinamentefalsa querer explicar a actuao de um ser apenas em funo dos factores predisponentes contemporneos, esquecen-do-se que um ser actua proporcionadamente sua naturezao que a actuao extrnseca sobre le ainda proporcionada natureza do primeiro. um barbari smo filosfico j ulgarque um ser totalmente producto da aco dos factores extrnsecos a eles. Se realmente, antes de um ente ser, exige le causas predisponentes que o realizem, pois um ser,que comea a ser, implica necessariamente antecedentes dosquais pende realmente, se a predisponncia ontologicamente antecedente a um ser, este, depois que comea a ser e comea a ser nesse precpuo momento, sua natureza (a emergncia) j determina o seu modo de actuar e de sofrer.

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    ANLISE DOS TIPOS CARACTEROLGICO-SOCIAIS

    O estudo caracterolgico-psicolgico e noolgico dos tipos caracterolgico-sociais poderia ser mais extenso do queo que apresentamo s. Contudo, para a clareza das nossasteses, a serem demonstradas na parte concreta desta obra,onde reduziremos o conjunto do que estudamos a algumasteses fundadas nos mtodos dialcticos da nossa filosofiaconcreta, daremos, aqui, os elementos fundamentais para a

    jus tif icao da nossa concepo, que nos permi tam melhorcompreender a Histria, melhor interpret-la, admitir como fundada a doutrina historicista, enquanto admite que avida humana segue determinada linha, mas esquecendo deacrescentar que a segue quando entregue aos azares dosacontecimentos, cabendo, ainda, ao homem a esperana deforjar o seu prprio destino quando alcanar em plenitudeo acto humano.

    Ora, como se demonstrou de modo apodtico na Filosofia Concreta, no pedemos considerar concretamente um ser,enquanto no consideramos a sua emergncia e a sua pre-disponncia. uma manei ra abstract ista e supinamentefalsa querer explicar a actuao de um ser apenas em funo dos factores predisponentes contemporneos, esquecen-

    do-se que um ser actua proporcionadamente sua naturezao que a actuao extrnseca sobre le ainda proporcionada natureza do primeiro. um barbari smo filosfico ju lgarque um ser totalmente producto da aco dos factores extrnsecos a eles. Se realmente, antes de um ente ser, exige le causas predisponentes que o realizem, pois um ser,que comea a ser, implica necessariamente antecedentes dosquais pende realmente, se a predisponncia ontologicamente antecedente a um ser, este, depois que comea a ser e comea a ser nesse precpuo momento, sua natureza (a emergncia) j determina o seu modo de actuar e de sofrer.

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    Desde esse instante, esse ser actuar ou sofrer proporcionadamente sua natureza, ao que compe formal e materialmente a sua constituio.

    Desse modo, como se demonstrou apoditicamente, umser vem ao mundo j const itudo de sua emergncia. Se um producto de factores extrnsecos predisponentes, que

    de certo modo, pelo menos alguns, nele perduram sendo,constituindo o que (sua emergncia), le prossegue cercado de factores predisponentes, que o acompanham e actuamsobre le proporcionadamente ao poder que tm e natureza daquele.

    Assim, o ser humano emergentemente sua matria(corpo bio-fisiolgico), formalmente sua organizao psquica e noolgica, , preisponentemente, o factor ecolgico, o ambiente circunstancial geogrfico em que vive, e ohistrico-social (a sociedade, o grupo, a famlia) em que sedesenvolve. Considerar a actuao do ecolgico e do histrico-social como o definitivo no modo de ser do homemfoi o vcio de todo ecologismo e de todo historicismo. Oprimeiro quis reduzir todo actuar do homem e le mesmos influncias climatri cas, ao geogrfico, ao regiona l. Osgregos seriam um producto do cu azul e das condies climticas da Hlade; os rabes apenas um resultado do deserto, e os esquims uma consequncia das regies rcticas. Sem dvida que h positividade nas afirmativas ecolgicas, porque sabemos que s h cermica onde h argila,h criao de gado, onde as condies so favorveis e jexistem ou so adaptveis os rebanhos. Ningum pode negara influncia que exerceu o sol do norte sobre os povos germnicos, nem o clima tropical sobre os homens meridionais.Os estudos sobre a influncia ecolgica na tcnica, nos costumes, nas actividades econmicas, na histria de um povo,so impressionantes. Que tais influncias so reais, porque so notadas e evidentemente efectivas, no resta dvida. Mas que s elas explicam o homem e a Histria, umabstractismo imperdovel.

    Os historicistas afirmam que o homem um producto domeio social, dos seus antepassados e destes herda determinadas condies, que actuam como causas, como a raa, amoral, a educao que lhe ministrada, as estructuras sociais, os estamentos, estados, classes, etc, que determinamseu modo de ser e o seu desenvolvimento histrico. O ser

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    humano actua a infludo, determinado por seu ciclo cultural, apoiando o estatuto social em que vive ou contra leactuando, tentando romp-lo. em suma um producto daprpri a Histria. Assim Csar um producto da histriaromana, uma consequncia inevitvel dois acontecimentoshistricos, como o foi Plato, Aristteles e Alexandre naHistri a grega. O homem apenas vive o desenvolvimento

    histrico de seu povo e tanto assim que os turcos, na Grcia, no foram capazes de criar uma cultura como a grega,nem capazes de lev-la avante, o que comprova que os turcos so o que os turcos so, como os gregos eram o que osgregos eram, e no se explica a sua histria apenas pelascondies ecolgicas, como o querem os ecologistas, nem pela raa helnica, como querem os racistas, nem pela estruc-tura social, como o querem os historicistas. Ora, h sem dvida tambm suficiente positividade na maneira de conceber dos historicistas, porque h realmente influncias deraas, das estructuras dos ciclos culturais, dos estamentos,dos estados e classes, da prpria Histria do povo, da presena real do passado, actuando sobre o presente, para nos

    explicar o porqu de certas atitudes e o desenvolvimentode um povo. O histor icismo procedente em suas afirmativas, mas apenas no contedo delas, pois quando afirmaque apenas o histrico social nos pode explicar a Histriae o homem, e que este nada mais que um producto dosfactores histrico-sociais, erra por abstractismo.

    Como vemos, as doutrinas que defendem a influnciada predisponncia n explicao do homem tm positividadeem suas afirmativas, mas falham pelo abstractismo que asdomina, pecam por deficincia concreta.

    J chegamos a uma poca em que podemos estudar a

    raa. Durante o ltimo conflito, e pelo facto de haver onazismo se tornado extremadamente racista, os temas sobrea raa ficavam, automaticam ente, em quarentena. Nenhumestudioso podia apresentar qualquer conhecimento novo, propor qualquer maneira de considerar a positividade da influncia da raa na Histria, sob pena de ser tachado dequinta-colunismo, de partidri o do nazismo, etc. Como isso tudo j acabou, podem agora os estudiosos dedicarem-se influncia real que a raa exerce na Histria de um povo,e h, realmente, importantes trabalhos, que comprovam apositividade da assero de que a raa um factor da His-

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    tria. A ideia de raa implica a influncia no apenas tnica, porque os caracteres de um povo so tambm proporcionados s influncias ecolgicas, e uma raa se forma coma sedimentao das influncias que os factores ecolgicosexercem sobre os tnicos. Assim, no se pode falar naraa judia como uma raa pura, que, na realidade, no o ,pois os judeus no conviveram sempre no mesmo ambiente

    geogrfico, nem permaneceram totalmente imunes s influncias genticas de outros povos. Por outro lado, em abono dos ecologistas, h a acquisio de certos caracteres ac-cidentais raciais, como a conformao craniana, etc, que semelhante dos povos onde eles vivem. A raa no podedeixar de ser um longo precipitado de influncias vrias, quese sedimentam na formao de caracteres e tambm de umacerta unidade noolgica, num sentir universal.

    Realmente, um povo de determinada raa reage ante determinados factores de modo diferente de outro. Sua reaco distinta, e essa uma das razes que tm levado oshistoricistas a julgarem que a determinao na Histria ca

    be apenas ao histrico-socia l. Ora, a concepo concretaadmite a interactuao proporcionada natureza do actuante e do actuado, e. que o producto dessa interactuao , porsua vez, proporcionado actuabilidade mtua dos factores es novas estructuras que se formam, sem deixar de considerar a influncia que exercem a vontade e a liberdade humanas. Esta a tese que provaremos, e o faremos de modoapodtico, e no por meras asseres, porque a Filosofia,que apenas se funda em asseres, em meros juzos assertivos, uma filosofia aind a br bar a. S h cincia ondeh demonstrao, e a Filosofia, para tornar-se um saberculto, exige a demonstrao, que por sua vez, a nica everdadeira autoridade filosfica, a que dispensa todas as

    outras, porque onde no se demonstra e apenas se afirma,pode-se trazer um nmero imenso de "autoridades", de famosos autores para corroborar o que se diz. Mas tudo isso mera erudio, paleofilosofia, mero barbarismo (1).

    (1) Par a que a Filosofia no seja apenas um campo a mais deactividades estticas, para que seja ela uma cincia, um saber culto, mister que se prove o que se afirma, que se demonstre, e que ademonstrao seja a mais poderosa. Por isso, a filosofia concreta,que a nossa, a qual propomos, fundamos e robustecemos, funda--se em juizos apodticos, em juzos necessrios, que no admitem ou-

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    Queremos com isso salientar que os factores ecolgicosactuam sobre os histrico-sociais e vice-versa, pela simplesrazo, como o demonstramos na "Filosofia Concreta", deque um ser actua proporcionadamente sua natureza, masa aco dele se exerce sobre algo actuvel, que actuadoproporcionadamente sua natureza, pois, do contrrio, oresultado seria sobrenatural. Deste modo, o ecolgico ac

    tua sobre tudo quando constitui o histrico social, mas proporcionadamente ao poder do actuante, e proporcionadamente ao poder actuvel (potncia passiva) do actuado. 0ecolgico est, sem dvida, presente na raa, porque no sepode esconder a influncia que o mesmo exerce sobre o esquim, sobre o homem do deserto, sobre o homem do pampa,sobre o homem das selvas tropicais. Nos caracteres raciais esto sedimentadas as influncias ecolgicas. As demonstraes destas teses, sob mtodos cientficos, j foram realizadas por conspcuos estudiosos. Desse modo, ohistrico social e o ecolgico se interactuam inequivocamente . So factores que cooperam, den tro dos limite s cooperveis, na formao do homem. No so isoladamentenicos, mas formam um conjunto. Qual o grau dessa actuao, qual o grau de predominncia ou de submisso, outro tema que dever ser examinado posteriormente.

    Para auxiliar-nos ao exame que pretendemos fazer, reu-namos, primeiramente numa esquematizao, os referidosfactores, para ajudar-nos em posteriores anlises:

    * meteorolgico climaFactores ecolgicos: morfologia geogrfica, etc.(ambiente circuns- geologia, meio scio-ecolgico cir-

    tancia l) cunscriptivo (campo, aldeia, cida

    de, etc, em sua singularidade.)

    tra formulao que no a que faz. E enquanto no os atingimos, prefervel buscar, investigar, esquadrinhar todos os recantos, seguir todos os caminhos, evitando as meras asseres, to ao gostodos que desejam transformar a Filosofia apenas em mais um campo para as suas divagaes literrias ou estticas.

    Esse parntese se impunha para justificar em parte o que pretendemos fazer neste captulo, cuja importncia fundamental paraa justificao das anlises sobre os temas sociais, que apresentamosneste conjunto de obras de temtica e de problemtica social.

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    tria. A ideia de raa implica a influncia no apenas tnica, porque os caracteres de um povo so tambm proporcionados s influncias ecolgicas, e uma raa se forma coma sedimentao das influncias que os factores ecolgicosexercem sobre os tnicos. Assim, no se pode falar naraa judia como uma raa pura, que, na realidade, no o ,pois os judeus no conviveram sempre no mesmo ambiente

    geogrfico, nem permaneceram totalmente imunes s influncias genticas de outros povos. Por out ro lado, em abono dos ecologistas, h a acquisio de certos caracteres ac-cidentais raciais, como a conformao craniana, etc, que semelhante dos povos onde eles vivem. A raa no podedeixar de ser um longo precipitado de influncias vrias, quese sedimentam na formao de caracteres e tambm de umacerta unidade noolgica, num sentir universal.

    Realmente, um povo de determinada raa reage ante determinados factores de modo diferente de outro. Sua reaco distinta, e essa uma das razes que tm levado oshistoricistas a julgarem que a determinao na Histria ca

    be apenas ao histrico-soeia l. Ora, a concepo concretaadmite a interactuao proporcionada natureza do actuante e do actuado, e que o producto dessa interactuao , porsua vez, proporcionado actuabilidade mtua dos factores es novas estnicturas que se formam, sem deixar de considerar a influncia que exercem a vontade e a liberdade humanas. Esta a tese que provaremos, e o faremos de modoapodtico, e no por meras asseres, porque a Filosofia,que apenas se funda em asseres, em meros juzos assertivos, uma filosofia ainda brba ra. S h cincia ondeh demonstrao, e a Filosofia, para tornar-se um saberculto, exige a demonstrao, que por sua vez, a nica everdadeira autoridade filosfica, a que dispensa todas as

    cutras, porque onde no se demonstra e apenas se afirma,pode-se trazer um nmero imenso de "autoridades", de famosos autores para corroborar o que se diz. Mas tudo isso mera erudio, paleofilosofia, mero barbarismo (1).

    (1) Pa ra que a Filosofia no seja apenas um campo a mais deactividades estticas, para que seja ela uma cincia, um saber culto, mister que se prove o que se afirma, que se demonstre, e que ademonstrao seja a mais poderosa. Por isso, a filosofia concreta,que a nossa, a qual propomos, fundamos e robustec emos, funda--S6 em juzos apodticos, em juzos necessrios, que no admitem ou-

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    Queremos com isso salientar que os factores ecolgicosactuam sobre os histrico-sociais e vice-versa, pela simplesrazo, como o demonstramos na "Filosofia Concreta", deque um ser actua proporcionadamente sua natureza, masa aco dele se exerce sobre algo actuvel, que actuadoproporcionadamente sua natureza, pois, do contrrio, oresultado seria sobrenatural. Deste modo, o ecolgico ac

    tua sobre tudo quando constitui o histrico social, mas proporcionadamente ao poder do actuante, e proporcionadamente ao poder actuvel (potncia passiva) do actuado. Oecolgico est, sem dvida, presente na raa, porque no sepode esconder a influncia que o mesmo exerce sobre o esquim, sobre o homem do deserto, sobre o homem do pampa,sobre o homem das selvas tropicais . Nos caracte res r aciais esto sedimentadas as influncias ecolgicas. As demonstraes destas teses, sob mtodos cientficos, j foram realizadas por conspcuos estudiosos. Desse modo, ohistrico social e o ecolgico se interactuam inequivocamente . So facto res que cooperam, dentro dos limites cooperveis, na formao do homem. No so isoladamente

    nicos, mas formam um conjunto. Qual o grau dessa actu ao, qual o grau de predominncia ou de submisso, outro tema que dever ser examinado posteriormente.

    Para auxiliar-nos ao exame que pretendemos fazer, reu-namos, primeiramente numa esquematizao, os referidosfactores, para ajudar-nos em posteriores anlises:

    * meteorolgico climaFactores ecolgicos: morfologia geogrfica, etc.(ambi ente circuns- geologia, meio scio-ecolgico cir-

    tancia l) cunscriptivo (campo, aldeia, cida

    de, etc, em sua singularidade.)

    tra formulao que no a que faz. E enquanto no os atingimos, prefervel buscar, investigar, esquadrinhar todos os recantos, seguir todos os caminhos, evitando as meras asseres, to ao gostodos que desejam transformar a Filosofia apenas em mais um campo para as suas divagaes literrias ou estticas.

    Esse parntese se impunha para justificar em parte o que pretendemos fazer neste captulo, cuja importncia fundamental paraa justificao das anlises sobre os temas sociais, que apresentamosneste conjunto de obras de temtica e de problemtica social.

  • 8/2/2019 mario_ferreira_dos_santos_-_filosofia_e_histria_da_cultura_03

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    52 MRIO FERREIRA DOS SANTOS

    Factores histrico-sociais:

    sociedade humanatcnicaestructura culturalticos

    Por outro lado, no se pode compreender a actuao detais factores predisponentes sem a emergncia do actuado.Assim, o ambiente geogrfico pode actuar sobre um granito, mas proporcionadamente capacidade de actuabilidadepassiva deste e tambm da sua actuabilidade sobre o ambiente prximo. A emergncia indispensvel. Ora, oecolgico actua sobre o homem em funo da sua constituio material, da sua bio-fisiologia e da sua estructura psquica e noolgica, porque o homem no apenas um serformado de um sistema nervoso, mas, tambm, de um psiquismo superior, de uma mente, de um esprito (Nous, danoologia). O homem, alm de actuado pelo ambiente pre-disponencial, actua tambm sobre o mesmo, e no grau maiselevado possvel.

    Impe-se aqui, tambm, a esquematizao dos factores

    emergentes:Factores emergentes materiais:

    Constituio biolgica

    Constituio fisiolgica

    { Temperamento, sob oaspecto geralEntre os factores psquicos e mentais, temos de dis

    tinguir :

    Sistema nervosofundamental

    Factores emergentes formais:

    Psiquismo superior

    Fundamentos esquemticos |

    Fundamentos noolgicos

    estructuras esquemticassurgidas das diversas

    [ dissimulaesestructuras esquemticaseidticas, que constituem oseie chamados metafsicos

    FILOSOFIA E HISTRIA DA CULTURA 53

    A interactuao entre o bio-fisiolgico e o psiquismofundamental nos explica o temperamento, que genuinamente somtico (do corpo), cuja influncia sobre o psiquismo superior, sobre a formao dos esquematismos e suasedimentao, importants sima, e tem sido matr ia deapreciveis estudos por parte dos psiclogos modernos.

    O homem , assim, concretamente: a emergncia somtica, com o seu esquematismo bio-fisiolgico e 'psiquicamente inferior, a emergncia psquica superior, mental enoolgica em sua interactuao e em funo da interactuao com os factores predisponentes ecolgicos e histrico-sociais