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MarioVargasLlosa

ACasaVerde

TraduçãoPaulinaWachteAriRoitman

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©MarioVargasLlosa,1967TodososdireitosdestaediçãoreservadosàEditoraObjetivaLtda.RuaCosmeVelho,103RiodeJaneiro—RJ—Cep:22241-090Tel.:(21)2199-7824—Fax:(21)2199-7825www.objetiva.com.br

TítulooriginalLaCasaVerde

CapaRaulFernandes

ImagemdecapaPeterStackpole/Time&LifePictures/GettyImages

PreparaçãodeoriginaisElisabethXavierdeAraújo

RevisãoJoanaMilliDiogoHenriquesAnaKronemberger

Coordenaçãodee-bookMarceloXavier

Conversãoparae-bookFiligrana

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJV426c

VargasLlosa,MarioAcasaverde[recursoeletrônico]/MarioVargasLlosa;traduçãoAriRoitmanePaulinaWacht.-RiodeJaneiro:Objetiva,2012.recursodigital

Traduçãode:LacasaverdeFormato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWeb348p.ISBN978-85-7962-173-4(recursoeletrônico)

1.Romanceperuano.2.Livroseletrônicos.I.Roitman,Ari.II.Wacht,Paulina.III.Título.

12-5747.CDD:868.99353CDU:821.134.2(85)-3

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Sumário

Capa

Folhaderosto

Créditos

Prólogo

Mapa

Dedicatória

Um

Dois

Três

Quatro

Epílogo

Glossário

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Prólogo

Oquemelevouainventarestahistóriaforamaslembrançasdeumcasebreprostibular,pintadodeverde,quecoloriaoarealdePiuranoanode1946,edadeslumbranteAmazôniadeaventureiros,soldados,índiosaguarunas,huambisas e shapras,missionários e traficantesde látex e courosque conheci em1958,numaviagemdealgumassemanaspeloAltoMarañón.

Mas, provavelmente, amaior dívida que contraí ao escrevê-la foi comWilliam Faulkner, em cujoslivros descobri as feitiçarias da forma na ficção, a sinfonia de pontos de vista, ambiguidades, matizes,tonalidadeseperspectivasqueumaconstruçãoastutaeumestilobemcuidadopodiamdaraumahistória.

Escrevi este romanceemParis, entre1962e1965, sofrendoedesfrutandocomoum lunático,numhotelzinho do Quartier Latin — o Hotel Wetter — e num sótão da rue de Tournon, ao lado doapartamentoondehaviamoradoograndeGérardPhilippe,aquemoinquilinoquemeantecedeu,ocríticodearteargentinoDamiánBayón,ouviuensaiardurantemuitosdias,horasafio,umamesmafaladeElCiddeCorneille.

mariovargasllosaLondres,setembrode1998

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APatricia

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Um

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OsargentodáumaolhadanamadrePatrocinio e amosca continua lá.A lancha cabeceia sobre as águasturvas,entreduasmuralhasdeárvoresqueexalamumbafoardente,pegajoso.Enoveladosdebaixodotetodefolhasdepalmeira,nusdacinturaparacima,osguardasdormemprotegidospeloesverdeado,amareladosoldomeio-dia:acabeçadoPequenoestásobreabarrigadoPesado,oLourosuaembicas,oEscurogrunhede boca aberta. Uma nuvenzinha de borrachudos escolta a lancha, entre os corpos evoluem borboletas,vespas,mutucas.Omotorroncacomregularidade,engasga,roncadenovoeopilotoNievesempunhaolemecomamãoesquerda,comadireitafumaeseurostolustrosopermaneceinalterávelsobochapéudepalha.Essesselvagensnãoeramnormais,porquenãosuavamcomooutroscristãos?Empertigadanapopa,amadreAngélicaestádeolhosfechados,emseurostohápelomenosmilrugas,àsvezespõeumapontinhadalínguaparafora,sugaosuordobigodeecospe.Pobrevelhinha,nãoaguentavaotranco.Amoscabateasasinhasazuis,decoladatestarosadadamadrePatrociniocomumsuaveimpulso,someriscandocírculosnaluzbrancaeopilotoiadesligaromotor,sargento,jáestavamchegando,atrásdessabocainavinhaChicais.Mas o coração do sargento dizia não vamos encontrar ninguém. O ruído do motor se interrompe, asmadreseosguardasabremosolhos,levantamascabeças,olham.Depé,opilotoNievesgiraolemeàdireitaeàesquerda,alanchaseaproximasilenciosamentedamargem,osguardasselevantam,põemascamisas,osquepes, ajeitam as perneiras. A paliçada vegetal da margem direita se interrompe bruscamente quandoultrapassam a curva do rio e há umbarranco, umbreve parêntese de terra vermelha que desce até umaminúsculaenseadadelodo,pedregulhos,moitasdebambuedesamambaias.Nãosevênenhumacanoanamargem,nenhuma silhuetahumananobarranco.Aembarcação fica imóvel,Nieves eosguardas saltam,chapinhandono lodo cor de chumbo.Aquilo era um cemitério, o coraçãonão enganava, osmangachestinhamrazão.Osargentoestádebruçadonaproa,opilotoeosguardasarrastamalanchaatéaterraseca.Que ajudemasmadrecitas, façam cadeirinha para elas não semolharem.AmadreAngélica vai séria nosbraçosdoEscuroedoPesado,amadrePatrociniohesitaquandooPequenoeoLourounemsuasmãospararecebê-lae,deixando-secair,ficavermelhacomoumcamarão.Osguardasatravessamapraiacambaleando,deixamasmadresondeterminaolodo.Osargentopula,chegaaopédobarrancoeamadreAngélicajáestásubindo a encosta,muito decidida, seguida pelamadre Patrocinio, as duas engatinhando, desaparecendoentreredemoinhosdepoeiraruiva.Aterradobarrancoéfofa,cedeacadapasso,osargentoeosguardasavançamafundandoatéosjoelhos,agachados,sufocadospelapoeira,comolençoapertadocontraaboca,oPesadoespirrandoecuspindo.Notoposeespanamosuniformeseosargentoolha:umaclareiracircular,umpunhado de cabanas de teto cônico, pequenos roçados demandioca e de banana e, em volta,matofechado.Entreascabanas,arvorezinhascomsacosovaispenduradosnosgalhos:ninhosdexexéus.Eletinhaavisado,madreAngélica,lembre-se,nemumaalma,estãovendo.MasamadreAngélicaandadeumladoparaoutro,entranumacabana,saiemeteacabeçanacabanaaolado,enxotaasmoscasatapas,nãoparaumsegundoe,assim,delonge,esmaecidapelapoeira,nãoéumaanciãesimumhábitoambulante,ereto,uma sombra enérgica. Em contrapartida, a madre Patrocinio está imóvel, com as mãos escondidas nohábito, e seus olhos percorrem o povoado vazio uma e outra vez. Uns galhos se mexem e se ouvemgrasnidos,umaesquadrilhadeasasverdes,bicosnegrosepeitilhosazuisrevoasonoramentesobreascabanasdesertasdeChicais,osguardase asmadresosacompanhamatéque sãoengolidospelomato, suagritariaainda dura um pouco mais. Havia papagaios, era bom saber para o caso de faltar comida. Mas davamdisenteria, madre, quer dizer, a barriga ficava solta. No barranco aparece um chapéu de palha, o rostoqueimadodopilotoNieves:entãoosaguarunasseassustaram,madrecitas.Que teimosas,porquenão lhe

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deramouvidos.AmadreAngélicaseaproxima,examinaaquiealicomosolhinhosenrugados,esuasmãosnodosas, rígidas,cheiasdepintascastanhasseagitamnacaradosargento:estavamporperto,nãotinhamlevadoassuascoisas,precisavamesperaratéquevoltassem.Osguardasseentreolham,osargentoacendeumcigarro, dois xexéus vão e vêm pelo ar, suas penas negras e douradas reluzem com brilhos úmidos.Passarinhostambém,haviadetudoemChicais.Menosaguarunas,eoPesadori.Porquenãochegamosdesupetão?,amadreAngélicaofega,poracasonãoosconhecia,madrecita?,openachodepelosbrancosdoseuqueixo treme suavemente, eles tinham medo dos cristãos e se escondiam, nem em sonhos voltariamenquantoestivessemaquinãoveriamnemsombradeles.Pequena,roliça,amadrePatrociniotambémestáali,entreoLouroeoEscuro.Masanopassadonãoseesconderam,foramrecebê-loseatélhesderamumtambaquifresquinho,osargentonãoselembrava?Masnaépocaelesnãosabiam,madrePatrocinio,agorasim,entenda.OsguardaseopilotoNievessesentamnochão,tiramossapatos,oEscuroabreocantil,bebeesuspira.AmadreAngélicaergueacabeça:montemasbarracas, sargento,umrostovincado,ponhamosmosquiteiros,umolhar líquido, iamesperarquevoltassem,umavozalquebrada, enão façaessacara, elatinhaexperiência.Osargentojogaforaocigarro,enterra-ocomopé,jáouviram,rapazes,quesemexessem.Eentãoseouveumcacarejoeumamoitacospeumagalinha,oLouroeoPequenodãoumgritodejúbilo,preta,corrematrásdela,compintasbrancas,capturam-naeosolhosdamadreAngélicafaíscam,bandidos,o que estão fazendo, seu punho vibra no ar. Por acaso era deles?, que a soltassem, e o sargento que asoltassem mas, madres, se iam mesmo ficar lá precisavam comer, não queriam passar fome. A madreAngélicanão iapermitir abusos,que confiançapodiam terneles se roubavam seusbichinhos?EamadrePatrocinioconcorda,sargento,roubareraofenderaDeus,comseurostoredondoesaudável,nãoconheciaosmandamentos?Agalinha,nochão,cacareja,catapulgasnasaxilas,fogerebolandoeosargentoencolheos ombros: por que tinham ilusões se elas os conheciam tanto ou mais que ele. Os guardas vão até obarranco,nasárvoresospapagaioseosxexéusestãogritandodenovo,házumbidosdeinsetos,umabrisaleveagitaasfolhasdejarinadostetosdeChicais.Osargentoafrouxaasperneiras,resmungaentreosdentes,parece estar emburrado e o piloto Nieves lhe dá uma palmada no ombro, sargento: não fique de mauhumor,leveascoisascomcalma.Eosargentoapontafurtivamenteparaasmadres,donAdrián,essetipodeservicinho lhe doía na alma. Amadre Angélica estava commuita sede e talvez um pouco de febre, seuespíritocontinuavaanimado,masocorpojáviviacheiodeachaques,madrePatrocinioeelanão,não,quenão dissesse isto,madre Angélica, agora que os guardas subiram ia tomar uma limonada e já se sentiriamelhor, que não se preocupasse. Falavam da sua pessoa?, o sargento observa em volta com um olhardistraído,pensavamqueera idiota?,abanaorostocomoquepe,essesdoisgalinaços!, ede repente seviraparaopilotoNieves:segredinho,segredãoéfaltadeeducaçãoeolhe,sargento,osguardasestavamvoltandoàspressas.Umacanoa?,eoEscurosim,comaguarunas?,eoLourosim,meusargento,eoPequenosim,eoPesadoeasmadres, sim,sim,vãoeperguntamevêmsemrumoeosargentoqueoLourovoltasseatéobarrancoeavisasseseestãosubindo,osoutrosqueseescondameopilotoNievesapanhaasperneiras,osfuzisdochão.Osguardaseosargentoentramnumacabana,asmadrescontinuamnaclareira,madrecitas,escondam-se, madre Patrocinio, rápido, madre Angélica. Elas se entreolham, cochicham, dão pulinhos,entramnacabanadafrentee,damoitaondeseoculta,oLouroapontaumdedoparaorio,jáiamdescermeusargento,estavamamarrandoacanoa,jáiamsubirmeusargentoeeleidiota,queviesseeseescondesse,Louro,nãodurma.Deitadosdebruços,oPesadoeoPequenoespiampelosinterstíciosdotabiquedetalosda palmeira babunha; o Escuro e o piloto Nieves estão em pé, no fundo da cabana, e o Louro chegacorrendoeseagachaaoladodosargento.Láestavam,madreAngélica,láestavameamadreAngélicapodiaservelhamastinhaboavista,madrePatrocinio,jáosvia,eramseis.Avelha,cabeluda,estácomumatangabranca e dois tubos de carnemole e escura pendem até sua cintura.Atrás dela, dois homens sem idade,baixos,barrigudos,depernasesqueléticas,osexocobertocompedaçosdetecidoocreamarradoscomcipó,

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as nádegas nuas, os cabelos em franja até as sobrancelhas. Trazem cachos de bananas.Depois vêm duasmeninas com diademas de fibra, uma delas usa um brinco no nariz, a outra, pulseiras de couro nostornozelos.Estãonuascomoomeninoqueassegue,eeleparecemenoreémaismagro.Olhamaclareiradeserta, a mulher abre a boca, os homens mexem as cabeças. Vão falar com eles, madre Angélica? E osargentosim,lávãoasmadres,atençãorapazes.Asseiscabeçasgiramaomesmotempo,ficamparadas.Asmadresavançamatéogrupocompassosiguais,sorrindo,esimultâneos,quaseimperceptíveis,osaguarunasse aglomeram, imediatamente formam um só corpo, terroso e compacto.Os seis pares de olhos não sedesviamdasduasfigurascheiasdepregasescurasqueflutuamatéeleseseescapulissemtinhamquecorrer,rapazes, nada de tiros, nada de assustá-los.Deixavam que elas se aproximassem,meu sargento, o Louropensavaqueiamfugirquandoasvissem.Equejeitosinhasasmeninas,quenovinhas,nãoé,meusargento?,estePesadonãotinhajeito.Asmadresparame,aomesmotempo,asmeninasrecuam,estendemosbraços,agarram as pernas da velha que começou a bater nos próprios ombros com amão aberta, cada palmadaestremecesuasenormes tetas,balançando-as:queoSenhorestivessecomeles.EamadreAngélicadáumgrunhido, cospe, solta uma saraivada de sons rangentes, toscos e sibilantes, faz uma pausa para cuspir e,ostentosa,marcial, continuagrunhindo, suasmãosevoluem,desenhamtraços solenesdiantedos imóveis,pálidos,impassíveisrostosaguarunas.Amadrecitaestavapalavreandocomelesempagão,rapazes,ecuspiaigualzinhoàsíndias.Dissoelesdeviamgostar,meusargento,queumacristãfalasseoseuidioma,masquefizessemmenosalgazarra,rapazes,seelesouvissemiamseassustar.OsgrunhidosdamadreAngélicachegamaté a cabanamuito nítidos, robustos, exagerados, e agora o Escuro e o pilotoNieves também espiam aclareira,comosrostosencostadosnotabique.Afreirinhaestavacomosíndiosnapalmadamão,rapazes,que esperta, e asmadres e os dois aguarunas sorriem, trocam reverências. E além domais cultíssima, osargentosabiaquenamissãoelasficavamestudando?Deviamficarérezando,Pequeno,pelospecadosdomundo.AmadrePatrociniosorriparaavelha,estadesviaosolhosecontinuamuitoséria,comasmãosnosombrosdasmeninas.Oqueestariamdizendo,meusargento,comoconversavam.AmadreAngélicaeosdoishomensfazemcaretas,gestos,cospem,disputamapalavrae,derepente,astrêscriançasseafastamdavelha, correm, riemmuito alto.O guri estava olhando para eles, rapazes, não tirava a vista daqui.Quemagrinhoera,osargentoreparou?,umatremendacabeçorraetãopouquinhocorpo,pareciaumaaranha.Debaixodamoitadecabelos,osolhosgrandesdomeninoapontamfixamenteparaacabana.Estátorradocomoumaformiga,suaspernassãocurvasefrágeis.Derepentelevantaamão,grita,rapazes,desgraçado,meu sargento, e há uma violenta agitação atrás do tabique, xingamentos, empurrões e explodem vozesguturais na clareira quando os guardas chegam correndo e tropeçando. Baixem esses fuzis, suas antas, amadreAngélicamostraasmãosiracundasparaosguardas,ah,elesiamvercomotenente.Asduasmeninasescondemascabeçasnopeitodavelha,esmagamseusseiosmoleseogarotinhopermanecesozinho,entreosguardas e asmadres.Umdos aguarunas largao cachodebananas, emalgum lugar agalinhacacareja.OpilotoNieves está na entrada da cabana, com o chapéu de palha puxado para trás, um cigarro entre osdentes.Eoqueo sargentopensava, e amadreAngélicadáumpulinho,porque semetia ondenão erachamado?Massebaixassemosfuziselessumiriamnamesmahora,madre,elamostraopunhosardentoeelebaixemasmáuseres, rapazes.Suave,contínua,amadreAngélica falacomosaguarunas, suasmãos rígidasdesenham figuras lentas, persuasivas, pouco apoucooshomensperdema rigidez, agora respondemcommonossílaboseelarisonha,inexorável,continuagrunhindo.Omeninoseaproximadosguardas,farejaosfuzis,apalpa-os,oPesadolhedáumtapinhanatesta,eleseagachaeberra,eradesconfiadoosacaninhaearisada sacode a cintura flácidadoPesado, suapapada, suasbochechas.AmadrePatrocinio se transfigura,sem-vergonha, o que dizia, por que faltava assim com o respeito, seu grosso e o Pesado mil desculpas,balança sua confusa cabeça de boi, escapuliu sem querer, madre, tem a língua solta. As meninas e ogarotinhocirculamentreosguardas.Examinam,tocamemseuscorposcomapontadosdedos.Amadre

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Angélicaeosdoishomensmurmuramamigavelmenteeosolaindabrilhaaolonge,masnosarredoresestáescuro e acima do bosque se amontoa outro bosque de nuvens brancas e frondosas: ia chover.AmadreAngélicaxingouantes,madre,eelesoquetinhamfalado.AmadrePatrociniosorri,quebobagem,antanãoeraxingamento,eraumbichodecabeçaduracomoadeleeamadreAngélicaseviraparaosargento:iamcomercomeles,tragamaslembrancinhaseaslimonadas.Eleassente,dáinstruçõesaoPequenoeaoLouroapontandoparaobarranco,bananaverdeepeixecru,rapazes,umputabanquete.OsmeninosrodamemtornodoPesado,doEscuroedopilotoNieves,eamadreAngélica,oshomenseavelhaarrumamfolhasdebananeira no chão, entram nas cabanas, trazem recipientes de barro,mandioca, acendem uma pequenafogueira, enrolam bagres e linguados em grandes folhas de bananeira que amarram com fibra de cipó epõem no fogo. Iam esperar os outros, sargento? Isso não teria mais fim, e o piloto Nieves joga fora ocigarro, os outros não iam voltar, tinham ido embora porque não queriam visitas e na certa estes aquiaproveitariam o primeiro descuido. Sim, o sargento sabia, mas era inútil brigar com as madrecitas. OPequenoeoLourovoltamcomassacolaseasgarrafastérmicas,asmadres,osaguarunaseosguardasestãosentadosemcírculodiantedasfolhasdebananeira,avelhaespantandoosinsetosatapas.AmadreAngélicadistribuiospresenteseosaguarunasosrecebemsemdemonstrarmuitoentusiasmo,masdepois,quandoasmadreseosguardascomeçamacomerpedacinhosdepeixequearrancamcomasmãos,osdoishomens,semseolhar,abremassacolas,acariciamespelhinhosecolares,dividemascontascoloridasenosolhosdavelhaseacendemsúbitasluzesambiciosas.Asmeninasdisputamumagarrafa,ogarotinhomastigacomfúriaeosargentoiapassarmal,merda,iaterdiarreia,ficariainchadofeitoumsapobarrigudo,noseucorpoiamaparecer calombosque explodiriam e sairia pus.Está comumpedaçodepeixenapontados lábios, seusolhinhospiscameoEscuro,oPequenoeoLouro também fazemmuxoxo, amadrePatrocinio fechaosolhos,engole,seurostosecrispa,esóopilotoNieveseamadreAngélicaestendemasmãosconstantementeparaasfolhasecomumaespéciederegozijopressurosodesfiamacarnebranca,tiramasespinhasepõemnaboca.Naselvatodomundoeraumpoucobárbaro,atéasmadres,quemaneiradecomer.Osargentosoltaumarroto, todosolhameele tosse.Osaguarunaspuseramoscolaresnospescoços, ficammostrandoumparaooutro.Asbolinhasdevidrosãogrenáefazemcontrastecomatatuagemqueenfeitaopeitodaquelequeusaseispulseirasdecontasnumbraçoetrêsnooutro.Quandoiampartir,madreAngélica?Osguardasolhamparaosargento,osaguarunasparamdemastigar.Asmeninasestendemasmãos,tocamtimidamentenoscolaresdeslumbrantes,naspulseiras.Tinhamqueesperarosoutros,sargento.OaguarunadetatuagemgrunheeamadreAngélica sim, sargento,estávendo?,coma,eles seofendemcomtantonojo.Eleestavasemfomemasqueria lhedizerumacoisa,madrecita,nãopodiamficarmais tempoemChicais.AmadreAngélica está com a boca cheia, o sargento viera ajudar, suamãomiúda e pétrea aperta uma garrafa delimonada,nãoparadarordens.OPequenotinhaouvidootenente,oqueeledisse?,eelequevoltassememmenosdeoitodias,madre.Jápassaramcinco,equantosparavoltar,donAdrián?,trêsdiassenãochovesse,viu só?, eram ordens, madre, não fique aborrecida com ele. Junto com o rumor da conversa entre osargentoeamadreAngélicaháoutro,áspero:osaguarunasdialogamemaltosbrados,batemnosbraçosunsdos outros e comparam as pulseiras. A madre Patrocinio engole e abre os olhos, e se os outros nãovoltassem?, e sedemorassemummêspara voltar?, claroque era sóumaopinião, e fechaosolhos, talvezesteja enganada, e engole.AmadreAngélica franzeo cenho, surgemnovas linhasno seu rosto, suamãoacaricia amechinhadepelosbrancosdoqueixo.O sargentobebeumgoledo cantil: piorquepurgante,tudoficavaquentenestaterra,nãoeraocalordePiura,odaquiapodreciatudo.OPesadoeoLouroestãodeitadosdecostas,osquepesemcimadorosto,eoPequenoqueriasabersealguémestavaapardaquilo,donAdrián,eoEscuroémesmo,quecontinue,queconte,donAdrián.Erammeiopeixeemeiomulher,ficavamno fundo das lagoas esperando os afogados e, quando uma canoa virava, vinham e pegavam oscristãoseoslevavamparaosseuspaláciosládebaixo.Colocavam-nosnumasredesquenãoeramdejutae

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simdecobras,eláfaziamafestacomeles,eamadrePatrociniojáestavamfalandodesuperstições?,eelesnão, não, e se achavam cristãos?, nada disso, madrecita, estavam se perguntando se ia chover. A madreAngélica inclina-separaos aguarunas grunhindodocemente, sorrindo comobstinação, está comasmãosentrelaçadaseoshomens,semsairdolugar,poucoapoucoseendireitam,alongamospescoçoscomogarçastomandosolnabeiradorioesurgeumvaporzinho,ealgumacoisaassombra,dilatasuaspupilaseopeitodeumdeles incha,suatatuagemsedestaca,seapaga,sedestacaegradualmentevãoavançandoemdireçãoàmadre Angélica, muito atentos, graves, mudos, e a velha cabeluda abre os braços, pega as meninas. Ogarotinhocontinuacomendo,rapazes,agoravinhaapartedifícil,atenção.Opiloto,oPequenoeoEscurofazemsilêncio.OLouroselevantadeolhosvermelhosesacodeoPesado,umaguarunaolhadesoslaioparaosargento,depoisparaocéu,eagoraavelhaabraçaasmeninas,incrusta-asemseusseiosamploselistradose os olhos do garotinho oscilam da madre Angélica para os homens, destes para a velha, desta para osguardas e a madre Angélica. O aguaruna da tatuagem começa a falar, o outro o imita, a velha, umatempestadedesonsabafaavozdamadreAngélicaqueagoranegacomacabeçaecomasmãosederepente,semdeixarderoncarnemdecuspir,lentos,cerimoniosos,osdoishomenstiramoscolares,aspulseirasecaiuma chuva demiçangas sobre as folhas de bananeira.Os aguarunas estendem asmãos para os restos depeixe, entreosquaispassaum fino arroiode formigaspardas.Ficarambravos, rapazes,mas eles estavampreparados,meusargento,erasómandar.Osaguarunaslimpamassobrasdecarnebrancaeazul,apanhamasformigascomasunhas,esmagam-nasecommuitocuidadoenvolvemacomidanasfolhasvenosas.QueoPequenoeoLouroseencarreguemdasmeninas,recomendavaosargentoeoPesadoquesortudos.AmadrePatrocinioestámuitopálida,mexeoslábios,seusdedosapertamascontasnegrasdeumrosárioe,cuidado,sargento, quenão se esquecessemdeque erammeninas, está bem, está bem, e queoPesado e oEscuromantivessem aquela gente nua no lugar e que amadre não se preocupasse e amadre Patrocinio ai e secometessembrutalidades eopiloto se encarregariadas coisas, rapazes,nadadebrutalidades:SantaMaria,MãedeDeus.TodosolhamparaoslábiosexanguesdamadrePatrocinio,eelaRogaipornós,trituracomosdedosasbolinhaspretaseamadreAngélicaacalme-se,madre,eosargentojá,eraagora.Eselevantam,sempressa.OPesadoeoEscurosacodemascalças,abaixam-se,apanhamosfuziseagorahácorrerias,gritosenahora,pisões,omenininhotapaacara,danossamorte,eosdoisaguarunasficaramrígidos,amém,seusdentesestãobatendoeseusolhosperplexos fitamos fuzisqueapontamparaeles.Masavelhaestáempéforcejando com o Pequeno e asmeninas se debatem como enguias entre os braços do Louro. AmadreAngélicacobreabocacomumlenço,apoeiracresceeficaespessa,oPesadoespirraeosargentopronto,podiamirparaobarranco,rapazes,madreAngélica.EquemiaajudaroLouro,sargento,nãovêqueelesestavamsesoltando?OPequenoeavelharolamabraçadosnochão,queoEscurofosseajudá-lo,osargentoo substituiria, vigiaria o pelado.Asmadres andam até o barranco de braços dados, o Louro arrasta duasfigurasemboladasegesticulanteseoEscuropuxafuriosamenteasmadeixasdavelhaatéqueoPequenoselibertaeficaempé.Masavelhavaiatrásdeles,alcança-os,arranha,eosargentopronto,Pesado,jáforamembora.Recuamsemdeixardeapontarparaosdoishomens,deslizamsobreoscalcanhareseosaguarunasselevantamaomesmotempoeavançamimantadospelosfuzis.Avelhapulafeitoumcuatá,caiecapturadois pares de pernas, o Pequeno e o Escuro cambaleiam, Mãe de Deus, também caem e que a madrePatrocinio não grite assim. Uma brisa rápida vem do rio, escala a encosta e traz ativos, envolventestorvelinhos alaranjados e grãos de terra robustos, aéreos comomoscões.Os dois aguarunas ficam dóceisdiantedosfuziseobarrancoestámuitopróximo.Seporacasoseaventurassemcontraele,oPesadoatiraria?E amadreAngélica bruto, podiamatá-los.OLouro pega amenina de brinco pelo braço, por que nãodesciam, sargento?, a outra pelopescoço,mas elas se safavam, estavam se safandodele enão gritammasfazemforçaesuascabeças,ombros,pésepernaslutamebatemevibrameopilotoNievespassacarregandogarrafas térmicas: vamos logo, donAdrián, não estava esquecendo nada?Não, nada, quando o sargento

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quiser.OPequenoeoEscuroseguramavelhapelosombrosepeloscabeloseelaestásentadaberrando,vezporoutrabatesemforçanaspernasdelesebenditoeraofruto,mãe,mãe,doseuventreeescapuliamdoLouro,Jesus.OhomemdetatuagemolhaofuzildoPesado,avelhadáumalaridoechora,doisfiosúmidosabrem finíssimos canais na crosta de poeira do seu rosto e que oPesadonão fosse doido.Mas se eles seaventurassem,sargento,iapartirseuscrânios,nemquefossecomumacoronhada,sargento,eseacabavaabrincadeira.AmadreAngélica tira o lenço da boca: bruto, por que diziamaldades?, por que o sargentopermitiaaquilo?,eoLouropodia irdescendo?,essasbandidasoestavamesfolando.Asmãosdasmeninasnãochegamatéo rostodoLouro, sóatéopescoço, já cheiode riscosvioláceos, e rasgaramsuacamisa earrancaramosbotões.Àsvezesparecemdesanimar,relaxamocorpo,gememeatacamdenovo,seuspésnussechocamcontraasperneirasdoLouro,elepraguejaeassacode,elascontinuamsilenciosamenteequeamadredesça,oqueestavaesperando,etambémoLouroeamadreAngélica,porqueasapertavaassimseerammeninas?,doseuventreJesus,mãe,mãe.SeoPequenoeoEscuroasoltassem,avelhasejogariaemcimadeles,sargento,quefaziam?,eoLourodeixequeelaassegure,olhesó,madre,nãoestávendocomooarranham?Osargentoagitaofuzil,osaguarunaspulam,dãoumpassoatráseoPequenoeoEscurosoltama velha, com as mãos prontas para defender-se, mas ela não se mexe, só esfrega os olhos e ali está ogarotinho, comoque isoladopelos redemoinhos: ele se acocora emete o rosto entre as tetas líquidas.OPequenoeoEscurovãoladeiraabaixo,umamuralharosáceaosengoleaospoucos,ecomooLourofaziaparadescercomelassozinho,merda,oqueestavaacontecendo,sargento,porqueiamemboraeamadreAngélicaseaproximagesticulandoresoluta:elaajudava.Estendeasmãosparaameninadobrinco,masnãotocanela e se dobra e o pequenopunhobate outra vez e o hábito afunda e amadreAngélica solta umgemidoeseencolhe:oqueeulhedisse,oLourosacodeameninacomoumtrapo,madre,nãoeraumafera?Pálidaeencolhida,amadreAngélicainsiste,seguraobraçocomasduasmãos,SantaMaria,eagorauivam,MãedeDeus,esperneiam,SantaMaria,arranham,todostossem,MãedeDeuseemvezdetantarezaeramelhor que fossemdescendo,madre Patrocinio, por que se assustava tanto e até que hora,merda, e atéquando, desçam logo que o sargento já estava irritado,merda. Amadre Patrocinio dámeia-volta, segueencostaabaixoesome,oPesadoavançaofuzileoíndiodetatuagemrecua.Comqueódioolhava,sargento,pareciarancorosoofilhodaputa,eorgulhoso:deviamserassimosolhosdochulla-chaqui,sargento.Ficammaisdistantes asnuvensqueenvolvemtodososqueestãodescendo, avelhachora e se contorce,osdoisaguarunas observam o cano, a culatra, as bocas redondas dos fuzis: que o Pesado nãomexesse o pulso.Certo, sargento,mas quemaneira de olhar era esta, cacete, que direito eles tinham.O Louro, amadreAngélica e asmeninas também sedesvanecem entre ondasdepoeira e a velha se arrastou até a beira dobarranco,olhaparaorio,seusmamilostocamnaterraeogarotoemitesonsestranhos,gritadesesperadocomoumaavelúgubreeoPesadonãogostavadeestartãopertodosselvagens,sargento,comoiamfazerparadesceragoraqueestavamsozinhos.Eentãoomotordalancharonca:avelhasecalaelevantaorosto,olhaparaocéu,ogarotinhoaimita,osdoisaguarunasaimitameosimbecisestavamprocurandoumavião,Pesado,nãopercebiam,eraagora.Recuamofuzilederepenteoavançam,osdoishomenspulamparatrásegesticulameentãoosargentoeoPesadodescemdecostas,sempreapontando,afundandoatéosjoelhoseomotorroncacadavezmaisforte,envenenaoarcomsoluços,gargarejos,vibraçõesesacudidasenaencostanãoécomonaclareira,nãohábrisa,sóarquenteeumapoeiravermelhaeardidaquefazespirrar.Borradas,noaltodobarrancoumascabeçaspeludasexploramocéu,balançamsuavementeprocurandoalgoentreasnuvenseomotorestavaláeasmeninaschorando,Pesado,eeleoquefazer?,meusargento,nãoaguentavamais.Atravessamolodocorrendoequandochegamàlanchaestãoofegantes,comalínguadefora.Jáerahora, por que tinham demorado tanto? Como queriam que o Pesado subisse, vocês estão muitoconfortáveis,seussafados,arranjemlugar.Maseleprecisavaemagrecer,olhemsó,oPesadosubiaealanchaafundavaenãoerahoraparabrincadeiras,quesaiamdeumavez,sargento.Saíamagorinhamesmo,madre

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Angélica,danossamorteamém.

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I

Ouviu-seumaportabater,asuperioralevantouorostodaescrivaninha,amadreAngélicaentroucomoumatromba-d’águanogabinete,suasmãoslívidascaíramsobreoencostodeumacadeira.

—Oquehouve,madreAngélica?Porqueestáassim?—Fugiram,madre!—balbuciouamadreAngélica.—Nãoficounenhuma,meuDeus.—Oquedisse,madreAngélica—asuperioralevantou-secomumpuloejáavançavaparaaporta.—

Aspupilas?—MeuDeus,meuDeus!—assentiaamadreAngélicafazendomovimentoscurtos,idênticos,muito

rápidos,comacabeça,comoumagalinhaciscando.SantaMaría deNieva fica na desembocadura doNieva noAltoMarañón, dois rios que abraçam a

cidade e são seus limites.À sua frente, emergemdoMarañónduas ilhas que servem aosmoradores paramedirascrescenteseasvazantes.Quandonãohánévoasedivisamdopovoado,atrás,morroscobertosdevegetação e,na frente, águas abaixopelo rio largo,osmaciçosda cordilheiraqueoMarañónperfuranopongodeManseriche:dezquilômetrosviolentosderedemoinhos,pedrasecorrentezasquecomeçamnumaguarniçãomilitar,adeTenentePinglo,eacabamnoutra,adeBorja.

—Poraqui,madre—disseamadrePatrocinio.—Olhe,aportaestáaberta,foiporaqui.Amadresuperiora levantoua lamparinae se inclinou:omatoeraumasombrauniformealagadade

insetos.Pôsamãonaportaentreabertaevirou-separaasmadres.Oshábitoshaviamdesaparecidonanoite,masosvéusbrancosresplandeciamcomoplumagensdegarças.

—ProcureaBonifacia,madreAngélica—sussurrouasuperiora.—Leve-aaomeugabinete.—Sim,madre,agoramesmo—alamparinailuminouporumsegundooqueixotrêmulodamadre

Angélica,seusolhinhosquepiscavam.—VáavisardonFabio,madreGriselda—disseasuperiora.—Evocêotenente,madrePatrocinio.

Quecomecemaprocurá-lasagoramesmo.Depressa,madres.Dois halos alvos se separaram do grupo em direção ao pátio da missão. A superiora, seguida pelas

madres, andou até a residência, encostada no muro do pomar, onde um grasnido abafava, a intervaloscaprichosos,oadejardosmorcegoseocantodosgrilos.Entreasárvoresfrutíferasviam-sepiscadasebrilhos,vaga--lumes?,olhosdecorujas?Asuperioraparouemfrenteàcapela.

—Entrem,madres—dissesuavemente.—PeçamàVirgemquenãoocorranenhumadesgraça.Euvoltodepois.

SantaMaríadeNievaécomoumapirâmideirregularesuabasesãoosrios.OportoficanoNievaeemtornodocais flutuantebalançamascanoasdosaguarunas,osbotese lanchasdoscristãos.Maisacimafica a praça quadrada de terra ocre, em cujo centro se erguem dois troncos de pau-mulato, lisos ecorpulentos.NumdelesosguardashasteiamabandeiranasFestasPatrióticas.Eemvoltaficamadelegaciade polícia, a residência do governador, várias casas de cristãos e a cantina de Paredes, que também écomerciante, carpinteiro e sabe preparar puçangas, essas poções que contagiam de amor. E ainda maisacima,nasduascolinasquesãocomoosvérticesdacidade,ficaasededamissão:tetosdezinco,estacasdebarroedemadeira,paredesbranqueadasacal,telametálicanasjanelas,portasdemadeira.

—Nãovamosperdertempo,Bonifacia—disseasuperiora.—Contetudo.—Elaestavanacapela—disseamadreAngélica.—Asmadresaencontraram.

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—Eulhefizumapergunta,Bonifacia—disseasuperiora.—Oqueestáesperando?Estavavestindoumatúnicaazul,umaespéciedeenvoltórioqueescondiaseucorpodosombrosatéos

tornozelos,eseuspésdescalços,damesmacordastábuasacobreadasdochão, jaziamjuntos:doisanimaischatos,policéfalos.

—Nãoouviu?—disseamadreAngélica.—Respondadeumavez.Ovéuescuroqueemolduravaorostodagarotaeapenumbradogabineteacentuavamaambiguidade

dasuaexpressão,entreariscaeindolente,eseusgrandesolhosfitavamfixamenteaescrivaninha;àsvezes,achamadolampiãoagitadapelabrisaquevinhadopomarrevelavaasuacorverde,suasuavecintilação.

—Roubaramaschaves?—disseamadresuperiora.—Vocênãomuda,suadescuidada!—amãodamadreAngélicavoouatéacabeçadaBonifacia.—

Estávendonoquedeuasuanegligência?—Deixecomigo,madre—disseasuperiora.—Nãomefaçaperdermaistempo,Bonifacia.Osbraçosdamoçapendiamnos flancos, a cabeçapermaneciabaixa, a itípak só revelavaum ligeiro

movimentonopeito.Seuslábiosretoseespessosestavamsoldadosnumrictoáspero,eonarizsedilatavaesefranzialevemente,numritmosempreigual.

—Vouficaraborrecida,Bonifacia,estoufalandocomconsideração,evocêécomosenemouvisse—disseasuperiora.—Aquehorasdeixou-assozinhas?Nãotrancouodormitórioachave?

—Faledeumavez,demônio!—amadreAngélicatorceuaitípakdeBonifacia.—Deusvaicastigaresteseuorgulho.

— Você tem o dia todo para ir à capela, mas de noite seu dever é cuidar das pupilas — disse asuperiora.—Porquesaiudodormitóriosemautorização?

Duas batidinhas breves soaram na porta do gabinete, asmadres se viraram, Bonifacia levantou umpoucoaspálpebrase,porumsegundo,seusolhosficarammaiores,maisverdesemaisintensos.

Dascolinasdopovoadosedivisa,cemmetrosàfrente,namargemdireitadorioNieva,obarracodeAdriánNieves, sua chacrinha, edepois sóumdilúviode cipós,matagais, árvoresdegalhos tentaculares ecopas altíssimas.Nasproximidadesdapraça fica a aldeia indígena,uma aglomeraçãode cabanas erguidassobreárvoresdecapitadas.Poraliolododevoraaervaselvagemecircundapoçasdeáguafétidafervilhantesde girinos e de lombrigas. Aqui e acolá, diminutos e quadriculados, há roçados de mandioca, milho,pomaresminúsculos.Damissão,umatrilhaíngremedesceatéapraça.Eatrásdamissãoummuroterrosoresisteàpressãodobosque,ofuriosoataquevegetal.Nessemuroháumaportatrancada,foradeuso.

—Éogovernador,madre—disseamadrePatrocinio.—Pode?—Sim,mande-oentrar,madrePatrocinio—disseasuperiora.A madre Angélica levantou o lampião e resgatou duas figuras imprecisas da escuridão da soleira.

Enroladonumacoberta,delanternanamão,donFabioentroufazendomesuras:—Estava dormindo e vim às pressas,madre, desculpe esta cara— apertou amão da superiora, da

madreAngélica.—Comopodeteracontecidoisso,juroquenãoconsigoacreditar.Imaginocomoestãosesentindo,madre.

Seucrâniocalvopareciaúmido,seurostomagrosorriaparaasmadres.—Sente-se, donFabio—disse a superiora.—Obrigada por ter vindo.Traga uma cadeira para o

governador,madreAngélica.DonFabio sentou-se e a lanternaque estava em suamão esquerda se acendeu:uma rodeladourada

sobreotapetedetucumã.—Jáforamprocurá-las,madre—disseogovernador.—Otenentetambém.Nãosepreocupe,vão

encontrá-lasaindaestanoite.— Aquelas pobres crianças por aí, ao deus-dará, don Fabio, imagine — suspirou a superiora. —

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Felizmentenãoestáchovendo.Nãopodeimaginarosustoquetivemos.—Mascomofoi,madre—perguntoudonFabio.—Aindameparecementira.—Umdescuidodela—disseamadreAngélica,apontandoparaBonifacia.—Deixou-assozinhasefoi

àcapela.Deveteresquecidodefecharaporta.Ogovernador olhouparaBonifacia e seu rosto assumiuumar severo e dolorido.Masum segundo

depoissorriuefezumamesuraparaasuperiora.—Asmeninassãoinconscientes,donFabio—disseasuperiora.—Nãotêmnoçãodosperigos.Istoé

oquemaisnospreocupa.Umacidente,umanimal.—Ah,quemeninas—disseogovernador.—Estávendo,Bonifacia,vocêprecisasermaiscuidadosa.—PeçaaDeusquenãoaconteçanadacomelas—disseasuperiora.—Senão,vaiterremorsosavida

inteira,Bonifacia.— Ninguém as ouviu saindo, madre? — perguntou don Fabio. — Pelo povoado não passaram.

Devemteridopelomato.—Saírampelaportadopomar,porissonãoouvimos—disseamadreAngélica.—Roubaramachave

destatola.—Nãomechamedetola,mamita—disseBonifacia,comosolhosarregalados.—Nãomeroubaram.—Tola, completamente parva—disse amadreAngélica.—Ainda se atreve?Enãome chamede

mamita.—Euabriaportaparaelas—Bonifaciaquasenemabriuoslábios.—Euasdeixeifugir,vêquenão

soutola?DonFabioeasuperioraadiantaramascabeçasnadireçãodeBonifacia,amadreAngélicafechou,abriu

aboca,roncouantesdeconseguirfalar:—Oqueestádizendo?—roncoudenovo.—Vocêasdeixoufugir?—Sim,mamita—disseBonifacia.—Deixei.

— Já está triste outra vez, Fushía—disseAquilino.—Não fique assim, homem.Vamos, converse umpoucoparaatristezapassar.Contedeumavezcomofoiquefugiu.

—Ondeestamos,velho?—disseFushía.—FaltamuitoparaentrarnoMarañón?— Faz tempo que entramos — disse Aquilino. — Você nem percebeu, estava roncando feito um

anjinho.—Foidenoite?—disseFushía.—Comonãosentiascorredeiras,Aquilino?—Estavatãoclaroquepareciademadrugada,Fushía—disseAquilino:—Océuerapuraestrelaeo

tempo,omelhordomundo,nemumamoscasemexia.Dediaaparecempescadores,àsvezesumalanchadaguarnição,denoiteémaisseguro.Edequalquerformavocênemiasentirascorredeiras,euasconheçodecoresalteado.Masnãofaçaessacara,Fushía.Podeselevantarsequiser,deveestarquenteaíembaixodoscobertores.Nãovemninguém,somososdonosdorio.

—Prefiroficaraqui—disseFushía.—Estoucomfrio,meucorpotodoestátremendo.—Certo,homem,fiqueondesesentirmelhor—disseAquilino.—Vamos,contedeumavezcomo

fugiu.Porqueestavatrancafiado?Queidadetinha?Ele tinha idoàescolaepor issoo turco lhederaumbiscatenoarmazém.Faziaascontas,Aquilino,

nuns livrõesque se chamamDébito eCrédito.E embora fossehonestonessa época, já sonhava em ficarrico. Como economizava, velho, só comia uma vez por dia, nada de cigarro, nada de bebida. Queriaarranjar um capitalzinho para fazer negócios. E veja como são as coisas, o turco cismou que estavaroubando, pura mentira, e o mandou para a cadeia. Ninguém quis acreditar que ele era honesto e ometeramnumcalabouçocomdoisbandidos.Nãoeraacoisamaisinjustadomundo,velho?

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—Mas issovocê jácontouquandosaímosda ilha,Fushía—disseAquilino.—Queroquemedigacomofoiquefugiu.

— Com esta gazua — disse Chango — que o Iricuo fabricou com arame do estrado. Jáexperimentamos,abreaportasemfazerbarulho.Querver,japonesinho?

Changoeraomaisvelho,estavaláporproblemascomdrogas,etratavaFushíacomcarinho.Iricuo,aocontrário, sempre zombava dele. Era um bandido que tinha extorquido muita gente com o conto daherança,velho.Foielequemfezoplano.

—Edeucerto,Fushía?—disseAquilino.—Certíssimo—disseIricuo.—Vocêsnãosabemquenoano-novotodoselessomem?Sóficouum

nopavilhão,bastaarrancaraschavesantesqueelejogueparaooutroladodagrade.Dependedisso,rapazes.—Abradeumavez,Chango—disseFushía.—Nãoaguentomais,Chango,abra.—Vocêdeveriaficaraqui,japonesinho—disseChango.—Umanopassarápido.Nósnãoperdemos

nada,masseacoisafalharvocêsedana,pegamaisdoisanos.Maseleinsistiuesaírameopavilhãoestavavazio.Encontraramoguardadormindojuntoàgrade,com

umagarrafanamão.— Dei-lhe uma pancada com o pé da cama e ele desabou — disse Fushía. — Acho que o matei,

Chango.—Rápido,idiota, jáestoucomaschaves—disseIricuo.—Temosqueatravessaropátiocorrendo.

Pegouorevólver?— Vou passar primeiro — disse Chango. — Os outros, na porta principal, também devem estar

bêbadoscomoeste.—Masestavamacordados,velho—disseFushía.—Eramdois, jogandodados.Queolhosabriram

quandonósentramos.Iricuo apontou o revólver: se não abrissem o portão ia começar uma chuva de balas, seus putos. E

qualquergritoquedessemcomeçava,edepressasenãocomeçava,seusputos,achuvadebalas.—Amarre-os,japonesinho—disseChango.—Comoscintos.Eenfieasgravatasnasbocas.Rápido,

japonesinho,rápido.— Não funciona, Chango — disse Iricuo. — Nenhuma delas é a do portão. Chegamos quase lá,

rapazes.—Temqueserumadessas,continuetentando—disseChango.—Oqueéisso,rapaz,porqueestá

chutandoosguardas.—Eporquefaziaisso,Fushía?—disseAquilino.—Nãoentendo,numahoradessassósepensaem

fugir,maisnada.—Estavacomraivadetodosaquelescachorros—disseFushía.—Comonostratavam,velho.Sabe

que mandei os dois para o hospital? Nos jornais diziam crueldade do japonês, Aquilino, vinganças deoriental.Euria,nuncatinhasaídodeCampoGrandeeeramaisbrasileiroquequalquerum.

—Agora é peruano, Fushía—disse Aquilino.—Quando o conheci emMoyobamba, você aindapodiaserbrasileiro,falavaumpoucoesquisito.Masagorafalacomooscristãosdaqui.

—Nembrasileironemperuano—disseFushía.—Umamerda,velho,umverdadeirolixo,issoéoquesouagora.

—Porquetantaviolência?—disseIricuo.—Porquebateuneles?Senospegarem,elesnosmatamdeporrada.

—Tudo está indobem,nãohá tempoparadiscutir—disseChango.—Precisamosnos esconder,Iricuo,erápido,japonesinho,pegueocarroevenhavoando.

—Nocemitério?—disseAquilino.—Issonãoécoisadecristãos.

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—Nãoeramcristãos,erambandidos—disseFushía.—Osjornaisdiziamentraramnocemitérioparaabrirostúmulos.Aspessoassãoassim,velho.

—Evocê roubouocarrodo turco?—disseAquilino.—Como foiquepegaramosoutros e vocêescapou?

—Eles ficaramanoite todanocemitério,àminhaespera—disseFushía.—Apolíciaapareceuaoamanhecer.EujáestavalongedeCampoGrande.

—Querdizerquevocêostraiu,Fushía—disseAquilino.—Poracasonãotraítodomundo?—disseFushía.—OquefoiquefizcomPantachaeoshuambisas?

OquefoiquefizcomJum,velho?—Masnessaépocavocênãoeramau—disseAquilino.—Vocêmesmodissequeerahonesto.—Antesdeentrarnacadeia—disseFushía.—Lá,deixeideser.—EcomoveioparaoPeru?—disseAquilino.—CampoGrandedeveficarbemlonge.—EmMatoGrosso,velho—disseFushía.—OsjornaisdiziamojaponêsestáindoparaaBolívia.

Maseunãoeratãobobo,andeiportudooqueélado,passeiumbocadodetempofugindo,Aquilino.EafinalchegueiaManaus.DeláerafácilpassarparaIquitos.

—EfoiláqueconheceuosenhorJulioReátegui,Fushía?—perguntouAquilino.—Daquelaveznãooconhecipessoalmente—disseFushía.—Masouvifalardele.—Quevidavocêteve,Fushía—disseAquilino.—Quantacoisaviu,quantoslugaresconheceu.Eu

gostode ouvir, não imagina como é interessante.E você, não gosta de contar tudo isso?Não sente queassimaviagempassamaisrápido?

—Não,velho—disseFushía.—Nãosintonadaalémdefrio.

Aoatravessararegiãodasdunas,oventoquedescedacordilheiraseaqueceeconsolida:armadodeareia,segueocursodorioe,quandochegaàcidade,surgeentreocéueaterracomoumacouraçadeslumbrante.Aliesvaziasuasvísceras:todososdiasdoano,nahoradocrepúsculo,umachuvasecaefinacomoserragemdemadeira,quesóparaaoamanhecer,caisobreaspraças,ostelhados,astorres,oscampanários,asvarandaseasárvores,epavimentadebrancoasruasdePiura.Osforasteirosseenganamquandodizem“ascasasdacidadeestãoprestesacair”:osrangidosnoturnosnãovêmdasconstruções,quesãoantigasmasrobustas,esimdos invisíveis, incontáveis,minúsculosprojéteisdeareiabatendonasportasenas janelas.Tambémseenganamquandopensam:“Piuraéumacidaderetraída,triste.”Aspessoassetrancamemcasaaoentardecerparafugirdoventosufocanteedoataquedeareiaquemachucaapelecomoespetadasdeagulhaseadeixavermelhaeferida,masnosbarracosdeCastilla,noscasebresdebarroebambubravodaMangachería,naspicanteríasechicheríasdaGallinacera,nasresidênciasdospoderososnoportoenaPraçadeArmas,todossedivertem como gente de qualquer outro lugar, bebendo, ouvindo música, conversando. O aspectoabandonado emelancólico da cidade desaparece na soleira das casas,mesmo asmais humildes, as frágeismoradiasenfileiradasnasmargensdorio,dooutroladodomatadouro.

Anoitepiuranaécheiadehistórias.Oscamponeses falamdeassombrações;no seucanto, enquantocozinham,asmulherescontamfofocas,desgraças.Oshomenstomamtigelinhasdechichaamarela,ásperoscoposdeaguardentede cana.Esta é serrana, emuito forte:os forasteiros choramquandoaprovampelaprimeiravez.Ascriançasrolamnochão,brigam,tapamosburacosdasminhocas,fabricamarmadilhasparaasiguanasou,imóveis,deolhosesbugalhados,ouvemashistóriasdosmaisvelhos:bandoleirosqueespreitamnas bocainas de Canchaque, Huancabamba e Ayabaca para assaltar os viajantes e, às vezes, degolá-los;mansõesondepenamosespíritos;curasmilagrosasdosbruxos;enterrosdeouroeprataqueanunciamsuapresençacomsonsdecorrentesegemidos;milíciasquedividemosfazendeirosdaregiãoemduasfacçõesepercorremoarealemtodasasdireções,buscando-se,atacando-senomeiodedescomunaisnuvensdepoeira,

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eocupamcasarios edistritos, confiscamanimais, recrutamhomens a laço epagam tudo compapéis quechamamdeBônusdaPátria,milíciasqueosadolescentesaindaviramentraremPiuracomoumfuracãogalopante, armar suas barracas na Praça de Armas e derramar uniformes vermelhos e azuis pela cidade;históriasdedesafios,adultériosecatástrofes,demulheresqueviramaVirgemdaCatedralchorar,oCristolevantaramão,oMeninoDeussorrirfurtivamente.

Aossábados,geralmenteháfestas.Comoumaondaelétrica,aalegriapercorreaMangachería,Castilla,a Gallinacera, os barracos da margem do rio. Em toda Piura ressoam toadas e pasillos, valsas lentas, oshuaynosqueos serranosdançambatendoospésdescalçosnochão, ágeismarinheiras, tristes com fugadetondero.Quandoaembriaguezseespalhaecessamoscantos,odedilhardosviolões,otrovejardascaixaseochorodasharpas,nocasarioqueabraçaPiuracomoumamuralhasurgemsombrasrepentinasquedesafiamoventoeaareia:sãocasaisjovens,ilícitos,queescorregamparaobosqueralodealfarrobeirasquesombreiaoareal, asprainhasescondidasdo rio,asgrutasquedãoparaCatacaos,osmaisaudazesatéocomeçododeserto.Láseamam.

Nocoraçãodacidade,nosquarteirõesquecercamaPraçadeArmas,emcasarõesdeparedescaiadasevarandascompersianas,moramosfazendeiros,oscomerciantes,osadvogados,asautoridades.Denoitesereúnemnospomares,sobaspalmeiras,efalamdaspragasqueameaçamesteanooalgodãoeoscanaviais,especulamseoriovaichegaratempoesevirácaudaloso,comentamoincêndioquedevorouumasroçasdeChápiroSeminario, abrigade galosdodomingo, apachamanca que vão organizar para receber o novomédico local: Pedro Zevallos. Enquanto eles jogam cartas, dominó, nos salões cheios de tapetes epenumbras,entreóleosovais,grandesespelhosemóveisforradosdedamasco,assenhorasrezamorosário,negociamos futurosnoivados,programamasrecepçõeseas festasdebeneficência, sorteiamasobrigaçõesparaaprocissãoeosenfeitesdosaltares,organizamquermessesecomentamosmexericossociaisdojornallocal,umafolhaemcoresquesechamaEcosyNoticias.

Osforasteirosnãoconhecemavida íntimadacidade.OquedetestamemPiura?Seu isolamento,osvastosareaisqueaseparamdorestodopaís,afaltadeestradas,asextensíssimastravessiasacavalosobumsolescaldanteeasemboscadasdosbandoleiros.ChegamaohotelLaEstrelladelNorte,que ficanaPraçadeArmaseéumamansãomeiodesbotada,altacomoocoretoondesefazaretretadosdomingoseemcujasombra se instalam osmendigos e os engraxates, e têm que ficar trancados, a partir das cinco da tarde,vendoatravésdascortinascomoaareiatomacontadacidadesolitária.NacantinadoLaEstrelladelNortebebematécair.“AquinãoécomoemLima”,dizem,“nãoháondesedivertir;opessoaldePiuranãoémau,mas como é austero, como é diurno”. Queriam espeluncas que fervilhassem a noite toda para torrar seusganhos.Porisso,quandovãoembora,costumamfalarmaldacidade,chegamatéàcalúnia.Eporacasohápovomaishospitaleiroecordialqueopiurano?Recebeemtriunfoosforasteiros,disputa-osquandoohotelestácheio.Ospoderososdivertemdamelhormaneiraquepodemessesvendedoresdegado,negociantesdealgodão, cada autoridade que chega: organizam caçadas de veado nas serras de Chulucanas em suahomenagem, fazem passeios pelas fazendas, mandam preparar pachamancas. As portas de Castilla e daMangachería estão sempre abertas para os índios que emigram da serra e chegam à cidade famintos eatemorizados,paraosfeiticeirosexpulsosdasaldeiaspelospadres,paraosmercadoresdemiudezasquevêmtentar fortuna em Piura. Vendedoras de chicha, aguadeiros, varredores os acolhem familiarmente,compartilhamcomelessuacomidaeseusranchos.Quandopartem,osforasteirossemprelevampresentes.Masnadaossatisfaz,têmfomedemulherenãosuportamanoitepiurana,ondesónãodormeaareiaquecaidocéu.

Tanto desejavammulher e diversão noturna aqueles ingratos que, afinal, o céu (“o diabo, omalditochifrudo”, diz o padreGarcía) acabou fazendo a sua vontade. E foi assim que surgiu, buliçosa e frívola,noturna,aCasaVerde.

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OcaboRobertoDelgadoficaumbomtemporondandoaentradadasaladocapitãoArtemioQuiroga,semsedecidir.EntreocéucinzentoeaguarniçãodeBorjapassamlentamentenuvensnegras,eossargentos,naesplanadavizinha,treinamosrecrutas:atençãoporra,descansoporra.Oarestácarregadodevaporúmido.Afinal,quandomuitounspalavrões eo caboempurraaporta e cumprimentao capitãoque sentadoemfrenteàescrivaninha,abanando-secomamão:oqueera,oquequeriaeocaboumalicençaparairaBagua,seriapossível?Oquehaviacomocabo,ocapitãoagoraseabanafuriosamentecomasduasmãos,quebichootinhapicado.MasosbichosnãopicavamocaboRobertoDelgadoporqueeraselvagem,meucapitão,deBagua:queriaumalicençaparavera família.E lávinha,denovo,amalditachuva.Ocapitãose levanta,fechaajanela,voltaparaacadeiracomasmãoseorostoencharcados.Entãoosinsetosnãoopicavam,seráque tinha sangue ruim?, na certa não queriam se envenenar, era por isso que não omordiam e o caboadmite: podia ser,meu capitão.Ooficial sorri comoum autômato e a chuva impregnouo aposento deruídos:asgotascaemcomopedradasnozincodoteto,oventoassobianas frestasdotabique.Quandoocabotiveraasuaúltimalicença?,anopassado?Ah,bom,issoeramoutrosquinhentoseorostodocapitãofica tenso.Então tinhadireitoauma licençade três semanase suamão se levanta, iaparaBagua?, entãopodialhefazerumascompras,ebatenaprópriabochechaeestaenrubesce.Ocabofazumaexpressãograve.Porquenãori?,nãoeraengraçadoqueocapitãodessepalmadasnaprópriacara?Eocabonão,queideia,meucapitão,quenada.Umafaíscajovialcruzaosolhosdooficial,adoçaasuabocaácida,caboclinho:ouriaàsgargalhadasounãohavialicença.OcaboRobertoDelgadoolhaconfusoparaaporta,paraajanela.Porfimabreabocaeri,aprincípioumrisodesinteressadoeartificial,depoisnaturalmentee,afinal,comalegria.Opernilongoque tinhamordidoo capitão erauma fêmea, eo cabo tremede riso, só as fêmeaspicavam,sabia?,osmachoseramvegetarianoseocapitãoforadaquideumavez,ocaboemudece:cuidadocomosinsetosnocaminhoparaBagua,quenãofossemcomê-lodetãoengraçadinho.Masnãoeragraça,eracoisacientífica,sóasfêmeaschupavamosangue:otenenteDelaFlorexplicouisso,meucapitão,eocapitão pouco lhe importava que fossem fêmeas ou machos, ardia do mesmo jeito e quem foi que lheperguntou alguma coisa, sabichão? Mas o cabo não estava caçoando, meu capitão e olhe só, havia umremédioquenãofalhava,umapomadaqueosurakusasfaziam,ialhetrazerumgarrafão,meucapitãoeocapitãoqueriaque falassemcomele emcristão,quemeramessesurakusas.Mascomoocabo ia falar emcristão,osaguarunasquemoravamemUrakusasechamavamassimeporacasoocapitãoviualgumíndiosermordidopor insetos?Eles tinhamos seus segredos, faziamumaspomadascomresinasdeárvores e selambuzavam com elas, pernilongo que chegasse pertomorria na hora e ele ia trazer,meu capitão, umagarrafa,palavraqueialhetrazer.Estamanhãocaboestavadeótimohumor,queroverquecarafariaseospagãoslhereduzissemacacholaeocaboqueboa,queboa,meucapitão:jáestavavendosuacabeçadestetamanhinho.EparaqueocaboiaatéUrakusa?Sóparalhetrazeressapomadinha?Eocaboclaro,claro,ealémdomaisporquecortavacaminho,meucapitão.Senão,passariaa licençainteiraviajandoenãoteriatempoparaafamíliaeosamigos.TodomundoemBaguaeracomoocabo?,eelepior,tãosem-vergonhas?,muitopior,meucapitão,nãopodiaimaginareocapitãoricomentusiasmoeocabooimita,observa,medecomosolhosentrecerradosede repente,podia levarumpiloto,meucapitão?,umajudante?,podia?Eocapitão Artemio Quiroga, como? o cabo se achava muito sabido, não é?, primeiro o amaciava compalhaçadas,ocapitãoriaeelequeria lhepassaraperna,nãoé?Mas sozinhoocabo iademorarhorrores,meucapitão,poracasohaviaestradas?,comopodiairevoltardeBaguaemtãopoucosdiassemumpiloto,etodososoficiaisiamfazerencomendas,precisavadealguémparaajudarcomospacotes,queodeixasselevarum piloto e um ajudante, palavra que lhe traria aquela pomadinha mata-insetos, meu capitão. Agoratrabalhavaseucoração:essecabosabiatudo,eocaboosenhoréumagrandepessoa,meucapitão.Haviaumpilotoentreosrecrutasquechegaramsemanapassada,podialevaresseeumajudantequefossedaregião.Mas isso sim, três semanas, nem um dia a mais e o cabo nem um só, meu capitão, jurava. Bate os

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calcanhares, fazcontinênciaeparanaportadesculpe,meucapitão,comosechamaopiloto?EocapitãoAdriánNieveseocabojáiaporqueaindatinhamuitotrabalhopelafrente.OcaboRobertoDelgadoabreaporta,sai,umventoúmidoeardenteinvadeoquarto,agitalevementeocabelodocapitão.

Bateramnaporta,JosefinoRojasfoiabrirenãoviuninguémnarua.Jáestavaescurecendo,asluzesdojirónTacnaaindanãoestavamacesas,umabrisacirculavatimidamentepelacidade.JosefinodeuunspassosatéaavenidaSánchezCerroeviuosLeón,numbancodapracinha,aoladodaestátuadopintorMerino.Josétinhaumcigarronoslábios,oMacacolimpavaasunhascomumpalitodefósforo.

—Quemmorreu?—disseJosefino.—Porqueessascarasdeenterro.—Segure-separanãocairdecostas,inconquistável—disseoMacaco.—Litumachegou.Josefinoabriuabocamasnãodissenada;ficoualgunssegundospiscando,comumsorrisoperplexoe

apáticoquefranziatodooseurosto.Começouaesfregarasmãos,suavemente.—Háduashoras,noônibusdaRoggero—disseJosé.AsjanelasdoColégioSanMiguelestavamiluminadase,doportão,uminspetorapressavaosalunosda

noite batendopalmas.Rapazes deuniforme vinhamconversando sob as alfarrobeiras sussurrantes da ruaLiberdade.Josefinotinhaenfiadoasmãosnosbolsos.

—Seriabomquevocêviesse—disseoMacaco.—Eleestánosesperando.Josefino tornou a atravessar a avenida, fechou a porta da sua casa, voltou à pracinha e os três

começarama andar, em silêncio.Poucosmetrosdepoisdo jirónArequipa cruzaramcomopadreGarcíaque, envolto emseucachecol cinza, avançavadobradoemdois, arrastandoospés eofegando.Sacudiuopunhoegritou“ímpios!”.“Incendiário!”,respondeuoMacaco,eJosé“incendiário!,incendiário!”.Iampelacalçadadadireita,Josefinonocentro.

—MasosdaRoggerochegamdemanhãoudenoite,nuncaaestahora—disseJosefino.—FicaramparadosnasubidadeOlmos—disseoMacaco.—Estourouumpneu.Trocaramedepois

furaramoutrosdois.Quesortudos.—Ficamosparalisadosquandoovimos—disseJosé.— Ele queria sair para comemorar na mesma hora — disse o Macaco. — Ficou se arrumando

enquantoviemosbuscarvocê.—Issomepegoudesurpresa,droga—disseJosefino.—Oquevamosfazeragora?—disseJosé.—Oquevocêmandar,primo—disseoMacaco.—Tragamocoleguinha,então—disseLituma.—Vamostomarumaseoutrascomele.Vão,digama

elequeoinconquistávelnúmeroquatrovoltou.Queroverquecaraelefaz.—Estáfalandosério,primo?—disseJosé.—Muitosério—disseLituma.—TrouxeumasgarrafasdeSoldeIca,vamosesvaziarumacomele.

Quevontadedevê-lo,juro.Vãolá,enquantoeutrocoderoupa.—Todavezquefaladevocêeledizocoleguinha,oinconquistável—disseoMacaco.—Gostade

vocêtantoquantodenós.—Imaginoquefezummontedeperguntas—disseJosefino.—Oquevocêsinventaram?—Engano seu,nem falamosdo assunto—disseoMacaco.—Elenemamencionou.Quem sabe

esqueceudela.—Quandochegarmosvainosbombardeardeperguntas—disseJosefino.—Temosqueresolvera

coisahojemesmo,antesquealguémconteaele.—Vocêseencarrega—disseoMacaco.—Eunãotenhocoragem.Oquevaidizer?—Nãosei—disseJosefino—,dependedecomocorramascoisas.Sepelomenostivesseavisadoque

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vinha.Masaparecerassim,desupetão.Quediabo,eunãoesperavaisso.—Paredeesfregaressasmãos—disseJosé.—Estámecontagiandooseunervosismo,Josefino.—Elemudoumuito—disseoMacaco.—Nota-sequeosanospassaram, Josefino.Enãoestá tão

gordocomoantes.As luzesda avenidaSánchezCerro acabavamde se acender e as casas ainda eramamplas, suntuosas,

comparedesclaras,varandasdemadeiratrabalhadaealdravasdebronze,masaofundo,nosestertoresazuisdo crepúsculo, já aparecia o perfil irregular e impreciso da Mangachería. Uma caravana de caminhõesdesfilavapelapistaemdireçãoàPonteNovae,nascalçadas,haviacasaisencostadosnosportões,turmasderapazes,lentosanciãoscombengalas.

— Os brancos ficaram valentes — disse Lituma. — Agora passeiam pela Mangachería como seestivessememcasadeles.

—A culpa éda avenida—disse oMacaco.—Foiumaviolência contraosmangaches.Durante aobra,oharpistadizianosdesgraçaram,acabou-seaindependência,todomundovaimeteronariznobairro.Ditoefeito,primo.

—Agoranãohábrancoquenãoterminesuasfestasnaschicherías—disseJosé.—ViucomoPiuracresceu, primo?Edifícios novos em todos os lados.Mas issonão vai chamar a sua atenção, chegandodeLima.

—Vou dizer uma coisa a vocês— disse Lituma.—Paramim acabaram as viagens. Penseimuitoduranteestetempoepercebiquemedeimalpornãoterficadonaminhaterra,comovocês.Pelomenosaprendiumacoisa,quequeromorreraqui.

—Podeserquemudedeideiaquandosouberoqueaconteceu—disseJosefino.—Vaitervergonhadeserapontadonarua.Eentãovaiembora.

Josefinoparoudeandarepuxouumcigarro.OsLeónfizeramumaproteçãocomasmãosparaqueabrisanãoapagasseofósforo.Continuaramandando,devagar.

—Esenãofor?—disseoMacaco.—Piuravaificarpequenaparaosdois,Josefino.—ÉdifícilqueLitumaváembora,porquejáviroupiuranoatéosossos—disseJosé.—Nãoécomo

quandovoltoudacordilheira,detestandotudooqueeradaqui.EmLimaseuamorpelaterradespertou.—Nadadechifas—disseLituma.—Queropratospiuranos.Umbom secodechabelo,umpiqueo e

claritoamares.—Então vamos para o restaurante de AngélicaMercedes, primo— disse oMacaco.—Continua

sendoarainhadascozinheiras.Nãoseesqueceudela,certo?— É melhor em Catacaos, primo — disse José. — No Carro Hundido, é o melhor clarito que

conheço.—ComoestãocontentescomachegadadeLituma—disseJosefino.—Parecequehojeédiadefesta

paravocêsdois.—Afinaldecontas,eleénossoprimo,inconquistável—disseoMacaco.—Ésempreumprazerrever

alguémdafamília.—Temosquelevá-loaalgumlugar—disseJosefino.—Deixá-loumpoucoalto,antesdefalarcom

ele.—Masespere,Josefino—disseoMacaco—,nãoacabamosdecontar.—AmanhãvamosàcasadadonaAngélica—disseLituma.—OuaCatacaos,sepreferirem.Mashoje

jáseiondequerofestejaraminhavolta,vocêstêmquefazeroquequero.—Ondequerir,merda?—disseJosefino.—AoRainha,aoTrêsEstrelas?—ÀcasadaChungaChunguita—disseLituma.—Quecoisa—disseoMacaco.—ÀCasaVerde,nadamais,nadamenos.Vejasó,inconquistável.

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II

—Vocêéodemônioempessoa—disseamadreAngélicaeinclinou-seemdireçãoaBonifacia,deitadanochãocomoumaanimáliaescura,compacta.—Umamalvada,umaingrata.

—Aingratidãoéapiorcoisaqueexiste,Bonifacia—disseasuperioralentamente.—Atéosanimaissãoagradecidos.Jáviuosmicosquandoganhambananas?

Os rostos, asmãos,os véusdasmadrespareciam fosforescentesnapenumbradadespensa;Bonifaciacontinuavaimóvel.

—Umdiavocêhádeentenderoquefez,evaisearrepender—disseamadreAngélica.—Esenãosearrepender,vaiparaoinferno,suaperversa.

Aspupilasdormemnumquarto comprido, estreito, fundocomoumpoço;nasparedesnuashá trêsjanelasqueseabremparaoNieva,aportaúnicadáparaoamplopátiodamissão.Nochão,encostadasnaparede,ficamascaminhasdobráveisdelona:aspupilasasfechamquandoselevantam,abrem,earmamdenovoànoite.Bonifaciadormenumcatredemadeira,nooutroladodaporta,numquartinhoqueéumaespéciedecunhaentreodormitóriodaspupilaseopátio.Acimadoseuleitoháumcrucifixoe,aolado,umbaú.Ascelasdasmadresestãonooutroextremodopátio,naresidência:umaconstruçãobranca,comumtetodeduaságuas,muitasjanelassimétricaseumcorrimãodemadeiramaciça.Juntoàresidênciaficamorefeitórioeasaladelavores,queéondeaspupilasaprendemafalaremcristão,soletrar,somar,costurarebordar.Asaulasdereligiãoedemoralsãonacapela.Numcantodopátioháumlocalparecidocomumhangar,adjacenteaopomardamissão; suaaltachaminévermelha sedestacaentreosgalhos invasoresdobosque:éacozinha.

—Vocêeradestetamanhoejásepodiaadivinharnoqueiadar—amãodasuperioraestavaameiometrodochão.—Sabedoqueestoufalando,nãoémesmo?

Bonifacia se inclinou, levantouacabeça, seusolhosexaminaramamãodasuperiora.Aalgaraviadospapagaiosnopomar chegava até aquele cantodadespensa.Pela janela, a ramagemdas árvores jápareciaescura,inextrincável.Bonifaciapôsoscotovelosnochão:nãosabia,madre.

—Tambémnãosabetudooquefizemosporvocê,nãoé?—explodiuamadreAngélicaandandodeumladoparaoutro,comospunhosfechados.—Tambémnãosabecomoeraquandoarecolhemos,nãoé?

—Comoquerquesaiba—sussurrouBonifacia.—Eueramuitopequena,mamita,nãomelembro.—Olhesóavozinhaqueelafaz,madre,comoparecedócil—berrouamadreAngélica.—Vocêacha

que vaime enganar? Por acaso não a conheço?E com autorização de quem continuame chamandodemamita.

Depoisdasoraçõesdanoite,asmadresentramnorefeitórioeaspupilas,precedidasporBonifacia,vãoparaodormitório.Armamsuascamase,quando jáestãodeitadas,Bonifaciaapagaos lampiõesderesina,fechaaportaachave,ajoelha-seaopédocrucifixo,rezaesedeita.

—Vocêcorriaparaopomar,arranhavaaterrae,quandoencontravaumaminhoca,umverme,botavanaboca—disseasuperiora.—Estavasempredoente,equemtratavaecuidavadevocê?Tambémnãoselembra?

—Evivianua—gritouamadreAngélica—,sóparaeulhefazervestidos,vocêosarrancavaesaíamostrandoasvergonhasparatodomundo,ejádeviatermaisdedezanos.Tinhamausinstintos,demônio,vocêsógostavadeimundícies.

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Aestaçãodaschuvashavia terminadoe jáanoiteciacedo:por trásdacrispaçãodegalhose folhasnajanela,océueraumaconstelaçãodeformassombriasefaíscas.Asuperioraestavasentadaemcimadeumsaco, bem ereta, e a madre Angélica ia e voltava, sacudindo o punho, às vezes a manga do hábito selevantavaeapareciaoseubraço,umaesquálidacobrinhabranca.

— Nunca imaginei que você seria capaz de uma coisa dessas — disse a superiora. — Como foi,Bonifacia?Porquefezisso?

—Nãopensouqueelaspodiammorrerdefomeouseafogarnorio?—disseamadreAngélica.—Queiampegarafebre?Nãopensouemnada,bandida?

Bonifaciasoluçou.Adespensaestavaimpregnadadeumcheirodeterraácidaevegetaisúmidosqueseacentuavacomassombras.Umcheiroespessoepicante,noturno,quepareciaatravessarajanelajuntocomoscantosdosgrilosedascigarras,jámuitonítidos.

—Vocêeraquaseumbichinhoenóslhedemosumlar,umafamíliaeumnome—disseasuperiora.—TambémlhedemosumDeus.Istonãosignificanadaparavocê?

—Não tinhaoque comernemoque vestir— resmungou amadreAngélica—, enós a criamos,vestimos,educamos.Porquefezissocomasmeninas,suamalvada?

Dequandoemquando,umtremorpercorriaocorpodeBonifaciadacinturaatéosombros.Ovéutinhasesoltadoeseuscabeloslisosescondiampartedatesta.

—Paredechorar,Bonifacia—disseasuperiora.—Faledeumavez.Amissão acorda ao amanhecer, quando o rumor dos insetos é substituído pelo canto dos pássaros.

Bonifacia entra no dormitório balançando um sininho: as pupilas pulam das camas, rezam ave-marias,enfiam os aventais. Depois se dividem em grupos distribuídos segundo as suas obrigações na missão: asmenores varremopátio, a residência,o refeitório; asmaiores, a capela e a salade lavores.CincopupilascarregamoscestosdelixoatéopátioeesperamBonifacia.Guiadasporeladescematrilha,cruzamapraçadeSantaMaríadeNieva,atravessamosroçadose,antesdechegaràcabanadopilotoNieves,seinternamporumatalhoque serpenteiaentrecapanahuas,chontas e tucumãsedesembocanumapequenagarganta,que é o depósito de lixo do povoado.Uma vez por semana, os funcionários do prefeitoManuelÁguilafazemumagrande fogueira comos resíduos.Os aguarunasdos arredores vêm rondar toda tardepor ali,algunsdeles remexemo lixoembuscadecomestíveis edeobjetoscaseiros enquantooutrosafastamcomgritosepazadasasavescarnívorasqueplanamcobiçosamenteacimadagarganta.

— Não se importa que as meninas voltem a viver na indecência e no pecado? — perguntou asuperiora.—Queesqueçamtudooqueaprenderamaqui?

—Suaalmacontinuasendopagã,pormaisquevocêfalecristãoenãoandemaisnua—disseamadreAngélica.—Ela não só não se importa,madre, ela as deixou fugir porque preferia que voltassem a serselvagens.

—Asmeninasqueriamirembora—disseBonifacia—,saíramaopátioeforamatéaportaevinosseusrostosqueelastambémqueriamir,juntocomasduasquechegaramontem.

—Evocêfezoqueelasqueriam!—gritouamadreAngélica.—Porqueestavacomraiva!Porquelhedavamtrabalhoevocêodeiaotrabalho,suapreguiçosa!Demônio!

—Acalme-se,madreAngélica—asuperioraselevantou.AmadreAngélicalevouumadasmãosaopeito,tocounatesta:asmentirasatiravamdosério,madre,

sentiamuito.—Foiporcausadasduasqueasenhoratrouxeontem,mamita—disseBonifacia.—Eunãoqueria

que as outras fossem embora, só aquelas duas porque me deu pena. Não grite assim, mamita, vai ficardoente,semprequeseaborreceasenhoraficadoente.

QuandoBonifaciaeaspupilasquelevamolixoparaforavoltamparaamissão,amadreGriseldaesuas

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ajudantesjáprepararamarefeiçãodamanhã:fruta,caféeumpãozinhofeitonofornodamissão.Depoisdocafé,aspupilasvãoparaacapela,têmaulasdecatecismoehistóriasagradaeaprendemasorações.Aomeio-dia voltam para a cozinha e, sob a direção da madre Griselda — vermelha, sempre ágil e loquaz —,preparam o almoço: sopa de legumes, peixe, mandioca, dois pãezinhos, fruta e água do filtro. Depois,podembrincarduranteumahoranopátioenopomar,ousentar-seàsombradasárvoresfrutíferas.Depoissobemparaa salade lavores.Àsnovatas,amadreAngélicaensinacastelhano,oalfabetoeosnúmeros.Asuperiora se encarrega dos cursos de história e geografia, a madre Ángela das aulas de desenho e artesdomésticaseamadrePatrociniodematemática.Aoentardecer,asmadreseaspupilasrezamorosárionacapelaevoltamadividir-seemgruposdetrabalho:acozinha,opomar,adespensa,orefeitório.Arefeiçãodanoiteémaislevequeadamanhã.

—Elasme falavamda aldeia parame convencer,madre—disseBonifacia.—Emeofereciamdetudo,davamatépena.

—Nemmentirvocêsabe,Bonifacia—asuperioradesenlaçouasmãoseestasrevoarambrancamentenastrevasazuisetornaramajuntar-senumaformaredonda.—AsmeninasqueamadreAngélicatrouxedeChicaisnãofalavamcristão,viucomoestápecandoemvão?

—Eufalopagão,madre,asenhoranãosabia.—Bonifacialevantouacabeça,duaschaminhasverdescintilaramporum segundodebaixodos seus cabelos:—Aprendide tantoouvir aspagãsmasnunca lhecontei.

—Mentira,demônio—gritouamadreAngélica,eaformaredondasepartiuebateuasassuavemente.—Olhesóoqueelainventaagora,madre.Bandida!

Masfoiinterrompidaporgrunhidosquebrotaramcomosenadespensahouvesseumanimalescondidoque,subitamenteenfurecido,sedelatavauivando,roncando,ronronando,faiscandosonsaltosecrepitantesnaescuridão,numaespéciededesafioselvagem:

—Vê,mamita?—disseBonifacia.—Nãoentendeuomeupagão?Todos os dias há missa, antes da refeição da manhã, rezada pelos jesuítas de uma missão vizinha,

geralmenteopadreVenancio.Aosdomingosacapelaabreasportaslaterais,paraqueoshabitantesdeSantaMaría de Nieva possam presenciar o ofício. Nunca faltam autoridades e às vezes vêm agricultores,seringueirosdaregiãoemuitosaguarunasqueficamnasportas,seminus,apertadosecoibidos.Detarde,amadreAngélica e Bonifacia levam as pupilas até a beira do rio e lá as deixam brincar, pescar, subir nasárvores.Aosdomingosoalmoçoémaisabundanteecostumaincluircarne.Aspupilassãoquasevinte,deidadesque vãode seis aquinze anos, todas aguarunas.Às vezes se vêumameninahuambisaou atéumashapraentreelas.Masnãoéfrequente.

—Nãogostodemesentirinútil,Aquilino—disseFushía.—Queriaquetudovoltasseasercomoantes.Estaríamosnosrevezando,lembra?

—Lembro,homem—disseAquilino.—Aliás,foiporsuacausaquemetorneioquesou.—Émesmo,vocêaindaestariavendendoáguadeportaemportaseeunãochegasseaMoyobamba—

disseFushía.—Quemedovocêtinhadorio,velho.—SódoMayo,porquequasemeafogueiquandoerajovem—disseAquilino.—Massempretomava

banhonoRumiyacu.—NoRumiyacu?—perguntouFushía.—PassaporMoyobamba?—Aqueleriomansinho,Fushía—disseAquilino—,queatravessaasruínas,pertodeondeoslamistas

vivem.Commuitospomarescheiosdelaranjeiras.Nãoselembradaslaranjasmaisdocesdomundo?—Sintoatévergonhadevervocêdandoduroodiatodoeeuaqui,feitoummorto—disseFushía.—Masnãoprecisoremarnemnada,homem—disseAquilino—,ésómanterorumo.Agoraquejá

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passamosascorredeiras,oMarañónfazotrabalhosozinho.Sónãogostoédevervocêtãocalado,olhandoparaocéucomosetivessevistoochulla-chaqui.

—Nuncavi—disseFushía.—Aquinaselvatodomundojáviualgumavez,menoseu.Azaraténisso.—Émelhordizerquefoisorte—disseAquilino.—Sabiaqueumavezapareceubemnafrentedo

senhor Julio Reátegui?Numa bocaina doNieva, dizem.Mas ele viu que o outromancavamuito, e derepentedescobriuapernacurtaebotou-oparacorreratiros.Aliás,Fushía,porquebrigoucomosenhorReátegui?Vocênacertafezalguma.

Tinha feito muitas, a primeira antes de conhecê-lo, recém-chegado a Iquitos, velho. Muito depoisacabou contando-lhe e Reátegui riu, então foi você que passou a perna no coitado do don Fabio?, eAquilinoosenhordonFabio,governadordeSantaMaríadeNieva?

—Àssuasordens,senhor—dissedonFabio.—Oquedeseja.VaificarmuitotempoemIquitos?Iriaficarumbomtempo,talvezdefinitivamente.Negócioscommadeira,sabe?,iainstalarumaserraria

pertodeNautaeestavaesperandoosengenheiros.Tinhamuitotrabalhoatrasadoepagariamaiscaro,masqueria um quarto grande, confortável, e don Fabio não há problema, senhor, estava lá para atender osclientes,velho:engoliutudinho.

—Emedeuomelhorquartodohotel—disseFushía.—Comjanelasparaumjardimcomváriasbombonaças.Gostavademeconvidarparaalmoçarenãoparavadefalardoseupatrão.Euentendiamaisoumenos,naqueletempoomeuespanholeramuitoruim.

—OsenhorReáteguinãoestavaemIquitos?—disseAquilino.—Jáerariconessaépoca?—Não, ficou rico de verdade depois, com o contrabando—disse Fushía.—Mas já tinha aquele

hotelzinhoeestavacomeçandoafazernegócioscomastribos,porissoéquefoiparaSantaMaríadeNieva.Comprava látex, couros e vendia em Iquitos. Foi lá que tive a ideia, Aquilino.Mas é sempre amesmahistória,euprecisavadeumcapitalzinhoenãotinhaumcentavo.

—Evocêlevoumuitodinheiro,Fushía?—disseAquilino.—Cincomilsoles,donJulio—dissedonFabio.—Eomeupassaporteeunstalheresdeprata.Estou

arrasado,senhorReátegui,imaginocomoosenhordeveestaraborrecidocomigo.Masvoulhepagartudo,juro,comosuordomeurosto,donJulio,atéoúltimocentavo.

—Nuncasentiuremorsos,Fushía?—disseAquilino.—Fazumbocadodeanosquequerialhefazerestapergunta.

—PorroubardocachorrodoReátegui?—disseFushía.—Esseaíéricoporquerouboumaisqueeu,velho.Maselejácomeçoucomalgumacoisa,eunãotinhanada.Semprefoiesseomeuproblema,terquecomeçardezero.

—Masparaqueosenhortemcabeça,então?—disseJulioReátegui.—Comonãopensouempedirosdocumentosdele,donFabio.

Mastinhapedidoeopassaporteparecianovinho,comopodiasaberqueerafalso,donJulio?Alémdomais,chegoubem-vestidoe falandodeumjeitoqueconvencia.EatépensavaquandoosenhorReáteguivoltardeSantaMaríadeNievavouapresentá-loseosdoisvãofazergrandesnegóciosjuntos.Comoeueraingênuo,donJulio.

—Eoquevocêlevavanessamala,Fushía?—disseAquilino.—MapasdaAmazônia,senhorReátegui—dissedonFabio.—Enormes,comoosmapasdoquartel.

Pendurou-osnoquartoediziaépara saberporondevamos levaramadeira.Fazia riscoseanotaçõesembrasileiro,olhequecoisaestranha.

— Não há nada de estranho, don Fabio — disse Fushía. — Além da madeira, também estouinteressadonocomércio.Eàsvezeséútiltercontatoscomosindígenas.Porissomarqueiastribos.

—AtéasdoMarañónedeUcayali,donJulio—dissedonFabio—,eeupensavaqueempreendedor,

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vaifazerumbeloparcomosenhorReátegui.—Lembracomoqueimamososseusmapas?—disseAquilino.—Erampurolixo,oscarasquefazem

osmapasnãosabemqueaAmazôniaéfeitomulhernocio,nãoparaquieta.Aquitudosemexe,osrios,osanimais,asárvores.Queterraloucaestanossa,Fushía.

—Eletambémconheceaselvaa fundo—dissedonFabio.—Vouapresentá-losquandovoltardoAltoMarañónevocêsdoisvãoficaramigos,senhor.

—AquiemIquitostodosfalammaravilhasdele—disseFushía.—Gostariadeconhecê-lo.NãosabequandovemdeSantaMaríadeNieva?

—Temnegócioslá,edepoisogovernoocupatodooseutempo,massempredáumasescapadinhas—disse don Fabio. — Uma vontade de ferro, senhor, herdou do pai, outro grande homem. Foi um dosgrandesdaborracha,naépocaprósperade Iquitos.Quandoveioacrise, ele se suicidou.Perderamatéascalças.MasdonJuliosereergueu,sozinho.Umavontadedeferro,juro.

—UmavezlheofereceramumalmoçoemSantaMaríaeoouvifazerumdiscurso—disseAquilino.—Faloudopaicommuitoorgulho,Fushía.

—Opaieraumdosseusassuntosprediletos—disseFushía.—Tambémfalavamuitodelequandotrabalhamosjuntos.Ah,essecachorrodoReátegui,quesortudodemerda.Sempretiveinveja,velho.

—Tãobranquinho,tãocarinhoso—dissedonFabio.—Epensarquefaziagracinhas,lambiaosseuspés,bastavaeleentrarnohoteleJesucristolevantavaorabinho,todocontente.Quehomemmaldito,donJulio.

—EmCampoGrande, chutandoosguardas e emIquitos,matandoumgato—disseAquilino.—Quedespedidasassuas,Fushía.

—Naverdade,donFabio, issonãomeparece tãograve—disseJulioReátegui.—Oque lamentomesmoéquetenhalevadoomeudinheiro.

Mas para ele era muito doloroso, don Julio, enforcado com um lençol no mosquiteiro, entrar noquarto e, de repente, vê-lo balançando no ar, rígido, com os olhinhos esbugalhados. A maldade pelamaldadeeraumacoisaqueelenãoentendia,senhorReátegui.

—Ohomemfazoquepodeparaviver,euentendoosseusroubos—disseAquilino.—Masparaquefazerissocomogato,foicoisaderaiva,pornãoterumcapitalparacomeçar?

—Issotambém—disseFushía.—Edepoisporqueoanimalfediaemijounaminhacamaummontedevezes.

Etambémécoisadeasiáticos,donJulio,elestinhamunscostumescanalhas,ninguémpodiasabereeledescobriu,porexemplo,oschinesesdeIquitoscriavamgatosemgaiolasparaengordarcomleiteedepoisbotarnapanelaecomer,senhorReátegui.Maselequeriafalaragoradascompras,donFabio,paraissovieradeSantaMaríadeNieva,vamosesquecerascoisastristes,conseguiucomprar?

—Tudooqueosenhorencomendou,donJulio—dissedonFabio—,osespelhinhos,as facas,ostecidos,asmiçangas,ecombonsdescontos.QuandovaivoltarparaoAltoMarañón?

—Eunãopodiaentrarsozinhonomatoparafazercomércio,precisavadeumsócio—disseFushía.—Etinhaqueencontrá-lolongedeIquitos,depoisdaquelaconfusão.

— Foi por isso que veio a Moyobamba — disse Aquilino. — E se tornou meu amigo para tercompanhia nas tribos. Quer dizer, começou imitando Reátegui antes mesmo de conhecê-lo, de serempregadodele.Comovocêfalavadedinheiro,Fushía,venhacomigoAquilino,numanovaificarrico,euacabavaquasedoidocomessacantilena.

—Enofinal,foitudoàtoa—disseFushía.—Eumesacrifiqueimaisquequalqueroutro,ninguémsearriscoutantoquantoeu,velho.Éjustoqueacabeassim,Aquilino?

—SãocoisasdeDeus,Fushía—disseAquilino.—Nãonoscabejulgar.

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NumaabafadamadrugadadedezembroumhomemchegouaPiura.Montadonumamulaquesearrastavacomdificuldade,elesurgiuderepenteentreasdunasdosul:umasilhuetacomumchapéudeabaslargas,envolta numponcho leve.Através da luz vermelhada alvorada, quando as línguas do sol começam a searrastarpelodeserto,oforasteirodeveterficadoanimadocomaapariçãodasprimeirasmoitasdecactos,asalfarrobeiras calcinadas, as casas brancas de Castilla que se apinham e multiplicam à medida que seaproximamdorio.Avançoupelaatmosferadensaatéacidade,quejádivisava,naoutramargem,cintilandocomo um espelho.Atravessou a única rua deCastilla, ainda deserta, e quando chegou à PonteVelha seapeou.Ficouunssegundosobservandoasconstruçõesdaribeira,asruasempedradas,ascasascomvarandas,o ar coalhado de grãozinhos de areia que caíam suavemente, a maciça torre da catedral com seu sinoredondocordefuligeme,maisparaonorte,asmanchasesverdeadasdaschácarasqueseguemocursodorionadireçãodeCatacaos.Empunhouasrédeasdamula,atravessouaPonteVelhae,batendovezporoutracomochicotenaspernas,percorreuaruaprincipaldacidade,aquelaquevai,retaeelegante,dorioatéaPraça de Armas. Ali parou, amarrou o animal num tamarineiro, sentou-se no chão e puxou as abas dochapéuparaproteger-sedaareiaque fustigavaseusolhos sempiedade.Devia ter feitouma longaviagem:seusmovimentos eram lentos, cansados.Quando, já terminadaa chuvade areia,osprimeirosmoradoresapareceramnapraçatotalmenteiluminadapelosol,oestranhodormia.Aoseuladoestavaamula,comofocinho coberto de baba esverdeada, os olhos em branco.Ninguém se atreveu a acordá-lo. A notícia seespalhou pelos arredores, em pouco tempo a Praça de Armas ficou cheia de curiosos que, trocandocotoveladas, murmuravam coisas sobre o forasteiro, empurrando-se para chegar mais perto dele. Algunssubiram no caramanchão, outros observavam empoleirados nas palmeiras. Era um jovem atlético, deombrosquadrados,umabarbinhacrespabanhavaoseurostoeacamisasembotõesrevelavaumpeitocheiode músculos e penugem. Estava dormindo de boca aberta, roncando suavemente; entre seus lábiosressecadosviam-sedentesquelembravampresasdeummastim:amarelos,grandes,carnívoros.Suascalças,suasbotas,oponchodesbotadoestavamemfarrapos,encardidos,eochapéutambém.Nãoestavaarmado.

Quandoacordou,levantou-sebruscamente,ematitudedefensiva:sobaspálpebrasinchadas,seusolhosinquietos examinavamamultidãode rostos.De todosos ladosbrotaram sorrisos,mãos espontâneas,umancião abriu caminhoaos empurrões e lhedeuumacabaçade água fresca.Entãoodesconhecido sorriu.Bebeudevagar,saboreandoaáguacomcobiça,osolhosaliviados.Ouviu-seummurmúriocrescente,todosdisputavam a vez de conversar como recém-chegado, perguntar sobre sua viagem, lamentar amorte damula. Ele agora ria abertamente, apertava muitas mãos. Depois, tirou os alforjes da sela do animal eperguntouporumhotel.Rodeadodevizinhossolícitos,atravessouaPraçadeArmaseentrounoLaEstrelladel Norte: estava cheio. Os vizinhos o tranquilizaram, muitas vozes lhe ofereceram hospitalidade.Hospedou-senacasadeMelchorEspinoza,umvelhoquemoravasozinho,noporto,pertodaPonteVelha.Tinhaumapequenachácaradistante,nabeiradoChira,aondeiaduasvezespormês.Nesseano,MelchorEspinoza bateu um recorde: hospedou cinco forasteiros. Geralmente eles ficavam em Piura o temponecessárioparacompraruma safradealgodão,venderumascabeçasdegado, colocarunsprodutos;querdizer,unsdias,nomáximoalgumassemanas.

O estranho, ao contrário, ficou. O povo do lugar descobriu poucas coisas sobre ele, quase todasnegativas: não era negociante de gado, nem coletor de impostos, nem caixeiro-viajante. Chamava-seAnselmoediziaserperuano,masninguémconseguiureconheceraorigemdoseusotaque:nãotinhaafaladúbiaeafeminadadoslimenhos,nemaentonaçãocantantedeumchiclayano;nãopronunciavaaspalavrascomaperfeiçãoviciosadopessoaldeTrujillo,nemdeviaserserrano,poisnãoestalavaalínguanoserreseesses. Seu sotaque era diferente,muitomusical e umpouco lânguido, insólitos os giros emodismos queempregava,e,quandodiscutia,aviolênciadasuavozfaziapensarnumcapitãodasmilícias.Osalforjesqueconstituíam toda a suabagagemdeviamestar cheiosdedinheiro: como tinha atravessadoo areal sem ser

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assaltadopelosbandoleiros?Ninguémconseguiusaberdeondevinha,nemporquetinhaescolhidoPiuracomodestino.

No dia seguinte à sua chegada apareceu na Praça de Armas barbeado, e a juventude do seu rostosurpreendeu todo mundo. Comprou uma calça nova e umas botas no armazém do espanhol EusebioRomero;pagouàvista.Doisdiasmais tarde, encomendouàTaciturna, a célebre tecelãdeCatacaos,umchapéudepalhabranca,dessesquesepodemguardarnobolsoedepoisnãoficamnemmarcas.Todasasmanhãs,AnselmoiaparaaPraçadeArmase,instaladonavarandadoLaEstrelladelNorte,convidavaostranseuntes para beber. Assim fez amigos. Era conversador e brincalhão, e conquistou os moradoreslouvandoosencantosdacidade:asimpatiadaspessoas,abelezadasmulheres,osesplêndidoscrepúsculos.Aprendeulogoasfórmulasdalinguagemlocalesuamusicalidadequente,preguiçosa:empoucassemanasjádizia gua para demonstrar assombro, chamava as crianças de churres, os burros de piajenos, formavasuperlativosdesuperlativos,sabiadistinguiroclaritodachichaespessaeasvariedadesdetemperospicantes,sabiadecorosnomesdaspessoasedasruas,edançavatonderocomoosmangaches.

Suacuriosidadenãotinhalimites.Manifestavauminteressedevoradorpeloscostumeseusosdacidade,informava-seemdetalhessobreasvidaseasmortes.Queriasaberdetudo:quaiseramosmaisricos,eporquê,edesdequando;seoprefeito,oalcaideeobispoeramíntegrosequeridosequaiseramasdiversõesdopovo,queadultérios,queescândalosabalavamasbeataseospadres,comoosvizinhospraticavamareligiãoeamoral,queformasoamortinhanacidade.

TodososdomingosiaaoColiseueseexaltavanasbrigasdegalocomoumvelhoapreciador,denoiteeraoúltimoasairdacantinadoLaEstrelladelNorte,jogavabaralhocomelegância,apostandoalto,esabiaganhareperdersemsealterar.Assimconquistouaamizadedoscomerciantesefazendeiroseficoupopular.Os ricaços o convidaram para uma caçada em Chulucanas e ele deslumbrou os participantes com suapontaria. Ao vê-lo na rua, os camponeses o chamavam familiarmente pelo nome e ele respondia compalmadasrudesecordiais.Aspessoasgostavamdoseuespíritojovial,dadesenvolturadassuasmaneiras,dasualargueza.Mastodosviviamintrigadoscomaorigemdoseudinheiroecomseupassado.Começaramacircular pequenos mitos sobre ele: quando chegavam aos seus ouvidos, Anselmo dava gargalhadas, nãodesmentianemconfirmava.Àsvezespercorriaaschicheríasmangachescomamigosesempreterminavanacasa de Angélica Mercedes, porque lá havia uma harpa e ele era um harpista de primeira, inimitável.Enquanto os outros sapateavam e brindavam, ele ficava acariciando horas a fio, num canto, as cordasbrancasquelheobedeciamdocilmenteepodiam,aoseucomando,sussurrar,rir,soluçar.

AspessoassólastimavamqueAnselmofossegrosseiroeolhasseasmulherescomatrevimentoquandoficavabêbado.AscriadasqueatravessavamdescalçasaPraçadeArmasrumoaoMercado,asvendedorasque,com cântaros ou travessas de barro na cabeça, iam e vinhamoferecendo sucos de lúcuma e demanga equeijinhosfrescosdaserra,assenhorasdeluvas,véuserosáriosquedesfilavamrumoàigreja,todasouviampropostas em voz alta e rimas improvisadas bem salientes. “Cuidado, Anselmo”, diziam seus amigos, “ospiuranossãociumentos.Nodiaemquevocêmenosesperar,ummaridoofendido,umpaisemsensodehumorvaidesafiá-lo para um duelo, mais respeito com as mulheres”. Mas Anselmo respondia com uma gargalhada,levantavaocopoebrindavaporPiura.

Noprimeiromêsdesuaestadanacidade,nadaaconteceu.

Nãoeranadademais,tudoseajeitavanestemundo,osolrebrilhanosolhosdeJulioReáteguieasgarrafasestãonumabaciacheiad’água.Elemesmoserveoscopos;aespumabrancaborbulha,inchaeserompeemcrateras:nãoprecisavamsepreocupar,antesdemaisnada,outrocopinhodecerveja.ManuelÁguila,PedroEscabinoeArévaloBenzasbebem,enxugamabocacomasmãos.AtravésdatelametálicadasjanelassevêapraçadeSantaMaríadeNieva,umgrupode aguarunas amassamandioca em recipientesbojudos, várias

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criançascorrememvoltadostroncosdepau-mulato.Láemcima,nascolinas,aresidênciadasmadreséumretângulo ígneo e, antes demais nada, era umprojeto a longo prazo e aqui os projetos não iampara afrente,JulioReáteguipensavaqueelesseassustavamàtoa.MasManuelÁguilanão,nadadisso,governador,levanta-se,elestinhamprovas,donJulio,umhomenzinhobaixoecalvo,deolhosarregalados,aquelesdoissujeitososenganaram.EArévaloBenzastambém,donJulio,levanta-se,eratestemunha,eletinhaditoportrásdessasbandeirasedessascartilhasháoutracoisaeseopôsàvindadosprofessores,donJulio,ePedroEscabinobateocoponamesa,donJulio:acooperativaeraumfato,osaguarunasiamvendersozinhosemIquitos, os caciques se reuniram em Chicais para tratar disso, era esta a verdadeira situação e o resto,cegueira. Mas Julio Reátegui não conhecia um só aguaruna que soubesse o que é Iquitos ou umacooperativa,deondePedroEscabinotinhatiradoumahistóriadessas?,epediaquefalassemumdecadavez,senhores.Ocoporessoadenovosecoesurdocontraamesa,donJulio,elepassavamuitotempoemIquitos,tinhamuitosnegóciosenãonotavaquearegiãoandavaagitadadesdequeaquelesdoissujeitoschegaram.AvozdeJulioReáteguiésempresuave,donPedro,sergovernadorlhefizeraperdertempoedinheiro,masseusolhosseendureceram,elenãoqueriaaceitarePedroEscabinofoiumdosquemaisinsistiu,quefizesseofavordemedirassuaspalavras.PedroEscabinosabiaquedeviammuitoaeleenãoqueriaofendê-lo:sóque acabava de chegar deUrakusa e, pela primeira vez emdez anos, don Julio, seco e surdo duas vezescontra a mesa, os aguarunas não quiseram lhe vender nem uma pelinha de seringa, apesar dosadiantamentoseArévaloBenzas:atélhemostraramacooperativa.Nãoria,donJulio,fizeramumacabanaespecialeestavaabarrotadadelátexedecourosenãoquiseramvendernadaaEscabinoedisseramqueiamvenderemIquitos.EManuelÁguila,baixoecalvoportrásdosseusolhosmeioesbugalhados:ogovernadorestavavendo?Essessujeitosnuncadeveriamteridoatéastribos,Arévalotinharazão,sóqueriamenganá-los.Masnãoviriammais,senhores,eJulioReáteguiencheoscopos.ElenãoiaaIquitosparatratarsódosseusassuntos,mas tambémdos problemas deles, e oMinistério tinha cancelado o plano de extensão culturalsilvícolaeasbrigadasdeprofessorestinhamacabado.MasPedroEscabinosecoesurdopelaterceiravez:jávierameomal estava feito,don Julio.Entãonão conseguiriamnem se entender comos índios?Pois seentenderammuitobem,eointérpretequeosdoisfulanoslevaramparaUrakusaestavaaquieelemesmolhe contaria,don Julio,o senhor ia ver.Ohomembronzeado edescalçoque estáde cócoras ao ladodaporta se levanta, avança confuso até o governador de SantaMaría deNieva eBoninoPérez quanto lhepagavampeloquilodelátex,quelhepergunteisso.Ointérpretecomeçaarugir,mexemuitoasmãos,cospeeJumouveemsilêncio,comosbraçoscruzadossobreopeitonu.Duascruzesfinas,vermelhas,decoramseuspômulosesverdeadosenonarizquadradohátrês linhashorizontais tatuadas, finascomovermes,suaexpressãoéséria,soleneapostura:osurakusasaglomeradosnaclareiraestãoimóveiseosolfereasárvores,as cabanas de Urakusa. O intérprete se cala e Jum e um velhinho minúsculo grunhem, gesticulam eresmungameointérpretedeboaqualidadedois,regularumsoloquilo,patrão,dizendo,eTeófiloCañaspisca, custando,umcachorro late à distância.BoninoPérez sabia, irmão,putaqueospariu, que sacanasmaissafados,eparaointérprete:mausperuanos,elesvendiamavinteoquilo,ospatrõesenganando,quenão deixassem, homem, que levassem o látex e os couros para Iquitos, nunca mais negocio com essespatrões: traduza isso. E o intérprete dizendo?, e Bonino sim, patrões roubando deles dizendo a eles?, eTeófilo sim,maus peruanos dizendo?, sim, sim, patrão enganando dizendo? e eles sim, sim, porra, sim:diabos, ladrões,mausperuanos, quenãodeixassem, sim,porra, semmedo, traduzindo isso.O intérpretegrunhe,ruge,cospeeJumgrunhe,ruge,cospeeovelhobatenopeito,suapeletemumasdobrinhasásperaseo intérprete Iquitosnãovindonunca,patrãoEscabinovindo, trazendo faca, facão,paninhos eTeófiloCañaséàtoa,irmão,elespensamqueIquitoséumhomem,nãoiamganharnada,Bonino,eointérpretedizendo,trocandoporlátex.MasBoninoPérezseaproximadeJum,apontaafacaqueeletemnacintura,vamosver,quantosquilosdelátexelacustou:pergunte-lheisso.Jumpuxaafaca,levanta-a,osolinflamao

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gumebranco, dissolve suas bordas e Jum sorri com arrogância e atrás dele os urakusas sorriem emuitospuxam facas, levantam-nas e o sol as ilumina edissolve e o intérprete: vintepelas ade Jum,dizendo, asoutras dez, quinze pelas custando e Teófilo Cañas queria voltar para Lima, irmão. Estava com febre,Bonino,eessasinjustiçaseessagentequenãoentendianada,eramelhoresquecereBoninoPérezsomaesubtraicomosdedos,Teófilo,nuncafuibomcomnúmeros,afacadeJumsaiuporquarentasoles,nãoé?,eointérpretedizendo?,traduzindo?eTeófilonão,eBoninoémelhordizerassim:patrãodiabo,aquelafacanãocustavanemumapela,eracoisaqueseachavanolixo,Iquitosnãoerapatrãoesimcidade,rioabaixo,Marañón abaixo, que levassem o látex até lá, iam vender cem vezes melhor, comprariam quantas facasquisessem,ouoquequisessemeointérpretesenhor?,nãoentendia,repetindodevagarzinhoeBoninotinharazão:éprecisoexplicartudoaeles,irmão,desdeocomeço,nãodesanime,Teófiloetalveztivessemrazãomas JulioReátegui insistia:nãodeviamperder a cabeça.Os tais sujeitosnão tinham ido embora?Nuncamaisvoltariam,e sóos aguarunas estavamsublevados, ele continuavacomerciandocomos shapras comosempre, e além do mais tudo tinha solução. Queria terminar com tranquilidade o seu mandato degovernador, senhores, e que fossem ver Arévalo Benzas: não era só isso, don Julio. Não soube o queaconteceu emUrakusa comumcabo,umpiloto eumajudantedaguarniçãodeBorja?Semanapassada,outrodiamesmo,donJulio,eeleoque,oquetinhaacontecido.

—Podemcomemorar,jáestamosnaMangachería—disseJosé.—Aareiaarranha,fazcócegas.Voutirarossapatos—disseoMacaco.NofimdaavenidaSánchezCerroterminavaoasfalto,asfachadasbrancas,osportõessólidosealuz

elétrica,ecomeçavamasparedesdepauapique,os tetosdepalha, lataoucartão,apoeira,asmoscas,osmeandros.Nas janelinhasquadradase semcortinasdoscasebresbrilhavamasvelasde seboeos lampiõesmangaches,famíliasinteirastomavamafrescadanoitenomeiodarua.OsLeónerguiamamãootempotodoparacumprimentarasamizades.

—Porqueestãotãoorgulhosos?Dequesegabam?—disseJosefino.—Aquicheiramaleaspessoasvivemquenemanimais.Pelomenosquinzeemcadabarraco.

—Vinte,contandooscachorroseafotodeSánchezCerro—disseoMacaco.—EstaéoutracoisaboadaMangachería,nãohádiferenças.Homens,cachorros,cabras,todossãoiguais,todosmangaches.

—Eestamosorgulhososporquenascemosaqui—disseJosé.—Falamosbemporqueéanossaterra.Nofundo,vocêmorredeinveja,Josefino.

—Piuraestámortaaestahora—disseoMacaco.—Masaqui,nãoouve?,avidaestácomeçando.—Aquitodossomosamigosouparentes,ecadaumvalepeloquevale—disseJosé.—EmPiurasó

consideramaspessoaspeloquetêm,esevocênãoforbrancoépuxa-sacodebrancos.— Que se foda a Mangachería — disse Josefino. — Quando acabarem com ela, junto com a

Gallinacera,vouencheracaradetantaalegria.—Vocêestáatacadoenãosabecomquemdesabafar—disseoMacaco.—Massequisersairvivoda

Mangachería,émelhorvocêfalarbaixinho,senãoosmangachesvãoacabarcomasuaraça.—Parecemoscrianças—disseJosefino.—Comosefossehoradediscussões.—Vamosfazeraspazes,vamoscantarohino—disseJosé.As pessoas sentadas na areia estavam em silêncio, e todo o barulho — cantos, brindes, música de

violões,palmas—vinhadaschicherías,umascabanasmaioresqueasoutras,maisbemiluminadasecombandeirinhas vermelhas ou brancas ondulando em cima da fachada, no alto de umbambu.A atmosferafervia de cheirosmornos e contraditórios e, àmedida que as ruas iam se apagando, surgiam cachorros,galinhas,porcosqueseespojavamnochãogrunhindosombriamente,cabrascomolhosenormesamarradasemumaestaca,eeraaindamaisespessaesonoraafaunaaéreasuspensasobreascabeças.Osinconquistáveis

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avançavamsempressapeloscaminhos tortuososdaselvamangache,esquivando-sedosvelhosque tinhamtrazidosuasesteirasparaoarlivre,contornandoosbarracosinoportunosquesurgiamnomeiodocaminhocomocetáceosnomar.Océuardiadeestrelas,algumasgrandesecomumaluzsoberba,outrasparecendochaminhasdefósforo.

— Já saíram as Três Marias — disse o Macaco; apontava para três pontos altíssimos, faiscantes,paralelos.—Ecomopiscam.DomitilaYaradiziaquequandoasTrêsMarias ficamtãoclarinhasagentepodefazerumpedido.Aproveite,Josefino.

—Domitila Yara!— disse José.—Pobre velha. Elame dava um pouco demedo,mas desde quemorreusemprelembrodelacomcarinho.Seráquenosperdoouaquelaconfusãonovelório.

Josefinoestavacalado,demãosnosbolsos,oqueixocaídosobreopeito.OsLeónmurmuravamemcoro,otempotodo,“boanoite,don”,“boanoite,dona”,edochãovozesinvisíveisesonolentasdevolviamocumprimentoeoschamavampelosseusnomes.PararamemfrenteaumcasebreeoMacacoempurrouaporta:Litumaestavadecostas,usandoumternoalaranjado,opaletóseavolumandonosquadris,etinhaoscabelosúmidosebrilhantes.Acimadasuacabeçabailavaumrecortedejornal,espetadocomumalfinete.

—Aquiestáoinconquistávelnúmerotrês,primo—disseoMacaco.Litumagiroucomoumpião,atravessouoaposentorisonhoerápido,debraçosabertos,eJosefinofoi

ao seu encontro. Os dois se apertaram com força e ficaram vários minutos dando-se palmadas, quantotempoirmão,quantotempoLituma,equealegriavervocêoutravez,esfregando-secomodoissabujos.

—Masqueelegância,primo—disseoMacaco.Lituma retrocedeu para que os inconquistáveis admirassem à vontade o seu vestuário rutilante e

multicolorido:camisabrancadecolarinhoduro,gravatarosacombolinhascinza,meiasverdesesapatosdebico,lustrososcomoespelhos.

— Gostaram? Estou estreando em homenagem à minha terra. Comprei há três dias, em Lima. Etambémagravataeossapatos.

—Pareceumpríncipe—disseJosé.—Bonitão,primo.—Aroupa,sóaroupa—disseLituma,beliscandoaslapelas.—Ocabideestácomeçandoaamassar

aqui.Masaindapossofazeralgumaconquista.Agoraqueestousolteiro,éaminhavez.—Quasenemoreconheci—interrompeuJosefino.—Faztantotemponãooviavestidodecivil,

colega.—Melhordizerfaztantotempoquenãomevia—disseLitumaeseurostoseensombreceu,sorriude

novo.—Nóstambémtínhamosesquecidocomovocêéàpaisana,primo—disseJosé.— Assim fica melhor que fantasiado de milico — disse o Macaco. — Agora volta a ser um

inconquistáveldeverdade.—Oqueestamosesperando—disseJosé.—Vamoscantarohino.—Vocêssãomeusirmãos—riuLituma.—QuemlhesensinouapulardaPonteVelhaparaorio?—Etambémabebereacomerputas—disseJosé.—Vocênoscorrompeu,primo.Lituma continuava abraçando os León, sacudindo-os afetuosamente. Josefino esfregava as mãos e,

emboraabocasorrisse,algumacoisafurtivaealarmadabrilhavaemseusolhosimóveiseaposturadoseucorpo,comosombrosjogadosparatrás,opeitoestufado,aspernasligeiramentedobradas,eraaomesmotempoforçada,inquietaevigilante.

—Temosqueprovaresse“SoldeIca”—disseoMacaco.—Vocêprometeu,promessaédívida.Sentaram-se em duas esteiras, sob um lampião de querosene pendurado no teto que, ao balançar,

resgatavadasparedesdebarromergulhadasnapenumbrafugazesrachaduras,inscrições,eatéumnichoemruínasonde,aospésdeumaVirgemdegessocomoMeninonocolo,haviaumcastiçalvazio.Joséacendeu

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avelae,sobasualuz,orecortedejornalmostrouasilhuetaamareladadeumgeneral,umaespada,muitascondecorações. Lituma tinha trazidoumamala até as esteiras.Abriu-a, tirouuma garrafa, puxou a rolhacomosdentes,eoMacacoajudou-oaencherquatrocopinhosatéemcima.

—Parecementiraestar comvocêsdenovo, Josefino—disseLituma.—Senti saudade,dos três.Etambémdaminhaterra.Quealegriaestarmosjuntosdenovo.

Bateramoscoposebeberamaomesmotempo,atéofim.—Nossa,épurofogo!—bramouoMacaco,comosolhoscheiosdelágrimas.—Temcertezadeque

nãoéálcooldequarenta,primo?—Não,esteéfraquinho—disseLituma.—Piscoébebidaparalimenhos,mulheresecrianças,nãoé

comoaaguardentedecana.Jáesqueceuquetomávamoscanacomosefosserefresco?—OMacacosemprefoifrouxoparaabebida—disseJosefino.—Doiscoposejáficaalto.—Eufico logoalto,mastenhomaisresistênciaquequalquerum—disseoMacaco.—Possoficar

assimumbocadodedias.— Você sempre era o primeiro a desabar, irmão — disse José. — Lembra, Lituma, como o

arrastávamosatéorioeoressuscitávamosdebaixod’água.—Eàsvezessócombofetadas—disseoMacaco.—Éporissoquesouimberbe,detantosopapoque

leveiparamecurardosporres.—Voufazerumbrinde—disseLituma.—Deixeeuencheroscopos,primo.OMacacopegouagarrafadepisco,começouaservireorostodeLitumafoi seentristecendo,duas

rugasatravessaramfinamenteseusolhinhos,suaexpressãopareciaperdida.—Vamoslogocomestebrinde,inconquistável—disseJosefino.—PelaBonifacia—disseLituma.Elevantouocopo,devagar.

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III

—Nãosefaçadecriança—disseasuperiora.—Vocêteveanoiteinteiraparachoramingaràvontade.Bonifaciasegurouabarradohábitodasuperioraebeijou-a:—DigaqueamadreAngélicanãovem.Diga,madre,asenhoraéboa.—AmadreAngélicabrigacomtodarazão—disseasuperiora.—VocêofendeuaDeusetraiunossa

confiança.—Nãoqueroqueelafiqueirritada,madre—disseBonifacia.—Esqueceuquesemprequese irrita

ficadoente?Nãomeimportaqueelabriguecomigo.Bonifaciabatepalmasumavez eo cochichodaspupilasdiminuimasnãopara, bateoutra vezmais

forteeelassecalam:agorasóseouveosomdassandáliasbatendonaspedrasdopátio.Abreodormitórioe,assimqueaúltimapupilaatravessaasoleira,fechaeencostaaorelhanaporta:nãoéosomdetodososdias,alémda azáfama doméstica há um cochicho surdo, secreto e alarmado, omesmo que brotou quando asviramchegar,aomeio-dia,entreamadreAngélicaeamadrePatrocinio,omesmoqueirritouasuperioraduranteaoraçãodorosário.Bonifaciaouvepormaisalguns instantesevoltaparaacozinha.Acendeumlampião, pega umpratode latão cheiode banana frita, abre o trincoda despensa, entra e ao fundo, naescuridão, há como uma corrida de ratos. Levanta o lampião, explora o lugar. Estão atrás dos sacos demilho:umtornozelofino,circundadoporumarodecouro,doispésdescalçosqueseesfregamesecurvam,querendoocultar-semutuamente?Oespaçoentreossacoseaparedeémuitoestreito,devemestarapertadasumacontraaoutra,nãoasouvechorar.

—Podeserqueodemôniotenhametentado,madre—disseBonifacia.—Maseunãopercebia.Sótivepena,acredite.

— De que teve pena? — perguntou a superiora. — E o que isso tem a ver com o que você fez,Bonifacia,nãosefaçadeboba.

—DasduaspagãsdeChicais,madre—disseBonifacia.—Estoudizendoaverdade.Asenhoranãoasviuchorar?Nãoviucomoseabraçavam?EnãocomeramnadaquandoamadreGriselda levou-asparaacozinha,nãoviu?

—Nãoficaramassimporprópriaculpa—dissea superiora.—Elasnãosabiamqueeraparaoseuprópriobemqueestavamaqui,achavamque íamos fazer-lhesalgummal.Nãoé sempreassimatéque seacostumam?Elasnãosabiam,masvocêsabiaqueerapelobemdelas,Bonifacia.

—Mesmoassimfiqueicompena—disseBonifacia.—Oqueeupodiafazer,madre.Bonifaciaseajoelha,iluminaossacoscomolampiãoeláestão:entrelaçadascomoduasenguias.Uma

delasestácomacabeçaafundadanopeitodaoutraeesta,encostadanaparede,nãotemcomoesconderorostoquandoaluzinvadeoseuesconderijo,apenasfechaosolhosegeme.AstesourasdamadreGriseldaeoardentedesinfetanteavermelhadoaindanãopassaramporali.Vastas,escuras, fervilhantesdepoeira,defiapos, semdúvidade lêndeas, suas cabeleiras fazemchover sobre as costas e as coxasnuas, sãopequenosdepósitosde lixo.Porentreasmechassujaseembaraçadas, soba luzdo lampiãosedefinemosmembrosraquíticos,pedaçosdepelefosca,ascostelas.

—Foiquaseporacaso,madre,sempensar—disseBonifacia.—Eunãotinhaessaintenção,nuncameocorreu,éverdade.

—Nãolheocorreunemtinhaaintenção,masdeixou-asfugir—disseasuperiora.—Enãosóessas

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duas,masasoutrastambém.Planejoutudocomelasfaztempo,nãoémesmo?—Não,madre,juroquenão—disseBonifacia.—Foianteontemànoite,quandotrouxeacomida

aquiparaadespensa.Lembroeaindaficoassustada,euvireioutra,pensavaquetinhasidoporpena,masquemsabefoimesmoodiaboquemetentou,comoasenhoradiz,madre.

— Isso não é desculpa—disse a superiora—, não venha se escudar no diabo. Se ele a tentou foiporquevocêsedeixoutentar.Oquesignificaquevirououtra.

Embaixodasmoitasdecabelo,ospequenoscorposentrelaçadoscomeçama tremer,contagiam-seostremores e aquelebaterdedentespareceodos assustadiços cuatásquando são enjaulados.Bonifaciaolhaparaaportadadespensa,inclina-see,bemdevagar,desafinada,persuasivamente,começaagrunhir.Algumacoisamudana atmosfera, como seuma lufadade arpuro refrescassede repente a escuridãodadespensa.Debaixo do entulho, os corpos param de tremer, duas cabecinhas começam um prudente, apenasperceptível,movimento,eBonifaciacontinuagrasnando,crepitandocomsuavidade.

— Estavam nervosas desde que as viram — disse Bonifacia. — Ficavam cochichando, eu meaproximavaecomeçavamafalardeoutracoisa.Disfarçando,madre,maseusabiaqueestavamfalandodaspagãs.Lembracomoficaramnacapela?

—Porqueestavamnervosas?—perguntouasuperiora.—Poracasoeraaprimeiravezqueviamduasmeninaschegaremàmissão?

—Nãoseiporquê,madre—disseBonifacia.—Sóestoucontandooqueaconteceu,nãoseiporquefoiassim.Deviamterselembradodequandochegaram,nacertaeradissoquefalavam.

—Oqueaconteceunadespensacomessascrianças?—perguntouasuperiora.—Prometaprimeiroquenãovaimeexpulsar,madre—disseBonifacia.—Rezeianoiteinteirapara

quenãomeexpulse.Comoiamearranjarsozinha,madre?Voumudar,seprometerisso.Eentãolhecontotudo.

— Impõe condições para se arrepender dos seus erros?— perguntou a superiora.—Era só o quefaltava.Enãoseiporquequerficarnamissão.Nãodeixouasmeninasfugiremporquetevepenadevê-lasaqui?Vocêdeveriaéestarfelizporirembora.

Bonifaciaofereceopratodemetaleelasnãotremem,estãoimóveisearespiraçãolevantaseuspeitosnumritmoidênticoepausado.Bonifaciacolocaopratoàalturadameninasentada.Elaaindagrunhe,emtombaixo,familiarmente,ederepenteacabecinhaseergue,portrásdacascatadecabelossurgemduasluzesbreves,doispeixinhosquevãodosolhosdeBonifaciaatéopratodemetal.Umbraçoemergeeseestendecominfinitacautela,umamãomedrosasedelineiaàluzdolampião,doisdedossujospegamumabananaeasepultamsobafloresta.

—Maseunãosoucomoelas,madre—disseBonifacia.—AmadreAngélicaeasenhorasempremedizem você já saiu da escuridão, já é civilizada. Para onde vou,madre, não quero ser pagã outra vez.AVirgem era boa, não émesmo?, perdoava tudo, não émesmo?Tenha compaixão,madre, seja boa, paramimasenhoraécomoaVirgem.

—Nãovenhamecomprarcomsalamaleques,eunãosouamadreAngélica—disseasuperiora.—Sevocêsesentecivilizadaecristã,porquedeixouasmeninasfugirem?Comonãosepreocupouquefossemvoltaraserpagãs.

—Mas vão encontrá-las já, já,madre—disseBonifacia.—A senhora vai ver como os guardas astrazemdevolta.Nãomeculpepelasoutras,elasforamsozinhasparaopátioequiseramirembora,eunementendibemoqueestavaacontecendo,madre,acredite,eutinhaviradooutra.

—Tinhaéperdidoojuízo—disseasuperiora.—Ouficadoidiota,paranãoverqueestavamfugindoembaixodoseunariz.

—Piorqueisso,madre,umapagãigualzinhaàsdeChicais—disseBonifacia.—Agoraquepensofico

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assustada,asenhoratemquerezarpormim,queromearrepender,madre.Ameninamastiga semtiraramãodabocaevaimetendopedacinhosdebanana fritaàmedidaque

engole.Afastouoscabelos,queagoraemolduramseurostoemduasbandase,quandomastiga,obrincodoseu nariz oscila de leve. Seus olhos espiamBonifacia e, de repente, sua outramão segura a cabeleira dameninaaninhadaemseupeito.Amão livrevaiatéopratodemetal, capturaumabananaeacabecinhaescondida,forçadapelamãoqueempunhaseuscabelos,gira:nãotemonarizperfurado,suaspálpebrassãoduaspequenasbolsas irritadas.Amãodesce,põeabananaemfrenteaos lábios fechadosquesecontraemaindamais,desconfiados,obstinados.

—Eporquenãoveiomeavisar?—perguntouasuperiora.—Foiseescondernacapelaporquesabiaquetinhaagidomal.

—Fiqueiassustada,masnãoporcausadasenhoraesimpormimmesma,madre—disseBonifacia.—Foiumpesadeloquandonãoasvimaiseporissoentreinacapela.Diziaissonãoéverdade,elasnãoforamembora,nãoaconteceunada,eusonhei.Digaquenãovaimeexpulsar,madre.

—Vocêmesmaseexpulsou—disseasuperiora.—Nósa tratamoscomonuncatratamosqualqueroutra,Bonifacia.Vocêpoderiaterficadoavidainteiranamissão.Masagora,quandoasmeninasvoltarem,nãopodemmaisvê-laaqui.Eutambémsintomuito,apesardoseumaucomportamento.EseiqueamadreAngélicavaificarmuitotriste.Mas,pelamissão,énecessárioquevocêváembora.

—Entãomedeixeficarcomoempregada,madre—disseBonifacia.—Eunãocuidomaisdaspupilas.SódevarrerecarregarolixoeajudaramadreGriseldanacozinha.Eusuplico,madre.

Ameninaque está deitada resiste: tensa, de olhos fechados,mordeos lábios,mas os dedosda outraescarvamimplacáveis,lutamcomessabocaobstinada.Asduastranspiramporcausadadisputa,têmtufinhosdecabeloaderidosàpelebrilhante.E,derepente,seabre:velozes,osdedosintroduzemnabocaabertaosrestosquasedesmanchadosdebananaeameninacomeçaamastigar.Juntocomafruta,entraramemsuabocaumaspontasdecabelo.Bonifaciaavisaàmeninadebrincocomumgestoeestaergueamãodenovo,seusdedospegamoscabelosgrudadoseosretiramdelicadamentedaboca.Agoraameninadeitadaengole,umabolinhasobeedesceporsuagarganta.Segundosdepois,abreabocaoutravezeficaassim,deolhosfechados, esperando. Bonifacia e amenina de brinco se entreolham na claridade gordurosa do lampião.Sorriemaomesmotempo.

—Nãoquermais?—perguntouAquilino.—Vocêtemquesealimentarumpouco,homem,nãopodeviverdear.

—Fico lembrandodessaputaotempotodo—disseFushía.—Aculpaésua,Aquilino,passeiduasnoitesacordadovendoeouvindo.Mascomoeramenina,quandoaconheci.

—Comoaconheceu,Fushía?—perguntouAquilino.—Foimuitodepoisquenosseparamos?—Háumano,doutorPortillo,maisoumenos—disseamulher.—NósmorávamosemBelénea

águaentravanacasacomasenchentes.—Sim,certo,senhora—disseodoutorPortillo.—Masmefaledojaponês,quer?Justamente,oriotransbordou,obairrodeBelénpareciaummareojaponêspassavatodosossábados

pelafrentedanossacasa,doutorPortillo.Eelaquemserá,eéestranhoqueestandotãobem-vestidovenhaembarcar suamercadoria pessoalmente e não tenha quem se encarregue dissso. Essa foi amelhor época,velho.EucomeçavaaganhardinheiroemIquitos,trabalhandoparaocachorrodoReátegui,eumdiaumagarotinhanãopodiaatravessararuaporcausadaáguaeelepagouumcarregadorparaajudá-laeamãeveiolheagradecer:umalinguarudaterrível,Aquilino.

—Esempreparavaparaconversarconosco,doutorPortillo—disseamulher.—Antesdeirparaoporto,ounavolta,etodasasvezeseramuitogentil.

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—Asenhorajásabiaquenegócioselefazia?—perguntouodoutorPortillo.—Pareciamuitodecenteemuitoeleganteapesardasuaraça—disseamulher.—Semprenostrazia

presentinhos,doutor.Roupa,sapatoseumavezatéumcanário.—Paraamolecadasuafilha,minhasenhora—disseFushía.—Paraqueaacordecantando.Osdoisseentendiamàsmilmaravilhas,masnãosedavamporachados,velho;alinguarudasabiaoque

elequeriaeelesabiaquealinguarudaqueriadinheiro,eAquilinoeaLalita?,oqueeladiziadetudoisso.—Játinhaocabelocompridíssimo—disseFushía.—Enessaépocaorostodelaera liso,semuma

espinha.Comoerabonita,Aquilino.—Vinhacomumguarda-sol,deternobrancoecomsapatostambémbrancos—disseamulher.—E

noslevavaparapassear,aocinema,umavezlevouLalitaàquelecircobrasileiroquepassou,lembra?—Davamuitodinheiroàsenhora?—perguntouodoutorPortillo.—Pouco,quasenada,doutor—disseamulher.—Emuitoraramente.Sónosdavalembrancinhas.EaLalitajáestavagrandeparairaocolégio:elelhedariaumempregonoseuescritórioeosalárioseria

umagrandeajudaparanósduas,nãoéverdadequeaLalitagostavadaideia?Elapensounofuturodafilha,enasnecessidades,doutorPortillo,nosapertosquepassavam:afinal,aLalitafoitrabalharcomojaponês.

—Morarcomele,senhora—disseodoutorPortillo.—Nãotenhavergonha,oadvogadoécomoumconfessorparaosseusclientes.

—JuroqueaLalitadormiasempreemcasa—disseamulher.—Senãoacreditapergunteàsvizinhas,doutor.

—Eemquesuafilhafoitrabalhar,senhora?—perguntouodoutorPortillo.Umtrabalhoestúpido,velho,queodeixariaricoparasempresedurassemaisdoisaninhos.Masalguém

denunciou a coisa eReátegui acabou são e salvo, livre de culpa, e ele teve que assumir tudo, fugir, e aícomeçou a pior parte da sua vida.Um trabalhomuito estúpido, velho: receber o látex, armazenar commuitotalcoparatirarocheiro,embalarcomosefossefumoedepoisdespachar.

—VocêestavaapaixonadopelaLalitanessaépoca?—perguntouAquilino.—Euapegueivirgenzinha—disseFushía—,semsabernadadenadadavida.Elachoravaeeu,se

estivesse emburrado lhe dava um sopapo, se estivesse contente lhe comprava balas. Era como ter umamulhereumafilhaaomesmotempo,Aquilino.

—EporquebotaaculpanaLalitatambém?—perguntouAquilino.—Tenhocertezadequeelanãoosdenunciou.Devetersidoamãe.

Maselasósouberapelos jornais,doutor, juravapeloquehádemaissagrado.Erapobremashonestacomoninguém,esóesteveumaveznodepósitoeelaoqueéissoaí,senhor,eojaponêsfumoeelaingênuaacreditou.

—Nemsombradefumo,senhora—disseodoutorPortillo.—Issoéoquedeviaestarescritonoscaixotes,masasenhorasabequeládentrohavialátex.

—Alinguarudanuncasoubedenada—disseFushía.—Foiumdaquelescachorrosquemeajudavamabotartalcoeembalar.Osjornaisdiziamqueelafoiumadasminhasvítimas,porqueroubeisuafilha.

—Penaquenãoguardouesses jornais, e tambémosdeCampoGrande—disseAquilino.—Seriaengraçadoleragora,vercomovocêfoifamoso,Fushía.

—Aprendeualer?—perguntouFushía.—Quandotrabalhávamosjuntosvocênãosabia,velho.—Você leria paramim— disse Aquilino.—Mas como não aconteceu nada com o senhor Julio

Reátegui?Porquevocêtevequefugireeleficoulá,sossegado?—Injustiçasdavida—disseFushía.—Eleentroucomocapitaleeucomapele.Olátexaparecia

comomeu,mas eu só ficava com as sobrinhas.Mesmo assim teria enriquecido,Aquilino, o negócio eraperfeito.

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ALalita não lhe contava nada, ela a acossava comperguntas e a garota não sei, não sei, era a puraverdade,doutorPortillo,porqueiadesconfiar?Ojaponêsestavasempreviajando,masmuitagenteviajavae,alémdomais,comoelapodiasaberqueembarcarlátexeracontrabandoefumonão.

— O fumo não é material estratégico, senhora — disse o doutor Portillo. — A borracha sim. Sópodemosvenderparaosnossosaliados,queestãoemguerracomosalemães.AsenhoranãosabequeoPerutambémestáemguerra?

—Então você devia ter vendido a seringa para os gringos, Fushía— disse Aquilino.—Não teriaconfusõeseelespagariamemdólares.

—Nossosaliadosnoscompramaborrachaporumpreçodeguerra,senhora—disseodoutorPortillo.—Ojaponêsvendiaporbaixodopanoelhepagavamquatrovezesmais.Tambémnãosabiadisso?

—É a primeira vez que escuto, doutor—disse amulher.—Eu sou pobre, nãome interesso porpolítica,nuncadeixariaminhafilhasaircomumcontrabandista.Eseráverdadequeeletambémeraespião,doutor?

— Sendo tão novinha, deve ter sido difícil para ela deixar a mãe — disse Aquilino. — ComoconvenceuaLalita,Fushía?

ALalitapodiagostarmuitodamãe,mascomelecomiaecalçavasapatos,láemBeléniaacabarvirandolavadeira,putaoufaxineira,velho,eAquilinoconversa,Fushía:vocêdeviaestarapaixonadoporela,senãonãoalevaria.Eramuitomaisfácilfugirsozinhoquearrastandoumamulher,senãogostassedelanãoateriaroubado.

— Na floresta a Lalita valia seu peso em ouro — disse Fushía. — Não lhe disse que era bonita?Qualquerumficavatentado.

—Seupesoemouro—disseAquilino.—Comosetivessepensadoemfazernegócioscomela.— Fiz um bom negócio com ela— disse Fushía.—Essa puta nunca lhe contou?O cachorro do

Reáteguinãovaimeperdoarnunca,tenhocerteza.Foiminhavingançacontraele.—E uma noite não apareceu, nem na seguinte, e depois chegou uma carta— disse amulher.—

Dizendoqueiaparaoestrangeirocomojaponês,quesecasariam.Eutrouxeacarta,doutor.—Dê-me,vouguardá-la—disseodoutorPortillo.—Eporquenãoinformouàpolíciaquesuafilha

tinhafugido,senhora?—Pensei que era coisa de amor, doutor—disse amulher.—Que ele era casado e por isso tinha

fugidocomaminhafilha.Sóalgunsdiasdepoissaiunojornalqueojaponêseraumbandido.—QuantodinheiroaLalitalhemandounacarta?—disseodoutor.—Muitomaisdoquevaliamaquelasduascadelasjuntas—disseFushía.—Milsoles.—Duzentossoles,olhesóquemesquinharia,doutorzinho—disseamulher.—Mas jágastei tudo,

pagandodívidas.Eleconheciaaalmadavelha:maismiserávelqueadoturcoqueomandouparaaprisão,Aquilinoeo

doutorPortilloqueriasaberseoquedeclarouàpolíciaeraomesmoquetinhacontadoaele,senhora,semtirarnempôr?

—Menososduzentossoles,doutor—disseamulher.—Elesteriamroubado,osenhorsabecomosãonadelegacia.

—Deixe-meestudarocasocomcalma—disseodoutorPortillo.—Euachamoassimquehouveralguma novidade. Se for convocada para ir ao tribunal ou à polícia, irei junto. Não faça nenhumadeclaraçãosemaminhapresença,senhora.Aninguém,entende?

—Osenhoréquemmanda,doutor—disseamulher.—Mas,easperdasedanos?Todomundodizquetenhodireito.Elemeenganoueroubouaminhafilha,doutor.

—Quando o prenderem, pedimos uma reparação—disse o doutor Portillo.—Eume encarrego

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disso,nãosepreocupe.Mas,senãoquertercomplicações,jásabe,nemumapalavrasemapresençadoseuadvogado.

—Quer dizer que você tornou a ver o senhor JulioReátegui— disse Aquilino.—Pensei que deIquitostinhaidodiretoparaailha.

Ecomoqueriaquefosse:nadando?,atravessandoaselvainteiraapé,velho?SótinhaunssolesnobolsoesabiaqueocachorrodoReátegui ia lavarasmãos,porqueonomedelenãotinhaaparecido.SortequetrouxeraaLalita,aspessoastinhamassuasfraquezaseJulioReáteguiestavaali,tinhaouvidoahistóriamas,seriamesmoverdadequeavelhanãosabiadenada?Tinhaumjeitoquedavaparadesconfiar,compadre.Alémdisso,erapreocupantequeFushíativesselevadoumamulher,genteapaixonadasemprefazbobagens.

—Problemadelesefizerbobagens—disseodoutorPortillo.—Nãopodecomprometervocêmesmoquequeira.Foitudobemplanejado.

—NuncamefalouumapalavrasobreatalLalita—disseJulioReátegui.—Vocêsabiaqueelemoravacomessagarota?

—Nãotinhaideia—disseodoutorPortillo.—Deveserciumento,deveescondê-laasetechaves.Oimportante é que a bendita velha não sabe de nada. Acho que não há mais perigo, imagino que ospombinhosjádevemestarnoBrasil.Vamosjantarjuntosestanoite?

—Não posso— disse Julio Reátegui.— Fui chamado com urgência aUchamala.Mandaram umpeão,nãoseiquediaboestáacontecendo.Voutentarvoltarnosábado.SuponhoquedonFabiojádeveterchegadoaSantaMaríadeNieva,precisamosavisar-lhequenãocompremaislátexporenquanto.Atéacoisaseacalmar.

—EondevocêfoiseescondercomaLalita?—perguntouAquilino.—EmUchamala—disseFushía.—UmsítionoMarañóndessecachorrodoReátegui.Vamospassar

perto,velho.

Osboissaemdasfazendas logodepoisdomeio-diaeentramnodeserto juntocomasprimeirassombras.Embuçadosemponchosecomamploschapéuspararesistiràinvestidadoventoedaareia,ospeõespassamanoite tocandoospesados, lentosanimaisatéorio.Aoalvorecer,divisamPiura:umamiragemcinzadooutro lado da ribeira, uma aglomeração imóvel. Não chegam à cidade pela Ponte Velha, que é frágil.Quando o tempo está seco, atravessam o leito levantando uma nuvem de poeira. Nos meses de cheia,aguardam à beira do rio.As bestas exploram a terra com seus focinhos largos, derrubam as alfarrobeirastenrascomoschifres,dãomugidoslúgubres.Oshomensconversamcalmamentetomandoseudesjejumdecarnefriaecopinhosdeaguardente,oucochilamenroladosnosseusponchos.Nãoprecisamesperarmuito,volta emeiaCarlosRojas chegaaoportoantesqueogado.Vemcortandoo riodesdeaoutrapontadacidade,onde ficao seu rancho.Obalseirocontaos animais, calculaopeso,decideonúmerodeviagensnecessáriasparatransportá-los.Naoutramargem,oshomensdomatadouropreparamcordas,serrasefacas,eobarrilondevãoferverocaldoespessodecabeçadeboiquesóopessoaldoabatetomasemdesmaiar.Terminadooseutrabalho,CarlosRojasamarraabalsanumdospilaresdaPonteVelhaesedirigeaumacantina da Gallinacera frequentada pelos madrugadores. Nessa manhã já estava lá um bom número deaguateiros, varredores e vendedoras, todos galinaços, gente do lugar. Serviram-lhe uma tigela de leite decabra,perguntaramquecaraeraaquela.Suamulherestavabem?Eogaroto?Sim,estavambem,oJosefinojáandavaediziapapai,maseleprecisavacontarumacoisa.Econtinuavacomabocarraabertaeosolhosarregaladosdeassombro,comosetivessevistoochifrudo.Faziadezanosquetrabalhavanabalsaenuncatinhavistoninguémnaruaquandoselevantavaesaíadecasa,semcontaropessoaldomatadouro.Osolainda não apareceu, tudo está preto, é omomento em que a areia caimais forte, quem iria pensar empassearnumahoradessas?Eosgalinaços têmrazão,homem,ninguémpensaria.Falavacomímpeto, suas

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palavras,enfatizadasporgestosenérgicos,pareciamdisparosdearmadefogo;naspausas,sempre,abocarraabertaeosolhosarregalados.Porissoseassustou,caramba,eramuitoestranho.Oqueéisso?Eouviuoutravez,nitidamente,oscascosdeumcavalo.Nãoestavaenlouquecendo,tinhaolhadoparatodososlados,queesperassem,queodeixassemcontar:entãoviuentrandonaPonteVelha,reconheceu-onahora.Ocavalodedon Melchor Espinoza? Aquele branco? Sim senhor, justamente por isso, como era branco brilhava namadrugadaepareciaumfantasma.Eosgalinaços,decepcionados,deveterfugido,nãoénovidade,ouseráquedonMelchor cismoude viajar às escuras? Foi o que ele pensou, pronto, o bicho fugiu, vou ter queapanhá-lo.Saltoudalanchaesubiuobarrancoempassosdecididos,aindabemqueocavalinhonãoestavacompressa,foiseaproximandodevagarparanãooassustar,agoraiapararàsuafrenteeagarraracrina,ecomabocashh,shh,shh,nãosejaarisco,eentãoomontariaempeloeodevolveriaaodono.Iaavançandopassoapasso,jápertinho,equasenãooviaporcausadaquantidadedeareia,entraramjuntosemCastilla,ederepentepulouealiestava.Interessadosdenovo,osgalinaçosoqueaconteceuCarlos,oquefoiqueviu.Simsenhor,vidonAnselmo,olhando-odecimadasela,palavradehonra.Estavacomumpanonorostoe,noprimeiroinstante,eleficaraembaraçado:desculpe,donAnselmo,penseiqueoanimalestavafugindo.Eosgalinaçosoque ele estava fazendo lá?,paraonde ia?, estava fugindodePiura às escondidas, comoumladrão?Queodeixassemterminar,maldição.Riucomgosto,olhavaparaeleemorriaderir,eocavalinhoqueempinava.Sabemoqueeledisse?Nãofaçaessacarademedo,Rojas,eunãoestavaconseguindodormire vimdar uma volta.Ouviram? Foi issomesmo que ele disse.O vento era puro fogo, chicoteava forte,fortíssimo,eelequisperguntar se tinhacaradebobo, seooutropensavaque iaacreditarnaquilo.Eumgalinaço mas você não ia dizer isso, Carlos, não se trata as pessoas de mentirosas e, além do mais, quediferençafazia.Masahistórianãoterminavaaí.Poucodepoisviu-odenovo,aolonge,nocaminhoparaCatacaos.Eumagalinaçanoareal?,coitado,deveestarcomorostotodoardido,eosolhoseasmãos.Queventosoprounessedia.Senãoodeixassemfalarelecalavaabocaeiaembora.Sim,continuavanocavalodandovoltasemaisvoltas,olhavaparaorio,paraaPonteVelha,paraacidade.Edepoisapeouecomeçouabrincarcomacoberta.Pareciaumacriançafeliz,corriaepulavafeitooJosefino.EosgalinaçosseráquedonAnselmoficoudoido?,seriaumapena,eratãoboapessoa,talvezestivessebêbado?ECarlosRojasnão,nãoparecia doido nem bêbado, apertou sua mão quando se despediram, perguntou pela família e mandoulembranças.Masquevissemcomoeletinharazãoemficarsurpreso.

Nessamanhã don Anselmo apareceu na Praça de Armas, sorridente e loquaz, na hora de costume.Pareciamuitoalegre,ofereciaumbrindeatodososquepassavamemfrenteàvaranda.Estavapossuídoporumanecessidadeincoercíveldebrincar;suabocacontava,umadepoisdaoutra,históriasdeduplosentidoqueJacinto,ogarçomdoLaEstrelladelNorte,ouviamorrendoderir.EasgargalhadasdedonAnselmoretumbavamnapraça.Anotíciadasuaexcursãonoturnajáhaviacirculadoeospiuranosoacossavamcomperguntas:elerespondiacombrincadeirasepalavrasambíguas.

O relato deCarlosRojas intrigou a cidade e ficou na berlinda durante vários dias. Alguns curiososforamfalarcomdonMelchorEspinozaembuscadeinformações.Ovelhoagricultornãosabiadenada.E,alémdomais,nãofarianenhumaperguntaaoseuhóspede,porquenãoeraimpertinentenemfofoqueiro.Tinhaencontradoseucavalodesencilhadoelimpo.Nãoqueriasaberdemaisnada,quefossememboraeodeixassemempaz.

Quandoaspessoaspararamdefalardaquelaexcursão,sobreveioumanotíciamaissurpreendente.DonAnselmotinhacompradoumterrenodaprefeitura situadonooutro ladodaPonteVelha,paraalémdosúltimosbarracosdeCastilla,emplenoareal,porondeobalseiroovirapulandonaquelamadrugada.Nãoeraestranhoqueoforasteiro,setinhamesmodecididoestabelecer-seemPiura,quisesseconstruirumacasa.Masnodeserto!Aareiaiadevoraraquelamansãoempoucotempo,comofazcomasvelhasárvorespodresecomos abutresmortos.O areal é instável,mole.As dunasmudamde lugar todanoite, o vento as cria,

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aniquila e transporta ao seu capricho, reduz e aumenta. Surgem ameaçadoras emúltiplas, cercam Piuracomo umamuralha, branca ao amanhecer, vermelha no crepúsculo, parda de noite, e, no dia seguinte,fogemesemostram,dispersas,distantes,comoumaerupçãodisseminadanapeledodeserto.Nahoradocrepúsculo, don Anselmo ficaria isolado e à mercê da areia. Efusivos, numerosos, os vizinhos tentaramimpedir aquela loucura, multiplicaram os argumentos para dissuadi-lo. Que comprasse um terreno nacidade,quenãofosseteimoso.MasdonAnselmodescartavatodososconselhosereplicavacomfrasesquepareciamenigmas.

Alanchacomossoldadoschegaporvoltadomeio-dia,queratracardebicoenãodeladocomoarazãodita,aáguaalevaeatraz,chefes,aguentem:AdriánNievesiaajudá-los.Pulanaágua,pegaoleme,puxaalanchaaté a margem e os soldados, sem dizer obrigado nem coisa nenhuma, passam a corda, amarram aembarcaçãoecorremparaopovoado.Boatarde,chefes,quasetodososcristãostiveramtempodefugirparaomato,sóconseguemmeiadúziaequandochegamàguarniçãodeBorjaocapitãoQuirogasezanga,comolhes ocorreu trazer um inválido?, e para Vilano vá embora, manco, você não serve para o Exército. Ainstruçãocomeçanamanhãseguinte:acordamcedinho, raspamacabeça,vestemcalçasecamisascáquieunssapatõesqueapertamospés.Depois,ocapitãoQuirogafalasobreaPátriaeosdivideemgrupos.Eleeoutros onze vão fazer treinamento comum cabo: sentido, continência,marche, ao solo, de pé, atençãoporra, descansar porra. E todos os dias assim e não há maneira de fugir, a vigilância é estrita, chovempontapésporqualquer coisa eocapitãoQuiroganãohádesertorquenãocaiana redee entãoo serviçodobra.EcertamanhãvemocaboRobertoDelgado,umpassoàfrenteorecrutaqueerapilotoeAdriánNievesàssuasordens,meucabo,eraele.Conheciabemaregião,rioacima?eelecomoapalmadaminhamão,meucabo, rio acimae tambémrio abaixo e entãoque sepreparasseporque iamparaBagua.E elechegouomomento,AdriánNieves,éagoraoununca.Partemnamanhãseguinte,eles,alanchinhaeumauxiliaraguarunadaguarnição.Orioestácheioeavançamdevagar,evitandobancosdeareia,manguezais,troncos que parecem cotos vindo ao seu encontro.O caboRobertoDelgado viaja contente, fala e fala,chegouum tenente costeiro que quis conhecer a corredeira, isso é perigoso,meu tenente, tinha chovidomuito,maselequisefoi,ealanchavirouetodosseafogarameocaboDelgadosesalvouporqueinventaraumafebreterçãparanãoir,falaefala.Oíndionãoabriaaboca,meucabo,ocapitãoQuirogaeradaselva?,eraAdriánNievesquemconversavacomele.Nadadisso,doismesesantesestiveramnumamissãopelorioSantiagoeospernilongosdeixaraminchadasaspernasdocapitão.Ficaramvermelhas,cheiasdepicadas,eleas deixava de molho dentro d’água e o cabo o assustava: atenção com as jiboias, cuidado para não odeixaremperneta,meucapitão,essasjiboiasaparecemenãoseouvenada,levantamafuçaeengolemumapernanumasódentada.Eocapitãoqueviessemecomessem.Tantaardêncialhetiraraoprazerdeviver,sóaáguaacalmava,caralho,quemalditaeraasuasorte,merda.Eocaboaspernasestavamsangrando,meucapitão,osangueatraipiranhas,eseelasabocanhassemumasfatias?MasocapitãoQuirogaexplodiu,putamerda,paredememetermedo,eocabosentianojodeolharparaelas:gordas,cheiasdecrostas,emcadagalhinhoqueroçavaapeleseabriaeemanavaumaaguinhabranca.EAdriánNievesfoiporissoaspiranhasnão vieram,meu cabo, sabiamque se comessem as pernas delemorreriam envenenadas.O ajudante vaicalado,naponta,medindoofundocomoremoedoisdiasdepoischegamaUrakusa:nemumaguaruna,todostinhamsemetidonomato.Levaramatéoscachorros,queespertinhos.OcaboRobertoDelgadoestánocentrodaclareira,comabocaescancarada,urakusas!,urakusas!,suadentaduraédecavalo,forte,muitobranca, não têm fama demachos?, o sol do crepúsculo a estilhaça em raios azuis, venham, seus veados,voltem!Masparaoauxiliarnãomachos,meucabo,cristãosassustandoeocaboquerevistassemascabanas,que fizessem um embrulho com o que houvesse de comestível, vestível ou vendável, agorinha mesmo,voando.AdriánNievesnãorecomendava,meucabo,elesdeviamestarolhandoeseroubassemalgumacoisa

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viriam para cima deles, e só eram três. Mas o cabo não queria conselhos de ninguém, merda, tinhaperguntadoalgumacoisa?,eseosurakusasaparecessemeleosderrubariasemnecessidadedepistola,sónotapaesentanochão,cruzaaspernas,acendeumcigarro.Elesvãoatéascabanas,voltameocaboRobertoDelgadoestádormindopacificamente,aguimbaseconsomenochãocercadadeformigascuriosas.AdriánNieveseoauxiliarcomemmandioca,bagre,fumamequandoocaboacordasearrastaatéelesebebedocantil.Depoisexaminaoembrulho:umcourinhodelagarto,lixo,colaresdemiçangaedeconchas,erasóoquehavia?,pratosdeargila,pulseiras,eoqueeleprometeraaocapitão?,tornozeleiras,diademas,nemumpouco de resina mata-insetos?, um cesto de tucumã e uma cuia cheia de masato, puro lixo. Escarva oembrulhocomopéequersabersetinhamvistoalguémenquantoeledormia.Não,meucabo,ninguém.Esteaquiachavaqueestavamporpertoeoauxiliarapontacomodedoparaomatomasocabonãoestáprestandoatenção:iamdormiremUrakusaepartiriamamanhãcedo.Aindaresmunga,quehistóriaeraessadeseescondercomoseelesfossemleprosos?,levanta-se,urina,tiraasperneirasevaiparaumacabana,elesoseguem.Nãofazcalor,anoiteéúmidaerumorosa,umabrisalentatrazumcheirodeplantaspodresatéaclareira e o auxiliar indo embora,meu cabo, fodido aqui, dizendo, não ficando, não gostando eAdriánNieves encolhe os ombros: quem podia gostar, mas que não se cansasse, o cabo já não o ouvia, estavadormindo.

—Comoforamascoisaslá?—disseJosefino.—Conte,Lituma.—Comopodiamir,coleguinha—disseLituma,osolhinhossurpresos.—Muitomal.—Batiamemvocê,primo?—disseJosé.—Ficouapãoeágua?—Nada disso, elesme trataram bem.O caboCárdenasmandavame daremmais comida que aos

outros.Foimeusubordinadonaselva,ummulatoboagente,nósochamávamosdeEscuro.Maseraumavidatriste,dequalquerforma.

OMacacoestavacomumcigarronamãoederepentepôsalínguaparaforaepiscouumolho.Estavasorrindo,desligadodosoutros,eensaiavacaretasqueabriamcovinhasemsuasbochechaserugasnatesta.Àsvezes,elemesmoseaplaudia.

—Emeadmiravamumpouco—disseLituma—,diziam“vocêtemcolhõesdetouro,caboclo”.—Tinhamrazão,primo,claroquetem,ninguémvaiduvidar.—Todo Piura falava de você, colega— disse Josefino.—As crianças, as pessoas de idade.Muito

tempodepoisdevocêiremboraaindacontinuavamdiscutindoaseurespeito.—Como,irembora?—disseLituma.—Nãofuiporminhavontade.—Nósguardamososjornais—disseJosé.—Vocêvaiver,primo.NoElTiempofoimuitoxingado,

chamadodemalfeitor,masemEcosyNoticiaseemLaIndustriapelomenosoreconheciamcomovalente.—Vocêfoimacho,colega—disseJosefino.—Osmangachesficaramorgulhosos.—Eparaquemeserviu?—Litumaencolheuosombros,cuspiuepisounasaliva.—Alémdomais,foi

coisadebebedeira.Asecoeunãoteriacoragem.—Aqui naMangachería somos todos urristas— disse oMacaco, levantando-se com um pulo.—

FanáticospelogeneralSánchezCerroatéofundodaalma.Foiatéorecortedejornal,bateucontinênciaevoltouparaaesteira,àsgargalhadas.—OMacacojáestábêbado—disseLituma.—VamosparaacasadaChungaantesqueeledurma.—Temosumacoisaalhecontar,colega—disseJosefino.—Anopassadoumapristaveiomoraraqui,Lituma—disseoMacaco.—Umdessesquemataramo

general.Tenhoumaraiva!— Em Lima conheci muitos apristas — disse Lituma. — Também os prendiam. Falavam mal de

SánchezCerrootempotodo,diziamquefoiumtirano.Umacoisaamecontar,colega?

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—Evocêpermitiaquefalassemmalnasuafrentedessegrandemangache?—perguntouJosé.—Piurano,masnãomangache—disseJosefino.—Istoéoutrainvençãodevocês.SánchezCerrona

certanuncapôsospésnestebairro.—Oquequeriamecontar?—disseLituma.—Fale,homem,fiqueicurioso.—Nãoeraum,eraumafamíliainteira,primo—disseoMacaco.—Fizeramumacasapertodeonde

PatrocinioNayamoravaenaportapenduraramumabandeiraaprista.Vêquecagada?—EaBonifacia,Lituma—disseJosefino.—Sevêpelasuacaraquevocêquersaberdela.Porque

nãoperguntou,inconquistável?Tevevergonha?Masnóssomosseusirmãos,Lituma.— Mas, isso sim, botamos esse pessoal no lugar — disse o Macaco —, fizemos da vida deles um

inferno.Tiveramquesairdaquiàspressas.—Nuncaétardeparaperguntar—disseLituma;ergueu-seumpouco,apoiouasmãosnochãoeficou

imóvel.Falavacommuitacalma:—Nãomeescreveuumacarta.Oquehouvecomela?—DizemqueoJovemAlejandroeraapristaquandocriança—disseJosé,rapidamente.—Queuma

vezfoiaumamanifestaçãoparareceberHayadelaTorrecomumcartazquedizia“mestre,ajuventudeoaclama”.

—Calúnia,oJoveméumgrandesujeito,umadasglóriasdaMangachería—disseoMacacocomumavozfraca.

—Calemaboca,nãoveemqueestamosconversando?—Litumadeuumtapanochãoeprovocouumanuvenzinhadepoeira.OMacacoparoudesorrir,JosétinhabaixadoacabeçaeJosefino,muitorígidoecomosbraçoscruzados,piscavasemparar.

—Oquefoi,colega—disseLituma,comumasuavidadequaseafetuosa.—Eunãotinhaperguntadonadaevocêpuxouoassunto.Agoracontinue,nãofiquemudo.

—Certascoisasardemmaisqueaaguardente,Lituma—disseJosefino,ameia-voz.Litumainterrompeu-ocomumgesto:—Vouabriroutragarrafa,então—nemsuavoznemseusgestosrevelavamamenorturbação,mas

tinhacomeçadoatranspirarearespirarmaisfundo.—Oálcoolajudaareceberasmásnotícias,certo?Abriuagarrafacomumadentadaeencheuoscopos.Esvaziouoseunumsógole,ficoucomosolhos

vermelhos e úmidos, e o Macaco, que bebia aos pouquinhos, de olhos fechados, com o rosto inteirocontraídonumacareta,derepenteseengasgou.Começouatossireabaternopeitocomamãoaberta.

—EsteMacaco,sempredesajeitado—murmurouLituma.—Vamoslá,colega,estouesperando.—Opiscoéaúnicabebidaquevoltaparaomundoatravésdosolhos—cantarolouoMacaco.—As

outrasvoltamnoxixi.—Virouputa,irmão—disseJosefino.—EstánaCasaVerde.OMacacoteveoutroataquedetosse,seucoporolouparaochãoenaterraumamanchinhaúmidase

encolheu,desapareceu.

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IV

—Osdentes delas batiam,madre—disseBonifacia—, falei empagãopara que perdessemomedo.Asenhoratinhaquevercomoestavam.

—Porquenuncanoscontouquefalavaaguaruna,Bonifacia?—perguntouasuperiora.— Esqueceu que por qualquer coisa as madres dizem já está virando selvagem de novo? — disse

Bonifacia.—Esqueceuque elas dizem já está comendo comamão, suapagã?Eu ficava comvergonha,madre.

Saidadespensademãosdadascomelase,nasoleiradoseuquartinhoapertado,indicaqueesperem.Asduas se juntam, sãoumnoveloapertadocontraaparede.Bonifaciaentra,acendeo lampião,abreobaú,procuraalgumacoisa,tiraovelhomolhodechavesesai.Voltaapegarasmeninaspelamão.

—Éverdadequependuraramopagãonopau-mulato?—disseBonifacia.—Quecortaramocabelodeleequeficoucomacabeçareluzente?

—Vocêparecedoida—disseamadreAngélica—,derepentedizcadacoisa.Maselasabia,mamita:ossoldadosotrouxeramnumbote,amarraramnaárvoredabandeira,aspupilas

subiamaotetodaresidênciaparaolhareamadreAngélicabatianelas.Asbandidascontinuavamcomessahistória?QuandofoiquecontaramaBonifacia?

—Umpassarinhoamareloqueentrouvoandomecontou—disseBonifacia.—Cortarammesmoocabelodele?ComoamadreGriseldafezcomaspagãs?

—Foramos soldadosque cortaram,boba—disse amadreAngélica.—Não sepode comparar.AmadreGriseldacortaocabelodasmeninasparanãocoçar.Odelefoicomocastigo.

—Eoqueopagãotinhafeito,mamita?—perguntouBonifacia.—Maldades,coisasfeias—disseamadreAngélica.—Tinhapecado.Bonifaciaeasmeninassaemnapontadospés.Opátioestápartidoemdois:aLuailuminaafachada

triangulardacapelaeachaminédacozinha;ooutrosetordamissãoéumaaglomeraçãodesombrasúmidas.Aparededetijolosserecorta, imprecisa,sobaarcadaopacadecipósedegalhos.Aresidênciadasmadresdesapareceudentrodanoite.

—Vocêtemumaformamuitoinjustadeverascoisas—disseasuperiora.—Asmadresseimportamcomsuaalma,nãocomacordasuapelenemcomoidiomaquevocêfala.Vocêé ingrata,Bonifacia.AmadreAngélicanãoparoudemimarvocêdesdeodiaemquechegouàmissão.

—Eusei,madre,por isso lhepeçoquerezepormim—disseBonifacia.—Équenessanoitevireiumaselvagem,quecoisahorrível.

—Parede chorardeumavez—disse a superiora.—Já seiquevocêvirou selvagem.Agoraquerosaberoquefez.

Elaassolta,pedesilênciocomumgestoecomeçaacorrer,semprenapontadospés.Aprincípiolevacertavantagem,masnametadedopátioasduasmeninasjácorremaoseulado.Chegamjuntasàportaforadeuso.Bonifaciase inclina,experimentaasgrossas,emboloradaschavesdomolho,umaatrásdaoutra.Afechadurarange,amadeiraestámolhadaefazumsomocoquandobatemcomamãoaberta,masaportanãoabre.Arespiraçãodastrêséofegante.

—Eu eramuitopequena?—perguntouBonifacia.—Deque tamanho,mamita?Mostre com suamão.

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—Assim,destetamanho—disseamadreAngélica.—Masjáeraumdemônio.—Efaziamuitotempoqueestavanamissão?—disseBonifacia.—Poucotempo—disseamadreAngélica.—Sóunsmeses.Pronto,odemôniotinhaentradonoseucorpo,mamita.Oqueestavadizendoestadoida?Vamosver

comquevinhaagoraeBonifaciatinhachegadoaSantaMaríadeNievacomaquelepagão.Aspupilaslhecontaram,agoraamadreAngélicatinhaqueconfessaramentira.Senãoiriaparaoinferno,mamita.

— E então por que me pergunta, manhosa? — disse a madre Angélica. — É falta de respeito, etambémpecado.

—Erabrincadeira,mamita—disseBonifacia.—Euseiqueasenhoravaiparaocéu.Aterceirachavegira,aportacede.Masláforadevehaverumatenazconcentraçãodecaules,moitase

trepadeiras,ninhos,teiasdearanha,cogumelosemeadasdecipósqueresistemetravamaporta.Bonifaciaencostaocorponamadeiraeempurra—hálevíssimos,múltiplosdilaceramentoseumrumorquebradiço—atéqueseformaumaaberturasuficiente.Mantémaportaentreaberta,sentenorostootoquedesuavesfilamentos,ouveomurmúriodafolhageminvisívele,derepente,àssuascostas,outromurmúrio.

—Fiquei igual a elas,madre—disseBonifacia.—Apagãdebrincononariz comeue fez aoutracomeràforça.Enfiavaabananaemsuabocacomosdedos,madre.

—Eoqueissotemavercomodemônio?—perguntouasuperiora.—Umaseguravaamãodaoutraechupavaosdedos—disseBonifacia—,edepoisaoutra faziao

mesmo.Vêafomequetinham,madre?Comonãoterfome?AscoitadinhasnãotinhamcomidonadadesdeChicais,Bonifacia,masasuperiora

jásabiaqueelatevepenadasduas.EBonifaciaquasenãoentendia,madre,porqueelasfalavamesquisito.Aquiiamcomertododia,eelasqueremosirembora,aquiiamserfelizeseelasqueremosiremboraeentãocomeçoualhescontaraquelashistóriasdoMeninoJesusqueaspagãzinhastantoapreciavam,madre.

—Éomelhorquevocêfaz—disseasuperiora.—Contarhistórias.Oquemais,Bonifacia?Eseusolhosestãocomodoisvaga-lumes,vãoembora,verdeseassustados,voltemparaodormitório,

dáumpassoemdireçãoàspupilas,comordemdequemvocês saíram?eempurradapela selvaaporta sefecha sem fazer barulho. As pupilas a observam caladas, duas dúzias de vaga-lumes e uma única silhuetalarguíssimaedisforme,aescuridãoescondeosrostos,osaventais.Bonifaciaolhaparaaresidência:nenhumaluzacesa.Mandamaisumavezquevoltemparaodormitóriomaselasnãosemexemnemrespondem.

—Aquelepagãoeraomeupai,mamita?—perguntouBonifacia.—Nãoerao seupai—disseamadreAngélica.—VocênasceuemUrakusamasdevia ser filhade

outro,nãodaquelemalvado.Nãolheestavamentindo,mamita?MasamadreAngélicanuncamentia,sualouca,porqueiamentir.

Paraquenãoficassetristederepente,mamita?Paranãoseenvergonhar?Enãoachavaqueseupaitambémtinhasidomalvado?

—Porquê?—perguntouamadreAngélica.—Podiaterbomcoração,hámuitospagãosassim.Masparaquesepreocuparcomisso.Poracasoagoranãotemumpaimuitomaioremelhor?

Tampoucoobedecemdessavez,vãoembora,voltemparaodormitório, easduasmeninasestãoaosseuspés,tremendo,apertandooseuhábito.DerepenteBonifaciadámeia-volta,correeempurraaporta,abre,apontaparaaescuridãodomato.Asduasmeninasestãoaoseuladomasnãosedecidemaatravessaroumbral, suas cabeças oscilam entre Bonifacia e a abertura sombria e agora os vaga-lumes avançam, suassilhuetassedelineiamdiantedeBonifacia,começaramamurmurarcoisas,algumasatocá-la.

—Catavampiolhosumanaoutra,madre—disseBonifacia—,tiravamosbichosematavamcomosdentes.Nãoeramaldade,estavambrincando,madre,eantesdemordermostravamodedodizendovejaoquepeguei.Brincandoetambémporcarinho,madre.

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—Sejátinhamconfiançaemvocê,podiaterdadounsconselhosaelas—disseasuperiora.—Porexemploquenãofaçammaisessasporcarias.

Maselasópensavanodiaseguinte,madre:quenãochegasseodiadeamanhã,queamadreGriseldanãocorteocabelodelas,nãovaicortarnãovaipassardesinfetanteeasuperioraquebobagenseramessas?

—Asenhoranãovêcomoelasficam,massoueuquetenhoquesegurá-lasevejo—disseBonifacia.—Etambémquandoaslavameosabãoentranosolhos.

SentiapenaquandoamadreGriseldalivravaasmeninasdessesinsetosquedevoravamassuascabeças?Essesinsetosqueelasengolemetrazemdoençaseinchamsuasbarriguinhas?ÉqueelaaindasonhavacomastesourasdamadreGriselda.Porquesentiutantador,madre,devetersidoporisso.

—Vocênemparece inteligente,Bonifacia—disse a superiora.—Devia sentir pena éde ver essascriaturastransformadasemdoisbichinhos,vivendoigualaosmacacos.

—Asenhoravaisezangaraindamais,madre—disseBonifacia.—Vaimeodiar.O que queriam?, por que não obedeciam?, e, uns segundos depois, levantando a voz, ir embora

também?,virarpagãsdenovo?,easpupilastinhamescondidoasduasmeninas,àfrentedeBonifaciasósevêumamassacompactadeaventais eolhosambiciosos.Tanto fazia, então,Deus saberia, elas saberiam,quevoltassemparaodormitóriooufugissemoumorressemeolhaparaaresidência:aindaàsescuras.

—Cortaramocabelodeleparatirarodiabodocorpo—disseamadreAngélica.—Eagorachega,nãopensemaisnopagão.

Équeelasempreselembrava,mamita,decomofoiquecortaram,eodiaboeraigualaospiolhinhos?Quecoisasessadoidadizia.Eleparatirarodiabo,aspagãsparatirarospiolhos.Entãoquerdizerqueosdoisentravamnocabelo,mamita,eamadreAngélicaquebobavocêera,Bonifacia,quemeninamaisboba.

Saemumaatrásdaoutra,emfila,comofazemaosdomingosquandovãoparaorio,aopassaremaoladodeBonifaciaalgumasesticamamãoeapertamafetuosamenteseuhábito,seubraçonu,eelarápido,Deusasajudaria,rezariaporelas,Eleasprotegeriaesustentaaportacomascostas.Empurraaspupilasqueparamnasoleiraeviramacabeçaparaaresidênciaescondida,obrigando-asaentrarnovalevegetal,apisarnaterralamacentaeaperder-senastrevas.

—E,derepente,elasesoltoudaoutraeveioparapertodemim—disseBonifacia.—Amenorzinha,madre, e pensei que iame abraçarmas também começou ame catar com seus dedinhos, era para isso,madre.

—Porquenãolevouessasmeninasparaodormitório?—perguntouasuperiora.—Porgratidão,porqueeulhesderadecomer,nãopercebe?—disseBonifacia.—Suacaraficoutriste

porquenãoencontravanadaeeutomaraquetenha,tomaraqueencontrepelomenosunzinho,acoitada.—Edepoisreclamaquandoasmadreschamamvocêdeselvagem—disseasuperiora.—Poracaso

estáfalandocomoumacristã?Eela tambémcatavanocabelodameninaenãotinhanojo,madre,ematavacomosdentesosque

encontrava.Nojenta?, sim,devia ser, e a superiora você fala como se estivesse orgulhosadessaporcaria eBonifaciaestavamesmo,issoeraomaisterrível,madre,eapagãfaziadecontaqueencontravaemostravaamãoeametia rápidonabocacomose fossematá-lo.Eaoutra tambémcomeçou,madre,eela tambémcomeçounaoutra.

—Nãomefalenessetom—disseasuperiora.—Eagorachega,nãoqueroquemecontemaisnada,Bonifacia.

Eelaqueasmadresentrassemevissem,amadreAngélicaeasenhoratambém,madre,eatéas teriaxingado,detãofuriosaqueestava,tantoódioquesentia,madre,easduasmeninasnãoestãomaislá:devemtersidoasprimeirasasair,engatinhandovelozmente.Bonifaciaatravessaopátioeparaaopassaremfrenteàcapela.Entra,senta-senumbanco.Aluzdoluarchegaobliquamenteatéoaltar,morreaoladodagrade

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queseparaaspupilasdosfiéisdeSantaMaríadeNievanamissadodomingo.—Alémdomais,vocêeraumaferinha—disseamadreAngélica.—Euprecisavacorreratrásdevocê

pelamissãointeira.Umavezmedeuumadentadanamão,bandida.—Eunãosabiaoqueestavafazendo—disseBonifacia—,esqueceuqueaindaerapagã?Seeubeijaro

lugarondemordiasenhorameperdoa,mamita?—Vocêdizessascoisasnumtomdebrincadeiraecomumolhartãomarotoquedávontadedelhedar

umasurra—disseamadreAngélica.—Querquelheconteoutradassuashistórias?—Não,madre—disseBonifacia.—Jáestouaquirezandoháumbomtempo.—Porquenãoestánodormitório?—perguntouamadreÁngela.—Comordemdequemveioà

capelaaestashoras?—Aspupilasfugiram—disseamadreLeonor—,amadreAngélicaestáprocurandovocê.Vá,corra,a

superioraquerfalarcomvocê,Bonifacia.

—Devia ser bonita quando eramoça—disseAquilino.—Aquele cabelo tão compridome chamou aatençãoquandoaconheci.Penaqueapareceramtantasespinhas.

—EaquelecachorrodoReáteguiválá,apolíciapodechegar,aquivocêvaimecomprometer—disseFushía.—Masaquelaputaseexibiaotempotodoeelefoicaindo.

—Masfoivocêquemmandou,homem—disseAquilino.—Nãoeracoisadeputaria,eraobediência.Entãoporqueaxinga?

—Porquevocêélinda—disseReátegui—,voulhecomprarumvestidonamelhorlojadeIquitos.Quer?Masseafastedestaárvore;venha,aproxime-se,nãotenhamedo.

Seuscabelos sãoclarose soltos,estádescalça, sua silhueta se recortana frentedotronco imenso, sobumaespessacopaquevomitafolhascomosefossemlabaredas.Abasedaárvoreéumcotoaladodecascarugosa,impenetrável,acinzentado,enoseuinteriorhámadeiramaciçaparaoscristãos,duendesmalignosparaospagãos.

—Osenhortambémtemmedodapaineira,patrão?—disseLalita.—Nãoimaginavaissonosenhor.Olhapara ele comolhos zombeteiros e ri jogandoa cabeçapara trás: os cabelos longos varrem seus

ombros bronzeados e seus pés brilham entre as samambaias úmidas, mais morenos que os ombros, detornozelosgrossos.

—E também sapatos emeias, pequena—disse JulioReátegui.—Euma bolsa.Tudo o que vocêpedir.

—E você enquanto isso?—perguntouAquilino.—Afinal de contas era a sua companheira.Nãotinhaciúme?

—Eusópensavanapolícia—disseFushía.—Eleficavalouco,velho,suavoztremiaquandofalavacomela.

—OsenhorJulioReáteguibabandoporumacristã—disseAquilino.—PelaLalita!Eunãoacredito,Fushía.Elanuncamecontounada,eolhequeeueraseuconfessoreseuombroamigo.

—Velhas sábias, essasboras—disse JulioReátegui—,nãohámaneirade saber comopreparamastinturas.Vejaqueforteovermelho,opreto.Ejátêmvinteanos,talvezmais.Vamos,pequena,vista,querovercomoficaemvocê.

—EparaqueelequeriaqueaLalitapusesseamanta?—disseAquilino.—Queideia,Fushía.Masoquenãoentendoécomovocêficoutãotranquilo.Qualqueroutropuxavaafaca.

—Ocachorroestavanaredeeelanajanela—disseFushía.—Euouviatodasashistóriasemorriaderir.

—Eporquenãoriagoratambém?—disseAquilino.—PorquetantoódiodaLalita?

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—Nãoéamesmacoisa—disseFushía.—Destavezfoisemminhaautorização,àsescondidas,demá-fé.

—Nemsonhando,patrão—disseLalita.—Nemquemerezeechore.Masvesteeoventiladordemadeira,quefuncionacomobalançodarede,emiteumsomentrecortado,

umaespéciedegagueiranervosa,e,envoltanamantapretaevermelha,Lalitaficaimóvel.Atelametálicadajanelaestáconsteladadenuvenzinhasverdes,malvas,amarelase,aolonge,entreacasaeomato,osarbustosdecaféparecemtenros,certamentecheirosos.

—Vocêpareceumalarvadentrodocasulo—disseJulioReátegui.—Umadessasborboletinhasdejanela.Oquecusta,Lalita,vamos,façaissopormim,tire.

—Que coisa de louco— disse Aquilino.—Primeiro que vista e depois que tire. Cada ideia, essericaço.

—Nuncatevetesão,Aquilino?—perguntouFushía.—Eu lhedouoquequiser—disse JulioReátegui.—Podepedir,Lalita,oque for,venha,chegue

maisperto.Amanta,agoranochão,éumavitória-régiaredondadeondebrota,comoumaorquídeanumaplanta

aquática, o corpo damoça,miúdo, de seios galhardos com corolas pardas e bicos que pareciam flechas.Atravésdablusatranspareciamumabarrigalisa,umascoxasfirmes.

—Entrei fingindoquenão vinada—disseFushía—, rindoparaqueo cachorronão ficasse comvergonha.EleselevantoudaredenumpuloeaLalitaenrolou-senamanta.

—Mil solesporumamoçanão é coisade cristãos sensatos—disseAquilino.—Éopreçodeummotor,Fushía.

—Valedezmil—disseFushía.—Sóqueestoucompressa,osenhorsabemuitobemporque,donJulio,enãopossolevarmulher.Queropartirhojemesmo.

Masnãoiamlhetirarmilsolesassimtãofácil,aindamaisquejáohaviaescondido.Edepois,Fushíasabiaqueonegóciodaborrachatinhaidoparaodiabo,ecomasenchentesiaserimpossíveltirarmadeiraesteanoeFushíaessasloretanas,donJulio,osenhorsabe:sãovulcõesqueincendeiamtudo.Davaatépenadeixá-la,porqueelanãoerasóbonita:tambémcozinhavaetinhabomcoração.Eentão,donJulio,oquedecidia?

—FicavamesmocompenadedeixaraLalitaemUchamalacomosenhorReátegui?—disseAquilino.—Oudiziasópordizer?

—Quepenanemnada—disseFushía—,nuncagosteidessaputa.—Nãosaiadalagoa—disseJulioReátegui—,vouentrarnaáguacomvocê.Nãofiquesemnada,ese

apareceremcandirus?Vistaalgumacoisa,Lalita,não,espere,aindanão.Lalita está de cócoras no remanso e a água a vai cobrindo, ao redor brotam ondas, círculos

concêntricos.HáumachuvadecipósnasuperfíciedaáguaeJulioReáteguijáestavasentindo,Lalita,vista-se: eram fininhos, tinham espinhos, entravam pelos buraquinhos, menina, e lá dentro arranhavam,infeccionavamtudoeiaterquebeberinfusõesboraseaguentaradiarreiaporumasemana.

—Nãosãocandirus,patrão—disseLalita—,nãovêquesãopeixinhospequenos?Easplantaslánofundo,éissooqueestásentindo.Quemorna,quegostosa,nãoé?

—Entrarnoriocomumamulher,osdoispelados—disseAquilino.—Nuncameaconteceuquandoerajovemeagoramedói.Deveserumacoisamuitoboa,Fushía.

—VouentrarnoEquadorpelorioSantiago—disseFushía.—Umaviagemdifícil,donJulio,nãonosveremosmais.Decidiu?Porquevoupartirestanoitemesmo.Sótemquinzeanoseeufuioprimeiroquetocounela.

—Àsvezesmeperguntoporquenãomecasei—disseAquilino.—Mascomavidaque tive,não

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havia como. Sempre viajando, como ia arranjarmulherno rio.Você, sim,nãopode se queixar, Fushía.Nuncalhefaltaram.

—Estamosdeacordo—disseFushía.—Sua lanchinhaeasconservas.Éumbomnegócioparaosdois,donJulio.

—OSantiagoficamuitolonge,vocênuncavaichegarsemservisto—disseJulioReátegui.—Alémdomais,navegandonestaépocavailevarummêsetanto.PorquenãovaipeloBrasil,nãoémelhor?

—Éláqueestãomeesperando—disseFushía.—Desteladodafronteiraetambémdooutro,porumahistóriaemCampoGrande.Nãosoutãoboboassim,donJulio.

—NuncavaichegaraoEquador—disseJulioReátegui.—Enãochegou,narealidade—disseAquilino.—FicounoPeru.—Semprefoiassim,Aquilino—disseFushía.—Todososmeusplanossaírampelaculatra.—Eseelanãoquiser?—disseJulioReátegui.—Vocêmesmotemqueconvencê-la,antesqueeulhe

dêalancha.—Elasabequeminhavidavaiserumacorreriadeumladoparaoutro—disseFushía—,podemme

acontecermilcoisas.Mulhernenhumagostadeandarcomumhomemfodido.Elavaigostardeficar,donJulio.

—E,noentanto,vejasó—disseAquilino.—Elaacompanhouvocêeoajudouemtudo.Levouumavidadebichodomato,aoseulado,semreclamar.Apesardospesares,Lalitafoiumaboamulher,Fushía.

Foi assim que a Casa Verde nasceu. A construção levou muitas semanas; as tábuas, as vigas e os tijolosprecisavamserarrastadosdaoutrapontadacidade,easmulasalugadaspordonAnselmoavançavamcomdificuldadepeloareal.Otrabalhocomeçavademanhã,quandoachuvasecaparava,eterminavaquandooventoaumentava.Detarde,ànoite,odesertoengoliaosalicerceseenterravaasparedes,asiguanasroíamasmadeiras,osabutres faziamseusninhosna incipienteconstrução,e todamanhãeraprecisorefazeroquetinha sido começado, corrigir os planos, repor osmateriais, num combate surdo que foi galvanizando acidade.“Quandooforasteirovaisedarporvencido?”,perguntavam-seosvizinhos.Masosdiastranscorriame,semseabatercomospercalçosnemsecontagiarpelopessimismodosconhecidoseamigos,donAnselmocontinuavadesenvolvendoumaassombrosaatividade.Dirigiaostrabalhosquasenu,comamatapeludadoseu peito molhada de suor, a boca cheia de euforia. Distribuía aguardente e carne entre os peões e eleprópriocarregavatijolos,fincavavigas,iaevinhapelacidadeaçulandoasmulas.EumbelodiaospiuranosadmitiramquedonAnselmoiavencer,aodivisaremdooutroladodorio,emfrenteàcidade,comoumaespéciedeemissáriodestanabocadodeserto,umsólido,invictoesqueletodemadeira.Apartirdeentão,oserviço foi rápido. O povo de Castilla e do casario do matadouro vinha todas as manhãs presenciar ostrabalhos, davam conselhos e às vezes, espontaneamente, também ajudavam os peões. Don Anselmoofereciabebida a todomundo.Nosúltimosdias, imperavaumclimade feirapopular emvoltadaobra:chicheras,fruteiras,vendedorasdequeijo,doceserefrescosiamoferecersuamercadoriaaostrabalhadoresecuriosos.Osfazendeirosdavamumaparadaquandopassavamporláe,doaltodassuasmontarias,diziampalavrasdeestímuloadonAnselmo.Umdia,ChápiroSeminario,opoderosoagricultor,mandou-lheumboieumadúziadecântarosdechicha.Ospeõesprepararamumapachamanca.

Quandoacasaficoupronta,donAnselmodeterminouquefossetotalmentepintadadeverde.Atéascrianças caíam na gargalhada quando viam aquelas paredes cobertas por uma pele cor de esmeralda queemitia reflexos escamosos quando o sol batia. Velhos e jovens, ricos e pobres, homens e mulheresgracejavam alegremente com o capricho de don Anselmo de sarapintar sua moradia daquela maneira.Imediatamenteabatizaram:ACasaVerde.Nãoerasóacorquecausavagraça,mastambémsuaanatomiaextravagante.Acasatinhadoisandares,masodebaixomalmereciaestenome:umsalãoespaçosocortado

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porquatro vigas, tambémverdes, que sustentavamo teto;umpátiodescoberto, empedrado comcalhauspolidospelorioeumaparedecircular,daalturadeumhomem.Osegundoandareracompostoporseisquartosminúsculos,enfileiradosdiantedeumcorredorcomumabalaustradademadeiraquesobrevoavaosalãodotérreo.Alémdaentradaprincipal,aCasaVerdetinhaduasportasnosfundos,umacavalariçaeumagrandedespensa.

NoarmazémdoespanholEusebioRomero,donAnselmocomprouesteiras,lampiõesaóleo,cortinasde cores berrantes, muitas cadeiras. E, certa manhã, dois carpinteiros da Gallinacera anunciaram: “DonAnselmonosencomendouumaescrivaninha,umbalcãoigualzinhoaodoLaEstrelladelNorteemeiadúziadecamas!”Então,donEusebioRomeroconfessou:“Eamim,seispias,seisespelhos,seisbacias.”Umaespéciedeefervescênciaseespalhouportodososbairros,umarumorosaeagitadacuriosidade.

Surgiramassuspeitas.Decasaemcasa,desalãoemsalãoasbeatascochichavam,assenhorasolhavamcomdesconfiançaparaseusmaridos,osvizinhostrocavamsorrisosmaliciosose,umdomingo,namissademeio-dia,opadreGarcíaafirmounopúlpito:“Estãopreparandoumaagressãocontraamoralnestacidade.”Os piuranos acossavam donAnselmo na rua, exigindo que ele falasse.Mas era inútil: “É segredo”, dizia,deleitado como um colegial; “tenham um pouco de paciência, já vão saber”. Indiferente ao rebuliço, elecontinuava indo toda manhã ao La Estrella del Norte, e bebia, pilheriava e distribuía lembrancinhas egalanteiosàsmulheresqueatravessavamapraça.DetardeficavanaCasaVerde,paraondetinhasemudadodepoisdedarumacaixadegarrafasdepiscoeumaseladecourolavradoparadonMelchorEspinoza.

Poucodepois,donAnselmosefoi.Numcavalonegro,queacabavadecomprar,deixouacidadecomotinhachegado,certamanhãaonascerdosol,semqueninguémovisse,comdestinodesconhecido.

Falou-se tanto em Piura da Casa Verde original, essa residência matriz, que ninguém mais sabeexatamente como ela era de fato, nem os verdadeiros pormenores da sua história. Os sobreviventes daépoca,muitopoucos, se atrapalhame se contradizem;acabamconfundindooquevirameouviramcomseusprópriosinventos.Eosprotagonistasjáestãotãodecrépitos,eétãoobstinadooseumutismo,quenãoadiantarianadaperguntaraeles.Detodomodo,aCasaVerdeprimitivanãoexistemais.Atépoucosanosatrás,nolocalondefoiconstruída—aáreadedesertolimitadaporCastillaeCatacaos—seencontravampedaços demadeira e objetos domésticos carbonizados,mas o deserto, e a estrada que construíram, e aschácarasquesurgiramnosarredores,acabaramapagandotodosessesvestígioseagoranãohápiuranocapazde precisar em que lugar do areal amarelado a casa se erguia, com suas luzes, suamúsica, suas risadas, eaquele resplendor diurno de suas paredes que, à distância e de noite, a transformava num quadrado,fosforescenteréptil.NashistóriasdosmangachessedizqueficavanasproximidadesdaoutrapontadaPonteVelha,queeramuitogrande,amaiordasconstruçõesdeentão,equehaviatantaslâmpadascoloridasemsuas janelasquea luzmachucavaavista, tingiaaareiaemvoltaeaté iluminavaaponte.Masaprincipalvirtudedoestabelecimentoeraamúsicaque,pontualmente,irrompiaemseuinteriornocomeçodatarde,durava anoite inteira e eraouvida atémesmona catedral.DonAnselmo,dizem,percorria incansável aschicheríasdosbairros,eatédepovoadosvizinhos,embuscadeartistas,ede todaparte traziaviolonistas,tocadoresdecajón,raspadoresdequeixada,flautistas,mestresdobomboedacorneta.Masnuncaharpistas,poiseletocavaesseinstrumentoesuaharpacomandava,inconfundível,amúsicadaCasaVerde.

—Eracomoseoarestivesseenvenenado—diziamasvelhasdaavenidadoporto.—Amúsicaentravaemtodososlugares,mesmoquefechássemosasportasejanelas,nósaescutávamosenquantocomíamos,enquantorezávamoseenquantodormíamos.

—E imagine as caras dos homens quando ouviam— diziam as beatas sufocadas em seus véus.—Eimaginecomoaquiloostiravadoslares,comoosatraíaparaaruaeempurravaparaaPonteVelha.

—Enãoadiantavarezar—diziamasmadres,asesposas,asnamoradas—,denadaserviamosnossosprantos,asnossassúplicas,nemossermõesdospadres,asnovenas,nemsequerostriságios.

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—Estamoscomoinfernonasnossasportas—trovejavaopadreGarcía—,qualquerumveria,masvocêsestãocegos.PiuraéSodomaeéGomorra.

—TalvezsejamesmoverdadequeaCasaVerdenostrouxeazar—diziamosvelhos,lambendoosbeiços.—Mascomoaproveitamosnamaldita.

PoucassemanasdepoisdedonAnselmovoltaraPiuracomsuacaravanademoradoras,aCasaVerdejáhavia imposto seu domínio. A princípio, os que iam visitá-la saíam da cidade às escondidas; esperavamchegar a escuridão, atravessavamdiscretamente a PonteVelha e entravamno areal.Depois, as incursõesaumentarameosjovens,cadavezmaisimprudentes,nãoseimportavammaisdeseremreconhecidospelassenhoraspostadasatrásdaspersianasdaavenidadoporto.Emcasebresesalões,nasfazendas,nãosefalavade outra coisa. Os púlpitos multiplicavam advertências e exortações, o padre García estigmatizava alicenciosidadecomcitaçõesbíblicas.FoicriadoumComitêdeObrasPiaseBonsCostumeseasdamasqueointegravamvisitaramoprefeitoeoalcaide.Asautoridadesassentiam,cabisbaixas:certo,elastinhamrazão,a Casa Verde era uma afronta a Piura,mas o que fazer? As leis ditadas nessa capital podre que é LimaprotegiamdonAnselmo,aexistênciadaCasaVerdenãocontradiziaaConstituiçãonemerapunidapeloCódigo. As damas deixaram de cumprimentar as autoridades, fecharam seus salões. Enquanto isso, osadolescentes, os homens feitos e até os pacíficos anciãos se precipitavam em bandos para a buliçosa ereluzenteconstrução.

Até mesmo os piuranos mais sóbrios, os mais trabalhadores e mais corretos. Na cidade, antes tãosilenciosa, o barulho e o movimento noturnos se instalaram como pesadelos. Ao amanhecer, quando aharpaeosviolõesdaCasaVerdesilenciavam,umritmoindisciplinadoemúltiploseelevavaaoscéus:osquevoltavam,sósouemgrupos,percorriamasruasàsgargalhadasecantorias.OshomensmostravamafaltadesononosrostosavariadospeloataquedaareiaenoLaEstrelladelNortecontavamhistóriasestrambóticasquecorriamdebocaembocaeosmenoresrepetiam.

—Estãovendo,estãovendo—dizia,trêmulo,opadreGarcía—,sófaltachoverfogoemPiura,todososmalesdomundoestãocaindosobrenós.

Porque é verdade que tudo isso coincidiu com desgraças. No primeiro ano, o rio Piura cresceu econtinuou crescendo, arrebentou as barreiras das chácaras, muitos plantios do vale se alagaram, algunsanimais morreram afogados e a umidade tingiu vastos setores do deserto de Sechura: os homenspraguejavam, as crianças faziam castelos com a areia contaminada. No segundo ano, como que emrepresália contra as injúriasdosdonosdas terras alagadas,o rionão subiu.O leitodoPiura se cobriudeervas e cardos quemorrerampoucodepois denascer e só restouuma longa fendaulcerada: os canaviaissecaram,oalgodãobrotouantesdotempo.Noterceiroano,aspragasdizimaramascolheitas.

—Estassãoasdesgraçasdopecado—rugiaopadreGarcía.—Aindahátempo,oinimigoestáemsuasveias,matem-nocomorações.

Osfeiticeirosdoscasebresregavamosroçadoscomsanguedecabritonovo,rolavamdentrodossulcos,faziamconjurosparaatrairaáguaeafugentarosinsetos.

— Meu Deus, meu Deus — lamentava o padre García. — Há fome e há miséria e, em vez de secorrigirem,pecamepecam.

Porquenemainundação,nemaseca,nemaspragasdetiveramaglóriacrescentedaCasaVerde.Oaspectodacidademudou.Astranquilasruasprovincianasseencheramdeforasteirosque,nosfinsde

semana,vinhamaPiuradeSullana,Paita,HuancabambaeatédeTumbeseChiclayo,seduzidospelalendada Casa Verde que se propagara através do deserto. Lá passavam a noite e, quando vinham à cidade,mostravam-segrosseirosedescomedidos,exibiamsuabebedeirapelasruascomoumaproeza.Osmoradoresosodiavameàsvezeshaviaconflito,nãodenoiteenocenáriodosduelos,odescampadoembaixodaponte,e simàplena luzdodiaenaPraçadeArmas,naavenidaGrauouemqualqueroutro lugar.Explodiam

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brigascoletivas.Asruasficaramperigosas.Quando, apesar da proibição das autoridades, alguma das moradoras se aventurava pela cidade, as

senhoraspuxavamsuasfilhasparadentrodolarefechavamascortinas.OpadreGarcíaiaaoencontrodaintrusa,transfigurado;osvizinhosprecisavamcontê-loparaimpedirumaagressão.

Noprimeiroano,oestabelecimentohospedouapenasquatromoradoras,masnoanoseguinte,quandoestaspartiram,donAnselmoviajouevoltoucomoito,edizemquenoseuapogeuaCasaVerdechegouatervinte.Chegavame iamdiretamenteparaacasaafastada.DaPonteVelhaviam-sechegarasmulheres,ouviam-se seus gritos e desplantes. Suas indumentárias coloridas, seus lenços e enfeites cintilavam comocrustáceosnapaisagemárida.

DonAnselmo,emcontrapartida,frequentavaacidade.Percorriaasruasnoseucavalopreto,quetinhaensinadoafazergalanteios:sacudiroraboalegrementequandopassavaumamulher,dobrarumapataemsinaldesaudação,executarpassosdedançaaoouvirmúsica.DonAnselmotinhaengordado,vestia-secomumexcessoberrante:chapéudepalhamole,cachecoldeseda,camisasde linho,correiacomincrustações,calçasjustas,botasdesaltoaltoeesporas.Suasmãosfervilhavamdeanéis.Àsvezes,vinhabeberalgumacoisanoLaEstrelladelNorteemuitospoderososdacidadenãovacilavamemsentar-seà suamesa,conversarcomeleedepoisacompanhá-loatéosarredores.

A prosperidade de donAnselmo se traduziu em ampliações laterais e verticais daCasaVerde. Esta,como um organismo vivo, foi crescendo, amadurecendo. A primeira inovação foi um muro de pedra.Coroadodecardos,cacosdevidro,farpaseespinhosparadesanimarosladrões,envolviaoandardebaixoeo ocultava. O espaço entre o muro e a casa foi primeiro um patiozinho pedregoso, depois um saguãoniveladocomvasosdecactos,maistardeumsalãocircularcompisoetetodeesteirase,porfim,amadeirasubstituiuapalha,opisofoiempedradoeotetosecobriudetelhas.Acimadosegundoandarsurgiuoutro,pequeno e cilíndrico como um torreão de vigia. Cada pedra acrescentada, cada telha ou madeira eraautomaticamentepintadadeverde.AcorescolhidapordonAnselmoacabouimprimindoàpaisagemumanota refrescante, vegetal, quase líquida.De longe, os viajantes avistavam a construçãode paredes verdes,semidiluídas na viva luz amarela da areia, e tinham a sensação de estar se aproximando de um oásis depalmeiras e coqueiros acolhedores, comáguas cristalinas, e era como se essapresençadistanteprometessetodo tipo de recompensas para o corpo fatigado, estímulos sem fim para o ânimo deprimido peloabafamentododeserto.

Don Anselmo, dizem, morava no último andar, naquela cúspide estreita, e ninguém, nem os seusmelhores clientes—Chápiro Seminario, o prefeito, donEusebioRomero, o doutorPedroZevallos—,tinhamacessoaesselugar.Dali,semdúvida,donAnselmodeviaobservarodesfiledosvisitantesnoareal,versuassilhuetasdiluídaspelostorvelinhosdeareia,essasbestasfamintasquerondamacidadedesdequeosolsepõe.

Alémdasmoradoras,emsuaboaépocaaCasaVerdehospedouAngélicaMercedes,jovemmangachequehaviaherdadodamãe a sabedoria e a artedos temperos.ComeladonAnselmo ia aomercado, aosarmazéns, para encomendar mantimentos e bebidas: comerciantes e ambulantes se inclinavam à suapassagem como bambus ao vento. Os cabritos, porquinhos-da-índia, porcos e cordeiros, que AngélicaMercedescozinhavacommisteriosaservaseespeciarias,chegaramaserumdosatrativosdaCasaVerdeehaviavelhosquejuravam:“Sóvamosláparasaborearaquelacomidafina.”

OsarredoresdaCasaVerdeviviamanimadosporumamultidãodevagabundos,mendigos,vendedoresdequinquilhariasedefrutasqueassediavamosclientesqueentravamesaíam.Osmeninosdacidadefugiamde casa à noite e, escondidos atrás dasmoitas, espiavam os visitantes e ouviam amúsica, as gargalhadas.Alguns,arranhandoasmãoseaspernas,escalavamomuroeolhavamcobiçosamenteparadentro.Umdia(queerafestareligiosa),opadreGarcíasepostounoareal,apoucosmetrosdaCasaVerdeeenfrentavaos

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visitantes,umporum,exortando-osavoltarparaacidadeearrepender-se.Maselesinventavamdesculpas:umareuniãodenegócios,umamágoaqueprecisavadesafogarparanãoenvenenaraalma,umaapostaquecomprometeahonra.AlgunspilheriavameconvidavamopadreGarcíaaircomelesehouvegenteatéqueseofendeuepuxouapistola.

Novosmitos sobre donAnselmo surgiram emPiura. Para alguns, ele fazia viagens secretas a Lima,onde guardava odinheiro acumulado e adquiria propriedades.Para outros, era apenas a fachadadeumaempresa que contava entre seus sócios o prefeito, o alcaide e fazendeiros.Opassadode donAnselmo seenriquecia na fantasia popular, diariamente se acrescentavam feitos sublimes ou sangrentos à sua vida.Velhosmangachesjuravamreconhecerneleumadolescenteque,anosantes,cometeraassaltosnobairro,eoutrosafirmavam:“Éumpresidiárioforagido,umex-miliciano,umpolíticoemdesgraça.”SóopadreGarcíaseatreviaadizer:“Seucorpocheiraaenxofre.”

E de madrugada se levantam para prosseguir a viagem, descem o barranco e a lanchinha não está lá.Começamaprocurar,AdriánNievesparaumlado,ocaboRobertoDelgadoeoauxiliarparaooutroe,derepente,gritos,pedras,homenspeladoseláestáocabo,rodeadodeaguarunas,chovempausemcimadele,doauxiliartambém,eagoraovirameosíndioscorremnasuadireção,merda,AdriánNieves,chegouasuahora,esejoganaágua:fria,rápida,escura,nãolevanteacabeça,maisparadentro,parapegaracorrenteza,flechas?,queoleverioabaixo,balas?,pedras?,merda,ospulmõesqueremar,acabeçaestátontacomoumpião,cuidadocomacãibra.SaieaindasevêUrakusae,nobarranco,ouniformeverdedocabo,osíndiosoestãomachucando,aculpaeradele,bemquetinhaavisadoeoauxiliar,escaparia?,seriamorto?Continuaflutuandoáguaabaixo,agarradoemumtronco,edepois,quandosainamargemdireitadorio,seucorpoestá dolorido.Dorme alimesmona praia, deserta, ainda não recuperou as forças e um escorpião o picatranquilamente. Tem que acender uma fogueira e pôr amão em cima, assim, é bom que transpire umpouco pormais que arda tanto, suga a ferida, cospe, lave bem a boca, com essas picadas nunca se sabe,escorpião filhodaputa.Depois continuapelomato,não se veem índios,mas émelhor irnadireçãodoSantiago, e se umapatrulhao encontrar e devolver à guarniçãodeBorja?Nempensar emvoltar para aaldeia, os soldados o descobririam amanhã ou depois, por ora precisava fabricar uma balsa. Levamuitotempo,ah,sevocêtivesseumfacão,AdriánNieves,suasmãosestãocansadasenãotêmforçaparaderrubartroncos mais resistentes. Escolhe três árvores mortas, brancas e bichadas, que vêm abaixo no primeiroempurrãoeasjuntacomcipós.Fazdoisremos,umdelesparalevardereserva.Eagoranemapareçanoriogrande,procurecanaise lagoasporondepassar,enãoédifícil,aregiãoé todade igarapés.Mascomoseorientar,estasterrasaltasnãosãoassuas,aságuassubirammuito,seráquesechegaassimaoSantiago?,maisuma semaninha,AdriánNieves, você foi umbompiloto, abre as narinas, o cheironão engana, esta é adireçãocerta,colhões,homem,tenhacolhões.Masondeestaráagora,ocanalparecegirarsobresimesmoeelenavegaquaseàsescuras,aselvaéespessa,osoleoarquasenãochegam,tudocheiraamadeirapodre,alodo e, depois, tanto morcego, seus braços doem, sua garganta arde de tanto enxotá-los, mais umasemaninha.Nemparatrásnemparaafrente,nãotemcomoretrocederatéoMarañónnemcomochegaraoSantiago,acorrentezaolevaaoseubel-prazer,seucorponãoaguentadecansaço,aindaporcimachove,chove dia e noite. Mas afinal termina o canal e surge uma lagoa, um charco pequenino com tucumãsespinhentosnasmargens,océucadavezmaisescuro.Dormenumailha,quandoacordamastigaumaservasamargas,segueviagemesódoisdiasdepoismataapazadasumaantamagrinha,comeacarnemeiocrua,seusmúsculosjánemconseguemmoveroremo,osmosquitosomorderamcomfúria,suapeleestáardendoeaspernasiguaisàsdocapitãoQuiroga,comocontavaocabo,oqueiaserdele,osurakusasosoltariam?,estavam furiosos, será que de repente omatariam? Talvez fossemelhor ter voltado para a guarnição deBorja,preferível ser soldadoque cadáver, é tristemorrerde fomeoude febrenomeiodomato,Adrián

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Nieves.Estádebruçosnabalsaeassimficaumbocadodedias,equandoocanalacabaechegaaumalagoaenorme,quecoisa,tãograndequepareceolago,quecoisa,olagoRimache?,nãopodiatersubidotanto,impossível,enocentroestáailhaenoaltodobarrancoháumaparededepaineiras.Empurraoremosemse levantar e, finalmente, entre as árvores cheias de corcovas, silhuetas nuas, merda, serão aguarunas?,ajudem-me,serãomansos?,acenacomasduasmãoseelesseagitam,gritam,ajudem-me,pulam,apontamparaeleequandoatracavêocristão,acristã,estãoàsuaesperaeeleperdeacabeça,patrão,nãoimaginavaquealegriaverumcristão.Tinhasalvadoasuavida,patrão,jápensavaqueestavatudoacabadoeelerielhedão outra dose, o sabor doce, áspero do anisado e atrás do patrão há uma cristã jovem, bonita de cara,bonito seu cabelo comprido, e era como se estivesse sonhando, patroa, a senhora também me salvou:obrigadoemnomedocéu.Quandoacordaelesaindaestãoali,aoseulado,eopatrãoquecoisa,jáerahora,homem,tinhadormidoumdiainteiro,afinalabriaosolhos,estavasesentindobem?EAdriánNieves,sim,muitobem,patrão,masnãohavia soldadosporaqui?Não,nãohavia,porquequeria saber,oque tinhafeitoeAdriánNieves,nadademau,patrão,nãomateininguém,sóquefugiudoserviço,nãopodiavivertrancadonumquartel,paraelenãohavianadacomooarlivre,chamava-seNieveseantesqueossoldadosopegassemerapiloto.Piloto?Entãodeviaconhecerbemaselva,saberlevarumalanchaaqualquerlugareemqualquerépocaeeleclaroquepodia,patrão,erapilotodesdequenascera.Agorahaviaseperdidoporquesemeteunosigarapésemplenacheia,nãoqueriaqueossoldadosovissem,seráquenãopoderia,patrão?Eopatrãosim,podiaficarnailha,elelhedariaumtrabalho.Aquiiaestarseguro,nuncaapareceriamsoldadosnemguardas:estaerasuamulher,Lalita,eeleFushía.

—Oquefoi,colega?—disseJosefino.—Nãopercaasestribeiras.—VouparaacasadaChunga—rugiuLituma.—Vocêsvêmcomigo?Não?Nãofazemfalta,euvou

sozinho.Mas osLeónoprendempelos braços eLituma fica nomesmo lugar, congestionado, suarento, seus

olhinhosrevoandoangustiosamentepeloaposento.—Paraquê,irmão—perguntouJosefino.—Aquiestamosbem.Acalme-se.— Só para ouvir o harpista de dedos de prata— gemeu Lituma.— Só para isso, inconquistáveis.

Bebemosalgumacoisaevoltamos,juro.—Vocêsemprefoihomem,colega.Nãofraquejeagora.—Soumaishomemquequalquerum—balbuciouLituma.—Mastenhoumcoraçãodestetamanho.—Tentechorar—disseoMacaco,meigamente.—Desabafe,primo,nãotenhavergonha.Litumaolhavaparaovazioeseuternoalaranjadoestavacheiodemanchasdeterraedesaliva.Ficaram

emsilêncioduranteumbomtempo,bebendocadaumpelo seu lado, sembrindar,eouviram-seecosdetonderos e de valsas, e a atmosfera se impregnou de cheiro de chicha e fritura. O balanço da lâmpadaampliava e diminuía num ritmo preciso as quatro silhuetas projetadas nas esteiras, e a vela do nicho, jáminúscula,exalavaumafumacinhaencaracoladaeescuraqueladeavaaVirgemdegessocomoumalongacabeleira.Litumalevantou-secommuitoesforço,sacudiuaroupa,passouunsolhosperdidosemvoltadesie,derepente,meteuumdedonaboca.Ficoufutucandoagargantadiantedoolharatentodosoutros;elesviram como empalideceu e por fim vomitou, ruidosamente, com arquejos que estremeciam todo o seucorpo.Depois,voltouasentar-se, limpouorostocomolençoe,exausto,mostrandoasolheiras,acendeuumcigarrocomasmãostrêmulas.

—Jáestoumelhor,colega.Continuecontando.—Sabemosmuitopouco,Lituma.Querdizer,decomoacoisaaconteceu.Quandovocêfoipresonós

demosofora.Tínhamossidotestemunhasepodiamnosencrencar,vocêsabequeosSeminariosãogenterica,commuitasinfluências.EufuiparaSullanaeosseusprimosparaChulucanas.Quandovoltamos,ela

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tinhasumidodacasinhadeCastillaeninguémsabiaondeestava.—Entãoacoitadaficousozinha—murmurouLituma.—Semumtostãoeaindaporcimagrávida.— Não se preocupe com isso, irmão — disse Josefino. — Não deu à luz. Pouco tempo depois

soubemosqueandavapelaschicherías,ecertanoiteaencontramosnoRioBarcomumsujeitoenãoestavagrávida.

—Eoqueelafezquandoviuvocês?— Nada, colega. Cumprimentou normalmente. E depois topávamos com ela aqui e ali, sempre

acompanhada.AtéqueumdiaavimosnaCasaVerde.Litumapassouolençonorosto,sugoucomforçaocigarroesoltouumagrandebaforadadefumaça

espessa.—Porquenãomeescreveram?—suavozestavacadavezmaisrouca.—Vocêjátinhabastantesproblemas,trancafiadoelongedasuaterra.Paraqueíamosamargurarainda

maisasuavida,colega?Nãosedãonotíciasassimparaquemjáestáfodido.—Chega,primo,parecequevocêgostadesofrer—disseJosé.—Vamosmudardeassunto.Um fio brilhante de saliva corria dos lábios de Lituma até o pescoço. Sua cabeça se movia, lenta,

pesada, mecânica, seguindo a exata oscilação das sombras nas esteiras. Josefino encheu os copos.Continuarambebendo,semfalarnada,atéqueaveladonichoseapagou.

—Estamosaquiháduashoras—disseJosé,apontandoparaocastiçal.—Éotempoqueduraopavio.—Estou contente com a sua volta, primo—disse oMacaco.—Não faça essa cara.Ria, todos os

mangachesvãoficarfelizesdevê-lo.Ria,priminho.FoiatéLituma,abraçou-oeficouolhandoparaelecomseusolhosgrandes,vivoseardentes,atéque

Litumalhedeuumapalmadinhanacabeçaesorriu.—Éassimqueeugosto,primo—disseJosé.—VivaaMangachería,vamoscantarohino.E, subitamente, os três começama falar, eram três garotos e pulavamosmurosde adobedaEscola

Fiscal para tomar banho no rio ou, montados num burro alheio, percorriam caminhos arenosos, entrechácarasealgodoais,emdireçãoàstumbasdeNarihualá,eaíestavaofragordoscarnavais,ascascasdeovoeasbexigasdeáguachoviamemcimadostranseuntesenfurecidosetambémencharcavamosmilicosquenãose atreviam a ir pegá-los em seus esconderijos nos terraços e nas árvores, e agora, nas manhãs quentes,disputavamfogososjogosdefutebolcombolademeianaquadrainfinitamentegrandedodeserto.Josefinoosouviamudo,comosolhoscheiosdeinveja,osmangachesrecriminavamLituma,vocêsealistoumesmonaGuardaCivil?,seurenegado,traidor,eosLeóneLitumariam.Abriramoutragarrafa.Semprecalado,Josefinofaziacírculosdefumaça,Joséassobiava,oMacacoconservavaopisconaboca,simulavamastigar,faziagargarejos,caretas,nãosintoenjoonemfogo,sóessecalorzinhoquenãoseconfunde.

—Calma,inconquistável—disseJosefino.—Ondevocêvai,segurem-no.Os León o alcançaram na entrada, José segurou seus ombros enquanto o Macaco o abraçava pela

cintura;sacudiu-ocomfúria,massuavozpareciaatordoadaechorosa:—Paraquê,primo.Nãová,seucoraçãovaisangrar.Ouçaoqueestoudizendo,Lituma,priminho.LitumaacaricioumeiosemjeitoorostodoMacaco,passouamãoemseuscabeloscrespos,afastou-ode

si sembrutalidade e saiu, cambaleando.Eles o seguiram.Lá fora, nos limites de suas casas de bambudomato, os mangaches dormiam debaixo das estrelas, formando silenciosos cachos humanos na areia. Obulíciodas chicherías tinhaaumentado,oMacaco repetia as toadas entreosdentes e,quandoouviaumaharpa,abriaosbraços:masnãoháoutrocomodonAnselmo!EleeLitumaiamnafrente,debraçosdados,ziguezagueando,àsvezesvinhaumprotestodaescuridão,“cuidado,nãopisem!”,eeles,emcoro,“desculpe,don”,“milperdões,dona”.

—Essahistóriaquevocêcontoupareciaumfilme—disseJosé.

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—Maseleacreditou—disseJosefino.—Nãomeocorreuoutracoisa.Evocêsnemmeajudaram,nãoabriramaboca.

—PenanãoestarmosemPaita,primo—disseoMacaco.—Euentrarianaáguaderoupae tudo.Seriagostoso.

—EmYacilaháondas,émardeverdade—disseLituma.—OdePaitaéumlaguinho,oMarañónémaisbravoqueessemar.DomingovamosaYacila,primo.

—Vamoslevá-loparaacantinadoFelipe—disseJosefino.—Tenhodinheiro.Nãopodemosdeixarqueeleváembora,José.

AavenidaSánchezCerroestavadeserta,àsombradaluzgordurosadecadaposteosinsetoszumbiam.OMacacotinhasesentadonochãoparaamarrarossapatos.Josefinoaproximou-sedeLituma:

—Olhe,colega,oFelipeestáaberto.Quantaslembrançasboasnessacantina.Venha,querolhepagarumabebida.

LitumasesafoudosbraçosdeJosefino,falousemolharparaele:—Depois,irmão,navolta.Agora,paraaCasaVerde.Quantaslembrançaslátambém,maisqueem

nenhumoutrolugar.Nãoémesmo,inconquistáveis?Maistarde,quandopassaramnafrentedoTrêsEstrelas,Josefinofezumanovatentativa.Correuatéa

portaluminosadobar,gritando:—Atéqueenfim,umlugarondematarasede!Venham,colegas,eupago.MasLitumacontinuoucaminhando,inabalável.—Eagora,José.—Oquepodemosfazer,irmão.VamosparaacasadaChungaChunguita.

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Dois

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UmalanchaencostaroncandonocaiseJulioReáteguipulaparaaterra.SobeatéapraçadeSantaMaríadeNieva—umguardaciviljogaumpedaçodepauparacima,umcachorrooapanhanoaretrazdevolta—equandochegaàalturadospésdepau-mulatoumgrupodegenteestásaindodacabanadoGoverno.Eleergueamãoecumprimenta:osoutrosoveem,ficamanimados,corremaoseuencontro,queprazer,quesurpresa,JulioReáteguiapertaasmãosdeFabioCuesta,porquenãoavisouquevinha?,deManuelÁguila,nãooperdoavam,dePedroEscabino,teriamsepreparadopararecebê-lo,deArévaloBenzas,quantosdiasficariadestavez,donJulio?Nada,eraumavisita-relâmpago,continuaaviagemagoramesmo,elessabiamavidaquelevava.EntramnacasadoGoverno,donFabioabreumascervejas,brindam,forambemascoisasemNieva?,emIquitos?,problemascomospagãos?Nasportase janelasdacabanaháaguarunasdebocaslargas,olhos friosepômulossalientes.Maistarde,JulioReáteguieFabioCuestasaem,napraçaoguardacontinuabrincandocomocachorro,sobemobarrancoatéamissãoobservadosportodasascasas,ah,donFabio, asmulheres,perderumdiaporcausadeste assunto, só ia chegar aoacampamentodenoite edonFabioparaqueservemosamigos,donJulio?Setivesseescritoumaslinhaseleseencarregavadetudo,masclaro,donFabio,acartademorariaummês,eenquantoissoquemaguentavaasenhoraReátegui.Quandobatem,aportadaresidênciaseabre,comovai,umaventalengordurado,madreGriselda,umhábito,olhequemchegou,umacaravermelha,nãooreconhecia?,maseraosenhorReátegui,umgritinho,entre,umamão risonha, entre,don Julio,queprazer e elenãoerade se estranharquenãoo reconhecessemcomoaspecto que tinha, madre. Mancando, falando sem parar, a madre Griselda os guia por um corredorsombreado, abre uma porta, aponta para umas cadeiras de praia, que alegria para amadre superiora, e,mesmocomtantapressa,tinhaquevisitaracapela,donJulio,iaverquantasmudanças,elavoltavajá.Namesaháumcrucifixoeumlampião,nochãoumaesteiradefibradetucumãenaparedeumaimagemdaVirgem;pelasjanelaspenetramsuntuosas,estridenteslínguasdesolquelambemasvigasdoteto.TodavezqueentravanumaigrejaounumconventoJulioReáteguitinhasensaçõesestranhas,donFabio,aalma,amorte,essespensamentosquetantonospreocupamnajuventudeecomogovernadoreraamesmacoisa,donJulio,bastavavisitarasmadrespara ficarcheiodecoisasprofundasnacabeça: e seno fundoosdoisfossemumpoucomísticos?Foiissomesmoquetinhapensado,edonFabioacariciaacareca,éengraçado,umpoucomísticos.AsenhoraReáteguiririaseouvisse,elaquesemprediziavocêvaiparaoinfernodetãoherege, Julio, e aliás ano passado finalmente fizera o que ela tanto queria, foram a Lima emoutubro, àprocissão?,sim,doSenhordosMilagres.DonFabiotinhavistofotos,masestarládeviasermuitomelhor,éverdadequetodososnegrossevestiamderoxo?Etambémoscaboclos,eosmestiçoseosbrancos,meiaLimavestidaderoxo,umacoisahorrível,donFabio,trêsdiasnaqueleaperto,quedesconforto,quecheiros,ea senhoraReáteguiqueriaqueele tambémvestisseohábito,mas seuamornãochegavaa tanto.Vozes,risos,corridasinvademoaposentoeelesolhamparaasjanelas:vozes,risos,corridas.Certamentehoradorecreio, erammuitas agora?, pelo som pareciam cem e don Fabio umas vinte.No domingo houve umdesfileecantaramohinonacional,muitoafinadas,donJulio,numespanholcomomandaofigurino.Nãohavia dúvida, don Fabio estava contente em SantaMaría deNieva, com que orgulho contava as coisasdaqui,eramelhorqueadministrarohotel?,setivessecontinuadoemIquitos,agorateriaumaboaposição,don Fabio, quer dizer, economicamente. Mas o governador já estava velho e, por mais que parecessementiraaosenhorReátegui,nãoerahomemdeambições.EntãoquerdizerquenãoiaaguentarnemummêsemSantaMaríadeNieva?,donJulio,estávendoqueaguentoue,seDeuspermitisse,nuncamaissairiadaqui.Porquetinhaseempenhadotantoparaconseguirestanomeação?,JulioReáteguinãoentendia,por

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quequissubstituí-lo,donFabio?,oquequeria?,edonFabioser,quenãorisse,respeitado,seusúltimosanosemIquitostinhamsidotãotristes,donJulio,ninguémimaginavaasvergonhas,ashumilhações,quandoeleolevouparaohotelviviadecaridade.Masquenãoficassetriste,aquiemNievatodosgostavammuitodele,donFabionãoconseguiuoquequeria?Sim,todosorespeitavam,osalárionãoeragrandecoisa,mascomoqueosenhorReáteguilhedavaparaajudarerasuficienteparavivertranquilo,istotambémdeviaaele,donJulio,ah,nãotinhapalavras.Entreosrisos,asvozes,ascorridasnopomar,ouvem-selatidos,falatóriodepapagaio.JulioReáteguifechaosolhos,donFabioficapensativo,suamãopercorrelenta,afetuosamenteacareca: don Julio sabia que amadre Asunciónmorreu?, recebera sua carta? Tinha recebido, e a senhoraReáteguiescreveuparaasmadresdandopêsames,eleacrescentouumaslinhas,boapessoaafreirinhaedonFabiotinhafeitoumacoisanãomuitolegal,mandouhastearabandeiradoGovernoameiopau,donJulio,paraseassociardealgumaformaaolutoeamadreAngélicaestavabem?,semprefortecomoumarocha,avelhinha?,ouvem-sepassoseeles se levantam,vãoaoencontrodasuperiora,donJulio,madre,umamãobranca,eraumahonraparaestacasarecebernovamenteosenhorReátegui,estavacontentedevê-lo,porfavor, sentem-se e eles justamente estavam falando,madre, recordando a pobremadreAsunción.Pobre?Nadadepobreporqueestavanocéu,easenhoraReátegui?,quandoveriamdenovoamadrinhadacapela?AsenhoraReáteguiqueriavir,maseratãodifícilchegardeIquitosatéaqui,SantaMaríadeNievaficavaforadomundoe,alémdomais,nãoeraterrívelviajarpelaselva?NãoparadonJulioReátegui,asuperiorasorri,queiaevinhapelaAmazôniacomoseestivesseemcasa,masJulioReáteguinãofaziaissoporprazer,seagentenãoestádeolhoemtudo,madre,odiabometeamão,desculpeaexpressão.Osenhornãodissenadadeinadequado,donJulio,aquitambémsealguémsedescuidavaodemôniofaziadassuaseagoraaspupilascantamemcoro.Alguémasdirige,acadasilênciodonFabioaplaudecomasgemasdosdedos,sorri,aprova:amadretinharecebidoorecadodasenhoraReátegui?Sim,nomêspassado,masnãopensavaquedonJulioviesselevá-latãocedo.Emgeralpreferiaquesaíssemdamissãonofimdeano,nãonomeiodocurso,mas,jáquesedeuotrabalhodevirpessoalmente,iamfazerumaexceção,porsetratardele,éclaro.Eele na verdade estava matando dois coelhos de uma cajadada, madre, precisava ir ao acampamento doNieva,osmateirostinhamencontradopau-rosa,aoqueparecia,entãoaproveitouparadarumpulinhoaquieasuperioraconcorda:eraparacuidardasmeninas?,asenhoraReáteguidiziaqualquercoisaassim.Ah,asmeninas,madre,seasenhoraasvisse,estavammaravilhosas,donFabioasimaginava,eamadreasconhecia,asenhoraReáteguihaviamandadofotosdasmeninas,amaiorzinhaeraumabonecaeapequenaqueolhos.Tinhamaquempuxar, comcerteza, a senhoraReátegui era tãobonita edonFabiodizia isto com todorespeito,donJulio.Aamatinha secasadoháalgumtempo,madre,eelanão imaginavacomoa senhoraReátegui ficavapreocupada, via defeitos em todas asmoças, que eram sujas, que iam transmitir doenças,sempreaspiorescoisas,eláestavaela,debabáhaviadoismeses.Nesseaspecto,donFabiovemparaapontadoassento,asenhoraReáteguipodiaficarsossegada,dáumapalmadinha,daquinãosaíaninguémdoentenemsujo,sorri,nãoéverdade,madre?,fazumavênia,davagostovercomoestavamlimpinhaseReáteguiéverdade,madre,aesposadodoutorPortillo.Tambémdificuldadescomempregadas?Sim,donFabio,estavacadavezmaisdifícilachargenteracionalemIquitos,seriapossívellevartambémumadasnovinhas,madre?Sim,erapossível,asuperiorafranzeligeiramenteoslábios,donJulio,masquenãofalasseassim,suavozficamaisaguda,amissãonãoeraumaagênciadedomésticaseagoraReáteguiestáimóvel,sério,amãoconfusaapalpandoobraçodacadeira,seráqueelainterpretoumalsuaspalavras?,querdizer,asuperioraexaminaocrucifixo,donFabioesfregaacareca,balançanacadeira,pisca,madre,nãoteriainterpretadomalaspalavrasdedonJulio,não?Elesabiadeondeestasmeninasvinham,comoviviamantesdeentrarnamissão,JulioReáteguigarantia,madre,foiumengano,elanãohaviaentendidobem,edepoisdeviveraquiasmeninasnão tinhammaisparaonde ir, asaldeias indígenasnãoparavamno lugar,masmesmoqueconseguissemlocalizarsuasfamíliasasmeninasnãoseadaptariammais,comoiamvivernuasdenovo?,asuperiorafazum

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gesto amável, adorando serpentes?,mas seu sorriso é glacial, comendo piolhos?A culpa era dele,madre,tinhaseexpressadomaleelaentenderasuaspalavrasemoutrosentido,masasmeninastampoucopodiamficarnamissão,donJulio,nãoseriajusto,nãoéverdade?,precisavamdarlugarparaasoutras.Aideiaeraqueelesajudassemasmadresaincorporaressasmeninasaomundocivilizado,donJulio,facilitaroingressodelasnasociedade.ErajustamentenestesentidoqueosenhorReátegui,madre,poracasonãooconhecia?,enamissãorecolhiameeducavamessascriançasnointuitodeganharalmasparaDeus,nãodeproporcionarcriadasparaasfamílias,donJulio,quedesculpasseafranqueza.Elesabiaperfeitamente,madre,eraporissoqueeleesuaesposasemprecolaboraramcomamissão,sehaviaalgumproblematudocerto,madre,nãosefalamaisnoassunto,porfavornãosepreocupe.Asuperioranãosepreocupavacomeles,donJulio,sabiaqueasenhoraReáteguieramuitopiedosaequeameninaestariaemboasmãos.OdoutorPortilloeraomelhor advogado de Iquitos,madre, ex-deputado, se não se tratasse de uma família decente, conhecida,JulioReátegui teria seatrevidoa fazeressa sugestão?Mas repetiaquenãopensassemaisnisso,madre, easuperiorasorridenovo:estavazangadocomela?Nãoimportava,umsermãodevezemquandonãofazmalaninguémeJulioReáteguiseajeitanoassento,tinhapuxadosuasorelhas,madre,estavaconstrangidoeseeleseresponsabilizavaporessesenhor,donJulio,elaacreditava,nãoseimportavaqueelalhefizessealgumasperguntas?Quantasamadrequisesse,eeleentendiaasprecauções,eralógico,mastinhaqueacreditarnele,o doutor Portillo e sua esposa eram o que havia de melhor e a garota seriamuito bem tratada, roupa,comida,atésalárioeasuperioranãoduvidava,donJulio.Seuslábiosfinos,furtivos,sefranzemdenovo:eoresto?Iamsepreocuparqueameninanãoesquecesseoqueaprendeuaqui?Nãodestruiriampornegligênciaoquerecebeunamissão?Estavasereferindoaisso,donJulio,eeraverdadequeamadrenãoconheciaosPortillo,AngelitaorganizavaoNataldospobres todoano,elamesmaiapedirdonativosàs lojasedepoisdistribuía nos subúrbios,madre: podia ter certeza de queAngelita ia levar a garota a toda procissão quehouvesseemIquitos.Asuperioranãoqueriaimportuná-lomais,masaindahaviaumacoisa,eleassumiriaaresponsabilidadepelasduas?Porqualquerqueixaoufatoqueocorrer,madre,erasóoquefaltava,assumiriaeassinariaoquefossepreciso,commuitoprazer,noseunomeenododoutorPortillo.Estavamdeacordo,então,donJulio,asuperioraiabuscá-las;aliás,amadreGriseldacertamentetinhapreparadounsrefrescos,nãocairiammal,nãoémesmo?,comocalorqueestavafazendoedonFabiolevantaasmãosregozijadas:elassempretãoamáveis.Asuperiorasaidoquarto,asnesgasdesolqueabraçamasvigasjánãosãobrilhantese sim opacas, no pomar vizinho as pupilas continuam cantando, homem, o que significava aquilo?Quecoisa, que mau pedaço a freira o fez passar, don Fabio, e ele don Julio, pura formalidade, as madresgostavam muito dessas orfãzinhas, tinham pena de deixá-las ir embora, só isso, mas faziam as mesmasperguntas aos oficiais de Borja?, e aos engenheiros que passam por aqui dão osmesmos conselhos?, porfavor, donFabio.O governador está como rosto triste, amadre devia estarmal-humorada por algumarazão,nãodevialigar,donJulioequenãodissessemaReáteguiqueosmilicosiamtratá-lasmelhorqueeles,iam fazê-las trabalhar como animais, sem dúvida, não iam pagar-lhes um tostão, certamente, don Fabiosabiaamisériaqueosmilicosganhavam?Alémdomais,elesoconheciambem,serecomendavaPortilloeraporalgummotivo,donFabio,porfavor,ondejáseviu.Ocorodopomarcessaderepenteeogovernadornãoentendia,asuperiorasempretãogentil,tãoeducada,jápassou,donJulio,quenãoficasseaborrecido,eelenãoestavaaborrecidomasasinjustiçasodeixavamrevoltadocomoqualquerpessoa:orecreiodeviateracabado,osnósdosdedosdedonFabiotamborilamnoassento,amadretambémodeixaranervoso,donJulio, tinhase sentidonumconfessionário,ambosdãomeia-voltaeaportaseabre.Asuperiora trazumatravessa,umapirâmidedebolachascomladosásperos,eamadreGriselda temnasmãosumabandejadebarro,copos,umjarrocheiodeumlíquidoespumoso,asduaspupilas ficamao ladodaporta,assustadas,tímidasemseusaventaiscreme:sucodemamão,ótimo!EstamadreGriselda,semprenosmima,donFabioselevantoueamadreGriseldaritapandoabocacomamão,elaeasuperioradistribuemoscopos,servema

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bebida. Na porta, uma apertada contra outra, as pupilas olham de lado, uma delas está com a bocaentreaberta e exibe seus dentes minúsculos, limados em ponta. Julio Reátegui levanta o copo, madre,agradeciadeverdade,estavamortode sede,masprecisavamprovarosbiscoitinhos,não iamadivinhardequê, hein?, e então, hein, don Fabio?Não faziam ideia,madre, que coisamais levinha, demilho?,maisdelicada,debatata-doce?eamadreGriseldadáumagargalhada:demandioca!Elamesmatinhainventado,quandoeletrouxesseasenhoraReáteguilhedariaareceitaedonFabiobebeumgolinhofechandoosolhos:amadreGriseldatinhamãosdeanjo,sóporissojámereciaocéu,eelacale-se,cale-se,donFabio,sirvam-semaissuco.Bebem,pegamoslenços,limpamosfinosbuçosalaranjados,Reáteguitemgotinhasdesuornatesta,acarecadogovernadorbrilha.AfinalamadreGriseldarecolheabandeja,ojarroeoscopos,naportasorriparaelescommalíciaesai,Reáteguieogovernadorolhamparaaspupilas imóveis,estasabaixamascabeçasaomesmotempo:boatarde,jovenzinhas.Asuperioradáumpassoatéelas,eentão,venham,porqueficamparadasaí?Apequenadedenteslimadosarrastaospéselogodepoisparasemlevantaracabeça,aoutra fica no lugar e Julio Reátegui você também, filha, não precisava termedo dele, não era nenhumbicho-papão.Apupilanãorespondeeasuperiora,derepente, fazumaexpressãoenigmática,zombeteira.OlhaparaReátegui,nosolhosdestebrotaumapequena luz intrigada,ogovernador estápedindocomamãoàmeninaqueseaproximeeasuperiora,donJulio,nãoareconhecia?Apontaparaaqueestáaoladodaporta e seu sorriso se acentua, um sinal afirmativo e Julio Reátegui se vira para a menina, examina-apiscando, mexe os lábios, estala os dedos, ah, madre, era ela?, sim. Que surpresa, nem lhe passara pelacabeça,tinhamudadomuito,donJulio?,tantomadre,iriacomele,asenhoraReáteguiiaficarencantada.Maseramvelhosamigos,filha,nãoselembravadele,poracaso?Adedenteslimadoseogovernadorolhamparaosdoiscomcuriosidade,apupiladaporta levantaumpoucoacabeça, seusolhosverdescontrastamcom a tez escura, a superiora suspira, Bonifacia: estavam falando com ela, que modos eram esses. JulioReátegui ainda a examina,madre, caramba, eramquase quatro anos, a vidapassava voando, filha, comovocê cresceu, era um pedacinho de gente e agora vejam só. A superiora concorda, Bonifacia, vamos,cumprimenteosenhorReátegui,sussurradenovo,tinhaquerespeitá-lomuitoetambémaesposa,osdoisiriamtratá-lamuitobem.EReáteguiquenãotivessevergonha,filha,vamosconversarumpouco,jádeviafalarespanholperfeitamente,nãoémesmo?Eogovernadordáumpulinhonacadeira,adeUrakusa!,batenatesta,éclaro,quelentoera,agorapercebia.Easuperioranãosefaçadeboba,donJulioiapensarquetinhamcortadoa línguadeBonifacia.Mas, filha, estavachorando,oqueera, filha,porqueessechoroeBonifaciaestácomacabeçalevantada,aslágrimasmolhamsuasbochechas,seuslábiosgrossostenazmentefechadosedonFabioora,ora,tolinha,inclinadoecompassivo,deviaficarémuitocontente,iaterumlareasfilhasdosenhorReáteguieramdoisprimores.Asuperioraempalideceu,estamenina!,seurostoagoraestábranco como as mãos, a boba!, chorava por quê? Bonifacia abre os olhos verdes, úmidos, desafiantes,atravessaaesteira,filha,caidejoelhosdiantedasuperiora,quebobinha,pegaumadasmãos,trazatéorosto,a menina de dentes limados ri por um segundo e a superiora balbucia, olha para Reátegui, Bonifacia,acalme-se:tinhaprometido,aelaeàmadreAngélica.Suamãolutaparafugirdorostoqueseesfreganela,ReáteguiedonFabiosorriemconfusosebenevolentes,oslábiosgrossosbeijamvorazmenteosdedospálidose refratários eameninadedentes limadosagora ri semdisfarçar:nãoentendiaqueeraparao seubem?,ondeiriamtratá-lamelhor?Bonifacia,nãoprometerafaziaapenasmeiahora?,eamadreAngélica,eraassimquecumpriaapalavra?DonFabioselevanta,esfregaasmãos,asmeninaseramassim,sensíveis,choravamportudo,filhinha,quefizesseumesforço,iavercomoIquitoserabonita,comoasenhoraReáteguieraumasantaeasuperiorasuplicavadonJulio,sentiamuito.Estameninanuncafoidifícil,quasenãoareconhecia.Bonifaciaacalme-seeJulioReáteguinãosepreocupe,madre.Elaseafeiçoouàmissão,nãohavianadadeestranho, era preferível que não viesse a contragosto, que ficasse com as madres. Levaria a outra e quePortilloarranjasseumababáemIquitos,oprincipaleraquenãosepreocupasse,madre.

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I

—Olhem—disseoPesado.—Estáparandodechover.Alongadas, azuis, umas nesgas dividiam o céu, entre as aglomerações cinzentas ainda ressoava,

destemperada,atempestade,ejánãochovia.Masemtornodosargento,dosguardasedeNievesobosquecontinuava pingando: gotas gordas e quentes rolavam das árvores, das cordas da barraca e das raízesadventícias até apraiade seixos transformadaempântanoe, ao recebê-las,o lodo se abria emdiminutascrateras,pareciaferver.Alanchabalançavanamargem.

—Vamosesperarqueaáguabaixeumpouco,sargento—disseopilotoNieves.—Comessachuvaospongosdevemestarbravos.

—Certo,donAdrián,masnãotemosporquecontinuarapertadosfeitosardinhas—disseosargento.—Podemarmaraoutrabarraca,rapazes.Vamosdormiraqui.

Estavam com as camisetas e as calças encharcadas, crostas de lama nas perneiras, a pele brilhante.Esfregavamocorpo,torciamaroupa.OpilotoNievesavançouchapinhandopelapraiae,quandochegouàlancha,pareciaumbonequinhodepiche.

—Melhorpelados—disseoLouro.—Porquevamosnosenlamear.O Pesado estava sem cueca e todos riam das suas nádegas gordas. Saíram da barraca, o Pequeno

tropeçou,caiusentado,levantou-sepraguejando.Atravessaramopântanodemãosdadas.Nievesiapassandoos mosquiteiros, as latas, as garrafas térmicas, os outros levavam os pacotes nos ombros até a barraca,voltavam e, de repente, pareciam ter perdido o juízo: corriam soltando alaridos,mergulhavamno lodo,jogavambolasdelamaunsnosoutros,meusargento,nãovaisobrarumabolachaseca,segureesta,nacertatambémperdemosoanisadoeparaoPequenojáeraosuficientedeselva,Escuro,estavafarto.Lavarametiraram asmanchas no rio, empilharam a carga debaixode uma árvore e alimesmo fincaram as estacas,estenderam a lona e amarraram as cordas em raízes que irrompiam da terra, pardas e tortas. Às vezesapareciamlarvascor-de-rosasecontorcendosobumapedra.OpilotoNievespreparouumafogueira.

—Armaramabarracabemembaixodaárvore—disseosargento.—Vãochoveraranhasemcimadenósanoiteinteira.

Omontedelenhacrepitava,começavaafumegare,poucodepois,brotouumachaminhaazul,outravermelha,uma labareda.Todos se sentaramao redordo fogo.Asbolachas estavammolhadas,o anisado,quente.

—Nãoescapamos,meusargento—disseoEscuro.—Vamosterqueouvirumasboassacaneadas,emNieva.

—Foiumaloucurasairassim—disseoLouro.—Otenentedeviaterpercebido.—Ele sabia que era inútil—encolheuos ombros o sargento.—Masnão viram como estavamas

madresedonFabio?Elenosmandousóparafazeravontadedelas.—Eunãometorneiguardacivilparavirarbabá—disseoPequeno.—Essascoisasnãoincomodamo

senhor,meusargento?Maso sargento tinhadez anosde corporação; já estava curtido,Pequeno,nadamaiso incomodava.

Estavacomumcigarronamãoetentavasecá-lopertodachama,girando-oentreosdedos.—Eparaquesetornouguardacivil?—disseoPesado.—Vocêaindaénovinho,estápraticamente

nascendo.Paranós,todaestaagitaçãoécoisaàtoa,Pequeno.Vocêvaiaprender.

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Não era bem assim, o Pequeno tinha passado um ano em Juliaca e a puna era mais dura que amontanha,Pesado.Osinsetoseostemporaisnãoincomodavamtantocomoterqueentrarnomatoparaperseguircrianças.Aindabemquenãoaspegaram.

—Talveztenhamvoltadosozinhas,aquelaspirralhas—disseoEscuro.—QuemsabeasencontramosemSantaMaríadeNieva.

—Asbandidas—disseoLouro.—Sãobemcapazes.Mereciamumaboasurra.OPesado,aocontrário,bemquefariaunscarinhosnelas,eriu,meusargento:nãoéverdadequeas

maiorzinhasjáestavamnoponto?Nãoviam,aosdomingos,quandoelasiamtomarbanhonorio?—Vocênãopensa emoutra coisa,Pesado—disse o sargento.—Desdeque acorda até a horade

dormir,sópensaemmulher.—Maséverdade,meusargento.Aquielassedesenvolvemrápido,aosonzeanosjáestãomaduraspara

qualquercoisa.Nãomedigaquesetivesseumaoportunidadenãofariaunscarinhozinhosnelas.—Nãoabrameuapetite,Pesado—bocejouoEscuro.—Olhequeagoratenhoquedormircomo

Pequeno.OpilotoNievesalimentavao fogocomgalhinhos. Jáestavaescurecendo.Osolagonizavaao longe,

adejandoentreasárvorescomoumaavevermelha,eorioeraumapranchaimóvel,metálica.Nasmoitasribeirinhasasrãscoaxavamenoarhaviavapor,umidade,vibraçõeselétricas.Àsvezesuminsetovoadoreracapturadopelaschamasdafogueira,elogodevoradocomumestalosurdo.Juntocomassombras,aselvatraziaodoresdegerminaçãonoturnaemúsicadegrilosatéasbarracas.

—Nãogostodessascoisas,emChicaisquasefiqueidoente—repetiuoPequenocomumacaretadedesagrado.—Nãoselembramdavelhapeituda?Foierradoarrancarascriasassim.Sonheicomissoduasvezes.

—Eolhequeelasnãoarranharamvocêcomofizeramcomigo—disseoLouro,rindo;maslogoficousérioeacrescentou:—Eraparaobemdelas,Pequeno.Paraensinaravestir-se,alereafalarcristão.

—Oupreferequeelascontinuemselvagens?—perguntouoEscuro.—E,alémdomais,têmoquecomer,sãovacinadasedormememcamas—disseoPesado.—Em

Nievaestãovivendocomonuncatinhamvivido.—Maslongedasuagente—disseoPequeno.—Vocêsnãosofreriamsenuncamaisfossemveras

suasfamílias?Nãoeraamesmacoisa,Pequeno,eoPesadobalançoucompassivamenteacabeça:eleseramcivilizados

e as indiazinhas nem sabiam o que quer dizer família. O sargento pôs o cigarro na boca e acendeuinclinando-separaofogo.

—Massóvãosofrernocomeço—disseoLouro.—Éparaissoqueasmadrecitasestãolá,elasquesãoboníssimas.

—Ninguémsabecomo transcorremas coisas lánamissão—grunhiuoPequeno.—Talvez sejammalíssimas.

Altolá,Pequeno:quelavasseabocaantesdefalardasmadres.OPesadopermitiatudo,mas,vejabem,maisrespeitocomascrenças.OPequenotambémlevantouavoz:claroqueeracatólico,masfalavamaldequembementendesse,edaí.

—Eseeunãogostar?—disseoPesado.—Eselhederumsopapo?—Nadadebrigas—osargentosoprouumabaforada.—Deixedebancarovalentão,Pesado.—Euaceitoargumentos,masnãoameaças,meusargento—disseoPequeno.—Poracasonãotenho

odireitodedizeroquepenso?—Tem—disseosargento.—Eemparteeuconcordocomvocê.OPequenoolhouparaosguardascomardedeboche,viam?,eàqueima-roupa,paraoPesado:quem

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tinharazão?—É discutível— disse o sargento.—Acho que se as garotas fugiram damissão é porque não se

adaptaramlá.—Mas,meusargento,oque issotemaver—protestouoPesado.—Osenhornãofeztravessuras

quandoeracriança?—Osenhortambémprefeririaqueelascontinuassemselvagens,meusargento?—disseoEscuro.—Émuitobomqueeduquemasmeninas—disseosargento.—Masporqueàforça.—Eoque as coitadas dasmadres podem fazer,meu sargento—disse oLouro.—O senhor sabe

como são os pagãos. Dizem sim, sim, mas na hora de mandar as filhas para a missão, uma figa edesaparecem.

—Eseelesnãoqueremsecivilizar,oquenóstemoscomisso—disseoPequeno.—Cadaumcomosseuscostumes,quemerda.

—Vocêtempenadascriançasporquenãosabecomosãotratadasnasaldeias—disseoEscuro.—Elesfazemfurosnonariz,nabocadasrecém-nascidas.

—Equandoosíndiosficambêbados,fodemnafrentedetodomundo—disseoLouro.—Nãoseimportamcomaidade,pegamaprimeiraqueencontram,asprópriasfilhas,asprópriasirmãs.

—Easvelhasdescabaçamasgarotinhascomasmãos—disseoEscuro.—Edepoisengolemaspregasdelasparadarsorte.Nãoéverdade,Pesado?

— Verdade, com as mãos — disse o Pesado. — Eu é que o diga. Até hoje nunca peguei umavirgenzinha.Eolhequecomiumbocadodeíndias.

Osargentobalançouasmãos:estavampressionandooPequenoeaquilonãoeracerto.—Osenhorestádoladodele,meusargento—disseoLouro.—Équeessasgarotasmedãopena—confessouosargento.—Todas.Asqueestãonamissão,porque

nacertasofremlongedoseupovo.Easoutras,porquevivemmalnasaldeias.—Dáparaverqueosenhorépiurano,meusargento—disseoEscuro.—Todomundonasuaterraé

sentimental.—Ecommuitahonra—disseosargento.—EaidequemfalarmaldePiura.— Sentimentais e também bairristas — disse o Escuro. — Mas nisso os arequipenses ganham dos

piuranos,meusargento.Já eranoite e a fogueira crepitava,opilotoNieves continuava alimentando-a compequenosgalhos,

folhassecas.Agarrafadeanisadopassavademãoemmãoeosguardasacenderamcigarros.Todosestavamtranspirando,enosseusolhosserepetiam,minúsculas,dançantes,aslínguasdafogueira.

—Masnãoexistegentemaislimpa—disseoPequeno.—Easmadres,emcompensação,alguémasviutomandobanhonaviagemaChicais?

OPesadoengasgou:outravezasmadres?,começouatossirforte,cacete,outravezsemetendocomasmadres?

—Vocêprotestamasnãoresponde—disseoPequeno.—Éverdadeounãooquedigo?—Comovocêéburro—disseoLouro.—Queriaqueasfreirinhastomassembanhonanossafrente?—Quemsabetomaramescondidas—disseoEscuro.—Nuncavi—disseoPequeno.—Evocêstambémnão.—Mastampoucoasviufazendosuasnecessidades—disseoLouro.—Istonãosignificaquetenham

seguradoococôeoxixiaviagemtoda.Espereaí,oPesadotinhavisto:quandotodosestavamdeitados,elasselevantavamsemfazerbarulhoe

iam como fantasminhas até o rio. Os guardas riram, e o sargento este Pesado as espiava?, queria vê-laspeladas?

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—Meusargento,por favor—disseoPesado,confuso.—Nãodigaessasbarbaridades, comopodepensarisso.Équetenhoinsôniaeporissoasvi.

—Vamosmudardeassunto—disseoEscuro.—Nãosebrincaassimcomasmadres.Edepois,nãovamosconvencerestesujeito.Vocêéteimosocomoumamula,Pequeno.

—Eimbecil—disseoPesado.—Compararasíndiascomasfreirinhas,vocêmedápena,juro.—Agora chega—disseo sargento, interrompendooPequenoque ia falar.—Vamosdormir logo

parapartiramanhãbemcedo.Ficaram em silêncio, com os olhos fixos nas chamas. A garrafa de anisado ainda deu uma rodada.

Depoisselevantaram,entraramnasbarracas,maspoucodepoisosargentovoltouparaafogueiracomumcigarronaboca.OpilotoNieveslheestendeuumapalhinhaacesa.

—Sempretãocalado,donAdrián—disseosargento.—Porquenãodiscutiutambém?—Fiqueiouvindo—disseNieves.—Nãogostodediscussões,sargento.E,alémdomais,prefironão

memetercomeles.—Comosrapazes?—disseosargento.—Eleslhefizeramalgumacoisa?Porquenãomeavisou,don

Adrián?—Sãoorgulhosos,desprezamquemnasceuaqui—disseopiloto,emvozbaixa.—Nãoviucomome

tratam?—Sãometidoscomotodososlimenhos—disseosargento.—Masnãodêimportância,donAdrián.

Esealgumavezlhefaltaremaorespeito,diga-mequeoscoloconolugardeles.—Emcompensação,osenhoréumaboapessoa,sargento—disseNieves.—Faztempoqueestou

paralhedizerisso.Oúnicoquemetratacomeducação.—Porqueoapreciomuito,donAdrián—disseosargento.—Semprelhedissequegostariadeserseu

amigo.Masosenhornãoseaproximadeninguém,éumsolitário.—Agoravai sermeuamigo—sorriuNieves.—Umdiadestesvemcomernaminhacasaeeu lhe

apresentoaLalita.Eatalquedeixouasmeninasfugirem.—Como?AquelaBonifaciamoracomvocês?—disseosargento.—Eupensavaquetinhaidoembora

dacidade.—Nãotinhaparaondeirenósaacolhemos—disseNieves.—Masnãocontenada,elanãoquerque

saibamondeestá,porqueémeiofreiraainda,morredemedodoshomens.

—Vocêcontouosdias,velho?—perguntouFushía.—Euperdianoçãodotempo.—Queimportânciatemotempo,paraqueserve?—perguntouAquilino.— Parece que fazmil anos que saímos da ilha— disse Fushía.—Além domais, sei que é à toa,

Aquilino, você não conhece as pessoas. Pode crer, em San Pablo vão chamar a polícia e roubar omeudinheiro.

—Estáficandotristeoutravez?—disseAquilino.—Seiqueaviagemélonga,masoquevocêquer,temosquetercuidado.NãosepreocupecomSanPablo,Fushía,eujálhedissequeconheçoumsujeitolá.

—Équeestouexausto,homem,nãoébrincadeiracorrerdessejeito,vocêtevesortecomigo—disseodoutorPortillo.—OlheacaradecansaçodopobredonFabio.Maspelomenosjáestamosemcondiçõesdeinformar.Paracomeçar,pegueumacadeira,vocêvaicairparatráscomasnotícias.

— As plantações estão muito bem, muito bonitas, senhor Reátegui — disse Fabio Cuesta. — Oengenheiro émuito educado e já terminouodesmatamento e a semeadura.Todosdizemque a região éidealparaocafé.

—Nesse lado tudoestánormal—disseodoutorPortillo.—Oquevem falhandoéonegóciodaseringaedoscouros.Umahistóriadebandidos,compadre.

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—Portillo?Nuncaouvifalar,Fushía—disseAquilino.—ÉummédicodeIquitos?— Um advogado — disse Fushía. — O que ganhava todas as causas de Reátegui. Um vaidoso,

Aquilino,umarrogante.—Nãoéculpadospatrões,senhorReátegui, juro—disseFabioCuesta.—Elesestãomaisfuriosos

queninguém,nãovêquesãoosmaisprejudicados?Parecequeosbandidosexistemdeverdade.O doutor Portillo também tinha pensado, a princípio, que os patrões estavam comerciando às

escondidas,Julio,quetinhaminventadoessesbandidosparanãolhevenderolátex.Masnãoerameles,ofatoéqueestácadavezmaisdifícilconseguirmercadoria,compadre,eleedonFabioforamatodososlados,averiguaram,hábandidosmesmoedonFabioagiucomtodaacorreção,atéadoeceudetantaviagemmasmesmoassimcontinuouaoseulado,Julio,eclaroquefoiútilirjuntocomaautoridade,ogovernadordeSantaMaríadeNievainspiravarespeitoporlá.

—Tratando-se do senhor Reátegui, qualquer coisa— disse FabioCuesta.— Isto emuitomais, osenhor sabe, don Julio. Só lamento essa história de bandidos, depois do trabalho que deu convencer ospatrõesavenderemaosenhoremvezdeaobanco.

— Precisava ver como ele me tratava — disse Fushía. — Com distância. Pensa que me convidoualgumavezparairàsuacasaemIquitos?Nãosabecomoeuodiavaesseadvogadinho,Aquilino.

—Semprecheiodeódio,Fushía—disseAquilino.—Acontecequalquercoisaevocêjáestáodiandoalguém.Deusvaicastigá-loporissotambém.

—Aindamais?—perguntouFushía.—Jáestámecastigandosemqueeufaçanada,velho.—NaguarniçãodeBorjanosajudarammuito—disseodoutorPortillo.—Elesnosderamguias,

pilotos.Vocêtemqueagradeceraocoronel,Julio,escrevaumaslinhas.—Umabelíssimapessoaocoronel,senhorReátegui—disseFabioCuesta.—Muitoprestativo,muito

dinâmico.ElespoderiamagircontraosbandidosserecebessemumaordemdeLima,compadre,eramelhorque

Reáteguidesseumpuloàcapitale fizessecontatos,quandoosmilicos interviessemtudoseajeitaria.Sim,homem,claroqueeraparatanto.

—Não queríamos acreditar neles, senhorReátegui—disse FabioCuesta.—Mas todos os patrõesjuravamamesmacoisa.Nãopodiamtercombinado.

Eramuitosimples,compadre:quandoospatrõeschegavamàstribosnãoencontravamnada,nemlátexnemcouros,sóíndioschorandoeesperneando,elesnosroubaram,elesnosroubaram,bandidos,diabosetc.

—SubiupeloSantiagocomdonFabio,queeraogovernadordeSantaMaríadeNieva,esoldadosdeBorja—disseFushía.—Antes passarampela regiãodos aguarunas, e tambémnados achuales, fazendoperguntas.

—MaseuosencontreinoMarañón—disseAquilino.—Nuncalhecontei?Passeidoisdiascomeles.Eraasegundaouterceiraviagemquefaziaàilha.EdonFabio,eaqueleoutro,comoeramesmo,Portillo?,mebombardearamdeperguntas e eupensava agora você vai pagar por todas,Aquilino.Estava comummedo.

—Penaquenãochegaram—disseFushía.—Quecaraotaladvogadinhoiafazersemevisse,eoquecontariaaocachorrodoReátegui.EoquefoifeitodedonFabio,velho?Jámorreu?

—Não,continuasendogovernadordeSantaMaríadeNieva—disseAquilino.—Nãosoutãobobo—disseodoutorPortillo.—Aprimeiracoisaquepensei,senãosãoospatrões

sãoosíndios,estãorepetindoagracinhadeUrakusa,ahistóriadacooperativa.Porissofomosatéastribos.Mastambémnãoeramosíndios.

—Asmulheresnosrecebiamchorando,senhorReátegui—disseFabioCuesta.—Porqueosbandidosnãolevamsóolátexeoscouros,levamtambémasmenininhas,éclaro.

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Nãoeraumnegóciomalpensado,compadre:Reáteguiadiantavaodinheiroparaospatrões,ospatrõesadiantavamodinheiroparaos índios,equandoos índiosvoltavamdomatocomo látexeoscouros,osdesgraçadospulavamemcimadeleseficavamcomtudo.Semterinvestidoumcentavo,compadre,nãoeraumnegóciodaChina?,quefosseaLimaefizessecontatos,Julio,equantomaiscedomelhor.

—Porquesempresemeteemnegóciossujoseperigosos?—perguntouAquilino.—Quemaniaasua,Fushía.

—Todososnegóciossãosujos,velho—disseFushía.—Sóqueeunãotinhaumcapitalzinhoparacomeçar,sevocêtemdinheiro,podefazerosnegóciosmaissujossemnenhumperigo.

—Seeunãooajudasse,vocêiaacabarnoEquador—disseAquilino.—Nãoseiporqueajudei.Vocêmefezpassarunsanosterríveis.Euviviaassustado,Fushía,comocoraçãonaboca.

—Vocêmeajudouporqueéboagente—disseFushía.—Amelhorpessoaqueconheci,Aquilino.Seeufossericodeixariaparavocêtodoomeudinheiro,velho.

—Masnãoé,nemnuncaserá—disseAquilino.—Eparaquemeserviriaagoraoseudinheiro,sevoumorreraqualquerhoradessas.Nistonosparecemosumpouco,Fushía,estamoschegandoaofimtãopobrescomonascemos.

—Jácorreuma lendasobreosbandidos—disseodoutorPortillo.—Aténasmissõesnos falaramdeles.Masnemosfradesnemasfreirassabemgrandecoisa.

—NumaaldeiaaguarunadoCenepaumamulhernosdissequeosviu—disseFabioCuesta.—Equehaviahuambisasentreeles.Masessasinformaçõesnãoadiantarammuito.Sabecomosãoosíndios,senhorReátegui.

—Háhuambisasentreeles,semdúvida—disseodoutorPortillo.—Todosforambemclarosquantoaisto,reconhecerampeloidiomaepelasvestes.Masoshuambisasestãoláparaatacar,todomundosabequeelesgostamdebriga.Sófaltasaberquemsãoosbrancosqueosdirigem.Doisoutrês,dizem.

— Um deles é serrano, don Julio — disse Fabio Cuesta. — Foi o que disseram os achuales, quearranhamalgumacoisadequéchua.

—Masvocêtevesorte,Fushía,emboranãoreconheça—disseAquilino.—Nuncafoiapanhado.Semessasdesgraças,poderiaterpassadoavidainteiranailha.

—Devo isso aos huambisas—disse Fushía—; depois de você, foram eles quemaisme ajudaram,velho.Evocêviucomoeupaguei.

—Mastemmotivosdesobra,nãoconvinhaaelesnemavocêqueficassenailha—disseAquilino.—Vejacomovocêé,Fushía.LamentaterdeixadooPantachaeoshuambisasparatrás,eaomesmotemponãoachaquesuasmaldadestenhamsidomaldades.

Issotambémtinhasidodevidamenteverificado,compadre:ascomprasdelátexnãohaviamdiminuídonaregião,tinhamatéaumentadoemBagua,emboraelesnãoestivessemvendendonemametadedeantes.Porqueosbandidoserammuitoespertos,senhorReátegui,sabeoquefaziam?Vendiamseusrouboslonge,certamenteatravésdeterceiros.Oqueimportavaeraliquidarbaratinhoaseringa,poistinhasaídodegraça.Não, não, compadre, os administradores do Banco Hipotecário não tinham visto caras novas, osfornecedores eramosde sempre.Faziamas coisasdireito, aqueles safados,não se arriscavam.Deviam terarrumadopatrões que compravamos roubos apreçobaixo, e esses os revendiamaobanco.Como eramconhecidos,nãohaviacontrolepossível.

—Valiaapenatantoperigoportãopoucoganho?—perguntouAquilino.—Naverdade,nãoacho,Fushía.

—Masnãofoiculpaminha—disseFushía.—Eunãopodiatrabalharcomoosoutros.Elesnãoeramperseguidospelapolícia,eutinhaquepegaroprimeironegócioqueaparecesse.

—Todavezquemefalavamdevocê,eusuavafrio—disseAquilino.—Nemimaginooqueteriam

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feitoseopegassemlánastribos,Fushía.Nãoseiquemestavamaisinteressado.—Umacoisa,velho,dehomemparahomem—disseFushía.—Agorapodeseabrircomigo.Você

nuncapegouumascomissões?—Nemumcentavo—disseAquilino.—Minhapalavradecristão.—Issocontrariaarazão,velho—disseFushía.—Euseiquevocênãomente,masnãomeentrana

cabeça,palavra.Eunãofariaamesmacoisaporvocê,sabe?—Claroquesei—disseAquilino.—Vocêteriaroubadoatéaminhaalma.—Registramosqueixasemtodasasdelegaciasdaregião—disseodoutorPortillo.—Maséomesmo

quenada.PegueoaviãoparaLimaequeoExércitointervenha,Julio.Issovaiassustá-los.—Ocoronelmedissequeajudariacomomaiorprazer,senhorReátegui—disseFabioCuesta.—Só

esperavaordens.EeutambémajudoemSantaMaríadeNieva,noqueforpreciso.Aliás,donJulio,todosselembramdosenhorcommuitocarinho.

—Porqueparou?—perguntouFushía.—Aindanãoanoiteceu.—Porqueestoucansado—disseAquilino.—Vamosdormirnestaprainha.Alémdomais,nãoestá

vendoocéu?Agoramesmovaicomeçarachover.

No extremonorteda cidadeháumapequenapraça.Émuito antiga enum tempo seusbancos eramdemadeira polida e metais brilhantes. A sombra de umas alfarrobeiras esguias caía sobre eles e, sob suaproteção, os velhos dos arredores recebiamo calor dasmanhãs e viam as crianças correndo em volta dafonte:umacircunferênciadepedraemcujocentro,napontadospés, comasmãosparaoaltocomo sequisessevoar,haviaumamulherenvoltaemvéusecomáguabrotandodacabeleira.Agoraosbancosestãorachados, a fonte vazia, a belamulher temo rosto cortadoporuma cicatriz e as alfarrobeiras se curvamsobresimesmas,moribundas.

Era nessa pracinha que Antonia ia brincar quando osQuiroga vinham à cidade. Elesmoravam nafazendadeLaHuaca,umadasmaioresdePiura,ummaraopédasmontanhas.Duasvezesporano,paraoNatal e a procissão de junho, osQuiroga vinham à cidade e se instalavam na casona de tijolos que fazesquinaprecisamentecomessapraçaqueagoratemoseunome.DonRobertousavaunsbigodesgrossos,quemordiasuavementeaofalar,etinhamaneirasaristocráticas.Oagressivosoldacomarcatinharespeitadoas feições de dona Luzia, mulher pálida, frágil, muito devota: ela mesma tecia as coroas de flores quedepositavanoandordaVirgemquandoaprocissãofaziaumaltonaportadesuacasa.NanoitedeNatal,osQuirogadavamumafestafrequentadapormuitospoderosos.Haviapresentesparatodososconvidadose,àmeia-noite,choviammoedasdas janelasparaosmendigosevagabundosaglomeradosnarua.Vestidosdeescuro, os Quiroga acompanhavam a procissão durante quatro lentíssimas horas, através de bairros esubúrbios. LevavamAntonia pelamão e a repreendiam discretamente quando se esquecia das ladainhas.Durante sua estadana cidade,Antonia apareciabemcedonapracinha e, comas criançasda vizinhança,brincava de polícia e ladrão, de prendas, subia nas alfarrobeiras, jogava torrões na mulher de pedra outomavabanhonafonte,nuacomoumpeixe.

Quemeraessamenina,porqueosQuirogaaprotegiam?ForatrazidadeLaHuacanummêsdejunho,antesdeaprenderafalar,edonRobertocontouumahistóriaquenãoconvenceuatodos.Oscachorrosdafazendateriamlatidocertanoiteequandoele,alarmado,foiatéovestíbulo,encontrouameninanochão,sobunscobertores.OsQuiroganãotinhamfilhos,eosparentesambiciososrecomendaramumorfanato,algunsseofereciamparacriá-la.MasdonaLuziaedonRobertonãoseguiramosconselhos,nãoaceitaramasofertas, nem pareciam incomodados com o falatório. Certa manhã, no meio de um jogo de cartas noCentroPiurano,donRobertoanuncioudistraidamentequeelestinhamdecididoadotarAntonia.

Masnãochegaramaadotar,porquenaquelefimdeanoosQuiroganãochegaramaPiura.Issonunca

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tinha acontecido: provocou inquietação. Receando um acidente, no dia vinte e cinco de dezembro umpelotãodecavaleirosenveredoupelocaminhodonorte.

Foramencontradosacemquilômetrosdacidade,ondeaareiaapagaosrastrosedestróiqualquersinal,esóimperamadesolaçãoeocalor.OsbandoleiroshaviamespancadoselvagementeosQuirogaeroubadosuas roupas, os cavalos, abagagem, eosdois empregados também jaziammortos, com feridaspestilentasfervilhandodevermes.Osolcontinuavaulcerandooscadáveresnuseoscavaleirostiveramqueenxotaratirososurubusquebicavamamenina.Entãodescobriramqueelaestavaviva.

—Porquenãomorreu?—perguntavamosvizinhos.—Comopôdeviverselhearrancaramalínguaeosolhos?

—Édifícilsaber—respondiaodoutorPedroZevallos,balançandoperplexoacabeça.—Talvezosoleaareiatenhamcicatrizadoasferidaseevitadoahemorragia.

—AProvidência—afirmavaopadreGarcía.—AmisteriosavontadedeDeus.—Devetersidolambidaporumaiguana—diziamosfeiticeirosdoscasebres.—Porqueababaverde

nãoservesóparaevitaroaborto,tambémsecaasferidas.Osbandidosnuncaforamencontrados.Osmelhorescavaleirospercorreramodeserto,osrastreadores

maishábeisexploraramasflorestas,ascavernas,chegaramatéasmontanhasdeAyabacasemencontrá-los.Umaeoutravez,oprefeito,aGuardaCivil,oExércitoorganizaramexpediçõesquevasculharamasaldeiasecasariosmaisretirados.Tudoemvão.

Todos os bairros se incorporaram ao cortejo que seguia os caixões dos Quiroga. Nas varandas dosmaioraishaviacreponsdeluto,eobispoeasautoridadescompareceramaoenterro.AdesgraçadosQuirogasedivulgoupelaregião,perdurounosrelatosenasfábulasdosmangachesedopovodaGallinacera.

LaHuacafoidivididaemmuitaspartes,eàfrentedecadaumaficouumparentededonRobertooudedonaLuzia.Aosairdohospital,AntoniafoiacolhidaporumalavadeiradaGallinacera,JuanaBaura,quetinhatrabalhadoparaosQuiroga.QuandoameninaaparecianaPraçadeArmas,comumavaranamãoparadetectarosobstáculos,asmulhereslhefaziamcarinhos,traziamdoces,oshomensasubiamaocavaloealevavamparapassearpeloMalecón.UmavezficoudoenteeChápiroSeminarioeoutrosfazendeirosqueestavambebendonoLaEstrelladelNorteobrigaramabandamunicipala ircomelesatéaGallinaceraetocarotoquederetiradaemfrenteàcabanadeJuanaBaura.Nodiadaprocissão,Antoniaialogoatrásdoandoredoisoutrêsvoluntáriosfaziamumcírculoparaisolá-ladotumulto.Ameninatinhaumardócil,taciturno,quecomoviaaspessoas.

Jáos tinhamvisto,meucapitão,ocaboRobertoDelgadoapontaparaoaltodobarranco, já tinhamidoavisar:aslanchaschegamumaatrásdeoutra,osonzehomenspulamparaterra,doissoldadosamarramasembarcaçõesnumaspedras,JulioReáteguibebeumgoledocantil,ocapitãoArtemioQuirogatiraacamisa,o suor empapa os ombros, as costas, e a torce, don Julio, este calor desgraçado ia fritar os seusmiolos.Enxamesdemosquitosassediamogrupoelánoaltoouvem-selatidos:estavamchegando,meucapitão,olhepara cima. Todos levantam a vista: nuvens de poeira e muitas cabeças aparecem no topo do barranco.Algumassilhuetasdetorsospálidosjáescorregampelaencostaarenosae,entreaspernasdosurakusas,pulamcachorrosbarulhentos,comosdentesdefora.JulioReáteguivira-separaossoldados,então,quefizessemgestos de saudação e você, cabo, abaixe a cabeça, fique atrás, que não o reconheçam e o cabo RobertoDelgadosimsenhorgovernador, jáotinhavisto, láestavaJum,meucapitão.Osonzehomensagitamasmãos e alguns sorriem. No declive há cada vez mais urakusas; descem quase de cócoras, gesticulando,gritando,asmulheressãoasmaisbuliçosaseocapitão iamaoencontrodeles,donJulio?,porqueelenãoconfiava nem um pouco.Não, nada disso, capitão, não via como desciam contentes? Julio Reátegui osconhecia,oimportanteeraconquistarsuaconfiança,queodeixassem,cabo,qualeraoJum?odafrente,

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senhor,queestavacomamãolevantadaeJulioReáteguiatenção: iamcorrer feitodelatores,capitão,quenãofugissemtodos,e,acimadetudo,muitocuidadocomJum.Aglomeradosnalinhadobarranco,numaterroestreito,seminus,excitadoscomocachorrosquepulam,mexemosraboselatem,osurakusasolhamparaosexpedicionários,apontam,cochicham.Misturadocomosodoresdorio,daterraedasárvores,háagora um cheiro de carne humana, de peles tatuadas com urucum. Os urakusas batem nos braços, nospeitos, ritmicamente e, de repente, um homem cruza a barreira poeirenta, era essemeu capitão, esse, eavançamaciçoeenérgicoatéa ribeira.Outroso seguemeJulioReáteguiqueeraogovernadordeSantaMaría de Nieva, intérprete, que vinha falar com ele. Um soldado se adianta, grunhe e gesticula comdesenvoltura,osurakusasparam.Ohomemmaciçoassente,desenhacomamãoumtraçolento,circular,indicando aos expedicionários que se aproximem, estes avançam e Julio Reátegui: Jum de Urakusa? Ohomem maciço abre os braços, Jum!, toma ar: piruanos! O capitão e os soldados se entreolham, JulioReáteguifazquesim,dáoutropassoemdireçãoaJum,ficamaummetrodedistância.Sempressa,comosolhos pousados tranquilamente no urakusa, JulioReátegui solta a lanterna pendurada no cinto, segura-acom o punho todo, ergue-a devagar, Jum estende a mão para recebê-la, Reátegui bate: gritos, corridas,poeiraquecobretudo,avozestentóreadocapitão.Entreosuivoseasnuvensdepoeira,corposverdeseocrecirculam,caem,levantam-see,comoumpássaroprateado,alanternabateumavez,duas,três.Depoiso ar limpa a praia, desvanece a fumaça, leva os gritos.Os soldados estão postados em círculo, seus fuzisapontamparauma centopeia deurakusas embolados, agarrados, trançadosunsnos outros.Umameninasoluça abraçada às pernas de Jum e este tapa o rosto, por entre os dedos seus olhos espiam os soldados,Reátegui,ocapitão,eaferidaemsuatestacomeçouasangrar.OcapitãoQuirogagiraorevólveremumdedo,governador,ouviuoqueelegritou?piruanosdeviaquererdizerperuanos,nãoé?E JulioReáteguipensavaonde seráqueeste sujeitoouviuessapalavrinha, capitão: seriamelhorempurrá-losparacima,naaldeiaiamestarmelhorqueaqui,eocapitãosim,haveriamenospernilongos:jáouviu,intérprete,ordene,faça-os subir. O soldado grunhe e gesticula, o círculo se abre, a centopeia começa a andar, pesada ecompacta,novamente seveemnuvenzinhasdepoeira.OcaboRobertoDelgadocomeçaa rir: jáo tinhareconhecido,meu capitão, não consegui tirar os olhos dele. E o capitão Jum também, cabo, o que estáesperandopara subir.O cabo empurra Jum, e este avançamuito rígido, comasmãos aindano rosto.Ameninacontinuaagarradaemsuaspernas, estorva seusmovimentos eo caboa agarrapelo cabelo,puxa,tentaafastá-la,solteocaciqueeelaresiste,arranha,berracomoumganso,merda,ocabobatecomamãoabertaeJulioReáteguioquefoi,porra:comotratavaassimumamenina,porra?,comquedireito,porra?Ocaboa solta, senhor,nãoqueriabater, sóqueria fazê-la soltar Jum,quenão ficasse aborrecido, senhor, eaindaporcimaelaotinhaarranhado.

—Jáseouveaharpa—disseLituma.—Ouestousonhando,inconquistáveis?—Todosescutamos,primo—disseJosé.—Ouentãoestamostodossonhando.OMacacoouvia,comorostoinclinado,osolhosenormeseadmirados:—Éumartista!Quemvaidizerquenãoéomaior?—Penaqueestejatãovelho—disseJosé.—Osolhosdelenãoenxergammais,primo.Nuncaanda

sozinho,oJovemeoBolastêmquelevá-lopelobraço.AcasadaChunga ficaatrásdoEstádio,poucoantesdodescampadoque separaacidadedoQuartel

Grau,nãomuitodistantedomatagaldosfusilicos.Lá,naquelaparagemdecapimcalcinadoeterramole,sobos ramos nodosos das alfarrobeiras, se apostam os soldados embriagados nos amanheceres e crepúsculos.Pegamaslavadeirasquevoltamdorio,asempregadasdobairrodeBuenosAiresquevãoparaoMercado,embandoderrubamasmoçasnaareia,jogamsuassaiasparacimadosrostos,abremsuaspernase,umapóso outro, eles as fodem e depois fogem.Os piuranos chamam as vítimas de “atropeladas”, a operação de

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“fusilico”,eorebentoresultantechamamdefilhodeatropelada,fusiliquito,seteporras.—Maldita ahora emque fuipara amontanha—disseLituma.—Se tivesse ficadoaqui, teriame

casadocomaLiraeseriaumhomemfeliz.—Nemtãofeliz,primo—disseJosé.—SevissecomoaLiraestáagora.—Umavacaleiteira—disseoMacaco.—Umabarrigaquepareceumbombo.—Eparideirafeitoumacoelha—disseJosé.—Játemunsdezfilhos.—Umaéputa,outraumavacaleiteira—disseLituma.—Quefaroparamulheres,inconquistável.—Colega, vocêmeprometeu e não está cumprindo a palavra—disse Josefino.—Oque passou,

passou.Senão,nãoiremosmaisàcasadaChunga.Vaificarcalminho,certo?—Comoumoperado,palavradehonra—disseLituma.—Agoraestousóbrincando.—Esqueceuquenaprimeirabesteiraquefizervocêsefode,irmão?—disseJosefino.—Vocêjátem

antecedentes,Lituma.Elesoprenderiamdenovo,equemsabeporquantotempodessavez.—Quantapreocupaçãopormim,Josefino—disseLituma.EntreoEstádioeodescampado,ameioquilômetrodaestradaquesaidePiuraedepoissebifurcaem

duasretassuperfíciesescurasquecruzamodeserto,umaemdireçãoaPaita,outraemdireçãoaSullana,háumamontoadodebarracosdeadobe,latasecartão,umaaglomeraçãoquenãotemaidadenemaextensãodaMangachería,maispobrequeesta,maisfrágil,eéláqueseergue,singularecentralcomoumacatedral,acasadaChunga,tambémconhecidacomoCasaVerde.Alta,sólida,suasparedesdetijoloeseutetodezincosedivisamdesdeoEstádio.Aossábadosànoite,duranteaslutasdeboxe,osespectadorespodemouvirospratosdoBolas,aharpadedonAnselmo,oviolãodoJovemAlejandro.

— Juro que ouvia,Macaco— disse Lituma.—Claramente, era de cortar o coração. Como ouçoagora,Macaco.

—Quevidavocêlevava,priminho—disseoMacaco.—Não estou falandodeLima, e simdeSantaMaríadeNieva—disseLituma.—Noites comoa

morte,Macaco,quandoestavadeguarda.Ninguémcomquemfalar.Osrapazesroncandoe,derepente,eunãoouviamaisossaposnemosgrilos,sóaharpa.EmLima,nuncaouvi.

A noite estava fresca e clara, na areia se desenhavam de tanto em tanto os perfis retorcidos dasalfarrobeiras.Avançavamnamesmalinha,Josefinoesfregandoasmãos,osLeónassobiandoeLituma,queiacabisbaixo,demãosnosbolsos,àsvezeslevantavaorostoeperscrutavaocéucomumaespéciedefuror.

—Umacorrida,comoquandoéramoscrianças—disseoMacaco.—Um,dois,três.Saiu disparado, sua pequena figura simiesca desapareceu nas sombras. José superava obstáculos

invisíveis,disputavaumacorrida,iaevoltava,encaravaLitumaeJosefino:—Acanaénobreeopisco,traidor—rugia.—Equandocantamosohino?Jápertodocasario,encontraramoMacacodeitadodecostas,resfolegandocomoumboi.Ajudaram-no

aselevantar.—Meucoraçãoquasesaiupelaboca,merda,parecementira.—Osanosnãopassamàtoa,primo—disseLituma.—MasvivaaMangachería—disseJosé.AcasadaChungaécúbicaetemduasportas.Aprincipaldáparaoquadrado,amplosalãodedança

cujasparedesestãocrivadasdenomespróprioseemblemas:corações,flechas,bustos,sexosfemininoscomomeias-luas,picasqueosatravessam.Tambémfotosdeartistas,boxeadoresemodelos,umcalendário,umavistapanorâmicadacidade.Aoutra,umaportinhabaixaeestreita,dáparaobar,separadodapistadebaileporumbalcãodetábuas,atrásdoqualficamaChunga,umacadeiradebalançodepalhaeumamesacheiadegarrafas,coposevasilhas.Eemfrenteaobar,numcanto,éolugardosmúsicos.DonAnselmo,sentadonumbanquinho,usa aparede como encosto e sustenta aharpa entre aspernas.Usaóculos, seus cabelos

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varrematesta,eentreosbotõesdacamisa,nopescoçoenasorelhasbrotammechasgrisalhas.Ohomemque tocaviolãoe temumavozmuitoafinadaéo ranzinza,o lacônico,o JovemAlejandroque,alémdeintérprete, é compositor.O que está na cadeira de vime emanipula um tambor e uns pratos, omenosartista,omaismusculosodostrês,éoBolas,umex-caminhoneiro.

—Nãomeabracemassim,nãotenhammedo—disseLituma.—Nãoestoufazendonada,nãoveem?Sóestouprocurandoporela.Oquehádeerradoemquerervê-la.Soltem-me.

—Jádeve ter idoembora,priminho—disseoMacaco.—Que importância tem?Pense emoutracoisa.Vamosnosdivertir,festejarasuavolta.

— Não estou fazendo nada — repetiu Lituma. — Só lembrando. Por que me abraçam assim,inconquistáveis?

Estavam na entrada da pista de dança, sob a luz espessa derramada por três lâmpadas envoltas emcelofaneazul,verdeeroxo,diantedeumamassacompactadecasais.Gruposindefinidoslotavamoscantos,edalivinhamvozes,gargalhadas,tilintardecopos.Umafumaçaimóvel,transparente,flutuavaentreotetoeascabeçasdosbailarinos,etudocheiravaacerveja,suoresefumonegro.Litumasebalançavanomesmolugar,JosefinoaindaoseguravapelobraçomasosLeónotinhamsoltado.

—Qualfoiamesa,Josefino?Aquela?—Aquelamesmo,irmão.Masjápassou,agoravocêcomeçavidanova,esqueça.—Vamos,cumprimenteoharpista,primo—disseoMacaco.—EtambémoJovemeoBolas,que

semprelembramdevocêcomcarinho.—Masnãoaestouvendo—disseLituma.—Porqueseescondedemim,nãovoulhefazernada.Só

olharparaela.—Eumeencarrego,Lituma—disseJosefino.—Palavraqueatragoaqui.Masvocêtemquecumprir

apromessa;oquepassou,passou.Vácumprimentarovelho.Euvouprocurá-la.Aorquestrahaviaparadodetocar,oscasaisnapistaeramagoraumamassacompacta,imóveleciciante.

Alguémdiscutiaagritosnobar.Litumaavançouatéosmúsicos,tropeçando,donAnselmodomeucoração,debraçosabertos,velho,harpista,escoltadopelosLeón,nãoselembramaisdemim?

—Elenãoovê,primo—disseJosé.—Digaquemvocêé.Adivinhe,donAnselmo.—O quê?— aChunga levantou-se num pulo e a cadeira de balanço continuou oscilando.—O

sargento?Vocêotrouxe?—Nãotiveoutrojeito,Chunga—disseJosefino.—Chegouhojeeficouteimando,nãoconseguimos

evitar.Maselejásabeenãoestáligando.Lituma caía nos braços de donAnselmo, o Jovem e o Bolas lhe davam tapinhas nas costas, os três

falavamaomesmotempo,tãoaltoqueseouviaaténobar,excitados,surpresos,comovidos.OMacacosesentoudiantedospratos,fazia-ostilintareJoséexaminavaaharpa.

—Senãochamoapolícia—disseaChunga.—Tire-odaquiagoramesmo.—Está caindodebêbado,Chunga,mal consegueandar,nãoestávendo?—disse Josefino.—Nós

cuidamosdele.Nãovaihavernenhumaconfusão,palavra.—Vocêssãoaminhadesgraça—disseaChunga.—Principalmentevocê,Josefino.Masnãovaise

repetiroqueaconteceunaúltimavez,juroquechamoapolícia.—Nenhumaconfusão,Chunguita—disseJosefino.—Palavra.ASelváticaestáláemcima?—Ondepoderiaestar—disseaChunga.—Massehouverconfusão,putaqueopariu,vocêmepaga.

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II

—Aquieumesintobem,donAdrián—disseosargento.—Asnoitesnaminhaterrasãoassim.Mornaseclaras.

—Nãohánadacomoaselva—disseNieves.—Paredesestevenaserraanopassadoevoltoudizendoétriste,nemumaárvore,sópedrasenuvens.

ALua,muitoalta,iluminavaavaranda,enocéuenoriohaviamuitasestrelas;atrásdobosque,suavemurodesombras,oscontrafortesdacordilheiraerammassasarroxeadas.Aopédacabana,entreosjuncoseassamambaias,asrãschapinhavame,nointerior,ouvia-seavozdeLalita,ocrepitardofogão.Nachácaraos cachorros latiammuito alto: brigavampor causados ratos, sargento, comoos caçavam,precisava ver.Ficavamdebaixodasbananeiras,fingindoquedormiam,equandoumseaproximava,bum,nocangote.Opilotoostinhatreinado.

—EmCajamarcaopessoalcomeporquinho-da-índia—disseosargento.—Servemcomasunhas,olhinhosebigodes.Sãoiguaizinhosaosratos.

—UmavezLalitaeeufizemosumaviagemgrandepelomato—disseNieves.—Tivemosquecomerratos.Acarnecheiramal,masémolinhaebrancacomoadepeixe.OAquilinopassoumal,quasemorre.

—OmaiorzinhosechamaAquilino?—perguntouosargento.—Aquelequetemolhinhosdechinês?—Essemesmo,sargento—disseNieves.—Enasuaterra,hámuitospratostípicos?O sargento levantou a cabeça, ah, donAdrián, ficou comoque extasiadopor alguns segundos, se o

senhor entrassenumapicanteríamangacheeprovasseum secode chabelo.Morreria de prazer, palavra dehonra,nadanomundopodiasecomparareopilotoNievesconcordou:nãohavianadacomoaterradagente.ÀsvezesnãotinhavontadedevoltarparaPiura,sargento?Sim,tododia,masquemépobrenãofazoquequer,donAdrián:eele,tinhanascidoaqui,emSantaMariadeNieva?

—Maisembaixo—disseopiloto.—LáoMarañónémuitolargo,ecomanévoanãosevêaoutramargem.MasjámeacostumeicomNieva.

—Acomidaestápronta—disseLalita,dajanela.Seuscabelossoltoscaíamemcascatasobreotabiqueeseusbraçosrobustospareciammolhados.—Quercomeraífora,sargento?

—Gostaria, senão for incômodo—disseo sargento.—Na sua casa eume sinto comonaminhaterra,senhora.Sóqueonossorioémaisestreitinhoenãotemáguaoanotodo.E,emvezdeárvores,háareais.

—Nãoseparecenada,então—riuLalita.—MasimaginoquePiuratambémélinda,comoaqui.— Ele quis dizer que tem o mesmo calorzinho, os mesmos barulhos — disse Nieves. — Para as

mulheresaterranãosignificanada,sargento.—Erabrincadeira—disseLalita.—Masosenhornãoficouaborrecido,nãoémesmo,sargento?Nadadisso,elegostavadegracejos,ajudavamaquebrarogeloe,aliás,asenhoraeradeIquitos,certo?

LalitaolhouparaNieves,deIquitos?E,poruminstante,mostrouorosto:pelemetálica,suor,espinhas.Osargentopensoupelasuamaneiradefalar,senhora.

—Elasaiudeláfazmuitosanos—disseNieves.—Éestranhoquetenhanotadooseusotaque.—Éque tenhoumouvido apurado, como todososmangaches—disseo sargento.—Eu cantava

muitobemquandoerajovem,senhora.Lalita tinha ouvido que os nortistas eram ótimos no violão e tinhambom coração, é verdade?, e o

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sargentoclaro:nenhumamulherresistiaàscançõesdasuaterra,senhora.EmPiura,quandoumhomemseapaixonavaialogochamarosamigos,todostraziamviolõeseamoçaacabavacedendonabasedeserenatas.Havia grandes músicos, senhora, ele conhecia muitos, um velho que tocava harpa, uma maravilha, umcompositor de valsas, e Adrián Nieves indicou o interior da cabana a Lalita: e ela, não ia sair? Lalitaencolheuosombros:

—Temvergonha,nãoquersair—disse.—Nãomeouve.Bonifaciaécomoumbichinho,sargento,porqualquercoisalevantaasorelhaseseassusta.

—Pelomenosquevenhadarboa-noiteaosargento—disseNieves.—Podemdeixar—disseosargento.—Nãoprecisasairsenãoquiser.—Nãosemudadevidatãorápido—disseLalita.—Elasóviveuentremulheres,acoitadatemmedo

dehomem.Dizquesãotodosumasvíboras,asmadrecitasdevemterlheensinadoisso.Agorafoiseescondernachácara.

— Elas têm medo de homem até experimentarem — disse Nieves. — Depois mudam, viramdevoradoras.

Lalita desapareceu no quarto e, logo após, sua voz voltou, aquilo não era com ela, ligeiramentezangada,nuncatevemedodehomemenãoeradevoradora,dequemestáfalando,Adrián?Opilotodeuumagargalhadaeseinclinouparaosargento:Lalitaeraumaboamulhermas,issosim,tinhaoseucaráter.Baixo,muitomagro,comumapeleclaraeunsolhosrasgadosevivazes,Aquilinoapareceunavaranda,boanoite,vinhacomolampiãoporqueestavaescuro,eodeixounoparapeito.Atrásdele,doisoutrosmeninos— de calças curtas, cabelos lisos, pés descalços — trouxeram uma mesinha. O sargento chamou-os e,enquanto fazia cócegas e brincava com eles, Lalita e Nieves trouxeram frutas, peixes cozidos ao vapor,mandioca,quecaraboatinhatudoaquilo,senhora,umasgarrafasdeanisado.Opilotoserviuospratosdostrêsmeninoseestessedirigiramparaaescadinhadachácara:osseusgurissãomuitosimpáticos,donAdrián,eraassimquechamavamascriançasemPiura,senhora,eosargento,emgeral,gostavadeguris.

—Saúde,sargento—disseNieves.—Peloprazerderecebê-loaqui.—Bonifaciaseassustacomtudomasémuitotrabalhadora—disseLalita.—Elameajudanachácara

esabecozinhar.Etambémcosturamuitobem.Viuascalçasdosmeninos?Foielaquemfez,sargento.—Masvocêprecisalhedarunsconselhos—disseopiloto.—Assim,tãotímida,nuncavaiarranjar

marido.Nãoimaginacomoelaécalada,sargento,sóabreabocaquandolheperguntamosalgumacoisa.—Achoissomuitobom—disseosargento.—Nãogostodegentefaladeira.—Então,vaigostarmuitodaBonifacia—disseLalita.—Podepassaravidatodasemdarumpio.—Voulhecontarumsegredo,sargento—disseNieves.—ALalitaquerqueosenhorsecasecoma

Bonifacia.Éoqueandamedizendo,porissomemandouconvidá-lo.Cuide-se,aindaestáatempo.Osargentofezumaexpressãoentrerisonhaenostálgica,senhora,umavezeleesteveprestesasecasar.

TinhaacabadodeentrarparaaGuardaCivileencontrouumamulherquegostavadele,eeletambémdela,umpouquinho.Comose chamava?,Lira,oqueaconteceu?,nada, senhora, ele foi transferidodePiura eLiranãoquisacompanhá-loeassimoromanceseacabou.

—Bonifaciairiaaqualquerlugarcomseucompanheiro—disseLalita.—Aquinaselvaasmulheressãoassim,nãoimpomoscondições.Osenhortemquesecasarcomalguémdaqui,sargento.

—Estávendo,quandoLalitameteumacoisanacabeça,nãoparaatéconseguir—disseNieves.—Asloretanassãoumasbandidas,sargento.

—Vocêssãomuitosimpáticos—disseosargento.—EmSantaMaríadeNievadizemqueosNievessãoranzinzas,nãosedãocomninguém.E,noentanto,senhora,nestetempoqueestouaquivocêssãoosprimeirosquemeconvidamparaviràsuacasa.

—Équeninguémgostadeguardas,sargento—disseLalita.—Sabecomosãoabusados.Desgraçam

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asmoças,primeiroasfazemseapaixonar,depoisasengravidamesomem.—E então comoquerque aBonifacia se case como sargento?—disseNieves.—Umacoisanão

encaixacomaoutra.—Vocênãodissequeosargentoeradiferente?—perguntouLalita.—Masquemsabeseéverdade.—Éverdade,senhora—disseosargento.—Souumhomemdireito,umbomcristão,comodizem

aqui.Eumamigo comonãoháoutro igual, a senhora vai ver.Estoumuitograto,donAdrián,mesmo,porquemesintomuitobemnasuacasa.

—Pode voltar quandoquiser—disseNieves.—Venha visitarBonifacia.Masnão semeta com aLalita,porquesoumuitociumento.

—Ecomtodarazão,donAdrián—disseosargento.—AsenhoraLalitaétãobonitaqueeutambémficariacomciúme.

—Muitagentilezasua,sargento—disseLalita.—Maseuseiquefalaporfalar,eujánãosoubonita.Antes,sim,quandoerajovem.

—Masasenhoraaindaéumagarota—protestouosargento.—Nãoconfiomais—disseNieves.—Émelhorquenãovenhaquandoeunãoestiver,sargento.Nachácara,oscachorroscontinuavamlatindoeàsvezesseouviamasvozesdosmeninos.Osinsetos

revoavamemvoltadolampiãoderesina,osNieveseosargentobebiam,conversavam,brincavam,pilotoNieves!,ostrêsviraramacabeçaparaafolhagemdaribeira:anoiteescondiaatrilhaquesubiaparaSantaMaríadeNieva.PilotoNieves!Eosargento:eraoPesado,queinconveniente,oqueestavaacontecendo,porquevinhaincomodaraestashoras,donAdrián.Ostrêsmeninosinvadiramavaranda.Aquilinofoiatéopilotoefaloucomeleemvozbaixa:quesubisse.

—Parecequevamosterquesairdeviagem,sargento—disseopilotoNieves.—Deveestarbêbado—disseosargento.—NãopresteatençãonoPesado,quandobebeeleimagina

coisas.A escadinha rangeu, atrás de Aquilino surgiu a grossa silhueta do Pesado, puxa, meu sargento,

finalmenteoencontrava,otenenteeosrapazesoestiveramprocurandoportodolado,eumaboanoiteatodos.

—Estoudefolga—grunhiuosargento.—Oquequeremcomigo?—Encontraramaspupilas—disseoPesado.—Umgrupodemateiros,pertodeumacampamento,

rio acima. Um mensageiro chegou à missão faz um par de horas. As madres acordaram todo mundo,sargento.Parecequeumadascriançasestácomfebre.

OPesadoestavaemmangasdecamisa,abanando-secomoquepe,eagoraLalitaobombardeavadeperguntas.Opilotoeosargentoselevantaram,sim,quechateação,senhora,tinhamqueirbuscá-lasagoramesmo. Eles queriam esperar até amanhã, mas as freirinhas convenceram don Fabio e o tenente, e osargentoiamzarpardenoite?Sim,meusargento,asmadrestinhammedodequeosmateirospartissemparacimadasmaiorzinhas.

—Asmadrecitastêmrazão—disseLalita.—Coitadas,tantosdiasnomato.DepressaAdrián,vá.—Fazeroquê—disseopiloto.—Tomeumgoleaquicomosargento,enquantovouabastecera

lancha.—Vaicairbem,obrigado—disseoPesado.—Quevidaanossa,nãoémesmo,sargento?Sintomuito

porinterrompernomeiodacomida.—Encontraram todas?—perguntou uma voz, no tabique. Eles olharam: uma cabeleira curta, um

perfilimpreciso,umbustodemulherrecortadoaoladodajanela.Aluzdolampiãochegavaralaatéali.—Menosduas—disseoPesado,inclinando-senadireçãodajanela.—MenosasdeChicais.— Por que não as trouxeram em vez demandar avisar?— perguntou Lalita.—Mas pelomenos

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encontraram,graçasaDeusqueasencontraram.Não tinham como trazê-las, senhora, e o Pesado e o sargento avançaram as cabeças na direção do

tabique,masasilhuetaseafastoueagorasóapareciaumfragmentoderosto,umasombradecabelos.Dooutroladodoparapeito,AdriánNievesdavaordenseouviam-seosmeninosagitandoaágua,chapinhando,indo e vindo entre as samambaias. Lalita serviu anisado e eles beberam à sua saúde, meu sargento, e osargentoàsaúdedasenhora,seumal-educado.

—Já sei queo tenenteme encarregoudo servicinho—disse o sargento.— Imaginoquenão vousozinho,certo?,quemvaicomigobuscarasmeninas?

—OPequenoeeu—disseoPesado.—Etambémumafreirinha.—AmadreAngélica?—perguntouavozládotabiqueeelesvoltaramatorcerospescoços.—Comcerteza,porqueamadreAngélicaentendedemedicina—disseoPesado.—Paratratarda

doentinha.—Deem quinina— disse Lalita.—Mas uma viagem não vai ser suficiente, não cabem todas na

lancha,vãoprecisarfazerduasoutrês.— Ainda bem que hoje há lua — disse o piloto Nieves, já na escadinha. — Em meia hora estou

pronto.—Váavisarotenentequejáestamosindo,Pesado—disseosargento.O Pesado assentiu, deu boa-noite e se afastou da varanda. Ao passar junto à janela, a vaga silhueta

recuou,desapareceuevoltouaaparecerquandooPesadojádesciaaescadinha,assobiando.—Venha,Bonifacia—disseLalita.—Voulheapresentarosargento.Lalita pegou o sargento pelo braço, levou-o até a porta e, segundos depois, surgiu na soleira um

contornodemulher.Osargentoficoucomamãoestendida,observandoconfusoumasfaisquinhasimóveis,até que uma pequena forma sombria cortou a penumbra, uns dedos roçaram nos seus,muito prazer, efugiram:àssuasordens,senhorita.Lalitasorria.

—Penseiqueeleeracomovocê—disseFushía.—Evejasó,velho,queerroterrível.—Eutambémmeenganeiumpouco—disseAquilino.—NãoacreditavaqueAdriánNievesfosse

capazdeumacoisadessas.Pareciatãodesligadodetudo.Ninguémpercebeucomoacoisacomeçou?—Ninguém—disseFushía—;nemPantacha,nemJum;nemoshuambisas.Malditaahoraemque

essescachorrosnasceram,velho.—Olheoódiooutraveznasuaboca,Fushía—disseAquilino.E entãoNieves a viu, encostada entre o jarrão de barro e omurinho: grande, felpuda, pretíssima.

Levantou-sebemdevagardoestrado,suamãotateou,roupas,umasapatilhadeborracha,umacorda,cuias,umacestadetucumã,nadaqueservisse.Elacontinuavanocanto,àespreita,semdúvidaoespiavaporbaixodassuaspatasfinaseretintas,refletidascomoumatrepadeiranaconcavidadevermelhadojarrão.Deuumpasso, tirouo facãodaparede e elanão tinha fugido, continuava espreitando, certamente registrava cadamovimento seu com aqueles olhinhos perversos, sua barriga vermelha devia estar pulsando. Avançou napontadospésatéocanto,elarecuoucomsúbitaangústia,elebateueouviu-secomoumrangerdefolhas.Depois, a esteira tinhaum rasgão emanchinhaspretas, vermelhas; aspatas estavam intactas, seupelo erapreto, comprido, sedoso.Nieves pendurou o facão e, em vez de voltar para o estrado, ficou ao lado dajanela,fumando.Recebianorostoohálitoeosrumoresdaselva,comabrasadocigarrotentavaqueimarasasasdosmorcegosquerondavamatelametálica.

—Elesnuncaficaramsozinhosnailha?—perguntouAquilino.—Umavez,porqueocachorroadoeceu—disseFushía.—Masfoiaindanocomeço.Nessetempoa

histórianãopodetercomeçado,elesnãoseatreveriam,tinhammedodemim.

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—Existecoisamaisassustadoraqueo inferno?—perguntouAquilino.—E,noentanto,aspessoasfazemmaldades.Nemsempreomedofreiaaspessoas,Fushía.

—Ninguémjamaisviuoinferno—disseFushía.—Eaquelesdoismeviamotempotodo.—Sejacomofor,quandoumcristãoeumacristãtêmvontadeumdooutro,nãoháquemospare—

disseAquilino.—Ocorpoarde,comoseestivessequeimandopordentro.Poracasonuncaaconteceucomvocê?

—Nenhumamulhermefezsentirisso—disseFushía.—Masagorasim,velho,agorasim.Écomosetivessecarvõesembaixodapele,velho.

Àdireita,entreasárvores,Nievesdivisavafogueiras,perfisinstantâneosdehuambisas;àesquerda,emcontraste,ondeJumarmarasuacabana,tudoeraescuridão.Noalto,contraumcéuanil,ospenachosdaspaineiras balançavame a luabranqueavao atalhoque, depoisdedesceruma encosta cheiade arbustos esamambaias,contornavaotanquedastartarugasecontinuavaatéaprainha;alagoadeviaestarazul,quietaedeserta.Seráqueaságuasdotanquecontinuarambaixando?Asestacas,arede,jáestariamnoseco?Logo,logoastartaruguinhasapareceriamencalhadasnaareia,comospescoçosenrugadosesticadosparaocéu,osolhoscheiosdeasfixiaederemelas,eteriamquequebrarsuascarapaçascomofiodofacão,cortaracarnebrancaemquartosesalgá-laantesqueosoleaumidadeadeteriorassem.Nievesjogouforaocigarroeiasopraro lampiãoquandobateramno tabique.Levantouo trincodaporta eLalita entrou, trajandoumaitípakhuambisa,comocabeloatéacintura,descalça.

—Setivessequeescolherentreumdosdoisparamevingar,seriadela,Aquilino—disseFushía—,aquelacachorra.Porquefoielaquecomeçou,comtodacerteza,quandomeviudoente.

—Vocêatratavamal,batianelae,depois,asmulherestêmseuorgulho,Fushía—disseAquilino.—Quecristãteriaaguentado?Decadaviagemvocêtraziaumamulhernovaeelatinhaqueengolir.

—Pensa que ela ficava com raiva das índias?—disse Fushía.—Que bobagem, velho.A cachorraestavadanadaporqueeunãocumpriamaiscomela.

—Émelhornãofalardisso,homem—disseAquilino.—Seiquevocêficatriste.—Mascomeçouassim,eunãofuncionavamaiscomaLalita—disseFushía.—Vejasóquedesgraça,

Aquilino,quecoisahorrível.—Nãoacordeiosenhor,diga?—disseLalita,comvozsonolenta.—Não,nãomeacordou—disseNieves.—Boanoite.Oquemanda?Fechou a porta, ajeitou a calça e cruzou os braços sobre o torso nu, mas logo depois descruzou e

continuouempé, indeciso.Afinalapontouparao jarrãodebarro:umacaranguejeira tinhaentradoali eacabavadematá-la.Não faziaumasemanaque tinha tapadoosburacos,Lalita sentou-senoestrado,mastododiaabriamoutros,ascaranguejeiras.

—Équeestãocomfome—disseLalita—,éassimnestaépoca.Umavezacordeienãoconseguianemmexeraperna,juro.Eraumamanchinhaedepoisinchou.Oshuambisaspuseramminhapernaemcimadobraseiroparafazersuar.Ficouamarca,bemaqui.

Suasmãosdesceramatéabarradaitípak,levantaram-na,apareceramsuascoxas,lisas,morenas,firmes,eumacicatrizquepareciaumaminhoca:

—Porqueseassusta?—perguntouLalita.—Porquesevira,diga?—Nãomeassusto—disseNieves.—Sóqueestánuaeeusouhomem.Lalita riue soltoua itípak; seupédireitobrincavacomumacuia,distraidamenteaacariciavacoma

planta,osdedinhos,ocalcanhar.—Cadela,puta,coisaspioressevocêquiser—disseAquilino.—MaseutenhoafeiçãopelaLalitae

nãomeimporto.Écomoumafilha.—Umapessoaquefazissoporquevêqueseuhomemestámorrendoépiorqueumacadela,piorque

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umaputa—disseFushía.—Nãoexistepalavraparadizeroqueé.—Morrer?EmSanPabloamaioriamorredevelhoenãodadoença,Fushía—disseAquilino.—Vocênãodizissoparameconsolar,esimporquedetestaqueeuaxingue—disseFushía.— Ele lhe disse naminha frente— sussurrouNieves.—Na próxima vez que aparecer sem nada

debaixodaitípakeuacabocomasuaraça,nãoselembra?—Outrasvezesdiz,douvocêparaoshuambisas,arrancoseusolhos—disseLalita.—Vivedizendoao

Pantachaeumatovocê,estáolhandoparaela.Quandoameaçaelenãofaznada,araivavaiemboracomaspalavras.Nãosentepenaquandoelemebate,diga?

—Etambémraiva—Nievesmanipuladesajeitadootrincodaporta:—Principalmentequandoxingaasenhora.

Quandoestavamsozinhoserapiorainda,ah,seusdentesestãocaindo,ah,acaracheiadeespinhas,ah,o corpo não é mais como antes, ah, está toda aberta, esguichando, logo, logo vai ficar igual às velhashuambisas,ah,etudooquelhevinhaàcabeça,nãosentepena?,eNievescale-se.

—Maseuacreditavaemvocêeolhequeoconhecia—disseAquilino.—EuchegavanailhaeaLalitaelevaimetirar logodaqui,sedermuitolátexesteanovamosnoscasarnoEquador.Sejabonzinho,donAquilino,vendaamercadoriaporbompreço.CoitadadaLalita.

—Nãofugiuantesporqueesperavaqueeuficasserico—disseFushía.—Queburra,velho.Nãomecaseicomelaquandoeratodadurinhaesemespinhas,eachavaqueeuiamecasarquandojánãodavamaistesãoemninguém.

—DeuemAdriánNieves—disseAquilino.—Senão,nãoaterialevado.—Eelas,opatrãotambémvailevarparaoEquador?—perguntouNieves.—Tambémvaisecasar

comelas?—Amulherdelesousóeu—disseLalita.—Asoutrassãoempregadas.—Digaoquedisser,maseuseiqueficamagoada—disseNieves.—Seriaumadesalmadasenãolhe

importassequeeletragaoutrasmulheresparaasuacasa.—Nãotrazparaaminhacasa—disseLalita.—Elasdormemnocurral,comosanimais.—Massedeitacomelasnasuafrente—disseNieves.—Nãosefaçadedesentendida.Virou-se,olhouparaela eLalita já estavanapontadoestrado, comos joelhosbem juntos,osolhos

baixoseNievesnãoqueriaofender,gaguejoueolhoudenovopelajanela,sentiraraivaquandoeladissequeia para o Equador com o patrão, o céu cor de anil, as fogueiras, os vaga-lumes faiscando entre assamambaias:pediadesculpa,nãoqueriaofender,eLalitalevantouosolhos:

—PoracasoelenãopassaasíndiasparavocêeoPantachaquandosecansadelas?—disse.—Vocêfazamesmacoisaqueele.

—Eu estou sozinho— balbuciouNieves.—Um cristão precisa ficar commulheres, por quemecomparacomoPantacha,ealiásgostoquemetratedevocê.

—Sónocomeço,aproveitandoasminhasviagens—disseFushía.—Eleasarranhava,deixouumadasachualessangrando.Masdepoisseacostumoueeramsuasamigas.Ensinavacristãoaelas,afinalsedistraía.Nãoécomovocêpensa,velho.

—Eaindasequeixa—disseAquilino.—Todososcristãossonhamcomissoquevocêfez.Quantoshomensvocêconhecequetrocamassimdemulher,Fushía?

— Mas eram índias — disse Fushía —, índias, Aquilino, aguarunas, achuales, shapras, puro lixo,homem.

—Eaindaporcimasãocomobichinhos—disseLalita—,elasseafeiçoamamim.Ficocompenaédomedoquetêmdoshuambisas.Sevocêfosseopatrãoseriacomoele,atémexingaria.

—Asenhoraporacasomeconheceparamejulgar?—perguntouNieves.—Eunãofaria issocom

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minhacompanheira.Muitomenossefosseasenhora.—Aquiocorpodelasestragalogo—disseFushía.—EulátenhoculpaseaLalitaenvelheceu?Além

domais,seriaumabobagemdesperdiçaraoportunidade.—Porissovocêasroubavatãomeninas—disseAquilino.—Paraquefossembemdurinhas,nãoé?—Nãoera sópor isso—disseFushía—;gostodevirgenzinhascomoqualquerhomem.Sóqueos

cachorrosdessespagãosnãoasdeixamcrescerinteirinhas,asmaisnovasjáestãofuradas,ashaprafoiaúnicainteiraqueencontrei.

—Sóoquemedóié lembrarcomoeueraantes,emIquitos—disseLalita.—Osdentesbrancos,todosiguaizinhos,enenhumamarcanacara.

—Asenhoragostadeinventarcoisasparasofrer—disseNieves.—Porqueéqueopatrãonãodeixaqueoshuambisasseaproximemdaqui?Porquetodosadevoramcomosolhosquandopassa.

—OPantachatambém,evocê—disseLalita.—Masnãoporqueeusejabonita,esimporquesouaúnicacristã.

—Eusemprefuieducadocomasenhora—disseNieves.—PorquemecomparacomoPantacha?—VocêémelhorqueoPantacha—disseLalita.—Porissovimvisitá-lo.Nãoestámaiscomfebre?—Lembraquenãofuirecebê-lonocais?—disseFushía.—Quevocêveioemeencontrounacabana

daseringa?Foidessavez,velho.—Sim,lembro—disseAquilino.—Vocêpareciaestardormindoacordado.PenseiqueoPantacha

lhederaumainfusão.—Elembraquemeembebedeicomoanisadoquevocêtrouxe?—perguntouFushía.—Tambémlembrodisso—disseAquilino.—Vocêqueriaqueimarascabanasdoshuambisas.Parecia

odiabo,tivemosqueamarrá-lo.—Équetinhatentadoduranteunsdezdiasenãoconseguianadacomaquelacadela—disseFushía

—,nemcomaLalitanemcomasíndias,velho,umacoisadedoido,velho.Ficavachorandosozinho,velho,queriamematar,qualquercoisa,dezdiasseguidosenãoconseguianada,Aquilino.

—Nãochore,Fushía—disseAquilino.—Porquenãomecontouoqueestavaacontecendo?Talvezeutivesseajudadonaépoca.PoderíamosteridoaBagua,omédicolhedariainjeções.

— E minhas pernas ficavam dormentes, velho — disse Fushía —, eu batia nelas e nada, acendiafósforosepareciammortas,velho.

—Nãoseaflijamaiscomessascoisastristes—disseAquilino.—Venha,cheguemaispertodaborda,olhesóquantospeixinhosvoadores,dessesquetêmeletricidade.Vejacomonosseguem,quebonitasessasfaisquinhasnoaredebaixod’água.

—Edepoisequimoses,velho—disseFushía—,eunãopodiamais tirara roupana frentedaquelacadela.Precisavadisfarçarodiainteiro,anoiteinteira,enãotinhaaquemcontar,Aquilino,suportaressadesgraçasozinho.

E então arranharamo tabique eLalita se levantou.Foi até a janela e começou a resmungar, comorostoencostadonatelametálica.Láforaalguémtambémresmungava,suavemente.

—OAquilinoestádoentinho—disseLalita.—Ocoitadovomitatudooquecome.Voulávê-lo.Seamanhãeleaindanãotivervoltado,venholhefazeracomida.

—Tomaraquenãotenhavoltado—disseNieves.—Nãoprecisoqueasenhoracozinheparamim,bastaquevenhamever.

—Euotratodevocê,podemechamardevocêtambém—disseLalita.—Pelomenosquandonãohouverninguémporperto.

—Poderiapegarumbocadodelessetivesseumarede,Fushía—disseAquilino.—Querqueoajudealevantar-separaver?

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—Edepoisospés—disseFushía.—Andarmancando,velho,eentãodescascarfeitoascobras,maselastrocamdepeleeeunão,velho,eusóferida,Aquilino,nãoéjusto,nãoéjusto.

— Sei que não é justo — disse Aquilino. — Mas venha cá, homem, olhe como são bonitos ospeixinhoselétricos.

Tododia JuanaBaura eAntonia saíamdaGallinacera àmesmahora, faziam sempreomesmopercurso.Duasquadras retas,poeirentas, e estavamnoMercado: asvendedoras começavamaestender suasmantasembaixodasalfarrobeiras,aarrumarsuamercadoria.NaalturadalojaLasMaravillas—pentes,perfumes,blusas,saias,cintasebrincos—dobravamàesquerdae,duzentosmetrosadiante,surgiaaPraçadeArmas,uma roda compacta de palmeiras e tamarineiros. Elas chegavam pela travessa oposta ao La Estrella delNorte.Nocaminho,umadasmãosdeJuanaBauracumprimentavaosconhecidos,aoutraseguravaobraçodeAntonia.Chegandoàpraça,Juanaobservavaosbancosdevaretaseescolhiaomaisprotegidodosolparaa jovem. Se a garota ficasse quieta, a lavadeira voltava para casa andando suavemente, desamarrava seuburro,juntavaaroupaparalavareseguiarumoaorio.Se,pelocontrário,asmãosdaAntoniaapertavamassuas com ansiedade, Juana sentava-se ao seu lado e a acalmava com carinhos. Repetia sua silenciosainterrogaçãoatéqueagarotaadeixavapartir.Vinhabuscá-laaomeio-dia,comaroupajálavada,eàsvezesAntoniavoltavaparaaGallinaceramontadanoburro.NãoerararoqueJuanaBauraencontrasseajovemdandovoltasemtornodocoretocomumavizinhacarinhosa,nãoerararoqueumengraxate,ummendigoouJacintolhedissessem:levaramagarotaparaacasadefulano,paraaigreja,paraoMalecón.EntãoJuanaBauravoltavasozinhaparaaGallinaceraeAntoniaapareciaaoentardecer,demãosdadascomumacriadadeumricaçomaiscaritativo.

Nessediasaírammaiscedo,JuanaBauratinhaquelevarumuniformedeparadaaoQuartelGrau.OMercadoestavadeserto,unsurubusdormitavamemcimadotelhadodoLasMaravillas.Osvarredoresaindanãotinhampassadoeolixoeaspoçasexalavammaucheiro.NasolitáriaPraçadeArmassopravaumabrisatímidaevia-seosolnumcéusemnuvens.Nãocaíamaisareia.JuanaBaura limpouobancocomasaia,achou tranquilas as mãos da moça, deu-lhe uma palmada na bochecha e se foi. No caminho de volta,encontrouamulherdeHermógenesLeandro,odomatadouro,econtinuaramandandojuntasenquantoosolcrescianocéu,jálancetandoostetosaltosdacidade.Juanaiacurvada,esfregandoacinturadevezemquandoesuaamigavocêestádoenteeelasintocãibrasfaztempo,principalmentedemanhã.Falaramdedoençasederemédios,davelhice,decomoavidaédifícil.DepoisJuanasedespediu,entrouemcasa,saiupuxandooburroabarrotadoderoupasujaecomafarda,debaixodobraço,enroladaemexemplaresvelhosdeEcosyNoticias.FoiatéoQuartelGrauladeandooarealeaterraestavaquente,rápidasiguanaspassavamderepenteentreosseuspés.Umsoldadoveioaoseuencontro,otenenteestavaaborrecido,porquenãotrouxeraouniformemaiscedo.Arrancouopacotedassuasmãos,pagou,eentãoelasedirigiuparaorio.NãofoiatéaPonteVelha,ondecostumavalavarroupa,ficounumaprainharedonda,acimadomatadouro,onde encontrou duas outras lavadeiras. E as três passaram a manhã ajoelhadas na água, lavando econversando. Juana terminou primeiro, foi embora, e agora as ruas, deslumbrantes sob um sol vertical,estavam cheias demoradores e forasteiros.Não a encontrou na praça, nem osmendigos nem Jacinto atinham visto e Juana Baura voltou para a Gallinacera; suas mãos alternadamente batiam no animal eesfregavamaprópriacintura.Começouapendurararoupa,nomeiodotrabalhofoideitarnocolchãodepalha.Quandoabriuosolhos, jáestavacaindoareia.Correuparaoquintal,resmungando:algumaspeçastinhamsujado.Puxouotoldoqueprotegiaosvarais,terminoudependurararoupa,voltouparaoquarto,tateousobocolchãoatéencontraroremédio.Empapouumpanocomolíquido,levantouasaia,esfregouvigorosamentenosquadrisenabarriga.Oremédiotinhacheirodemijoevômito,Juanaesperouqueapelesecasse tapando o nariz. Preparou um guisado e, quando estava comendo, bateram na porta. Não era

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Antonia,masumaempregadacomumacestaderoupa.Empénasoleira,asduasconversaram.Choviafino,nãoseviamosgrãozinhosdeareia,maselaossentianorostoenosbraçoscomopatinhasdearanha.Juanafalavadecãibras,dosremédiosruinseaempregadaprotesta,eletemquelhedaroutroouentãodevolveroseudinheiro.Depoisfoiembora,ladeandoomuro,debaixodosbeirais.Sozinha,sentadanocolchão,Juanacontinuavadomingovoulánobarracodele,pensaquesóporquesouvelhavaimeenganar?,seuremédiofazaminhacinturatremer,ladrão.Depoisfoideitar,equandoacordoujáhaviaescurecido.Acendeuumavela,Antonianãotinhachegado.Foiparaoquintal,oburrolevantouasorelhas,zurrou.Juanapegouumamanta, jogou sobre os ombros, já na rua: estava escuro, pelas janelas da Gallinacera viam-se castiçais,lampiões,fogões.Andavamuitorápido,comocabelotododesgrenhadoe,pertodoMercado,numpórtico,alguémdisseumaaparição.Elaiatrotando,oumedáoutroremédioparaosonoquemevematodahora,ouentãodevolveomeudinheiro.Haviapoucagentenapraça.Perguntouatodomundoeninguémsabia.Aareiaagoradesciadensa,visível,eJuanacobriuabocaeonariz.Percorreumuitasruas,bateuemmuitasportas, repetiu vinte vezes amesma pergunta e, quando voltou à Praça de Armas, estava correndo comdificuldade,apoiando-senasparedes.Doishomensdechapéudepalhaconversavamsentadosnumbanco.ElaperguntouondeestáAntonia,eodoutorPedroZevallosboanoite,donaJuana,oqueestáfazendonarua a estas horas? E o outro, com voz de forasteiro, tanta areia que vai nos partir o crânio. O doutorZevallostirouochapéu,deu-oaJuanaeelaoenfiounacabeça;eragrande,cobriasuasorelhas.Odoutordisseéocansaçoquenãoadeixafalar,sente-seumpouco,donaJuana,conte,eelaondeestáAntonia.Osdoishomensseentreolharameooutrodisseémelhorlevá-laparacasaeodoutorsim,seiondefica,énaGallinacera.Pegaram-napelosbraços,levaram-naquasepeloare,debaixodochapéu,JuanaBaurarugia:agarotaqueécega,vocêsnãoviram?,eodoutorZevallosfiquetranquila,donaJuana,assimquechegarmosasenhoranosconta,eooutroquecheiroéesseeodoutorZevalloséremédiodecurandeiro,pobrevelha.

JulioReáteguilimpaatesta,olhaointérprete,tinhadesacatadoasuaautoridade,issonãosefazia,iapagarcaro:traduzaparaele.AclareiradeUrakusaépequenaetriangular,a florestaaabraçadeperto,galhosecipósbalançamsobreascabanaserguidasemcimadepilaresdepalmeiraeterminadasemcircunferênciasamassadas comoum rabode pato: o intérprete ruge e gesticula, Jumouve com atenção.Háumas vintemoradias, idênticas: teto de jarina, tabiques de tira de juçara amarrados com cipós, escadinhasgrosseiramenteescavadasemtroncos.Doissoldadosconversamnafrentedeumacabanacheiadeurakusasprisioneiros,outrosmontamasbarracaspertodaencosta,ocapitãoQuirogalutacontraospernilongoseameninapermanecetranquilaaoladodocaboRobertoDelgado,àsvezesolhaparaJum,temolhosclaroseno seu peito de garoto já se insinuam duas pequenas corolas escuras. Agora Jum fala, seus lábios roxosdisparam sons ásperos e cusparadas, Julio Reátegui recolhe as pernas para evitar a chuva de saliva e ointérprete cabo roubando, quer dizer querendo, quemerda caralho, e depois indo embora, fora, nuncamais, que lhe dando canoa, sua própria canoa, de Jum, e que o piloto indo embora, não vendo, que sejogouna água,dizendo, senhor.Eo caboDelgadodáumpassonadireçãode Jum:mentira.O capitãoQuiroga o detém comum gesto:mentira, senhor, ele fora ver sua família emBagua, iria perder temporoubando coisas desses aí?, e o que poderia roubar,mesmo se quisesse,meu capitão, estava vendo comoUrakusaeramiserável?Eocapitão:masentãonãoeraverdadequemataramorecruta.AfinalelesejogouounãonoMarañón?Porra,porquesenãoestavamortoeradesertor,eocabocruzaosdedoseosbeija:mataramosujeito,meucapitão,essahistóriaderouboeraamaiormentira.Eles sótinhamrevistadoumpouquinho,procurandoo remédioparapernilongoqueele tinhapedido,eentãoessesaíoamarrarameespancaram.Ele,oajudante,eopilototeriamsidomortoseenterradosparaqueninguémdescobrisse,meucapitão.JulioReáteguisorriparaameninaeestaoolhadelado,assustada?,curiosa?Estácomumatangaaguarunaeseuscabelosfartoseempoeiradosbalançamsuavementequandomexeacabeça;nãotemenfeites

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norostonemnosbraços,sónostornozelos:duasminúsculascabaças.EJulioReátegui:porquenãotinhacomerciadocomPedroEscabino?,porque este anonão lhevendeu seringa comonasoutras vezes?Quetraduzisse isso e o intérprete grunhe e gesticula, Jum ouve de braços cruzados e o governador indica àmeninaqueseaproxime,elalhedáascostas,eointérprete,senhor,nuncamais,dizendo:Escabinodiabo,vai,fora,nemUrakusa,dizendo,nemChicais,nenhumpovoaguaruna,patrãosacaneando,senhor,eJulioReátegui o que os urakusas iam fazer com o látex que não queriam vender para o patrão Escabino?,suavemente, semdeixardeolharparaamenina,eoscouros?, traduza isso.OintérpreteeJumgrunhem,cospemegesticulam,eagoraReáteguiosobserva,umpoucoinclinadoemdireçãoaourakusa,eameninadáumpasso,olhaa testadeJum:a ferida inchoumasnãoestásangrando,oolhodireitodocaciqueestámuito inflamado e Julio Reátegui cooperativa? Essa palavra não existia em aguaruna, filho, tinha faladocooperativa?E o intérprete: falou em espanhol, senhor, e o capitãoQuiroga sim, ele tinha ouvido.Quehistória era essa, senhorReátegui?Porquenão iammais comerciar comEscabino?Deonde tiraramessaideiadeirvenderaseringaemIquitosseelesnuncasouberamnemoqueeraIquitos?JulioReáteguipareceabstraído, tira o boné, alisa o cabelo, olha para o capitão: fazia dez anos que PedroEscabino lhes traziatecidos, espingardas, facas, capitão, tudo de que necessitavam para entrar na selva e trazer látex.DepoisEscabinovoltava,eleslheentregavamaseringaeelecompletavaopagamentocomtecidos,comida,oqueprecisassem, e este ano também receberam adiantamentosmas não quiseram vender: era essa a história,capitão.Ossoldadosquetinhamarmadoasbarracasseaproximam,umdelesesticaamãoetocanameninaquedáumpulo,ascabacinhasdançam,barulhodechocalhoseocapitão:ah,umabusodeconfiança,elenãoestavainformado,batiamnummilitar,extorquiamumcivil,nãoseriadeestranharquetivessemmesmomatadoorecrutaeogovernadoragarrem-na,nãoadeixemfugir.Trêssoldadoscorrematrásdamenina,queéágil,escorregadia.Afinalaapanhamnocentrodaclareiraealevamatéogovernador,estepassaamãoemseurosto:tinhaumolharesperto,umjeitogracioso,nãoachava,capitão?,eraumapenaqueacoitadafossecresceraquieooficial:realmente,donJulio,eosolhosdelaeramverdinhos.Erasuafilha?,quelheperguntasseissoeocapitão:nãotinhaabarriguinhainchada,porqueeraumacoisaterrívelnestascrianças,aquantidadedevermesqueengoliameocaboRobertoDelgado:pequeninaebemservida,boaparamascotedacompanhia,meucapitão,eossoldadosriem.Erasuafilha?,eointérpretenãosendo,senhor,tampoucourakusa,eraaguaruna,nascendoemPatoHuachana,senhor,dizendoeJulioReáteguichamadoissoldados:quealevassemparaasbarracasecuidadinhoparanãodaremcimadela.Umsoldadoseguraameninapelobraçoeelasedeixalevarsemresistir.JulioReáteguivira-separaocapitãoquelutadenovocontrainvisíveis,talvezimagináriosinimigosaéreos:umpessoalandouporaquidizendoqueeramprofessores,capitão.Iampara as tribos com o pretexto de ensinar espanhol aos pagãos e olhe só o resultado, agrediamum cabo,acabavamcomonegóciodePedroEscabino.O capitão imaginavaoque aconteceria se todos ospagãosdecidissemsacanearospatrõesque lhesderamadiantamento?Ocapitãocoçaoqueixo,gravemente:umacatástrofeeconômica?Ogovernadorconfirma:osquevinhamdeforaéquetraziamasencrencas,capitão.Da outra vez tinham sido uns estrangeiros, ingleses, com a conversa da botânica; entraram no mato elevaramsementesdeseringueira.Umdiaomundoficoucheiodeborrachaquevinhadascolôniasinglesas,maisbarataqueaperuanaeabrasileira,foiaruínadaAmazônia,capitão,eeleéverdade,senhorReátegui,que em Iquitos se apresentavam óperas e que os seringueiros acendiam seus charutos com notas? JulioReáteguisorri,oseupaitinhaumcozinheiroparaoscachorros,imaginesó,eocapitãori,ossoldadosriem,mas Jum continua sério, de braços cruzados, de vez em quando olha para a cabana cheia de urakusasprisioneiroseJulioReáteguisuspira:naqueletemposetrabalhavapoucoeseganhavamuito,agoraeletinhaquesuarparareceberumamiséria,eaindaprecisavalidarcomestagente,resolveressesproblemasbobos.Ocapitãoagoraestásério,donJulio,realmente,avidaeraduraparaoshomensdaAmazônia,eReátegui,comumavozsubitamentesevera,paraointérprete:oaguarunanãopodiavenderemIquitos,tinhaquecumprir

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osseuscompromissos,esseshomensdeforaosenganaram,nadadecooperativasnemdebesteiras.OpatrãoEscabino voltaria e eles iam comerciar como sempre, traduzindo isso mas o intérprete rápido demais,senhor,repetindomelhorzinhoeocapitãoelefaloudevagar,chegadegracinhas.JulioReáteguinãohaviapressa,capitão, iasatisfazeravontadedele.Ointérpreteresmungaegesticula,Jumouve,sopraumabrisaligeiraemUrakusaea ramagemdobosque ronrona suavemente,ouve-seumriso:ameninaeo soldadoestãobrincandoemfrenteàsbarracas.Ocapitãoperdeapaciência,atéquando?,sacodeoombrodeJum,tambémnãotinhaentendidodessavez?,estavadedeboche?,Jumlevantaacabeça,seuolhosadioexaminaogovernador, suamão aponta, sua boca grunhe, e JulioReátegui o que disse?, e o intérprete: insultando,senhor,vocêdiabosendo,dizendo,senhor.

Nãohavianinguémnocorredor,sóobarulhodosalão,a lâmpadapenduradanotetotinhaumcelofaneazulemvoltaeumaluzdeamanhecerbanhavaopapeldeparededesbotadoeasportasgêmeas.Josefinoseaproximou da primeira e escutou, da segunda, na terceira alguém estava ofegando, um catre rangialevemente,JosefinobateucomosdedoseavozdaSelváticaoquefoi?,eumadesconhecidavozmasculinaoque foi?Correu para o fundo do corredor e lá não era o amanhecer e sim o crepúsculo. Ficou imóvel,escondidonadiscretapenumbraedepoisuma fechadura rangeu,umacabeleiranegra invadiua luz azul,uma mão puxou-a como uma cortina, brilharam uns olhos verdes. Josefino se mostrou, fez um sinal.Minutos depois saiu um homem em mangas de camisa, que mergulhou cantarolando escada abaixo.Josefinoatravessouocorredoreentrounoquarto:aSelváticaestavaabotoandoumablusaamarela.

—Litumachegouestatarde—disseJosefino,comosedesseumaordem.—Estáláembaixo,comosLeón.

Um estremecimento repentino sacudiu o corpo da Selvática, suasmãos ficaram estáticas, encolhidasentreosbotões.Masnãosevirounemdissecoisanenhuma.

—Nãotenhamedo—disseJosefino.—Elenãovailhefazernada.Jásabe,enãoligou.Vamosdescerjuntos.

Ela não diz nada e continua abotoando a blusa, mas agora com uma grande lentidão, torcendodesajeitadamentecadabotãoantesdeenfiá-lo, comoseosdedosestivessemdurosde frio.E,noentanto,todooseurostotranspiravaeumasmanchasúmidastingiamablusanascostasenasaxilas.Oquartoeraminúsculo,semjanelas,iluminadoporumaúnicalâmpadavermelha,eozincoondulantedotetoroçavanacabeça de Josefino. A Selvática vestiu uma saia creme, lutou um instante com o fecho antes que esteobedecesse. Josefino inclinou-se, apanhou no chão uns sapatos brancos de salto alto e entregou-os àSelvática.

—Vocêestásuandodemedo—disse.—Limpeorosto.Nãoprecisaficarassustada.Virou-separa fecharaportae,quandogiroudenovo,aSelváticaoolhavanosolhos, sempiscar,de

lábios entreabertos, as narinas pulsandomuito rápido, como se não conseguisse respirar direito ou se derepenteestivessesentindoodoresfétidos.

—Você está bêbado?—perguntoudepois, comuma voz temerosa e vacilante, enquanto esfregavafuriosamenteabocacomumatoalhinha.

—Umpouco—disseJosefino.—EstávamoscomemorandoachegadadelenacasadosLeón.TrouxeumbompiscodeLima.

Saírame,nocorredor,aSelváticaandavadevagar,comamãoapoiadanaparede.—Parecementira, você aindanão se acostumoucomo salto—disse Josefino.—Oué a emoção,

Selvática?Elanãorespondeu.Natênueluzazul,seuslábiosretoseespessospareciamumpunhoapertadoesuas

feiçõeseramdurasemetálicas.Desceramaescadaeaoseuencontrochegavambaforadasdefumaçamornae

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de álcool, a luz diminuía, e quando o salão de baile surgiu aos seus pés, sombrio, ruidoso e lotado, aSelvática parou, ficou quase dobrada sobre o corrimão, seus olhos tinham crescido e revoavam sobre assilhuetasdifusascomumbrilhoselvagem.Josefinoapontouparaobar:

—Aoladodobalcão,aquelesqueestãobrindando.Nãooreconheceuporqueeleemagreceumuito.EstáentreoharpistaeosLeón,odeternobrilhante.

Tensa,segurandoocorrimão,aSelváticatinhaorostomeioescondidopeloscabeloseumarespiraçãoansiosaesibilanteinflavaoseupeito.Josefinopegou-apelobraço,mergulharamentreoscasaisabraçados,eera como se afundassem em águas lamacentas ou tivessem que abrir caminho através de uma muralhaasfixiante de carne suada, fedores e ruídos irreconhecíveis.O tambor e os pratos do Bolas tocavam umcorridoeàsvezesoviolãodoJovemAlejandrointervinhaeamúsicaseanimava,masquandoascordassecalavamvoltavaaficardesenxabidaeadquiriaumamarcialidadelúgubre.Emergiramdapistadedançaemfrenteaobar.JosefinosoltouaSelvática,aChungaseendireitounacadeiradebalanço,quatrocabeçasseviraramparaolhá-loseelespararam.OsLeónestavammuitoalegres,donAnselmodespenteado,comosóculoscaídos,eabocadeLituma,cheiadeespuma,pareciatorta,suamãoprocuravaobalcãoparalargarocopo,seusolhinhosnãoseafastavamdaSelvática,suaoutramãotinhacomeçadoaalisarocabelo,aajeitá-lopressurosaemecanicamente.Derepenteencontrouobalcão,suamãolivreafastouoMacacoetodooseucorposeadiantou,massódeuumpassoeficoucambaleandocomoumpiãosemforçasparasairdolugar,os olhinhos abobalhados, e os León o seguraram quando já estava caindo. Seu rosto não se alterou,continuavaolhandoparaaSelvática,respiroufundoesóquandojáiaavançandoatéeles,lentamente,comumbabadordeespumaesaliva,sustentadopelosLeón,umpoucotravado,hirtoedolorido,formou-seemseuslábiosumsimulacrodesorrisoeseuqueixotremeu.Prazeremvê-la,garota,eacaretatomoutodooseu rosto, seus olhinhos revelavam agora um mal-estar insuportável, prazer em vê-lo, Lituma, disse aSelvática,eeleprazeremvê-la,garota,cambaleando.OsLeóneJosefinoocercaram,subitamentesurgiuumbrilho nos olhinhos, uma espécie de libertação e Lituma se inclinou, aproximou-se de Josefino, olá,colegaquerido,caiuemseusbraços,queprazeremvê-loirmão.FicouabraçandoJosefino,emitindofrasesincompreensíveise,àsvezes,umsurdomugido,masquandoseseparoupareciamaissereno,nãoseviamaisanervosadançainteriornosseusolhinhosenemacareta,esorriadeverdade.ASelváticaestavaquieta,comasmãosentrelaçadasnafrentedasaia,orostoemboscadoatrásdasmechaspretasebrilhantes.

—Garota,afinalnosreencontramos—disseLituma,gaguejandoumpouco,comosorrisocadavezmaisaberto.—Venhacá,vamosbrindar,precisamosfestejaraminhavolta,souoinconquistávelnúmeroquatro.

ASelváticadeuumpasso em suadireção, sua cabeça semexeu,o cabelo se afastou,duas chaminhasverdesresplandeceramsuavementeemseusolhos.Litumaestendeuamão,pegou-apelosombros, levou-aatéobalcãoeláestavamosolhosabúlicoseimpertinentesdaChunga.DonAnselmoajeitouosóculos,suasmãostateavamnoar,quandoencontraramLitumaeaSelváticaosapalparamcarinhosamente,assiméqueeugosto,meninos,paternalmente.

—Anoitedosencontros,velhoquerido—disseLituma.—Osenhorviucomomecomporteibem.Enchaoscopos,ChungaChunguita,evocêtambémtomeum.

Esvaziouseucoponumsógoleeficouofegando,comorostoúmidodecerveja,desalivaquepingavanaslapelasimundasdopaletó.

—Quecoração,primo—disseoMacaco.—GrandecomooSol!—Alma,corazónyvida—disseLituma.—Queroouvirestavalsa,donAnselmo.Sejabonzinho,faça-

meessefavor.—Sim,nãoseesqueçadaorquestra—disseaChunga.—Lánofundoestãoprotestando,pedindo

porele.

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— Deixe-o um instantinho com a gente, Chunguita — disse a voz de José, pegajosa, adocicada,derretida.—Deixeestegrandeartistabeberunscopinhosconosco.

MasdonAnselmoderameia-voltaevoltavadocilmenteparaocantodosmúsicos,tateandonaparede,arrastandoospés,eLituma,aindaabraçadoàSelvática,bebiasemolharparaela.

—Vamoscantarohino—disseoMacaco.—UmcoraçãocomooSol,primo!AChungatambémcomeçouabeber.Indolenteseopacos,semimortos,seusolhosobservavamtodosos

presentes, os inconquistáveis e a Selvática, a massa escura de homens e moradoras que oscilava entremurmúrios e risos na pista de dança, os casais que subiam a escada, os grupos espalhados pelos cantos.Josefino,debruçadonobalcão,nãobebia,olhavadeladoparaosLeónquebrindavambatendooscopos.Eentãosoaramaharpa,oviolão,otambor,ospratos,umtremorpercorreuapistadedança.OsolhinhosdeLitumaseentusiasmaram:

—Alma,corazónyvida.Ah,essasvalsasmetrazemtantaslembranças.Vamosdançar,garota.ArrastouaSelváticasemolharparaela,osdoisseperderamentreoscorposaglomeradoseassombras,

osLeónmarcavamocompassocomasmãosecantavam.Quietoe incômodo,oolhardaChungaagorapermaneciafixoemJosefino,comosequisessecontagiar-lhesuainfinitapreguiça.

—Quemilagre,Chunguita—disseJosefino.—Bebendo.—Vocêestácomummedo—disseaChungae,poruminstante,umaluzinhazombeteirabrilhou

nosseusolhos.—Comoficouassustado,inconquistável.—Não tenho nenhummotivo parame assustar— disse Josefino.—E você viu como cumpro a

minhapalavra,nãohouveamenorconfusão.—Ummedomaior que você— riu aChungameio a contragosto—, ummedo que faz sua voz

tremer,Josefino.

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III

Aspernasnuasdosargentopendiamdaescadinhadopostoeemvoltatudoondulava,osmorrosflorestados,ospaus-mulatosdapraçadeSantaMaríadeNieva,atéoscasebresbalançavamcomoondascomapassagemdo vento morno e sibilante. O vilarejo estava em breu total e os guardas roncavam, nus debaixo dosmosquiteiros. O sargento acendeu um cigarro e dava as últimas tragadas quando, de repente, atrás dobosquezinhodejuncos,silenciosa,trazidapelaságuasdoNieva,apareceualancha,comsuapalhoçacônicanapopa,umassilhuetasevoluindonacoberta.Nãohavianeblinaedopostovia-seclaramenteocaisàluzdoluar.Umafigurinhasaltoudalancha,correuesquivandoasestacasdaprainha,desapareceunassombrasdapraçae,instantesdepois,jábempertodoposto,reapareceu,eagoraosargentopodiareconhecerorostode Lalita, seu andar decidido, sua cabeleira, seus braços fornidos remando ao lado das cadeirasmaciças.Ergueuotroncoeesperouqueelachegasseaopédaescadinha:

—Boanoite,sargento—disseLalita.—Aindabemqueoencontreiacordado.—Estoudeguarda,senhora—disseele.—Boanoite.Desculpe.—Porestardecueca?—riuLalita.—Nãosepreocupe,poracasoosíndiosnãoandampior?—Com este calor, eles têm razão em andar pelados—o sargento, quase de perfil, se escudava no

parapeito.—Masosinsetosfazemumbanquetecomagente,meucorpoestáardendo.Lalita jogou a cabeçapara trás e a luzda lamparinadoposto iluminou seu rosto cheiode espinhas,

incontáveiseressecadas,eocabelosoltotambémondulava,emsuascostas,comoummantoyaguadefiosfiníssimos.

—VamosparaPatoHuachana—disseLalita.—Temosumaniversário lá,os festejoscomeçamdemanhãzinha.Nãoconseguimossairantes.

—Masquealegria,senhora—disseosargento.—Tomemunscopinhosàminhasaúde.—Tambémlevamososmeninos—disseLalita.—MasaBonifacianãoquisir.Continuacommedo

degente,sargento.—Quegarotaboba—disseosargento.—Perderumaoportunidadedessas,étãorarohaverfestapor

aqui.—Vamos ficar láatéquarta-feira—disseLalita.—Seacoitadaprecisardealgumacoisa,o senhor

podeajudá-la?—Comtodoprazer,senhora—disseosargento.—Masasenhoraviu,nastrêsvezesquefuiàsua

casaelanemapareceunaporta.—Asmulheres sãomuitomanhosas—disseLalita—,aindanãopercebeu?Agoraqueestá sozinha,

nãolherestaoutroremédio,vaiterquesair.Dêumapassadinhalá,amanhã.—Semdúvida,senhora—disseosargento.—Sabequequandoalanchaapareceupenseiqueerao

barco-fantasma? O tal dos esqueletos, que leva os sonâmbulos. Eu não era supersticioso, mas aqui mecontagieicomvocês.

Lalita se persignou, fez umgestodeque se calasse, sargento, esqueceuque eles iamviajar denoite?,comofalavadessascoisas.Atéquartaentão,ah,eAdriánmandavalembranças.Afastou-secomotinhavindo,correndo,eosargento,antesdeentrarnopostoparasevestir,esperouqueafigurinhasedesenhasseoutravez entre as estacas e embarcasse na lancha: companheiro, estavam lhe preparando a arapuca. Vestiu acamisa,acalçaeossapatos,devagar,cercadopelarespiraçãotranquiladosguardasealanchajádeviaestarse

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afastandonadireçãodoMarañónentreascanoaseasbarcaças,comAdriánNievesnapopa,afundandoetirandoavara.Essepessoaldaselvaviajavacomcasaetudo,comoaquelevelho,oAquilino,seráquetinhamesmovinteanosderio?,quecostumes.Ouviu-seomotorroncar,umbramidopoderosoqueapagouosadejos e os rumores, o canto dos grilos, e depois foi diminuindo, afastando-se, e os sons do matoressuscitaramumapósooutro,reconquistaramanoite:agora,novamente,sóreinavaorunrumvegetaleanimal.Comumcigarroentreoslábios,acamisaarregaçadaatéoscotovelos,osargentodesceuaescadinhaespiando em todas as direções e foi até a cabana do tenente: uma respiração sufocada, quase trêmula,atravessava a tela metálica. Avançou pela trilha, depressa, em meio a grasnidos indiferenciados, pupilasluminosasdemochosoucorujaseamiúda,exasperadamelodiadosgrilos,sentindonapeletoquesfurtivos,espetadascomoquedealfinete,amassandomatinhostenrosquerangiam,folhassecasquesussurravamaosedesmanchar sob os seus pés. Ao chegar à cabana do piloto Nieves, virou-se: umas transparênciasesbranquiçadasdesvaneciamopovoado,masnoaltodascolinasaresidênciadasmadresreluzianitidamentecomsuasparedesclaras,seuszincosbrilhantes,etambémsedivisavaafachadadacapelaesuatorrefinaecinzenta,empinadaemdireçãoaovastovazioazul.Amuralhacirculardobosque,sempreagitadaporumsuavetremor,proferiasemtréguaumronronaridêntico,umaespéciedebocejoguturalinterminável,enapoçaondeospésdosargentoestavamsubmergidos,sanguessugasdecorposquentesegelatinososgolpeavamfurtivamenteseustornozelos.Eleseinclinou,molhouatesta,subiuaescadinha.Ointeriordocasebreestavaàsescuraseumodorintenso,diferentedocheirodobosque,emanavadasvigas,comosehouvessealirestosde comida ou algum cadáver decomposto e então, na chácara, um cachorro latiu. Alguém podia estarobservandoosargentopelaaberturaqueseparavaomurodoteto,duasdessasrumorosasluzinhaspodiamserolhosdemulherenãovaga-lumes:eraounãoeraummangache?,ondeestavaasuavalentia?Percorriaavaranda nas pontas dos pés, olhando para os lados, o cachorro continuava ganindo ao longe. A cortinaestavaabertaeonegroburacodocasebreexalavacheirosdensos.

—Souosargento,donAdrián—gritou.—Desculpeacordá-lo.Umsomdesajeitado,umaagitaçãoinstantâneaouumgemido,edenovoosilêncio.Osargentofoiaté

a soleira, levantou a lanterna e acendeu-a:umapequena lua amarela e redondavagounervosamenteporcimadejarrosdebarro,espigasdemilho,panelas,umbaldedeágua,donAdrián:osenhorestáaí?Precisofalar como senhor, donAdrián, e enquanto o sargento balbuciava, a lua escalava omuro leve e pálida,mostrandoprateleirascheiasdelatas,earrastando-sepelastábuasiaavidamentedeumbraseiroapagadoatéunsremos,deunscobertoresatéumrolodecordase,derepente,umacabeçaabaixando,unsjoelhos,doisbraçosquesedobram:boanoite,donAdriánnãoestava?Aluaparousobreovultodamulherencolhida,sualuzrançosatremiasobreunsquadrisimóveis.Porquefingiaqueestavadormindo?Osargentofalavaeelanão respondia,porque fazia isso,deudoispassoseacabeçamergulhoumaisumpoucoembaixodosbraços,porquê,senhorita:suapeleeratãoclaracomoodiscoqueapercorria,umaitípakrústicacobriaseucorpodos joelhos até os ombros.O sargento sabia tratar as pessoas, porque tinhamedodele, por acasovinha roubar? O sargento passou a mão por sua testa e a lua vibrou, enlouqueceu, a mulher tinhadesaparecidoeagoraaauréolaamarelaaprocurava, resgatavaunspés,uns tornozelos.Elacontinuavanamesmaposição,masagoraocorpodeitadodelatavaumcalafrio,ummovimentoqueserepetiaemlampejosmuitobreves.Elenãoeraladrão,sargentonãoeracoisapouca,tinhasalário,casaecomida,nãoprecisavaroubar de ninguém, e nem estava doente. Por que fazia isso, senhorita?Que se levantasse, ele só queriaconversar um pouco, para se conhecerem melhor, certo? Deu mais dois passos e se agachou. Ela haviaparadodetremereagoraeraumaformarígida,nãoaouviarespirar,porquetinhamedodele,diga,eosargento estendeu a mão, diga, temerosamente até seus cabelos, não precisava ter medo dele, garota, ocontatodeunsfilamentosásperosnagemadosdedose,comoumarevoluçãonasombra,umacoisaduraselevantou,bateu eo sargento caiu sentado, gesticulandono escuro.Porum segundoa luadesenhouuma

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silhuetaatravessandoasoleira,navarandaastábuasrangeramsobospésprecipitadosqueiamfugindo.Osargentosaiucorrendoeelaestavanooutroextremo,inclinadasobreoparapeito,sacudindoacabeçacomouma louca, garota, não vá se jogar no rio. O sargento escorregou, merda, e continuou correndo, estápensandooque,venhacá,garota, e ela continuavapulando,batendonoparapeito, atordoadacomouminseto aprisionado no vidro de um lampião. Não se jogava no rio nem lhe respondia, mas quando osargento segurou-a pelos ombros ela se virou e enfrentou-o como uma ferinha, garota, por que oarranhava?,otabiqueeoparapeitocomeçaramaranger,porqueomordia?,amortecendoosurdoofegardosdoiscorposlutando,masporqueoarranhava,garota?,eavozansiosa,estridentedamulher.Apele,acamisaeacalçadosargentoestavamúmidos,ohálitodobosqueeraumaondasolarqueoestavainvadindo,impregnando,garota.Jáconseguiraprendersuasmãos,comtodoocorpoesmagou-acontraomuroe,derepentederrubou-acomopéecaiujuntocomela,nãosemachucou,bobinha?Nochão,elaquasenãosedefendiaporémgemiamaisalto,eosargentopareciainflamado,garota,garota,diziapalavrõesapertandoosdentes,viu?Epoucoapoucoiamontandoemcimadela,mamita.Elesóvieraconversar,efoiela,bandida,foielaqueodeixouassim,garota,eembaixodoseucorpoocorpodelasemostravaarrediomasresignado.Mexeu-se levemente quando a mão do sargento puxou a itípak e arrancou-a, e depois ficou imóvelenquantoeleacariciavaseusombrosmolhados,osseios,acintura,garota:elaodeixavadoido,sonhavacomeladesdeoprimeirodia,porquetinhafugido?,bobinha,nãoestavaexcitadinhatambém?Elaàsvezesdavaum soluço, mas não resistia mais, estava dura e inerte, ou mole e inerte, mas apertava as coxas comobstinação, não seja boba, garota, por que fazia isso, diga?, que o abraçasse umpouquinho, e a boca dosargentopugnavaparasepararaqueles lábiossoldadosetodooseucorpocomeçouaondular,achocar-secontraooutro,garota,quemalvada,oqueestavafazendo,porquenãoqueriaeabriaaboquinha,aspernas,mamita:sonhavacomeladesdeoprimeirodia.Depoisosargentosossegouesuabocaseseparoudoslábiosfechados, seu corpo caiu para um lado e ficou deitado de costas nas tábuas, respirando comdificuldade.Quando abriu os olhos, ela estava em pé, olhando-o, e seus olhos fosforesciam na penumbra, semhostilidade, com uma espécie de assombro tranquilo.O sargento se levantou, apoiando-se no parapeito,esticouamãoeeladeixouquetocasseemseuscabelos,norosto,garota,olhecomootinhadeixado,quebobocaera,tirandoocorpo,eaabraçouebeijouagressivamente.Elanãoresistiue,instantesdepois,comacanhamento,suasmãospousaramnascostasdosargento,semforça,comoquedescansando,garota:nuncatinhaficadocomumhomem,diga?Elasearqueouumpouco,empinouocorpo,pôsabocanoouvidodosargento:nãotinhaficadoatéhoje,patrãozinho,não.

—EstávamosnorioApaga,oshuambisasencontraramumaspegadas—disseFushía.—Edeixeiaquelescachorrosmepassaremaperna.Temosque segui-los,patrão,devemestarcheiosde seringa,vãoentregartudooque juntaramnoano.Eu fuinaconversadelese seguimosaspegadas,masaquelescachorrosnãoestavamatrásdeseringa,queriamébriga.

— São huambisas — disse Aquilino. — Você já devia conhecê-los, Fushía. E foi assim queencontraramosshapras?

—Sim,àsmargensdoPushaga—disseFushía.—Nãotinhamnemumapeladelátex,emataramumhuambisa antes de desembarcar. Os outros ficaram furiosos e não conseguimos segurá-los. Você nemimagina,Aquilino.

—Claroque imagino,devemter feitoumacarnificinahorrível—disseAquilino.—Sãoospagãosmaisvingativos.Matarammuitos?

—Não,quasetodososshaprastiveramtempodecorrerparaomato—disseFushía.—Sóhaviaduasmulheresquandoentramos.Deumacortaramacabeça,eaoutraéaquevocêconhece.Masnãofoifácillevá-la para a ilha. Tive que puxar o revólver, eles também queriammatá-la. Foi assim que começou a

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históriadashapra,velho.Chegaram dois huambisas? Lalita correu para o povoado, com oAquilino agarrado na saia, e umas

mulheres estavam chorando e gritando: tinham matado um homem no Pushaga, patroa, os shapras otinhammatadocomumaflechaenvenenada.Eopatrãoeosoutros?Nãohouvenadacomeles,iamchegarmais tarde, vinham devagar, commuita carga que tinham embarcado numa aldeia aguaruna do Apaga.Lalitanãovoltouparaacabana,ficoujuntoàspaineirasolhandoparaalagoa,abocadocanal,esperandoqueaparecessem.Massecansoudeesperarefoiandarpelailha,comoAquilinoaindaagarradonasaia:otanquedastartarugas,ostrêscasebresdoscristãos,aaldeiahuambisa.Ospagãosjátinhamperdidoomedodas paineiras, viviam entre elas, tocando nos troncos, e as parentes domorto continuavam em prantos,rolandonochão.OAquilinocorreuparajuntodeumasvelhasqueestavamtrançandofolhasdeungurabi.Temosquetrocarostetos,diziam,senãoachuvavaientrarenosmolhar.

—Queidadetinhaashapraquandovocêalevouparaailha?—disseAquilino.—Eragarotinha,unsdozeanos—disseFushía.—Eeracabaço,Aquilino,ninguémtinhaencostado

nela. E não se comportava feito um animal, velho, ela respondia aos carinhos, era mimosa como umcachorrinho.

—CoitadadaLalita—disseAquilino.—Quecaradeveterfeitoquandooviuchegarcomela,Fushía.— Não tenha pena dessa cadela — disse Fushía. — Só lamento não ter feito essa ingrata sofrer

bastante.Eram ferozes, brigões?Talvez,mas bondosos comoAquilino.Ensinaramomenino a fazer flechas,

arpões,deixavam-nobrincarcomasvaretasqueestavamlixandoparafazerzarabatanas,epodiamserfracosem certas coisas,mas não foram eles que fizeramos barracos e os roçadinhos e asmantas?, não traziamcomidaquandoaslatasdedonAquilinoacabavam?EFushíaaindabemquesãopagãosesecontentamcomaslutasevinganças,setivéssemosquedividiroslucroscomelesficaríamospobres,eLalitaseficassemricosalgumdia,Fushía,seriagraçasaoshuambisas.

—Quandoeueramoço,emMoyobamba, iacomoutros rapazesespiarasmulheresdos lamistas—disseAquilino.—Àsvezesumaseafastavaenóspulávamosemcimasemverseeravelhaoujovem,bonitaoufeia.Masnuncaéigualcomumaíndiaquecomumacristã.

—Comessameaconteceuumacoisadiferente,velho—disseFushía.—Eunãogostavasódefodercomela,tambémgostavadeficarnaredecomelaefazê-larir.Ediziaquepenaeunãosabershapraparapoderconversar.

—Caramba,Fushía,vocêestásorrindo—disseAquilino.—Ésólembrardelaejáficamaiscontente.Oquegostariadedizeraela?

—Qualquercoisa—disseFushía—,comosechama,fiquedecostas,riaoutravez.Ouquemefizesseperguntassobreaminhavida,eeulhecontasse.

—Puxa,homem—disseAquilino.—Vocêseapaixonoupelaindiazinha.Nocomeçoeracomosenãoavissemouelanãoexistisse.Lalitapassavaecontinuavamamassandoo

tucumã,tirandoasfibrasenãolevantavamacabeça.Depois,asmulherescomeçaramasevirar,arircomela, mas não lhe respondiam e ela será que não entendiam? Fushía proibia que falassem com ela? MasbrincavamcomoAquilinoe,umavez,umahuambisacorreu,alcançou-osepôsumcolarde sementeseconchasnoAquilino,essahuambisaquefoiemborasemsedespedirenuncamaisvoltou.EFushía issoéque era opior, vinhamquandoqueriam, iamemboraquandobementendiam, voltavam semmaisnemmenosváriosmesesdepois:erahorrívellidarcomospagãos,Lalita.

— A coitada tinha pânico deles, quando via um huambisa se jogava aos meus pés e me abraçavatremendo—disseFushía.—Tinhamaismedodoshuambisasquedodiabo,velho.

—QuemsabeamulherquemataramnoPushagaeraamãedela—disseAquilino.—Edepois,você

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esqueceuquetodosospagãosodeiamoshuambisas?Elessãoorgulhosos,desprezamtodomundo,sãomaismalvadosquequalqueroutratribo.

—Prefirooshuambisasatodososoutros—disseFushía.—Nãosóporquemeajudaram.Gostodamaneiradeserdeles.Vocêjáviualgumhuambisacomocriadooupeão?Elesnãosedeixamexplorarpeloscristãos.Sógostamdecaçarelutar.

—Por issovãodesaparecer todos,nãovai sobrarumdeamostra—disseAquilino.—Masvocêosexplorouumbocado,Fushía.Todooestragoqueeles fizeramnoMorona,noPastazaenoSantiagoeraparavocêganhardinheiro.

—Eraeuquemconseguiaasarmaseoslevavaatéondeseusinimigosestavam—disseFushía.—Elesnãomeviamcomopatrãoesimcomoaliado.Oquevaiserdashapraagora.JáatomaramdoPantacha,nacerta.

Asparentesdomortocontinuavamchorandoesefuravamcomespinhosatésairsangue,patroa,éparadescansar,juntocomosangueruimiamemboraastristezaseossofrimentos,eLalitaquemsabeeramesmoverdade,algumdiaemqueestivessesofrendoelasefurariaparaver.Ederepenteoshomensemulheresselevantaramecorreramparaobarranco.Subiamnaspaineiras,apontavamparaalagoa,estavamchegando?Sim,dabocadocanalsaiuumacanoa,umponteiro,Fushía,muitacarga,outracanoa,Pantacha,Jum,maiscarga,huambisaseopilotoNieves.ELalitaolheAquilino,quantolátex,nuncatinhavistotanto,Deusosajudou, logo, logo ficariam ricos e iriampara oEquador, e oAquilino berrava, será que entendia?,mascoitadodohuambisaquetinhammatado.

—Deveterficadosemmulheresempatrão—disseFushía.—Ocoitadodevetermeprocuradoemtodososlados,coitado,deveterchoradoegritadodetristeza.

—Você não pode ter tanta pena doPantacha—disseAquilino.—Éum cristão irrecuperável, asinfusõesodeixarammaluco.Nemdeve terpercebidoquevocêsumiu.Quandochegueià ilha,naúltimavez,elenemsequermereconheceu.

—Quemvocêachaquemedeudecomerdesdequeaquelesmalditosforamembora?—disseFushía.—Elecozinhava,iacaçarepescarparamim.Eunãopodiamelevantar,velho,eeleotempotodoaoladodaminhacama,feitoumcachorro.Deveterchorado,velho,garanto.

—Atéeutomeiaquelasinfusões,umavez—disseAquilino.—MasoPantachaseviciouevaimorrerlogo.

Os huambisas descarregavam as pelas pretas, os couros, chapinhavam entre as canoas, Lalita davaadeusinhodobarranco,eentãoelaapareceu:nãoerahuambisa,nemaguaruna,epareciavestidadefesta:colaresverdes,amarelos,vermelhos,umdiademadepenas,discosnasorelhaseumaitípakcomprida,comestampas negras. As huambisas do barranco também a olhavam, shapra?, shapra, murmuravam e LalitapegouoAquilino, correuaté a cabana e sentou-sena escadinha.Estavamdemorando, ao longe se viaoshuambisaspassar,comolátexnoombro,eoPantachaestendendooscourosaosol.PorfimveioopilotoNieves,comochapéudepalhanamão:tinhamidolonge,patroa,eenfrentarammuitosredemoinhos,porissoaviagemduroutantoeelamaisdeummês.Tinhammatadoumhuambisa,noPushaga,eelajásabia,osquechegaramestamanhãjálhehaviamcontado.Opilotopôsochapéueentrounoseubarraco.MaistardechegouFushía,eashapraoseguia.Suacaratambémeradefesta,muitopintada,equandoelaandavachacoalhavam os brincos, os colares, Lalita: trouxera esta empregada para ela, uma shapra do Pushaga.Estavaassustadacomoshuambisas,nãoentendianada,tinhaquelheensinarumpoucodecristão.

—VocêsemprefalamaldoPantacha—disseFushía.—Sempretembomcoraçãocomtodomundo,velho,menoscomele.

—Euorecolhieleveiparaailha—disseAquilino.—Senãofossepormim,faztempoqueestariamorto.Maselemedánojo.Ficafeitoumanimal,Fushía.Piorainda,olhasemolhar,ouvesemouvir.

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— Eu não sinto nojo porque conheço a história dele — disse Fushía. — O Pantacha não tempersonalidadeequandosonhasesenteforteeesqueceumasdesgraçasquelheaconteceram,edeumamigoquemorreunoUcayali.Ondeoencontrou,velho?Porlá,maisoumenos?

— Mais abaixo, numa prainha — disse Aquilino. — Estava sonhando, seminu e morto de fome.Percebiqueestavafugindo.Entãolhedeicomidaeelelambeuasminhasmãos,igualaumcachorro,comovocêdiziaantes.

—Sirva-meumcopinho—disseFushía.—Eagoravoudormirvinteequatrohoras.Fizemosumaviagemmuitoruim,acanoadoPantachavirouantesdeentrarnocanal.EnoPushagativemosumpegacomosshapras.

—DêessaaíparaoPantachaouparaopiloto—disseLalita.—Eujátenhoempregadas,nãoprecisodela.Paraqueatrouxe?

—Paraajudarvocê—disseFushía.—Eporqueessescachorrosqueriammatá-la.MasLalitacomeçouachoramingar,poracasonãoeraumaboamulher?,nãootinhaacompanhadoo

tempo todo?, pensava que era boba?, não fazia sempre o que ele queria? E Fushía se despia, tranquilo,jogando a roupa para o alto, quem é quemandava aqui?, desde quando discutia com ele? E afinal, quemerda:ohomemnãoeracomoamulher, tinhaquevariarumpouco,elenãogostavadechoramingoe,alémdomais,porqueestavareclamando,ashapranãoiatirarnadadela,jádisse,iaserempregada.

—Você adeixoudesmaiada, sangrando—disseAquilino.—Euchegueiummêsdepois e aLalitaaindaestavacheiadeequimoses.

—Entãolhecontouqueeubatinela,masnãocontouquequeriamatarashapra—disseFushía.—Quandoeuestavaquaseadormecendo,viqueiapegarorevólveremedeuraiva.Alémdomais,essacadelasevingoudireitinhodasvezesquebatinela.

—ALalitatemumcoraçãodeouro—disseAquilino.—SefugiucomNieves,nãofoiparasevingardevocê,esimporamor.Esequismatarashapra,foiporciúmes,nãoporódio.Tambémficouamigadelamaistarde?

—Maisquedasachuales—disseFushía.—Vocênãoviu,poracaso?NãoqueriaqueeupassasseaoutraparaoNieves,diziaémelhorqueelafique,éaquemaismeajuda.EquandooNievespassou-aparaoPantacha,asduaschoraramjuntas.Ensinouashapraafalaremcristãoetudo.

—Asmulheressãoesquisitas,àsvezesédifícilentendê-las—disseAquilino.—Agoravamoscomerumpouco.Sóqueosfósforossemolharamnãoseicomoacenderestefogareiro.

Jáeravelha,moravasozinhaeseuúnicocompanheiroeraoburro,esseburrodepelagemamareladaeandarlento e faustoso, no qual toda manhã carregava os cestos com a roupa trazida na véspera das casas dosmaiorais.Assimqueachuvadeareiaparava,JuanaBaurasaíadaGallinaceracomumavaradealfarrobeiranamãocomaqual,dequandoemquando,estimulavaoanimal.ViravaondeamuretaseinterrompedoMalecón, descia aos pulinhos uma encosta poeirenta, passava embaixo dos suportes metálicos da PonteVelhaeseinstalavaondeoPiuracomeuumpedaçodamargemeformouumpequenoremanso.Sentadanumapedrado rio, comágua atéos joelhos, começava a lavar, e enquanto issooburro, como fariaumhomemociosooumuitocansado,deixava-secairnapraia fofa,dormia, tomavasol.Àsvezeshaviaoutraslavadeirascomquemconversar.Quandoestavasozinha,JuanaBauratorciaumatoalha,cantarolava,umasanáguas, essecurandeiro ladrãoquasememata, ensaboavaum lençol, amanhãéaprimeira sexta-feiradomês,padreGarcíamearrependodoquepequei.Oriotinhabranqueadoseustornozelosesuasmãos,quecontinuavamlisos,frescosejovens,masotempoenrugavaeescureciacadavezmaisorestodocorpo.Aoentrarnorio,seuspéscostumavamafundarnumleitodeareiamole;àsvezes,emlugardafracaresistênciahabitual,encontravamumamatériasólida,oualgoviscosoeescorregadiocomoumpeixepresonalama:só

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essasminúsculasdiferençasalteravamarotina idênticadasmanhãs.Masnaquele sábadoouviuderepenteumsoluçoàssuascostas,lancinanteemuitopróximo:perdeuoequilíbrio,caiusentadanaágua,ocestoquetinha na cabeça virou, as peças de roupa se afastavam flutuando. Resmungando, gesticulando, Juanarecuperou o cesto, as camisas, as cuecas e os vestidos, e então viu don Anselmo: estava com a cabeçaabaixada,entreasmãos,eaáguadamargemmolhavasuasbotas.Ocestocaiudenovonorioe,antesqueaáguao enchesse e afundasse, Juanaestavanapraia, ao ladodele.Confusa,balbucioualgumaspalavrasdesurpresa e de consolo, e don Anselmo continuava chorando sem levantar a cabeça. “Não chore”, diziaJuana,eorioseapoderavadaroupa,levando-asilenciosamente.“PorDeus,acalme-se,donAnselmo,oquehouve,estádoente?,odoutorZevallosmoraaliemfrente,querqueochame?,nãosabequesustomedeu.”Oburrotinhaabertoosolhos,olhavaacenaobliquamente.DonAnselmodeviaterchegadoalihaviaumbomtempo,suacalça,suacamisaeseuscabelosestavamsalpicadosdeareia,ochapéuaoladodosseuspésquasecobertodeterra.“Pelomaissagrado,donAnselmo”,diziaJuana,“oquehácomosenhor,deveserumacoisamuitotristeparaficarchorandoassimfeitomulher”.EJuanasepersignouquandoelelevantouacabeça:pálpebras inchadas,grandesolheiras,barbacrescidae suja.EJuana“donAnselmo,donAnselmo,será que posso ajudá-lo”, e ele “senhora, eu a estava esperando” e sua voz se cortou. “A mim, donAnselmo?”,disseJuana,deolhosarregalados.Eeleassentiu,pôsdenovoacabeçaentreosbraços,soluçoueela“mas,donAnselmo”,eeleuivou“aAntoninhamorreu,donaJuana”,eela“oqueestádizendo,meuDeus,oqueestádizendo?”,eele“moravacomigo,nãomeodeie”,esuavozsequebrou.Entãoestendeuobraçocomgrandeesforçoeapontouparaoareal:aconstruçãoverderelampejavasobocéuazul.MasJuanaBauranãoavia.AostropeçõeschegavaaoMalecón,corriaegritavaespavorida.Quandopassavaasjanelasseabriameapareciamrostossurpresos.

Julio Reátegui levanta a mão: chega, que fosse embora. O cabo Roberto Delgado se endireita, solta acorreia, limpao rosto congestionado e suado eo capitãoQuiroga: foiumexagero, você é surdoounãoentendeasordens?Aproxima-sedourakusadeitado,empurracomopé,ohomemgemedebilmente.Estavafingindo,meucapitão,queriabancaroespertinho,osenhoriaver.Ocabopragueja,esfregaasmãos,tomaimpulso, chuta e, no segundo pontapé, o aguaruna pula como um felino, caramba, o cabo tinha razão,sujeitoresistente,ecorreveloz,bronzeado,agachado,ocapitãopensavaqueeletinhaseexcedido.Sórestavaum, senhorReátegui, e alémdo Jum, ele também?Não, esse teimoso ia ser levadopara SantaMaría deNieva, capitão. JulioReáteguibebeumgoledocantil e cospe:que trouxessemooutroe acabassem logocomaquilo,capitão,nãoestavacansado?Queriaumgolinho?OcaboRobertoDelgadoedoissoldadosvãoatéacabanadosprisioneiros,nocentrodaclareira.Umsoluçoquebraosilênciodaaldeiaetodosolhamparaasbarracas:ameninaeumsoldadoestãoforcejandopertodobarranco,esfumadocontraumcéuquejáescurece.JulioReáteguilevanta-se,põeasmãosemconcha:oquefoiqueeulhedisse,soldado?Queelanãovisse,porquenãoalevavaparaabarracaeocapitãoqueporra!,opunhoemalto:quebrincassecomela,queadistraísse.UmachuvamiúdacaisobreaspalhoçasdeUrakusaedobarrancosobemnuvenzinhasdevapor,omatomandabaforadasdearquenteparaaclareira,océujáestácheiodeestrelas.OsoldadoeameninadesaparecemdentrodeumabarracaeocaboRobertoDelgadoedoissoldadoschegamarrastandoumurakusaqueparadiantedocapitãoegrunhealgumacoisa.JulioReáteguifazumgestoparaointérprete:castigopordesrespeitaraautoridade,nuncamaisbaternumsoldado,nuncaenganandopatrãoEscabino,senãovoltariameocastigoseriapior.Ointérpreteberraegesticulae,enquantoisso,ocaborespirafundo,esfrega as mãos, pega a correia, senhor. Traduzindo?, sim, entendendo?, sim e o urakusa, baixinho,barrigudo,andadeumladoparaoutro,pulacomoumgrilo,olhatorto,tentasairdocírculoeossoldadosgiram,viramumredemoinho,puxam,empurram.Porfimohomemficaimóvel,tapaorostoeseencolhe.Aguentafirmeporumbomtempoempé,rugindoacadacorreada,depoisdesabaeogovernadorlevantaa

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mão:quefosseembora,jáestavamprontososmosquiteiros?Sim,donJulio,tudopronto,mascomousemmosquiteirostinhamdevoradoacaradocapitãoaviagemtoda,estavaardendo,eogovernadorcuidadinhocomJum,capitão,nãovádeixá-losozinho.OcaboDelgadori:nãoiaescaparnemsefossebruxo,senhor,estava amarrado e além do mais montariam guarda a noite toda. Sentado no chão, o urakusa olha deesguelha para um e para outro. Não está mais chovendo, os soldados trazem lenha seca, acendem umafogueira,brotamchamasaltaspertodoaguarunaquecoçasuavementeopeitoeascostas.Oqueesperava,maisaçoites?Ouvem-serisosentreossoldados,eogovernadoreocapitãoolhamparaeles.Estãodecócorasemfrenteàfogueira,ocrepitardaschamasruborizaedeformaseusrostos.Porqueessesrisinhos?Venhacá,você, eo intérprete se aproxima: enjoado ficando.Meucapitão.Ooficialnãoentendia,que falassemaisclaroeJulioReáteguisorri:eraomaridodeumadasmulheresdacabana,eocapitãoah,porissoobandidonão ia embora, agora entendia. Era verdade, Julio Reátegui também tinha se esquecido dessas damas,capitão. Sigilosos, simultâneos, os soldados se levantam e se aproximam apinhados do governador: olhosfixos, bocas tensas, olhares ardentes.Mas o governador era a autoridade, don Julio, tinha que tomar asdecisões,ocapitãoeraumsimplesexecutor.JulioReáteguiexaminaossoldadosenquistadosunsnosoutros;acimadoscorposindiferenciados,ascabeçasvêmavançadasnasuadireção,olumedafogueiraresplandecenasbochechasenastestas.Nãosorriemnembaixamosolhos,esperamimóveis,asbocasentreabertas,ora,ogovernador encolhe os ombros, se insistiam tanto. Impreciso, anônimo, ummurmúrio vibra acima dascabeças, a roda de soldados se cinde em silhuetas, sombras que atravessam a clareira, sons de pisadas, ocapitãotosseeJulioReáteguifazumaexpressãodesalentada:estesaíjáerammeiocivilizados,capitão,eolhecomoficavamporcausadeunsespantalhoscheiosdepiolhos,nuncaiaentenderoshomens.Ocapitãotemumataquedetosse,masnaselvaelesnãopassamtantasprivações,donJulio?,eseabanafrenéticoemvoltado rosto, não há mulheres na selva, eles pegam o que aparece, dá uma palmada na testa, e por fim rinervoso:asmaisnovinhastinhampeitodenegra.JulioReáteguilevantaorosto,buscaosolhosdocapitão,esteficasério:naturalmente,capitão,istotambéméverdade,quemsabeestavaficandovelho,sefossemaisjovem,quem sabenão iria tambémcomos soldados láonde estão essasdamas.Ocapitão agorabatenorosto,nosbraços,donJulio,iadormir,osinsetosoestavamdevorando,achavaatéquetinhaengolidoum,àsvezestinhapesadelos,donJulio,comnuvensdemosquitosqueoatacavam.JulioReátegui lhedáumapalmadinhanobraço:emNievaialhearranjaralgumremédio,seriapiorseficasseláfora,denoitehaviatantos,quedormissebem.OcapitãoQuirogasedirigeparaasbarracasempassoslargos,suatosseseperdeentreasgargalhadas,palavrõesechorosqueexplodemnanoitedeUrakusacomoecosdeumalongínquafestaviril.JulioReáteguiacendeumcigarro:ourakusacontinuasentadoàsuafrente,observando-odelado.Reáteguisoltaafumaçaparacima,hámuitasestrelaseocéuéummardetinta,afumaçasobe,espalha-se,dissolve-se,eaosseuspésafogueirajáestábocejandocomoumcachorrovelho.Agoraourakusasemove,rastejando,tomandoimpulsocomospés,parecenadarembaixodaágua.Maistarde,quandoafogueirajáestáapagada,ouve-seumgrito,aoladodacabana?,brevíssimo,não,dasbarracas,eJulioReáteguicomeçaacorrer,umadasmãossegurandoochapéu,jogaocigarroaovento,sempararentranabarracaeosgritosseinterrompem, um catre range e na escuridão há uma respiração alarmada: quem estava lá?, o senhor,capitão?Ameninaestavaassustada,donJulio,eelevieraver,parecequeosoldadoatinhaassustadomasocapitãojálhedeuumesporro.Saemdabarraca,ocapitãoofereceumcigarroaogovernadoreesterecusa:ele seencarregavadamenina,capitão,nãoprecisavasepreocupar,quefossedeitar-se.Ocapitãoentranabarraca ao ladoe JulioReátegui, tateando, volta ao catrede campanha, senta-senaponta.Suamão tocasuavemente num corpinho rígido, percorre as costas nuas, os cabelos ressecados: pronto, pronto, nãoprecisavamais termedodaquelebruto, já tinha ido embora aquelebruto, aindabemque ela gritou, emSantaMaría deNieva ficaria contente, ia ver, as freirinhas erammuito boas, iam cuidar dela, a senhoraReáteguitambémiacuidardela.Suamãoacariciaoscabelos,ascostas,atéqueocorpodameninaamolecee

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suarespiraçãosetranquiliza.Naclareiracontinuamosgritos,palavrõesmais inflamadosebaforadas,ehácorridasesilênciosbruscos:pronto,pronto,pobrecriança,quedormisseagora,eleiatomarcontadela.

Amúsica tinha terminado, os León aplaudiam, Lituma e a Selvática voltaram para o balcão, a Chungaenchiaoscopos,Josefinocontinuavabebendosozinho.Sobosjorrinhosanódinosdeluzazul,verdeeroxa,algunscasaiscontinuavamnapista,evoluindocomarmaquinaleletárgico,aocompassodosmurmúriosediálogosemvolta.Tambémhaviapoucagentenasmesasdoscantos;amaioriadoshomensemoradorasetoda a euforia da noite se concentravam no bar. Amontoados e barulhentos, todos bebiam cerveja, asgargalhadasdamulataSandrapareciamalaridoseumgordodebigodeeóculosempunhavaocopoamarelocomoumabandeira,eleestiveranacampanhadoEquadorcomosoldadoraso,simsenhor,enãoesqueciaafome,ospiolhos,oheroísmodoscaboclos,nemosbichos-do-péquesemetiampelasunhasenãosaíampornada no mundo, sim senhor, e o Macaco, subitamente, em altos brados: viva o Equador! Homens emulheres emudeceram,osolhos risonhosdoMacacodistribuíampiscadasmaliciosas a tortoeadireitoe,após alguns segundos de indecisão e de estupor, o gordo afastou José, segurou o Macaco pelas lapelas,sacudiu-ocomoumtrapo,porquesemetiacomele?,querepetissesetivessecolhões,sefossemacho,eoMacacoajeitavaaroupa.

—Nãoadmitopiadascomopatriotismo,amigo—ogordobatianascostasdoMacaco,semrancor.—Vocêmesacaneou,deixeeulhepagarumabebida.

—Comoeugostodavida!—disseJosé.—Vamoscantarohino.Todossejuntaramnumarodae,apertadoscontraobalcão,exigiammaiscervejas.Assim,exultantese

gregários, com os olhos ébrios, a voz berrante,molhados de suor, beberam, fumaram, discutiram e umjovem vesgo, de cabelos espetados como uma escova, abraçava amulata Sandra, quero lhe apresentar aminhafutura,companheiro,eelaabriaaboca,mostravaasgengivasvermelhasevorazes,osdentesdeouro,trêmuladetantorir.Derepente,pulouemcimadojovemcomoumgrandefelino,beijouavidamentesuabocaeele sedebatiaentre seusbraçosnegros,eracomoumamoscanumateiadearanha,protestava.Osinconquistáveis trocaramolhares cúmplices, zombeteiros, seguraramo vesgo, imobilizaram-no, aqui está,Sandra, de presente, pode comê-lo cru, ela o beijava, mordia, e uma espécie de entusiasmo convulsivotomou o grupo, novos casais se agregavam e até os músicos saíram do seu canto. De longe, o JovemAlejandro sorria languidamente e donAnselmo, seguidopeloBolas, ia de um ladopara outro, excitado,farejandoaagitação,oquefoi,oqueaconteceu,conte.Sandrasoltousuapresa,equandoovesgopassouolenço pelo rosto ficou todo borrado de batom, como um palhaço, e os outros lhe deram um copo decerveja,elederramouabebidanorosto,foiaplaudidoe,derepente,Josefinocomeçouaprocuraralgumacoisa nomeio do tumulto. Erguia-se, tornava a se abaixar, acabou saindo do círculo, rondou pelo salãoderrubandocadeiras,sumindoedelineando-senoarviciadoeenfumaçado.Voltoucorrendoparaobalcão.

—Eutinharazão,inconquistável—disseabocasemlábiosdaChunga.—Vocêestácomodiabonocorpo.

—Ondeelesforam,Chunguita?Subiram?—Nãoéproblemaseu—osolhoshirtosdaChungaoesquadrinhavamcomosefosseuminseto.—

Estácomciúme?—Eleaestámatando—disseJosé,comoumaassombração,puxandoJosefinopelobraço.—Venha

voando.Atravessaramogrupoaosempurrões,oMacacoestavanaportacomamãoapontandoparaastrevas,

nadireçãodoQuartelGrau.Saíramdesembestadosporentreosbarracosdaperiferiaquepareciamdesertos,depois entraram no areal e Josefino tropeçou, caiu, levantou-se, continuou correndo, e agora os pésafundavamnaterra,oventovinhadefrenteeformavaescurosredemoinhosdeareia,etinhaquecorrerde

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olhos fechados, contendo a respiração para seu peito não estourar. “A culpa é daqueles merdas”, rugiuJosefino,“elessedescuidaram”,epoucodepois,comavozentrecortada,“masatéonde,porra”,quandojásurgiaàsuafrenteumasilhuetaintermediáriaentreaareiaeasestrelas,umasombramaciçaevingativa:

—Pareporaqui,chega,seudesgraçado,cachorro,falsoamigo.—Macaco!—gritouJosefino.—José!MasosLeóntambémseatiraramcontraelee,comoLituma,soltavamospunhoseospéseascabeças.

Eleestavaajoelhadoe,àsuavolta,tudoeracegoeferoz,equandoqueriaselevantareescapardavertiginosasaraivadadepancadasumoutrochuteoderrubava,umsocooencolhia,umamãopuxavaoseucabeloeeletinhaquelevantarorostoeoferecê-loaosgolpeseàsbicadasdaareiaquepareciaentraremtorrentesporseunarizepor suaboca.Depoiseracomoseumamatilha rosnadoraeextenuadaestivesseali, rondandoumaferavencida,aindaquente,farejando,vezporoutraseexasperando,mordendo-asemvontade.

—Estásemexendo—disseLituma.—Sejahomem,Josefino,querovervocê,levante-se!—DeveestarconhecendoasTrêsMariasdeperto,primo—disseoMacaco.—Deixe-o,Lituma—disseJosé.—Vocêjáfezoquequeria.Nãoprecisademaisvingança.Nãovê

queelepodemorrer?—Vocêiriadenovoparaacadeia,primo—disseoMacaco.—Chega,nãosejateimoso.—Paunele,paunele—aSelváticaseaproximou,suavoznãoeraviolenta,erasurda.—Paunele,

Lituma.Mas, em vez de fazer o que lhe pedia, Lituma virou-se contra ela, derrubou-a na areia com um

empurrão e aospontapés, suaputa, desgraçada, seteporras, xingando-a atéqueperdeu a voz e as forças.Entãocaiunaareiaecomeçouasoluçarcomoumacriança.

—Primo,peloamordeDeus,acalme-se.— Vocês também têm culpa — gemia Lituma. — Todos me enganaram. Desgraçados, traidores,

deveriammorrerderemorso.—PoracasonãotiramososujeitodaCasaVerde,Lituma?Poracasonãoajudamosabater?Sozinho

vocênãoconseguiria.—Nósjávingamosvocê,priminho.EatéaSelvática,vêcomoelaoarranha?—Estoufalandodeantes—diziaLituma,entreespasmosesoluços.—Todomundosabendoeeulá,

semideiadenada,feitoumimbecil.—Primo,homemnãochora.Nãofiqueassim.Nóssempregostamosdevocê.—Oquepassou,passou,irmão.Sejahomem,sejamangache,nãochore.A Selvática havia se afastado de Josefino que, encolhido no chão, gemia baixinho, e ela e os León

animavamLituma,que tivesse fibra, oshomens crescemcomasdesgraças, e o abraçavam, limpavam suaroupa,tudoesquecido?,começamosdenovo?,irmão,primo,Lituma.Elebalbuciava,aindanãototalmenteconsolado,àsvezesseenfureciaechutavaohomemnochão,depoissorria,ficavatriste.

—Vamos,Lituma—disseJosé.—Talveztenhamnosvistoporaqui.Sechamaremosmilicosestamosencrencados.

—ParaaMangachería,priminho—disseoMacaco.—Podemosacabaraquelepiscoquevocêtrouxe,vailevantaroseuânimo.

—Não—disseLituma.—QuerovoltarparaacasadaChunga.Começouaandarpeloareal,empassosresolutos.QuandoaSelváticaeosLeónoalcançaramentreos

barracosdobairro,LitumahaviacomeçadoaassobiarfuriosamenteeJosefinovinhamaisatrás,mancando,reclamandoevociferando.

—Istoaquiestápegandofogo—oMacacosegurouaportaparaqueosoutrosentrassemprimeiro.—Sófaltamosnós.

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Ogordodebigodeeóculosveiorecebê-los:—Saúde,saudações,companheiros.Porquesumiramassim?Venham,anoiteestácomeçando.—Música,harpista—exclamouLituma.—Valsas,tonderos,marineras.Foicambaleandoatéocantodaorquestra,caiunosbraçosdoBolasedoJovemAlejandro,enquantoo

gordoeo rapazvesgoarrastavamosLeónatéobare lhesofereciamcoposdecerveja.SandraajeitavaoscabelosdaSelvática,RitaeMaribelabombardeavamcomperguntaseasquatrocochichavamcomovespas.Aorquestracomeçouatocar,obalcãoficouvazio,meiadúziadecasaisdançavanapistaentreasauréolasdeluzazul,verdeeroxa.Litumachegouaobalcãomorrendoderir:

—Chunga,Chunguita,avingançaédoce.Ouviu?Eleestá lá fora,berrando,nãoseatreveaentrar.Ficouquasemorto.

—Nãomeinteressoporhistóriasdeninguém—disseaChunga.—Masvocêssãoaminhadesgraça.Fuimultadanaoutravezporsuaculpa.Aindabemqueagoraaconfusãonãofoinaminhacasa.Oquevaibeber?Aqui,quemnãoconsomenãofica.

—Querespostamaisgrossa,Chunguita—disseLituma.—Maseuestoucontente,sirvaoquequiser.Eparavocêtambém,porminhaconta.

AgoraogordoquerialevaraSelváticaparaapistadedançaeelaresistia,mostravaosdentes.—Oquehácomestadona,Chunga?—perguntouogordo,bufando.— O que é que você tem? — disse a Chunga. — Estão convidando você para dançar, não seja

malcriada,porquenãoaceita?MasaSelváticacontinuavalutando:—Lituma,digaaeleparamesoltar.—Nãoasolte,companheiro—disseLituma.—Evocê,façaoseutrabalho,puta.

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Três

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Otenentesódeixadedaradeusquandoaembarcaçãonãopassadeumaluzinhabrancanorio.Osguardaspõemasmalasnosombros,sobematéocais,paramnapraçadaSantaMaríadeNievaeosargentoapontaparaosmorros:entreasdunasflorestadasbrilhamparedesbrancas,zincos,alieraamissão,meutenente,aladeirinha pedregosa estava vazia, aquilo ali era chamado de residência, lá moravam as freirinhas, meutenente,eàesquerdaacapela.Silhuetasindígenascirculampelopovoado,ostetosdascabanassãofeitosdefibravegetaleparecemcapuzes.Mulheresdecorposenlameadoseolhosindolentesmoemalgumacoisaaopédedois troncosdescascados.Continuamandando e o oficial se vira para o sargento: quasenão tinhaconseguidofalarcomotenenteCipriano,porquenãoficoupelomenosparalhepassarasinformações?Équesenãoaproveitassealanchateriaqueesperarummês,meutenente,eotenenteCiprianoestavadoidoparairembora.Quenãosepreocupasse,osargentolhepassariatudonuminstantinhoeoLourodeixaumadasmalasnochãoemostraocasebre:aliestava,meutenente,adelegaciadepolíciamaispobredoPeru,eoPesado aquela ali na frente seria a sua casa,meu tenente, e oPequenomais tarde lhe conseguiriamduasempregadasaguarunas,eoEscuroempregadaeraaúnicacoisaquehaviadesobranestepovoadoperdido.Ao passar, o tenente bate no escudo pendurado numa viga e ouve-se um sommetálico. A escadinha dacabana não tem corrimão, as tábuas do assoalho e do tabique são grosseiras, irregulares, e no primeiroaposentovêcadeirasdevime,umaescrivaninha,umaflâmuladesbotada.Aofundoumaportaestáaberta:quatro redes, alguns fuzis,umfogareiro,uma lixeira,quemiséria.O tenentenãoqueriaumacervejinha?Deviamestargeladas,tinhamcolocadonobalded’águademanhãcedo.OoficialaceitaeoPequenoeoEscurosaemdacabana—ogovernadorsechamavaFabioCuesta?;sim,umvelhosimpático,masquefossecumprimentá-lomaistarde,meutenente,aestahorafaziaasesta—evoltamcomcoposegarrafas.Bebem,o sargentobrindapelo tenente, os guardasperguntamporLima,ooficial quer saber como éopovodeSantaMaríadeNieva,queméquem,boaspessoasasfreirinhasdamissão?,eseosíndiosdãodordecabeça.Bem,continuariamaconversaànoite,o tenentequeriadescansarumpouco.Eles tinhamencomendadouma comidinha especial ao Paredes,meu tenente, para festejar a sua chegada, e o Louro era o dono dacantina,meu tenente, onde todos comiam, e o Escuro também carpinteiro e o Pesado alémdissomeiobruxo,ele ia lheapresentar,boagenteesseParedes.Osguardas levamasmalasparaacabanafronteira,ooficialsegueatrásbocejando,entraesedeitanocatrequeocupaocentrodoquarto.Despede-sedosargentocomumavozsonolenta.Semse levantar, tiraoquepe,os sapatos.Tudocheiraapoeiraea fumonegro.Não hámuitosmóveis: uma cômoda, dois banquinhos, umamesa, um lampião pendurado no teto. Asjanelastêmtelametálica:asmulherescontinuammoendonapraça.Otenenteselevanta,ooutroaposentoestávazioetemumapequenaporta.Abre:osoloestádoismetrosabaixo,escondidopormoitaseapoucospassosdacabanajáématofechado.Desabotoaacalça,urinaequandovoltaaoprimeiroquartoosargentoestá ládenovo:outravezessedesgraçado,meutenente,umaguarunaquesechamaJum.Eointérprete:diabodizendo, aguaruna, soldadomentindo, e silabariolimae limagoverno.Senhor.ArévaloBenzasolhapara cima protegendo os olhos com asmãos, não era nada estúpido, don Julio, o pagão queria fazê-lospensar que estava louco,mas Julio Reátegui nega com a cabeça: não era isso, Arévalo, repetia amesmacantilenaotempotodo,ele jásabiadecor.Tinhametidonacabeçaessahistóriadesilabários,masquemdiaboentendia.OsolvermelhoeardenteabraçaSantaMaríadeNievaeossoldados, indígenasepatrõesaglomeradosemvoltadospaus-mulatospiscam,suamemurmuram.ManuelÁguilaseabanacomumlequedepalha:estavacansado,donJulio?TiveramuitotrabalhoemUrakusa?Umpouco,depoiscontariacommaiscalma,agoraReáteguiprecisavairuminstanteatéamissão,jávoltava,eelesconcordam:iamesperá-lo

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na casa de Governo, o capitão Quiroga e Escabino já estavam lá. E o intérprete: indo e vindo,pilotofugindo,urakusapatria,caralho,bandeiragoverno.ManuelÁguilausaolequecomoescudocontraosol,masmesmo assim lacrimeja: que não se canse, era à toa, quem fazia, pagava, intérprete, traduzindoaquilo.Otenenteabotoaacalçacomcalma,eosargentopasseiapeloquarto,demãosnosbolsos:nãoeraaprimeiravezquevinha,meutenente.Umbocadodevezesjá,atéodiaemqueotenenteCiprianoseirritoue lhe pregou um susto, só assim o pagão deixou de vir.Mas que esperto, na certa soube que o tenenteCiprianoiaemboradeSantaMaríadeNievaeveiocorrendoverseconseguiaalgumacoisacomonovotenente.Ooficialterminadeamarrarossapatos,ficaempé.Pelomenoseraamigável?Osargentofazumgestovago:nãofaziamaldadesmas,issosim,eraateimosiaambulante,umamula,ninguémtiravaoqueelemetia na cachola.Quando foi essa confusão?Quando o senhor JulioReátegui era governador, antes deexistirumadelegaciaemNieva,eotenentefechaaportadacabanacomfúria,eraocúmulo,nãopassaramnemduashorasdesdequechegaraejátinhatrabalho,oíndiopodiateraguentadoatéamanhã,nãopodia?Eo intérprete: cabodelgadodiabo!Diabo capitãoartemio!Meu cabo.Mas o caboRobertoDelgadonão sezanga, ri como riem os soldados e também alguns indígenas: que continuasse bancando o malvado,insultandoaeleeaocapitão,quecontinuasse,veríamosquemriaporúltimo.Eo intérprete:comfome,meucabo,enjoado,porra,barrigarodando,meucabo,sededizendo,davamágua?Não,primeirobebiaocabo,elevantaavoz:sealguémlhedesseáguaoucomidaiaseentendercomele,quetraduzisseistoparatodosospagãosdeSantaMaríadeNieva,porquepodiamsefazerdebobosoudeengraçadinhos,masnofundodeviamestarécomraiva.Eointérprete:aputesua-mãe,meucabo,escabinodiabo,insultando.Agoraossoldadosapenassorriem,olhamdeesguelhaparaocaboeelemuitobem,quexingasseasuamãeoutravez, iaverquandoobaixassem.Umhomemmagroebronzeadovemao seuencontro, tirao chapéudepalhaeosargentofazasapresentações:AdriánNieves,meutenente.Elesabiaaguarunaeàsvezesserviadeintérprete,eraomelhorpilotodaregiãoetrabalhavahaviadoismesesparaadelegacia.OtenenteeNievesapertamasmãos eoEscuro,oPequeno,oPesado eoLouro se afastamda escrivaninha, ali estava,meutenente,aqueleeraopagão—eracomochamavamosíndiosaqui—eooficialsorri:elepensavaqueosíndios deixavam a cabeleira crescer até os pés, não esperava encontrar um carequinha. Uma penugemmínima cobre a cabeça de Jum e uma cicatriz reta e rosácea secciona sua testaminúscula. É de estaturamediana, gordo, usa uma itípak puída da cintura até os joelhos. No seu peito imberbe um triânguloarroxeadotrespassatrêsdiscossimétricos,três listrasparalelascruzamospômulos.Tambémtemtatuagensde ambos os lados da boca: duas aspas pretas, pequeninas. Sua expressão é tranquilamas em seus olhosamareloshávibraçõesindóceis,meiofanáticas.Depoisdodiaemquerasparamasuacabeça,elecontinuouraspandosozinho,meutenente,eeramuitoestranhoporquenãohavianadamaisdolorosoparaosíndiosque tocarnas suascabeleiras.OpilotoNievespodiaexplicar,meutenente:eracoisadeorgulho,estavamfalandojustamentedissoenquantoesperavamsuachegada.EosargentovamosverseentendiamcomdonAdriánmelhor que com o pagão, porque da outra vez o bruxo Paredes serviu de intérprete e ninguémentendianada, eoPesadoqueédonodacantinaalardeavaque sabia aguaruna,masnãoeraverdade, sóarranhava. Nieves e Jum rugem e gesticulam, tenente, que ele não podia voltar para Urakusa até quedevolvessemtudooquelhetiraram,mastinhasaudadeeporissoraspavaocabelo,paranãopodervoltarnemquerendo,eoLouronãoeraumacoisadedoido?Sim,eagoraqueexplicassedeumavezoquequeriaque lhe devolvessem.OpilotoNieves se aproximado aguaruna, grunhe alguma coisa apontandopara ooficial,gesticulaeJum,queescutaimóvel,derepenteassenteecospe:altoaí!,istonãoeraumchiqueiro,quenãocuspisse.AdriánNievesvoltaacolocarochapéu,erasóparaqueotenentevissequeelediziaaverdade,eosargentoumcostumedosíndios,quemnãocuspiaaofalarestavamentindoeooficialnãoseincomode,entãoiadarumbanhodesalivaneles.Queacreditavam,Nieves,quenãocuspissemais.Jumcruzaosbraçoseosdiscosdoseupeitosedeformam,otriânguloseenruga.Começaafalarvelozmente,quasesempausas,e

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continuacuspindoemvolta.Nãotiraosolhosdo tenentequebateopénochãoeobservaaborrecidoatrajetóriadecadacusparada.Jumagitaasmãos,suavozémuitoenérgica.Eointérprete:roubando,porra,urakusaseringa,garota,soldadomeureátegui,meucabo.Cabeçaquente!Paraprotegerosolhosdosol,ocaboRoberto Delgado puxou o quepe e o mantém inclinado para cima da testa: que continuasse fazendoescândalo, que gritasse, ele estava morrendo de rir. E que lhe perguntasse onde aprendeu tantosxingamentos.Eointérprete:contratoécontrato,pronto,patrãoEscabino,entende,pronto,descendo,meucabo.Ossoldadosestãosedespindoealgunsjácorremparaorio,masocaboDelgadocontinuaembaixodospaus-mulatos:descendo?Nadadisso,iaficaraliequedessegraçasporqueocapitãoArtemioQuirogaeraboagente,sefosseporeleiapagarcaro.Porquenãoxingavasuamãedenovo,hein?Queseatrevesse,quebancasseomachona frentedos seuspatríciosque estavamolhando edo intérprete:bom, aputasuamãe.Meucabo.Outravez,quexingassedenovo,porquetinhasidoparaissoqueocaboficaraaquieotenentecruzaaspernasejogaacabeçaparatrás:históriaabsurda,sempénemcabeça,dequesilabáriosestebenditoestava falando?Uns livros com figuras,meu tenente, para ensinar patriotismo aos selvagens; na casa deGoverno ainda há alguns,muito estragados, don Fabio podiamostrar.O tenente olha indeciso para osguardas e, enquanto isso, o aguaruna eAdriánNieves continuam resmungando ameia-voz.Ooficial sedirige ao sargento, eramesmo verdade a história da tal garota? E Jum garota!, violentíssimo, porra!, e oPesadopsiu,oqueotenenteestavafalando,eosargentopsiu,quemsabe,aquiseroubavamgarotastodososdias, podia ser verdade, não diziam que esses bandidos do Santiago tinham formado um harém?Mas opagãomisturava tudo, e a gente ficava sem saber o que os silabários tinham a ver com o látex que elereclamavaecomahistóriadessagarota,meucompadre,eraumrolodosmildiabos.EoPequenoforamossoldados,elesnãotinhamnadaavercomisso,porquenãoiareclamarnaguarniçãodeBorja?,berramegesticulam,eopilotoNieves:játinhaidoduasvezeseninguémoatendeu,tenente.EoLouro,temquesermuito rancoroso para continuar com essa história depois de tanto tempo, meu tenente, já podia teresquecido.Berrame gesticulameNieves: quena aldeiadizemque a culpa édele enãoquer voltarparaUrakusasemaseringa,oscouros,ossilabárioseagarota,paraquetodosvissemqueJumtinharazão.Jumfala de novo, agora devagar, sem levantar asmãos. As duas aspasminúsculas semexem junto com seuslábios,comoduashélicesquenãoconseguemarrancarecomeçamagirarerecuametentamoutravezerecuam.Dequeestava falandoagora,donAdrián?Eopiloto:estava lembrando,e tambémxingandooshomensqueopendurarameotenentedebateropé:tinhasidopendurado?OPequenoapontavagamenteparaapraçadeSantaMaríadeNieva:naquelespaus-mulatos,meutenente.Paredespodiacontar,eleestavalá, parecia um pirarucu, diz, era assimmesmo que penduravam os pirarucus para secar. Jum solta umasaraivada de grunhidos, dessa vez não cospe mas faz gestos frenéticos: foi pendurado nos paus-mulatosporquediziaaverdade,tenente,eosargentosempreamesmahistória,eooficial,averdade?Eointérprete:piruanos!,piruanos,porra!Meucabo.MasocaboDelgadojásabia,nãoprecisavaquelhetraduzissemisso,nãofalavapagãomastinhaouvidos,pensavaqueeraumidiota?Ah,meuDeus,otenentebatenamesa,ah,queconfusão,nesteritmonãoiamacabarnunca,piruanosqueriadizerperuanos,certo?,eraessaaverdade?E o intérprete: pior que sangrando, pior que morrendo, meu cabo. E boninopérez e teófilocañas, nãoentende.Meucabo.MasocaboDelgadoentendia:eramosnomesdesses subversivos.Queoschamavaàtoa,queestavambemlonge,equesevoltassemtambémseriampendurados.OEscuroestásentadonumabeiradadaescrivaninha,osoutrosguardascontinuamempé,meutenente, foiumcastigo,diziam.Equetodosospatrõesesoldadosestavamfuriosos,queriammatá-losmasqueogovernadordaépoca,osenhorJulioReáteguiimpediu.Equemeramessessujeitos?Nãotinhamvoltadomais?Agitadores,parecia,quesefaziampassarporprofessores,meutenente,eemUrakusaderamouvidosaeles,osíndiosficarambravoseenganaramopatrãoquecompravaaseringa,eoPesadoumtaldeEscabino,eJumEscabino!berraporra!Eo oficial silêncio,Nieves, que omandasse ficar calado.Onde estava esse sujeito? Podiam falar com ele?

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Bastantedifícil,meutenente,Escabinojámorreu,masdonFabioconheceu-oeeramelhorfalarcomele:ialhe contar os detalhes e alémdomais o governador era amigode don JulioReátegui.Nieves tampoucoestavaaquiquandoaconteceramessesincidentes?Tampouco,tenente,eletinhachegadoaSantaMaríadeNievahaviadoismeses,antesmorava longe,noUcayalieoEscuro:não foi sóqueenganaramopatrão,tambémhaviaahistóriadessecabodeBorja,asduascoisassejuntaram.Eointérprete:caboelgadodiabo!Porra!O caboDelgado abre todos os dedos dasmãos e osmostra: dez xingadas demãe, tinha contadodireitinho.Que podia continuar xingando à vontade, ele estava aqui para isso. Sim, um cabo que ia delicença paraBagua, e umpiloto e um ajudante foram com ele e emUrakusa os aguarunas os atacaram,surraramocaboeoajudante,opilotodesapareceuealgunsdizemqueomatarameoutrosquedesertou,meutenente,aproveitandoaoportunidade.Eporissoorganizaramumaexpedição,soldadosdeBorjaeogovernadordaqui,eporissotinhamtrazidoesteaíeocastigaramnospaus-mulatos.Nãofoiassim,maisoumenos,donAdrián?Opilotoconfirma,sargento,eraoquetinhaouvido,mascomonãoestavaaqui,quemsabe. Ahã, ahã, o tenente olha para Jum e Jum olha paraNieves, então ele não era tão santinho comoparecia.Opiloto resmunga eourakusa replica, áspero egesticulante, cuspindoe esperneando:oque elecontavaeramuitodiferente,tenente,eotenentelógico,qualeraaversãodomeucompadre?Queocaboestavaroubandocoisasequeoobrigaramadevolvê-las,opilotofugiunadandoequeopatrãotrapaceavacomo látexequepor issonãoquiserammaisvenderaele.Maso tenentenãopareceouvire seusolhosexaminamoaguarunadacabeçaaospés,comcuriosidadeeumcertoassombro:quantotempootinhamdeixadopendurado,sargento?Umdia,edepoislhederamunsaçoites,diziaobruxoParedes,eoEscurofoiessemesmocabodeBorjaquemdeu, eoLourocomovingançapelosqueospagãosdeUrakusadariamnele,meutenente.Jumavançaumpasso,ficanafrentedooficial,cospe.Agoraaexpressãodoseurostoéquaserisonhaeseusolhosamarelosrevoammaliciosamente,umacaretabrincalhonarasgaseuslábios.Tocanacicatrizdatestaelento,cerimoniosocomoumilusionista,girasobreoscalcanhareseexibeascostas:doissulcospintadosdeurucumdescemdosombrosatéacintura,retilíneos,paralelosebrilhantes.Estaeraoutraloucuradele,meutenente,semprequevinhasepintavaassim,eoPequenocoisadele,porqueosaguarunasnãocostumampintarascostas,eoLouroosborassim,meutenente,ascostas,abarriga,ospés,otraseiro,pintavam o corpo todinho, e o piloto Nieves é para não esquecer dos açoites que recebeu, era esta aexplicaçãoquedava,eArévaloBenzasenxugaosolhos:osmiolosdeletinhamderretidoláemcima,oqueestava gritando?Piruanos,Arévalo, JulioReátegui está encostadonopau-mulato, tinhapassado a viagemtodagritandopiruanos.EocaboRobertoDelgadoconfirma,senhor,nãoparavadexingartodomundo,ocapitão,ogovernador,elemesmo,nãocalavaabocadejeitonenhum.JulioReáteguidáumaolhadarápidaparacima,iacalarjá,já,equandoinclinaacabeçaestácomosolhosúmidos,umpoucodepaciência,cabo,quesoldeixaagentecego.Eointérprete:seucabelodizendo,silabário,garota.Senhor.Sacaneandodiz,eManuelÁguila:pareciabêbado,elesficavamdelirandoassimquandobebiammasato,maseramelhorirememboradeumavezporqueosestavamesperando,queriaqueoacompanhasseparaverasmadres?Não,asmadresnãopodiamsemeter,meutenente,esqueceuqueeramestrangeiras?MasobruxoParedesdiziaqueamadreAngélica—amaisvelhinhadamissão,meutenente,agoraqueamadreAssunçãomorreu—tinhaidoàpraçadenoitepedindoqueobaixassem,equeatébrigoucomossoldados.Avelhinhadeveterficadocompena,eraamaisresmungonadetodas,puraruga,eoEscuro:edepoisqueimaramasaxilasdelecomovosquentes, foiaquelecabo,devemter feitoessehomempularatéasnuvenseJumporra!Piruanos!Otenentebateopénochãooutravez,nãoeracerto,caramba,etocanaescrivaninhacomosnósdosdedos,tinham cometido excessos,mas o que eles podiam fazer agora, tudo aquilo já tinha passado.O que estádizendoagora?Quelhedevolvessemtudooquelhetiraram,tenente,equeiaparaUrakusa,osargentonãolhe disse que era teimoso?Aquele látex já devia ser sola de sapato, e os couros deviam ter virado bolsas,malas, e como sepode saberonde estava a garota: tinham lhe explicado isto cemvezes,meu tenente.O

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oficialreflete,comoqueixoapoiadonopunho:elepodiaapelaraLima,reclamarnoMinistério,quemsabeoDepartamentodeAssuntosIndígenasoindenizasse,muitobem,queNieveslhesugerisseisto.Grunheme,derepente,Jumassentemuitasvezes,limagoverno!,osguardassorriem,sóopilotoeotenentepermanecemsérios:silabariolima!Osargentodescruzaosbraços:nãoestavavendoqueeraumselvagem,meutenente?Comoessascoisasiamentrarnasuacabeça,oquesignificavaparaeleLima,ouMinistério,e,enquantoisso,AdriánNieveseJumresmungamcomvivacidade,trocamcusparadasegestos,oaguarunaàsvezessecalaefechaosolhos,comoseestivessemeditando,edepois,cautelosamente,pronunciaumas frases,apontandoparaooficial:queoacompanhasse?Homem,bemqueeugostariadedarumpasseinhoatéLima,masnãoerapossíveleagoraJumapontaparaosargento.Não,não,nemotenente,nemosargento,nemosguardas,Nieves,nãopodiamfazernada,queprocurasseaqueleReátegui,voltasseparaBorjaouparaondefosse,adelegacianãoiacomeçaradesenterrarosmortos,correto?,resolvendoasconfusõesdopassado,correto?Eleestavamorrendodecansaço,nãotinhadormido,sargento,queacabassemdeumavez.Alémdomais,seoshomens que o tinham agredido eram soldados da guarnição, autoridades daqui, quem ia lhe dar razão?AdriánNieves interrogao sargentocomosolhos,oque lhedizia, afinal?, eparao tenente: isso tudo?Ooficialboceja,entreabrepreguiçosamenteabocadesanimadaeosargentoseinclinaatéele:émelhordizerque sim, meu tenente. Que iam lhe devolver o látex, os couros, os silabários, a garota, tudo o que elequisesse,eoPesadooqueestavapensando,meusargento,quemiadevolvertudoseEscabinojáeradefunto,e o Pequeno não seria dos seus salários, não é? E o sargento como garantia lhe dariam um papelzinhoassinado.UmavezeleeotenenteCiprianofizeramisso,meutenente,davaresultado.Erasóestamparumcarimbonomeiodopapelepronto:agoravácomistoprocurarosenhorReáteguieoEscabino-diaboparaqueelesdevolvamtudo.EoEscurouma sacanagemdasboas,meu sargento?Maso tenentenãogostavadessas coisas, ele nãopodia assinar nenhumpapel relacionado comum caso tão velho, e tambémmas osargento papel jornal mesmo, uma assinaturazinha de mentira e assim ele iria tranquilo. Essa gente erateimosa mas acreditava no que lhe diziam, ele ia passar meses e anos procurando Escabino e o senhorReátegui.Bem,eagoraquelhedessemalgumacoisadecomereodeixassemiremborasemqueninguémnuncamaislheencostasseumdedo,capitão,porfavorqueelemesmolhedissesseisto.Eocapitãocomtodoprazer,donJulio,chamaocabo:entendido?Acabou-seocastigo,ninguémencostanele,eJulioReátegui:oimportante era que voltasse para Urakusa. Nunca mais batendo nos soldados, nunca mais enganandopatrão,queseosurakusasseportambemoscristãosseportambem,queseosurakusasseportammaloscristãos,mal:quelhetraduzisseisso,eosargentodáumagargalhadaquealegratodooseurostoredondo:oque lhedisse,meutenente?Sim, livraram-sedele,masooficialnãogostavadisso,nãoestavaacostumadocomessesprocedimentos,eoPesado:aquinãoeraLima,meutenente,aquieraprecisolidarcomosíndios.Otenenteselevanta,sargento,estavacomacabeçarodandodepoisdessaconfusão,quenãooacordassemnemqueomundocaísse.Nãoqueriaoutracervejinhaantesdeirdormir?,não,quelhelevassemumabaciacomágua?,maistarde.Otenentefazumgestodesaudaçãoparaosguardasesai.ApraçadeSantaMaríadeNievaestácheiadeindígenas,asmulheresquemoemsentadasnochãoformamumagranderoda,algumastêmcriançaspresasnospeitos.Otenenteparanomeiodocaminhoe,tapandoosolcomamão,olhaospaus-mulatosporuminstante:robustos,altos,masculinos.Umcachorromagropassaaoseuladoeooficialsegue-ocomavista e entãovêopilotoAdriánNieves.Vemna suadireçãoe lhemostra emsuamãoospedacinhosalvinegrosdepapeljornal,tenente:nãoeratãoidiotacomoosargentopensava,tinhapicadoopapelejogadoospedacinhosnapraça,eleacabavadeencontrá-los.

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I

—Umsegredoqueosenhornemimagina,meusargento—disseoPesado,baixandoavoz.—Masqueosoutrosnãoescutem.

OEscuro,oPequenoeoLouroconversavamnobalcãocomParedes,quelhesserviacoposdeanisado.Ummenino saiuda cantina com três panelinhasde barro, atravessou a praçadeserta de SantaMaría deNieva e desapareceu rumo à delegacia. Um sol forte dourava os paus-mulatos, os tetos e paredes doscasebres,masnãochegavaatéochãoporqueumaneblinabranquicenta, flutuante,quepareciavirdorioNieva,odetinhapertodosoloeodeixavaopaco.

—Elesnãoestãoouvindo—disseosargento.—Qualéosegredo?— Já sei quem é a garota que está na casa dosNieves—oPesado cuspiuumas sementes pretas de

mamãoelimpouacarasuadacomolenço—,atalquenosdeixoutãocuriososnaoutranoite.—Ah,sim?—disseosargento.—Equemé?—Aquelaquelevavaparaforaolixodasmadres—sussurrouoPesado,olhandodeesguelhaparao

balcão—,aquefoiexpulsadamissãoporqueajudouaspupilasafugirem.Osargentovasculhouosbolsos,masseuscigarrosestavamnamesa.Acendeuumetragoufundo,soltou

umabaforadadefumaça:umamoscavoouangustiadadentrodanuvemefugiuzumbindo.—Ecomodescobriu?—disseosargento.—OsNievesaapresentaram?Comoquemnãoquernada,meusargento,oPesadocostumavadarumaspassadinhasnocasebredo

piloto,enessamanhãviu-atrabalhandonachácaracomamulherdeNieves:Bonifacia,assimsechamava.NãoestariaenganadooPesado?Porque iria ficarcomosNieves,nãoerameio freira?Não,desdequeaexpulsaramnãoeramais,nãousavaouniformeeoPesadoareconheceranahora.Umpoucogorducha,meusargento,mastinhalásuasformas.Edeviaserjovenzinha,masoprincipaleraquenãodissessenadaaosoutros.

—Achaquesoufofoqueiro?—disseosargento.—Nãoprecisodeconselhosbestas.Paredes trouxe dois copinhos de anisado e ficou ao lado damesa, enquanto o sargento e o Pesado

bebiam.Depois limpouotampocomumpanoevoltouparaobalcão.OEscuro,oLouroeoPequenosaíram da cantina e, na porta, ummormaço rosado iluminou seus rostos, seus pescoços. A bruma haviaaumentadoe,delonge,osguardasagorapareciammutilados,oucristãosvadeandoumriodeespuma.

—NãoarrumeconfusãocomosNievesporquesãomeusamigos—disseosargento.Equemiaarrumarconfusãocomeles?Masseriaumabobagemnãoaproveitaraocasião,meusargento.

Eles dois eram os únicos que sabiam, demodo que somos bons companheiros, certo?, o Pesado fazia otrabalhinhoemeioameio,estábem?,edepoisapassavaparaele,deacordo?Maso sargentocomeçouatossir,nãogostavadessasdivisões,soltavafumaçapelonarizepelaboca,quemerda,porqueiaficarcomassobras.

—Masnãofuieuquemaviuprimeiro,meusargento?—disseoPesado.—Edescobriquemeraetudoomais.Masolhelá,oqueotenenteestaráfazendoporaqui.

Apontouparaapraçaelávinhaotenente,commeiocorpoforadamanchagasosa,piscandosobosol,decamisalimpa.Quandoemergiudabruma,ametadeinferiordasuacalçaeasbotasestavamúmidasdevapor.

—Venhacomigo,sargento—ordenoujánaescadinha.—DonFabioquernosver.

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—Nãoesqueçadoquelhedisse,meusargento—murmurouoPesado.Otenenteeosargentomergulharamnanévoaatéacintura.Ocaiseoscasebresbaixosdosarredoresjá

tinhamsidodevoradospelasondasdevapor,quearremetiamagora,altaseondulantes,contraostetoseasvarandas.Emcontrapartida,uma luzdiáfanabanhavaosmorros,asconstruçõesdamissãoresplandeciamintactas e as árvores com os troncos diluídos pela névoa exibiam suas copas límpidas, e suas folhas, seusgalhosesuasteiasdearanhaprateadascintilavam.

—Foi à casa dasmadrecitas,meu tenente?—disse o sargento.—Devem ter dado uma surra nasmeninas,nãofoi?

—Jáforamperdoadas—disseotenente.—Estamanhãaslevaramparaorio.Asuperioramedissequeadoentinhaestavamelhor.

Naescadinhadacabanadogovernadorsacudiramascalçasúmidaserasparamassolasenlameadasnosdegraus. A trama da tela metálica que protegia a porta era tão diminuta que escondia o interior. Umaaguarunavelhaedescalçaabriu,entraram,e ládentroestavafrescoecheiravaaverde.As janelasestavamfechadas, o quarto continuava na penumbra, e se distinguiam confusamente os arcos, fotografias,zarabatanasefeixesdeflechaspresosnasparedes.UmascadeirasdebalançofloreadascircundavamotapetedechamiraedonFabioapareceunasoleiradoquartocontíguo,tenente,sargento,risonhoeenxutosobacarecaluminosa,demãosestendidas:aordemtinhachegado,imaginem!Deuumapalmadanoombrodooficial, como estavam?, fazia gestos afáveis, o que achavam da notícia?, mas antes um refresco?, umascervejinhas?,nãopareciamentira?Deuumaordememaguarunaeavelhatrouxeduasgarrafasdecerveja.Osargento esvaziou seu copo num só gole, o tenente passava o seu de umamão para a outra com olhoserrantesepreocupados,donFabiobebiacomoumpassarinho,emgolinhosdiminutos.

—Comunicaramaordemàsmadrespelorádio?—disseotenente.Sim,estamanhã,etinhamavisadodonFabioimediatamente.DonJuliosemprediziaesseministroestá

torpedeandoacoisa,éomeupiorinimigo, issonãovaichegarnunca.Eerapuraverdade,agoraviam,oMinistériomudoueaordemveiovoando.

—Depoisdetantotempo—disseosargento.—Eutinhaatéesquecidodessesbandidos,governador.DonFabioCuesta ainda sorria: tinhamquepartiromais cedopossívelpara estardevolta antesdas

chuvas,nãorecomendavaascheiasdoSantiago,asestacaseosredemoinhosdoSantiago,quantoscristãosessascheiasjátinhamlevado?

—Sótemosquatrohomensnoposto,nãoésuficiente—disseotenente.—Porque,nãoesqueça,umguardatemqueficaraqui,cuidandodadelegacia.

DonFabiopiscouumolhocommalícia,masonovoministroeraamigodedonJulio,amigo.Deratodas as facilidades, eles não iriam sozinhos, mas com soldados da guarnição de Borja. Já receberam aordem,tenente.Ooficialbebeuumgole,ah,eassentiusementusiasmo:bom,assimeradiferente.Masnãoentendia direito, e balançava a cabeça com perplexidade, esse caso reaparecendo agora era como aressurreiçãodeLázaro,donFabio.Assimestavamas coisasnanossapátria, tenente,oquequeria, aqueleministrodemoravaedemorava,pensandoquesóprejudicavadonJulio,masnãopercebiaquedanoterrívelcausavaatodos.Masantestardedoquenunca,nãoé?

—Masagoranãohámaisdenúnciascontraessesladrões,donFabio—disseotenente.—AúltimafoipoucodepoisdaminhachegadaaSantaMaríadeNieva,vejaquantotempopassou.

Equeimportânciatinhaisso,tenente?Podianãohaverdenúnciasaqui,masemoutrolugarsim,ealémdomaisaquelesdelinquentestinhamquepagarasuadívida,queriamaisumacervejinha?Osargentoaceitoue,novamente,esvaziouocoponumsógole:nãoeraporisso,governador,mastalvezfizessemaviagemàtoa,osladrõesnãodeviamestarmaislá.Eseaschuvasviessemmaiscedo,quantotempoiamficarpresosnomato.Nada,nada, sargento, tinhamqueestarnaguarniçãodeBorjadentrodequatrodias,eoutracoisa

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queo tenenteprecisava saber: don Julio levava aquele assuntomuito apeito.Osdelinquentes o fizeramperdertempoeapaciência,coisaquenãoperdoava.Otenentenãodiziaquesonhavasairdaqui?PoisdonJuliooajudariasetudocorressebem,aamizadedaquelehomemvaliaouro,tenente,donFabiosabiaporexperiênciaprópria.

—Ah,donFabio—sorriuooficial—,aindabemqueo senhormeconhece.Pôsodedobemnaferida.

—Eatéosargentovaiserbeneficiado—replicouogovernador,felizedando-lheumapalmada.—Claro!NãoestoudizendoquedonJulioeonovoministrosãoamigos?

Tudobem,donFabio,eles fariamoquefossepossível.Masque lhesservissemaisumcopinho,pararebater, aquela notícia os deixarameio atordoados. Tomaram a cerveja e conversaram e pilheriaram napenumbrafrescaearomática,depoisogovernadoracompanhou-osatéaescadinhaelásedespediu.Anévoaagoracobriatudoe,entreseusvéusesuasdançasambíguas,oscasebreseasárvoresflutuavamsuavemente,clareavam e escureciam, e viam-se silhuetas fugidias circulando pela praça. Uma voz miúda e tristonhacantarolavaaolonge.

—Primeiroiratrásdasmeninas,eagoraisto—disseosargento.—NãovejoamenorgraçaemsubiroSantiagonestaépoca,vaiserdearrebentar,meutenente.Quemvaideixarnoposto?

—OPesado,quesecansaàtoa—disseotenente.—Vocêgostariadeficar,nãoé?—MasoPesadopassoumuitosanosnaselva—disseosargento—;issodáexperiência,meutenente.

PorquenãodeixaoPequeno,queémeioadoentado?—OPesado—disseotenente.—Enãofaçaessacara.Eutambémnãogostodasituação,masvocê

ouviu o governador, de repente a sortemuda depois dessa viagenzinha e nós saímos daqui. Vá chamarNievesetragaosoutrosparaaminhacasa,vamosfazeroplanodetrabalho.

O sargento ficou imóvel na neblina por um instante, com asmãos nos bolsos.Depois, cabisbaixo,atravessou a praça, passou pelo cais mergulhado numa densa camada de vapor, enveredou pela trilha eavançouporumapaisagemenfumaçada e escorregadia, carregadade eletricidade edegrasnidos.Quandochegou à cabanadopiloto estava falando sozinho, suasmãos torciamoquepe e as perneiras, a calça e acamisaestavamsalpicadasdelama.

—Quemilagreaestashoras,sargento—Lalitaescorriaoscabelos,debruçadanoparapeito;seurosto,seusbraçoseseuvestidoestavampingando.—Masvenha,suba,sargento.

Indeciso,pensativo,aindamexendooslábios,osargentosubiuaescadinha,navarandaapertouamãodeLalita e,quando se virou,Bonifacia estava junto a ele, tambémmolhada.Ovestidode cornatural seaderiaaoseucorpo,oscabelosúmidosemolduravamseurostocomoumatouca,eseusolhosverdesfitavamo sargento contentes, sem qualquer embaraço. Lalita torcia a barra da saia, viera visitar sua hóspede,sargento?,egotinhastransparentesrolavamatéseuspés:estavaali.Tinhamidopescar,entraramnoriocomesta neblina, imagine só, não viam nadamas a água estavamorninha, gostosa, e Bonifacia se adiantou:queriaquetrouxessecomida?Anisado?Emvezderesponder,Lalitadeuumagargalhadaeentrounacabana.

—VocêfoivistacomoPesadoestamanhã—disseosargento.—Porquesedeixouver?Nãofaleiquenãoqueria?

—Jáestácomciúme,sargento—disseLalita,najanela,dandorisadas.—Queimportânciatemqueavejam.Nãovaiquererqueacoitadapasseavidaseescondendo,nãoé?

Bonifacia esquadrinhavao rostodo sargento,muito séria, e emsuaatitudehaviaalgodeassustadoeconfuso.Eledeuumpasso em suadireção eosolhosdeBonifacia se alarmaram,masnão semexeu eosargentolevantouumbraço,segurou-apeloombro,garota,nãoqueriaquefalassecomoPesado,nemcomnenhumoutrocristão,senhoraLalita.

— Eu não posso proibir — disse Lalita, e Aquilino, que aparecera na janela, riu. — E o senhor

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tambémnão,sargento,poracasoéirmãodela?Sópoderiasefosseseumarido.—Eunãoovi—gaguejouBonifacia.—Émentira,nãodevetermevisto,falaporfalar.—Nãosehumilhe,nãosejaboba—disseLalita.—Ébomprovocarciúmes,Bonifacia.OsargentopuxouBonifaciaparajuntodesi,eramelhorquenuncaavissecomoPesado,ecomdois

dedoslevantouseuqueixo,quenuncaavissecomnenhumhomem,senhora,eLalitadeuoutragargalhadaeao ladodorostodeAquilinotinhamsurgidooutrosdois.Ostrêsmeninosdevoravamosargentocomosolhosenuncaaveriacomninguém,Bonifaciaapertouacamisadosargentoeseuslábiosestavamtremendo:elaprometia.

—Vocêéumaboba—disseLalita.—Dáparaverquenãoconheceoscristãos,principalmenteosdefarda.

— Vou ter que viajar — disse o sargento, abraçando Bonifacia. — Não volto em menos de trêssemanas,talvezummês.

—Comigo,sargento?—AdriánNieves,decueca,estavanaescadinha,esfregandoocorpobrilhosoeossudocomamão.—Nãomedigaqueaspupilasfugiramoutravez.

E quando voltasse eles se casariam, garota, e sua voz se cortou e ele começou a rir feito um idiota,enquanto Lalita gritava e irrompia na varanda de braços abertos, resplandecente, e Bonifacia ia ao seuencontroeseabraçavam.OpilotoNievesapertouamãodosargentoquefalavasoluçando,donAdrián,éque se emocionou um pouco: queria que eles fossem os padrinhos, naturalmente. Está vendo, senhoraLalita,caíranasuaarmadilha,eLalitasabiadesdeocomeçoqueosargentoeraumcristãocorreto,queadeixassedar-lheumabraço.Fariamumagrandefesta,iaversócomocomemorariam.Bonifacia,aturdida,abraçavao sargento,abraçavaLalita,beijavaamãodopiloto, jogavaosmeninosparaoalto,e seriamospadrinhos comtodoprazer, sargento,que ficassepara jantar estanoite.Osolhosverdes relampejavam, eLalita eles iam construir sua casa aqui ao ladinho, ficavam tristes, eles os ajudariam, ficavam alegres, e osargento tinha que tomar conta dela muito bem, senhora, não queria que visse ninguém enquanto eleestivesseviajandoeLalitaéclaro,nãochegarianemnaporta,elesaamarrariam.

—Edestavez,aondevamos?—disseopiloto.—Outravezcomasmadrecitas?—Quemderaquefosseisso—disseosargento.—Vãoacabarcomanossaraça,donAdrián.Ocasoé

quechegouatalordem.VamosparaoSantiago,àprocuradaquelesmalfeitores.—ParaoSantiago?—disseLalita.Pareciatransfigurada,estavarígidaeboquiabertaeopilotoNieves,

encostadonoparapeito,examinavaorio,abruma,asárvores.OsmeninoscontinuavamcorrendoemvoltadeBonifacia.

—ComhomensdaguarniçãodeBorja—disseosargento.—Masporque ficaramassim?Nãoháperigo,vamossermuitos.Equemsabeessesladrõesjámorreramdevelhos.

—OPintadomoraaliembaixo—disseAdriánNieves,apontandoparaorioocultopelanévoa.—Eleconhecebemaregiãoeéumpilotodosbons.Temosqueavisá-loagorinhamesmo,àsvezesvaipescaraestahora.

—Mascomo—disseosargento.—Osenhornãoquervirconosco,donAdrián?Sãomaisdetrêssemanas,vaitirarumbomdinheirinho.

—Équeestoudoente,comfebres—disseopiloto.—Vomitotudo,minhacabeçaestárodando.—Mas,donAdrián—disseosargento.—Nãomedigaisto,comoéqueosenhorestádoente.Por

quenãoquerir?—Eleestácomfebres,vaiparaacamaagorinhamesmo—disseLalita.—Anderápidoatéacasado

Pintado,sargento,antesqueelesaiaparapescar.

Eaoanoitecerelafugiucomoelelhedissequefizesse,desceuobarrancoeFushíaporquedemoroutanto,

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rápido,paraalanchinha.Afastaram-sedeUchamalacomomotordesligado,quaseàsescuras,eeleotempotodoseráquenãoaviram,Lalita?,pobredevocêseaviram,estouarriscandoaminhapele,nãoseiporquefizistoeela,queestavanaproa,cuidado,umredemoinhoepedrasàesquerda.Porfimserefugiaramnumapraia, esconderam a lancha, deitaram-se na areia. E ele estou com ciúme, Lalita, nãome conte nada docachorrodoReátegui,masprecisavadeumalanchaecomida,vamospassarunsdiasdifíceismasvocêvaiver,vousairdessa,eelavaisairsim,euvouajudar,Fushía.Eelefalavadafronteira,todosdirãoquefoiparaoBrasil,vãosecansardemeprocurar,Lalita,quempodeimaginarquevimparaestelado,sepassarmosparaoEquadornão vai haver problema.Ede repente tire a roupa,Lalita, e ela as formigas vãomemorder,Fushía,eelemesmoassim.Depoischoveuanoitetodaeoventolevouocasacoqueosprotegiaeosdoisserevezavam para afugentar os pernilongos e os morcegos. Embarcaram de novo ao amanhecer e atéapareceremospongosaviagemfoiboa:umbarquinhoeseescondiam,umpovoado,umquartel,umaviãoe se escondiam. Passou uma semana sem chuvas; viajavam de sol a sol e, para economizar as conservas,pescavamanchovinhas,bagres.Detardeprocuravamumailha,umbancodeareia,umapraiaedormiamprotegidos por uma fogueira. Atravessavam os povoados à noite, sem ligar omotor, e ele vamos, forçaLalita,eelameusbraçosnãoaguentam,hámuitacorrenteza,eeleforça,porra,quejáfaltapouco.PertodeBarrancaderamdecaracomumpescadorecomeramjuntoseelesestamosfugindoeooutropossoajudá-los?eFushíaqueríamoscomprargasolina,estáacabando,eelemedêodinheiro,euvouaopovoadoetrago.Levaram duas semanas para ultrapassar os pongos, depois se internaram por canais, lagoas e igarapés,extraviaram-se, a lancha virou duas vezes, acabou a gasolina e uma madrugada Lalita, não chore, jáchegamos, olhe, são huambisas. Lembraramdele, pensavam que vinha comprar seringa como das outrasvezes.Deram-lhesumacabana,comida,duasesteiraseassimpassarammuitosdias.Eeleviuoqueaconteceporvircomigo?,eramelhorterficadoemIquitoscomsuamãeeelaeseumdiaomatarem,Fushía?eelevocêvaivirarmulherdehuambisa,andarcomospeitosdeforaesepintarcomanil,rúpiaeurucum,vãobotarvocêparamascarmandiocaefazermasato,olhesóoqueaespera.Elachorava,oshuambisasriameelesuaboba,erabrincadeira,talvezvocêsejaaprimeiracristãqueveem,hámuitosanoschegueiaquicomumsujeitodeMoyabambaeelesnosmostraramacabeçadeumcristãoquesubiuoSantiagoembuscadeouro, está com medo?, e ela sim Fushía. Os huambisas lhes traziam pedaços de jupará e paca, bagres,mandioca,umavezvermesverdeseelesvomitaram,dequandoemquandoumveado,umtambaquiouumjaú.Eleconversavacomelesodiainteiroeelameconte,oqueestáperguntando,oqueéqueelesdizemeele coisas, não se preocupe, na primeira vez que eu e oAquilino viemos aqui nós os conquistamos combebidaemoramosseismesescomeles,trouxemosfacas,tecidos,espingardas,anisadoeelesnosdavamlátex,couros,eunãopossomequeixar,erammeusclientes,sãomeusamigos,semeleseujáestariamorto,eelasimmasvamos,Fushía,afronteiranãoestáperto?Eelemelhoresqueosseringueiros,Lalita,acomeçarporessecachorrodoReáteguiquevejasócomosecomportoucomigo,euofizganhartantodinheiroeelenãoqueriameajudar,éasegundavezqueoshuambisasmesalvam.EelamasquandovamosparaoEquador,Fushía,aschuvascomeçamlogoenãovaisermaispossível.Eeledeixoudefalardafronteiraepassavaasnoites sem dormir, sentado na esteira, andava, falava sozinho, e ela o que há com você, Fushía, vamosconversar,éparaissoquesousuamulhereelesilêncioqueestavapensando.Eumdiaselevantou,desceuobarranco aos pulos e ela lá de cima não faça isso, imploro pelo Cristo de Bagazán, santo, santo, e elecontinuouesburacandoalanchacomofacãoatéafundá-laequandosubiuobarrancoseusolhosestavamcontentes. Ir para oEquador sem roupa, semdinheiro e sempapéis?Uma loucura, Lalita, as polícias secomunicamdeumpaísparaooutro, sóvamoscontinuaraquimaisumtempinho,aquiposso ficar rico,tudodependedestesíndiosedeencontraroAquilino,essehomeméoqueestánosfazendofalta,venhaquelheexplicoeelaoquevocêfez,Fushía,SantoDeus.Eleéquenãovemninguémaqui,equandosairmosjávãoterseesquecidodemimealémdomaisvamosterdinheiroparafecharabocadequalquerum.Eela

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Fushía,Fushía,eeletenhoqueencontrarAquilinoeelaporqueaafundou,nãoqueromorrernomato,eelesuaburra,tinhaqueapagarosrastros.Eumdiasaíramnumacanoacomdoisremadoreshuambisas,emdireção ao Santiago. Iam escoltados por borrachudos, chuvas de pernilongos, o canto rouco dostrombeteirose, ànoite, apesardo fogoedas cobertas,osmorcegosplanavamemcimados seuscorposemordiamaspartesmacias:osdedosdopé,onariz,abasedocrânio.Eelenadadechegarpertodorio,poraquihásoldados.Cruzavamcanaisestreitos,escuros,sobabóbadasdefolhagemhirsuta,lodaçaispútridos,àsvezes lagoas coalhadas de girinos, e também picadas que os huambisas abriam com os facões, levando acanoa no ombro. Comiam o que encontravam, raízes, talos de suco ácido, infusões de ervas e um diacaçaramumaanta,carneparaumasemana.Eelanãoconsigo,Fushía,nãotenhomaispernas,arranheiorosto,eele faltapouco.AtéqueoSantiagoapareceue lácomeramcascudosquecapturaramdebaixodaspedrasdorioecozinharamnafumaça,eumtatucaçadopeloshuambisas,eeleviuquechegamos,Lalita?,esta terra é boa, tem comida e tudo está indobem e elaminha cara está ardendo, Fushía, juro quenãoaguentomais.Acamparamumdiaedepoiscontinuaram,Santiagoacima,parandoparadormirecomeremaldeiashuambisasdeduas,trêsfamílias.Eumasemanadepois,deixaramorioenavegaramdurantehorasporumcanaltãoestreitoqueosolnãoentravaetãobaixoquesuascabeçastocavamnosgalhos.Saíram,eeleLalita,ailha,olhe,omelhorlugarqueexiste,entreomatoeospântanos,eantesdedesembarcarfezoshuambisaspercorreremtodoocontornoeelavamosmoraraqui?eeleéescondida,emtodoo litoralhábosques altos, esta ponta serve para fazer o cais. Desembarcaram e os huambisas reviravam os olhos,mostravamospunhos,grunhiameLalitaoquehácomeles,Fushía,porqueestãozangadoseelemedrososdemerda, querem voltar, estão commedo das paineiras. Porque no alto do barranco, como uma cercacompactaemuitoalta,aolongodetodaailhahaviapaineirasdetroncosásperos, inchadosdecorcovasecomgrandesasasrugosasquelhesserviamdebase.Eelanãogritetantocomeles,Fushía,vãoseaborrecer.Ficaramdiscutindo,grunhindoegesticulandoeporfimconvenceu-oseentraramatrásdelesnamataquecobriaailha.Eelevocêescutou,Lalita?,estácheiadepássaros,araras,nãoouve?,equandoencontraramumcarcarácomendoumacobrinhapretaoshuambisasgritarameelecachorrosmedrososeelavocêestálouco,aquisótemmato,Fushía,comovamosviveraqui,eelevocêachaquenãopensoemtudo?,moreiaquicomoAquilinoevoumorardenovoe ficarei ricoaqui,vocêvaiver.Voltaramaobarranco,eladesceuatéacanoa e ele e oshuambisas se internaramoutra vez ede repenteuma colunade fumaça corde chumbosurgiuacimadaspaineiras e tudocomeçouacheirar aqueimado.Ele eoshuambisasvoltaramcorrendo,pularamparaacanoa,atravessarama lagoaeacamparamnaoutramargem, juntoàbocadocanal.Eelequandoterminaraqueimadavaihaverumagrandeclareira,Lalita,tomaraquenãochova,eelaequenãohajaventoFushía,queofogonãochegueatéaquiequeimeafloresta.Nãochoveueofogodurouquasedoisdiaseelespermaneceramnomesmolugar,aspirandoafumaçaespessa,fétida,daspaineiraseacaçus,ascinzasqueiamevinhampeloar,olhandoaschamasazuis,pontudas,asfaíscasqueseestilhaçavamcomumestalonalagoa,ouvindoailharanger.Eelepronto,osdiabosjáestãoqueimados,eelanãozombe,sãoascrençasdeles,eelenãoentendemealémdomaisestãorindo,euoscureiparasempredomedodepaineiras.O fogo ia limpando a ilha e despovoando-a: domeio da fumaça saíambandos de pássaros e nas bordasapareciammacacos-aranhas,micos,tangarás,macacos-preguiçaquepulavamgritandoatéostroncosegalhosflutuantes;oshuambisasentravamnaágua,agarravambichosaosmontes,abriamsuascabeçascomfacões,eelequebanqueteestãocomendo,Lalita,araivapassoueelatambémquerocomer,nemquesejacarnedemacaco, estou com fome. E quando voltaram à ilha havia várias clareiras, mas o barranco continuavaintactoeemmuitoslugaressobreviviamredutosdematofechado.Começaramodesmatamento,odiatodojogavamnalagoatroncosmortos,avescarbonizadas,cobras,eeledigaqueestácontente,eelaestou,Fushía,eeleacreditaemmim?Eelasim.Equandojáhaviaumaboaáreadeterraplana,oshuambisascortaramárvoreseuniramastorasdemadeiracomcipóseeleolhesó,Lalita,pareceumacasaeelanemtantomasé

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melhorquedormirnomato.Enamanhãseguinte,quandoacordaram,umxexéuestavafazendoninhonafrente da cabana, suas plumas pretas e amarelas reluziam nomeio da folhagem e ele sinal de boa sorte,Lalita,estepássaroésociável,seveioéporquesabequeficaremosaqui.

Enessemesmosábadounsvizinhosencontraramocadávereolevaram,envoltonumlençol,aobarracodalavadeira.OvelórioreuniumuitoshomensemulheresdaGallinaceranacasadeJuanaBauraeestachoroua noite toda, beijou uma e outra vez asmãos, os olhos, os pés damorta.Ao amanhecer umasmulherestiraramJuanadoquartoeopadreGarcíaajudouacolocarocorponocaixãocompradograçasaumacoletapopular.NessedomingoopadreGarcíarezoumissanacapeladoMercadoeencabeçouocortejofúnebre,edocemitériovoltouparaaGallinaceraao ladodeJuanaBaura:osvizinhosoviramatravessaraPraçadeArmas cercado de mulheres, pálido, os olhos fulminantes, os punhos crispados. Mendigos, engraxates,vagabundosseintegraramaocortejoequandochegaramaoMercadoesteocupavatodaalarguradarua.Lá,opadreGarcíacomeçouavociferardecimadeumbancoe,emvolta,asportasseabriram,asvendedoraslargaramsuasbancasparaouvi-loexingarameapedrejaramdoisguardasmunicipaisquetentaramdissolverotumulto.OsgritosdopadreGarcíaseouviamaténoabatedouro,enoLaEstrelladelNorteosforasteirosse calaram, surpresos: de onde vinha esse rumor, para onde iam tantas mulheres? Secreta, feminina,pertinaz,corriaumahistóriapelacidadeeaomesmotempo,sobumcéudeescurosurubus,opadreGarcíacontinuavafalando.CadavezquefaziaumapausaopovoouviaJuanaBauragritar,ajoelhadaaosseuspés.Então asmulheres começarama se agitar surdamente, amurmurar.Equandochegaramosguardas comseus porretes da lei, ummar embravecido foi ao seu encontro, com o padreGarcía à cabeça, iracundo,empunhandoumcrucifixonamãodireita, equandoquiserambarrar apassagemdasmulheres caiuumachuva de pedras, ameaças: os guardas recuavam, refugiavam-se nas casas, outros caíam e o mar investiacontra eles, submergia-os, deixava-os para trás. Assim as ondas enfurecidas entraramna Praça deArmas,rugindo,agitadas,armadasdepausepedrase,quandopassavam,caíamastrancasdasportas,fechavam-seospostigos, os poderosos corriam para a catedral e os forasteiros, protegidos nos pórticos das casas,presenciavam atônitos o avanço da torrente. O padre García tinha brigado com os guardas? Eles oagrediram? Sua batina rasgada mostrava um peito fraco e leitoso, longos braços ossudos. Mantinha ocrucifixo sempreno alto e gritava comvoz rouca.E assim a torrente passoupeloLaEstrella delNorte,espalhou pedras para todos os lados e os vidros da cantina voaram em pedaços, e quando as mulheresentraramnaPonteVelhaovelhoesqueletorangeu,cambaleoucomoumbêbadoe,aofranquearemoRioBarepisarememCastilla,muitasmulheresjátinhamtochasnasmãos,corriam,edasportasdaschicheríassaíagente,maisrugidos,maistochas.Chegaramaoarealesubiuumanuvemdepoeira,umgigantescopiãoleveedourado,enocoraçãodaespiraldivisavam-serostosdemulheres,punhos,chamas.

Encolhida sob a nívea, ofuscante claridade domeio-dia, com suas portas e janelas fechadas, a CasaVerdepareciaumamansãodeserta.Osmurosvegetaiscintilavamdocementesobosol,desvaneciam-senasesquinascomumaespéciedeacanhamentoe,comoumacorçaferida,naimobilidadedolocalhaviaalgodeindefeso,dócil,atemorizadodiantedamultidãoqueseaproximava.OpadreGarcíaeasmulhereschegaramàporta,agritariacessouehouveumasúbitaquietude.Masentãoseouviramosgritose,comoasformigasqueabandonamseuslabirintosquandoorioosinunda,surgiramasmoradoras,atropelando-seeuivando,maquiadas,semivestidas,eapalavradopadreGarcíaseelevou,trovejouacimadomare,entreasondaseaalgazarra, inumeráveis tentáculos se esticavam, apanhavam asmoradoras, derrubavam-nas no chão e, ali,batiam nelas. E depois o padre García e as mulheres inundaram a Casa Verde, lotaram-na em poucossegundos,eládedentrovinhaumestrondodedestruição:estalavamcopos,garrafas,quebravam-semesas,rasgavam-selençóis,cortinas.Noprimeiroandar,nosegundoenotorreãocomeçouumminuciosodilúviodoméstico. Pelo ar calcinado voavam vasos de barro, bacias, pias lascadas e bandejas, pratos, colchões

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estripados,cosméticoseumasaraivadadevivassaudavacadaprojétilquedescreviaumaparábolaesefincavano areal. Muitos curiosos, até mulheres, disputavam os objetos e as peças e houve esbarrões, disputas,diálogos violentíssimos. No meio da confusão, machucadas, sem voz, ainda tremendo, as moradoras selevantavam,caíamnosbraçosumasdasoutras,choravameseconsolavam.ACasaVerdeestavaardendo:púrpura, agudas, deslocadas, viam-se as chamas no meio da fumaça cinzenta subindo em lentosredemoinhosatéocéupiurano.Amultidãocomeçouarecuar,osgritosforamamainando;pelasportasdaCasaVerde,as invasoraseopadreGarcíaabandonavamolocalcorrendo,sacudidospelatosse,chorandoporcausadafumaça.

Do parapeito da Ponte Velha, do Malecón, das torres das igrejas, dos tetos e varandas, grupos depessoas contemplavam o incêndio: uma hidra de cabeças vermelhas e celestes crepitando sob um toldonegrusco. Sóquandoo esbelto torreãodesabou e já fazia tempoque, impulsionadosporuma levebrisa,choviam carvões, lascas e cinzas sobre o rio, os guardas municipais apareceram. Misturaram-se com asmulheres,impotentesetardios,confusosefascinadoscomoespetáculodofogocomotodos.Ederepentecotoveladas,movimentos,asmulheresemendigossussurravam,diziam“jávem,aívem”.

Vinha pela PonteVelha: as galinaças e os curiosos se viravam para olhá-lo, saíam do seu caminho,ninguém o detinha e ele avançava, rígido, com o cabelo desgrenhado, a cara suja, incrivelmentehorrorizados os olhos, a boca trêmula. Fora visto na véspera, bebendo numa chichería mangache ondeapareceuaoentardecer,comaharpaembaixodobraço,chorosoelívido.Elápassouanoite,cantarolandoentresoluços.Osmangachesseaproximavamdele,“como foi,donAnselmo?,oquehouve?, éverdadequeosenhor morava com a Antonia? que a mantinha na Casa Verde? É verdade que ela morreu?”. Ele gemia,suspiravaeporfimrolouparaochão,bêbado.Dormiuequandoacordoupediumaisumcopo,continuoubebendo,beliscandoaharpa,eestavaassimquandoumagarotaentrounachichería:“ACasaVerde,donAnselmo!Elesaestãoqueimando!AsmulhereseopadreGarcía,donAnselmo!”

No Malecón, alguns homens e mulheres foram ao seu encontro, “você roubou a Antonia, você amatou”,erasgaramsuaroupaequandoelefugiulhejogarampedras.SónaPonteVelhacomeçouagritarea implorar e as pessoas é conversa, está com medo de ser linchado, mas ele continuava clamando e asassustadasmoradorascomacabeçaque sim,queeraverdade,quedeviaestar ládentro.Eleajoelhadonoareal,suplicava,invocavaocéucomotestemunha,eentãoumaespéciedemal-estarseapoderoudaspessoas,osguardaseosmunicipaisinterrogavamasgalinaças,surgiamvozescontraditórias,esefosseverdade?,quefossemver,quesemexessem,quechamassemodoutorZevallos.Protegidosporcourosmolhados,algunsmangaches mergulharam na fumaça e emergiram instantes depois, sufocados, derrotados, não se podiaentrar,erauminfernoládentro.Homens,mulheresfustigavamopadreGarcía,esefosseverdade?,padre,padre,Deusocastigaria.Eleolhavaensimesmadoparaunseparaoutros,donAnselmosedebatiaentreosguardas,que lhedessemumcourocru, ele ia entrar,que tivessempiedade.EquandoAngélicaMercedesapareceuetodoscomprovaramqueeraverdade,queláestava,ilesa,nosbraçosdacozinheira,eviramcomoo harpista se emocionava, agradecia ao céu e beijava asmãos de AngélicaMercedes,muitasmulheres seenterneceram.Emvozaltaseapiedavamdacriança,consolavamoharpista,ouincrepavamopadreGarcíafazendo-lhe recriminações. Estupefata, aliviada, comovida, amultidão rodeava donAnselmo e ninguém,nemasmoradoras,nemasgalinaças,nemosmangaches,olhavamaisparaaCasaVerde,paraafogueiraquea consumia e que agora a pontual chuva de areia começava a apagar, a devolver ao deserto onde,fugazmente,haviaexistido.

Osinconquistáveisentraramcomosempre:abrindoaportacomumpontapéecantandoohino:eramosinconquistáveis,nãosabiamtrabalhar,sóbeber,sójogar,eramosinconquistáveiseagoraiamtrepar.

—Sóposso contaroqueouvinessanoite, garota—disseoharpista—;vocêdeve ternotadoque

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quasenãovejo.Issomelivroudapolícia,elesmedeixaramempaz.—Oleiteestáquente—disseaChunga,nobalcão.—Ajude-me,Selvática.ASelváticaselevantoudamesadosmúsicos,foiatéobareelaeaChungatrouxeramumjarrodeleite,

pão,caféempóeaçúcar.Asluzesdosalãoaindaestavamacesas,masodiajáentravapelasjanelas,quente,claro.

—Agarotanãosabecomofoi,Chunga—disseoharpista,bebendoseu leiteaosgoles.—Josefinonãolhecontou.

—Quandoeupergunto,elemudalogodeassunto—disseaSelvática.—Porquetantointeresse,diz,émelhorpararsenãoficocomciúme.

—Alémdesem-vergonha,hipócritaecínico—disseaChunga.—Sóhaviadoisclientesquandoentraram—disseoBolas.—Naquelamesa.UmdeleseraSeminario.OsLeóneJosefinoseinstalaramnobar,gritandoepulando,fazendoescândalo:nósgostamosdevocê,

ChungaChunguita,vocêéanossarainha,nossamãezinha,ChungaChunguita.—Deixemdebobagensepeçamlogoalgumacoisa,senãofora—disseaChunga.Evirou-separaa

orquestra:—Porquenãotocam?— Não podíamos — disse o Bolas. — Os inconquistáveis estavam fazendo um barulho infernal.

Pareciamcontentíssimos.—Équenessanoiteestavamforradosdedinheiro—disseaChunga.—Olhe,olhe—oMacacomostravaumlequedelibraselambiaosbeiços.—Quantocalcula?—Comovocêégananciosa,Chunga,abriuunsolhos—disseJosefino.—Nacertaéroubado—replicouaChunga.—Oquevãobeber?—Deviamestarbêbados—disseaSelvática.—Sempreficamassim,fazendogracinhasecantando.Atraídaspelobarulho,trêsmoradorasapareceramnaescada:Sandra,Rita,Maribel.Masquandoviram

osinconquistáveisficaramdesiludidas,esqueceramostrejeitosvaidososeouviu-seagargalhadagigantescadeSandra,erameles,quedecepção,masoMacacoabriuosbraços,queviessem,quepedissemqualquercoisa,emostrouasnotas.

—Sirvaalgumacoisaparaosmúsicostambém,Chunga—disseJosefino.—Que rapazesgentis—sorriuoharpista.—Semprenosoferecem.Euconheciopaide Josefino,

garota.EralancheiroeatravessavaogadoquevinhadeCatacaos.CarlosRojas,sujeitomuitosimpático.ASelváticaencheudenovoocopodoharpistaepôsaçúcar.Osinconquistáveisocuparamumamesa

comaSandra,aRitaeaMaribeleficaramlembrandoumapartidadepôquerquetinhamacabadodejogarno Reina. O Jovem Alejandro bebia seu café com ar lânguido: eram os inconquistáveis, não sabiamtrabalhar,sóbeber,sójogar,eramosinconquistáveiseagoraiamtrepar.

—Ganhamoslimpo,Sandra,juro.Asortenosajudou.—Royalstraightflushtrêsvezesseguidas,jáseviucoisaigual?— Eles ensinaram a letra às garotas— disse o harpista, com voz risonha e benévola.— E depois

vieram até onde estávamos, para que tocássemos o seu hino. Por mim eu tocaria, mas primeiro peçamautorizaçãoàChunga.

—Evocênosfezgestosdizendoquesim,Chunga—disseoBolas.—Estavamconsumindo comonunca—explicou aChunga à Selvática.—Porquenão ia fazer a

vontadedeles.—Àsvezesasdesgraçascomeçamassim—disseoJovem,comumgestomelancólico.—Porcausade

umacanção.—Cantem, para eu pegar amúsica—disse o harpista.—Vamos lá, Jovem,Bolas, abrambem as

orelhas.

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Enquantoosinconquistáveiscantavamohinoemcoro,aChungasebalançavaemsuacadeiracomoumatranquiladonadecasaeosmúsicosmarcavamocompassocomopéerepetiamaletraentreosdentes.Depois,todoscantaramemaltosbrados,comacompanhamentodeviolão,harpaepratos.

—Agorachega—disseSeminario.—Bastadecançõesedegrosserias.—Atéentãoelenãoseimportaracomobarulhoeestavapacificamenteconversandocomumamigo

—disseoBolas.—Euovilevantar-se—disseoJovem.—Umafúria,penseiquevinhaparacimadenós.—Nãotinhavozdebêbado—disseoharpista.—Obedecemos,ficamosemsilêncio,maselenãose

acalmava.Desdequehoraestavaaqui,Chunga?—Desdecedo.Veiodiretodasuafazenda,debota,calçademontarerevólver.—UmtourodehomemesseSeminario—disseoJovem.—Eumolharmaligno.Quantomaisforte,

pior.—Obrigado,irmão—disseoBolas.—Vocêéaexceção,Bolas—disseoJovem.—Corpodeboxeadorealminhadeovelha,comodizo

professor.—Não fiqueassim, senhorSeminario—disseoMacaco.—Sóestávamoscantandoonossohino.

Permita-noslheoferecerumacerveja.—Maseleestavatranstornado—disseoBolas.—Tinhaseirritadoporalgummotivoeestavaatrás

debriga.—Entãovocêssãoosgalinhosdebrigaquearmamconfusãonasruasepraças?—disseSeminario.—

Queroversemeteremcomigo.Rita,SandraeMaribelsaíramnaspontasdospésrumoaobareoJovemeoBolasdefendiamcomos

corpos o harpista que, sentado em seu banquinho, com uma expressão tranquila, começou a apertar ascravelhas da harpa. E Seminario continuava, ele também era um garotão, e rebolava, sabia divertir-se, ebatia no peito,mas trabalhava, suava a camisa na sua terra, e não gostava de vagabundos, corpulento efalastrãosobalâmpadaroxa,demortosdefome,dessesquegostamdesefazerdemalucos.

—Somosjovens,senhor.Nãoestamosfazendonadadeerrado.—Jásabemosqueosenhorémuitoforte,masissonãoémotivoparanosinsultar.—Éverdadequeumavezlevantouumburroeojogouemcimadeumtelhado?Éverdade,senhor

Seminario?—Elesserebaixaramatanto?—disseaSelvática.—Nãoimaginavaissodeles.—Quemedovocêstêmdemim—riaSeminario,aplacado.—Comomeadulam.—NahoraH,oshomenssempreseborram—disseaChunga.—Nemtodos,Chunga—protestouoBolas.—Seelesemetessecomigo,euteriarespondido.—Eleestavaarmadoeosinconquistáveistinhamrazãoparaficarcommedo—sentenciouoJovem,

suavemente:—Omedoécomooamor,Chunga,coisahumana.—Vocêseachaumsábio—disseChunga.—Maseuestoupoucoligandoparaassuasfilosofias,fique

sabendo.—Penaqueosrapazesnãotenhamsaídonaquelemomento—disseoharpista.Seminariovoltaraparaasuamesa,oquetambémfizeramosinconquistáveis,semsinaisdaalegriade

minutosantes:quandoficassebêbadoeleiaver,masnão,estavacomorevólver,melhoraguentaratéoutrodia,eporquenãoqueimaracaminhonetedele?,estavaláfora,aoladodoClubeGrau.

—OuentãosaímoseodeixamostrancadoaquieateamosfogonaCasaVerde—disseJosefino.—Algumaslatasdequeroseneeumfósforosãoosuficiente.ComofezopadreGarcía.

—Arderiafeitopalhaseca—disseJosé.—Etambémobairrointeiro,incluindooestádio.

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—OmelhoréqueimarmosPiurainteira—disseoMacaco.—Umafogueiraenorme,queseriavistadesdeChiclayo.Oarealiaficartodoretinto.

—EcairiamcinzasatéemLima—disseJosé.—Mas,issosim,teríamosquesalvaraMangachería.—Masclaro,erasóoquefaltava—disseoMacaco.—Daríamosumjeito.—Eutinhaunscincoanosnaépocadoincêndio—disseJosefino.—Vocêsselembramdealguma

coisa?—Nãodocomeço—disseoMacaco.—Fuilánodiaseguinte,comunsgarotosdobairro,masos

soldadosnosbotaramparacorrer.Parecequeosquechegaramprimeiroroubarammuitacoisa.— Sóme lembro do cheiro de queimado— disse Josefino.—E que havia fumaça, e quemuitas

alfarrobeirasviraramcarvão.—Vamos pedir ao velho que nos conte—disse oMacaco.—Vamos chamá-lo para tomar umas

cervejas.—Nãoeradementira?—disseaSelvática.—Ouestavamfalandodeoutroincêndio?—Coisasdepiuranos,garota—disseoharpista.—Nuncaacreditequandoelesfalamdisso.Étudo

puroinvento.—Nãoestácansado,maestro?—perguntouoJovem.—Jásãoquasesetehoras,podíamosirembora.—Aindanãoestoucomsono—dissedonAnselmo.—Querofazeradigestãodocafé.Decotovelosnobalcão,osinconquistáveistentavamconvenceraChunga:quedeixasseoharpistavir

uminstantinho,oquecustava,paraconversarumpouco,queaChungaChunguitanãofossemá.—Todos gostammuito do senhor, donAnselmo—disse a Selvática.—Eu também, lembra um

velhinhodaminhaterraquesechamavaAquilino.— Tão generosos, tão simpáticos — disse o harpista. — Eles me levaram para a sua mesa e me

ofereceramumacervejinha.Estavasuando.Josefinopôsumcopoemsuamão,elebebeudeumavezsóeficoubocejando.Depois,

comumlençocolorido,limpouatesta,asespessassobrancelhasbrancas,eassoouonariz.—Umfavorzinhodeamigo,velho—disseoMacaco.—Contecomofoioincêndio.Amãodoharpistabuscouocopoe,emvezdoseu,apanhouodoMacaco;esvaziou-onumsógole.Do

queestavamfalando,dequeincêndio,etornouaassoaronariz.—Euerapequeno,viaschamasládoMalecón.Easpessoascorrendocomcourosebaldesdeágua—

disseJosefino.—Porquenãonosconta,harpista?Qualéoproblema,jáfaztantotempo.—Nãohouveincêndionenhum,CasaVerdenenhuma—afirmavaoharpista.—Invençõesdopovo,

rapazes.—Porquecaçoadenós?—disseoMacaco.—Vamos,harpista,contesóumpouquinho.DonAnselmolevoudoisdedosàbocanumgestode fumar.OJovemlhedeuumcigarroeoBolas

acendeu-o.AChunga tinha apagado as luzesdo salão eo sol entrava emprofusãopelas janelas e frestas.Haviamanchasamarelasnasparedesenochão,ozincodotetoreverberava.Osinconquistáveisinsistiam,éverdadequealgumasmulheres sofreramqueimaduras?, forammesmoasgalinaçasquebotaram fogo?, eleestavaládentro?,tinhasidoopadreGarcía,porpuramaldadeouporcoisasdareligião?,éverdadequedonaAngélicasalvouaChunguitademorrerqueimada?

—Purafábula—garantiaoharpista—,bobagensdopessoal,sóparairritaropadreGarcía.Deveriamdeixá-loempaz,pobrevelho.Eagoratenhoquetrabalhar,rapazes,comlicença.

Levantou-see,compassinhoscurtos,asmãosàfrente,voltouparaocantodaorquestra.—Estãovendo?Elesefazdebobo,comosempre—disseJosefino.—Eusabiaqueiaserinútil.— Com a idade o cérebro amolece — disse o Macaco —, talvez tenha se esquecido de tudo.

DeveríamosperguntaraopadreGarcía.Masquemtemcoragem.

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Eentãoaportaseabriueentrouaronda.—Aquelesfilhosdamãe—murmurouaChunga.—Vinhamfilarbebida.—ArondaquerdizerLitumaemaisdoismilicos,Selvática—disseoBolas.—Apareciamporaqui

todanoite.

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II

Sobasombracurvilíneadasbananeiras,Bonifaciaergueu-seeolhouparaopovoado:homensemulheresatravessavamcorrendoapraçadeSantaMaríadeNieva,agitandoasmãosmuitoexcitadasnadireçãodocais.Inclinou-sedenovosobreossulcosretilíneosdosolomas,uminstantedepois,voltouaselevantar:aspessoas fluíam sem trégua, alvoroçadas. Espiou a cabana dos Nieves; Lalita continuava cantarolando ládentro,umaserpentinadefumaçacinzasaíaporentreosbambusdaparede,nohorizonteaindanãoseviaalanchadopiloto.Bonifaciarodeouacabana,invadiuosmatagaisdamargeme,comáguapelostornozelos,avançouatéopovoado.Ascopasdasárvoresseconfundiamcomasnuvens,ostroncoscomaslínguasocredas ribeiras. A cheia tinha começado; o rio arrastava correntes parasitas, de águas mais louras ou maismorenas, e também arbustos, flores degoladas, líquenes e formas que podiam ser pedregulhos, cocô ouroedoresmortos.Olhando para todos os lados, devagar, cautelosamente como um rastreador, percorreuuma floresta de juncos e, ao ultrapassar uma curva, divisou o porto: as figuras estavam imóveis entre asestacas e as canoas e havia uma balsa parada a poucosmetros do cais flutuante.O crepúsculo azulava astúnicaseosrostosdasaguarunasetambémhaviahomens,decalçasarregaçadasatéosjoelhos,otorsonu.Podiaveracordaquecediaouse retesavacomovaivémdabalsadorecém-chegado,opilotodaproae,muitonítida,achoçaarmadanapopa.UmbandodegarçassobrevoouaflorestaeBonifaciaouviu,muitopróximo,obaterdeasas, levantouacabeçaeviuospescoços finos,alvos,oscorposrosadosseafastando.Então continuou avançando, mas bem inclinada e não mais pela margem e sim por dentro do mato,arranhandoosbraços,orostoeaspernascomasfolhasafiadas,osespinhoseosásperoscipós,emmeioazumbidos, sentindocaríciasviscosasnospés.Quaseondeacabavaa floresta, apoucadistânciadaspessoasaglomeradas,paroueficoudecócoras:avegetaçãosefechousobreelaeagorapodiavê-loatravésdeumacomplicadageometriaverdedelosangos,cuboseângulosinverossímeis.Ovelhonãotinhanenhumapressa;muitocalmo, iaevinhapelabalsa,arrumandooscaixoteseamercadoriacomminuciosaexatidãodiantedosespectadoresquecochichavamefaziamgestosdeimpaciência.Ovelhoentravanachoçaevoltavacomumtecido,unssapatos,umafileiradecolaresdecontase,sério,cuidadoso,maníaco,iacolocandoascoisassobre uns caixotes. Era muito magro, parecia corcunda quando o vento inflava a sua camisa, mas, derepente,opeitoeascostasafundavamatéquasesetocaremerevelavamsuaverdadeirasilhueta,fina,muitoestreita. Estava de bermuda e Bonifacia via suas pernas, magras como os seus braços, seu rosto de pelequeimadaequasevermelha,eafantástica,sedosacabeleirabrancaqueondulavasobreseusombros.Ovelhoficou ainda um bom tempo trazendo utensílios domésticos e adornos multicoloridos, empilhandocerimoniosamentetecidosestampados.OscochichoscresciamtodavezqueovelhotiravaalgumacoisadachoçaeBonifaciapodiaveroentusiasmodaspagãsedascristãs,seusfascinados,ambiciososolharesparaasmiçangas,pentes,espelhinhos,braceletesetalcos,eosolhosdoshomensfixosnasgarrafasenfileiradasnumcanto da balsa, ao lado de latas de conservas, cintos e facões. O velho avaliou sua obra durante algunsinstantes,virou-separaaspessoasetodoscorreramemtumulto,chapinhandoemvoltadaembarcação.Masovelhosacudiuajubabrancaeoscontevecomasmãos.Brandindosuavaracomoumalança,obrigou-osarecuar, a subir emordem.Aprimeira foi amulherdeParedes.Gorda,desajeitada,nãoconseguia subir abordo, o velho teve que ajudá-la e ela ficou mexendo em tudo, cheirando os frascos, manuseandonervosamenteostecidosesabões,easpessoasresmungarameprotestaramatéqueamulhervoltouparaocais, comáguapelacintura, trazendonoaltoumvestido floreado,umcolar,umparde sapatosbrancos.

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Assimforamsubindonabalsa,umaatrásdaoutra, asmulheres.Algumaseram lentasedesconfiadasparaescolher, outras discutiam interminavelmente o preço e havia as que choramingavam ou ameaçavampedindo desconto. Mas todos desciam da balsa com alguma coisa nas mãos, alguns cristãos com sacosabarrotadosdeprovisõesealgumaspagãssócomumpunhadinhodemiçangasparaenfiar.Quandoocaisficou deserto, já estava anoitecendo: Bonifacia se levantou. O Nieva estava em plena cheia, marolinhascrespas e grisalhas corriam debaixo da ramagem emorriam junto aos seus joelhos. Tinha o corpo todomanchado de terra, e folhagens presas no cabelo e no vestido.O velho estava guardando amercadoria,metódicoeprecisoarrumavaoscaixotesnaproae,sobreSantaMaríadeNieva,océueraumaconstelaçãode alcatrão e olhos de mocho, mas no outro lado do Marañón, logo acima da cidadela sombria dohorizonte,umafaixaazulaindaresistiaànoiteeaLuadespontavaportrásdasededamissão.Ocorpodovelhoeraumamanchaesquálida,napenumbrasuacabeleiracintilavaprateadacomoumpeixe.Bonifaciaolhouparaopovoado:havialuzesnacasadoGoverno,ondeestavaParedes,eunslampiõestitilavamnascolinasenasjanelasdaresidência.Aescuridãoiaengolindoemlentosbocadosascabanasdapraça,ospaus-mulatos, o caminho íngreme.Bonifacia saiudo seu refúgio e correu às escondidas até o cais.O lododamargemestavamoleequente,aáguadoremansopareciaimóveleelasentiu-asubirporseucorpo,esóaalguns metros da margem a correnteza começava, uma força morna e obstinada que a obrigou a darbraçadasparanãosedesviar.Aáguajáchegavaaoseuqueixoquandosesegurounabalsaeviuacalçabrancado velho, o contornoda sua cabeleira: já era tarde, que voltasse amanhã.Bonifacia ergueu-se umpoucosobre a amurada, apoiou os cotovelos e o velho, inclinado para o rio, esquadrinhou-a: falava cristão?,entendia?

—Sim,donAquilino—disseBonifacia.—Boanoite.—Horadedormir—disseovelho.—Jáfechoualoja,volteamanhã.—Sejabonzinho—disseBonifacia.—Deixaeusubiruminstante?—Vocêpegouodinheirodomaridoàsescondidaseporissovemaestahora—disseovelho.—Ese

elevierreclamaramanhã?Cuspiu na água e riu.Estava de cócoras, seus cabelos caíam espumosos e livres em volta do rosto e

Bonifaciaviasuatestaescura,limpaderugas,seusolhosquepareciamdoisbichinhosardentes.—Tantofaz—disseovelho—,sóestoufazendoomeunegócio.Venha,suba.Estendeuamão,masBonifaciajáhaviasubido,elasticamente,eestavanacobertaescorrendoovestido

eesfregandoosbraços.Colares?Sapatos?Quantodinheirotinha?Bonifaciacomeçouasorrircomtimidez,nãoprecisavadealgumservicinho,donAquilino?,eseusolhosobservavamabocadovelhocomansiedade,quefizessemsuacomidaenquantoestavaemSantaMaríadeNieva?,quefossemcolherfrutasparaele?,quelimpassem a balsa, não precisava?O velho se aproximou, de onde a conhecia?, e examinou-a de cima abaixo:jáatinhavistoantes,certo?

—Euqueriauma fazenda—disseBonifacia emordeuos lábios.Apontoupara a choça e, poruminstante,seusolhosseiluminaram.—Aquelaamarelaqueguardouaofinal.Pagocomumtrabalhinho,osenhormedizqualeeufaço.

—Nadadetrabalhinhos—disseovelho.—Nãotemdinheiro?—Paraumvestido—sussurrouBonifacia,suaveetenaz.—Querqueeulhetragafrutas?Quesalgue

opeixe?Epossorezarparanãoacontecernadaderuimnassuasviagens,donAquilino.—Nãoprecisoderezas—disseovelho;olhou-abemdepertoe,derepente,estalouosdedos.—Ah,

járeconheci.—Voumecasar,nãosejamau—disseBonifacia.—Querofazerumvestidocomessa fazenda,sei

costurar.—Porquenãoestácomroupadefreira?—dissedonAquilino.

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—Nãoestoumaiscomasmadres—disseBonifacia.—Elasmeexpulsaramdamissãoeagoravoumecasar.Porquenãomedáafazenda,eulhefaçoumservicinhoedapróximavezquevierlhepagoemsoles,donAquilino.

OvelhopôsamãonoombrodeBonifacia,fezagarotaretrocederparaqueoclarãodalualhedessenacara, examinou calmamente os olhos verdes ofegantes, o corpo miúdo que pingava: já era mulher. Asmadrecitasatinhamexpulsadoporqueseenvolveucomumcristão?Comessecomquemiasecasar?Não,donAquilino,issofoidepoisenopovoadoninguémsabiaondeelaestava,eondeelaestava?,osNieveslhederamabrigo,podiafazeralgumtrabalhinho,afinal?

—EstámorandocomAdriáneLalita?—perguntoudonAquilino.—Foramelesqueme apresentaramaohomemque vai sermeumarido—disseBonifacia.—São

muitobonscomigo,comopais.—EstouindoagoraparaacasadosNieves—disseovelho.—Venhacomigo.—Eopano?—disseBonifacia.—Nãosefaçadedifícil,donAquilino.Ovelhopulouparaaáguasemfazerbarulho,Bonifaciaviuacabeleiraflutuaratéocais,viu-avoltar.

DonAquilinosubiucomacordanoombro,enrolou-aecomavaraimpulsionouabalsarioacima,pertodamargem.Bonifacialevantouaoutravarae,depénabordaoposta,imitouovelhoqueafundavaeretiravahabilmenteamadeira,semesforço.Naalturadobosquedejuncos,acorrenteeramaisforteedonAquilinotevequemanobrarparaqueaembarcaçãonãoseafastassedamargem.

—DonAdriánfoipescarcedo,masjádevetervoltado—disseBonifacia.—Convidoosenhorparaocasamento,donAquilino,masvaimedarafazenda,nãoé?Voumecasarcomosargento,nãooconhece?

—Comummilico?Entãonãodou—disseovelho.—Nãofaleassim,eleéumcristãodebomcoração—disseBonifacia.—PergunteaosNieves,elessão

amigosdosargento.Unslampiõesardiamnacabanadopilotoeaoladodoparapeitosedivisavamsilhuetas.Abalsaatracou

emfrenteàescadinha,ouviram-sevozesdeboas-vindas,eAdriánNievesentrounaáguaparapegaracordaeamarrá-laemumaestaca.DepoissubiuabordoeeleedonAquilinoseabraçaramedepoisovelhofoipara a varanda eBonifacia viu-o pegar Lalita pela cintura e oferecer-lhe o rosto, e viu que ela o beijavamuitasvezesnatesta,fezboaviagem?,nasbochechas,eostrêsmeninossependuravamnaspernasdovelho,gritando,eeleacariciavaascabeças,umaschuvinhas,sim,asbandidasseadiantaramesteano.

—Evocêestava lá—disseLalita.—Nósprocuramosemtodosos lados,Bonifacia.Voucontaraosargentoquevocêfoiaopovoadoeviuhomens.

—Ninguémmeviu—disseBonifacia.—SódonAquilino.—Tantofaz,vamoscontarparalhedarciúmes—riuLalita.— Ela veio ver as fazendas — disse o velho; ele e o menino menorzinho, sentado no seu colo,

brincavamdedespentear-se.—Estoucansado,hojemefizeramtrabalharodiainteiro.—Voulheservirumabebida,enquantoojantarficapronto—disseopiloto.LalitapuxouparadonAquilinoumacadeiraatéavaranda,voltouparadentro,ouviu-seocrepitardo

braseiro e surgiu um cheiro de fritura.Osmeninos subiamnos joelhos do velho e este lhes fazia caretasenquantobrindavacomAdriánNieves.JáhaviamesvaziadoagarrafaquandoLalitachegou,enxugandoasmãosnasaia.

—Tãolindaasuacabeça—disse,acariciandooscabelosdedonAquilino.—Cadavezmaisbranca,maissuavezinha.

—Vocêestáquerendodarciúmesaoseumaridotambém?—disseovelho.Acomidajáiaficarpronta,donAquilino,tinhapreparadoseuspratospreferidoseovelhobalançavaa

cabeçatentandose livrardasmãosdaLalita:senãoodeixasseempazele iacortarocabelo.Osmeninos

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estavamenfileiradosàsuafrente,agoraoobservavammudosecomosolhosinquietos.—Jáseioquevocêsestãoesperando—disseovelho.—Nãoesqueci,hápresentesparatodos.Para

você,umternodehomem,Aquilino.OsolhosrasgadosdomaisvelhoseacenderameBonifaciaseencostounoparapeito.Deláviuovelho

selevantar,desceraescadinha,voltarparaavarandacheiodeembrulhosqueosmeninoslhearrebataramdasmãos,edepoisoviuaproximar-sedeAdriánNieves.Ficaramconversandoemvozbaixae,devezemquando,donAquilinoolhavaparaeladesoslaio.

—Vocêtinharazão—disseovelho.—Adriándizqueosargentoéumbomcristão.Váláetragaafazenda,éseupresentedecasamento.

Bonifacia quis beijar-lhe a mão, mas don Aquilino a retirou com um gesto de aborrecimento. Eenquanto ela voltava para a balsa, vasculhava os caixotes e pegava o tecido, ouvia o velho e o pilotosussurrandomisteriosamenteeosdivisava,asduascaras juntas, falandoe falando.Subiuparaavarandaeelessecalaram.Agoraanoitecheiravaapeixefritoeumabrisarápidaestremeciaomato.

—Amanhãvaichover—disseovelho,farejandooar.—Ruimparaosnegócios.—Jádevemestarna ilha—disseLalitamais tarde,enquantocomiam.—Partiramfazmaisdedez

dias.Adriánlhecontou?—DonAquilinoencontrou-osnocaminho—disseopilotoNieves.—Alémdosguardas,também

haviaalgunssoldadosdeBorja.Eraverdadeoquedisseosargento.Bonifaciaviuqueovelhoaobservavaderelance,semdeixardemastigar,parecendoinquieto.Mas,um

minutodepois,jásorriadenovoecontavahistóriasdassuasviagens.

Na primeira vez que saíram em expedição, voltaram em quinze dias. Ela estava no barranco, o solavermelhavaalagoae,derepente,apareceramnabocadocanal:uma,duas,trêscanoas.Lalitalevantou-senumpulo,precisava seesconder,masos reconheceu:naprimeiravinhaFushía,na segundaPantacha,naterceirahuambisas.Porquevoltaramtãocedoseeledisseraummês?DesceucorrendoatéocaiseFushíajáchegouAquilino,Lalita?,elaaindanãoeeleputaquepariuessevelho.Sótrouxeramunscourosdejacaré,Fushía estava furioso, vamos morrer de fome, Lalita. Os huambisas riam enquanto descarregavam, suasmulheresrevoavamentreeles,loquazes,grunhindo,eFushíaolhecomoficaramcontentes,essescachorros,chegamosàaldeiaeosshaprasnãoestavam,elesqueimaramtudo,cortaramacabeçadeumcachorro,nada,purodesperdício,umaviageminútil,nemumapeladeseringa,sóessescourosquenãovalemnadaeelesfelizes.Pantachaestavadecueca,coçandoasaxilas,temosqueirmaisparadentro,patrão,aflorestaégrandee está cheia de riquezas e Fushía burro, para chegarmais longe precisamos de um piloto. Foram para acabana, comeram banana e mandioca frita. Fushía falava o tempo todo de don Aquilino, o que teráacontecido com o velho, nunca tinha falhado até hoje, e Lalita choveu muito estes dias, deve ter seescondidoemalgumlugarparanãomolharascoisasqueencomendamos.Pantacha,deitadonarede,coçavaacabeça,aspernas,opeito,esealanchaafundounospongos,patrão?,eFushíaentãoestamosfodidos,nãosei oque vamos fazer.ELalitanão sepreocupe tanto, oshuambisasplantaramna ilha toda, fizeramatécurraiseFushíaétudomerda,nãosesabequandovaidareos índiospodemviverdemandiocamasumcristãonão,vamosesperardoisdiaseseoAquilinonãochegarprecisofazeralgumacoisa.EpoucodepoisPantachafechouosolhos,começouaroncareFushíasacudiu-o,queoshuambisasabrissemoscourosantesde ficarembêbados, ePantachaprimeiroumasoneca,patrão,estou todomoídode tanto remareFushíaburro,nãoestáentendendo?,queroficarsozinhocomminhafêmea.Pantacha,debocaaberta,quemmederasercomoosenhorquetemumamulherdeverdade,patrão,osolhosdesconsolados,fazanosquenãoseioqueéumabrancaeFushíachega,váembora.PantachasaiuchoramingandoeFushíapronto,lávaielesonhar, tire logo a roupa Lalita, o que está esperando, ela estou sangrando e ele nãome importa. E ao

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entardecer, quando Fushía acordou, foram para a aldeia que cheirava a masato, os huambisas caíam debêbadosePantachanãoestavaem lugarnenhum.Afinaloencontraramnooutroextremoda ilha, tinhalevadosuaesteiraparaabeirada lagoaeFushíaoquefoiqueeudisse,estásonhandocomoumanjinho.Falava entreosdentes, coma cara escondida entre asmãos,o fogo continuava ardendo sob apanelinhacheiadeervas.UnsbesourosandavamemcimadassuaspernaseLalitanemossente.Fushíaapagouofogo,chutou a panelinha para dentro da água, vamos ver se o acordamos, e os dois o sacudiram, beliscaram,esbofetearameele,falandoentreosdentes,sóeracusquenhoporacaso,suaalmanasceuemUcayali,patrão,eFushíaestáouvindo?,elaestou,parecedoido,ePantachaseucoraçãoeratriste.Fushíaosacudia,chutava,serranodemerda,nãoéhoradesonhar,vocêtemqueficaracordado,vamosmorrerdefomeeLalitaelenão está ouvindo, está em outromundo, Fushía. E ele, entre os dentes, vinte anos emUcayali, patrão,contagiadopelospirarucus,tinhaocorpodurofeitobabunha,osborrachudosnãofuram.Eleesperavaasbolhinhas,ospirarucusestavamsaindoparatomarar,passeoarpão,Andrés,firme,espetecomforçaqueeuoamarro,patrão,elematavaospirarucuscomaprimeirapazadamasacanoavirounoTamaya,elesaiumasAndrésnão,vocêseafogouirmão,assereiasoarrastaramparaofundo,agoravaisermaridodelas,porquefoimorrer,meuirmãozinhoAndrés.OsdoissesentaramparaesperarqueterminassedeacordareFushíaaindafaltabastante,nãomeconvémperderestecaboclo,sonhadormasútil,eLalitaporqueestásempretomandoesseschazinhoseFushíaparanãosesentirtãosozinho.Baratasebesourospasseavampelaesteiraepor cima do seu corpo e ele por que será que tinha viradomateiro, patrão, vida ruim aqui nomato, épreferível a água, comospirarucus, seioque sãoas febres terçãs,Pantacha, aquela tremedeira,vocêvemcomigo,eulhepagomais,tomeumcigarro,vamosbeberalgumacoisa,vocêémeuhomem,leve-meaondehaja cedro,pau-rosa, encontre intermediários,madeirabalsa, e ia comeles,patrão,quantomeadianta, equeriaterumacasa,mulher,filhos,viveremIquitoscomooscristãos.EderepenteFushía,Pantachita,oque aconteceu noAguaytía?, conte-me que sou seu amigo. E Pantacha abriu e fechou os olhos, estavamvermelhos feitobundademacaco e, entreosdentes, aquele rio tinha sangue,patrão, eFushía sanguedequem,caboclo?,eelequente,espessocomoseringuinha jorrandodaseringueira,e tambémoscanaiseaslagoasdali,umaferidasó,patrão,podeacreditar,eFushíaclaroqueacredito,caboclo,masdeondevemessesanguequente?,eLalitadeixe-oFushía,nãopergunte,eleestásofrendo,eFushíacaleabocasuaputa,vamosPantachita,quemsangrou,eele,entreosdentes,otrapaceiroBákovic,aqueleiugoslavoqueosenganou,épiorqueodiabo,patrão,eFushíaporquevocêomatou,Pantacha?,ecomo,caboclo,comquê,eelenãoqueriapagar,nãohácedrosuficiente,vamosmaisparadentro,epuxavaawinchester,etambémbateunumcarregadorquelheroubouumabebida.EFushíavocêlhedeuumtiro,caboclo?eelecomofacão,patrão,ficoucomobraçodormentedetantogolpeareentãocomeçouaesperneareachorareLalitavejasócomoeleestá,Fushía,ficoutranstornadoeFushíaarranqueiumsegredodele,agorajáseidequeestavafugindoquandoAquilinooencontrou.Voltaramasentar-seaoladodaesteira,esperaram,eleseacalmoueacabouacordando.Levantou-se trôpego,coçando-secomfúria,patrão,não fiquezangado,eFushíaoschazinhosvãodeixar vocêdoido e umdia iamandá-lo embora ePantachanão tinhaninguém, sua vida era triste,patrão,osenhortemsuamulher,oshuambisastambém,eatéosanimais,maseleestavasozinho,quenãoseaborrecesse,patrão,asenhoratambém,patroa.

Esperarammaisdoisdias,Aquilinonãochegava,oshuambisas foramatéoSantiagotentaraveriguaralgumacoisaevoltaramsemnotícias.EntãoforamprocurarumlugarparaotanqueePantachadooutroladodocais,patrão,obarrancoémaisíngremeeassimaáguadaspaineirasescorreemcima,eascabeçasdos huambisas que sim e Fushía, bom, vamos fazer lá. Os homens derrubaram as árvores, as mulherescapinarame,quandoabriramumaclareira,oshuambisasfizeramestacas,afinaramaspontaseascravaramemcírculo.Aterraerapretanasuperfície,vermelhapordentroeasmulheresatransportavamnastúnicaspara jogar na lagoa enquanto os homens cavavam o buraco.Depois choveu e em poucos dias o tanque

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estavacheio,prontoparaastartarugas.Saíramaoamanhecer,ocanalestavaalto,asraízesecipósvinhamarranhá-los,enoSantiagoLalitacomeçouatremer,tevefebres.Viajaramdoisdias,Fushíaatéquandoeoshuambisas apontavampara a frente como dedo. Por fimumbanco de areia, e Fushía dizemque é ali,tomara,eatracaram,esconderam-seentreasárvores,eFushíanãosemexa,nãorespire,seaouviremnãovãoaparecer,eLalitasintoenjoo,achoqueestougrávida,Fushía,eeleporra,fiquecalada.Oshuambisassetransformaram em plantas, seus olhos brilhavam imóveis entre os galhos e assim escureceu, os griloscomeçaramacantar,asrãsacoaxareumsapogordíssimosubiunopédeLalita,quevontadedeesmagar,aquelagosma,aquelabarrigabranquelaeelenãosemexa,aluajásaiueelanãopossocontinuarquenemumdefunto,Fushía,queriachorareberrar.Anoiteestavaclara,morna,sopravaumabrisaleveeFushíanossacanearam,não se vênenhumapor aqui,que cachorros, ePantacha cale-se,patrão, vê?, já estão saindo.Com asmarolas do rio chegavam como rodelas, escuras, grandes, encalhavam e de repente semexiam,avançavamdevagarzinhoesuascarapaçasseacendiamcomluzesdouradas,duas,quatro,seis,aproximando-se, arrastando-se na areia, as cabeçorras de fora, rugosas, bamboleando, estarão nos vendo, farejando?, ealgumas já estavam escavando para fazer seus ninhos, outras saíam da água. E então, silenciosamente,surgiramdentreasárvoresrápidassilhuetascordecobre,eFushíavamos,corra,Lalita,equandochegaramàpraia,Pantachaveja,patrão,elasmordem,quasemearrancaramumdedo,asfêmeassãoasmaisferozes.Oshuambisas tinham viradomuitas e estavam grunhindo, contentes.De cabeça para baixo, com as cabeçasencolhidas,astartarugasmexiamaspataseFushíaconta,sãooitoeoshomensfaziamburacosnascarapaças,enfiavamcipósparapendurarePantachavamoscomeruma,patrão,comaquelaesperaficaramcomfome.Dormiramláenodiaseguinteseguiramviagemedenoiteoutraprainha,cincotartarugas,outrocolar,edormiram,viajaramdenovoeFushíaaindabemqueéépocadadesovaePantachaoqueestamosfazendoéproibido,patrão?,eFushíaelepassavaavidafazendocoisasproibidas,caboclo.Avoltafoimuitolenta,ascanoas iam rebocando os colares e as tartarugas resistiam, freavam e Fushía o que estão fazendo, seuscachorros, não batam nelas, vão matá-las e Lalita você me ouviu?, acredite, sinto enjoo, Fushía, estouesperandoumfilhoeelevocêsempreimaginaaspiorescoisas.Nocanal,astartarugasseenganchavamnasraízes do fundo e constantemente era preciso parar, os huambisas pulavam na água, as tartarugas osmordiameelessubiamnacanoarugindo.QuandoentraramnalagoaviramalanchaedonAquilino,nocais,sacudindoumlenço.Traziaconservas,panelas,facões,anisadoeFushíavelhoquerido,penseiquetinhaseafogadoeeletopeicomumalanchacheiadesoldadoseacompanhei-osparadisfarçar.EFushíasoldados?,e Aquilino houve uma confusão em Urakusa, os aguarunas bateram num cabo, parece, e mataram umpiloto,ogovernadordeSantaMaríadeNievatambémestavaindo,paraacertarascontas,senãofugissemiam acabar com a raça deles. Os huambisas puseram as tartarugas no tanque, deram-lhes folhas, cascas,formigasparacomer,eFushíaquerdizerqueocachorrodoReáteguiandaporaqui?,eAquilinoossoldadosqueriamqueeuvendesseasconservasparaeles,tivequeenganá-los,eFushíanãodiziamqueessecachorrodoReátegui ia voltarpara Iquitos e largaro governo?, eAquilino sim, eledizque vai emboradepoisderesolveresseproblema,eLalitaaindabemquechegou,donAquilino,eunãoestavagostandonadadaideiadecomertartarugaoinvernotodinho.

EassimdonAnselmoviroumangache.Masnãodanoiteparaodia, comoumhomemque escolheumlugar,fazasuacasaeseinstala;acoisafoilenta,imperceptível.Nocomeçoapareciapelaschicheríascomaharpadebaixodobraço,eosmúsicos(quasetodostinhamtocadoparaelealgumavez)oaceitavamcomoacompanhante.Aspessoasgostavamdeouvir,batiampalmas.Easdonasdaschicherías,quesentiamcarinhoporele,lheofereciamcomidaebebidae,quandoestavabêbado,umaesteira,umacobertaeumcantoparadormir. Nunca era visto em Castilla, nem cruzava a Ponte Velha, parecia decidido a viver longe daslembrançasedoareal.Nãofrequentavasequerosbairrospróximosaorio,aGallinacera,omatadouro,sóa

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Mangachería: a cidade se interpunha entre o seu passado e ele. E os mangaches os adotaram, ele e asorumbáticaChungaque,encolhidanumcanto,comoqueixoapoiadonosjoelhos,olhavacomhostilidadeparaovazioenquantodonAnselmotocavaoudormia.OsmangachesochamavamdedonAnselmo,massereferiama ele comooharpista, o velho.Porquedesdeo incêndio tinha envelhecidomuito: seusombroscaíram,opeitoafundou,surgiramgretasemsuapele,abarrigainchou,aspernassecurvarameelesetornousujo,descuidado.Ainda arrastava asbotasdosbons tempos,poeirentas,muitogastas, sua calça estava emfarrapos,acamisanãoconservavaumsóbotão,seuchapéuerafurado,asunhasestavamcompridas,pretas,eos olhos cheios de estrias e remelas. Sua voz enrouqueceu, suasmaneiras ficaram relaxadas.No começo,algunspoderososo contratavampara tocar em seus aniversários,batizados e casamentos; comodinheiroqueganhou,convenceuPatrocinioNayaaalojá-losemsuacasaeadardecomerumavezpordiaaeleeàChunga,quejáestavacomeçandoafalar.Masviviasempretãodesmazeladoetãobêbadoqueosbrancosdeixaramdechamá-loeentãocomeçouaganharavidacomopodia,ajudandonumamudança,carregandovolumesou limpandoportas.Aparecianaschicheríasaoescurecer,de improviso,comaChungaemumadasmãos,aharpanaoutra.EraumpersonagempopularnaMangachería,amigodetodosedeninguém,umsolitárioquetiravaochapéuparacumprimentartodomundomasquasenãotrocavaumapalavracomninguém,esuaharpa,suafilhaeoálcoolpareciamocupartodaasuavida.Dosseusantigoshábitos,sóhaviaperduradooódioaosgalinaços:bastavaverumparacomeçarajuntarpedras,bombardearexingaroinfeliz.Bebiamuito,maseraumbêbadodiscreto,nuncaagressivo,nadaagitado.Notava-sequeestavaébriopeloseuandar,nãoziguezagueantenemtrôpego,mascerimonioso:aspernasabertas,osbraçosrígidos,orostograve,osolhosfixosnohorizonte.

Seusistemadevidaerasimples.Aomeio-diasaíadacabanadePatrocinioNayae,àsvezeslevandoaChunga pela mão, às vezes sozinho, ia para a rua com uma espécie de urgência. Percorria o labirintomangacheempassosrápidos,iaevinhapelostortuosos,oblíquoscaminhos,eassimsubiaatéafronteirasul,oarealqueseprolongaatéSullana,oudesciaparaaentradadacidade,aquelafiladealfarrobeirasqueladeiaumcanal.Ia,retornava,voltavaair,combrevesescalasnaschicherías.Semomenorembaraçoentravae,quieto,mudo, sério, esperava que alguém lhe oferecesse um clarito, um copo de pisco: agradecia com acabeçaedepois saíaeprosseguiasuamarchaoupasseiooupenitência, semprenomesmoritmofebrilatéqueosmangachesoviampararemumlugarqualquer,cairnasombradeumbeiral,acomodar-senaareia,cobrirorostocomochapéuepermanecerassimdurantehoras,impassívelanteasgalinhasecabrasqueofarejavam,tocavamnoseucorpocomaspenaseasbarbas,cagavamnele.Nãotinhamelindresparapararostranseuntesepedirumcigarro,e,quandonegavam,nãoseaborrecia:seguiaseucaminho,altivo,solene.ÀnoitevoltavaàcasadePatrocinioNaya,embuscadaharpa,eàschicherías,masagoraparatocar.Passavahorasafinandoascordas,dedilhando-ascomdelicadezae,quandoestavamuitoembriagado,suasmãosnãolheobedeciammaiseaharpadesafinava,começavaamurmurar,seusolhosficavamtristes.

Às vezes ia ao cemitério e lá o viram furioso pela última vez, num dois de novembro, quando osguardas municipais o barraram na porta. Ele xingou, brigou, jogou pedras e por fim uns vizinhosconvenceramosguardasadeixá-loentrar.Efoinocemitério,emoutrodoisdenovembro,queJuanaBauraviuaChunga,quejádeviaestarcomunsseisanos,suja,emfarrapos,correndoentreostúmulos.Chamou-aelhefezcarinho.Depoisdisso,devezemquandoalavadeiravinhaàMangacheríacomseuburrocarregadoderoupaeperguntavapeloharpistaepelaChunga.Traziacomidaparaela,umvestido,sapatos,eparaelecigarroseumasmoedasqueovelhoiacorrendogastarnachicheríamaispróxima.EumdiaaChunganãofoi mais vista nas ruelas mangaches e Patrocinio Naya disse que Juana Baura a levara, de vez, para aGallinacera.Oharpista continuou suavida, suas caminhadas.Estavacadadiamaisvelho,mais imundoeesfarrapado,mas todos tinhamseacostumado,ninguémviravao rostoquandocruzavacomele, calmoehirto,ouquandoprecisavasedesviarparanãopisarnoseucorpojogadonaareia,sobosol.

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OharpistasócomeçouaseaventurarforadoslimitesdaMangacheríaanosdepois.Asruasdacidadecresciam,mudavam,ficavammaisdurascomparalelepípedosecalçadas,engalanavam-secomcasasnovaseestavambarulhentas,ascriançascorriamatrásdosautomóveis.Haviabares,hotéiserostosdesconhecidos,umaestradanovaparaChiclayoeagoraumaferroviadetrilhos lustrososuniaPiuraePaitapassandoporSullana.Tudosetransformava,ospiuranostambém.Nãoandavammaispelasruasusandobotasecalçasdemontar, e sim com ternos e até gravatas, e asmulheres, que tinham abandonado as saias escuras até ostornozelos,usavamcoresclaras,nãoandavammaisescoltadasporcriadaseescondidassobvéusegrandesxales,massozinhas,mostrandoorosto,decabelosolto.Cadavezhaviamaisruas,casasmaisaltas,acidadese dilatava e o deserto retrocedia. A Gallinacera desapareceu e em seu lugar surgiu um bairro de genteimportante.Certamadrugadaascabanasapinhadasatrásdomatadourosequeimaram;apareceramguardasmunicipais,policiais,comoalcaideeoprefeitoàfrente,retiraramtodomundocomcaminhõesetábuasenodia seguintecomeçarama traçar ruas retas,quarteirões, a construir casasdedois andares, e empoucotemponinguémmais pensava quenaquela asseada área residencial habitada por brancos haviammoradopeões.Castillatambémcresceu,transformou-senumapequenacidade.Asruassepavimentaram,chegouocinema,abriram-secolégios,avenidas,eosvelhossesentiamtransportadosparaoutromundo,reclamavamdedesconforto,indecências,atropelos.

Umdia,comaharpaembaixodobraço,ovelhoavançouporessacidaderenovada,chegouàPraçadeArmas, instalou-sedebaixodeumpéde tamarindo,começoua tocar.Voltouna tarde seguinte, emuitasoutras,principalmentenasquintas-feirasenossábados,diasderetreta.DezenasdepiuranosiamàPraçadeArmasouvirabandadoQuartelGraueeleseadiantava,ofereciasuaprópriaretretaumahoraantes,passavaochapéue,quandojuntavaunssoles,voltavaparaaMangachería.Estanãohaviamudado,nemtampoucoosmangaches.Lácontinuavahavendocasebresdepauapique,velasdesebo,cabrase,apesardoprogresso,nenhuma patrulha da Guarda Civil se aventurava de noite pelas suas ruas inóspitas. E, sem dúvida, oharpista se sentia mangache de coração, porque sempre acabava gastando ali no bairro o dinheiro queganhava com as apresentações na Praça de Armas. De noite continuava tocando na casa da Tula, daGertrudisoudaAngélicaMercedes,suaex-cozinheira,queagoratinhasuaprópriachichería.Nãosepodiamais conceber aMangachería semele,nenhummangachepodia imaginarquenamanhã seguintenãooveria rodandohieraticamentepelas ruelas, apedrejandourubus, saindodas cabanasdebandeiravermelha,dormindo ao sol, que não ouviria sua harpa, ao longe, na escuridão. Até por suamaneira de falar, naspoucasvezesemquefalava,qualquerpiuranoreconhecianeleummangache.

—Osinconquistáveisochamaramàsuamesa—disseaChunga.—Masosargentofaziadecontaquenãoestavavendo.

—Sempretãoeducado—disseoharpista.—Veiomecumprimentaremeabraçar.—Comessasbrincadeiras,estessacanasvãofazermeussubordinadosmeperderemorespeito,velho—

disseLituma.OsdoisguardasficaramnobarenquantoosargentoconversavacomdonAnselmo;aChungaserviu

cervejaeosLeóneJosefinonãoseacanharam.—ÉmelhorpararporqueaSelváticaestáficandotriste—disseoJovem.—Alémdomaisjáétarde,

maestro.—Nãofiquetriste,moça—amãodedonAnselmovoousobreamesa,derrubouumcopo,bateuno

ombrodaSelvática.—Avidaéassim,nãoéculpadeninguém.Essestraidores,botavamafardaenãosesentiammaismangaches,nãocumprimentavam,nãoqueriam

olhar.—Osguardasnãosabiamqueeracomosargento—disseaChunga.—Estavamsossegadostomando

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suascervejas,conversandocomigo.Maselesabia,fuzilava-oscomosolhos,ecomamãoesperem,calem-se.—Quemconvidouessessujeitosdefarda?—disseSeminario.—Muitobem,jáestãosedespedindo.

Chunga,façaofavordemandá-losembora.—ÉosenhorSeminario,ofazendeiro—disseaChunga.—Nãoliguem.—Jáoreconheci—disseosargento.—Nãoolhemparaele,rapazes,deveestarbêbado.—Agoraécomosmilicos—disseoMacaco.—Estefilhodaputaémetido.—Nossoprimodeveriaresponder,afardatemqueservirparaalgumacoisa—disseJosé.OJovemAlejandrotomouumgolinhodecafé:—Elechegavaaquitranquilo,masdepoisdetomardoiscoposseenfurecia.Deviateralgumamágoa

terrívelnocoraçãoedesabafavaassim,comprovocaçõesepancadas.—Nãofiqueassim,senhor—disseosargento.—Estamosfazendoonossotrabalho,ganhamospara

isso.— Já controlaramo suficiente, já viramque está tudo em calma—disse Seminario.—Agora vão

emboraedeixemaspessoasdecentessedivertiremempaz.—Nãoseincomodepornós—disseosargento.—Continueaproveitando,senhor.O rosto da Selvática estava cada vezmais aflito e, em suamesa, Seminario se contorcia de ódio, o

milicotambémoadulava,nãohaviamaismachosemPiura,oquefizeramdestaterra,maldição,aquilonãoerajusto.EentãoaHortensiaeaAmapolaseaproximaramdeleecomtrejeitosebrincadeirasoacalmaramumpouco.

—Hortensia,Amapola—dissedonAnselmo.—Quenomesvocêdeuaelas,Chunguita.—Eelesoquefizeram?—disseaSelvática.—DeviamestarfuriososcomoqueelefaloudePiura.—Soltavamfaíscaspelosolhos—disseoBolas.—Masoquepodiamfazer, estavammorrendode

medo.Eles não imaginavam que Lituma fosse tão maricas, estava armado e devia enfrentar Seminario, o

homeméabusadodemais,nãoadiantaprocurarpeloemovo,eaRitaquefalassemmaisbaixoporqueeleiaouvir,eaMaribelvaiterconfusão,eaSandracomsuasgargalhadas.Epoucodepoisarondaseretirou,osargentoacompanhouosdoisguardasatéaportaevoltousozinho.Foisentar-seàmesadosinconquistáveis.

—Seriamelhorquetivesseidoemboratambém—disseoBolas.—Ocoitado.—Porquecoitado?—protestouaSelvática,comveemência.—Eleéhomem,nãotemquedarpena.—Masvocêsempreochamadecoitadinho,Selvática—disseoBolas.—Soumulherdele—explicouaSelváticaeoJovemesboçouumvagosorriso.Litumaprotestava,porque caçoavamdelena frentedo seupessoal?E eles você temduas caras, fica

sérionafrentedosdoisedepoisosmandaemboraparasedivertir.Defardatinhampenadele,eraoutrapessoa, e ele vocêsmedão aindamais pena e logodepois se reconciliaram e voltaram a cantar: eramosinconquistáveis,nãosabiamtrabalhar,sóbeber,sójogar,eramosinconquistáveiseagoraiamtrepar.

—Fazerumhinosóparaeles—disseoharpista.—Ah,essesmangaches,sãoúnicos.—Masvocênãoémais,primo—disseoMacaco.—Vocêseentregou.—Nãoseicomonãotemvergonha,primo—disseJosé.—Nuncaseviuummangachevestidode

milico.—Deviamestarcontandopiadasouosseusporres—disseaChunga.—Dequequeriaquefalassem?—Dezanos,coleguinha—suspirouLituma.—Éincrívelcomoavidapassa.—Saúde,pelavidaquepassa—propôsJosé,comocoponoalto.— Os mangaches ficam meio filósofos quando estão bêbados. Contagiados pelo Jovem — disse o

harpista.—Deviamestarfalandodamorte.—Dezanos,parecementira—disseoMacaco.—LembradovelóriodeDomitilaYara,primo?

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—UmdiadepoisdechegardaselvaencontreiopadreGarcíaeelenãomecumprimentou—disseLituma.—Nuncanosperdoou.

—Quefilósofocoisanenhuma,maestro—disseoJovem,ruborizando-se.—Sóummodestoartista.— Deviam estar lembrando de coisas — disse a Selvática. — Sempre que se juntavam, ficavam

contandooquefaziamquandoeramcrianças.—Vocêjáestáfalandocomsotaquepiurano,Selvática—disseaChunga.—Nuncasearrependeu,primo?—perguntouJosé.— Milico ou outra coisa qualquer, tanto faz — Lituma encolheu os ombros. — Quando eu era

inconquistável, tivemuita farra emuitabrincadeira,mas tambémpasseimuita fome, colegas.Agorapelomenoscomobem,demanhãedetarde.Jáéalgumacoisa.

—Senãoforincômodo,euaceitariamaisumpouquinhodeleite—disseoharpista.ASelváticaselevantou,donAnselmo:iapreparar.—Aúnicacoisaquemedá invejaéquevocêcorreuomundo,Lituma—disse Josefino.—Enós

vamosserenterradossemsairdePiura.—Sóseforvocê—disseoMacaco.—EunãomorrosemconhecerLima.—Boamenina— disse Anselmo.— Sempre se oferece para tudo.Que serviçal, que simpática. É

bonita?—Nãomuito,émeioatarracada—disseoBolas.—Equandoestádesaltoalto,éengraçadocomo

anda.—Mastemunsolhoslindos—afirmouoJovem.—Verdes,grandões,misteriosos.Osenhorgostaria,

maestro.—Verdes?—disseoharpista.—Nacertaeugostaria.—Quempodiaimaginarquevocêiaacabarcasadoemilico—disseJosefino.—Elogo,logopaide

família,Lituma.—É verdade que asmulheres na selva são todas oferecidas?—disse oMacaco.—Sãomesmo tão

sensuaiscomodizem?—Muitomais do que dizem— afirmou Lituma.—Você tem que se defender. Se descuidar elas

sugamatéasuaalma,nemseicomonãosaídelácomospulmõesesburacados.—Entãoumsujeitolácomequantasquiser—disseJosé.—Principalmenteseforcosteiro—disseLituma.—Sãodoidinhaspeloshomensdacosta.—Elapodeatéserboagente,masquesentimentos—disseoBolas.—Sustentaoamigodomarido,e

ocoitadodoLitumanacadeia.—Nãosepodejulgartãorápido,Bolas—disseoJovem,comtristeza.—Éprecisosaberantesoque

foiqueaconteceu.Nãoéfácildescobriroqueháportrásdascoisas.Nuncajogueaprimeirapedra,irmão.—Edepoisaindadizquenãoéfilósofo—disseoharpista.—Ouça-o,Chunguita.—EmSantaMaríadeNievahaviamuitasfêmeas,primo?—insistiaoMacaco.—Davaparaterumapordia—disseLituma.—Muitas,efogosíssimas.Detodotipoeemgrandes

quantidades,brancas,moreninhas,erasóesticaramão.—E se eram tãogostosasporque se casou comessa aí?— riu Josefino.—Porque,não venhame

dizer,Lituma,elaésóolhos,orestonãovalenada.—Eledeuumsoconamesaqueseouviuaténacatedral—disseoBolas.—Discutiramporalgum

motivo,pareciaqueJosefinoeLitumaiambrigar.—Sãofaíscas,fosforinhos,queseacendemeseapagam,araivanuncaduramuito—disseoharpista.

—Todosospiuranostêmbomcoração.—Nãosabemaisaguentarbrincadeiras?—diziaoMacaco.—Comovocêmudou,primo.

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—Maselaéminhairmã,Lituma—exclamavaJosefino.—Achouqueeuestavafalandosério?Sente-se,colega,vamosbrindar.

—Acontecequegostodela—disseLituma.—Nãoépecado.—Éótimovocêgostardela—disseoMacaco.—Tragamaiscerveja,Chunga.—Acoitadanãoseacostuma,estáassustadanomeiodetantagente—diziaLituma.—Istoaquié

muitodiferentedaterradela,vocêsprecisamentender.—Claroqueentendemos—disseoMacaco.—Vamos,umbrindepelanossaprima.—É boníssima, como nos recebe, que banquetes nos prepara— disse José.—Nós três gostamos

muitodela,primo.—Estábomassim,donAnselmo?—disseaSelvática.—Nãoestámuitoquente?—Muitobom,ótimo—disseoharpista,saboreando.—Vocêtemmesmoolhosverdes,garota?Seminariotinhaseviradonadireçãodelescomcadeirae tudo,quebarulhoeraaquele,nãosepodia

mais conversar tranquilo?, e o sargento, com todoo respeito, já estavapassandodos limites,ninguém semetera com ele, que não se metesse com os outros, senhor. Seminario levantou a voz, quem estavampensandoqueeramparacontestá-lo,eclaroquesemetiacomeles,comosquatroetambémcomaputaqueostinhaparido,ouvirambem?

—Xingouamãedeles?—disseaSelvática,piscando.—Váriasvezesnaquelanoite,essafoiaprimeira—disseoBolas.—Essesricoscheiosdeterrasacham

quepodemxingaramãedequalquerum.AHortênsiaeaPapoulasaíramvoandodalie,nobalcão,Sandra,RitaeMaribelavançaramascabeças.

Osargentoestavacomavozembargadaderaiva,afamílianãotinhanadaavercomisso,senhor.—Senãogostou,venhacáterumaconversinhacomigo,caboclinho—disseSeminario.—MasLitumanãofoi—disseaChunga.—EueaSandraodetivemos.—Porquexingaramãequandoabrigaédehomens?—disseoJovem.—Mãeéacoisamaissanta

queexiste.EaHortensiaeaPapoulatinhamvoltadoparaamesadeSeminario.—Nãoosouvimaisrirnemcantaroseuhino—disseoharpista.—Ficaramdesmoralizadosdepois

queooutroxingouamãedeles.—Eseconsolarambebendo—disseaChunga.—Nãocabiammaisgarrafasnamesa.—Éporissoqueachoqueasmágoasládofundoexplicamtudo—disseoJovem.—Éporissoque

algunsvirambêbados,outrospadres,outrosassassinos.—Voumolharacabeça—disseLituma.—Essesujeitoestragouanoite.—Eleteverazãoparaficaraborrecido,Josefino—disseoMacaco.—Ninguémgostadeouvirque

suaprópriamulheréfeia.— Pois já estou cansado de tanta gabolice — disse Josefino. — Eu comi cem mulheres, conheço

metadedoPeru,viviagrandevida.Passaodiatodonosprovocandocomsuasviagens.—Nofundo,vocêestácomraivaporqueamulherdelenãolhedánematenção—disseJosé.—Seelesouberquevocêandaatrásdela,vaimatá-lo—disseoMacaco.—Estáapaixonadoporessa

fêmeaquenembezerrodesmamado.—Aculpaétodadele—disseJosefino.—Porqueficacontandovantagem?Nacamaelaépurofogo,

elasemexeassim,assado.Quesedane,queroverseessasmaravilhassãomesmoverdade.—Querapostarduaslibrasqueelanãovailhedarbola,irmão?—disseoMacaco.—Veremos—disseJosefino.—Naprimeiravezquismeesbofetear,nasegundasómexingouena

terceiranãoficounemaborrecidaeatémedeixouapertá-laumpouco.Jáestácedendo,euconheçoaminhagente.

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— Se conseguir, não se esqueça — disse José. — Onde passa um inconquistável, passam os três,Josefino.

—Nemseiporquetenhotantotesãoporela—disseJosefino.—Naverdade,nãoégrandecoisa.— Porque é de fora — disse o Macaco. — A gente sempre gosta de descobrir que segredos, que

costumeselastrazemdassuasterras.—Pareceumbichinho—disseJosé.—Nãoentendenada,passaodiatodoperguntandoporqueisto,

porqueaquilo.Eunãomeatreveriaaseroprimeiro.EseelacontaraLituma,Josefino?—É do tipo assustado—disse Josefino.—Percebi na hora.Não tem personalidade,morreria de

vergonhadelhecontar.Penaqueeleaengravidou.Agoravouterqueesperarquedêàluzparacontinuarotrabalhinho.

—Depois foramdançar com amaior tranquilidade—disse aChunga.—Parecia que estava tudobem.

—Asdesgraçaschegamderepente,quandoagentemenosespera—disseoJovem.—Comquemeleestavadançando?—disseaSelvática.— Com a Sandra — a Chunga olhava para ela com olhos apagados e falava devagar: — muito

coladinhos.Esebeijavam.Vocêtemciúmes?—Sóestavaperguntando—disseaSelvática.—Nãosouciumenta.E Seminario, de repente, firme, que fossem embora, destemperado, senão botava para fora aos

pontapés,rugindo,osquatrojuntos.

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III

—Nemumsomanoiteinteira,nemumaluz—disseosargento.—Nãoachaesquisito,meutenente?—Devemestardooutrolado—disseosargentoRobertoDelgado.—Ailhaparecegrande.—Jáestáclareando—disseotenente.—Quetragamaslanchas,massemfazerbarulho.Entreasárvoreseaágua,osuniformestinhamumaaparênciavegetal.Apinhadosnoredutoestreito,

encharcadosatéosossos,osolhosébriosdefadiga,osguardasesoldadosajustavamascalças,asperneiras.Estavam envoltos numa claridade esverdeada que se filtrava pela ramagem labiríntica e, entre as folhas,galhos e cipós,muitos rostos apresentavammordidas, arranhões roxos.O tenente avançou até abeiradalagoa,afastouafolhagemcomumadasmãos,comaoutrapôsosbinóculosnosolhoseesquadrinhouailha:um barranco alto, encostas cor de chumbo, árvores de troncos robustos e copas frondosas. A águareverberava,jáseouviamospássaroscantar.Osargentofoiagachadoatéotenente,embaixodosseuspésafloresta rangia e crepitava.Atrásdeles, as silhuetasdifusasdeguardas e soldadosquasenão semexiamnomatagal,destampavamcantiseacendiamcigarrosemsilêncio.

— Não estão mais discutindo — disse o tenente. — Ninguém diria que passaram a viagem todabrigando.

—Anoiteruimobrigou-osaficaremamigos—disseosargento.—Ocansaço,odesconforto.Nãohánadacomoessascoisasparaoshomensseentenderembem,meutenente.

—Vamoscercá-losantesqueamanheçacompletamente—disseotenente.—Precisamoscolocarumgruponamargemdafrente.

—Sim,masparaissotemosqueatravessaralagoa—disseosargento,apontandoailhacomumdedo.—Sãounstrezentosmetros,meutenente.Vãonoscaçarfeitopassarinhos.

OsargentoRobertoDelgadoeosoutrosseaproximaram.Alamaeachuvaigualavamosuniformesesóoscapaceteseosquepesdistinguiamosguardasdossoldados.

—Vamosmandarumemissário,meutenente—disseosargentoRobertoDelgado.—Nãovãoteroutroremédio,têmqueserender.

—É estranho que não tenhamnos visto—disse o sargento.—Os huambisas têmouvido afiado,comotodososíndios.Podeserqueagoramesmoestejamnosespreitandolánaspaineiras.

—Nãodáparaacreditar—disseosargentoDelgado.—Pagãosvivendonomeiodepaineiras,comopânicoquetêmdelas.

Os soldados e guardas escutavam: peles lívidas, pequenos abscessos de sangue coagulado, olheiras,pupilasinquietas.Otenentecoçouabochecha,vejamos,trêsespinhasformavamumtriânguloroxoemsuatêmpora, os dois sargentos estavam se cagando de medo?, e uma mecha de cabelo sujo caía na testasemiocultapelaviseira.Oquê?Talvezosseusguardasestejamcommedo,meutenente,osargentoRobertoDelgadonãosabiacomoentender isso.Ouviu-seummurmúrioe,nummesmomovimentoqueagitouafolhagem,oPequeno, oEscuro e oLouro se afastaramdos soldados: era umaofensa,meu tenente, nãoadmitiam,comquedireito?,eotenentetocounacartucheira:aquilopodialhecustarcaro,senãoestivessememmissãoeleiaver.

—Era só brincadeira,meu tenente— gaguejou o sargentoRobertoDelgado.—No exército nósfazemospiadascomosoficiaiseelesnãoseaborrecem.Penseiquenapolíciaeraigual.

Um rumor de água invadida abafou suas vozes e ouviu-se um cuidadoso chapinhar de remos, um

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deslizar. Sob uma cascata de cipós e juncos apareceram as lanchas.Opiloto Pintado e o soldado que asconduziamestavamsorridentesenemseusgestosnemseusmovimentosrevelavamfadiga.

—Afinal,talvezsejamelhormesmopedirarendição—disseotenente.—Claro,meutenente—disseosargentoRobertoDelgado.—Nãosugeri issopormedo,maspor

estratégia.Sequiseremfugir,daquinósfazemostiroaoalvocomeles.—Emcompensação,seformosparalá,podemnosexterminarenquantoatravessamosalagoa—disse

osargento.—Nóssomosapenasdezeelesnãosesabequantos.Enemquearmastêm.Otenentevirou-seeguardasesoldadosficaramtensos:quemeraomaisantigo?Umaexpressãoansiosa

emtodosos rostos, rictosnasbocas,piscadasassustadas, eo sargentoRobertoDelgadoapontouparaumsoldadobaixinhoebronzeado,quedeuumpassoàfrente:soldadoHinojosa,meutenente.Muitobem,queosoldadoHinojosa levasseoshomensdeBorjaparaooutro ladoda lagoaeospostasseemfrenteà ilha,sargento.Otenenteficariaaquicomosguardas,vigiandoabocadocanal.EparaqueentãovieraosargentoRobertoDelgado,meutenente?Ooficialtirouoquepe,paraquê?,alisouocabelocomamão,eleiadizere,ao pôr de novo o quepe, a mechinha da sua testa havia desaparecido: os dois sargentos iam lá pedir arendição.Que soltassem as armas e formassemno barranco, demãos na cabeça, sargento, o Pintado oslevaria.Ossargentosseentreolharam,semfalar,soldadoseguardas,misturadosoutravez,sussurravamenosseusolhosjánãohaviatemoresimalívio,faíscaszombeteiras.AtrásdeHinojosa,ossoldadossubiramnumadaslanchasquebalançoueafundouumpouco.Opilotoergueuavarae,denovo,umestalidodelicado,avibração da folhagem, os capacetes desapareceram sob as samambaias e cipós e o tenente examinou ascamisasdosguardas,Pequeno,queatirasse:adeleeraamaisbranca.Osargentoiaamarrá-lanofuzile,jásabia,setentassemqualquercoisa,bala,semcontemplações.Ossargentosjáestavamnalanchae,quandooPequeno lhes deu sua camisa, o Pintado impulsionou a embarcação com o remo. Deixou-a flutuarlentamente por entre a folhagemmas, assim que entraram na lagoa, ligou omotor e, com aquele sommonótono,oarficoupovoadodeavesquefugiamdasárvores,buliçosamente.Umresplendoralaranjadocrescia atrásdaspaineiras,na espessurados arredores tambémse refletiamasprimeiras lançasdo sol, e aságuasdalagoapareciamlimpasequietas.

—Ah,companheiro,euestavaapontodemecasar—disseosargento.—Maslevantemaisessefuzil—disseosargentoDelgado—,paraquevejambemacamisa.Atravessarama lagoa semtirarosolhosdobarrancoedaspaineiras.Pintadomantinhao rumocom

umadasmãos e comaoutra esfregava a cabeça,o rosto,osbraços, afetadoporumacoceira repentina egeneralizada. Jádivisavamumaprainha estreita, lamacenta, comarbustos sem folhas e troncos flutuantesque deviam servir de cais.Namargem oposta, a lancha dos soldados atracava e estes desciam correndo,tomavamposiçãoadescoberto,apontavamseusfuzisparaa ilha.Hinojosatinhaboavoz,bonitosaqueleshuaynitosqueelecantaraemquéchuaontemànoite,nãoeram?Sim,masporquenãoosestavavendo,porquenãosaíam?OSantiagoestavacheiodehuambisas,companheiro,ospagãosqueosviramchegardevemteravisadoosoutroseelestiveramtempodefugirpeloscanais.Alanchaembicourumoaocais.Amarradoscom cipós grossos, os troncos flutuantes fervilhavam de musgo, fungos e líquenes. Os três homensobservavamobarrancoquasevertical,aspaineirascurvasecorcundas:nãohavianinguém,meussargentos,masquesustotinhamlevado.Ossargentospularam,chapinharamnalama,começaramasubir,oscorposcoladosnaencosta.Osargentolevavaofuzilnoalto,umventoquentefaziaacamisadoPequenoondulare,quandochegaramaotopo,umsolperfurantefezcomquefechassemosolhoseosesfregassem.Trançasdecipóspreenchiamos espaços entrepaineira epaineira,quando tentavamespiarpor entre a folhagemumdensocheiroputrefatochegavaaosseusrostos.Porfimencontraramumaabertura,avançaramenterradosaté a cintura num capim selvagem e rumoroso, depois seguiram uma trilha que se estendia, sinuosa,minúscula, entre avenidas de árvores, sumia e reaparecia junto a um matagal ou a um penacho de

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samambaias.O sargento RobertoDelgado estava nervoso, porra, que levantasse bem esse fuzil para elesveremqueestavamcomabandeirabranca.Ascopasdasárvoresformavamumaabóbadacompactaquesóalguns filamentosde solperfuravamvezporoutra,nesgasdouradasqueeramcomovibraçõesepor todaparte se ouviamvozesdepássaros invisíveis.Os sargentosprotegiamos rostos comasmãos,masmesmoassim sentiam espetadas, arranhões que queimavam. A trilha terminou de repente numa clareira desuperfície lisa e arenosa, sem vegetação, e então viram as cabanas: ah, companheiro, olhe isso aí. Altas,sólidas,masjámeiodevoradaspelafloresta.Umadelashaviaperdidootetoeumburacoquepareciaumaferida redondamaculava a fachada; da outra emergia uma árvore que disparava impetuosamente os seusbraçospeludospelas janelas, e asparedesdeambas tinhamdesaparecido sobcrostasdehera.Emvolta sóhaviacapimalto;asescadinhasdespencadas,refénsdetrepadeiras,serviamdebaseparacauleseraízes,enosdegrauseestacastambémsedivisavamninhos,formigueirosinchados.Ossargentosandavamemvoltadascabanas,esticavamospescoçosparaverointerior.

—Nãopartiramontemànoite,foihámuitotempo—disseosargentoDelgado.—Omatojáquaseasengoliu.

—Ascabanasnão sãodehuambisas, e simdecristãos—disseo sargento.—Ospagãosnão fazemcabanastãograndese,alémdomais,quandosemudamlevamsuascasasnascostas.

—Aquihaviaumaclareira—disseosargentoDelgado.—Asárvoressãonovinhas.Moravabastantegentenestelugar,compadre.

—Otenentevaificarfurioso—disseosargento.—Eletinhacertezadequeiapegaralguns.—Vamoschamá-lo—disseosargentoDelgado;apontouofuzilparaumacabana,disparouduasvezes

eoecorepetiuosdisparos,aolonge.—Vãopensarqueosladrõesestãonoscozinhando.—Paradizeraverdade,prefiroquenãohajaninguém—disseosargento.—Voumecasar,nãoestou

dispostoalevarumtironacabeça,naminhaidade.—Vamosrevistarantesqueosoutroscheguem—disseosargentoDelgado.—Talvezhajaalguma

coisaquevalhaapena.Só encontraram restos enferrujados, transformados em aposentos de aranhas, e as madeiras roídas,

minadas pelos cupins, quebravam sob os seus pés ou afundavam suavemente. Saíram das cabanas,percorrerama ilhaeaquieali se inclinavamsobre lenhoscarbonizados, latasenferrujadas,pedacinhosdecântaros.Numdeclivehaviaumapoçadeáguaestancadaonde,entreexalaçõesfétidas,planavamnuvensdemosquitos. Duas fileiras de estacas cercavam o poço como uma rede pontiaguda e o que era aquilo, osargentoRobertoDelgadonunca tinha visto.Oque será, coisa de índios,mas eramelhor saíremdaqui,cheiravamalehaviatantavespa.Voltaramparaascabanaseotenente,osguardaseossoldadosavançavampelaclareiracomosonâmbulos,apontandoparaasárvores,inquietoseperplexos.

—Dezdiasdeviagem!—gritouotenente.—Tantotrabalhopara isso!Quandocalculamqueelespartiram?

—Paramim,hámeses,meutenente—disseosargento.—Talvezmaisdeumano.— Não eram duas, e sim três cabanas, meu tenente — disse o Escuro. — Aqui havia outra, uma

ventaniadevetê-laarrancadointeirinha.Aindaseveemasestacas,olhe.—Paramimjápassaramváriosanos,meutenente—disseosargentoDelgado.—Vejaestaárvore

quecresceuládentro.Afinaldecontas,tantofazia,otenentesorriudesencantado,ummêsoudezanos,exausto:tinhamse

enganadodomesmojeito.EosargentoDelgado,então,Hinojosa,umaboarevista,equeempacotassemoquefossecomestível,potáveleusáveleossoldadosseespalharampelaclareiraesumiramentreasárvores,eo Louro que fizesse um pouco de café para tirar o gosto ruim da boca. O tenente se agachou, ficouescavandoochãocomumgalhinho.Ossargentosacenderamcigarros;passavamenxameszunindoemcima

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dassuascabeçasenquantoconversavam.OpilotoPintadocortougalhossecos,fezumafogueirae,enquantoisso,nascabanas,doissoldadosjogavamparacimagarrafas,vasosdebarro,cobertasesfarrapadas.OLouroaqueceu uma garrafa térmica, serviu café fumegante nuns copinhos de latão, e o tenente e os sargentosestavamterminandodebeberquandoseouviramgritos,oquê?,eapareceramdoissoldadoscorrendo,umsujeito?, o oficial se levantou num pulo, o que foi? e o soldadoHinojosa: ummorto,meu tenente, foiencontradonumaprainhaláembaixo.Huambisa?Cristão?Otenentecorriaseguidoporguardasesoldadose, por alguns instantes, só se ouviu o crepitar da folhagem ao ser pisoteada, o suave runrum do capimagredidopeloscorpos.Velozeseatropelando-secontornaramasestacas,lançaram-sepelaencosta,passarampor uma fossa coalhada de pedregulhos e, quando chegaram à prainha, pararam em volta do corpoestendido.Estavadebarrigaparacima,acalçarasgadanãoocultavaseusmembrosimundoseestropiados,apele escura. Suas axilas eramduasmoitasnegruscas, condensadas, e asunhasdasmãos edospés estavammuito compridas. Crostas e chagas ressecadas roíam seu torso, seus ombros, uma parte da línguaesbranquiçadapendiados lábiosrachados.Osguardasesoldadosoexaminavame,derepente,osargentoRobertoDelgado sorriu, agachou-se e aspirou, comonariz junto à bocadohomemestendidono chão.Entãodeuumrisinho,levantou-seechutouascostelasdohomem:espereaí,rapaz,quenãochutasseassimodefunto eo sargentoRobertoDelgado, chutandooutra vez, quedefuntoquenada,não sentia o cheiro,meutenente?Todosseinclinaram,farejaramocorporígidoeindiferente.Nãoédefunto,meutenente,essecompadre estava é sonhando. Com uma espécie de crescente, enfurecida alegria deu mais pontapés e ohomemdeitadosecontraiu,umsomroucoeprofundosaiudasuaboca,caramba:eraverdade.Otenenteempunhou os cabelos do homem, sacudiu-o e, de novo, debilmente, aquele ronco interior. Estavasonhando, esse infeliz, e o sargento sim, olhem, ali estava a infusão. Ao lado das cinzas prateadas e daslasquinhasde lenhadeuma fogueirahaviaumapaneladebarro,chamuscada,cheiadeervas.Dezenasdesaúvascomtesourascompridaseabdômenpretíssimoaescalavamenquantooutras, formadasemcírculo,protegiamoataque.Seestivessemortoosinsetosjáoteriamcomido,meutenente,sóficariamosossos,eoLouro mas já tinham começado, pelas pernas. Algumas saúvas subiam pelas solas curtidas e outrasinspecionavam os peitos dos pés, os dedos, os tornozelos, tocavam na pele com suas finas antenas e, aopassar,deixavamumafileiradepontinhosroxos.OsargentoRobertoDelgadochutoudenovo,nomesmolugar.Agorahaviauminchaçonascostelasdohomemdeitado,umcalombooblongocomovérticeescuro.Elecontinuavaimóvelmas,devezemquando,proferiaoronquidoocoesualínguaselevantava,lambiapenosamente os lábios. O maldito estava no paraíso, não sentia nada, e o tenente água, rápido, e quelimpassemseuspés,porra,asformigasoestavamcomendo.OPequenoeoLouroesmagaramassaúvas,doissoldadostrouxeramáguadalagoanoscapacetesemolharamacaradohomem.Eleagoratentavamexerosmembros, a crispação encolhia seu rosto, sua cabeça pendia para a direita e para a esquerda.De repentearrotou eumdosbraços sedobrou lenta,desajeitadamente, suamãobateunopróprio corpo, apalpouoinchaço, acariciou-o.Agora respirava com ansiedade, o peito havia crescido, a barriga desaparecera e sualíngua se esticava, branca, comuns coágulos de saliva verde.Os olhos continuavam selados, e o tenentepediaaossoldadosmaiságua:estavavainãovai,rapazes,tinhamqueacordá-lo.Ossoldadoseguardasiamaté a lagoa, voltavamederramavam jorrinhosde águanohomeme ele abria abocapara recebê-los, sualínguaruidosaruidosamentesorviaasgotinhas.Seusgemidosjáerammaisnaturaisecontínuos,etambémascontraçõesdocorpoqueparecialibertodeatadurasinvisíveis.

—Deem-lheumpoucodecafé,reanimemestecamaradadequalquer jeito—disseotenente.—Econtinuemjogandoágua.

—NãocreioqueaguenteatéSantaMaríadeNievacomoestá,meutenente—disseosargento.—Vaimorrernocaminho.

—Entãoo levoparaBorja,queémaisperto—disseotenente.—VolteparaNievaagoramesmo

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com os rapazes e diga a don Fabio que pegamos um deles.Que os outros já vão aparecer. Vou para aguarniçãocomossoldadoseláummédicocuidarádele.Esseaínãomorredejeitonenhum.

Afastados poucos metros do grupo, o tenente e o sargento fumavam. Os guardas e soldados semovimentavam em volta do homem deitado, jogavam água, sacudiam seu corpo, enquanto ele pareciaexercitarcomdesconfiançasualíngua,suavoz,ensaiandotenazmentenovosmovimentosesons.

—Esenãofordobando,meutenente?—perguntouosargento.— Por isso vou levá-lo para Borja — disse o tenente. — Lá há aguarunas das aldeias que foram

saqueadaspelosbandidos,veremosseoreconhecem.DigaadonFabioqueaviseReátegui.—Osujeitojáestáfalando,meutenente—gritouoPequeno.—Venhaouvir.—Entenderamoqueeledisse?—perguntouotenente.—Deumrioquesangra,deumcristãoquemorreu—disseoEscuro.—Coisasassim,meutenente.—Sómefaltaqueestejalouco,parameuazar—disseotenente.— Sempre desvariam um pouco quando estão sonhando—disse o sargentoRobertoDelgado.—

Depoispassa,meutenente.

Estavaanoitecendo,FushíaedonAquilinocomiammandiocacozida,tomandoaguardentenogargalodagarrafa, e Fushía já escureceu, Lalita, acenda o lampião, ela se agachava e ai-ai-ai, a primeira dor, nãoconseguiaselevantar,caiunochãochorando.Ergueram-na,puseram-nanarede,Fushíaacendeuolampiãoeelaachoquechegouahora,estoucommedo.EFushíanuncaviumamulhermorrerparindoeAquilinoeutampouco,nãosepreocupe,Lalita,eraomelhorparteirodaselva,podiamexernela,Fushía?nãosentiaciúme?,eFushíavocê jáestávelhoparadarciúme,vai,mexa logo.DonAquilinotinha levantadoa saia,ajoelhava-separaverePantachaentroucorrendo,patrão,estavambrigando,eFushíaquem,ePantachaoshuambisascomoaguarunaquedonAquilinotrouxe,donAquilinocomJum?PantachaarregalouosolhoseFushíalhedeuumabofetadanorosto,cachorro,olhandoparaamulherdosoutros.Eleesfregavaonariz,desculpe,patrão,sóvieraavisar,oshuambisasqueremqueJumváembora,osenhorsabequeelesodeiamosaguarunas,ficaramfuriososeeleeNievesnãoconseguiamcontê-los,apatroaestavadoente?EdonAquilinoémelhorvocêirláver,Fushía,nãodeixequeomatem,comotrabalhoquetiveparaconvencê-loaviràilhaeFushíaputamerda,vamosterquedarmasatoparaelesseembebedaremjuntos,ousematamouficamamigos.SaíramedonAquilinoseaproximoudeLalita,massageou-lheaspernas,pararelaxarosmúsculos,abarriga,paraacriançasairsuavezinho,vocêvaiver,eelarindo,chorando,iacontaraFushíaqueeleestavaaproveitandoparapassaramão,eleriaeai-ai-ai,outravez,nascostelas,ai-ai-ai,deviamestarquebrando,edonAquilinotomeumgolinhoparaseacalmar,elabebeu,vomitouemanchoudonAquilinoqueestavabalançandoarede,nanaLalita,meninabonita,eador iapassando.Umas luzesvermelhasdançavamemvolta do lampião, veja, Lalita, os vaga-lumes, as ayañahuis, quando alguém morre seu espírito viramariposinha noturna, sabia?, de noite fica iluminando a floresta, os rios, as lagoas, quando ele morrer,Lalita,elasempreiaterumaayañahuiaoseulado,euvouseroseulampião.Eelaestoucommedo,donAquilino, não fale da morte e ele não se assuste, balançando a rede, era para distraí-la, com um panomolhado lhe refrescava a testa, não vai acontecer nada de ruim, o neném vai nascer antes do dia raiar,quando toquei vi que é menino. A cabana ficou impregnada de cheiro de baunilha e o vento úmidotambémtraziamurmúriosdomato,trinardecigarras,latidoseasvozesdeumabrigadestemperada.Eelasuasmãos são bem suaves, don Aquilino, issome relaxa um pouco, e que cheiro gostoso,mas não estáouvindooshuambisas?,váver,donAquilino,esemataremFushía?Eeleissoeraimpossível,Lalita,nãosabequeeleécomoodiabo?ELalitaháquantotemposeconhecem,donAquilino,eelejávãoparadezanos,nuncaseestrepouapesardeentrarnaspioresconfusões,Lalita,coisasmuitofeias,escapadosinimigosfeitocobraderio.EelaficaramamigosemMoyobamba?,edonAquilinoeueraaguadeiro,elemetransformou

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em comerciante, e ela aguadeiro?, e don Aquilino de casa em casa com um burro e os recipientes,Moyobamba é pobre, gastava o pouco que ganhava com metileno para melhorar a água ou senão emmultas,eumdiaFushíachegou,foimorarnumbarracoaoladodomeueassimficaramamigos.Eelacomoeranessaépoca,donAquilino?,eeledeondeveio, todosperguntavam,maserapuromistérioementira,malfalavacristão,Lalita,faziaumamisturadacombrasileiro.EFushíacoragem,homem,vocêvivefeitoumcachorro, não está cansadodisso?, vamosnosdedicar ao comércio e ele é verdade, feitoumcachorro.ELalitaoque fizeram,donAquilino? e ele,umagrandebalsa eFushía comprava sacosdearroz, tecidodealgodão,percalesapatos,abalsaquaseafundavadetantopeso,esenosroubarem,Fushía?EFushíacaleaboca,seuputo,eutambémcompreiumrevólver.ELalitafoiassimquecomeçaram,donAquilino?,eeleíamosaosacampamentoseosseringueiros,mateirosegarimpeirostragamissoeaquilonapróximaviagemeeles levavam,edepoisforammatoadentroatéastribos.Bomcomércio,omelhor,miçangasporpelasdeseringa, espelhinhos e facaspor couros e foi assimqueos conheceram,Lalita, ficaramgrandes amigosdeFushía,vocêviucomooajudam,eleéumdeusparaoshuambisas.ELalitaascoisasiambem,então?EelepodiamirmelhorseFushíanão fosseumdiabo, roubavade todoseafinal tinhamquesairàspressasdosacampamentos e os guardas os seguiam, precisaram se separar e ele veio ficar comos huambisas por umtempoedepoisfoiparaIquitos,ondecomeçouatrabalharcomReátegui,foiláquevocêoconheceu,Lalita?E ela e o que o senhor fez então, donAquilino? E ele a vida livre tinha entrado no seu sangue, Lalita,semprecomacasanascostasfeitoumatartaruga,semlugarfixo,econtinuoucomerciandosozinho,masdemaneirahonesta.ELalitaesteveemtudoqueé lugar,nãoémesmo,donAquilino?,eelenoUcayali,noMarañónenoHuallaga,eaprincípionãoiaatéoAmazonasporcausadapéssimafamaqueFushíadeixara,masvoltoualgunsmesesdepoiseumdia,numacampamentodoItaya,eunãoacreditavanosmeusolhos,encontreiFushía,Lalita,transformadoemcomerciante,comintermediáriosetudoeentãomecontoudonegóciocomReátegui.ELalitacomodevemterficadocontentesaoseveremdenovo,donAquilino,eelechoramos,bebemosrecordando,Fushía,afortunasorriuparavocê,ponhaacabeçanolugar,sejadecente,nãosemetamaisemconfusões,eFushíavocêvaificarcomigo,Aquilino,écomoumaloteria,tomaraqueaguerradure,eeleentãoéborrachaparacontrabando?,eFushíaporatacado,homem,elesvãobuscaremIquitos,embalamemcaixotescomoletreiroquedizfumo,Reáteguivaificarmilionárioeeutambém,nãoodeixoirembora,Aquilino,voucontratá-loeelaporquenãoficoucomele?,eeleestavaficandovelho,Fushía,nãoqueriasustosnemirparaacadeia,eai--ai-ai,estoumorrendo,ascostas,agorasimestávindo,quenãoseassustasse,ondehaviaumafacaeaestavaaquecendono lampiãoquandoFushíaentrou.DonAquilinonão fizeramnada comJum?, eFushía agora estãobebendo juntos,Pantacha eNieves também.Nãoiadeixarqueomatassem,precisavadele,seriaumbomcontatocomosaguarunas,masoquefoiquelhefizeram,quemqueimousuasaxilas?,soltampus,velho,easferidasdascostas,penaseinfeccionaremeelemorrerdetétano,edonAquilinofoiemSantaMaríadeNieva,ossoldadoseospatrõesdelá,equemlhepartiuacabeçafoioseuamigoReátegui,sabiaqueafinalelefoiparaIquitos?EFushíatambémrasparamacabeça,estavamaisfeioqueumgirino,eai-ai-ai,ascostelas,muito,muito,edonAquilinofoisefazerdeespertoedissenãoaopatrãoquecompravaaborracha,nósmesmosvamosvenderemIquitos,eraumtaldeEscabino,parece,eaindaporcimaespancaramumcaboquefoiatéUrakusaemataramopiloto,eFushíaquebobagem,eleestávivinhoeabanandoorabo,éAdriánNieves,aquelequeeurecolhimêspassado,edonAquilinoeusei,maséissoquedizemeelasepartiaaomeio,façaalgumacoisa,Fushía,peloamordeDeus. E Fushía odeia cristãos?, melhor ainda, que convença os aguarunas a me darem o látex, grandesprojetos,velho,empoucosanosvoltariaparaIquitos, rico,vocêvaivercomovãomereceberosquemederamascostas,edonAquilinoferveágua,Fushía,ajude,nemparecequeéopai.Fushíaencheuabacia,acendeuo fogo, e ela cadavezmais fortes, seguidos, respiravaquase se asfixiando, tinhaa cara inchadaeolhosdepeixemorto.DonAquilinoseajoelhou,apalpou-a,jáseabriaumpouquinho,Lalita,estavavindo,

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nãofiquenervosa.EFushíaaprendacomashuambisasquevãosozinhasparaomatoesóvoltamquandojápariram.DonAquilinoqueimavaa facaeasvozesde fora seperdiamentreestalidoseassobios, eFushíaviram?,elesnãoestãobrigandomais, ficaramíntimos,eovelhovai sermenino,Lalita,oque foiqueeudisse,queouvissebem,ospaus-mulatosestavamcantando,nãoerravanunca.EFushíaémeiocaladoedonAquilinomaiscomedido,passouaviagemtodameajudando,diziaquedoiscristãosdesgraçaramUrakusacomseusenganoseFushía,velho,vocêvaiganharhorroresnasuapróximaviagemedonAquilinoquandovocêvaiparardesonhareelenãotinhaprogredidodesdeaprimeiravez?EAquilinoeunãovoltariaàilhase não fosse por você, Lalita, gostava dela, e ela quando o senhor chegou estávamos quasemorrendodefome,donAquilino, lembra comochorei quandovi as conservas e omacarrão?, eFushíaquebanquete,velho,passaramatémalporquenãoestavamacostumados,ecomotivequepedir,porquenãoqueriaajudá-lo?,ealémdomaisiaganhardinheiro.Eovelhomaséroubado,Fushía,vocêsvãoacabarnacadeia,nãovou vender esse látex nem esses couros, e Fushía todo mundo sabe que você é honesto, por acaso osseringueiros, os mateiros e os índios não lhe pagam em couros, em seringa e em pepitas de ouro? Seperguntarem você diz são meus ganhos, e o velho nunca tive tantos, e Fushía não leve tudo numa sóviagem, aos pouquinhos e ai-ai-ai, de novo, don Aquilino, as pernas, as costas, Fushía ai-ai-ai. E donAquilino,nãoquero,osíndiosiriamprotestarmaiscedooumaistarde,apolíciaviria,eospatrõesnãoiamficardebraçoscruzadosenquantoeleatravessavaoseunegócio,eFushíaosshapras,aguarunasehuambisassematamentresi,nãoseodeiam?,ninguémiapensarquehaviacristãosmetidosnisso,eovelhonão,demaneiranenhuma,eFushíapodia levaramercadoriapara longe,bemescondida,Aquilino,paravendê-lamais barato aos próprios seringueiros e eles vão ficar felizes. E por fim o velho aceitou e Fushía era aprimeira vezque lhe acontecia isso,Lalita, dependerdahonestidadedeumcristão, seo velhoquisermeenganar,vendetudoeembolsaodinheiro,sabequeestoupresoaquieatépodedizeràpolíciaohomemquevocêsprocuram estánuma ilhazinha, Santiago acima.Demorouquase doismeses eFushíamandavaremadoresatéoMarañóneoshuambisasvoltavam,nada,nãoestá,nãovem,essecachorro,eumatardeeleapareceunabocadocanaldebaixodeumaguaceiroe trazia roupa, comida, facões equinhentos soles.ELalita podia abraçá-lo, beijá-lo como um pai?, e Fushía nunca tinha visto, velho, que honesto, não iaesquecer,Aquilino,comoseportacomigo,noseulugarelefugiriacomodinheiroeovelhovocênãotemalma, para ele a amizade valia mais que o negócio, a gratidão, Fushía, deixei de ser o cachorro deMoyobamba graças a você, o coração não esquecia, ai-ai-ai, ai-ai-ai, e don Aquilino agora começou deverdade,Lalita,empurre,empurreparanãosesufocaraosair,empurrecomtodaaalma,grita.Estavacomafaca na mão e ela reze, ai-ai-ai, Fushía e don Aquilino ia massageá-la mas empurre, empurre, Fushíaaproximouolampiãoeficouolhando,ovelhoconsole-aumpouco,segureamãodela,homem,eelaquelhedessemágua, estava se rasgando,queaVirgemaajudasse,queoCristodeBagazána ajudasse, santo,santo,elaprometiaeFushíaaquiestáaágua,nãoberretantoequandoLalitaabriuosolhosFushíaolhavaparaaesteiraedonAquilinoestousecandosuaspernas,Lalita,jápassou,viucomofoirápido?EFushíasim,velho,émacho,masestávivo?,nãosemexenemrespira.DonAquilinoseagachou,ergueu-odaesteiraeeraescuroeoleosocomoummacaquinhoeosacudiueelegritou,Lalita,olhe-o,tantomedopornadaeagoraquedormisse,eelasemosenhoreuteriamorrido,queriaqueofilhosechamasseAquilino,eFushíaquesejapelaamizademasquenomemaisfeio,donAquilinoeFushía?Eele,éestranhoserpai,velho,temosquecomemorar,edonAquilinodescanse,moça,queriaoneném?,tome,estavasujo,limpe-oumpouco.DonAquilinoeFushíasesentaramnochão,bebiamaguardentedogargaloe lá foracontinuavaobarulho,oshuambisas,oaguaruna,Pantacha,opilotoNievesdeviamestarvomitandoeoquartoardiademariposinhas,osvaga-lumesricocheteavamnasparedes,quemdiriaqueianascertãolongedeIquitos,nomatocomoosindiozinhos.

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AorquestranasceunacasadePatrocinioNaya.OJovemAlejandroeocaminhoneiroBolasiamalmoçarlá,encontravam don Anselmo que estava se levantando e, enquanto Patrocinio cozinhava, os três ficavamconversando.DizemqueoJovemfoioprimeiroaconquistarsuaamizade;ele,queeratãosolitáriocomodonAnselmo,etambémmúsicoetriste,deviavernovelhoumaalmagêmea.Contava-lhesuavida,suasmágoas.Depoisdecomer,donAnselmopegavaaharpa,oJovem,oviolãoetocavam:oBolasePatrocinioouviam, emocionavam-se, batiam palmas. Às vezes, o caminhoneiro acompanhava tocando cajón. DonAnselmoaprendeuascançõesdoJovemecomeçouadizer“éumartista,omelhorcompositormangache”,e Alejandro “não há harpista como o velho, ninguém ganha dele”, e o chamava demaestro.Os três setornaraminseparáveis.LogocirculouanotícianaMangacheríadequehaviaumanovaorquestrae,alipelomeio-dia,asmoçasvinhamemgrupopassearemfrenteaocasebredePatrocinioNayaparaouviramúsica.TodasolhavamparaoJovemcomolhoslânguidos.EumbelodiasesoubequeoBolasdeixaraaEmpresaFeijó,ondetrabalharadurantedezanoscomomotorista,paraserartista,comoseusdoiscompanheiros.

NessetempoAlejandroerajovemdeverdade,tinhacabelobempreto,muitocomprido,crespo,umapelepálida,unsolhos fundosedesconsolados.Eramagrocomoumbambueosmangachesdiziam“nãoesbarremnele,naprimeiratopadamorre”.Falavapoucoedevagar,nãoeramangachedenascimentoesimdeadoção,comodonAnselmo,oBolasetantosoutros.Havianascidonumafamíliaimportante,foicriadonoMalecón,educadonoSalesianoeestavaprestesaviajarparaLimaeentrarnauniversidade,quandoumamoçadeboafamíliafugiucomumforasteiroquepassavaporPiura.OJovemcortouasveiaseficoumuitosdiasnohospital,entreavidaeamorte.Saiudeládesiludidocomomundoeboêmio:passavaasnoitesemclaro,bebendo,jogandocartascomgentedapiorcategoria.Atéquesuafamíliasecansoudele,mandou-opasseareentão,comotantosdesesperados,naufragounaMangacheríaeaqui ficou.Começouaganharavidacomoviolão,nachicheríadeAngélicaMercedes,parentedoBolas.Assimconheceuocaminhoneiro,assim se tornaram irmãos. O Jovem Alejandro bebia muito, mas o álcool não o fazia brigar nem seapaixonar, só o fazia compor canções e versos que sempre contavam alguma decepção e tachavam asmulheresdeingratas,traidoras,insinceras,ambiciosasevingativas.

DesdequefezamizadecomoBolaseoJovemAlejandro,oharpistamudouseuscostumes.Tornou-seumhomemdocee suavidaparecia ter seorganizado.Nãopassavamaisperambulandoodia todocomoumaalmapenada.Denoite iaparaobardeAngélicaMercedes,o Jovemo estimulava a tocar eosdoisfaziamduetos.OBolasdistraíaosfreguesescomcasosdassuasviagense,entreumacançãoeoutra,ovelhoeoviolonistasereuniamcomoBolasaumamesa,tomavamumtrago,conversavam.EquandooBolasjáestavaligado,comosolhoscheiosdeestrelas,sentava-secomumcajónoupegavaumatábuaemarcavaocompasso,àsvezesatécantavacomelesesuavoz,emborarouca,nãoeramá.OBolaseraumhomenzarrão:costasdeboxeador,mãosenormes,testaminúscula,bocaparecendoumfunil.NacasadePatrocinioNaya,don Anselmo e o violonista lhe ensinaram a tocar, afinaram seu ouvido e suas mãos. Os mangachesespiavamentreosbambus,viamoharpistafuriosoquandooBolasperdiaocompasso,esqueciaaletraoudesafinava, e ouviam o JovemAlejandro instruirmelancolicamente o caminhoneiro sobre asmisteriosasfrasesdassuascanções:olhosderosicler,nuvenslourasdoamanhecer,venenoqueregouumdia,malvadamulher,comseubem-querer,nomeucoraçãodolorido.

Era como se a companhia desses dois jovens houvesse devolvido o prazer de viver a donAnselmo.Ninguémoencontravamaisdormindonaareia,nãoandavafeitoumsonâmbulo,eatéseuódiocontraosgalinaços havia diminuído.Os três andavam sempre juntos, o velho entre o Jovem e oBolas, abraçadoscomogarotos.DonAnselmopareciamenossujo,menosesfarrapado.UmdiaosmangachesoviramcomumacalçabrancaepensaramqueeralembrançadeJuanaBauraoudealgumdessesvelhosricaçosqueaoencontrá-lonumachicheríaoabraçavamelheofereciamumabebida,mastinhasidopresentedeNataldoBolasedoJovem.

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FoinessaépocaqueAngélicaMercedescontratouaorquestrademaneiraformal.OBolasconseguiraumtamboreunspratos,manipulava-oscomhabilidadeeeraincansável:quandooJovemeoharpistasaíamdo cantinho dos músicos para molhar os lábios e alegrar o corpo, o Bolas continuava, executava solos.Talvez fosse omenos inspirado dos três,mas era omais alegre, o único que se permitia de quando emquandoumacançãobem-humorada.

Denoite tocavamnobardeAngélicaMercedes, dormiamdemanhã, almoçavam juntosna casadePatrocinioNaya e lámesmo ensaiavam todas as tardes.Nos dias tórridos do verão iam rio acima, até oChipe,tomavambanhoediscutiamasnovascomposiçõesdoJovem.Conquistaramtodososcorações,osmangaches os tratavam com intimidade e vice-versa, adultos e crianças. E quando Santos, a parteira eaborteira,secasoucomumguardamunicipal,aorquestrafoiàfesta,tocoudegraçaeoJovemAlejandrointerpretouumavalsapessimistasobreocasamento,queofende,secaequeimaoamor.E,apartirdeentão,emcadabatizado,confirmação,velórioounoivadomangacheinfalivelmenteaorquestratocavadegraça.Mas os mangaches correspondiam com presentinhos, convites, e algumas mulheres deram os nomes deAnselmo, Alejandro, até Bolas a seus filhos. A fama da orquestra se consolidou e os chamadosinconquistáveisaespalharampelacidade.VinhamàcasadeAngélicaMercedesgenteimportante,forasteirose,umatarde,os inconquistáveistrouxeramàMangacheríaumbrancovestidodeestafetaquequeriafazeruma serenata. Foi buscar a orquestra denoite, numa caminhonete que levantavanuvens de poeira.Masmeia hora depois os inconquistáveis voltaram sozinhos: “O pai damoça ficou furioso, chamou os tiras,foramtodospara adelegacia.”Passaramanoitepresos, enamanhã seguintedonAnselmo,o JovemeoBolasvoltaramcontentes;tinhamtocadoparaosguardaseesteslhesderamcaféecigarros.E,poucotempodepois, esse mesmo branco roubou a moça da serenata, e quando voltou com ela para o casamentocontratouaorquestraparatocarnafesta.MangachesdetodososcasebresforamàcasadePatrocinioNaya,para que donAnselmo, o Jovem e o Bolas pudessem ir bem-vestidos.Uns emprestavam sapatos, outroscamisas,osinconquistáveistrouxeramternosegravatas.Apartirdeentãoosbrancoscomeçaramacontrataraorquestraparasuasfestasesuasserenatas.Muitosconjuntosmangachessedesfaziamedepoisserefaziamcomnovosmembros,masestecontinuouigual,nãocresceunemdiminuiu,eagoradonAnselmojátinhacabelosbrancos,ascostascurvadas,arrastavaospés,eoJovemhaviadeixadodesê-lo,massuaamizadeesuasociedadesemantinhamintactas.

AnosdepoismorreuDomitilaYara,asanteiraquemoravaemfrenteàchicheríadeAngélicaMercedes,DomitilaYara a beata sempre vestida de preto, rosto velado emeias escuras, a única santeira nascidanobairro.DomitilaYarapassavaeosmangaches,dejoelhos,pediam-lheabênção:elamurmuravaumasrezas,fazia a cruzna testadeles.Tinhauma imagemdaVirgem,com fitas rosadas, azuis e amarelas fazendoasvezes de cabeleira, forrada com papel celofane. Penduradas na imagem havia umas flores de arame eserpentina e, sobo coração rasgado, via-seumaoração escrita àmão,presanumamoldurinhade lata.AimagemoscilavanapontadeumcabodevassouraeDomitilaYarasemprealevavaconsigo,noalto,comoumgalhardete.Ondehouvessepartos,mortes,doenças,desgraças,asanteiraiacomsuaimagemesuasrezas.Dosseusdedosapergaminhadosdesciaatéochãoumrosáriodecontasenormescomobaratas.DiziamqueDomitilaYara faziamilagres, que falava comos santos e que, de noite, se açoitava.Era amiga do padreGarcíaeosdoiscostumavampassearjuntos,lentosesombrios,pelapracinhaMerinoepelaavenidaSánchezCerro. O padre García veio ao velório da santeira. Não conseguiu entrar, afastava com empurrões osmangachesamontoadosemfrenteaocasebre,ejáestavadesistindoquandoconseguiuchegaràporta.Viuentãoaorquestra,tocandotristesaoladodamorta.Quaseenlouqueceu:furouotambordoBolascomumpontapé e também quis quebrar a harpa e arrancar as cordas do violão, enquanto dizia a donAnselmo“peste de Piura”, “pecador”, “fora daqui”. “Mas padre”, balbuciava o harpista, “estávamos fazendo umahomenagem”, e opadreGarcía “estão é profanandouma casa limpa”, “deixemadefunta empaz”.Eos

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mangaches acabaram se exasperando, não era justo, estava insultando o velho semmotivonenhum,nãoadmitiam.Eafinalosinconquistáveisentraram,levantaramopadreGarcíanosbraçoseasmulherespecado,pecado,todososmangachesiriamparaoinferno.Levaram-noatéaavenidasedebatendonoarcomoumatarântula,eosgarotosgritavam“incendiário,incendiário,incendiário”.OpadreGarcíanuncamaispôsospésnaMangacheríae,apartirdeentão,faladosmangachesnopúlpitocomomodelosdemausexemplos.

AorquestracontinuoumuitotemponacasadeAngélicaMercedes.Ninguémimaginariaqueumdiairia tocar na cidade.Mas foi o que aconteceu e, a princípio, osmangaches desaprovaram essa deserção.DepoisentenderamqueavidanãoeracomoaMangachería,mudava.Desdequecomeçaramaseabrircasasdemulhereschoviampropostasparaaorquestra,ehátentaçõesquesãoirresistíveis.Alémdomais,emborafossemtocaremPiura,donAnselmo,oJovemeoBolascontinuarammorandonobairroeseapresentandodegraçaemtodasasfestasmangaches.

Dessavezacoisapareciafeiadeverdade:aorquestraparoudetocar,osinconquistáveisficaramimóveisnapistasemsoltarseuspares,olhandoparaSeminario,eoJovemAlejandrodisse:

—Aícomeçoudeverdadeadesgraça,porquefoiquandomostraramasarmas.—Bêbado!—gritouaSelvática.—Eleosprovocavao tempotodo.Bem-feitoquetenhamorrido.

Abusado!OsargentosoltouSandra,deuumpasso,achavaqueestavafalandocomseusempregados,senhor?,e

Seminario,engasgando,entãovocêéorespondãodaturma,tambémdeuumpasso,seuinfeliz!,outro,suasilhuetaformidávelondulousobreastábuasbanhadasdeluzazul,verdeeroxaederepenteparou,comorostocheiodeassombro.AgargalhadadeSandravirougrito.

—Litumaestavaapontandoorevólverparaele—disseaChunga.—Puxoutãorápidoqueninguémpercebeu,comoummocinhonosfilmesdecaubóis.

—Tinhadireito—balbuciouaSelvática.—Elenãopodiaserebaixarmais.Inconquistáveis emoradoras correramparaobar,o sargento eSeminario semediamcomosolhos.

Litumanãogostavadevalentões,senhor,nãotinhamfeitonadacontraeleeostratavacomoempregados.Sentiamuito,masaquilonãopodiaser,senhor.

—Nãojoguefumaçanomeurosto,Bolas—disseaChunga.—Eeletambémpuxouorevólver?—disseaSelvática.— Só ficava passando a mão pela cartucheira — disse o Jovem. — Acariciava a arma como um

bichinho.—Estavacommedo!—exclamouaSelvática.—Litumaobotounolugar.—Penseiquenãohaviamaishomensnaminhaterra—disseSeminario.—Quetodosospiuranos

tinhamseafeminado,enveadado.Masaindarestaestecaboclo.AgorasófaltavocêverqueméSeminario.—Porquesempretêmquebrigar,porquenãopodemviverempazesedivertirjuntos—dissedon

Anselmo.—Avidaseriaboa.—Quemsabe,maestro—disseoJovem.—Talvezfossechatíssima,emaistristequeagora.—Deixouocaratotalmentedesconcertado,primo—disseoMacaco.—Bravo!—Masnãoconfie,coleguinha—disseJosefino.—Noprimeirodescuidoelepuxaorevólver.—Vocênãosabequemsou—repetiaSeminario.—Porissosefazdeteimoso,caboclinho.—Osenhortampoucosabequemsoueu—disseosargento.—SenhorSeminario.—Senãoestivessecomesterevólvernãoseriatãoteimoso,caboclinho—disseSeminario.—O caso é que estou— disse o sargento.—E ninguém vaime tratar como empregado, senhor

Seminario.—EentãoaChungafoicorrendoesemeteunomeiodosdois.Vocêécorajosa!—disseoBolas.

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—Eporquevocêsdoisnãoaimpediram?—amãodoharpistafezumatentativadetocarnaChunga,mas ela voltou para a cadeira e os dedos do velho só a roçaram. — Estavam armados, Chunguita, eraperigoso.

—Nãoeramais,porqueelestinhamcomeçadoadiscutir—disseaChunga.—Opessoalvemaquiparasedivertir,nadadebrigas.Façamaspazes,venhamparaobalcão,tomemumacervejaporcontadacasa.

ObrigouLitumaaguardarorevólver,fezosdoisapertaremasmãoselevou-osparaobar,puxandoosdois pelo braço, vocês deviam ter vergonha, comportavam-se como crianças, sabiam o que eram?, doisidiotas,queriaver,agora,sepuxavamaspistolinhaseamatavameelesriram,Chunga,Chunguita,mamita,rainhazinha,cantavamosinconquistáveis.

—Beberamjuntosapesardosinsultos?—perguntouaSelvática,assombrada.—Você lamentaquenão tenhamsebaleadodeumavez?—perguntouoBolas.—Quemulheres,

comogostamdosangue.—MasaChungatinhaoferecidobebidaaeles—disseoharpista.—Nãopodiamfazerdesfeita,moça.Bebiamcomoscotovelosnobalcão,jáamigos,eSeminariobeliscavaabochechadeLituma,eleerao

últimomachodasuaterra,caboclinho,todososoutroseramunsveados,covardes,aorquestraatacouumavalsa e o grupo que estava no bar se espalhou, inconquistáveis emoradoras invadiram a pista de dança,Seminariohaviatiradooquepedosargentoeoexperimentava,comoficava,Chunga?,nãotãofeiocomoestecaboclo,nacerta,masnãosezangue.

—Podeserumpoucogordo,masnãoéfeio—disseaSelvática.—QuandorapazeramagrocomooJovem—lembrouoharpista.—Eumverdadeirodiabo,pior

aindaqueoscolegas.— Juntaram três mesas e todos se sentaram — disse o Bolas. — Os inconquistáveis, o senhor

Seminario,oamigodeleeasmoradoras.Pareciaquetudotinhaseajeitado.—Davaparanotarqueacoisaeraforçadaenãoiadurar—disseoJovem.—Forçadanada—disseoBolas.—TodosestavammuitocontenteseosenhorSeminarioatécantou

ohinodosinconquistáveis.Depoisdançaramefizerampilhérias.—LitumacontinuavadançandocomaSandra?—perguntouaSelvática.—Jánemlembro,porquecomeçaramadiscutirdenovo—disseaChunga.—Porcausademacheza—disseoBolas.—Seminarioestava insistindonoassunto,quenãohavia

maishomensemPiura,etudoparaelogiarotio.—NãofalemaldeChápiroSeminarioqueeraumgrandehomem,Bolas—disseoharpista.—EmNarihualáderruboutrêsladrõesaosmurroseostrouxeparaPiuraamarradospelopescoço—

disseSeminario.—Apostoucomunsamigosqueaindafuncionava,veioparacáeganhouaaposta—disseaChunga.

—Pelomenos,foioquedisseaAmapola.—Nãoestoufalandomaldele,maestro—disseoBolas.—Masjáerameioinsuportável.—UmpiuranotãograndecomooalmiranteGrau—disseSeminario.—PodemiraHuancabamba,

Ayabaca,Chulucanas,emtodososladoshácaboclasorgulhosasdeteremdormidocomomeutioChápiro.Tevepelomenosmilbastardos.

—Nãoeramangache?—disseoMacaco.—Lánobairrohámuitossujeitosassim.ESeminarioficousério,sóseforsuamãe,eoMacacoelaémangachemesmoecommuitahonra,e

Seminario,furioso,Chápiroeraumhomemfino,sóiaàMangacheríadevezemquando,parabeberchichaecomerumacaboclinha,eoMacacodeuumsoconamesa:jácomeçavaaofenderdenovo,senhor.Tudoestavaindomuitobem,comoseestivessementreamigos,ederepenteelecomeçavaainsultar,senhor,os

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mangachesficavammagoadosquandosefalavamaldaMangachería.—Ovelhinhosemprevinhadiretoaondeosenhorestivesse,maestro—disseoJovem.—Comque

sentimentooabraçava.Pareciaumencontrodedoisirmãos.—Nósnosconhecíamosfaziamuitíssimotempo—disseoharpista.—EugostavadoChápiro,fiquei

comumatristezaenormequandoelemorreu.Seminariose levantou,eufórico:queaChungafechasseaporta,elesseriamosdonosestanoite, suas

plantaçõesestavamcarregadas,queoharpistaviessefalardeChápiro,oqueestavamesperando,carregadosdealgodão,quetrancassemaporta,elepagava.

—Eosargentoafugentavaosclientesquevinhambaternaporta—disseoBolas.—Estefoioerro,nãodeviamterficadosozinhos—disseoharpista.—Nãosouadivinha—disseaChunga.—Quandoosclientespagam,façooquepedem.—Claro,Chunguita—desculpou-seoharpista.—Nãofaleiporvocê,esimportodosnós.Claroque

ninguémpodiaadivinhar.—Sãonovehoras,maestro—disseoJovem.—Nãovailhefazerbem,deixe-mebuscarumtáxide

umavez.— É verdade que o senhor e o meu tio se tratavam de você? — perguntou Seminario. — Conte

algumacoisadaquelegrandepiurano,velho,umhomemcomonuncahaveráoutroigual.—OshomensquerestamestãotodosnaGuardaCivil—afirmouosargento.—FoicontagiadopeloSeminarioporcausadabebida—disseoBolas.—Falandodemacheza,ele

também.Oharpista pigarreou, estava com a garganta seca, que lhe dessemum golinho. Josefino encheu um

copoedonAnselmosoprouaespumaantesdebeber.Ficoudebocaaberta, respirandoalto:oquemaisimpressionavaeraaresistênciadeChápiro.Equefossetãohonesto.Seminarioficoucontente,abraçavaoharpista,quevissem,queouvissembem,elenãotinhafalado?

—Eraumvalentãoeumpobrecoitado,mastinhaorgulhodafamília—reconheceuoJovem.Vinhadocampomontadoemseucavalo,asmoçassubiamàtorreparavê-loemborafosseproibido,

maseramdoidaspeloChápiro,edonAnselmotomououtrogolinho,eemSantaMaríadeNievaotenenteCiprianotambémdeixavaasíndiasdoidas,eosargentotambémtomouoseugolinho.

—Quandoacervejasubiasófalavadessetenente—disseaSelvática.—Tinhaadmiraçãoporele.O fanfarrão vinha levantando a poeira do caminho, parava o cavalo e o fazia ajoelhar-se diante das

moças.Chápirotraziaavidaconsigo,asqueestavamtristessealegravam,asqueestavamcontentesficavamaindamais felizes, eque resistência, subia,descia,mais jogo,maisbebida, subiadenovo,comuma,comduas,eassimanoiteinteiraeaoamanhecervoltavaparasuachácara,iatrabalharsemterpregadooolho,eraumhomemdeferro,edonAnselmopediumaiscerveja,eumavezfizeraroleta-russanafrentedele,eosargentobateunopeitoeolhouemvoltacomoqueseesperasseaplausos.Alémdomais,eraoúnicoquesemprerespeitavaocrédito,oúnicoquelhepagouatéoúltimocentavo,odinheiroéparausar,dizia,eraomaisgastadore,nasruasepraças,omesmosermão:foiAnselmoquemtrouxeacivilizaçãoparaPiura.Masnãotinhasidoumaaposta,foisóporqueseentediava,aselvadeixavaotenenteCiprianodesesperado.

—Masparecequefoidementira—disseaSelvática—,queorevólverdelenãotinhabalasequesófezissoparaqueosguardasorespeitassemmais.

Eomelhordosamigos,umdiaseencontraramnaportadoRainha,elelhedeuumabraço,sófuisabertardedemais,irmão,seestivesseemPiuranãoaincendiaria,Anselmo,elebotariaopadreeasgalinaçasnoseulugar.

—DequedesgraçaChápiro estava falando,harpista?—disseSeminario.—Oque éque ele tantolamentava?

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Choviaacântaros,eeleaquiagentenemémaishumano,nãohaviamulheresnemcinema,sealguémadormecer no mato cresce uma árvore na barriga, ele era costeiro, podiam meter a selva onde bementendessem,eleestavapoucoligando,nãoaguentavamaisepuxouorevólver,rodouduasvezesotamboredisparounaprópriacabeça,oPesadodizianãotembala,étruque,mastinha,elesabia:osargentobateudenovonopeito.

—Umadesgraça,donAnselmo?—disseaSelvática.—Algumacoisaqueaconteceucomosenhor?—Estávamoslembrandodeumgrandehomem,moça—dissedonAnselmo.—ChápiroSeminario,

umvelhoquemorreuhátrêsanos.—Ah,harpista,estávendocomoosenhoréummentiroso?—disseoMacaco.—Nãoquisnosfalar

daCasaVerdeeagorasim.Conte,comofoioincêndio?—Nadadisso,rapazes—dissedonAnselmo.—Quedisparate,quebobagem.—Teimandooutravezcomagente,velho—disseJosé.—OsenhorestavafalandodaCasaVerde

agorinhamesmo.OndeChápirochegavacomseucavalo?Quegarotaseramaquelasquesaíamparavê-lo?—Chegavaàsuachácara—dissedonAnselmo.—Easmulheresqueiamvê-loeramascolhedorasde

algodão.Bateunamesa,osrisosseinterromperam,aChungatrouxeoutrabandejacheiadecervejas,otenente

Ciprianosoprounocanodaarmacomamaiortranquilidade,elesnãoacreditavameSeminarioestourouumcopo contra aparede:o tenenteCipriano eraum filhodaputa,não ia tolerarque aquele cabocloointerrompessetanto.

—Xingoudenovoamãe?—perguntouaSelvática,piscandomuitorápido.—Nãoadele,adaqueletenente—disseoJovem.—OsenhoremnomedotalChápiro,euemnomedotenenteCipriano—propôsosargentocom

todacalma.—Umaroleta-russa,vamosverquemémaishomem,senhorSeminario.

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IV

—Osenhorachaqueopilotofugiu,meutenente?—perguntouosargentoRobertoDelgado.—Claro,elenãoébobo—disseotenente.—Agora jáseiporquese fingiudedoenteenãoveio

conosco.DeveterfugidoassimquenosviusaindodeSantaMaríadeNieva.—Maiscedooumaistardevaiaparecer—disseosargentoDelgado.—Oimbecilnemsequerusou

outronome.—Estouinteressadoénooutro—disseotenente.—Opeixegordo.Comosechama,afinal?Tushía?

Fushía?—Talveznãosaibaondeeleestá—disseosargentoDelgado.—Vaiverfoimesmocomidoporuma

jiboia.—Bom,vamoscontinuar—disseotenente.—Muitobem,Hinojosa,tragaosujeito.Osoldado,quedormitavadecócorascontraaparede,levantou-secomoumautômato,sempiscarnem

responder,esaiu.Quandopassoupelaportaachuvaodeixouencharcado,maslevantouasmãoseavançoutropeçandopelalama.Oaguaceiroaçoitavafuriosamenteaaldeiae,entreastrombas-d’águaeasrajadasdevento sibilante, as cabanas aguarunas pareciam animais chucros, sargento.Na selva, o tenente se tornarafatalista, estava sempre esperando que uma cobra o mordesse, ou que as febres o derrubassem. Agoraimaginavaqueamalditachuvanãoiaparar,equeficariamaquiummês,comoratosnatoca.Ah,aquelaespera era o fimdomundo e quando sua voz azeda sumiu, ouviu-se de novo o chiado do aguaceiro nafloresta,ominuciosogotejardasárvoresedascabanas.Aclareiraeraumagrandepoçacinzenta,dezenasdemananciaisdesciamrumoaobarranco,oareomatofumegavam,fediam,e lávinhaHinojosa,puxandonuma corda um vulto que tropeçava e grunhia. O soldado subiu a escadinha da cabana aos pulos, oprisioneirocaiudebruçosnafrentedotenente.Estavacomasmãosamarradasnascostaseseergueucomaajuda dos cotovelos. O oficial e o sargento Delgado, sentados numa tábua apoiada em cavaletes,continuaramconversandomaisumpoucosemolharparaele,edepoisotenentefezumgestoemdireçãoaosoldado: café e bebida, ainda havia?, sim e que fosse ficar com os outros, eles o interrogariam sozinhos.Hinojosatornouasair.Oprisioneiropingavacomoasárvores,emvoltadosseuspésjáhaviaumlaguinho.O cabelo lhe cobria as orelhas e a testa, umas olheiras de raposa circundavam seus olhos, dois carvõesdesconfiados e saltados.Nesgasdepele lívida e arranhadaapareciamentreos rasgõesda camisa e a calça,tambémempetiçãodemiséria,deixavaumanádegaàvista.Umtremorsacudiaseucorpo,Pantachita,seusdentes batiam: não podia se queixar, tinham cuidado dele como uma criancinha de peito. Primeiro ocuraram, não era verdade?, depois o defenderam dos aguarunas que queriam cortá-lo em pedacinhos.Vamosversehojeseentendiammelhor.Otenentetinhamuitapaciênciacomvocê,Pantachita,masnãoeraparaabusar.Acordaabraçavaopescoçodoprisioneirocomoumcolar.OsargentoRobertoDelgadoseinclinou,apanhouapontadacordaeobrigouPantachaadarumpassonadireçãodatábua.

—NoSepavocêvaicomerbemeterondedormir—disseosargentoDelgado.—Nãoéumacadeiacomoasoutras,nãotemmuros.Talvezvocêpossafugir.

—Nãoémelhorqueumtiro?—disseotenente.—MandarvocêparaoSepanãoémelhorquedizeraosaguarunasaquiestáoPantachita,podemsevingarneledetodososladrões?Vocêviuavontadequeelestêmdefazerisso.Demodoque,hoje,nãovenhasefazerdebiruta.

Pantacha, com um olhar evasivo e ardente, tremia muito, seus dentes batiam com fúria e estava

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encolhido,abarrigapulsando.OsargentoDelgado sorriuparaele,Pantachita,não ia ser idiotadepagarsozinhoportantorouboetantamortedeíndios,nãoé?Eotenentetambémsorriu:eramelhoracabaremlogocomisso,Pantachita.Depois lhedariamaservasquequeriaeelemesmoia fazer sua infusão,certo?Hinojosa entrou na cabana, deixou uma garrafa térmica de café e um frasco em cima da tábua, e saiucorrendo.Otenenteabriuagarrafaeofereceu-aaoprisioneiro,queaproximouorosto,murmurando.Osargentodeuumpuxãofortenacorda,seusacana,ePantachacaiuentreaspernasdotenente:aindanão,primeirovocêfala,depoisbebe.Ooficialpegouacorda,fezacabeçadoprisioneirogiraremsuadireção.Amoitadecabeloseagitou,oscarvõescontinuavamfixosnagarrafa.Estavafedendocomootenentenuncatinha visto, Pantachita, seu cheiro o deixava enjoado, e agora abria a boca, um golinho?, e ofegavaroncamente, senhor, para o frio, estava gelandopordentro, senhor?, queria sóunzinho e o tenente estábem,masprecisavamirporpartes,ondeesseTushíaestavaescondido?,cadacoisaemsuahora,ouFushía?,ondeestava?Maselejátinhacontado,senhor,tremendodacabeçaaospés,fugiunaescuridãoeninguémoviu,epareciaqueseusdentesiamquebrar,senhor:queperguntasseaoshuambisas,aanacondaiaaparecerdenoite,diziam,eviriaeolevariaparaofundodalagoa.Porcausadassuasmaldades,deviaser,senhor.

Otenenteolhavaparaoprisioneirocomatestafranzida,osolhosdeprimidos.Derepentesevirou,suabotabateucomforçananádegadescobertaePantachacaiucomumgrunhido.Mas,nochão,continuouaolharobliquamentepara a garrafa.O tenentepuxou a corda, a cabeçapeludabateuduas vezesno chão,Pantachita,chegadebobagem,estábem?Ondeelesemeteu?EporprópriainiciativaPantachanastrevas,senhor, berrou, e bateudenovo a cabeçano chão: ela chegaria devagarzinho, e subiria pelo barranco, eentrarianasuacabana,tapariaasuabocacomacauda,senhor,eassimolevaria,coitadinho,equelhedessesóumgole,senhor.Assimeraaanaconda,silenciosa,enacertaalagoaseabriria,eoshuambisasdiziamvaivoltar e nos engolir, e por isso eles também foram embora, senhor, e o tenente lhe deu um pontapé.Pantacha ficou calado, de joelhos: tinha acabado sozinho, senhor.O oficial bebeu um gole da garrafa epassoualínguapeloslábios.OsargentoRobertoDelgadobrincavacomofrascoeoPantachitaqueriaqueomandassemparaoUcayali,senhor,rugiadenovoeossoluçosafundavamsuasbochechas,ondeseuamigoAndréstinhamorrido.Queriamorrerlátambém.

—Querdizerentãoqueaanacondalevouoseupatrão—perguntouotenente,comvozcalma.—QuerdizerqueotenenteéumidiotaeoPantachitapodenossacanearàvontade.Ah,Pantachita.

Incansáveis, ferventes, os olhos de Pantacha não desgrudavam do frasco lá fora o aguaceiro seenfureceu,ostrovõesretumbavamaolongeevezporoutraosrelâmpagosacendiamostetosflageladospelaágua,asárvoresealamadaaldeia.

—Elemedeixousozinho,senhor—gritouPantacha,esuavozficoudura,masseuolharcontinuavaquieto e arrebatado—, eu lhe dava de comer e ele nem saía da rede, o coitadinho, e afinalme deixousozinhoeosoutrostambémforamembora.Porquenãoacredita,senhor?

—Talvezessenomesejafalso—disseosargentoDelgado.—NãoconheçoninguémnaflorestaquesechameFushía.Elenãoodeixanervoso,comessesdelírios?Eu lhemeteriaumabaladeumavez,meutenente.

—Eoaguaruna?—disseotenente.—AanacondatambémlevouoJum?—Ele foi embora, senhor— roncouPantacha—, não lhe disse?Ou pode ter apanhado também,

senhor,quemsabe.—EuestivecomesseJumdeUrakusaàminhafrenteduranteumatardeinteira—disseotenente—,

ooutroespertinhoserviadeintérprete,euosouviaeengoliasuashistórias.Ah,setivesseadivinhado.Foioprimeiroíndioqueconheci,sargento.

—AculpaédaquelegovernadordeNieva,meutenente,otalReátegui—disseosargentoDelgado.—Nósnãoqueríamossoltaroaguaruna.Maselemandou,ejásabe.

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— O patrão foi embora, Jum foi embora, os huambisas foram embora — soluçou Pantacha. —Sozinhocomaminhatristeza,senhor,eumfriomiserável.

—MasjuroquevoupegaresseAdriánNieves—disseotenente.—Eleficourindonasnossasfuças,vivendodoquenóslhepagávamos.

Etodos látinhamsuasmulheres.As lágrimasescorriamentreospelos,suspiravafundo,senhor,commuitosentimento,esóqueriaumacristã,nemquefossesimplesmenteparaconversar,umasó,atéashapratinhamlevado,senhor,eabotasubiu,bateuePantachaficouencolhidonochão,rugindo.Fechouosolhospor uns segundos, abriu-os e, agoramansamente, olhou para a garrafa: só unzinho, senhor, para o frio,estavagelandopordentro.

—Você conhece bem esta região, Pantachita— disse o tenente.—Quanto tempo vai durar estamalditachuva,quandopoderemospartir?

—Amanhãclareia,senhor—balbuciouPantacha.—PeçaaDeusevaiver.Mastenhadó,deixeeutomarunzinho.Paraofrio,senhor.

Nãohavia quem aguentasse,maldição, nãohavia quem aguentasse e o tenente levantou a botamasdessaveznãochutou,empurrouorostodoprisioneiroatéqueabochechadePantachaencostounochão.OsargentoDelgadobebeuumgolinhodofrasco,depoisumgolinhodagarrafatérmica.Pantachaestavadelábiosabertose sua língua, finaevermelha, lambia, senhor,delicadamente, sóum,asoladabota,paraofrio, a ponteira, senhor, e alguma coisa vivaz e travessa e servil bulia nos carvões arregalados, unzinho?,enquantosualínguamolhavaocourosujo,senhor?,paraofrio,ebeijouabota.

—Vocêsabetodas—disseosargentoDelgado.—Quandonãoquerabalarnossamoral,querbancaromaluco,Pantachita.

—DigaondeFushíaestáelhedouagarrafa—disseotenente.—Etambémdeixovocêlivre.Eaindaporcimalhedouunssoles.Respondalogooumudodeideia.

MasPantachacomeçouachoramingaroutravezetodoseucorposegrudavanochãobuscandocaloreerapercorridoporbrevesespasmos.

—Leve-o—disseotenente.—Euficonervosocomsuasloucuras,estoucomvontadeatédevomitar,jáestouvendoaanaconda,eachuvaquenãopara,putaqueopariu.

OsargentoRobertoDelgadopegouacordaesaiucorrendo,Pantachaatrásdele,dequatro,comoumcachorrosaltitante.Naescadinha,osargentodeuumgritoeHinojosaapareceu.LevouPantacha,pulando,porentrecortinasdeágua.

—Esesairmosdaquiapesardachuva?—disseotenente.—Afinalaguarniçãonãoficatãolonge.—Vamosviraremdoisminutos,meutenente—disseosargentoDelgado.—Nãoviucomoestáo

rio?—Queriadizerapé,pelomato—disseotenente.—Chegamosemtrêsouquatrodias.—Nãosedesespere,meutenente—disseosargentoDelgado.—Vaipararlogodechover.Nãohá

remédio,convença-se,nãopodemossairdaquicomestetempo.Aselvaéassim,precisamosterpaciência.— Já são duas semanas, porra! — disse o tenente. — Estou perdendo uma transferência, uma

promoção,nãoentende?—Nãoseirritecomigo—disseosargentoDelgado.—Nãotenhoculpapelachuva,meutenente.

Ela estava sozinha, sempre esperando,paraque contar osdias, vai chover, não vai chover, voltamhoje?,ainda é cedo. Será que vão trazermercadoria?Tomara que sim,Cristo deBagazán, santo, santo,muita,látex,couros,quedonAquilinocheguecomroupaecomida,quantovendeu?,eelebastante,Lalita,abompreço.EFushía,velhoquerido.Queficassemricos,Virgenzinha,santa,santa,porqueentãoiampodersairda ilha, voltar para o lugar dos cristãos e se casariam, não é verdade, Fushía?, verdade, Lalita. E que ele

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mudasseeadesejassedenovoedenoite,nasuarede?,sim,nua?,sim,vocêchupava?,sim,elegostava?,sim,maisqueasachuales?,sim,queashapra?,sim,sim,Lalita,equetivessemoutrofilho.Olhesó,donAquilino,nãoseparececomigo?,vejacomocresceu,falahuambisamelhorquecristão.Eovelhovocêestásofrendo,Lalita? E ela umpouco porque ele não gostavamais demim, e amaltratamuito?, está com ciúmes dasachuales,dashapra?Eelaraiva,donAquilino,maseramasuacompanhia,afaltadeamigas,sabe?,eficavatristequandoeleaspassavaparaoPantacha,Nievesouparaoshuambisas,seráquevoltamhoje?Masessatardeelesnãochegaram,sóJumenahoradasestaashapraentrounacabanagritando,sacudiuaredeesuaspulseirasdançavam,seusespelhinhos,seusguizoseLalitachegaram?,eelanão,quemveiofoioaguarunaquefugiu.Lalitafoivê-loeláestavaele,notanquedastartarugas,salgandounsbagreseelaJum,ondevocêfoi,porquê,oquefezdurantetantotempo,eelecalado,pensavamquevocênãoiavoltar,eelerespeitoso,Jum,elhedeuosbagres,eulhetrouxeisto.Voltavacomotinhaido,decabeçaraspada,riscosdeurucumnascostasparecendochicotadas,eelasaíramnumaexpedição,precisavamtantodele,rioacima,porquenãose despediu?, para o lagoRimachi, conhecia osmuratos?, são bravos?, iam guerrear como patrão ou lhedariamolátexdeboavontade?,Jum.OshuambisasforamprocurarvocêePantachavaiverqueomataram,patrão,elesoodeiameopilotoNievesnãoacredito,achoquejáficaramamigos,eFushíasãocapazes,essescachorros,eJumnãomemataram,saíporaíeagoravoltei,iaficar?,sim.Opatrãoiabrigarcomelemasquenãofosseembora,Jum,passavalogo,ealémdomais,nofundonãogostavadele?,eFushíaéumpoucomaluco,Lalita,masútil,convincente.Deverdadediaboscristãos,aguarunaha?,discursavaparaeles?,Jum,patrãosacaneando,mentindo,ha?,Lalita,sevocêvissecomoosconvence,grita,pede,dançaeelessim,sim,aguarunaha,comasmãoseascabeças,ha,esemprelhedavamaseringadeboavontade.Oquevocêdizaeles,Jum,contecomoosconvence,eFushíamasumdiaiammatá-loequemosubstituiria,merda.EelaéverdadequenãoquervoltarparaUrakusa?,odeiatantooscristãos,é?,nóstambém?,ePantachasim,patroa,porquebateramneleeNievesentãoporquenãonosmataenquantodormimos,eFushíanóssomosasuavingança, e ela é verdadequeopenduraramnumpau-mulato?, e ele émaluco,Lalita,nãoburro, gritouquandooqueimaram?,eespertíssimoparafazerarmadilhas,ninguémovenciacaçandoepescando,tinhamulher?,mataram?,equandofaltacomidaJumentranomatoetrazmutuns,cotias,perdizes,vocêsepintaparalembraraschicotadas?,eumavezovirammatarumajararacacomazarabatana,Lalita,elesabequeseusinimigossãoaqueleshomens,nãoémesmo,Jum?,osqueFushíadeixasemmercadoria,nãopensequeme ajuda por meus belos olhos. E Pantacha hoje o vi perto do barranco, tocou na cicatriz da testa,discursandoparaovento,eFushíamelhorparamimqueeletrabalheassim,avingançanãomecustanada,eeleemaguaruna,nãoentendi.PorquequandoalanchadedonAquilinochegava,oshuambisaspulavamdaspaineirascomoumachuvademacacosnocais,erecebiamgritandoepulandosuasraçõesdesaledeanisado,eosmachadosefacõesqueFushíadistribuíarefletiamolhosbêbadosdealegriaeJumfoiembora,onde?,porali,jávoltei,nãoqueria?,não,umacamisa?não,aguardente?,não,facão?,não,sal?,nãoeLalitaopilotovaificarcontenteaoverquevocêvoltou,Jum,elesiméseuamigo,nãoé?,eelesimeelaobrigadapelospeixinhosmaspenaqueossalgou.EopilotoNievesnãosabiaosnomes,patroa,nãodisseram,sódoiscristãos,insuflandoódiocontraospatrões,dizendoqueodesgraçarameela,enganaramvocê?,roubaram?,eele me aconselharam e ela gostaria de ter uma conversa, Jum, por que virava as costas quando ela ochamava?, e ele calado, tinha vergonha?, e ele trouxe para a senhora e as huambisas estavam tirando osangue,eelaumveadinho?,eeleumveadinho,respeitoso,sim,eLalitavamos,vamoscomê-lo,quecortasselenha,eJumestácomfome?,eelamuita,muita,nãocomocarnedesdequeelespartiram,Jum,edepoisvoltarameelaentranacabana,olheoAquilino,nãocresceu,Jum?,eelesim,efalavapagãomelhordoquecristão, e ele sim, e Jum tinha filhos?, e ele tinhamasnão temmais, e elamuitos? e ele poucos e entãocomeçou a chover. Nuvens espessas e escuras, imóveis acima das paineiras, descarregaram água negradurante dois dias seguidos e a ilha inteira se transformou num atoleiro lamacento, a lagoa numa névoa

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embaçadaemuitospássaroscaíammortosnaportadacabanaeLalitacoitados,devemestarviajando,quecubramoscouros,olátex,eFushíarápido,porra,cachorros,iamatartodoseles,nessaprainha,procuremum refúgio, uma cavernaparapassar anoite ePantacha cozendo suas ervas e opilotoNievesmascandofumocomooshuambisas.ELalitatambémiaganhardessavez?,colares?,pulseiras?,penas?,flores?,gostavadela?, e ela seopatrão soubesse e elemesmoque soubesse,denoitepensarianela?, e elenãohánadadeerrado, é só um presentinho porque a senhora foi boa comigo quando eu estava doente, e ela é limpo,educado,tiraochapéuparamecumprimentar,equeFushíanãomeinsultetanto,eraespinhenta?,podiasevingar,Fushía,osolhosdopilotoficamquentesquandopassoporperto,sonhavacomela?,queriatocá-la?,abraçá-la?,tirearoupa,venhaparaaminharede,queelaobeijasse?,naboca?,nascostas?,santo,santo,quevoltemhoje.

Foi naquele anomilionário: os agricultores comemoravamdemanhã até a noite doze carregamentos dealgodão e, no Centro Piurano e no Clube Grau, brindava-se com champanhe francês. Em junho, noaniversáriodacidade,enasFestasPatrióticas,houvecorso,bailespopulares,meiadúziadecircosarmaramsuasbarracasnoareal.Osmaioraistraziamorquestraslimenhasparaosseusbailes.Foitambémumanodeacontecimentos: a Chunga começou a trabalhar no barzinho de Doroteo, morreram Juana Baura ePatrocinio Naya, o rio Piura entrou caudaloso, não houve pragas. Vorazes, em enxames, apareciam nacidadeoscaixeiros-viajantes,oscorretoresdealgodão,ascolheitastrocavamdedononascantinas.Surgiamlojas,hotéis,bairrosresidenciais.Eumdiacirculouanotícia:“Pertodorio,atrásdomatadouro,háumacasademulheres.”

Nãoeraumacasa,eraapenasumbecoimundoseparadodoexteriorporumportãodegaragem,comquartinhosdeadobenosdoislados;umalâmpadavermelhailuminavaafachada.Nofundo,numastábuascolocadasemcimadebarris,ficavaobareasmoradoraseramseis:velhas,flácidas,forasteiras.“Voltaram”,diziamosgaiatos,“sãoasquenãosequeimaram”.Desdeocomeço,aCasadoAbatefoimuitofrequentada.Seus arredores se tornaram masculinos e alcoólicos, e em Ecos y Noticias, El Tiempo e La Industriaapareceramnotasalusivas,cartasdeprotesto,apelosàsautoridades.Eentãosurgiu,inesperadamente,umasegunda casa de moradoras, em pleno Castilla; não um beco, e sim um chalé, com jardim e varandas.Desmoralizados,ospadreseasdamasquerecolhiamassinaturaspedindoo fechamentodaCasadoAbatedesistiram. Só o padreGarcía, do púlpito da igreja da praçaMerino, destemperado e tenaz, continuavaexigindosançõesevaticinandocatástrofes:“Deusdeuumanobomparaospiuranos,agoravirão temposdevacasmagras.”Masnãofoioqueaconteceuenoanoseguinteacolheitadealgodãofoitãoboaquantoaanterior.Emvezdeduas,jáhaviaquatrocasasdemulheres,umadelasapoucasquadrasdacatedral,luxuosa,maisoumenosdiscreta,combrancas,nãototalmentemadurase,parece,dacapital.

EnessemesmoanoaChungaeDoroteotrocaramgarrafadase,napolícia,comospapéisnamão,elademonstrouqueeraaúnicaproprietáriadobarzinho.Quehistóriahaviaportrásdaquilo,quemisteriosastransações?Emtodocaso,apartirdaíaproprietáriapassouaseraChunga.Elaadministravaolocalcomamabilidadeefirmeza,sabiasefazerrespeitarpelosbêbados.Eraumajovemsemformas,deescassohumor,comumapelemaisparaescuraecoraçãometalizado.Ficavaatrásdobalcão,comoscabelosnegroslutandopara fugir de uma redinha, sua boca sem lábios, seus olhos captando tudo com uma indolência quedesestimulava a alegria.Usava sapatos baixos,meias curtas, uma blusa que tambémparecia de homem enunca pintava os lábios nem as unhas, nem passava ruge nos pômulos, mas, apesar dos seus vestidos emodos,tinhaalgodemuitofemininonavoz,mesmoquandodiziagrossuras.Comamesmafacilidade,suasmãos gordas e quadradas levantavam mesas, cadeiras, tiravam rolhas de garrafas ou esbofeteavam osatrevidos.Diziam que era áspera e tinha alma dura devido aos conselhos de Juana Baura, que teria lheinculcado desconfiança em relação aos homens, o amor ao dinheiro e o hábito da solidão. Quando a

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lavadeiramorreu,aChungaorganizouumvelóriosuntuoso:licorfino,caldodegalinha,caféanoiteinteiraeàvontade.Equandoaorquestraentrounacasa,comoharpistaàfrente,osqueestavamvelandoJuanaBauraobservaram,rígidos,osolhoscheiosdemalícia.MasdonAnselmoeaChunganãoseabraçaram,elalhedeuamãocomotinhafeitocomoBolaseoJovem.Deixou-osentrar,recebeu-oscomamesmacortesiadistantequedispensavaaosoutros,ouviucomatençãoquandotocaramtristes.Pareciasenhoradesiesuaexpressão estava sériamasmuito tranquila.Oharpista, em contrapartida, pareciamelancólico e confuso,cantava como se estivesse rezando até que um garoto veio avisar que o pessoal naCasa doAbate estavaimpaciente, a orquestradevia ter começado a tocar às oito e já erammaisdedezdanoite.Morta JuanaBaura,diziamosmangaches,aChungadeviairmorarcomovelhonaMangachería.Maselasemudouparaobarzinho,dizemquedormianumcolchãodepalhadebaixodobalcão.Na época emque aChunga eDoroteosesepararameelasetornouproprietária,aorquestradedonAnselmonãotocavamaisnaCasadoAbate,esimnadeCastilla.

O barzinho da Chunga fez rápidos progressos. Ela mesma pintou as paredes, decorou-as comfotografiaseimagens,cobriuasmesascomplásticodeflorzinhasmulticoloridasecontratouumacozinheira.Obarzinhosetransformouemrestaurantedeoperários,caminhoneiros,sorveteiroseguardasmunicipais.Doroteo,depoisdaruptura,foimoraremHuancabamba.AnosdepoisvoltouparaPiurae,“coisasdavida”diziamaspessoas,terminoucomoclientedobarzinho.Deviasofrervendoasmelhorasnesse lugarquejátinhasidoseu.

Masumdiaobar-restaurantefechousuasportaseaChungasumiu.Umasemanadepoisvoltouparaobairrocapitaneandoumaturmadeoperáriosquederrubouasparedesdeadobeeconstruiuoutrasdetijolo,pôszinconotetoefezjanelas.Ativa,sorridente,Chungaficavaodianaobra,ajudavaostrabalhadoreseosvelhos,muitoexcitados,trocavamolhareseloquentes,retrospectivos,“elavai ressuscitá-la, irmão”,“talpaitalfilha”,“filhodepeixe...”.NessaépocaaorquestranãotocavamaisnaCasadeCastilla,esimnadobairrodeBuenosAires,equandoianaqueladireçãooharpistapediaaoBolaseaoJovemAlejandroquedessemumaparada.Subiampeloareale,diantedaobra,ovelho,jáquasecego,comovaiotrabalho?,colocaramasportas?,ébonitadeperto,comqueseparece?Suaansiedadeesuasperguntasmostravamumcertoorgulho,queosmangachesestimulavamcomgozações:“OlhesóaChunguita,harpista,estáficandorica,viuacasaqueestáconstruindo?”Ele sorriacomprazermas,poroutro lado,quandoosvelhos safadosvinhamdizer,“Anselmo, elavai ressuscitá-la”,oharpista se faziadeperplexo,misterioso,desentendido,não seidenada,precisoirembora,doqueestãofalando,queCasaVerde.

Com um aspecto decidido e próspero, passos firmes, certa manhã a Chunga avançou pelas ruelasempoeiradasdaMangacheríaperguntandopeloharpista.Encontrou-odormindo,nocasebrequetinhasidodePatrocinioNaya.Deitadonumcatre,comobraçoatravessadoemcimadorosto,ovelhoroncavacomospelosbrancosdopeitomolhadosdesuor.AChungaentrou,fechouaporta,eenquantoissoseespalhavao boato dessa visita. Os mangaches começaram a passear nas redondezas, olhavam por entre as frestas,encostavamasorelhasnaporta, informavamosdescobrimentosuns aosoutros.Poucodepois, oharpistaapareceu com uma expressão meditabunda, nostálgica, e pediu aos garotos que chamassem o Bolas e oJovem;aChungaestavasentadanocatre,risonha.Chegaramosamigosdovelho,aportavoltouasefechar,“nãoéumavisitaaopaiesimaomúsico”,cochichavamosmangaches,“aChungaqueralgumacoisacomaorquestra”.Eles ficarammaisdeumahoranocasebree,quandosaíram,muitosmangaches já tinhamidoembora, cansadosde esperar.Mas viram,das janelas dosbarracos.Oharpista estava outra vez comoumsonâmbulo,trôpego,andandoemzigue-zague,boquiaberto.OJovempareciatravadoeaChungadavaobraçoaoBolaseestavacontenteefaladora.ForamaobardeAngélicaMercedes,comerambeliscos,depoisoJovemeoBolastocaramecantaramalgumascomposições.Oharpistaolhavaparaoteto,coçavaasorelhas,seu rostomudava o tempo todo, sorria, ficava triste. E quando aChunga se despediu, osmangaches os

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rodearam, ávidos de explicações. Don Anselmo continuava perdido, abobalhado, o Jovem encolhia osombros, sóoBolas respondiaàsperguntas.“Vocênãopode reclamar,velho”,diziamosmangaches,“é umbomcontrato,e,alémdomais,vaitertodasasvantagenstrabalhandoparaaChunguita,elatambémvaipintaracasadeverde?”.

—Eleestavabêbadoenãolevamosasério—disseoBolas.—OsenhorSeminarioriucomsarcasmo.Masosargentotinhapuxadoorevólveroutravez,agoraoseguravapelacoronhaepelapontaefazia

força para abri-lo. Em volta todos começaram a se olhar e a rir amarelo, a se mexer nas cadeiras,subitamenteconstrangidos.Sóoharpistacontinuavabebendo,umaroletinha-russa?,aosgolinhos,oqueeraisso,rapazes.

—Umacoisaqueserveparaprovarseoshomenssãomesmohomens—disseosargento—;vaiverjá,já,velho.

—EupercebiqueeraasériopelatranquilidadedeLituma—disseoJovem.Como rosto abaixado, olhando para amesa, Seminario estavamudo e rígido e seus olhos, sempre

desafiantes,agoratambémpareciamdesconcertados.Osargentoafinaltinhaconseguidoabrirorevólveresuasmãostiravamasbalaseasarrumavam,verticais,paralelas,entreoscopos,garrafasecinzeiroscheiosdepontasdecigarro.ASelváticasoluçou.

—Oquemeenganoufoiatranquilidadedele—disseaChunga—;senãoeuteria lhearrancadoaarmaquandoadescarregou.

—Oquefoi,milico—disseSeminario—,quegracinhaéessa.Falava com a voz embargada e o Jovem assentia, sim, dessa vez tinhametido com o rabo entre as

pernas.Oharpistadeixouocoponamesa, farejouoar, inquieto, estavambrigandodeverdade, rapazes?Não façam isso, continuem conversando amigavelmente sobreChápiro Seminario.Mas asmoradoras jáestavamfugindodamesa,Rita,Sandra,Maribel,pulando,Amapola,Hortênsia,chiandocomopassarinhos,e, aglomeradas ao lado da escada, ciciavam, arregalando os olhos, assustadíssimas. O Bolas e o Jovempegaramoharpistapelosbraçoseolevaramquasepeloaratéocantinhodaorquestra.

—Porquenão falaramcomele—balbuciouaSelvática.—Quando lhedizemascoisascomboasmaneiras,eleentende.Porquenãotentaram,pelomenos.

AChungatentou,queguardasseorevólver,emquemelequeriametermedo.—Vocêouviucomoelexingouaminhamãe,Chunguita—disseLituma—,etambémadotenente

Ciprianoqueelenemconhece.Vamosverseessexingadordamãedosoutrostemsangue-frioebompulso.—Oquefoi,milico—uivouSeminario—,paraquetantoteatro.E Josefino interrompeu-o:nãoadiantavadisfarçar, senhorSeminario,paraque se fingirdebêbado?,

queconfessassequeestavacommedo,ediziaissocomtodoorespeito.—Eoamigodeletambémtentoupararacoisa—disseoBolas.—Vamosemboradaqui,irmão,não

semetaemencrenca.MasSeminariojátinhaseencorajadoedeu-lheumtapa.—Eoutroemmim—protestouaChunga.—Saia,queabusado,váparaaputaqueopariu,saia!—Sapatonademerda—disseSeminario.—Fujasenãoeufurovocê.Lituma estava segurando o revólver com a ponta dos dedos, o tambor barrigudo de cinco orifícios

diantedosolhos,esuavozerametódica,didática:primeiroeraprecisoverseestavavazio,ouseja,senãoficounenhumabaladentro.

—Nãofalavaconosco,falavacomorevólver—disseoJovem.—Davaessaimpressão,Selvática.EentãoaChungaselevantou,atravessoucorrendoapistaesaiubatendoaportacomforça.—Quandoagenteprecisadelesnuncaaparecem—disse—;tivequeiratéomonumentoGraupara

encontrarunstiras.

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O sargento pegou uma bala, levantou-a com delicadeza, expôs à luz da lâmpada azul. Agora é sóintroduziroprojétilnaarmaeoMacacoperdeuocontrole,primo,chega,quefossememboradeumavez,quevoltassemparaaMangachería,primo,eopróprio José,quasechorando,quenãobrincassecomesserevólver,quefizessemoqueoMacacodisse,primo,quefossemembora.

—Nãoperdoovocêspornãomecontaremnahoraoqueestavaacontecendo—disseoharpista.—OsgritosdosLeónedasmoçasmedeixavamagoniado,masnuncaimaginei,eupensavaquedeviamestartrocandosocos.

—Ninguématinavaafazernada,maestro—disseoBolas.—Seminariotambémtinhapuxadoasuaarma,eapassavaemfrenteaorostodeLituma,enóssóesperandoqueaqualquermomentoescapasseumtiro.

Litumamuito calmo, o tempo todo, e oMacaconãodeixem, segurem esses dois, ia acontecer umadesgraça, o senhor donAnselmo, a ele dariamouvidos.Assim como a Selvática,Rita eMaribel estavamchorando, a Sandra que pensasse na suamulher, e José no filho que estava esperando, primo, não sejateimoso,vamosparaaMangachería.Comumgolpeseco,osargentouniuacoronhaeocano:aarmasefechava,impecável,confidencialmente,etudopronto,senhorSeminario,oqueestamosesperando.

—Écomoessesapaixonadoscomquemvocêfalaenãoadiantanada,porqueestãonomundodalua—suspirouoJovem.—Litumaestavaenfeitiçadopelaarma.

— E tinha enfeitiçado a todos — disse o Bolas —, e Seminario lhe obedecia como se fosse umcaboclinhodele.QuandoLitumamandou,abriuseurevólveretiroutodasasbalas,menosuma.Osdedosdocoitadotremiam.

—Seucoraçãodeviaestarlhedizendoqueiamorrer—disseoJovem.—Pronto,agoraponhaamãonotamborsemolharparaeleefaça-ogirarparanãosaberondeestáa

bala.Rápido,comoumaroleta—disseosargento.—Éporissoquesechamaassim,harpista,sabia?—Chegadeconversa—disseSeminario.—Vamoscomeçarlogo,caboclodemerda.—Éaquartavezquemeinsulta,senhorSeminario—disseLituma.—Davacalafriosvercomoelesgiravamotambor—disseoBolas.—Pareciamdoisgarotossoltando

pião.—Olhecomosãoospiuranos,moça—disseoharpista.—Arriscaravidaporsimplesorgulho.—Queorgulhoquenada—disseaChunga.—Foiporbebedeiraeparadesgraçaraminhavida.Lituma soltou o tambor, seria preciso sortear para ver quem começava, mas tanto faz, desafiou-o

quando ergueuo revólver, eu façoprimeiro, encostouo canona têmpora, fecha-se os olhos e fechouosolhos, edispara-se e apertouogatilho: tac eumabatidadedentes.Ficoupálido, todos ficarampálidos eabriuabocaetodosabriramaboca.

—Cale-se,Bolas—disseoJovem.—Nãovêqueestáchorando?DonAnselmoacariciouo cabelodaSelvática,deu-lheo seu lenço colorido,moça,não chore, eram

águaspassadas,não importavamais, e o Jovemacendeuumcigarro eofereceu-o a ela.O sargentohaviadeixado o revólver namesa e estava bebendo, devagar, de um copo vazio, sem ninguém rir. Seu rostopareciatersaídodaágua.

—Nãohouvenada,nãofiquenervoso—suplicavaoJovem.—Vailhefazermal,maestro,juroquenãoaconteceunada.

—Vocêmefezsentiroquenuncatinhasentido—gaguejouoMacaco.—Agora,porfavor,primo,vamos embora. E José, como acordando, aquilo ia ficar na história, primo, até onde tinha chegado, naescadaouviu-seo zumbidodasmoradoras, aSandraululou,o JovemeoBolas acalme-se,maestro, fiquetranquilo, e Seminario sacudiu amesa, silêncio, iracundo, caralho, é aminha vez, calem-se. Levantou orevólver,encostou-onatêmpora,nãofechouosolhos,seupeitoseinflou.

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—Ouvimosotiroquandojáestávamosentrandonobairrocomosguardas—disseChunga.—Eagritaria.Demospontapésnaporta,osguardasaderrubaramcomosfuzisporquevocêsnãoabriam.

—Eletinhaacabadodemorrer,Chunga—disseoJovem.—Quemiapensaremabriraporta.—CaiudebruçosemcimadeLituma—disseoBolas—,ecomoimpactoosdoisrolaramparao

chão.OamigodeleficougritandochamemodoutorZevallos,masninguémconseguiasemexerdetantosusto.E,depois,erainútil.

—Eele?—disseaSelvática,baixinho.Eleolhavaosanguequeotinhasalpicado,etocavanocorpotodonacertapensandoqueosangueera

seu,enemcogitavaemselevantar,eaindaestavasentado,apalpando-se,quandoentraramosguardas,defuzisnasmãos,quietos,apontandoparatodomundo,ninguémsemexe,seaconteceualgumacoisacomosargento, vocês vão ver. Mas ninguém ligava para eles e os inconquistáveis e as moradoras corriam embando entre as cadeiras, o harpista caía, agarrava alguém, quem foi, em frente à escada e obrigou aretrocederosquequeriamfugir.AChunga,oJovemeoBolasseinclinaramsobreSeminario:debruços,aindatinhaorevólvernamãoeumamanchaviscosacresciaentreseuscabelos.Oamigo,dejoelhos,cobriaoseurosto,Litumacontinuavaseapalpando.

—Osguardas,oquehouve,sargento,elelhefaltouaorespeitoetevequeatirar?—disseoBolas.—Eelemeiotonto,dizendoquesimatudo.

—Estesenhorsesuicidou—disseoMacaco—,nósnãotemosnadaavercomisso,deixem-nossair,nossasfamíliasestãonosesperando.

Masosguardashaviamtrancadoaportaeagoraavigiavam,comodedonogatilhodosfuzis,soltandoespumapelabocaefaíscaspelosolhos.

—Sejamhumanos, sejamcristãos,deixem-nos sair—repetia José.—Sóestávamosnosdivertindo,nãonosenvolvemosemnada.Porquemqueremquejuremos?

—Tragaumcobertorládecima,Maribel—disseaChunga.—Paracobri-lo.—Vocênãoperdeuacabeça,Chunga—disseoJovem.—Depoistivequejogarfora,asmanchasnãosaíamdejeitonenhum—disseaChunga.— Com eles acontecem as coisas mais estranhas — disse o harpista. — Vivem diferente, morrem

diferente.—Dequemestáfalando,maestro?—disseoJovem.—DosSeminario—disseoharpista.Manteveabocaaberta,comosefosseacrescentaralgumacoisa,

masnãodissenada.—AchoqueJosefinonãovemmaismebuscar—disseaSelvática.—Jáétardíssimo.Aportaestavaabertaeporelaosolentravacomoumincêndiovoraz,todososcantosdosalãoardiam.

Sobre os tetos do casario, o céu estava altíssimo, sem nuvens, muito azul, e também se viam o lombodouradodoarealeasalfarrobeirasachatadaseralas.

—Podemoslevarvocê,moça—disseoharpista.—Assimeconomizaotáxi.

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Quatro

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Silenciosas, impelidaspelasvaras,ascanoas seaproximamdamargemeFushía,PantachaeNievespulampara terra. Entram alguns metros mato adentro, agachados, falando em voz baixa. Enquanto isso, oshuambisas varam as canoas, ocultam-nas debaixo da ramagem, apagam as pegadas na lama na ribeira etambémentramnomato.Levamzarabatanas,machados,arcos,feixesdesetaspenduradosnopescoçoenacintura, facas e zarabatanas untadas de curare. Seus rostos, torsos, braços e pernas estão ocultos pelastatuagense,comofazemnasgrandesfestas,tambémtingiramosdenteseasunhas.PantachaeNievescomespingardas, Fushía só revólver. Um huambisa troca algumas palavras com eles, depois se esconde e,elasticamente, somenafloresta.Opatrãoestámelhor?Opatrãonuncaestiveramal,queminventou isso.Masquenãolevantasseavoz:oshomensficavamnervosos.Silhuetasmudas,espalhadassobasárvores,oshuambisasobservamàdireitaeàesquerda,seusmovimentossãosóbriosesóobrilhodaspupilaseasfurtivascontraçõesdosseuslábiosdelatamoanisadoeasinfusõesquepassaramanoitebebendoemvoltadeumafogueira,nobaixioondeacamparam.Algunsmolhamnocurareosvérticesdasflechasforradosdealgodão,outros sopram nas zarabatanas para tirar os resíduos. Quietos, sem olhar uns para os outros, esperamdurante muito tempo. Quando o huambisa que se afastara surge entre as árvores como um suavíssimofelino,oSoljáestáaltoesuaslínguasamarelasderretemostraçosfeitoscomalgaseurucumnoscorposnus.Há uma complicada geografia de luzes e sombras no lugar, a cor domatagal se acentuou, as cascas dasárvores parecem mais duras, mais rugosas, e lá em cima ecoa uma ensurdecedora algazarra de pássaros.Fushía se levanta, fala como recém-chegado, volta para onde estãoPantacha eNieves: osmuratos estãocaçandonafloresta,sóhámulheresecrianças,nãosevêlátexnemcouros.Valeapenair,assimmesmo?Opatrão acha que sim, nunca se sabe, talvez aqueles cachorros tenham escondido. Os huambisas agoraconversam em volta do recém-chegado. Fazem perguntas sem se atropelar, usando monossílabos, e elerespondeameia-voz,reforçandosuaspalavrascomgestoseligeirosmovimentoscomacabeça.Dividem-seemtrêsgrupos,opatrãoeoscristãosandamnafrenteeassimavançam,sempressa,paralelos,precedidospor dois huambisas que vão abrindo a folhagem com facões.A terra sómurmura quando passam, e emcontato com seus corpos o capim alto e os galhos se inclinam, fazendo um mesmo estalo, depois seendireitamevoltamasejuntaratrásdeles.Continuamaandarporumbomtempoe,derepente,aluzficamaiscruaemaispróxima,osraiosatravessamobliquamenteavegetaçãoqueagoraéescassaemaisbaixa,menosmonótona,maisclara.Param,eao longe já sedivisamofimda floresta,umavastaclareira,umascabanas e as águasquietasdo lago.Opatrão eos cristãosdãomais algunspassos eobservam.As cabanasestãoaglomeradasnumaelevaçãodeterranuaecinzentaapoucadistânciadolagoe,portrásdaaldeiaqueparecedeserta,háumapraialisa,decorocre.Noladodireito,umbraçodeflorestaseestendeechegaquaseatéascabanas:porali,quePantachasedeixassevereosmuratosviriamparaestelado.Pantachadámeia-volta,explica,fazgestos,rodeadodehuambisasqueoouvemassentindo.Saememfila,agachados,afastandoos cipós com asmãos, e o patrão,Nieves e os outros dirigem a vista outra vez para a aldeia. Agora háindíciosdevida:entreascabanasseadivinhamsilhuetas,movimentos,eumasfigurascaminhamlentamenteparaolago,enfileiradas,comvolumesnacabeçaquedevemserrodilhasoucântaros,escoltadasporsombrasminúsculas, talvez cachorros, talvez crianças.Nieves vê alguma coisa?Não vê látex, patrão,mas aquelascoisasestendidasnasvigaspodemsercourossecandoaosol.Opatrãonãoentende,naregiãoháseringais,será que os patrões já vieram buscar o látex? Esses muratos sempre foram uns molengas, é difícil quemorramtrabalhando.Osdiálogosdoshuambisassãocadavezmaisroucos,maisenérgicos.Decócorasouem pé ou encostados nos arbustos, olham fixamente para as cabanas, as silhuetas esfumadas na praia, as

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sombrasrasteiras,eagoraseusolhosnãosãodóceisesimindômitosenelesháalgodaambiçãoimpávidaquedilataaspupilasdopumafaminto,eatésuaspelestensasadquiriramolustrebrilhantedojaguar.Suasmãosdenotamexasperação,apertamaszarabatanas,apalpamosarcos,asfacas,batemnascoxas,eosdentesuntados de algas, limados como pregos, se entrechocam oumordiscam cipós, fiapos de fumo. Fushía seaproxima,falaeelesgrunhem,cospem,eascaretasquefazemsãoaomesmotemporisonhas,beligerantes,exaltadas.AoladodeNieves,comumjoelhonochão,Fushíaobserva.Asfigurasvoltamdolago,evoluemlânguidas,pesadas,entreascabanaseemalgumlugaracenderamumafogueira:umaarvorezinhacinzasobeparaocéubrilhante.Umcachorro late.FushíaeNievesseolham,oshuambisas levamaszarabatanasaoslábiose,despontandonasfímbriasdafloresta,procuramcomosolhosmasocachorronãoaparece.Latedevezemquando,invisível,asalvo.Eseumdiaentrassemnascabanaseencontrassemsoldadosàsuaespera?Opatrão tinhapensadonisso algumavez?Nunca.Mas em todaviagemele semprepensavaquequandovoltassemàilhaencontrariamsoldadosemboscadosnobarranco.Tudoestariaqueimado,asmulheresdoshuambisasmortaseapatroateriasidolevada.Noprincípiotinhaumpouquinhodemedo,masagoranão,sóficavanervoso.Opatrãotevemedoalgumavez?Nunca,porquepobrequetemmedoficapobreavidainteira.Masnãoerabemassim,patrão,Nievessemprefoipobreeapobrezanãoobedeciaaomedo.ÉqueNievesseconformavaeopatrão,não.Teveumpoucodeazarmasissoiapassar,amanhãoudepoispassariaparaoladodosricaços.Ninguémduvidava,patrão,elesempreconseguiaoquequeria.Eumaexplosãodevozessacodeamanhã:ululantes,súbitos,nus,emergemdalínguadaflorestaecorremparaaaldeia,sobemaencostagesticulandoeentreosvelozescorposdistantessedistinguemascuecasbrancasdePantacha,ouvem-seseusgritosquelembramarisadasarcásticadagralhaeagoramuitoscachorroslatemeascabanasexpelemsombras,ganidoseumaagitaçãotenaz,umaespéciedefervorabalaaencostaporondefogem,tropeçando,pulando, batendo umas nas outras, figuras que avançam na direção da floresta e por fim se divisam,nitidamente: sãomulheres.Osprimeiroscorpospintadoschegaramaotopo.AtrásdeNieveseFushía,oshuambisasfazemalarido,pulam,afolhagemvibraenãoseouvemmaisospássaros.Opatrãosevira,apontaparaodescampadoeasmulheresqueestãofugindo:podemir lá.Maselespermanecemnomesmolugarpor mais alguns segundos, estimulando-se com rugidos, ofegando e sapateando e, de repente, um deleslevantaazarabatana,começaacorrer,atravessaamataestreitaqueosseparadaclareirae,quandochegaaoterrenoaberto,osoutroscorremtambém,comospescoçosinchadosdetantogritar.OpilotoeFushíaossegueme,nodescampado,asmulhereslevantamosbraços,olhamparaocéu,ficamagitadas,dispersam-seemgruposeosgruposemsilhuetassolitáriasquepulam,vãoevêm,caemnochãoedepoisdesaparecem,umaatrásdaoutra,submersasnoscourosderesplendorespretoseavermelhados.FushíaeNievesavançameosgritososseguemouantecedemparecemsairdapoeiraluminosaqueoscercaenquantosobemaladeira.Naaldeiamurata,oshuambisasandamentreascabanas,destroemapontapésasparedesfinas,derrubamostetosde jarinacomseus facões,alguémapedrejaovazio,outroapagao fogoe todoscambaleiam,ébrios?atordoados?mortosdecansaço?Fushíavaiatrásdeles,sacode,interroga,dáordensePantacha,sentadoemcima de um cântaro, suado, de olhos esbugalhados, boquiaberto, aponta para uma cabana ainda ilesa: láhavia um velho. Sim, por mais que ele avisasse, patrão, eles a cortaram. Alguns huambisas tinham seacalmado e começarama revistar aqui e ali, passamcarregando couros, pelasde seringa,mantasque vãoamontoandonaclareira.Agritariaagoraseconcentrou,vemdasmulheresencurraladasentreumbambuzaletrêshuambisasqueasobservaminexpressivos,apoucospassosdedistância.OpatrãoeNievesentramnacabanaeveemnochão,entredoishomensajoelhados,umpardepernascurtaseenrugadas,umsexoocultoporumestojodemadeira,umabarriga,umtorsoraquíticoeimberbecomascostelasmuitomarcadasnapeleterrosa.Umdoshuambisasvira-se,mostraaelesacabeçaquegoteja,agorapouco,pontosvermelhos.Masoburacoabertoentreosombrosossudosaindajorra,quecachorros,golfadasintermitentesdesangueespesso,olhesóosseusrostos.MasNievesjásaíradacabana,pulandoparatráscomoumcaranguejo,eos

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doishuambisasnãodemonstramomenorentusiasmo,estãocomosolhoscomoqueintumescidos.Ouvemmudos,impassíveis,FushíaquegritaefazgestoseapertaorevólverequandoelesecalasaemdacabanaeláestáNieves,encostadonummuro,vomitando.Eramentira,aindanãotinhaperdidoomedo,masquenãotivesse vergonha, esses cachorros embrulhavamo estômagode qualquer um.Para que servia oPantacha?Para que serviam as ordens do patrão? E esses aí nunca iam aprender, porra, qualquer dia ainda viriamcortar as cabeças deles. Mas nem que fosse a tiros, porra, a pontapés, porra, esses porras iam ter queobedecer. Voltam à clareira e os huambisas se afastam e está tudo arrumado no chão: couros de jacaré,veado, cobra e javali, cabaças, colares, seringa,maços de barbasco. Apinhadas e barulhentas, asmulheresreviram os olhos, os cachorros latem e Fushía examina os couros à contraluz, calcula o peso do látex eNieves recua, senta-senumtroncocaídonochãoePantachavemparao seu lado.Seriaobruxo?Quemsabe,masocasoéquenãotentoufugirequandoentrarameleestavasentadinhoequeimandoumaservas.Gritou?Quemsabe,elenãoouviunadaeaprincípioquisdetê-losedepoisquisiremboraefoiemboraesuaspernastremiamesecagouenãosentiuquesecagava.Ocasoéqueopatrãoestavadanado,nemtantoporquemataram,porquenãolheobedeceram?,sim.Enãohaviaquasenada,oscourosestavamestragadoseaseringaeradapiorqualidade,iaficarfurioso.Masporquedisfarçava?Nãoestavaarrasadotambém?Eramcristãos,na ilhaagente se esqueciaqueos índios eram índios,masagora ficavaclaro,não sepodiaviverassim,setivessemasatoseembebedaria.E,alémdomais,vejasó,discutiamcomopatrão,iaficarfurioso,furioso.Atrásdeumamuralhadehuambisasàsuavolta,avozdeFushíatrovejamediocrementenamanhãensolarada, e eles trovejamcomveemência,balançamospunhos, cospeme vibram.Acimadas cabeleiraslisassurgeamãodopatrãocomorevólver,queapontaparaocéueatiraeoshuambisasmurmuramporumsegundo,calam-se,outrodisparoeasmulherestambémsecalam.Sóoscachorroscontinuamlatindo.Porqueopatrãoqueriapartir logo?Oshuambisasestavamcansados,Pantachatambémestavacansado,eelesqueriamcomemorar,erajusto,elesnãobotavamamãonamassaporcausadaseringaoudoscouros,erapeloprazer,umdiaexplodiriameosmatariamtambém.Équeopatrãoestavadoente,Pantacha,elequeriafingirquenãomasnãoconseguia.Nãotinhabomhumor,antes?Nãogostavatambémdefestejar?Agoranemolhavaparaasmulheres,viviasemprezangado.Seráqueestava ficando loucoporquenãoconseguiaenriquecer como queria? Fushía e os huambisas dialogam agora com entusiasmo, sem violência, não seouvemrugidose simumcochichovivaz,nervoso,circular,alguns rostos semostramjoviais.Asmulheresestãoemsilêncio,grudadasumasnasoutras,abraçadasàssuascriançaseaosseuscachorros.Doente?Claro,nanoiteanterioraosumiçodeJumdailha,Nievesentroueviu-o,asachualesestavammassageandosuaspernas com resina e ele, porra, já para fora, ficou furioso, não queria que ninguém soubesse que estavadoente. Fushía dá instruções, os huambisas enrolam os couros, jogam as pelas de seringa no ombro,pisoteiamedestroemtudooqueopatrãodescartouePantachaeNievesseaproximamdogrupo.Aquelescachorrosestavamcadavezpiores,nãoqueriamobedecer,faziaminsolências,porra,maseleialhesensinar.Équequeriamcomemorar,patrão,edepoishaviatantasmulheres.Porqueopatrãonãodeixava?Masqueimbecil,eletambém?,aregiãonãoestavacheiadetropas?,serranoburro,seficassemdeporreiadurardoisdias,idiota,acomeçarporele,osmuratospodiamvoltar,ossoldadospodiamsurpreendê-los.Opatrãonãoqueriaconfusãoàtoa,quelevassemamercadoriaatéorio,imbecil,ebemrápido.Várioshuambisasdescema ladeira e Pantacha vai atrás deles, coçando-se, apressando-os,mas os homens andam sem pressa e semvontade, em silenciosas e morosas linhas curvas. Os que permanecem na aldeia murmuram, circulamconfusamentedeumladoparaoutro,evitamFushíaqueosobserva,comorevólvernamão,nocentrodaclareira.Porfim,umasparedescomeçamaqueimar.Oshuambisasparamdeandar,esperamapaziguadosqueaschamasabracemacasanumtorvelinho.Depoisempreendemavolta.Quandodescemaencostanua,viram-separaolharasmulheresquelánoaltojogampunhadosdeterranacabanaemchamas.Chegamàflorestaeprecisamabrirdenovoumapicadacomosfacõeseavançarporumestreito,precáriopassadiço

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sombreado, entre troncos, cipós, trepadeiras e breves igarapés.Quando chegam à praia, Pantacha e seushomenstiramascanoasdafolhagemeinstalamacarga.Embarcam,partem,àfrenteacanoadopiloto,quevaimedindocomavaraaprofundidadedoleito.Navegamatardetoda,comumabreveparadaparacomer,e,quandoescurece,atracamnumapraia,semiescondidaporchambirasgêmeascheiasdeespinhos.Acendemumafogueira,servemossalgados,assamumasmandiocasePantachaeNieveschamamopatrão:não,nãoquercomer.Estádeitadodecostasnaareia,comosbraçosdetravesseiro.Comemedeitam-seladoalado,cobrem-secomumamantamurata.Davapenaveropatrãotãotransformado,elenãosónãocomianada,tampoucofalava.Deviaserporcausadaspernas,vocênotou?,elemalpodiaandar,sempreficavaparatrás.Deviam doer, é lógico, e também não tirava a calça nem as botas de jeito nenhum. Os murmúrios secruzamedescruzamnanegrura,percorrem-naemtodasasdireções:vozesdeinsetos,vozesdorioquebatenaspedras,nagramaena terradamargem.Nas trevas circundantesosvaga-lumesbrilhamcomo fogos-fátuos.MasPantachaviuquandoeletirouaqueleakítaidosmuratos,eramaisbonito,maiscoloridoqueosdoshuambisas,viucomoeleoescondeunascalças.Ah, sim?EoqueachavaPantacha,porqueJumiriafugirda ilha?Quenãomudassedeassunto, ia levaresseakítaiparaa shapra?, estavaapaixonadoporela?Comopoderiaapaixonar-sesenemseentendiacomela,nemsequergostavamuitodela.Iapassarparaele,então?Quandovoltassem?Namesmanoite?Sim,namesmanoiteemquevoltassem,seelequisesse.Paraquemera,então,esseakítai?Paraumadasachuales?Opatrãoiapassarumaachualparaele?Nãoeraparaninguém,sóparaele,gostavadecoisascompenase,alémdomais,eraumalembrança.

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I

Bonifaciaesperouosargentoaopédacabana.Ovento levantavaseucabelocomoumacrista,e tambémpareciamde galo sua atitude satisfeita, a postura das suas pernas plantadasna areia e seu traseiro firme esaliente.Osargentosorriu,acariciouobraçonudeBonifacia,palavra,ficaraemocionadoaovê-ladelonge,eosolhosverdessedilataramumpouco,osolserefletiacomoumavibraçãodedardosminúsculosemcadapupila.

—Engraxouasbotas—disseBonifacia.—Seuuniformeparecenovo.Umsorrisosatisfeitoarredondouacaradosargentoequaseescondeuseusolhos:— Foi a senhora Paredes quem lavou — disse. — Tinha medo de que chovesse mas, que sorte,

nenhumanuvenzinha.Pareceumdiapiurano.—Vocênemnotou—disseBonifacia.—Nãogostadomeuvestido?Énovo.—Émesmo,nãotinhareparado—disseosargento.—Caibememvocê,oamareloficaótimonas

moreninhas.Era um vestido semmangas, com decote quadrado e saia rodada.O sargento examinava Bonifacia

risonho,comamãosempreacariciandoseubraço,eelapermaneciaimóvel,comosolhosfixosnosolhosdosargento.Lalitalheemprestarasapatosbrancos,elaexperimentounanoiteanterioremachucavam,masosusariaparaaigreja,eosargentoolhouparaospésdeBonifacia,nus,mergulhadosnaareia:nãogostavadevê-ladescalça.Aquitantofazia,menina,masquandofossememborateriaqueandarsempredesapatos.

—Primeiroprecisome acostumar—disseBonifacia.—Sabequenamissão eu sóusava sandálias?Nãoéigual,elasnãoapertam.

Lalitaapareceunoparapeito:oquesabiadotenente,sargento.Umafitaprendiaseuscabeloslongosenoseupescoçobrilhavaumcolardecontasdevidro.Tinhaoslábiospintados,quebonitaestavaasenhora,comrugenasbochechas,comelaosargentogostariadecasar,eLalita:otenentenãotinhachegado?,oquesesabia?

—Nenhumanotícia—disseosargento.—SósabemosqueaindanãochegouàguarniçãodeBorja.Parece que está chovendo muito, devem estar ilhados no meio do caminho. Mas por que estão tãopreocupados,nemseotenentefossefilhodevocês.

—Agoravá,sargento—disseLalita,demausmodos.—Dáazarveranoivaantesdacerimônia.—Noiva?—explodiuamadreAngélica.—Querdizerconcubina,amancebada.—Não,madrecita—insistiuLalita,comumavozhumilde.—Noivadosargento.—Dosargento?—disseasuperiora.—Desdequando?Comofoiisso?Incrédulas,surpresas,asmadresseinclinaramemdireçãoaLalita,queadotaraumaposturareservada,

com as mãos juntas, a cabeça baixa. Mas espiava as madres pelo canto do olho e seu semissorriso eraenganoso.

—Seder errado, a culpa vai ser sua ededonAdrián—disseo sargento.—Foramvocêsquememeteramnestaenrascada,senhora.

Riudebocaaberta,bemalto,eseucorpo,tambémregozijado,estremeciadacabeçaaospés.LalitafaziaconjuroscomosdedosparaespantaroazareBonifaciaafastou-sealgunspassosdosargento.

—Váparaaigreja—repetiuLalita.—VocêestáseazarandoeazarandoaBonifaciaporcausadeumcapricho.Paraqueveio?

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Paraquepodiaser,senhora,eosargentoestendeuasmãosparaBonifacia,paraveraminhagarota,eelacorreu,tevevontade,ora,etalcomoLalitafaziacruzouosdedoseexorcizouosargentoque,cadavezmaisbem-humorado,bruxas,bruxas,riaàsgargalhadas;ah,seosmangachesvissemestasduasbruxas.Maselas não concordavam com isso e o pequeno punho trêmulo da madre Angélica escapuliu da manga,golpeou o ar e desapareceu entre as dobras dohábito: ela não ia pisar nesta casa.Estavamnopátio, emfrente à residência e, no fundo, as pupilas corriam entre as árvores do pomar. A superiora pareciasuavementeabstraída.

—Édasenhoraqueelamaissente falta,madreAngélica—disseLalita.—Soumuitosortuda,diz,tenhomuitasmães,diz,eaprimeiraésuamamitaAngélica.Elaachavaqueasenhorameajudariaapediràsuperiora,madrecita.

—Éumdemôniocheiodetruqueseartimanhas—opunhoapareceuesumiu.—Masnãovaimeenganarassim.Elapodeiremboracomseusargentosequiser,aquiéquenãovaientrar.

—Porquenãoveiopessoalmenteemvezdemandarvocê?—disseasuperiora.—Temvergonha,madrecita—disseLalita.—Nãosabiaseasenhoraareceberiaouaexpulsariade

novo.Nãopodeterláoseuorgulhosóporquenasceupagã?Perdoe-a,madre,pensequevaisecasar.—Eujáiabuscá-lo,sargento—disseopilotoNieves.—Nãosabiaqueestavaporaqui.Vieraparaavarandaeagoraseapoiavanoparapeito,aoladodeLalita.Estavacomumacalçabranca

dealgodãoeumacamisademangacomprida,semcolarinho.Nãousavachapéu,enospéstinhaunssapatosdesolagrossa.

—Vãoemboradeumavez—disseLalita.—Adrián,leve-odaquiagoramesmo.Opilotodesceu a escadinha, comaspernas rígidas comopaus, o sargento fezuma saudaçãomilitar

dirigidaaLalitaepiscouumolhoparaBonifacia.Foramparaamissão,nãopelocaminhoparaleloaorio,masporentreasárvoresdacolina.Comosesentiaosargento?Atéquehorasforaadespedidadeontemànoite,nacasadeParedes?Atéasduas,eoPesadoseembebedoueentrounaáguatodovestido,donAdrián,eletambémtinhabebidoumpouco.Jásesabiaalgumacoisadotenente?Denovo,donAdrián?Nãosabiadenada,nacertaaschuvasparalisaramaexpedição,eledeviaestarsoltandoespumapelaboca.Aindabemquenãoficaramcomele,então.É,talvezaindaleveumbomtempo,dizemquecaiuumverdadeirodilúvionoSantiago.Escute,cáentrenós,estavacontenteporsecasar,sargento?,eosargentosorriu,seusolhosseausentaramporuns segundos e, de repente, bateunopeito: essamulher tinha entrado aquidentro,donAdrián,eraporissoquesecasavacomela.

—Osenhorseportoucomoumbomcristão—disseAdriánNieves.—Aquisósecasagentequejáestá junta há muitos anos, as madres e o padre Vilancio se cansam de dar conselhos e eles, nada. Emcompensação,osenhor levaamoçadiretoparaoaltar,esemestargrávida.Elaestá feliz.Ontemànoitediziaheideserumaboamulher.

—Naminhaterradizemqueocoraçãonãoseengana—disseosargento.—Eomeucoraçãodizqueelavaiserumaboamulher,donAdrián.

Avançavam devagar, evitando as poças, mas as perneiras do sargento e as calças do piloto ficaramsalpicadasdelama.Asárvoresdomorrofiltravamaluzdosol,davam-lhecertofrescoreaagitavam.Aopédamissão,SantaMaríadeNievarepousavaquietaedouradaentreosrioseafloresta.Passaramporcimadeummontinho, subiramo caminhopedregoso e lá emcima,naportada capela,umgrupode aguarunaschegouàbeiradaencostaparavê-los:mulheresdepeitoscaídos,criançasnuas,homenscomolhosesquivose cabeleiras profusas, todos se afastaram para deixá-los passar e alguns meninos estenderam as mãos egrunhiram.Antes de entraremna igreja, o sargento espanou a farda comum lenço e ajeitou o quepe eNievesdesdobrouabainhadacalça.Acapelaestavacheia,cheiravaafloresealampiõesderesina,acarecadedonFabioCuestareluziacomoumafrutanapenumbra.Estavadegravatae,doseubanco,acenoupara

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o sargento que levou amão ao quepe.Atrás do governador, o Pesado, o Pequeno, o Escuro e o Lourobocejavam, com as bocas azedas e os olhos injetados, e os Paredes e seus filhos ocupavam dois bancos:inúmeros meninos de cabelos úmidos. Do lado oposto, atrás de uma grade onde a penumbra setransformava em escuridão, uma fileira de aventais e cabeleiras idênticas: as pupilas.Ajoelhadas, imóveis,seus olhos eram uma nuvem de vaga-lumes curiosos perseguindo o sargento que, nas pontas dos pés, iaapertando asmãos dos presentes, e o governador apontou para a própria careca, sargento: devia tirar ochapéunaigreja, ficardecabeçadescobertacomoele.Osguardassorrirameosargentoalisavaoscabelosdespenteadospeloímpetocomquetirouoquepe.Foisentar-senaprimeirafila,aoladodopilotoNieves.Oaltarestavabonito,nãoestava?Muitobonito,donAdrián,easfreirinhaseramsimpáticas.Osvasosdebarrovermelho ferviamde flores, e tambémhaviaorquídeas trançadas emcolaresquedesciamdo crucifixodemadeiraatéochão;emambososladosdoaltar,suportescomvasosdegrandessamambaiassealinhavamemfilas duplas até chegar às paredes, e o chão da capela tinha sido lavado e estava brilhando.Dos castiçaisacesos,canudosdefumaçatransparenteearomáticasubiampeloarescuroeiamalimentaradensacamadadevaporqueflutuavapertodoteto:jáestavamaí,sargento,anoivaeamadrinha.Houveummurmúrio,ascabeças giraram emdireção à porta.Como sapato branco de salto alto, agoraBonifacia tinha amesmaestaturaqueLalita.Umvéunegroescondiaseuscabelos,enquantoseusolhospercorriamosbancos,grandesealarmados, eLalitacochichavacomosParedes, seuvestido floreadodavaumavivacidadegrácil, juvenilàquelesetordacapela.DonFabioseinclinouemdireçãoaBonifacia,dissealgoemseuouvidoeelasorriu,coitadinha:ameninaestavasemjeito,donAdrián,comcaraenvergonhada.Depoislhedariambebidaeelaficariaalegre,sargento,oproblemaéquemorriademedodeencontrarasmadres,achavaqueiambrigarcom ela, seus olhos não eram mesmo bonitos, don Adrián? O piloto pôs um dedo sobre os lábios e osargento olhou para o altar e se persignou. Bonifacia e Lalita sentaram-se junto a eles e, pouco depois,Bonifacia se ajoelhou e começou a rezar, de mãos juntas, os olhos fechados, os lábios movendo-seimperceptivelmente.Estavaassimquandoagraderangeueasmadresentraramnacapela,comasuperioraàfrente.De duas em duas, iam até o altar, ajoelhavam-se, faziam o sinal da cruz e, sem qualquer ruído,dirigiam-separaosbancos.Quandoaspupilascomeçaramacantar,todosselevantarameentrouopadreVilancio,comsuabarbavermelhíssimacomoumpeitilhosobreohábitoroxo.AsuperiorafezgestosparaLalitaapontandooaltar,eBonifacia,aindadejoelhos,enxugavaosolhoscomovéu.Depoislevantou-seeavançou entre o piloto e o sargento, toda empertigada, sem olhar para os lados. E ficou rígida amissainteira,comoolharcravadonumpontointermediárioentreoaltareoscolaresdeorquídeas,enquantoasmadreseaspupilasrezavamemvozaltaeosoutrosseajoelhavam,ousesentavameselevantavam.DepoisopadreVilancio se aproximoudosnoivos, o sargento fez posiçãode sentido, a barba vermelha estava apoucosmilímetrosdorostodeBonifacia,perguntouaosargentoquebateuoscalcanharesedissesimcomenergia, e a Bonifacia, mas não se ouviu a sua resposta. O padre Vilancio agora sorria cordialmente eestendiaamãoparaosargento,eparaBonifacia,queabeijou.Aatmosferapareceudesanuviar-senacapela,aspupilaspararamdecantar ehaviadiálogos ameia-voz, sorrisos,movimentos.OpilotoNieves eLalitaabraçavam os noivos e, na roda formada à sua volta, don Fabio brincava, as crianças riam, o Pesado, oPequeno,oEscuroeoLouroesperavamumatrásdooutrosuavezdefelicitarosargento.Masasuperioraosdispersou,senhores,estavamnacapela,silêncio,quefossemparaopátio,esuavozdominavaasoutras.LalitaeBonifaciaatravessaramagrade,depoisosconvidados,porfimasmadres,eLalitasuaboba,queasoltasse, Bonifacia, as madrecitas tinham preparado a mesa, com uma toalha branca, cheia de sucos epasteizinhos, que a soltasse, todos queriam cumprimentá-la.As pedras dopátio cintilavam e, nas paredesbrancasdaresidência,crivadaspelosol,haviasombrasdetrepadeiras.Quevergonha,madrecitas,nemtinhacoragemdeolharparaelas,ehábitos,sussurros,risadas,uniformesrevoavamemvoltadeLalita.Bonifaciacontinuava abraçada a ela, com a cabeça escondida em seu vestido floreado e, enquanto isso, o sargento

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recebiaedistribuíaabraços:estavachorando,madrecitas,queboba.Porqueficavaassim,Bonifacia?Eraporvocês,madres,easuperioraquetola,nãochore,venhamedarumabraço.BonifaciasesoltoubruscamentedeLalita,virou-seecaiunosbraçosdasuperiora.Agorapassavadeumamadreparaaoutra,tinhaquerezarsempre,Bonifacia,sim,mamita,sermuitocristã,sim,nãoesquecerdelas,nuncaasesqueceria,eBonifaciaasapertavaforte,eelastambémforte,egrossas,involuntárias,invencíveislágrimasescorriampelasbochechasdeLalita,tiravamoruge,sim,sim,iagostardelasparasempre,erevelavamosestigmasdasuapele,tinharezadotantoporelas,espinhas,manchas,cicatrizes.Estasmadresnãotinhampreço,padreVilancio,olhesótudo o que prepararam. Mas, atenção, o chocolate ia esfriar e o governador estava com fome. Podiamcomeçar,madreGriselda?AsuperioraresgatouBonifaciadosbraçosdamadreGriselda,claroquepodiam,donFabio,earodaseabriu:duaspupilasabanavamamesacheiadetravessasedejarras,eentreelashaviauma silhueta escura. Quem lhe havia preparado tudo isso, Bonifacia? Tinha que adivinhar e Bonifaciachoramingava,madre, diga queme perdoou, puxava o hábito da superiora, dê-me este presente,madre.Fino,rosado,oindicadordasuperioraapontouparaocéu:pediuperdãoaDeus?Arrependeu-se?Todososdias,madre,eentãoaperdoou,mastinhaqueadivinhar,quemfoi?Bonifaciachoramingava,quempodiatersido,seusolhosprocuravamentreasmadres,ondeestava,aondehaviaido?Asilhuetaescuraafastouasduaspupilaseavançou,encurvada,arrastandoospés,comacaramaisranzinzaquenunca:finalmenteessaingrata, essamal-agradecida se lembravadela.MasBonifacia já tinhapulado e, nos seus braços, amadreAngélica cambaleava, o governador e os outros começaram a comer pasteizinhos e tinha sido ela, suamãezinha,eamadreAngélicanuncaveiomever,demônio,massonhavacomela,pensavatododiaetodanoitenasuamãezinha,eamadreAngélicaqueprovassedestes,daqueles,quebebesseumsuco.

—Elanemmedeixouentrarnacozinha,donFabio—diziaamadreGriselda.—DestaveztêmqueelogiaramadreAngélica.Preparoutudoparaasuaqueridinha.

— O que eu não fiz por ela — disse a madre Angélica. — Fui sua babá, sua criada, agora suacozinheira.

Seurostoseesforçavaparacontinuaremburradoerancoroso,masavoz jáestavaalterada,ressonavacomoumapagãe,derepente,seusolhosseencheramd’água,abocaperdeuoprumo,erompeuemsoluços.Sua velhamão encurvadadavapalmadas desajeitadas emBonifacia e asmadres e os guardas passavam astravessas,enchiamoscopos,opadreVilancioedonFabioriamàsgargalhadaseumdosmeninosdeParedestinhasubidonamesa,amãelhedavaumalambada.

—Comogostamdela,donAdrián—disseosargento.—Comoamimam.—Masporquetantochoro?—disseopiloto.—Nofundoestãotodascontentes.—Possolevaralgoparaelas,mamita?—disseBonifacia.Apontavaparaaspupilas,formadasemtrês

fileirasnafrentedaresidência.Algumassorriam,outraslhedavamadeusestímidos.—Elasvãotersuarefeiçãoespecial,também—disseasuperiora.—Maspodeirabraçá-las.— Prepararam presentes para você — grunhiu a madre Angélica, com o rosto deformado pelas

lágrimasesoluços.—Nóstambém,eulhefizumvestidinho.—Vireivisitá-latodososdias—disseBonifacia.—Queroajudarasenhora,mamita,voucontinuar

levandoolixo.DepoisseafastoudamadreAngélicaefoiatéaspupilas,quedebandaramecorreramaoseuencontro,

fazendo algazarra. A madre Angélica abriu passagem entre os convidados e, quando chegou junto aosargento,suacaraestavamenospálida,jáemburradadenovo.

—Vai serumbommarido?—grunhiu, sacudindo-opelobraço.—Aidevocê sebaternela,aidevocêsesaircomoutrasmulheres.Vaiseportarbemcomela?

—Maséclaro,madrecita—respondeuosargento,confuso.—Eugostotantodela.

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—Ah,jáacordou—disseAquilino.—Éaprimeiravezquedormeassimdesdequesaímos.Antes,eravocêquemficavameolhandoquandoeuabriaosolhos.

—SonheicomJum—disseFushía.—Passeianoiteinteiravendoorostodele,Aquilino.—Ouvivocêgemerváriasvezes,numadelasacheiatéqueestavachorando—disseAquilino.—Era

porisso?—Coisaesquisita,velho—disseFushía—,eunãoaparecianosonho,sóJum.—Eoquesonhoucomoaguaruna?—disseAquilino.—Quemorria,naquelaprainhaondePantachapreparavasuasinfusões—disseFushía.—Ealguémse

aproximavadeleediziavenhacomigoeelenãoposso,estoumorrendo.Assimosonhotodo,velho.—Quemsabeestavaacontecendomesmo—disseAquilino.—Vaiverquemorreuontemànoitee

veiosedespedirdevocê.—Devetersidomortopeloshuambisas,quetantooodiavam—disseFushía.—Masespere,nãoseja

assim,nãováainda.—Nãoadianta—disseLalita,ofegando—,vocêmechamaenuncadácerto.Paraquemefazvirse

nãoconsegue,Fushía.—Consigosim—gritouFushía—,sóquevocêqueracabarlogo,nãomedátempodenadaefica

furiosa.Consigosim,suaputa.Lalitavirou-seedeu-lheascostasnaredequerangiaaobalançar.Umaclaridadeazulentravanacabana

pelaportaepelas frestas juntocomoshumores tépidoseosmurmúriosdanoite,masnãochegavaatéarede;estes,sim.

—Vocêpensaquemeengana—disseLalita.—Achaquesouboba.—Tenhomuitaspreocupaçõesnacabeça—disseFushía—,precisoesqueceressascoisasmasvocênão

medátempo.Souhomem,nãoumanimal.—Oproblemaéquevocêestádoente—sussurrouLalita.—Oproblemaéquetenhonojodassuasespinhas—gritouFushía—,oproblemaéquevocêficou

velha.Eésócomvocêqueeunãoconsigo,comasoutras,quantasvezesquiser.—Você as abraça e beijamas tambémnão consegue com elas—disse Lalita, bemdevagar.—As

achualesmecontaram.—Vocêfalademimcomelas, suaputa?—ocorpodeFushíacontagiavaaredecomumansiosoe

contínuotremor.—Falademimcomaspagãs?Vocêquermorrer?—Sabeaondeeleiatodavezquedesapareciadailha?—disseAquilino.—ASantaMaríadeNieva.—ANieva?Eoqueiafazerlá?—disseFushía.—ComovocêsabequeJumiaparaSantaMaríade

Nieva?—Ouvihápoucotempo—disseAquilino.—Aúltimavezqueelefugiufoiháunsoitomeses?—Jáquasenãocontomaiso tempo,velho—disseFushía.—Mas sim,deve fazerunsoitomeses.

EncontrouJumeelelhecontou?—Agoraqueestamoslonge,vocêjápodesaber—disseAquilino.—LalitaeNievesestãomorandolá.

EpoucotempodepoisdechegaremaSantaMaríadeNieves,Jumapareceu.—Entãosabiaondeelesestavam?—ofegouFushía.—Vocêosajudou,Aquilino?Vocêtambéméum

cachorro?Vocêtambémmetraiu,velho?—Éporissoquevocêtemvergonhaeseescondeenãotiraaroupanaminhafrente—disseLalitaea

redeparouderanger.—Masporacasoeunãosintocomofedem?Suaspernasestãoapodrecendo,Fushía,issoépiorqueasminhasespinhas.

Ovaivémdaredeestavamuitoativooutravezeasestacasrangiamdenovo,longamente,masnãoeraele quem tremia agora, era Lalita. Fushía estava encolhido, e não passava de uma forma rígida que se

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desmanchava entre as cobertas, uma garganta embargada tentando falar, e na sombrado seu rostohaviaduasluzinhasvivaseatônitasnaalturadosolhos.

—Vocêtambémmeinsulta—balbuciouLalita.—Esemprequelheacontecealgumacoisaaculpaéminha, agora mesmo, você me chamou e ainda fica zangado. Eu também sinto raiva, acabo falandoqualquercoisa.

—Foramospernilongos,puta—Fushíagemeubaixinhoeseubraçonusimulouumapancada,semforça.—Ospernilongosmemorderam,einfeccionou.

—Sim,ospernilongos,eémentiraqueestáfedendo,vaipassarlogo—soluçouLalita.—Nãofiqueassim,Fushía,comraivaagentenãopensaefalaqualquercoisa.Querágua?

—Estãoconstruindoumacasa?—disseFushía.—Esses cachorrosvão ficarpara sempre emSantaMaríadeNieva?

—Nieves foi contratado como piloto pelos guardas que estão lá— disse Aquilino.—Veio outrotenente,maisjovemqueaqueleCipriano.EaLalitaestáesperandoumfilho.

—Tomaraquemorranabarriga,equeelatambémmorra—disseFushía.—Masmediga,velho,nãofoiláqueopenduraram?OqueJumfoifazeremSantaMaríadeNieva?Queriavingança?

—Elefoiporaquelecasoantigo—disseAquilino.—ParareclamaraseringaqueosenhorReáteguilhetirouquandoesteveemUrakusacomossoldados.Nãolhederamouvidos,eNievessedeucontadequenãoeraaprimeiravezqueeleiareclamar,quetodasassuasfugasdailhaeramparaisso.

—Iareclamarcomosguardasenquantotrabalhavaparamim?—disseFushía.—Elenãopercebia?Aqueleidiotapodiaterfodidoanossavida,velho.

—Maisparececoisademaluco—disseAquilino.—Continuarinsistindodepoisdetantosanos.Issonãovaisairdacabeçadeleatéamorte.NãoconhecinenhumpagãotãoteimosocomoJum,Fushía.

—Fuimordidoquandoentreina lagoaparapegaratartarugaquemorreu—gemeuFushía.—Ospernilongos, as aranhas-de-água. Mas as feridas já estão secando, sua burra, não sabe que infeccionamquandoagentesecoça?Éporissoquefedem.

—Nãofedem,nãofedem—disseLalita—,sófaleiissoporqueestavacomraiva,Fushía.Antesvocêqueriaotempotodoeeuprecisavainventarcoisas,estousangrando,nãoposso.Porquemudou,Fushía?

—Vocêficoutodamole,estávelha,mulherdurinhaéquedátesãonohomem—berrouFushía,earedecomeçouapular—,nãotemnadaavercomasmordidas,suacadela.

— Mas eu não estou mais falando dos pernilongos — sussurrou Lalita —, sei que você estámelhorando.Masmeucorpodói, ànoite.Paraquemechama,então, se é comovocêdiz?Nãome façasofrer,Fushía,nãomefaçavirparaasuaredesenãoconsegue.

—Consigosim—gritouele—,consigoquandoquiser,mascomvocênãoquero.Saiadaqui,eseviermefalaroutravezdospernilongoseumetoumtiroondetantolhedói.Fora,foradaqui.

Continuougritando atéque ela ergueuomosquiteiro, levantou-se e foideitarnaoutra rede.EntãoFushía se calou,mas as estacas continuaram rangendo a cada tanto, dando sacudidas violentas, como seestivessem atacadas de febres, e só muito tempo depois a cabana se apaziguou, envolta nos murmúriosnoturnosdafloresta.Deitadadecostas,osolhosabertos,Lalitaacariciavacomasmãosascordasdetucumdarede.Umdosseuspésescapoudomosquiteiroeinimigosminúsculosealadosvieramatacá-loàsdúzias,pousando vorazmente nas unhas e nos dedos. Lancetavam a pele com suas armas finas, compridas ezunidoras. Lalita bateu o pé na estaca e todos fugiram, aturdidos. Mas poucos segundos depois tinhamvoltado.

—EntãoocachorrodoJumsabiaondeelesestavam—disseFushía.—Eeletambémnãomedissenada.Todosficaramcontramim,Aquilino,nacertaatéoPantachadeviasaber.

—Issoquerdizerqueelenãoseacostumou,quetudooquefazéparapodervoltaraUrakusa—disse

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Aquilino.—Devesentirmuitafaltadasuaaldeia,devetermuitasaudade.Éverdadequediscursavaparaospagãosquandoiacomvocê?

—Eleosconvenciaamedaraseringasembrigar—disseFushía.—Faziaameaçasesemprecontavaahistória daqueles dois cristãos. Você os conheceu, velho? Qual era o negócio deles? Nunca conseguidescobrir.

—OstaisqueforammoraremUrakusa?—disseAquilino.—UmavezouviosenhorReáteguifalardisso.Eramestrangeirosquevieramsublevarosíndios,aconselhá-losamatartodososcristãosdaqui.PorterdadoouvidosaeleséqueJumacaboumal.

—Nãoseiseosodiavaougostavadeles—disseFushía.—ÀsvezesfalavadeBoninoeTeófilocomosequisessematá-los,outrasvezescomosetivessemsidoseusamigos.

—AdriánNievesdiziaomesmo—disseAquilino.—QueJummudavadeopiniãosobreessescristãosotempotodo,nãosedecidia,umdiaerambonsenodiaseguintemaus,diabosmalditos.

Lalitaatravessouacabananapontadospésesaiu,eláforaoarestavaimpregnadodeumvaporqueumedeciaapelee,aoentrarpelabocaepelonariz,aturdia.Oshuambisastinhamapagadoasfogueiras,suascabanaseramsacosnegros,muitoespessos,levantadosnailha.Umcachorroveioseesfregaremseuspés.Noabrigo,ao ladodocurral,as trêsachualesdormiamsobummesmocobertor,comosrostosbrilhantesderesina.QuandoLalitachegouemfrenteàcabanadePantachaeespiou,suaitípakmolhadadesuorestavacolada no corpo: uma pernamusculosa emergia das sombras, entre as coxas lisas e sem pelos da shapra.Ficou observando, com a respiração ofegante, a boca entreaberta, amão no peito.Depois, correu até acabanavizinhaeempurrouaportadecipós.Nocantoescuroonde ficavaocatredeAdriánNieves,umruído.Opilotonacertaestavaacordado,deviaestarreconhecendosuasilhuetarecortadanaentradacontraanoite,osdoisriosdecabelosqueemolduravamseucorpoatéacintura.Depoisastábuasrangerameumtriângulobrancoavançouatéela,boanoite,umcontornodehomem,oquehouve?,umavozsonolentaesurpresa.Lalitanãodizianada, sóofegavaeesperava,exausta,comoseaquilo fosseo finaldeuma longacorrida. Faltavam muitas horas ainda para que gorjeios e rumores alegres substituíssem os grasnidosnoturnoseospássaros,asborboletascoloridasrevoassemsobreailha,ealuzclaradoamanheceriluminasseostroncosleprososdaspaineiras.Aindaerahoradosvaga-lumes.

—Masvoulhedizerumacoisa—disseFushía.—Oquemaismedóidetudoisso,Aquilino,oquemaismemagoa,foitertidotantoazar.

—Cubra-se,nãosemexa—disseAquilino.—Estávindoumbarquinho,émelhorseesconder.—Masvamosrápido,velho—disseFushía.—Aquinãoconsigorespirar,estoumesufocando.Passe

rápidoporele.

Estáclarocomonoverão,oSoldispararaios,osolhoslacrimejamaoolhá-los.Eocoraçãosenteessecalor,queratravessararua,passarsobospésdetamarindo,sentarnoseubanco.Levante-sedeumavez,paraqueserveacamaseosononãovem,umaareinhafinacomoosseuscabelosdeveestarcaindonaPonteVelha,vá sentar no La Estrella del Norte, abaixe o chapéu, espere por ela, já está chegando. Não fique assimimpaciente,eJacintoétristeacidadevazia,vejadonAnselmo,osvarredoresjápassarameaareiasujoutudodenovo.Olhe a esquina doMercado, aí chega umburro carregadode cestas, não é agora que a cidadeacorda?Aíestá,leve,silenciosa,entranapraçacomoseestivessedeslizando,vejacomoalevaparapertodocoreto, como a faz sentar, toca em suasmãos, seus cabelos, e ela dócil, de joelhos apertados, de braçoscruzados:aíestáasuarecompensaportantoscuidados.Eaívaiagalinaçadandolambadasnoasno,sente-sedireitonacadeira,acomode-semelhor,continueolhandoparaela.Vemdefrenteoamor,depeitoaberto,ouvemdisfarçando?Evocêépena, ternura, compaixão,vontadede lhedarumpresente.Deixea rédeafrouxaequevácomoquiser,apasso,atrote,agalope,elesabeparaonde,aindaécedo.E,enquantoisso,

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façaapostas:tantoquevaiestardebranco,tantodeamarelo,tantocomafita,vouversuasorelhas,tantosemafita,decabelosolto,hojenãovouvê-las,tantodesandália,tantodescalça.EseganharseráJacintoquemganhou,eeleporquetantagorjetaseontemmedeuametadeconsumindoamesmacoisa,comovousaber?Não sabe nada, o senhor está com cara de sono, nunca dorme, donAnselmo?, você é um velhocostume,nãoirparaacamasemtomarocafédamanhã,oardamadrugadalimpaocérebro,látudocheiraafarra,fumaçaeálcool,agoravoltoeanoitecomeçaparamim.Eelelogovouvisitá-lo,vocêmasclaro,rapaz,venhamever,vamosbeberalgumacoisa,vocêtemcrédito,jásabe.Masagoravá,fiquesozinho,queninguém ocupe a sua mesa, que a manhã comece logo, que cheguem as pessoas, que uma branca seaproxime,quealeveparadarumavolta,queatragaparaLaEstrelladelNorteelheofereçaumdoce.Eaí,denovo,atristeza,araivanocoração,queotemponãoaplacou.Eentãotireocafé,Jacinto,umadose,depoisoutra,eporfimmeiagarrafadoespecial.Eaomeio-diaChápiro,donEusebio,odoutorZevallosvamossubi-lonocavalo,esteolevaráparaoareal.Láasmulheresvãoseencarregardelevá-loparaacama.Agarre-senasela,entãocabeceiaentreasdunas,rolanochãocomoumfardo,entraengatinhandonosalão,e elas que durma aqui mesmo, pesa muito para subi-lo à torre, tragam uma bacia que está vomitando,desçam um colchão, tirem as botas. E então, ásperas, amargas, as náuseas, os arroios de bílis e álcool, acomichãonaspálpebras,ofedor,amolezabêbadadosmúsculos.Sim,vemdisfarçado,nocomeçopareciapena:sódeveterdezesseisaninhos,adesgraçaquelheaconteceu,aescuridãodasuavida,osilênciodasuavida, seu rostinho.Tente imaginar: como seria,osgritosquedava,o terrorque sentia,quantoassombrohaverianosseusolhos.Tentever:oscadáveres,osborbotõesdesangue,asferidas,osvermeseentãodoutorZevallos,contedenovo,nãopodeser,étãoterrível,jáestavadesmaiada?,comofoiquesobreviveu?Tenteadivinhar:primeirocírculosaéreos,negruçosentreasdunaseasnuvens,sombrasqueserefletemnaareia,depoisvultospenososnaareia,bicoscurvos,grasnidosácidoseentãosacaorevólveremataum,eaívemoutroemata,easmulheresoquefoi,patrão,porquetantoódiocontraosurubus,oquelhefizeram,evocêna bala porra, derrube-os, fure-os.Disfarçado de piedade, de carinho.Vá também, o que há de errado,compre-lhemingau,pãodemel,balas.Fecheosolhoseaíestá,denovo,oredemoinhodossonhos,vocêeela no torreão, vai ser como tocar harpa, junte as gemas dos dedos e sinta-a,mais suave que a seda e oalgodão, vai ser como umamúsica, não abra ainda os olhos, continue tocando em suas bochechas, nãoacorde.Primeiro curiosidade,depoisumsentimentoquepareciapena e,de repente,medodeperguntar.Elasfalam,osbandidosdeSechura,assaltaramemataram,asenhoraestavapeladaquandoaencontraram,de repente falam seunome,dizemcoitadinha, e entãoumcalor súbito, a línguaquegagueja,oque estáacontecendo comigo, asmoradoras vãomaliciar, o que tenho.Ou, senão, um ricaço no La Estrella delNorteatraz,pedeumrefrescoparaela,faltadear,inveja,tenhoqueir,bomdia,oareal,oportãoverde,umagarrafadeaguardente,leveaharpaláparacimadatorre,toque.Afeto,compaixão?Jáestavatirandoosdisfarces. E essa manhã é, como agora, diáfana. Ela é velha, não a aceite, talvez doente, que o doutorZevallos a examine antes, comodisseque se chama?, você temquemudardenome,Antonianão.E elacomoosenhorquiser,patrão,algumamulherdequemgostousechamavaassim?Eaí,denovo,orubor,ofluxomornosobapelee,intempestiva,averdade.Anoiteépreguiçosa,insone,oespetáculodajanelaéumsó:emcimaasestrelas,noarolentodilúviodeareiae,àesquerda,Piura,muitasluzesnasombra,asformasbrancasdeCastilla,orio,aPonteVelhacomoumgrandelagartoentreasduasmargens.Masquepasselogoa noite ruidosa, que amanheça, pegue a harpa, não desça se o chamarem, toque na escuridão, cantebaixinho,doce, bemdevagar, venhaToñita, uma serenatapara você, está ouvindo?Oespanholnão estámorto, então aparece, na esquina da catedral, com seu lenço azul no pescoço, suas botas espelhadas, seucoletesoba levitabranca,outravezocalorzinho,asondasqueengordamasveias,opulsoativo,oolharalerta, vai até o coreto?, sim, se aproxima?, sim, sorri?, sim. E de novo ela tomando sol, imóvel,inconsciente,muitotranquila,emvoltaosengraxatesemendigos,donEusebiodiantedoseubanco.Agora

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já sabe, está sentindo uma mão em seu queixo, ergueu-se no assento?, sim, está falando com ela?, sim.Inventeoquedizer:bomdia,Toñita,bonitamanhã,osolesquentasemqueimar,penatantaareia,ousepudesseveraluzquehá,comoestáazulocéu,écomoomardePaitae,aí,olatejardastêmporas,asondasseatropelando,ocoraçãodesembestado,ainsolaçãointerior.Vãojuntos?,sim,paraavaranda?,sim,leva-apelobraço?,sim,eJacintonãoestásesentindobem,donAnselmo?,ficoupálido,vocêumpoucocansado,tragaoutro café e umcopinhodepisco, diretopara a suamesa?, sim, e entãopare, estenda amão, donEusebiocomoestá,elemeuquerido,estasenhoritaeeuvamos lhefazercompanhia,dá licença?Entãoaíestáela,aoseulado,olhe-asemtemor,esteéoseurosto,estaspequenasavessãosuassobrancelhaseatrásdaspálpebrasfechadasreinaapenumbra,eatrásdoslábiosfechadostambémháumaminúsculamoradiadesertaeescura,esteéoseunariz,estesosseuspômulos.Olheoslongosbraçoscordebronzeeaspontasdecabeloclaro que ondulam sobre seus ombros, e sua testa que é lisa e vez por outra se franze. E don Eusebiovejamos, vejamos, um cafezinho com leite?,mas já deve ter tomado café, émelhor um doce, os jovensgostamdisso,osenhornãoeraguloso?,digamosdemarmelo,eumsuquinhodemamão,porfavor,Jacinto.Admite,concorda,fuiguloso,essafinacolunaéoseupescoço,disfarçaaebulição,boceja,fuma,essasfloresdecaulefrágil,suasmãos,easbrevessombrasqueparecemlourassobosol,suaspestanas.Efalecomela,sorria, então comprou mesmo a casa ao lado, então vai aumentar a loja e contratar mais empregados,interesse-se e estimule-o, vai abrir sucursais emSullana?, e emChiclayo?,que alegria, sejaumavoz eumolhar,aliás fazumtempãonãovaimevisitar, suaexpressãoéalheiaegrave, estáconcentradanabebida,umas gotinhasde luz alaranjadabrilhamem suaboca e enquanto isso émuito trabalho, as obrigações, afamília,masdêumaescapada,donEusebio,umpoucodediversãodevezemquando,seusdedosseabrem,pegamummarmelo,levantamnoar,comoestãoasmoradoras?,comsaudades,perguntandopelosenhor,quandovier façoquestãode atendê-lopessoalmente, olhe-a agoraquemorde, veja como seusdentes sãovorazeselimpos.Eentãooburroeascestas,tireochapéu,sorria,converseotempotodo,eaíagalinaçafazendomesuras,ossenhoressãotãobonzinhos,Toñitaaperteamãodosmoços,agradeçoporela,eaí,denovo, o frescor fugaz, cinco contatos suaves em suamão, algoque entrano seu corpo e o sossega.Quecalmaagora,nãoémesmo?,quepaz,eveja,donEusebio,eraestaarazãoeosenhornãosabia,nemsoubeatémorrer. E ele de jeito nenhum, assim fico constrangido, Anselmo, deixe-me pagar pelomenos umarodada,senãomefazsentir.Vocênunca,nemumcentavo,aquitudoéseu,estaésuacasa,osenhormetirouomedo,sentou-aàminhamesaeninguémtorceuacaranemprestouatenção.Eaí,aexaltação.Agorasim,atreva-se,váaobancodetodasasmanhãs,acaricieseucabelo,compre-lhefrutas,leve-aaoLaEstrelladelNorte,passeiecomelasobosolardente,ame-atantocomonaquelesdias.

—Osburrinhos—disseBonifacia.—Passamtodososdiasnafrentedecasaeeunãomecansodeolhar.—Nãoháburrosnaselva,prima?—disseJosé.—Euachavaqueláoquemaishaviaeramanimais.—Masnãoburrinhos—disseBonifacia.—Sóumououtro,nãoécomoaqui.—Estãochegando—disseoMacaco,dajanela.—Ossapatos,prima.Bonifaciacalçouossapatos,velozmente,oesquerdonãoentrava,caramba,levantou-se,foiatéaporta,

insegura,temerosaemcimadossaltos,abriueJosefinoestendiaamão,umalufadadearquente,Lituma,jorrosdeluz.Oquartoseescureceudenovo.Litumatiravaajaqueta,chegarameiomorto,primos,oquepe,quebebessemumpreparadode algaroba.Desabounuma cadeira e fechouosolhos.Bonifacia foiparaoquarto contíguo e Josefino, deitado numa esteira ao lado de José, essemaldito calor que embrutecia aspessoas.Pelospostigossefiltravamprismasdeluzcrivadosdepartículasedeinsetos,eláforatudopareciasilenciosoedesabitadocomoseosoltivessedissolvidocomseusácidosbrancosascriançaseosvira-latas.OMacaco se afastou da janela, eram os inconquistáveis, não sabiam trabalhar, só jogar, só trepar, eram osinconquistáveiseagoraiambeber,maselessócantaramdepoisdoprimeirocopodealgaroba.

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—EstávamosfalandodePiuracomaprima—disseoMacaco.—Oquemaischamasuaatençãosãoosburros.

—Etantaareiaetãopoucasárvores—disseBonifacia.—Naselvatudoéverdeeaqui,tudoamarelo.Eocalor,também,émuitodiferente.

— O diferente é que Piura é uma cidade com edifícios, carros e cinemas — explicou Lituma,bocejando.— E SantaMaría deNieva, um vilarejo com gente pelada na rua,mosquitos e chuvas queapodrecemtudo,acomeçarpornós.

Duasferinhasseesconderamatrásdeumasmechasdecabelossoltose,verdes,hostis,espionaram.OpéesquerdodeBonifacia,meioforadosapato,lutavaparaentrardenovo.

— Mas em Santa María de Nieva passam dois rios que têm água o ano inteiro, e muita — disseBonifacia,suavemente,depoisdepensaruminstante.—OrioPiura,muitopouquinhaesónoverão.

Osinconquistáveissoltaramumagargalhada,doisedoissãotrês,trêsedoissãoquatroeBonifaciajátinhaseaborrecido.Suado,semabrirosolhos,gordo,Litumasebalançavapausadamenteemsuacadeira.

— Você não se acostuma com a civilização — suspirou, afinal. — Espere um tempinho, veja asdiferenças.Nãovainemquererouvirfalardomato,terávergonhadedizersouselvática.

Quatroedoissãocinco,cincoedoissãoseiseoprimoLitumajálherespondeu.Opétinhaentradonosapato,àforça,amassandoselvagementeocalcanhar.

—Nuncavoutervergonha—disseBonifacia.—Ninguémpodetervergonhadasuaterra.—Somostodosperuanos—disseoMacaco.—Porquenãoserveoutrarodada,prima?Bonifacialevantou-see,bemdevagar,foideumemum,enchendooscopos,quasesemlevantarospés

dochãoescorregadioqueashumilhadasferinhasobservavamdoaltocomdesconfiança.—Sevocê tivessenascidoemPiura,nãoandaria como se estivessepisandoemovos—riuLituma,

abrindoosolhos.—Estariaacostumadaausarsapato.—Nãobriguecomaprima—disseoMacaco.—Nãoprovoque,Lituma.Asgotinhasdouradasdealgarobacaíamnochãoinimigo,nãonocopodeJosefinoeabocaeonarizde

Bonifacia,comosuasmãos,tambémcomeçaramatremer,masnãoerapecado,nemsuavoz:Deusafizeraassim.

—Claroquenãoépecado,prima,dejeitonenhum—disseoMacaco.—Asmangachestambémnãoseacostumamcomosalto.

Bonifaciadeixouagarrafanumaprateleira,sentou-se,asferinhassossegarame,derepente,silenciosos,rebeldes, rapidíssimos, um ajudando o outro, seus pés se livraram dos sapatos. Depois se inclinou, semurgência colocou-os debaixo da cadeira e agora Lituma parara de se balançar, os inconquistáveis nãocantavammaiseumaviva,beligeranteagitaçãodominavaas figurinhasverde-escurasqueseexibiamcomatrevimento.

— Essa aí ainda não me conhece, não sabe com quem se meteu — disse Lituma para os León; elevantouavoz:—Vocênãoémaisíndia,agoraéamulherdosargentoLituma.Ponhaossapatos!

Bonifacianãorespondeu,nãosemexeuquandoLitumase levantou,comacara sudorosaecolérica,nãoseesquivoudabofetadaquesooubreve,sibilante,eosLeónpularameinterferiram:nãoeraparatanto,primo.SeguravamLituma,quenãofosseassim,eorepreendiam,fazendograça,quecontrolasseessesanguemangache. A umidade tingira o peito e as costas de sua camisa cáqui que só nos braços e nos ombroscontinuavasendoclara.

—Elatemqueaprender—disse,balançando-seoutravez,porémmaisdepressa,noritmodasuavoz.—EmPiuranãopodesecomportarcomoumaselvagem.E,alémdomais,queméquemandanacasa.

AsferinhasespiavamporentreosdedosdeBonifacia,quaseinvisíveis,chorosas?,eJosefinoseserveumpoucodealgaroba.OsLeónse sentaram,nãoháamor sempancadadiziaopovo,eas índiaschulucanas

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diziammeumaridoquantomaismebatemaismeama,talveznaselvaasmulherespensemdeoutraformaeum, dois e três, que a prima o perdoe, que levante o rostinho, que seja boazinha, um sorrisinho. MasBonifaciacontinuouescondendoacaraeLitumaselevantou,bocejando.

—Voutirarumasoneca—disse.—Podemficar,terminemagarrafa,depoissaímosporaí—olhouBonifaciadelado,modulouvirilmenteavoz:—Senãohácarinhoemcasa,arranja-sefora.

Deuumapiscadaindolenteparaosinconquistáveiseentrounooutroquarto.Ouviu-sequeassobiavauma toada, as molas rangeram. Os outros continuaram bebendo, um copo, calados, dois copos, e noterceirocomeçaramosroncos:fundos,metódicos.Láestavamasferinhasdenovo,secasecrispadasatrásdoscabelos.

—Essasrondasanoiteinteiraarrasamohumordele—disseoMacaco.—Nãoligue,prima.—Quemaneirassãoessasdetrataramulher—disseJosefino,buscandoosolhosdeBonifacia,masela

olhavaparaoMacaco.—Éumverdadeiromilico.—Vocêsimsabetratá-las,primo,nãoéverdade?—disseJosé,dandoumaespiadanaporta:roncos

prolongados,graves.—Éclaroquesim—JosefinosorriaesearrastavapelaesteiraatéondeestavaBonifacia.—Seelafosse

minhamulher,eunãoencostariaamãonela.Querdizer,parabater,sóparafazercarinho.Agora tímidas, assustadiças, as ferinhas examinavam as paredes desbotadas, as vigas, as moscas azuis

zumbindo perto da janela, os grãozinhos de ouro imersos nos prismas de luz, as nervuras do piso demadeira.Josefinoparou,suacabeçatocounospésdescalçosquerecuarameosLeónéohomem-lombrigaeJosefinoaserpentequetentouEva.

—EmSantaMaríadeNievaas ruasnão sãocomoessasaqui—disseBonifacia.—Sãode terrae,comochovemuito,épuralama.Láossaltosafundariam,asmulheresnãoconseguiriamandar.

—Pisandoemovos,quebesteira—disse Josefino.—E, alémdomais,mentira.Anda tãobonito,quantasmulheresgostariamdeandarcomoela.

AscabeçasdosLeónsemoviamsincronizadamenteemdireçãoàporta:umaia,aoutravoltava.E,maisumavez,Bonifaciaestavatremendo,obrigadapeloquedizia,suasmãos,suaboca,maselasabiaqueerasópordizer,e,sobretudo,suavoz,nofundoelenãopensavaisso.Eospésrecuaram.Josefinometeuacabeçadebaixodacadeirae suavozvinhamorosaeabafada,pensavacomtodaasuaalma,palavras lentas, sutis,cheiasdemel,emilcoisasmais,eleasdiriasenãohouvessemaisninguém.

—Pormimnãoseincomode,inconquistável—disseoMacaco.—Vocêestáemcasa,aquisóháumpardesurdos-mudos.Sequiser,nósvamosláparaforaverseestáchovendo.Comovocêspreferirem.

—Vão,vão—melosas,musicais—,deixem-meaquicomBonifaciaparaconsolá-laumpouco.José tossiu, levantou-se e, na ponta dos pés, foi até a porta.Voltou risonho, estavamesmo exausto,

dormia feito uma pedra, e as curiosas, movediças ferinhas exploravam incansavelmente as madeiras daestante,ospésdascadeiras,abordadaesteira,ocorpocompridodeitado.

—Aprimanãogostadegalanteios—disseoMacaco.—Elaficouvermelha,Josefino.—Vocêaindanãoconheceospiuranos,prima—disseJosé.—Nãopenseemnadadeerrado.Nós

somosassim,asmulheresnosfazemsoltaralíngua.—Vamos,Bonifacia—disseJosefino.—Mandeessesdoisiremverseestáchovendoláfora.—SevocênãopararelacontaaoLituma—disseoMacaco.—Eoprimovaiseaborrecer.—Podecontar—pegajosas,mornas—,nãomeimporta.Vocêsmeconhecem,quandogostodeuma

mulhereudigologo,sejaelaquemfor.—Aalgarobalhesubiuàcabeça—disseJosé.—Falemaisbaixo.—EeugostodaBonifacia—disseJosefino.—Queelasaibadeumavez.AsmãosdeBonifaciasefecharamsobreosjoelhoseseurostoseergueu:oslábiossorriamheroicamente

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sobasespantadasferinhas.—Comovocêcorre,primo!—disseoMacaco.—Campeãodoscemmetrosrasos.—Nãoinsistaporessecaminho—disseJosé.—Vocêaestáassustando.—Seeleouvisseficariamuitozangado—balbuciouBonifacia;olhouparaJosefino,elelhemandou

umbeijosopradoeelaoteto,aestante,ochão.—Sesouber,ficazangado.— Pode ficar, por mim tanto faz — disse Josefino. — Querem saber de uma coisa, rapazes? A

Bonifacianãoescapadeserminhamulheralgumdia.Agoraochão, fixamente, e seus lábiosmurmuraramalgumacoisa.OsLeón tossiam,não tiravamos

olhosdoquartovizinho:umapausa,umronco,outromaislongo,tranquilizador.—Chega,Josefino—disseoMacaco.—Elanãoépiurana,malnosconhece.—Nãoseassuste,prima—disseJosé.—Dêmaiscordaaele,ouentãoumsopapo.—Eunãomeassusto—sussurravaBonifacia—,massesoubere,pior,seouvir...—Peçadesculpas,Josefino—disseoMacaco—,digaquefoibrincadeira,vejacomoelaficou.—Erabrincadeira,Bonifacia—riuJosefino,arrastando-separatrás.—Juro.Nãofiqueassim.—Nãoficoassim—balbuciavaBonifacia.—Nãoficoassim.

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II

—Paraquetantodrama,desdequandovocêstêmessasfrescuras?—disseoLouro.—Porquenãoentramtodosjuntos,paratrazê-loporbemoupormal?

—Équeosargentoestáganhandopontos—disseoPequeno.—Nãoviucomoandacumpridordosseusdeveres?Querquetudosejafeitocomomandaofigurino.Devetersidoocasamentoqueoestragou,Louro.

—Esse casamento vaimatar o Pesado de inveja— disse o Louro.— Parece que esta noite ele seembebedououtravez,nobardoParedes,eoutravezsemaldiziapornãoterchegadoantes,outravezperdiaminhaúltimachancedearranjarmulher.Afêmeadeveterlásuascoisinhas,masoPesadoexagera.

Estavamentreoscipós,comasarmasapontandoparaacabanadopilotosuspensasobreafolhagem,apoucosmetrosdali.Umdébilresplendorgordurosocresciaemseuinteriorechegavaailuminarumcantodoparapeito.Ninguémtinhasaído,rapazes?UmasilhuetaseinclinousobreoLouroeoPequeno:não,meusargento. E o Pesado e o Escuro já estavam do outro lado, só poderia escapar voando.Mas que não seafobassem, rapazes, o sargento falava devagar, se precisasse deles os chamaria, seusmovimentos tambémeramcalmos e,no céu,umasnuvens ligeiras filtravama luzda lua sem tapá-la.Ao longe, limitadapelastrevasda floresta eobrilho suavedos rios, SantaMaríadeNieva eraumpunhadode luzes e cintilaçõesfurtivas.Semseapressar,osargentoabriuacartucheira,tirouorevólver,puxouatrava,sussurroualgoparaosguardas.Semprelento,tranquilo,avançouemdireçãoàcabana,desapareceuabsorvidopeloscipósepelanoite, e, pouco depois, reapareceu junto ao canto iluminado do parapeito, seu rosto se refletiu por umsegundonamacilentaclaridadequeemanavadali.

—Járeparoucomoandaecomofala?—disseoEscuro.—Estámeioatordoado.Aconteceualgumacoisa,anteselenãoeraassim.

—Aíndiaoestáespremendofeitoumlimão—disseoPesado.—Nacertaeleafodetrêsvezespordiaetrêspornoite.Porquevocêimaginaquesaidopostocomqualquerpretexto?Paratreparcomaíndia,éclaro.

— Estão em lua de mel, é justo — disse o Escuro. — Você morre de inveja, Pesado, não tentedisfarçar.

Estavamdeitados, também,numa faixaminúscula de praia, atrás de uma trincheira demoitas, bempertodaágua.Mantinhamosfuzisnasmãos,masnãoapontavamparaacabanaque,dali,via-seoblíquaenassombras,alta.

—Estahistóriavirouacabeçadele—disseoPesado.—PorquenãoviemospegarNievesassimquechegouaordemdo tenente,porquê?Vamosesperarescurecer, temosque fazerumplano,cercaracasa,onde já seviu tantabobagemjunta.Épara impressionardonFabio,Escuro,paraparecer importante, sóisso.

—Otenenteseesmerou,vaireceberoutrogalão—disseoEscuro.—Eparanós,nada,vocêvaiver.NãoviuquandoopilotodeBorjachegou?Ogovernadordizendoqueotenenteisso,otenenteaquilo,masporacasonãofomosnósqueencontramosomaluconailha?

—A índiadeve lhedar algumapuçangade amor,Escuro—disseoPesado.—Deve estar ficandoloucocomessasbeberagens.Porissoandatãocansado,dormindoempé.

—Maldição,maldição—disseosargento.—Oqueosenhorestáfazendoaqui,oquehouve?

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Lalita eAdriánNieves o fitavam imóveisno catre.Aospés, umpratodebarro cheiodebananas, olampião que expelia uma fumacinha branca e aromática, e na soleira prosseguia o atônito pestanejar dosargentosobaviseira,oAquilinonãolhedissera?,estavacomavozconsternada,faziaumasduashoras,donAdrián,quedisseaogarotovácorrendo,équestãodevidaoumorte,esuamãomoviaincredulamenteorevólver: maldição, maldição. Sim, recebera o recado, sargento, o piloto falava como se estivessemastigando: tinhamandadoos filhosparaacasadeumconhecido,naoutramargem.Doscantosda suabocadoiscanaisavançavamgravementeatéasbochechas.Eagora?Porquenãofugiutambém?Nãoeramosgarotosqueprecisavamseesconder,eraele,donAdrián:osargentobateucomorevólvernacoxa.Tinhaatrasado a coisa várias horas, senhora, arriscando-se, o quemais queria que fizesse?, e lhe dera tempodesobra,donAdrián.

—Eleoestáconvencendo—disseoPequeno.—AgoravaidizeradonFabioentreisozinho,tirei-odelásozinho.Querdividiroméritocomotenente.Estátrabalhandosuatransferênciacomoumaformiga,essepiurano.

Com a claridade, saía agora da cabana um sussurro que mal perturbava a noite, flutuava nela semrompê-la,comoumaondasolitáriaemáguasquietas.

—Masquandoo tenente chegar vamos falar comele—disseoLouro.—QuenosmandemparaIquitoscomosprisioneiros.Assimpelomenosvamosterunsdiasdelicença.

—Podeserumpoucofeiticeiraeumpoucobaixinhaeoquemaisvocêquiser—disseoEscuro.—Mas,nãomediga,Pesado,qualquerumcomeriaaíndiaevocêseriaoprimeiro.Todavezqueficabêbadosófaladela,homem.

—Comeria,claro—disseoPesado.—Masvocêsecasariacomumapagã?Nuncanavida,irmão.—Ébemcapazdematá-loedizereleresistiuetivequeeliminá-lo—disseoPequeno.—Écapazde

qualquercoisaparaganharumamedalha,essepiurano.—Esederepenteé tudo invenção?—disseoLouro.—QuandochegouoestafetadeBorjae lio

informedotenente,eunãopodiaacreditar,Pequeno.Nievesnãotemcaradebandido,pareciaboagente.— Ora, ninguém tem cara de bandido — disse o Pequeno. — Ou melhor, todas as caras são de

bandido.Maseutambémfiqueigeladoquandolioinforme.Quantosanosvãopegar?—Quemvaisaber—disseoLouro.—Muitos,certamente.Roubaramdemeiomundoeopessoal

daquiprometeuvingança.Vocêviuquantotempoinsistiramparaquefôssemosatrásdeles,mesmosabendoquenãoroubavammais.

—Nãoacreditoqueelefosseochefe—disseoPequeno.—Afinal,serouboutantocomodizem,nãoseriaummortodefome.

—Nacertanãoeraochefe—disseoLouro.—Masissoéodemenos,seosoutrosnãoapareceremNieveseomalucovãopagarportodos.

—Euchorei,sargento,implorei—disseLalita.—Desdequevocêsforamparaailhaestouchorando,vamos embora, vamos nos esconder, Adrián. E agora que o senhormandou avisar, os rapazes juntaramfrutas, embrulhamos as coisas dele, o Aquilino também pediu. Mas ele não ouve nada, não obedece aninguém.

A luz do lampião caía em cheio sobre o rosto de Lalita, iluminava a superfície abrupta dos seuspômulos,osfurúnculos,ascraterasdopescoço,oscachososcilantesquelhecobriamaboca.

—Apesar da farda, o senhor tem bom coração— disse AdriánNieves.— Por isso aceitei ser seupadrinho.

Masosargentonãooouvia.Deumeia-voltae,encolhido,esquadrinhavaavaranda,comumdedonoslábios,donAdrián,quesaíssedaliagoramesmo,abalaustrada,semfazerbarulho,orio,elecontariaatédez,océueatiravaparacima,saíacorrendo,rapazes,fugiuporesseladoelevavaosguardasparaomato.Que

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empurrassealanchanaescuridão,donAdrián,enãoligasseomotoratéoMarañón,equedepoiscorressecomo se tivesse visto assombração e não se deixasse pegar, don Adrián, isto era o mais importante, eletambém podia se darmal, que não se deixasse pegar e Lalita sim, sim, ela soltaria as amarras, tiraria osremos,iriacomele,easpalavrasseatropelavamnosseuslábios,atestaserelaxavaehaviauminusitadoeveloz rejuvenescimento em suapele,Adrián, a roupa estavapronta, e a comida,nãoprecisavamdemaisnada,eremariamesemeteriamnomatoantesqueaguarniçãochegasse.Eosargento,alto,olhandoparafora: apertados contra o fundoda lancha, cuidadoparanão levantar a cabeça, os rapazes atirariam se osvissemeoPequenosempreacertavanoalvo.

—Obrigado,mas jápenseimuito enãodápara sairpelo rio—disseAdriánNieves.—Ninguémpassa pelo pongo agora, sargento; nem sendo bruxo. O senhor viu como o tenente ficou ilhado noSantiago,quenãoénadapertodoMarañón.

—Mas,donAdrián—disseosargento.—Entãooquequer,nãoentendo.—Aúnicasaídaéentrarnomato,comofiznaoutravez—disseNieves.—Masnãoquero,sargento,

jácanseidetantopensar,desdequevocêsforamparaailha.Nãovoupassarorestodavidameescondendonomato.Eu sóeraopiloto, sódirigiaa lancha, como façoparavocês,nãopodemme fazernada.Aquisempreagicorretamenteetodomundosabedisso,asmadres,otenente,eogovernadortambém.

—Nãoestãobrigando—disseoPequeno.—Haveriagritos,parecequeestãoconversando.—DeveterencontradoNievesdormindoeestáesperandoquesevista—disseoLouro.—OucomendoaLalita—disseoPesado.—Deveteramarradoopilotoeestácomendoamulherna

frentedele.—Cadacoisaquevocêimagina,Pesado—disseoEscuro.—Parecequebebeupuçanga,ficaexcitado

diaenoite.Alémdomais,quemcomeriaaLalita,comtantaespinhanacara?—Masébranca—disseoPesado.—Euprefiroumacristãcomespinhasqueumaíndiasem.Sóo

rostodelaéassim,euavitomandobanho,temboaspernas.Agoravaificarsozinha,precisadealguémqueaconsole.

—Afaltademulherdeixavocêdoido—disseoEscuro.—Naverdadeeutambémfico,àsvezes.—Useacabeça,donAdrián—disseosargento.—Senãoforparaaáguaagoramesmoestáfrito,não

entendequevai levara culpade tudo?O informedo tenentedizqueomalucoestámorrendo,não sejateimoso.

—Vouficarpresoduranteunsmeses,masdepoispossovivertranquiloevoltarparacá—disseAdriánNieves.—Semeenfiarnomatonuncamaisvereiminhamulhernemmeusfilhos,nãoqueroviverfeitoumanimalatémorrer.Eunãomateininguém,issoconstaaPantacha,aospagãos.Eaquimeporteicomoumbomcristão.

—Osargentoaconselhapeloseubem—disseLalita—,façaoqueelediz,Adrián.Peloquehádemaissagrado,porseusfilhos,Adrián.

Escarvavaochão, tocavanasbananas,perdiaavoz,eAdriánNieves tinhacomeçadoa sevestir.Pôsumacamisapuída,sembotões.

—Nãoimaginacomoeumesinto—disseosargento.—Osenhorcontinuasendomeuamigo,donAdrián.EcomovaificaraBonifacia.Elapensavaqueosenhorjáestavalonge,comoeu.

—Tome,Adrián—soluçouLalita.—Ponhaistotambém.—Nãopreciso—disseopiloto.—Guardeatéeuvoltar.—Não,não,calce—insistiuLalita,gritando.—Calceossapatos,Adrián.Umaexpressãodeembaraçotransfigurouporumsegundoorostodopiloto:olhouconfusamentepara

osargento,masseagachouecalçouossapatosdesolasgrossas,donAdrián:voufazertudooquepuderparacuidarda sua família,pelomenosquenão sepreocupassecom isso.Ele jáestavaempé,eLalita tinha se

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aproximadoeseguravaseubraço.Nãoiachorar,certo?Tinhamenfrentadotantascoisasjuntoseelanuncatinhachorado,agoratambémnãodevia.Iamsoltá-lologo,depoisavidaseriamaissossegadae,enquantoisso,quecuidassebemdosmeninos.Elaassentiacomoumautômato,velhadenovo,orostocrispadoeosolhos arregalados.O sargento eAdriánNieves forampara a varanda,descerama escadinha e, quando jápisavamnosprimeiroscipós,umalaridodemulheratravessouanoitee,nassombras,àdireita,lávinhaofulano!,avozdoLouro.Eosargento,porra,mãosnacabeça:quietoouatirava.AdriánNievesobedeceu.Ianafrente,comosbraçosnoalto,eosargento,oLouroeoPequenooseguiamandandodevagarentreossulcosdahortinha.

—Porquedemoroutanto,meusargento?—disseoLouro.—Queriainterrogá-loumpouco—disseosargento.—Eodeixeidespedir-sedamulher.Quandochegaramaobosquezinhodejuncos,oPesadoeoEscurovieramaoseuencontro.Somaram-

seaogrupo semdizernadaeassim,emsilêncio,percorreramocaminhoatéSantaMaríadeNieva.Nascabanasdesbotadasouviam-secochichosquandopassavam,tambémhaviagenteobservandoentreospaus-mulatosesobasvigas.Masninguémseaproximounemperguntounada.Emfrenteaocais,ouviu-seumacorridadepésnus,muitopróxima,meusargento:eraaLalita,deviaestarbrava,iafazerconfusão.MaselapassouofegandoentreosguardasesóparouporalgunssegundosdiantedopilotoNieves:vocêesqueceuacomida,Adrián.Entregou-lheumatrouxaecorreuparaaestradacomotinhavindo,seuspassosseperderamnaescuridãoe,aolonge,quandojáchegavamaoposto,ouviu-seumlamentodecoruja.

—Não falei, Escuro?—disse oPesado.—Ainda temumbom corpo.Melhor que o de qualqueríndia.

—Ah,Pesado—disseoEscuro.—Vocênãopensaemoutracoisa,éumcasosério.

—Sefizerbomtempo,amanhãàtarde,Fushía—disseAquilino.—Voueuprimeiro,paraaveriguar.Háumlugarporpertoondevocêpodeficarescondidonalancha.

— E se não aceitarem, velho? — disse Fushía. — O que vou fazer, o que vai ser da minha vida,Aquilino?

—Não se adiante aos fatos—disseAquilino.—Se eu encontrar esse sujeitoque conheço, elenosajuda.Alémdisso,comdinheirotudoseajeita.

—Vai lhedarodinheirotodo?—disseFushía.—Nãosejabobo,velho.Guardealgumparavocê,pelomenosquesirvaparaoseunegócio.

—Nãoquerooseudinheiro—disseAquilino.—DepoisvouvoltaraIquitos,pegarmaismercadoriaecomerciarumpoucopelaregião.Quandovendertudo,venhovisitá-loemSanPablo.

—Porquenãofalacomigo?—disseLalita.—Poracasofuieuquecomiasconservas?Deitodasparavocê.Nãofoiminhaculpaseacabaram.

—Nãoquerofalarcomvocê—disseFushía.—Etambémnãoquerocomer.Jogueistoforaechameasachuales.

—Querqueesquentemágua?—disseLalita.—Jáestãofazendoisso,eumandei.Pelomenoscomaumpouquinhodepeixe,Fushía.Ésábado,Jumacaboudetrazer.

—Porquenão fez aminhavontade?—disseFushía.—Euqueria ver Iquitosde longe,nemquefossemsóasluzes.

—Ficoulouco,homem?—disseAquilino.—EaspatrulhasdaNaval?Alémdomais,todomundomeconheceporaqui.Euqueroajudarvocê,masnãopretendoirparaacadeia.

—ComoéSanPablo,velho?—disseFushía.—Estevelámuitasvezes?—Algumas, de passagem—disseAquilino.—Chove pouco e não há pântanos.Mas há dois San

Pablos,eusóestivenacolônia,comerciando.Vocêvaimorardooutrolado.Ficaaunsdoisquilômetros.

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—Hámuitoscristãos?—disseFushía.—Unscem,velho?—Certamentemais—disseAquilino.—Nosdiasdesolelespasseiampeladosnapraia.Osoldeve

fazerbem,outalvezsejapara impressionaropessoaldas lanchasquepassam.Egritampedindocomidaecigarros.Sevocênãoder,xingam,jogampedras.

—Você fala deles comnojo—disse Fushía.—Tenho certeza que vaimedeixar emSanPablo enuncamaisoverei,velho.

—Euprometi—disseAquilino.—Poracasonãocumpritodasaspromessasquefiz?—Estavaiseraprimeiravezquenãocumprirá—disseFushía.—Etambémaúltima,velho.—Querajuda?—disseLalita.—Deixeeutirarassuasbotas.—Foradaqui—disseFushía.—Sóvoltequandoeuchamar.Asachualesentraram,silenciosas,trazendoduasgrandesvasilhasfumegantes.Deixaram-nasaoladoda

rede,semolharparaFushía,esaíram.—Eusousuamulher—disseLalita.—Nãotenhavergonha.Porquevousair?Fushíainclinouacabeça,olhou-aeseusolhoseramduasfendinhasdefogo:loretanaputa.Lalitadeu

meia-volta, saiuda cabana, já havia escurecido.A atmosfera espessa parecia prestes a romper em trovões,chuvaeraios.Naaldeiahuambisaasfogueirascrepitavam,sualuzbrilhavaentreaspaineiraserevelavaumaagitação crescente, movimentos, gritos, vozes roucas. Pantacha, sentado no parapeito da sua cabana,balançavaaspernasnoar.

— O que há com eles? — disse Lalita. — Para que tantas fogueiras? Por que estão fazendo tantobarulho?

—Os caçadores voltaram, patroa—disse Pantacha.—Não viu asmulheres? Passaram o dia todofazendomasato,vãofestejar.Queremqueopatrãovátambém,porqueeleestátãofurioso,patroa?

—Porque donAquilino ainda não chegou—disse Lalita.—As conservas terminaram e a bebidatambémestáacabando.

—Fazunsdoismesesqueovelhonãoaparece—dissePantacha.—Destavezachoqueelenãovemmais,patroa.

—Paravocê,agoratantofaz,certo?—disseLalita.—Játemmulherenãoseimportacommaisnada.Pantachasoltouumagargalhadaenaportadacabanaapareceua shapra,cheiadeadornos:diadema,

pulseiras,tornozeleiras,tatuagensnospômulosenosseios.SorriuparaLalitaesentou-senoparapeito,aoseulado.

—Aprendeucristãomelhorqueeu—dissePantacha.—Elagostamuitodasenhora,patroa.Agoraestá assustadaporque voltaramoshuambisas que foramcaçar.Nãoperdeomedodelespormais que eutente.

Ashapraapontouparaasmoitasqueocultavamobarranco:opilotoNieves.Vinhacomochapéudepalhanamão,semcamisa,ascalçasarregaçadasatéosjoelhos.

—Ninguémviuvocêodiatodo—dissePantacha.—Estavapescando?— Sim, desci até o Santiago— disseNieves.—Mas não dei sorte. Vai haver temporal, os peixes

fogemdaquiouvãobemparaofundo.—Oshuambisasjávoltaram—dissePantacha.—Vãofestejarestanoite.—DevetersidoporissoqueJumfoiembora—disseNieves.—Euovisairdalagoanacanoa.—Vaipassardoisoutrêsdiasfora—dissePantacha.—Essepagãotambémnãoperdeomedodos

huambisas.—Não émedo, só não quer que lhe cortem a cabeça— disse o piloto.— Sabemuito bem que

quandoficambêbadosapareceoódiocontraele.—Nãovaicomemorarcomospagãos?—disseLalita.

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—Estoumuitocansadodaviagem—disseNieves.—Voudormir.—Éproibido,masàsvezeselessaem—disseAquilino.—Quandoqueremconseguiralgumacoisa.

Preparamumascanoas,entramnaáguaeficamparadosnafrentedacolônia.Façamoquenósqueremossenãodesembarcamos,dizem.

—Quemmoranacolônia,velho?—disseFushía.—Hápoliciais?—Não, não vi— disse Aquilino.—Lámoram as famílias. Asmulheres, os filhos. Fizeram umas

hortinhas.—Easfamíliastêmnojodeles?—disseFushía.—Apesardeseremparentes,Aquilino?—Hácasosemqueoparentesconãoconta—disseAquilino.—Muitosnãoseacostumam,devemter

medodesecontagiar.—Masentãoninguémvaivisitá-los—disseFushía.—Entãoasvisitasdevemserproibidas.—Não, não, pelo contrário, hámuitas visitas—disse Aquilino.—Antes de entrar você tem que

passarporumalanchaonderecebesabãoparatomarbanho,etemquetirararoupaevestirumavental.—Porquevocêquermefazeracreditarquevemmevisitar,velho?—disseFushía.—Doriodáparaverascasas—disseAquilino.—Casasboas,algumascomoasdeIquitos,detijolo.

Lávocêvaiestarmelhorquenailha,homem.Vaiteramigoseviversossegado.—Deixeeuficarnumaprainha,velho—disseFushía.—Venhametrazercomidadevezemquando.

Vivereiescondido,ninguémvaimever.NãomeleveparaSanPablo,Aquilino.—Vocêmalpodeandar,Fushía—disseAquilino.—Nãopercebe,homem?—Ecomovocêdeixouqueofeiticeirodoshuambisascurasseassuasfebresseaindatemtantomedo

deles?—disseLalita.Ashaprasorriu,semresponder.—Euotrouxecontraavontadedela,patroa—dissePantacha.—Elecantou,dançou,cuspiufumo

noseunarizeelanãoabriaosolhos.Tremiamaisdemedoquedefebre.Achoquesecuroudesusto.Retumbouumtrovão,começouachovereLalitaseprotegeudebaixodoteto.Pantachacontinuouno

parapeito,molhandoaspernas.Minutosdepoisachuvaparoueaclareiraficoucheiadevapor.Nacabanado piloto não havia mais luz, patroa, já devia estar dormindo, e aquilo tinha sido só um anúncio, oaguaceirodeverdadecairiaemplenafestadoshuambisas.OAquilinodeveterseassustadocomostrovões,eLalitapulouda escadinha, ia vê-lo, atravessoua clareira e entrouna cabana.Fushía estava comaspernasmergulhadasnasvasilhaseapeledassuascoxasera,comoaargiladorecipiente,rosadaeescamosa.Mexianomosquiteirosemtirarosolhosdela,Fushía,porquetinhavergonha?,earrancou-oesecobriu,eagoraresmungava,qualoproblemadequeelaovisse?,edobradoemdoistentavaalcançarabota,Fushía,elanãoseimportava,eafinalapanhou-ae jogou-a,semmirar:passoupertodeLalita,bateunocatreeomeninonãochorou.Lalitatornouasairdacabana.Agoracaíaumachuvafina.

—Eosquemorrem,velho?—disseFushía.—Enterramlámesmo?—Lámesmo,semdúvida—disseAquilino.—NãovãojogaroscorposnoAmazonas,nãoseriacoisa

decristãos.—Você vai ficar sempre zanzandopelos riosdeum ladoparaoutro,Aquilino?—disseFushía.—

Nuncapensouqueumdiapodemorrernalancha?—Queriamorrernaminhaaldeia—disseAquilino.—NãotenhomaisninguémemMoyobamba,

nemfamílianemamigos.Masqueriaquemeenterrassemnocemitériodelá,nãoseiporquê.—EutambémgostariadevoltarparaCampoGrande—disseFushía.—Descobriroqueaconteceu

comosmeusparentes,meusamigosdajuventude.Alguémaindadevelembrardemim.—Àsvezesmearrependodenãotertidoumsócio—disseAquilino.—Muitagenteseofereceupara

trabalharcomigo,investirumcapitalzinhonumalanchanova.Todomundotematentaçãodepassaravidaviajando.

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—Eporquenãoaceitou?—disseFushía.—Agoraqueestávelho,teriacompanhia.—Conheço os cristãos—disseAquilino.—Eumedaria bem como sócio enquanto estivesse lhe

ensinandoonegócioe apresentandoaclientela.Entãoooutropensaria,paraquecontinuardividindooquedátãopoucodinheiro.Ecomosouvelho,seriaeuosacrificado.

—Foipenanãotermoscontinuadojuntos,Aquilino—disseFushía.—Penseinissoaviageminteira.—Nãoeranegócioparavocê—disseAquilino.—Vocêeramuitoambicioso,nãosecontentavacom

asmigalhasqueseganhamcomisto.—Evejasóparaquemeserviuaambição—disseFushía.—Paraterminarmilvezespiorquevocê,

quenuncateveambições.—Deusnãooajudou,Fushía—disseAquilino.—Tudooqueacontecedependedisso.— E por que não me ajudou e sim a outros? — disse Fushía. — Por que me arruinou e ajudou

Reátegui,porexemplo?—Perguntequandomorrer—disseAquilino.—Comoquerqueeusaiba,Fushía.—Vamosumpouquinhoatélá,antesquecaiaoaguaceiro,patrão—dissePantacha.— Bem, mas só um pouco — disse Fushía. — Para que esses cachorros não fiquem melindrados.

Nievesnãovem?—Passou o dia pescando no Santiago—disse Pantacha.— Já foi dormir, patrão. Faz tempo que

apagouolampião.Afastaram-se das cabanas na direção dos resplendores vermelhos da aldeia huambisa e Lalita ficou

esperando, sentada junto às estacas da cabana que pingavam.O piloto apareceu logo depois, de calça ecamisa:tudopronto.MasLalitanãoqueriamais,amanhã,agoraiacairumtemporal.

—Amanhãnão,agoramesmo—disseAdriánNieves.—OpatrãoePantachavãoficarfarreandoeoshuambisasjáestãoaltos.Jumestánobambuzalànossaespera,vainoslevaratéoSantiago.

—NãovoudeixaroAquilinoaqui—disseLalita.—Nãopossoabandonarmeufilho.—Ninguémdissequeelevaificar—disseNieves.—Eutambémquerolevá-lo.Entrounacabana, saiucomumvolumenosbraçose, semdizernadaaLalita,começouacaminhar

rumoaotanquedastartarugas.Elaseguiuatrás,choramingando,masdepoisseacalmou,enobarrancoseagarrouaobraçodopiloto.Nievesesperouqueelasubissenacanoa,deu-lheomeninoe,poucodepois,aembarcaçãorasgavasuavementeasuperfícieescuradalagoa.Atrásdapaliçadasombriadaspaineiras,via-sealuztênuedasfogueiraseouviam-secantos.

—Paraondeestamosindo?—disseLalita.—Vocênãomediznada,faztudosozinho.Nãoqueromaisircomvocê,querovoltar.

—Cale-se—disseopiloto.—Nãodiganadaatésairmosdalagoa.—Jáestáamanhecendo—disseAquilino.—Nãopregamososolhos,Fushía.—Éaúltimanoitequeestamosjuntos—disseFushía.—Sintoumfogoaquidentro,Aquilino.—Eutambémsintotristeza—disseAquilino.—Masnãopodemosficarmaistempoaqui,temosque

prosseguir.Nãoestácomfome?—Umaprainha,velho—disseFushía.—Pelanossaamizade,Aquilino.NãoemSanPablo,deixe-me

ondefor.Nãoqueromorrerlá,velho.—Maiscoragem,Fushía—disseAquilino.—Olhe,estivecalculando.Fazexatamentetrintadiasque

nóssaímosdailha.

As coisas são como são, a realidade eosdesejos se confundem, senãoporque teria vindoaquelamanhã.Reconheciaasuavoz,oseucheiro?Falecomelaevejacomosedesenhaemseurostoumaexpressãorisonhaeansiosa,segureasuamãoporunssegundosedescubradebaixodasuapeleumdiscretotemor,odelicado

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alarmedoseusangue,vejacomoseuslábiossefranzem,comoseagitamsuaspálpebras.Queriasaber?Porqueapertaassimmeubraço,porquebrincacommeucabelo,porquesuamãonaminhacinturae,quandofala,seurostotãopertodomeu.Explique-lhe:paraquenãomeconfundacomosoutros,porquequeroquemereconheça,Toñita,eesseventinhoeessesruídosdaminhabocasãoascoisasqueestoulhedizendo.Massejaprudente,alerta,cuidadocomosoutroseagora,nãoháninguém,pegueasuamão,solte-adeumavez,vocêseassustouToñita,porqueestátremendo?,peçadesculpas.Eaí,denovo,osolquedourasuaspestanaseela,certamentepensando,hesitando,imaginando,vocênãohánadadeerradoToñita,nãotenhamedodemim,eelaesforçando-se,obscuramente, inventando,porquê,como,eentãoosoutros, Jacinto limpaasmesas,Chápirofaladoalgodão,dosgalosedasmestiçasquederruba,umasmulheresoferecemmingaueelatrabalhosa,angustiosamenteescavandonastrevasmudas,porquê,como.Vocêestoulouco,éimpossível,euafaçosofrer,tenhavergonha,montanocavalo,outravezoareal,osalão,atorre.Fechaascortinas,queaMariposasuba,quetirearoupasemabriraboca,venha,nãosemexa,éumamenina,beije-a,vocêgostadela,suasmãossãoflores,elaquecoisas lindas,patrão,gostatantodemimassim?Quesevista,quevolteparao salão,porque falou,Mariposa, ela o senhor está apaixonado equerque eu a substitua, você foradaqui, vá embora, nenhuma moradora nunca mais entra na torre. E de novo a solidão, a harpa, aaguardente,embriague-se,deitenacamaevasculhevocêtambém,escaveaescuridão,elatemodireitodeseramada?,tenhoodireitodeamá-la?,eumeimportariasefossepecado?Anoiteélenta,desvelada,ocasemsuapresençaquemata asdúvidas.Lá embaixo todos riem,brindamegracejam, entreos violõesbuliçosos seinsinua o assobio fino de uma flauta, excitam-se, dançam. Foi pecado, Anselmo, você vai morrer,arrependa-se:nãofoi,padre,nãomearrependodenadaanãoserdamortedela.Eelefoinamarra,àforça,vocênãofoiàforça,nósnosentendíamossemqueelamevisse,nósnosamávamossemquemefalasse,ascoisaseramoqueeram.Deuségrande,Toñita,nãoéverdadequevocêmereconhece?Façaoteste,apertesuamão,conteatéseis,elaaperta?,atédez,estávendoquenãosoltaasuamão?,atéquinzeeentãocontinuanasua,confiadaesuave.E,enquantoisso,nãocaimaisareia,umventofrescosobedorio,venhaatéLaEstrella del Norte, Toñita, vamos tomar alguma coisa e que braço procurava a sua mão?, em quem seapoiavaparaatravessarapraça?,vocêomeuenãoodedonEusebio,emmimenãonoChápiro,entãoelaquervocê?Senteoquesentia:acarneadolescenteebronzeada,apenugemlisadoseubraçoe,debaixodamesa,ojoelhoaoladodoseujoelho,gostosoosucodelúcuma,Toñita?,eaindaojoelho,eentãodisfarçaeaproveita,entãoosnegóciosvãobemdonEusebio,entãoa lojaqueabriuemSullanaéamaispróspera,então Arrese está morrendo doutor Zevallos, que desgraça para Piura, era o homem mais lido, e ali,venturosamente,ocalorzinhoentreasveiaseosmúsculos,umachaminhanocoração,outranastêmporas,duasminúsculascraterassupurandosobospulsos.Agoranãoésóojoelho,opétambém,eledeveparecerbreveeindefesoaoladodabotagrossa,eotornozelo,eacoxaesbeltaparalelaàsua,vocêDeuségrandemastalvezelanemestejanotando,seráporacaso?Fazoutroteste,empurra,ela seafasta?, ficacoladaemvocê?,ela tambémempurra?,vocênãoestábrincando,garotinha?,oque sentepormim?Ali,denovo,oambicioso desejo: ficar sozinhos algum dia, não aqui, na torre, não de dia, de noite, não vestidos, nus,Toñita,nãoseafaste,continuemetocando.Eali,asufocantemanhãdeverão,osengraxates,osmendigos,as vendedoras, as pessoas que saem damissa, La Estrella delNorte com seus homens e seus diálogos, oalgodão,ascheias,apachamancadedomingoe,derepente,senteamãodelaqueprocura,queencontraeapertaa sua,atenção,cuidado,nãoolheparaela,nãosemexa, sorria,oalgodão,asapostas,ascaçadas,acarne dura dos veados e as pragas traiçoeiras e, enquanto isso, ouça a mão dela na sua, a misteriosamensagem,decifreessavozdepressões secretase levesbeliscões, eo tempotodoToñita,Toñita,Toñita.Agorachegadedúvidas,amanhã,aindamaiscedo,esconda-senacatedraleobserve,ouçaominúsculocantoda areia nas copas dos tamarineiros, espere tenso, de olhos fixos na esquina semioculta pelo coreto e asárvores.Eali,denovo,o tempodetidosobaabóbadaeosarcos,os tijolos severos,osbancosdesertos,a

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vontadeimplacáveleumafriasecreçãonascostas,obruscovazionoestômago:oburro,agalinaça,ascestas,umasilhuetaqueavançaflutuando.Quenãovenhaninguém,queválogoembora,queopadrenãoapareçaeagora,rápido,correndo,aluzexterna,oátrio,osdegrauslargos,apista,oquadriláteroemsombras.Abreosbraços,acolhendo-a,vêcomoacabeçasereclinasobreseuombro,acaricia-lheocabelo,tiraaareialouraeaomesmotempo,cuidado,oLaEstrelladelNorteestáprestesaabrireJacintovaiaparecerbocejando,osvizinhos e forasteiros estão por chegar, depressa. Nada de enganos, beije-a e, enquanto sente seu rostoaquecer,nãotenhamedo,vocêébonita,gostodevocê,nãochore,elasentesuabocanabochechaeveja,acrispaçãoestápassando, suaposturaédóciloutravez,ea superfíciequecedesobos seus lábiosécomoachuva fragrante no verão caloroso, como o arco-íris que ilumina o céu. E então roube-a: não podemoscontinuarassim,venhacomigo,Toñita,vocêirácuidardela,mimá-la,elavaiserfelizcomvocê,maisumtempinho e os dois semudam para longe de Piura, viver à luz do dia. Corre com ela, os beirais aindapingamareia,aspessoasestãodormindoouseespreguiçandonascamas,masolhe,observeemvolta,dêamãoaela,ajude-aasubirnocavalo.Nãoadeixenervosa,falebaixo:segureaminhacintura,forte,sóuminstantinho. E de novo o Sol se instala sobre a cidade, a temperaturamorna, as ruas desertas, a furiosaurgênciae,derepente,vejacomoseagarra,apertasuacamisa,comoocorpodelaseadereaoseu,olheessalabaredanoseurosto:vocêentende?,rápido,quenãonosvejam?,vamosembora?,queroircomvocê?,vocêToñita,Toñita,vocêpercebeaondevamos,paraquevamos,oquesomos?AtravesseaPonteVelhaenãoentreemCastilla, amadrugadora, atravesse rapidamenteas alfarrobeirasdamargemeagora sim,oareal,esporeiacomódio,quepule,quegalope,queseuscascosmaltratemolombolisododesertoelevantemumapoeiraprotetora.Então,os relinchos,a fadigadoanimal,osbraçosdelaemsuacinturaepor instantesosabordo cabeloque o ar incrusta em suaboca.Esporeia sem cessar, estão chegando, usa o chicote e, denovo, aspira o cheiro dessamanhã, a poeira e a louca excitação dessamanhã. Entre sem fazer barulho,carregue-a,subaaestreitaescadadatorre,sintaosbraçosdelaemseupescoçocomoumcolarvivoeentãoosroncos,aafliçãoqueabreseuslábios,obrilhodosdentes,vocêninguémnosviu,éopessoaldormindo,acalme-se Toñita. Diga-lhe os seus nomes: a Pirilampo, a Sapinha, a Flor, a Mariposa. E mais: estãocansadas,beberamefizeramamorenãoestãonosescutandonemvãodizernada,vocêvaiexplicaraelas,entendemascoisas.Mascontinue,comoaschamam,moradoras.Contesobreatorreeoespetáculo,pinteorio,osalgodoais,operfilpardodasmontanhasdistanteseoresplendordostetosdePiuraaomeio-dia,ascasasbrancasdeCastilla,aimensidãodoarealedocéu.Digaeuvereiporvocê,vai lheemprestarosseusolhos,tudooquetenhoéseu,Toñita.Queimaginequandooriosobe:asserpentesfininhasquechegamrastejandopeloleitoumdiadedezembro,ecomosejuntamevãocrescendo,esuacor,vocêverdemarrom,e vai engordando e aumentando.Que ouça o repicar dos sinos e imagine o povo que vai recebê-lo, osgarotossoltandofogos,asmulheresespalhandopapelpicadoeserpentinas,eassaiasvermelhasdobispoquebenze as águas transumantes.Conte como se ajoelhamnoMalecón e descreva a feira— as barracas, ostoldos, os sorvetes, os pregões—, nomeie os felizes ricaços que se expõem com seus cavalos à força dacorrentezaedãotirosparaoaltoetambémosgalinaçosemangachesqueentramnaáguadecuecas,eoscorajososquepulamdaPonteVelha.Edigaaelacomoorioagoraério,ecomopassadiaenoiterumoaCatacaos,espessoesujo.EtambémqueméAngélicaMercedes,quevaificaramigadela,eospratosqueelafaz, você os quemais gostar,Toñita,picantes,chupe, secos epiqueos, e até clarito,mas não quero que seembriague.Enãoseesqueçadaharpa,vocêserenatatodanoitesóparaela.Faleemseuouvido,sente-anosjoelhos, não a force, tenha paciência, acaricie-a de leve, ou melhor, respire-a sem tocá-la, sem pressa,suavemente espere que ela busque os seus lábios. E fale sempre, no ouvido, com ternura, o peso do seucorpoéleveeemanadasuapeleumperfumemorno,toquenapenugemdosseusbraçoscomofazcomascordasdaharpa.Fale,murmure,descalce-acomdelicadeza,beijeosseuspéseaí,denovo,clarosemorosos,seuscalcanhares,acurvadospeitosdopé,ospequenosdedosnasuaboca,seurisofresconapenumbra.Ria

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também, estou fazendo cócegas?, beije-a o tempo todo, seus tornozelos tão finos e seus joelhos duros eredondos.Deite-aentãocomcuidado,acomode-a,ebemlentamente,commuitadoçura,abrasuablusaetoquenela,seucorposeenrijece?,solte-a,toquedenovoefale,vocêaama,vaimimá-lacomoumacriança,vai viver para ela, não a aperte, não amorda, abrace-a apenas, guie suamão até a saia, que elamesmadesabotoe.Vocêeuajudo,Toñita,eutiroisso,mocinhaedeite-seaoladodela.Diga-lheoquesente,oquesãoosseusseios,vocêdoiscoelhinhos,beije-os,vocêosquer,vocêosviaemsonhos,entravamdenoitenatorre,brancosepulando,queriapegá-loseeles fugiam,vocêmasestessãomaisdocesemaisvivoseaí,adiscretapenumbra,oadejardascortinas,assilhuetasimprecisasdosobjetos,eapurezaeobrilhoimóveldoseucorpo.Alise-oumaeoutravezedigaseusjoelhossão,eseusquadrissão,eseusombrossão,eoquevocêsente,equeaama,semprequeaama.VocêToñita,mocinha,guria,eaperte-acontraseucorpo,agorasimbusqueassuascoxas,separe-ascomtimidez,sejacuidadoso,sejaobediente,nãoaapresse,beije-aeseafaste,volteabeijá-la,acalme-ae,enquantoisso,sintacomoasuamãoficaúmidaeocorpodelaseabandonaeseabre,amodorrapreguiçosaquea invade,ecomosuarespiraçãoseacelerae seusbraçosochamam,sintacomoatorrecomeçaaandar,aqueimar,adesaparecerentreasdunasquentes.Digavocêéminhamulher,não chore, nãome abrace como se fossemorrer, diga-lhe que está começando a viver e agora divirta-a,brinquecomela,enxuguesuaface,cante,acalente-a,digaquedurma,vocêvouserseutravesseiro,Toñita,velareioseusono.

—FoilevadoparaLimaestamanhã—gemeuBonifacia.—Dizemquepormuitosanos.Edaí?AcadeiadePiuraporacasonãoerapiorqueumchiqueiro?,Josefinodeuunspassospeloquarto,

ospresosviviamnaimundície,encostou-senobatentedajanela,morriamdefome,sobafracaluzdeumposteoColégioSanMiguel,aigrejaeasalfarrobeirasdapraçaMerinoseviamcomonumsonho,osmaisabusados recebiammerda em vez de comida, e Lituma era abusado, e ai deles se não comiam: vai estarmelhoremLima.

—Nãomedeixaramnemmedespedirdele—gemeuBonifacia.—Porquenãomeavisaramqueiamlevá-lo.

Não são tristes as despedidas? Josefino se aproximoudo sofá onde ela estava, os pés deBonifacia sedescalçaramcomraiva, seucorpo sofriabruscas sacudidas.Erapreferível assim,paraLituma também,eleficaria triste, e ela de onde ia tirar o dinheiro, a passagem eramuito cara, tinha consultado naEmpresaRoggero.Josefinopassouobraçopelosseusombros.OqueacoitadinhaiafazeremLima?Queficasseaqui,emPiura,eelecuidariadela,eleafariaesquecerdetudo.

—Émeumarido,tenhoqueir—gemeuBonifacia.—Pelomenosvoupodervisitá-lotododia,levaralgumacoisadecomer.

MasemLimaeradiferente,queboba,ládavamboacomidaetratavambemospresos.JosefinopassouobraçoemvoltadeBonifacia,elaresistiuporalgunsmomentos,cedeueafinaljáestavaanimado,omiliconãoeraumbruto?,eelamentira,nãoamaltratava?,eelanãoéverdade,masdesabousobreeleecomeçouasoluçardenovo. Josefinoacariciou suacabeça.E, afinal,paraque tantoescândalo, erauma sorte,vamosfalarclaro,Selvática:tinhamselivradodele.

—Eusoumá,masvocêépiorqueeu—choramingouBonifacia.—Nósvamosnoscondenar,eporquemechamadeSelváticasesabequeeunãogosto,viu,viucomovocêémau?

Josefinoafastou-acomsuavidade,levantou-seeaquilojáerademais,elanãoteriamorridodefomesemele?,ouviveriacomoumamendiga?Vasculhouosbolsosencostadona janela,comonumsonho,eaindaporcimavinhachorarnasuafrenteporcausadomilico,puxouumcigarroeacendeu-o:umhomemtinhaoseuorgulho,quediabo.

—Estámetratandodevocê—dissede repente,virando-separaBonifacia.—Antes, sónacamae

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depoissempredesenhor.Comovocêéesquisita,Selvática.Voltouparaoseuladoeelafezummovimentoderetirada,masdeixou-seabraçareJosefinoriu.Tinha

vergonha?Coisasqueasfreirinhasdaaldeialhemeteramnacabeça?Porquesóotratavadevocênacama?—Seiqueépecado,emesmoassimcontinuo—soluçouBonifacia.—Vocênãoentende,masDeus

vaimecastigar,vaicastigarnósdois,etudoporsuaculpa.Quehipócritavocêera,nistosimsepareciacomaspiuranas,comtodasasmulheres,quehipócritavocê

era, caboclinha, sabia ou não sabia que ia ser mulher dele na noite em que a trouxe?, e ela não sabia,soluçando,não teria vindo,não tinhaparaonde ir. Josefinocuspiuo cigarronochãoeBonifacia estavaaconchegadacontraeleeJosefinopodiafalarnoseuouvido.Mastinhagostado,quefossesincera,Selvática,queconfessasse,sóumavez,baixinho,sóparaele,menina,gostouounãogostou?,caboclinha.

—Gosteiporquesoumá—sussurrouela.—Nãomeperguntemais,épecado,nãofaledisso.Melhorquecomomilico?,quejurasse,ninguémestavaouvindo,elegostavadela,nãoéverdadeque

gozavamais?,beijou-anopescoço,mordeu-lheaorelha,sobasaiatudoeraestreito,tensoemorno,nãoéverdadequeomiliconuncafezvocêgritar?,eelacomavozsumidafezsim,aprimeira,masdedor,nãoéverdadequeelesimafaziagritarquandobementendia?,esódeprazer,nãoémesmo?,eelaquesecalasse,Josefino,Deusestavaouvindo,eeleeua tocoevocêviraoutranamesmahora,gostodevocêporqueéfogosa.Soltou-a,elaparouderonronarepoucodepoisestavachorandodenovo.

—Elesóamaltratava,Selvática—disseJosefino—;vocêestavaperdendotempocomomilico.Porquetemtantapenadele?

—Porqueémeumarido—disseBonifacia.—TenhoqueirparaLima.Josefinoseinclinou,apanhouapontadocigarronochão,acendeu-aeunsgarotoscorriamnapraça

Merino, alguémtinha subidonaestátuaeas janelinhasdacasadopadreGarcía estavam iluminadas,nãodeviasertãotarde,sabiaqueontemeleempenhouorelógio?,tinhaesquecidodelhecontar,Selvática,eémesmo,émesmo,quecabeça:estavatudocertocomadonaSantos,amanhãcedo.

—Agoraeunãoqueromais—disseBonifacia.—Nãoquero,nãovou.JosefinojogouapontanadireçãodapraçaMerino,masnãochegousequeràavenidaSánchezCerro,e

saiudajanelaeelaestavarígida,eeleoquefoi,queriamatá-locomoolhar?, jásabiaqueelatinhaolhosbonitos,paraqueosabria tanto,quehistóriaeraessa.Bonifacianãoestavamaischorandoe tinhaumaragressivo,umavozdecidida:nãoqueria,erafilhodoseumarido.Ecomqueiadardecomeraofilhodoseumarido?Eoqueela iacomeratéqueo filhodo seumaridonascesse?EoqueJosefino ia fazercomumenteado?Opiordopioreraqueaspessoasnuncapensavamantesnascoisas,paraqueserviaacacholaqueDeuspôsemcimadopescoço,paraquemerdaservia.

—Possotrabalhardefaxineira—disseBonifacia.—Edepoisvouencontrá-loemLima.Faxineira,barriguda?Estavasonhando,ninguémlhedariaempregoe,seporacasoconseguissealgum,

seriapara esfregar assoalhos, e comtantoesforçoo filhodo seumarido ia sair antesdo tempoounascermorto, ou então disforme, que perguntasse a ummédico, e ela quemorra então,mas não iriamatá-lo:estavadecidida.

ComeçouachoramingaroutravezeJosefinosentou-seaoseuladoepassou-lheobraçopelosombros.Eramal-agradecida, ingratacomele.Tratavabemdela, simounão?Porquea trouxeraparaa suacasa?,porquegostavadela,porquelhedavadecomer?,porquegostavadela,eemretribuição,eaindaporcima,eapesardisso,umenteadoparaquetodosrissemdele?Merda,umhomemnãoeraumpalhaço.E,depois,quantoaSantosiacobrar?Umbocado,ummontededinheiro,eemvezdeagradecerelachorava.Porquefaziaissocomele,Selvática?Pareciaquenãogostavadele,eelegostavatantodela,caboclinha,ebeliscavaseupescoçoe sopravaatrásdaorelhaeelagemia,a suaaldeia,asmadrecitas,queriavoltar,mesmosendouma terra de índios,mesmo não tendo edifícios nem automóveis, Josefino, Josefino, queria voltar para

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SantaMaríadeNieva.—Éprecisomaisdinheiroparavoltaraoseupovoadodoqueparafazerumacasa,caboclinha—disse

Josefino.—Vocêfalaefalasemsaberoqueestádizendo.Nãotemqueserassim,meuamor.Tirouolençodobolsoelimpouseusolhosebeijou-oseinclinoumeiocorpodelaparaabraçá-lacom

paixão,elesepreocupavacomela,porquê?,faziatudopensandonoseubem,porquê?,maldição,porquê?:porquegostavadela.Bonifaciasuspirava,comolençotapandoaboca:comopodiaserparaoseubemmatarofilhodoseumarido?

— Isso não ématar, boba, por acaso já nasceu?— disse Josefino.—E por que fala tanto do seumarido,elenãoémaisseumarido.

Erasim,tinhamcasadonaigrejaeparaDeusissoeraaúnicacoisaquevalia,eJosefinoquemania,paraquemeterDeusemtudo,Selvática?,eelaestávendo,estávendo?,eelecaboclinha,boba,quelhedesseumbeijo,eelanão,eeleoquefariasenãogostassetantodela,balançando-a,buscandoasaxilas,nãoadeixandolevantar-se,boba,teimosinha,suaSelvatiquinha,estávendo,estávendo?,eentreumsoluçoeoutroriae,poralguns instantes, suaboca ficava imóveleeleconseguiabeijá-la.Gostavadele?,umavez, sóumavez,boba,eelanãogosto,eelemaseumuito,Selvática,sóquevocêficatodaabusadaporcausadisso,eelavocêfalamasnãogostademim,eelequetocassenoseucoraçãoevissecomobatiaporela,esegostassedelefariatodasassuasvontades,edebaixodasaiatudoeraestreito,morno,escorregadio,esobablusa,etambémnascostas,morno,sedentoeespesso,eavozdeJosefinocomeçavaavacilarea ficar, talcomoadela,muitobaixa,nãoiriaàcasadaSantospormaisqueelequisesse,econtida,nemqueamatasseelairia,epreguiçosa,masgostavadelesim,edesigualecálida.

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III

—Vocêestácomumacara—disseosargento—,atéparecequevaiemboradaquiàforça.Porquenãoestácontente?

—Estousim—disseBonifacia.—Équemedáumpoucodepenaporcausadasmadrecitas.—Nãoponhaessamalatãonocanto,Pintado—disseosargento.—Eascaixasestãomalamarradas,

naprimeirasacudidavãocairnaágua.—Lembre-sedenósquandoestivernoparaíso,meusargento—disseoPequeno.—Escreva,conte

comoéavidanacidade.Seéqueaindaexistemcidades.—PiuraéacidademaisalegredoPeru,senhora—disseotenente.—Vaigostarmuitodelá.—Comcerteza,senhor—disseBonifacia.—Seétãoalegre,vougostarmesmo.OpilotoPintadojátinhaarrumadotodaabagagemnalanchaeagoraexaminavaomotor,ajoelhado

entreduaslatasdegasolina.SopravaumabrisasuaveeaságuasdoNieva,cordeuva,avançavamrumoaoMarañón arrepiadas com ondinhas, quedas e breves redemoinhos. O sargento ia e vinha pela lancha,diligente,risonho,verificandoosvolumes,asamarraseBonifaciapareciainteressadanessaazáfamamas,àsvezes,seusolhosseafastavamdaembarcaçãoeespiavamascolinas:sobocéulimpo,amissãojáresplandeciaentre as árvores, seus zincos e suas paredes reverberavam mansamente na luz clara da madrugada. Ocaminhopedregoso,emcontrapartida,estavaocultoporfiaposdebrumaqueflutuavamquasenomesmoníveldosolo,ilesos:aflorestadesviavaabrisaqueosteriaespalhado.

—NãoéverdadequeestamosdoidosparachegaraPiura,menina?—disseosargento.—É—disseBonifacia.—Queremoschegaroquantoantes.—Deveserlongíssimo—disseLalita.—Eavida,muitodiferentedanossa.—DizemqueécemvezesmaiorqueSantaMaríadeNieva—disseBonifacia—,comcasascomo

aquelasqueaparecemnasrevistasdasmadres.Hápoucasárvores,dizem,eareia,muitaareia.—Épena,masficocontenteporvocê—disseLalita.—Asmadresjásabem?— Elas me deram muitos conselhos — disse Bonifacia. — A madre Angélica chorou. Como está

velhinha,jánemouvedireitooquelhefalametivequegritar.Elaquasenãoandamais,Lalita,seusolhosparecem estar dançando o tempo todo. Fomos à capela e rezamos juntas.Nuncamais vou vê-la, tenhocerteza.

—Éumavelhamá,perversa—disseLalita.—Nãovarreuisto,nãolavouaspanelas,etodamanhãmeassustacomoinferno,jásearrependeudosseuspecados?EtambémfalacoisashorríveisdoAdrián,queéumbandido,queenganavatodomundo.

—Ela temumgêniodifícilporque está velhinha—disseBonifacia.—Deve saberquevaimorrerlogo.Mascomigoéboa.Gostademim,eeutambémgostodela.

—Alfarrobeiras,burrosetonderos—disseotenente.—Evaiconheceromar,senhora,nãoélongedePiura.Muitomelhorquetomarbanhoderio.

—Edepois,dizemqueasmulheresdelásãoasmaisbonitasdoPeru,senhora—disseoPesado.—Ah,Pesado—disseoLouro.—Equediferença fazpara a senhora se asmulheresdePiura são

bonitasounão?—Sódigoparaqueelatomecuidadocomaspiuranas—disseoPesado.—Paranãoacabarficando

semmarido.

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—Elasabequeeusouumhomemsério—disseosargento.—Sóqueroverosmeusamigos,osmeusprimos.Demulher,comaminhajáémaisdoquesuficiente.

—Ah,quecaboclocínico—riuotenente.—Fiquedeolhoaberto,senhora,esetentarescapulir,paunele.

—Seforpossível,embrulheumapiuranaemandeparamim,meusargento—disseoPesado.Bonifacia sorria para uns e para outros mas, ao mesmo tempo, mordia os lábios e, a intervalos

regulares,umaexpressãodiferentesurgiaemseurostoeodeixavaabatido,empanavaseusolhosporalgunssegundoseagitavaabocacomumlevetremor,elogodepoisdesapareciaeseusolhossorriamdenovo.Opovoadojádespertava,viam-secristãosreunidosnalojadeParedes,avelhaempregadadedonFabiovarriaavarandadacasadoGovernoe,debaixodospaus-mulatos,passavamaguarunasjovensevelhosindoparaoriocomvarasearpões.Osolacendiaostetosdejarina.

—Seriabomsairdeumavez,sargento—dissePintado.—Épreferívelpassarpelopongodeumavez,maistardevaihavermaisvento.

—Ouçaprimeiroedepoisdiganão—disseBonifacia.—Pelomenos,deixeeuexplicar.—Émelhornuncafazerplanos—disseLalita.—Depois,quandonãoserealizam,épior.Sópense

noqueestáacontecendonomomento,Bonifacia.—Jáconversamoseeleconcordou—disseBonifacia.—Vaimedarumsolporsemana,eeuposso

fazertrabalhosparafora,esqueceuqueasmadresmeensinaramacosturar?Masseráquenãoroubarão?Vaipassarportantasmãos,talveznemchegueaqui.

—Nãoqueroquememandenada—disseLalita.—Paraqueprecisodedinheiro.—Mas jádescobri amaneira—disseBonifacia, tocandona cabeça.—Eumandopara asmadres,

quemseatreveriaaroubardelas?Easmadreslheentregam.—Apesardavontadedeirembora,sempredáumpoucodetristeza—disseosargento.—Emedeu

agorinhamesmo,rapazes,pelaprimeiravez.Agenteseafeiçoaaoslugares,mesmoquenãosejamlágrandecoisa.

Abrisa havia se transformado em vento e as copas das árvoresmais altas inclinavam seus penachos,balançando-os sobreas árvorespequenas.Láemcima,aportada residência seabriu, a silhuetaescuradeumamadresaiuapressadae,enquantoatravessavaopátioemdireçãoàcapela,oventoinflavaseuhábito,encrespando-ocomoumaonda.OsParedes estavamnaportada suacabanae,debruçadosnoparapeito,olhavamparaocais,acenando.

—Éhumano,meusargento—disseoEscuro.—Tantotempoaqui,e,alémdomais,casadocomumamulherdaqui.Énaturalquefiqueumpoucotriste.Asenhoraficaráaindamais.

—Obrigadoportudo,meutenente—disseosargento.—SeeupuderserútilemPiura,jásabe,estouàssuasordensparaqualquercoisa.QuandovaiparaLima?

—Dentrodeummês,maisoumenos—disseotenente.—TenhoqueirantesaIquitos,encerraresteassunto.Esperoquedêtudocertolánasuaterra,caboclo,quemsabeapareçoumdiadesses.

—Guardeoseudinheiroparaquandotiverfilhos—disseLalita.—Adriándizia,vamoscomeçarnooutromês,eemseismeses teremosdinheiroparaummotornovo.Enuncaeconomizamosumcentavo.Maselenãogastavaquasenada,eratudoparaacomidaeosfilhos.

—E então você vai poder ir a Iquitos— disse Bonifacia.—Peça àsmadres que guardem bem odinheiroquevoumandar,atéjuntarosuficienteparaapassagem.Eentãopoderávê-lo.

—Paredesmedisse quenuncamais vou vê-lo—disseLalita.—E tambémque voumorrer aqui,comoempregadadasmadres.Nãomemandenada.Vailhefazerfaltalá,nacidadesegastamuitodinheiro.

Dava licença, caboclo? O sargento assentiu, e o tenente abraçou Bonifacia que piscava muito ebalançava a cabeça como que aturdida, mas seus lábios e seus olhos, embora úmidos, ainda sorriam,

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tenazmente,senhora:agoraeraavezdeles.PrimeirooPesadoabraçou-aeoEscuro,puxa,comodemoravaeele,meusargento,nãoleveamal,eraabraçodeamigo,oLouro,oPequeno.OpilotoPintadojátinhasoltadoasamarraseseguravaalanchajuntoaocais,curvadosobreavara.OsargentoeBonifaciasubiramabordoeseinstalaramentreosvolumes,Pintadolevantouavaraeacorrentezaseapoderoudaembarcação,começouabalançá-la,alevá-lasempressarumoaoMarañón.

—Vocêtemqueirvê-lo—disseBonifacia.—Voumandarodinheiromesmoquevocênãoqueira.Equandoelesair,vocêsdoisvãoparaPiura,euosajudareicomovocêsmeajudaram.LáninguémconhecedonAdriáneelevaipodertrabalharnoquequiser.

—SuacaravaiseroutraquandovirPiura,menina—disseosargento.Bonifaciaestavacomumadasmãospara forada lancha, seusdedostocavamnaáguaturvaeabriam

canaisretos,efêmeros,quedesapareciamnaespumosaconfusãoqueahéliceiacriando.Àsvezessedivisava,soba superfícieopacadorio,umpeixebreveeveloz.Acimadeles,océuestava limpomas,ao longe,nadireçãodacordilheira,flutuavamnuvensgordasqueosolfendiacomoumalâmina.

—Vocêestátristesóporcausadasmadres?—disseosargento.—DaLalitatambém—disseBonifacia.—EpensootempotodonamadreAngélica.Estanoiteela

mesegurou,nãoqueriamesoltar,aspalavrasnãomesaíamdetantatristeza.—Asfreirinhasseportarambem—disseosargento.—Quantospresenteslhederam.—Voltaremosalgumavez?—disseBonifacia.—Sóumavez,apasseio?—Quemsabe—disseosargento.—Éumpoucolongeparavirpassearaqui.—Nãochore—disseBonifacia.—Voulheescrevercontandotudooquefizer.—DesdequesaídeIquitosnuncativeamigas—disseLalita.—Desdegarota.Lánailha,asachuales,

as huambisas quase não falavam cristão e eu sóme entendia com elas em certas coisas.Você é aminhamelhoramiga.

—Evocêtambéméaminha—disseBonifacia.—Maisqueamiga,Lalita.VocêeamadreAngélicasãooquemaisamoaqui.Vamos,nãochore.

—Porquevocênãovoltava,Aquilino—disseFushía.—Porquenãovoltava,velho.— Não pude vir antes, homem, acalme-se — disse Aquilino. — O sujeito me bombardeava de

perguntas,ediziaqueasfreirasequeodoutor,eeunãoconseguiaconvencê-lo.Masconsegui,Fushía,jáestáresolvido.

—Freiras?—disseFushía.—Tambémháfreiras?—Sãocomoenfermeiras,cuidamdaspessoas—disseAquilino.—Leve-mepara outro lugar,Aquilino—disseFushía—,nãomedeixe emSanPablo,nãoquero

morrerlá.—Osujeitoficoucomodinheirotodo,masmeprometeuumbocadodecoisas—disseAquilino.—

Vaiconseguirospapéis,ajeitartudoparaninguémpodersaberquemvocêé.—Deuaeletudooquejunteiduranteestesanos?—disseFushía.—Paraquetantosacrifício,tanta

luta?Paraentregartudoaumcaraqualquer?—Tivequeirsubindoaospouquinhos—disseAquilino.—Primeiroquinhentos,eneca,depoismil,

eneca,nemqueriadiscutir,diziaaprisãosaimaiscaro.Tambémprometeuamelhorcomida,osmelhoresremédios.Oqueeupodiafazer,Fushía,piorseelenãoaceitasse.

Estavachovendomuitoeovelho,molhadoatéosossos,maldizendootempo,tiroualanchadocanalcom os remos. Já perto do cais, divisou silhuetas nuas no alto do barranco. Aos gritos, ordenou emhuambisaquedescessemparaajudá-loeassilhuetasdesapareceramatrásdaspaineirasquebalançavamcomoventoeressurgiram,rubras,saltitantes,escorregandonalamadaladeira.Amarraramalanchanumasestacas

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e, chapinhando sob as grossas gotas quemolhavam as costas, levaram donAquilino para terra.O velhocomeçou a tirar a roupa enquanto subia obarranco.Ao chegar ao topo tirou a camisa e, na aldeia, semresponderaosgestosamistososqueosmeninoseasmulheresdascabanaslhefaziam,tirouacalça.Assim,sócomo chapéu de palha e uma cueca curta, atravessou omato até a clareira dos cristãos, e ali uma coisasimiesca e cambaleante se desprendeu de um parapeito, Pantacha, abraçou-o, você está sonhando, ebalbuciouqualquercoisa ininteligívelemseuouvido,engasgadodeervasevocênãoconseguenemfalar,solte-me. Pantacha tinha os olhos atormentados e dos seus lábios manavam fiozinhos de baba. Muitoagitado,faziagestosapontandoparaascabanas.Ovelhoviuashapranavaranda,hostil,imóvel,opescoçoeosbraçosescondidosporfileirasdecolaresepulseiras,acaramuitopintada.

—Fugiram,donAquilino—grunhiufinalmentePantacha,virandoosolhos.—Eopatrãobufando,trancadoláfazmeses,nãoquersair.

—Estánacabana?—disseovelho.—Solte-me,tenhoquefalarcomele.—Quemévocêparamandaremmim—disseFushía.—Voltelá,queocaralhedevolvaodinheiro.

EmeleveparaoSantiago,prefiromorrernomeiodegentequeconheço.—Temosqueesperaratéanoite—disseAquilino.—Quandotodosestiveremdormindoeuolevo

paraalanchaondeasvisitastomambanhoeláosujeitovembuscá-lo.Nãofiqueassim,Fushía,agoratentedormirumpouco.Ouquercomeralgumacoisa?

—Lávãometratarcomovocêestámetratando—disseFushía.—Nãoquernemmeouvir,decidetudo sozinho e eu tenho que obedecer. É a minha vida, Aquilino, não a sua, eu não quero, não meabandonenestelugar.Tenhaumpoucodecompaixão,velho,vamosvoltarparaailha.

—Nemse euquisessepoderia fazeroque estámepedindo—disseAquilino.—Ir atéoSantiagonavegandoenosescondendo,seriammesesdeviagemenãotemosmaiscombustível,nemdinheiroparacomprar.Eutrouxevocêparacáporamizade,paraquemorraentrecristãos,nãocomoumpagão.Ouçaoqueestoudizendo,durmaumpouco.

Seucorpomalavolumavaasmantasqueocobriamatéoqueixo.Omosquiteirosóprotegiameiaredeeemvoltareinavaumagrandedesordem:latasesparramadas,cascas,cabaçascomrestosdemasato,sobrasde comida. Havia uma estranha pestilência, e muitas moscas. O velho tocou no ombro de Fushía, esteroncou e, então, o velho sacudiu-o com as duasmãos. As pálpebras de Fushía se separaram, duas brasassanguinolentaspousaramcansadamenteno rostodeAquilino,e seapagarame seacenderamváriasvezes.Fushíaergueu-seumpouco,sobreoscotovelos.

—Achuvameapanhounomeiodocanal—disseAquilino.—Estouensopado.Falava e escorria a camisa e a calça, torcendo-as com fúria; depois, pendurou a roupa na corda do

mosquiteiro.Láforaaindaestavachovendoforte,umaluzembaçadadesciaatéaspoçasealamacinzentadaclareira,oventoinvestiacontraasárvoresrugindo.Àsvezes,umzigue-zaguemulticoloridoclareavaocéue,segundosdepois,vinhaotrovão.

—Aquela puta foi embora comoNieves—disse Fushía, de olhos fechados.—Osdois cachorrosfugiramjuntos,Aquilino.

—Edaíseforamjuntos?—disseAquilino,enxugandoocorpocomamão.—Ora,antessóquemalacompanhado.

—Aquelaputanãomeimporta—disseFushía.—Massimquetenhafugidocomopiloto.Issoelavaimepagar.

Semabrirosolhos,Fushíavirouorosto,cuspiu,homem,subiuasmantasatéaboca,eramelhorolharantesdecuspir,aquelapassararaspando.

—Háquantosmesesvocênãoaparece?—disseFushía.—Estouesperandoháséculos.—Temmuitacarga?—disseAquilino.—Quantaspelasdeseringa?Quantoscouros?

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— Não demos sorte — disse Fushía. — Só encontramos aldeias vazias. Desta vez não tenhomercadoria.

—Masvocênãopodiaviajar,suaspernasnãoserviammaisparaandarpelomato—disseAquilino.—Morrer entre conhecidos! Pensa que os huambisas iam continuar ao seu lado? A qualquer instante elessumiam.

—Eupodiadarordensdeitadonarede—disseFushía.—JumePantachaoslevariamparaondeeumandasse.

—Nãobanqueobobo—disseAquilino.—ElesodeiamJumesónãoomataramatéagoraporsuacausa.EoPantachavivenasnuvenscomaquelasinfusões,malconseguiafalarquandoodeixamosparatrás.Aquiloacabou,homem,percaasesperanças.

—Vendeubem?—disseFushía.—Quantodinheirovocêtrouxe?—Quinhentossoles—disseAquilino.—Nãofaçaessacara,oqueleveinãovaliamaisqueisso,tive

quebrigarparaarrancarestepreço.Masoquehouve,éaprimeiravezquevocênãotemmercadoria.—Aregiãoestáalarmada—disseFushía.—Essescachorrosandamprecavidoseseescondem.Tenho

queirparamaislonge,entrareiaténascidades,masvouconseguirseringa.—Lalitarouboutodooseudinheiro?—disseAquilino.—Elesnãodeixaramnada?—Quedinheiro?—Fushíaestavacomasmantasjuntoàbocaeseencolheuaindamais.—Deque

dinheirovocêestáfalando?—Odinheiroqueeu fui trazendo,Fushía—disseovelho.—Osganhosdos seus roubos.Seique

vocêestavaguardando.Quantosobrou?Cincomilsoles?Dezmil?—Nemvocê,nemsuamãe,ninguémvaitiraroqueémeu—disseFushía.—Nãomefaçatermaispenadevocêdoquejátenho—disseAquilino.—Enãomeolheassim,os

seusolhosnãomeassustam.Erespondaàminhapergunta.—Tinhatantomedodemim,ouestavacomtantapressaqueesqueceuderoubaromeudinheiro.—

disseFushía.—Lalitasabiaondeeuguardava.—Quemsabe foidepena—disseAquilino.—Podeterpensadoeleestá fodido,vai ficar sozinho,

pelomenosvamoslhedeixarodinheirocomoconsolo.—Seriamelhorqueessescachorrostivessemmeroubado—disseFushía.—Semdinheiro,otalcara

nãomeaceitaria.Evocê,quetembomcoração,nãoiamelargarnomeiodomato.Teriaquemelevardevoltaparaailha,velho.

—Ora, afinal estámais calmo—disseAquilino.—Sabe o que vou fazer? Amassar e ferver umasbananas.Apartirdeamanhãvocêvaicomercomocristão,estaéasuadespedidadacomidapagã.

Ovelhoriu,deitou-senaredevaziaecomeçouabalançar,empurrandocomopé.—Seeufosseseuinimigo,nãoestariaaqui—disse.—Trouxeosquinhentossoles,poderiaterficado

comeles.Eutinhacertezadequedestavezvocênãoiatercarga.Achuvavarriaavaranda,estalandosurdamentenoteto,eoarquentequevinhadeforalevantavao

mosquiteiro,queesvoaçavacomoumacegonhabranca.—Nãoprecisasecobrirtanto—disseAquilino.—Eujáseiqueapeledassuaspernasestácaindo,

Fushía.—Aquelaputalhecontoudospernilongos?—murmurouFushía.—Eucoceieinfeccionou,masjá

está passando. Eles pensam que eu não vou atrás deles só porque estou assim. Vamos ver quem ri porúltimo,Aquilino.

—Nãomudedeassunto—disseAquilino.—Estámesmosarando?—Umpouquinhomais,velho—disseFushía.—Aindatem?—Tomeeste,nãoqueromais—disseAquilino.—Eutambémgosto.Nissosoucomooshuambisas,

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todasasmanhãs,quandoacordo,amassoefervoumasbananas.—Vousentirmaissaudadesda ilhaquedeCampoGrande,maisquedeIquitos—disseFushía.—

Achoqueailhaéaúnicapátriaquetive.Atédoshuambisasvousentirsaudade,Aquilino.—Vocêvaitersaudadedetodomundo,menosdoseufilho—disseAquilino.—Éaúnicapessoade

quemnãofala.NãoseimportaqueLalitaotenhalevado?—Talveznemsejameufilho—disseFushía.—Talvezessacadela...—Cale-se,cale-se,jáconheçovocêháanos,vocênãomeengana—disseAquilino.—Digaaverdade,

estámelhorandoouestápiorqueantes?—Nãomefalenessetom—disseFushía.—Nãoadmito,merda.Suavoz,semconvicção,seextinguiunumaespéciedeuivo.Aquilinolevantou-sedarede,foiatéláe

Fushíacobriuorosto:eraumvolumezinhotímidoeamorfo.—Nãotenhavergonhademim,homem—sussurrouovelho.—Deixe-mever.FushíanãorespondeueAquilinopegouumapontadacobertaelevantou-a.Fushíanãoestavadebotas

eovelho ficouolhando,comamão incrustadanamantacomoumagarra, a testacorroídade rugas,debocaaberta.

—Sintomuito,masestánahora,Fushía—disseAquilino.—Temosqueir.—Umpouquinhomais,velho—gemeuFushía.—Vamos,acendaumcigarro,eufumoedepoisvocê

melevaatéocara.Sódezminutos,Aquilino.—Masfumerápido—disseovelho.—Eledeveestaresperando.—Vejatudodeumavez—gemeuFushía,sobamanta.—Nemeumeacostumo,velho.Olhemais

acima.Aspernassedobrarame,aoesticar-se,asmantascaíramnochão.AgoraAquilinopodiaver,também,as

coxastranslúcidas,asvirilhas,opúbiscalvo,opequenoganchodecarnequetinhasidoseusexoeabarriga:aliapeleestavaintacta.Ovelhoseinclinouprecipitadamente,pegouascobertas,cobriuarede.

—Estávendo?—soluçouFushía.—Estávendoquenemsoumaishomem,Aquilino?— Também prometeu lhe dar cigarros quando você quiser — disse Aquilino. — Já sabe, se tiver

vontadedefumarpeçaaele.—Euqueria émorrer agoramesmo—disseFushía—, sem sentir, de repente.Vocême enrolaria

numamantaemependurarianumaárvore,feitoumhuambisa.Sóqueninguémchorariapormimtodasasmanhãs.Dequeestárindo?

—Devervocêfingindoquefuma,parafazerocigarrodurarmaiseotempopassar—disseAquilino.—Sevamosdequalquerjeito,quediferençafazemdoisminutosamaisouamenos,homem.

—Comovouviajaratélá,Aquilino—disseFushía.—Émuitolonge.—Émelhormorrerláqueaqui—disseovelho.—Láelescuidamdevocê,adoençanãocontinua

subindo.Euconheçoumsujeito,comodinheiroquevocêtemeleoaceitasempedirpapéisnemnada.—Nãovamoschegarlá,velho,vãomepegarnorio.—Prometoquechegaremos—disseAquilino.—Nemquesejaviajandodenoite,peloscanais.Mas

temosquesairhojemesmo,semqueoPantachanosveja,nemospagãos.Ninguémpodesaber,éaúnicaformadevocêestarsegurolá.

—Apolícia,ossoldados,velho—disseFushía.—Esqueceuqueestãotodosatrásdemim?Nãopossosairdaqui.Muitagentequersevingardemim.

—SanPabloéumlugarondenuncavãoprocurarvocê—disseovelho.—Mesmoquesoubessemqueestálá,nãoiriam.Masninguémvaisaber.

—Velho,velho—soluçouFushía.—Vocêébom,eulhepeço,vocêacreditaemDeus?,façaistoporDeus,Aquilino,tentemeentender.

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—Claroqueentendo,Fushía—disseovelholevantando-se.—Masfaztempoqueescureceu,tenhoquelevá-lodeumavez,ocaravaisecansardeesperar.

É noite outra vez, a terra émole, os pés afundam até os tornozelos e são sempre osmesmos lugares: aribeira,ocaminhoqueseestreitaentreaschácaras,umbosquezinhodealfarrobeiras,oareal.Vocêporaqui,Toñita,nuncaporlá,paranãonosveremdeCastilla.Aareiacaisemmisericórdia,cubra-acomamanta,ponhanelaoseuchapéu,queabaixeacabecinhaparaqueorostonãofiqueardendo.Osmesmossons:orunrumdoventonosalgodoais,músicadeviolões,cantos,algazarrae,aoalvorecer,osmugidosprofundosdosbois.Venha,Toñita,vamosnossentaraqui,paradescansarumpoucoedepoiscontinuarpasseando.Asmesmasimagens:umacúpulanegra,estrelasquepiscam,brilhamfixasouseapagam,odesertodeondasedunas azuis e, ao longe, a construção ereta, solitária, suas luzes lívidas, sombras que saem, sombras queentrame,àsvezes,namadrugada,umcavaleiro,unspeões,umrebanhodecabras,alanchadoCarlosRojase,naoutramargemdorio,asportascinzentasdomatadouro.Faledoamanhecer,vocêestámeouvindo,Toñita?, adormeceu?, como se divisam os campanários, os telhados, as varandas, se vai chover e se háneblina.Pergunteseestácomfrio,sequervoltar,agasalheaspernasdelacomoseucasaco,queseencostenoseuombro.Eentão,novamente,oalvoroçointempestivo,oestranhogalopedaquelanoite,osobressaltodoseucorpo.Levante-se,olhe,quemestávindo?,umacorrida?,Chápiro,donEusebio,asgêmeasTemple?Você vamosnos esconder, abaixe-se,não semexa,não se assuste, sãodois cavalos e então,na escuridão,quem,porquê,como.Vocêpassarampertoeemcavalosxucros,queloucos,vãoatéorio,agoravoltam,nãotenhamedo,pequena,eaíseurostogirando,interrogando,suaansiedade,otremordasuaboca,suasunhasparecendopregosesuamãoporquê,como,earespiraçãodelajuntoàsua.Agoraacalme-a,vocêeuexplico, Toñita, já se foram, passaram tão rápido, não vi seus rostos e ela tenaz, sedenta, escrutando onegrume,quem,porquê,como.Vocênão fiqueassim,quempodia ter sido,não importa,quebobinha.Umtruqueparadistraí-la:entreembaixodamanta,esconda-se,deixequeocubra,lávêmeles,sãomuitos,senosviremnosmatam,sentesuaagitação,suafúria,seuterror,quecheguemaisperto,queoabrace,quemergulheemvocê,vocêmais,Toñita,cheguemaispertoeagoradigaeramentira,nãovemninguém,dê-meumbeijo,euenganeivocê,pequena.Ehojenãofale,escute-aaolado,suasilhuetaéumbarco,oarealummar,elanavega,ultrapassatranquilamentedunasearbustos,nãoainterrompa,nãopisenasombraqueprojeta.Acendaumcigarroefume,pensequeéfeliz.Conversecomelaebrinque,vocêestoufumando,vailheensinarquandocrescer,meninasnãofumam,engasgam,ria,queelarisse,peça-lhe,vocênãofiquetãoséria,Toñita,peloamordeDeus.Eaí,denovo,aincerteza,esseácidoquecorróiavida,vocêjásei,estáentediada,asmesmasvozes,oisolamento,masespere,faltapouco,elesirãoparaLima,umacasasóparaosdois,nãovãoprecisarseesconder,comprarátudoparaela,vocêvaiver,Toñita,vocêvaiver.Sintaoutravez essa emoção amarga, vocênunca se zanga,menina, sejadiferente, fique zangada algumavez, quebrecoisas, chore aos gritos e aí, ausente, idêntica, a expressão do seu rosto, a suave batida das têmporas, aspálpebrascaídas,osegredodosseuslábios.Agorasólembrançaseumpoucodemelancolia,vocêéporissoque elas a tratam assim, como se portaram, não disseram nada, trazem doces, vestem você, penteiam,parecemoutras, entre si elasbrigamtanto, fazem tantasmaldades, e comvocê são tãoboas eprestativas.Digaaelaseuatrouxe,euaroubei,gostodela,vaivivercomigo,vocêstêmquemeajudareaí,denovo,aexcitação, as declarações, juramos, prometemos, vamos corresponder à sua confiança, os cochichos, orevoar,olhepara elas, comovidas, curiosas, risonhas, sintao seudesesperopara subir à torre,paravê-la efalarcomela.Enovamenteela,evocêtodasgostamdevocê,porqueé jovem?,porquenãofala?,porquetêmpena?Eaí,aquelanoite:oriofluisombriamenteenacidadenãoháluzes,aluailuminaprecariamente

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odeserto,osroçadossãomanchasimprecisaseelaestádistanteedesamparada.Chame-a,pergunte,Toñitaestámeouvindo?,oquesente?,porquesuamãomepuxaassim,estáassustadacomaareiaquecaitãoforte?Vocêvenha,Toñita,proteja-se,jávaipassar,achaquenosvaicobrir,quevainosenterrarvivos?,porquetreme,oqueestásentindo,faltadear?,quervoltar?,nãorespireassim.Enãoentendia,vocêsoutãoburro,quecoisaterrívelénãoentender,menina,nuncasaberoqueestáacontecendocomvocê,nãoadivinhar.Eaí,denovo,oseucoraçãocomoummanancialeasperguntas,seucrepitar,comovocêpensaquesou,easmoradoras,eascaras,eaterraquepisa,deondesaioqueouve,comoévocê,oquesignificamessasvozes,pensaque todos são comovocê?, queouvimos enão respondemos?, que alguémnosdá comida, ajuda adeitarea subiraescada?Toñita,Toñita,oque sentepormim?,você sabeoqueéoamor?,porquemebeija?Façaumesforçoagora,nãolhecontagieasuaangústia,baixeavozediga-lhesuavementenãotemimportância,meus sentimentos são os seus sentimentos, você quer sofrer quando ela sofre.Que esqueçaessesruídos,vocênuncamais,Toñita,fiqueinervoso,conteaeladacidade,dapobregalinaçaquechoraasmágoas,doburroeascestas,eoqueopessoalfalanoLaEstrelladelNorte,vocêtodosperguntam,Toñita,queremsaberdevocê,estãodeluto,coitadinha,seráqueamataram?,seráqueumforasteiroaroubou?,ascoisasqueinventam,asmentiras,ofalatório.Pergunteseelaselembra,gostariadevoltarparaapraça?,detomarsolpertodocoreto?,temsaudadedagalinaça,queriavê-ladenovo?,vamoslevá-laparaLima?Masela não pode ounão quer ouvir, alguma coisa a isola e a atormenta e aí, sempre, suamão, o tremor, oespanto,vocêoquefoi,estádoendo?,querqueamassageie?Façaoqueelapede,toqueondeindica,nãoapertemuito,nabarriga,acaricieomesmolugar,dezvezes,cemvezes,eenquantoissojásei,estádoendo,acomida,querfazerxixi?,ajude-a,cocozinho?,queseagache,quenãosepreocupe,vocêseráumtoldo,abraamanta,protejaasuacabeçadachuva,queaareiaadeixeempaz.Maséinútileagorasuasbochechasestãoúmidas,aumentouatensãonoseucorpo,acrispaçãonoseurosto,eéterrívelsaberqueestáchorandoenãoadivinhar, Toñita, o que pode fazer, o que ela quer que faça. Leve-a nos braços, corra, beije-a, você jáchegamos, jáestáboa,equenãochore,peloamordeDeusnãochore.ChamaAngélicaMercedes,queacure,elaéumacólica,patrão,vocêumcháquente?,umasventosas?,elanãoénadagrave,nãoseassuste,vocêerva-doce?,camomila?,esuamãoali,apalpando,aquecendo,acariciandoomesmolugar,equeburro,queburro,nãopercebia.Eaíasmoradoras,seuregozijo,seuscorposinvadindoatorre,seuscheiros,cremes,talcoevaselina, seusgritose seuspulos,opatrãonãopercebeu,que inocente,quecriança.Vejacomoseamontoam,vejacomoarodeiam,comolhefazemfestaselhedizemcoisas.Deixequeadistraiamedesçaatéosalão,abraumagarrafa,mergulhenumapoltrona,brindeporvocêmesmo,sintaaturbaçãoconfusa,alvoroçada, fecheosolhos e tenteouviroqueelasdizem:pelomenosdois, aMariposa três, aPirilampoquatro e como é bobo, por que é que imaginava, patrão, que ela não sangrava?, quando é que parou,patrão?,assimpoderemossaberaocerto.Senteoálcool,suaefervescênciamitigadaqueafrouxaaspernaseoremorso, sente comoa inquietaçãodesaparece, e vocênão contei.Pouco importava, tanto fazquenasçaamanhãoudentrodeoitomeses, aToñitavai engordar e com isso ficar contente.Ajoelhe-se ao ladodacama,vocênãoeranada,aindabem,evaimimá-lo, trocaras fraldas,e se formulherzinhaquesepareçacom ela. E que amanhã mesmo irão à loja de don Eusebio comprar o que for preciso e na certa osempregados vão zombar, quem vai parir?, e de quem?, e se for menino que se chame Anselmo. Vá àGallinacera, chame os carpinteiros, que tragam tábuas, pregos emartelos, que construamumquartinho,inventequalquerhistória.Toñita,Toñita, tenhadesejos,vômitos,mauhumor, sejacomoasoutras,podesenti-lo?,jásemexe?Epergunte-sepelaúltimavezsefoimelhoroupior,seavidadeveserassim,eoqueteriaacontecidoseelanão,sevocêeela,sefoiumsonhoouseascoisassãosemprediferentesdossonhos,efaçaumesforçofinalepergunte-sesealgumavezvocêseresignou,eseéporqueelamorreuouporqueévelhoquevocêestátãoconformadocomaideiademorrer.

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—Vaiesperá-lo,Selvática?—disseaChunga.—Talvezeleestejacomoutramulher.—Quemé?—disseoharpista,seusolhosbrancosvoltadosparaaescada.—Sandra?—Não,maestro—disseoBolas.—Éaquelaquecomeçouanteontem.—Eledissequevinhamebuscar,senhora,masparecequeesqueceu—disseaSelvática.—Estouindo.—Primeirotomeocafé,moça—disseoharpista.—Vamos,Chunguita,ofereça.—Sim,claro,tragaumaxícara—disseaChunga.—Háleitequentenaleiteira.Osmúsicostomavamocafédamanhãnumamesapertodobalcão,sobaluzdalâmpadaroxa,aúnica

quepermaneciaacesa.ASelváticasesentouentreoBolaseoJovemAlejandro:quasenãotinhamouvidoasuavoz,quecaladinhaera;lánasuaterra,todasasmulheres?Pelasjanelassedivisavaocasario,àsescuras,e,noalto,trêsestrelasfrágeis,asTrêsMarias?Não,senhora,láelasgostamdefalarefalar,parecempapagaios.Oharpistamordiscavaumafatiadepão,papagaios?,eela sim,umbichinhoquehaviana sua terra,eeleparoudemastigar,como?,moça,elanãotinhanascidoemPiura?Não,senhor,erademuitolonge,daselva.Nãosabiaemquelugarnascera,massempretinhamoradonumpovoadoquesechamavaSantaMaríadeNieva. Pequeno, senhor, sem carros, nem edifícios, nem cinemas como em Piura, sabia? O harpistacontinuoumastigando,amontanha?,papagaios?,comacabeçaerguida,surpresa,ederepentepôsosóculos,rápido,moça:játinhaesquecidoqueexistiaaquilo.ÀbeiradequerioficavaSantaMaríadeNieva?,pertodoIquitos?,longe?,amontanha,quecurioso.IdênticosecontínuosaosaíremdabocadoJovem,osarosdefumaçacresciam,deformavam-se,desvaneciam-sesobreapistadedança.BemqueeugostariadeconheceraAmazônia,ouvir amúsicados índios.Não separecianadacomanossa,nãoéverdade?Nada, senhor,opovodelácantavapouco,eseuscantosnãoeramalegrescomoamarinheiraouavalsa,erammaistristes,emuitoesquisitos.MasoJovemgostavademúsicatriste.Ecomoeramasletrasdascanções?Muitopoéticas?Porqueelaentendiaoidioma,certo?Não,elanãofalavaoidioma,eabaixouavista,dosíndios,gaguejou,sóumaououtrapalavrinha,detantoouvir,sabe?Masquenãoseiludisse,látambémhaviabrancos,muitos,equasenãoseveemíndiosporqueelesficamnomato.

—Ecomofoicairnasmãosdele?—disseaChunga.—Oquevocêviunopobre-diabodoJosefino.—Nãointeressa,Chunga—disseoJovem.—Sãocoisasdoamor,eoamornãotemrazões.Como

tambémnãoaceitaperguntasnemdárespostas,jádiziaumpoeta.—Nãoseassuste—riuaChunga.—Pergunteiporperguntar,debrincadeira.Eunãoligoparaavida

dosoutros,Selvática.—Oquefoi,maestro?Porqueficoutãopensativo?—disseoBolas.—Oleiteestáesfriando.—Oseutambém,senhorita—disseoJovem.—Bebadeumavez.Quermaispão?—Até quando vai tratar asmoradoras de senhorita?—disse oBolas.—Como você é engraçado,

Jovem.—Tratotodasasmulheresdomesmojeito—disseoJovem.—Moradorasoufreiras,paramimnão

hádiferença,respeitodamesmaforma.— E então por que nas suas canções ataca tanto as mulheres — disse a Chunga. — Parece um

compositorveado.—Não ataco, canto as verdades— disse o Jovem. E sorriu, debilmente, soltando um último aro,

brancoeperfeito.ASelvática se levantou, senhora, estava commuito sono, já ia embora, e obrigadapelo café,mas o

harpistasegurou-apelobraço,moça,dandoumpulinho,queesperasse.Iaparaacasadoinconquistável,lápertodapraçaMerino?Elesalevariam,equeoBolasfossechamarumtáxi,eletambémestavacomsono.OBolasselevantou,foiparaaruaequandofechouaportaumalufadadearfrescochegouatéamesa:obairrocontinuavanaescuridão.ViramcomoocéudePiuraeravolúvel?Ontem,aestamesmahora,oSolestavaaltoeabrasador,nãocaíaareiaeosbarracospareciamlavadinhos.Ehojeanoitepreguiçosanãoacabava,

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comosefosseficarláparasempre,eoJovemapontouparaoquadradinhodecéurecortadonajanela:ele,pessoalmente,ficavaatécontente,masmuitosnãodeviamgostar.AChungapôsumdedonatêmpora:quecoisasopreocupavam,quesujeitodoido.Jáeramseishoras?,aSelváticacruzouaspernasepôsoscotovelosnamesa,naselvaamanheciacedinho,aestahoratodomundojáestavalevantadoeoharpistasim,sim,océuficavarosado,verde,azul,detodasascores,eaChungacomo,eoJovemcomo,maestro,eleconheciaaselva?Não,coisasqueeleimaginavaeseaindahouvesseleiteaceitariadebomgradomaisumpouquinho.ASelváticaserviu-oepôsaçúcar,aChungaolhavaparaoharpistacomdesconfiançaeagorasuaexpressãoeraáspera.OJovemacendeuoutrocigarroe,denovo,transparentes,efêmeros,flutuantes,unsaroscinzentospartiamdasuabocaemdireçãoaoquadradinhonegrodajanela,nomeiodocaminhoseencontravam,paraeleasensaçãodaluzeraocontrárioqueparaasoutraspessoas,esemisturavameeramcomonuvenzinhas,todos ficavam felizes e otimistas com o Sol e tristes com a noite, e por fim adelgaçavam tanto que setornavaminvisíveis,edediaelesesentiaamargoesóaoescurecerseuespíritoselevantava.Équeeleseramnoturnos, Jovem, como as raposas e as corujas: aChunguita, o Bolas, ele e agora ela também,moça, eouviu-se uma porta batendo.Na soleira, o Bolas segurava Josefino pela cintura, que vissem quem haviaencontrado,aSelváticaselevantou,falandosozinho,naestrada.

—Queboavida,Josefino—disseaChunga.—Vocêestáalto.—Bomdia,rapaz—disseoharpista.—Pensamosquevocênãovinhamaisbuscá-la.Jáíamoslevá-la.—Nemadiantafalarcomele,maestro—disseoJovem.—Estácaindo.ASelváticaeoBolastrouxeram-noparaamesa,eJosefinonãoestavacaindo,quebobagem,asaideira

era por conta dele, que ninguém saísse, e que a Chunguita trouxesse uma cervejinha. O harpista selevantava, rapaz, agradecia a intenção,mas já era tarde e o táxi estava esperando. Josefino fazia caretas,eufórico,todoselesiamficarcombolhas,aosgritos,tomandoleite,alimentodecriança,eaChungasim,muitobem,atélogomais,queolevassem.SaíramenaalturadoQuartelGraujádespontavaumalistrinhaazulhorizontalenosbarracossilhuetassonolentassemoviamatrásdacana-brava,ouvia-seocrepitardeumbraseiro eo ar trazia cheiros rançosos.Atravessaramo areal, oharpistadebraçosdados comoBolas eoJovem,JosefinoapoiadonaSelvática,enaestradatomaramumtáxi,osmúsicosnobancodetrás.Josefinoria,aSelváticaestavacomciúme,velho,perguntavaporquebebetanto,eondeesteve,ecomquem,queriaumaconfissão,harpista.

—Bem-feito,moça—disseoharpista.—Osmangachessãoopiorquehá,nãoconfienuncaneles.—Oquê?—disseJosefino.—Querbancaroespertinho?Oquê?Nãotoquenela,companheiro,pode

corrersangue,companheiro,oquê?—Eunãomemetocomninguém—disseochofer.—Nãotenhoculpaseocarroéapertado.Por

acasoencosteinasenhorita?Eufaçoomeutrabalhoenãoqueroconfusão.Josefinoriudebocaaberta,nãoentendiabrincadeiras,companheiro,àsgargalhadas,podiaencostarse

elaoprovocasse,tinhaoseuconsentimentoeomotoristatambémriu,senhor:elehaviamesmoacreditado.Josefinovirou-separaosmúsicos,eraaniversáriodoMacaco,quefossemcomeles,podiamfestejarjuntos,osLeóngostamtantodele,velho.Masomaestroestavacansadoequeriadescansar,Josefino,eoBolaslhedeuumapalmadanas costas. Josefino ficou triste, triste e bocejou e fechouos olhos.O táxi passoupelacatedral e as luzes da Praça de Armas já estavam apagadas. As silhuetas terrosas dos pés de tamarindocercavamrigidamenteocoretocircularcujotetocurvo lembravaumguarda-chuva,eaSelváticaquenãofossemauassim,tantolhehaviapedido.Verdes,grandes,assustados,seusolhosprocuraramosdeJosefinoeeleestendeuamão,zombeteiro,eramau,iacomeressesolhoscrusnumasómordida.Teveumataquederiso,omotoristaolhou-odelado:estavamdescendoaruaLima,entreLaIndustriaeasgradesdaprefeitura.Ela não queriamas oMacaco fez cem anos ontem, e a estava esperando, e os León eram seus irmãos equeriaagradá-los.

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—Nãoamoleamoça,Josefino—disseoharpista.—Deveestarcansada,deixe-aempaz.—Elanãoquerirparaaminhacasa,harpista—disseJosefino.—Nãoquerverosinconquistáveis.

Dizquetemvergonha,imagine.Pare,companheiro,vamosficaraqui.Otáxifreou,aruaTacnaeapraçaMerinoestavamescuras,masaavenidaSánchezCerrobrilhavacom

osfaróisdeumacaravanadecaminhõesqueseguiaparaaPonteNova.Josefinopuloudocarro,aSelváticanão semexeu, começaram a forcejar e o harpista nãobriguem,meninos, façam as pazes, e Josefinoqueviessem,eomotoristatambém,oMacacoestavavelho,iafazermilanos.MasoBolasdeuumaordemaomotorista e este partiu. Agora a avenida também estava às escuras e os caminhões não passavam de unsreflexos vermelhos e barulhentos afastando-se em direção ao rio. Josefino começou a assobiar entre osdentes, pôs amãono ombro da Selvática e agora ela não ofereciamais resistência e andava ao seu ladomuitotranquila.Josefinoabriuaporta,fechou-aatrásdesie,esparramadonumapoltrona,comacabeçasob um abajur de pé, estava o Macaco, roncando. Uma fumacinha rascante vagava pelo quarto sobregarrafas vazias, copos, cigarros e restos de comida.Tinham se rendido, então eram esses osmangaches?,Josefinodavapulos,osinvencíveismangaches?,eumavozincoerentesurgiunoquartovizinho:Joséestavanasuacama,iamatá-lo.OMacacolevantou-sesacudindoacabeça,quemfoiqueserendeu,merda,esorriueseusolhosbrilharam,masmeuDeus,eaflautouavoz,masquemestavaaqui,eselevantou,masquantotempo,eavançouaostropeções,masquesatisfação,priminha,afastandoascadeirascomasmãos,asgarrafasdochãocomospés, jáestavacomsaudade,eJosefinocumproounãocumpro?,suapalavravaliaounãovaliacomoadeummangache?Debraçosabertos,despenteado,comumlargosorrisonaboca,oMacacoavançavasinuosamente,tantotempo,edepoiscomoestábonita,eporqueseafastava,priminha,tinhaquefelicitá-lo,nãosabiaqueeraseuaniversário?

—Éverdade,eleestáfazendoummilhãodeanos—disseJosefino.—Chegademelindres,Selvática,dê-lheumabraço.

Caiu numa poltrona, pegou uma garrafa e levou-a à boca, bebeu, e a bofetada soou como umpedregulhonaágua,priminhamá,Josefinoriu,oMacacodeixou-seesbofetearoutravez,priminhamá,eagoraaSelváticaiadeumladoparaoutro,quebravam-secopos,oMacacoatrásdela,tropeçandoerindo,enoquartovizinhoeramosinconquistáveis,nãosabiamtrabalhar,sóbeber,eavozdeJoséiaevoltava,eJosefinotambémcantarolava,enroscadodebaixodoabajurdepé,agarrafaescorregandoaospouquinhosdamão.AgoraaSelváticaeoMacacoestavamparadosnumcanto,eelaainda lhedavabofetadas,priminhamá,jáestavadoendodeverdade,porquebatianele?,eria,seriamelhorseobeijasse,eelatambémriadaspalhaçadasdoMacaco,eatéoinvisívelJoséria,priminhabonita.

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Epílogo

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Ogovernadordátrêsbatidaslevescomosnósdosdedos,aportadaresidênciaseabre:orostorosadodamadreGriseldainsisteemsorrirparaJulioReátegui,masseusolhossedesviamcheiosdealarmeemdireçãoà praça de SantaMaría deNieva e sua boca treme.O governador entra, amenina o segue docilmente.Avançamporumcorredorsombreadoatéogabinetedasuperioraeagoraorumordevozesdopovoadoestáabafadoelongínquo,comoaagitaçãodosdomingos,quandoaspupilasvãoparaorio.Nogabinete,ogovernadorserefestelanumadascadeirasdelona.Suspiracomalívio,fechaosolhos.Ameninapermanecenaporta,decabeçabaixa,maspoucodepois,quandoasuperioraentrou,correatéJulioReátegui,madre,que se levantou: bomdia. A superiora responde comum sorriso glacial, indica com amão que torne asentar-se e ela fica empé, ao ladodaescrivaninha.Davapenavê-la, erauma salvagenzinhaemUrakusa,madre,comosolhosinteligentesquetem,JulioReáteguipensavaquepoderiameducá-lanamissão,tinhafeitobem?Muitobem,donJulio,easuperiorafalacomosorri,friaedistante,semolharparaamenina:erapara issoque elas estavamaqui.Não entendianadade espanhol,madre,mas aprenderia logo, eramuitoespertaenãotinhacriadonenhumproblemaemtodaaviagem.Asuperioraouviacomatenção,tãoimóvelcomo o crucifixo demadeira cravado na parede, e, quando Julio Reátegui se cala, ela não assente nempergunta nada, fica esperando com asmãos entrelaçadas sobre o hábito e a boca ligeiramente franzida,madre:entãoeleadeixava.JulioReáteguiselevanta,agoratinhaqueir,esorriparaasuperiora.Tudofoimuitopenoso,muitodifícil, tiveramchuvase contratemposde todo tipo, e aindaporcimanãopodia irdeitarcomogostaria, seusamigos tinhampreparadoumalmoçoparaelee seofenderiamsenão fosse, aspessoaseramtãosensíveis.Asuperioraestendeamãoenesseinstanteoruídoaumenta,soamuitopróximodurantealgunssegundos,comoseasexclamaçõesegritosnãoviessemdapraçaesimdopomar,dacapela.Depoisdiminuiecontinuacomoantes,moderado,difuso,inofensivo,easuperiorapiscaumaveze,antesdechegaràporta,vira-separaogovernador,donJulio, semsorrir,pálida,os lábiosúmidos:oSenhor ialevaremcontatudooque faziaporestamenina,comavozaflita,ela sóqueriarecordarqueumcristãodeve saber perdoar. JulioReátegui assente, inclinaumpouco a cabeça, cruza os braços, suapostura é aomesmotempograve,mansaesolene,donJulio:queofizesseporDeus.Agoraasuperiorafalacomardor,etambémpor sua família, e seus pômulos se acenderam, don Julio, pela sua esposa que era tão boa e tãopiedosa.Ogovernadorassentedenovo,elenãoeraumpobrecoitado,uminfeliz?,orostocadavezmaispreocupado,poracasotinharecebidoeducação?,suamãoesquerdaacariciareflexivamenteabochecha,sabiaoquefazia?,esurgiramumasdobrasnatesta.Ameninaosobservadelado,seusolhosbrilhamentreosfiosdecabelo,assustadiços,verdeseselvagens:elesentiamaisdoqueninguém,madre.Ogovernadorfalasemlevantaravoz,eraalgoqueiacontraasuanaturezaecontraassuasideias,comcertatristeza,masnãosetratava dele que já estava saindo de SantaMaría deNieva,mas dos que ficavam,madre, de Benzas, deEscabino,deÁguila,dela,daspupilasedamissão:nãoqueriatornaristoaquiumaterrahabitável,madre?Masumcristãotinhaoutrasarmaspararepararasinjustiças,donJulio,sabiaqueeletinhabonssentimentosmasnãopodiaconcordarcomaquelesmétodos.Quetentasseexplicaraeles,aquitodoslheobedeciam,quenãofizessemaquilocomoinfeliz.Iadecepcioná-la,madre,sentiamuito,maseletambémachavaqueeraaúnicamaneira.Outrasarmas?Asdosmissionários,madre?Haviaquantosséculosqueestavamaqui?Quantotinhamavançadocomessas armas?Eraparanão terque lamentarno futuro,madre, essemalfeitor e seugruposurrarambarbaramenteumcabodeBorja,mataramumrecruta,extorquiramdonPedroEscabinoede repentea superioranão,negacomcólera,não,não, levantaavoz:avingançaeradesumana,coisadeselvagens, e era isso que eles estavam fazendo com o desventurado. Por que não julgá-lo? Por que não

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mandá-loparaacadeia?Nãoentendiaqueerahorrível,quenãosepodiatratarumserhumanoassim?Nãosetratavadevingança,nemsequerdecastigo,madre,eJulioReáteguibaixaavozeacariciacomapontadosdedosocabelosujodamenina:aquestãoeraprevenir.Nãoqueriapartirdeixandoessaimpressãoruimnamissão,madre,mas era necessário, para o bemde todos.Ele tinha afeição por SantaMaría deNieva, omandatooobrigaraadeixardeladoosseusinteresses,perderdinheiro,masnãosearrependia,madre,nãotinhafeitoaterraprogredir?Agoratinhaautoridades,embrevehaveriaumpostodaGuardaCivil,opovoviveriaempaz,madre:nãosepodiaperdertudoisso.AmissãoeraaprimeiraaagradecerpeloqueeletinhafeitoporSantaMaríadeNieva,donJulio,masquecristãopodiaaceitarquematassemumpobre infeliz?Queculpatinhaeledequeninguémlhehajaensinadooqueerabomeoqueeramau?Nãoiammatar,madre,nemmandarparaacadeia,comcertezaelemesmotambémpreferia istoaserpreso.Nãotinhamódio dele, madre, só queriam que os aguarunas aprendessem o que era bom e o que era mau, e se sóentendiamdessejeito,paciência,madre.Ficamemsilêncioporunssegundos,depoisogovernadorestendeamãoparaasuperiora,saieameninaosegue,masquandodáunspassosasuperiorapegaemseubraçoeela não tenta fugir, só abaixa a cabeça, don Julio, tinha nome?, porque era preciso batizá-la. Amenina,madre?Nãosabia,dequalquermodonãodeviaternomecristão,queelaslhedessemum.Fazumamesura,saida residência,atravessaempassos rápidosopátiodamissãoedescevelozmentea ladeira.Aochegaràpraça, olha para Jum: com asmãos amarradas acima da cabeça, pendurado como um prumo nos paus-mulatos,háummetrodedistânciaentreseuspéssuspensosnoareascabeçasdoscuriosos.Benzas,Águila,Escabinonãoestãomaisporali,sóocaboRobertoDelgado,algunssoldadoseaguarunasvelhosejovensreunidosnumgrupocompacto.Ocabonãovociferamais,Jumtambémestácalado.JulioReáteguiobservao cais: as lanchas balançamvazias, já terminaramdedescarregar.OSol é cruel, vertical, de um amareloquasebranco.ReáteguidáunspassosatéacasadoGoverno,masaopassarpelospaus-mulatosparaetornaaolhar.Suasmãosprolongamaviseiradochapéuemesmoassimosraiosagressivossecravamemseusolhos.Sósevislumbrasuaboca,estádesmaiado?,quepareceaberta,seráqueovê?,vaigritarpiruanosoutravez?,vaiinsultarocabodenovo?Não,nãogritanada,talvezabocanemestejaaberta.Aposiçãofezsuabarrigasumireseucorposealongar,pareceumhomemmagroealto,nãoopagãoforteebarrigudoqueé.Umacoisa estranha emana dele, assim como está, quieto e aéreo, transformado pelo sol numa esbelta formaincandescente.Reáteguicontinuaandando,entranacasadoGoverno,afumaçatornaaatmosferaespessa,tosse, aperta algumas mãos, abraça e é abraçado. Ouvem-se gracejos e risadas, alguém põe um copo decervejaemsuasmãos.Elebebenumsógoleesesenta.Emvoltahádiálogos,cristãossuados,donJulio,iamsentir faltadele, saudades.Ele também,muita,mas já era tempode voltar a cuidardas suas coisas,havialargado tudo, as plantações, a serraria, o hotelzinho de Iquitos. Aqui tinha perdido dinheiro, amigos, etambémenvelhecera.Nãogostavadepolítica,seuelementoeraotrabalho.Mãossolícitasvoltamaencheroseucopo,dãopalmadinhas,pegamoseuchapéu,donJulio,todomundovieracumprimentá-lo,atéosquemoravam para lá do pongo. Estava cansado, Arévalo, fazia duas noites que não dormia, sentia os ossosmoídos.Enxugaatesta,opescoço,aface.ÀsvezesManuelÁguilaePedroEscabinoseafastamumpoucoesevê,entreoscorpos,atelametálicadajanelacomospaus-mulatosaofundodapraça.Oscuriososaindaestarãoemvoltaouocalorosafugentou?NãosevêmaisJum,seucorpoterrososedissolveentreosjatosdeluzouseconfundecomacascaacobreadadostroncos,amigos:quenãoodeixassemmorrer.Paraquefosseumbomcastigo,opagãotinhaquevoltaraUrakusaecontaraosoutrosoque tinhaacontecido.Não iamorrer,donJulio,atélhefariabemtomarumpoucodesol:ManuelÁguila?Quenãodeixassedepagar-lheamercadoria,donPedro,paraquedepoisnãodissessemquehouveabusos,elessótinhamcolocadoascoisasnoseulugar.Claro,donJulio,pagariaadiferençaaessespalermas,Escabinosóqueriacomerciarcomeles,como antes.Tinha certeza de que esse don FabioCuesta era gente de confiança, don Julio?: perguntouArévalo Benzas. Se não fosse, não o teria nomeado. Fazia anos que trabalhava com ele, Arévalo. Um

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homemumpoucoapático,maslealeeficientecomopoucos,elessedariambemcomdonFabio,garantia.Esperoquenãohajamaisconfusões,otempoqueseperdiaeraenorme,eJulioReáteguijáestavamelhor,amigos:quandoentrousesentiraumpoucotonto.Nãoseriafome,donJulio?Émelhoralmoçardeumavez, o capitãoQuiroga estava à sua espera. E, a propósito, como era esse capitão, don Julio?Tinha suasfraquezas,comoqualquerserhumano,donPedro:mas,demodogeral,eraboagente.

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I

—Vocênãovemhámaisdeumano—gritaFushía.—Nãoestouescutando—dizAquilino,comamãoemconchanaorelha;seusolhosvagamsobreas

copasintercaladasdaspalmeirasedascapanahuasou,furtivosetemerosos,espreitamascabanasatrásdeumacercadesamambaias,nofundodocaminho.—Oquevocêdisse,Fushía?

—Hámaisdeumano—gritaFushía.—Nãovemhámaisdeumano,Aquilino.Destavezovelhoassenteeseusolhos,embaçadosporsecreções,pousamemFushíaporuminstante.

Depoistornamavagarpelaágualamacentadamargem,asárvores,osmeandrosdocaminho,afolhagem:não faz tanto tempo, homem, só uns meses. Nas cabanas não se ouve nenhum barulho e tudo parecedeserto,maselenãose fiava,Fushía,e seaparecessemcomodaquelavez,uivando,pelados,e fechavamocaminho,ecorriamemsuadireção,eeletinhaquepularnaágua?Temcertezadequenãovêm,Fushía?

—Umanoeumasemana—dizFushía.—Tododiaeuconto.Quandoforemboraeuvoucomeçaracontardenovo,aprimeiracoisaquefaçotodamanhãsãoosrisquinhos.Nocomeçonãoconseguia,agoramexoopécomosefosseumamão,pegoopauzinhocomdoisdedos.Querver,Aquilino?

Opésadioavança,raspaaareia,remexeemummontinhodepedras,osdoisdedosintactosseabremcomoapinçadeumescorpião,fecham-sesobreumpedacinhodepedra,levantam-se,opésemoveveloz,toca na areia, retira-se e no chão fica um risquinho reto e minúsculo que o vento recheia em poucossegundos.

—Paraquefazestascoisas,Fushía?—dizAquilino.—Viu só, velho?—diz Fushía.—É assim todo dia, riscos pequenos, cada vezmenores para que

entremnaparedequemederam,osdesteanosãoummonte,umasvintefilasderisquinhos.Equandovocêchega,eudouminhacomidaparaoenfermeiroeelepassacaleapaga,entãopossocomeçaramarcardenovoosdiasquefaltam.Estanoitevoulhedarminhacomidaeamanhãjogarácal.

—Estábem,estábem—amãodovelhopedeaFushíaqueseacalme—,comovocêquiser,fazumano,certo,nãofiquenervoso,nãogrite.Nãoconseguivirantes,viajarnãoéfácilparamim,euadormeço,meusbraçosnãoaguentammuito.Esqueceuqueosanospassam?Nãoqueromorrernaágua,orioébomparaviver,nãoparamorrer,Fushía.Porquevocêgritaassimotempotodo,suagargantanãodói?

Fushíadáumpulo,ficabememfrenteaAquilino,põeseurostodebaixodacaradovelhoeesterecuafazendocaretas,masFushíaresmungaepulaatéqueAquilinooolhadefrente:chega,chega,játinhavisto,homem.OvelhotapaonarizeFushíavoltaparaoseulugar.Eraporissoquenãoentendiabemoquevocêfalava,Fushía;conseguiacomerassim,comabocanua?Osdentesnãolhefaziamfalta,nãoseengasgava?Fushíanegacomacabeça,váriasvezes.

—A freiramolha tudo paramim— grita.—Opão, as frutas, bota tudo na água até amolecer edesmanchar,entãoeupossoengolir.Sóécomplicadoparafalar,avoznãosai.

—Não leve amal se eu tapo o nariz—Aquilino aperta as narinas com dois dedos e sua voz soafanhosa.—Ocheiromeenjoa,minhacabeçacomeçaarodar.Daúltimavezleveiocheirocomigo,Fushía,ficava vomitando de noite. Se soubesse que você tem tanta dificuldade para comer, não teria trazidobolachas.Vãoarranharsuasgengivas.Dapróximaveztragocervejinhas,unsrefrigerantes.Esperolembrar,porque,sabe,minhacabeçanãoestáboa,esqueçoascoisas,tudovaiembora.Jáestouvelho,homem.

—Eolhequeagoranãohásol—dizFushía.—Quandoosolsaievamosparaaprainha,atéasfreiras

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eodoutortapamonariz,dizemquefedemuito.Eunãosintonada,jámeacostumei.Sabeoqueé?—Nãoprecisagritar—Aquilinoolhaparaasnuvens:grossosroloscinzentosemanchinhasbrancas

salpicadasaquiealiescondemocéu,umaluzdechumbodescelentamentesobreasárvores.—Achoquevaichover,masprecisoiremboramesmoassim.Nãovoudormiraqui,Fushía.

— Lembra das flores que havia na ilha? — Fushía pula no mesmo lugar, como um macaquinhoimberbe e vermelho. —Aquelas amarelas que se abrem com o sol e se fecham ao escurecer, as que oshuambisasdiziamqueeramespíritos.Lembra?

—Vouemboramesmoquechovaacântaros—dizAquilino.—Nãovoudormiraqui.—Éassim,igualzinhoaessasflores—gritaFushía.—Comosolelasseabremesaibaba,éissoque

fede,Aquilino.Masfazbem,paramdecoçar,agentesesentemelhor.Acabamosficandomaiscontentesenãobrigamos.

—Nãogrite tanto,Fushía—dizAquilino.—Olhe comoo céu ficou escuro, e está soprandoumvento.Afreiradissequeissolhefazmal,vocêtemquevoltarparaacabana.Émelhoreuirdeumavez.

—Masnósnãosentimosnenhumcheiro,nemcomosolnemquandoestánublado—gritaFushía—,nuncasentimosnada.Éomesmocheirootempotodoejánemparecequefede,parecequeocheirodavidaéassim.Entende,velho?

Aquilinoabreonarizerespirafundo.Umasrugasfinascortamoseurosto,franzidosobochapéudepalha.Oventoagitasuacamisadealgodãoe,poralgunsmomentos,mostraoseupeitoesquálido,ascostelassalientes, apele lustrosa.Ovelhobaixaosolhos, olhade soslaio: ele continua lá, em repouso, comoumgrandecaranguejo.

—Comqueparece?—gritaFushía.—Comcheirodepeixepodre?—PeloamordeDeus,nãogrite—dizAquilino.—Agoratenhoqueir.Quandovoltar,tragocoisas

macias,paravocêengolirsemmastigar.Vouarranjar,perguntarnaslojas.—Sente,senteaí—gritaFushía.—Porqueselevantou,Aquilino?Sente,senteaí.PuladecócorasemvoltadeAquilinoebuscaseusolhos,masovelhoteimaemolharparaasnuvens,as

palmeiras, as águas sonolentasdo rio, as ondinhas sujas.Rio abaixo,uma ilhotade terraocre fende comempáfiaacorrenteza.AgoraFushíaestájuntoàspernasdeAquilino.Ovelhosesenta.

—Fiqueumpouquinhomais,Aquilino—gritaFushía.—Nãováainda,velho,vocêmalacabadechegar.

—Agoraéquemelembro,precisolhecontarumacoisa—ovelhobatenatestae,porumsegundo,olha:opésadioestáescavandoaareia.—EmabrilpasseiemSantaMaríadeNieva.Vêcomoestáaminhacabeça?Jáiaemborasemlhecontar.ANavalmecontratou,umpilotoestavadoenteemelevaramnumadessascanhoneirasquevoamnaágua.Ficamosládoisdias.

—Tevemedoqueeuoagarrasse—gritaFushía.—Dequeabraçasseassuaspernasefoiporissoquesesentou,Aquilino.Senão,iaemborademansinho.

—Parecomessesgritos,deixeeulhecontar—dizAquilino.—ALalitaengordouumaenormidade,aprincípionenhumdosdoisreconheceuooutro.Elapensavaqueeutinhamorrido.Começouachorardeemoção.

—Antesvocêficavaodiatodinho—gritaFushía.—Iadormirnalanchaenodiaseguintevoltavaparaconversarcomigo,Aquilino.Ficavadoisoutrêsdias.Agoramalchegaejáquerir.

— Fiquei na casa deles, Fushía — diz Aquilino. — Têm um monte de filhos, nem lembro maisquantos,muitos.EoAquilinojáéumhomem.FoibalseiroeagoravaitrabalharemIquitos.Nãoémaiscomoeraquandocriança,nãotemolhostãorasgados.Quasetodossãohomens,evocêsevisseaLalitanemacreditariaqueéela,tãogordaqueestá.Lembracomoeuaajudeiaparircomestasmãos?OAquilinoéumhomenzarrão,esimpático.EosfilhosdeNievestambém,etambémosdopolicial.Nãodáparadiferenciar,

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todosseparecemcomaLalita.—Todomundotinhainvejademim—gritaFushía.—Porquevocêvinhamevereelesnãotinham

ninguém.Edepoiscomeçaramacaçoarquandovocêdemoravatantoavoltar.Elevem,équefazmuitasviagens,vivecomerciandopelosrios,masvem,talvezamanhãoudepois,masvemdequalquerjeito.Agoraécomosevocênãoviessenunca,Aquilino.

—ALalitamecontoucoisasdaprópriavida—dizAquilino.—Elanãoqueriatermaisfilhos,masoguardasimeaengravidouummontedevezes.LáemSantaMaríadeNievachamamosrapazesdePesados,masnãosóosfilhosdoguarda,osdeNievestambém,eoseu.

—Lalita?—gritaFushía.—Lalita,velho?Brotaumaagitaçãorosácea,gemidosjuntocomexalaçõespútridaseovelhotapaonariz,jogaacabeça

para trás.Começoua chover eovento assobia entre as árvores,omatodançanaoutramargem,háumcrepitarsussurrantedefolhas.Achuvaaindaéfina,invisível.Aquilinoselevanta:

—Viu, já estáchovendo, tenhoque ir embora—dizemvoz fanha.—Agora tereiquedormirnalancha,passaranoitetodomolhado.Nãopossonavegarcomchuva,seomotorpararnãotenhoforças,acorrentezavaimearrastar,jáaconteceu.VocêficoutristecomoquelheconteidaLalita?Porquenãogritamais,Fushía?

Está mais encolhido que antes, encurvado, ovoide, e não responde. Seu pé sadio brinca com aspedrinhasespalhadasnaareia:derramaeamontoa,derramaeamontoa, igualaasbordas,eemtodosessesmovimentosminuciososelentosháumaespéciedemelancolia.Aquilinodádoispassos,nãotiraosolhosdessascostasacesas,dessesossosqueaáguavailavando.Recuaumpoucomaiseagorajánãosedistinguemasferidasdapele,tudoéumasuperfícieentrevermelhaeroxa,furta-cor.Abreonarizerespirafundo.

—Não fique triste, Fushía—murmura.—Volto ano que vem,mesmo se estivermuito cansado,palavradehonra.Voulhetrazercoisasmacias.EstáaborrecidocomahistóriadaLalita?Lembroudeoutrostempos?Avidaéassim,homem,pelomenosvocêtevemaissortequeoutros,vejaNieves.

Murmura e vai retrocedendo, já está a caminho. Há poças nos desníveis do terreno e um relentovegetalmuito intenso invade a atmosfera, um cheiro de seivas, resinas e plantas germinando.Umvapormorno,aindaralo,sobeemcamadasondulantes.Ovelhocontinuarecuando,omontinhodecarnevivaesangrenta permanece imóvel ao longe, some atrás das samambaias.Aquilinodámeia-volta, corre para ascabanas,Fushía,iavoltaranoquevem,sussurrando,quenãoficassetriste.Agorachoveacântaros.

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II

—Depressa,padre—disseaSelvática.—Estoucomumtáxiesperando.—Uminstantinho—pigarreouopadreGarcía,esfregandoosolhos.—Precisomevestir.EntrounacasaeaSelváticafezsinaisparaomotoristadequeesperasse.Punhadosdeinsetosrevoavam

crepitando em tornodas luzesdadesérticapracinhaMerino,o céu estava alto e estrelado epela avenidaSánchez Cerro já circulavam, rugindo, os primeiros caminhões e ônibus noturnos. A Selvática ficouesperandonacalçadaatéqueaportatornouaseabriresaiuopadreGarcía,comorostoescondidoporumcachecolcinzaeumchapéudepanoenfiadoatéassobrancelhas.Entraramnotáxiepartiram.

—Várápido,chefe—disseaSelvática.—Atoda,chefe.—Élonge?—disseopadreGarcíaesuavozsetransformounumlongobocejo.—Umpouquinho,padre—disseaSelvática.—PertodoClubeGrau.—E entãopor que veio até aqui?— resmungouopadreGarcía.—Para que existe a paróquia de

BuenosAires?Porquetinhaquevirmeacordar,enãoaopadreLouro?OTrês Estrelas estava fechadomas se via luz lá dentro, padre: a senhora queria que fosse ele.Três

homenscantarolavamabraçadosnumaesquinaeoutro,umpoucomaisàfrente,urinavacontraaparede.Um caminhão abarrotado de caixotes avançava impassível pelo meio da rua, o motorista do táxi pediapassagem em vão, buzinando, piscando os faróis e, de repente, o chapéu de pano desceu até a boca daSelvática:qual senhoraqueriaqueele fosse?Ocaminhãoafinal seafastoueo táxipôdepassar, a senhoraChunga,padre,umbruscosobressalto,oquê?,quemestavamorrendo?,ohábitocomeçouaseagitareumaespéciedeespasmoestrangulavaavozdopadreGarcíaporbaixodocachecol:aquemestavaindoconfessar?

—OsenhorAnselmo,padre—sussurrouaSelvática.—Oharpistaestámorrendo?—exclamouomotorista.—Oquê?Eraele?Ocarro, ao frearbruscamente, rangeunaavenidaGrau,masdepois foi impelidopara a frente com

mais impulso ainda e, acendendo os faróis altos, continuou aumentando a velocidade e não reduzia nasesquinas,limitava-seaanunciarcomfortesbuzinadassuapassagemveloz.Enquantoisso,ochapéudepanobalançava aturdido diante do rosto da Selvática e a garganta do padreGarcía parecia travar uma roucabatalhacontraalgumacoisaqueaobstruíaeasfixiava.

—Estavatocandomuitofelize,derepente,caiunochão—suspirouaSelvática.—Ocoitadoficoutodoroxo,padre.

Amãosaiudasombraemdisparada,sacudiuoombrodaSelváticaeelagemeu,estavamindoparaoprostíbulo?, assustada, e se encolheu contra a porta do táxi: não, padre, não, para aCasaVerde. Estavamorrendolá,porqueaempurravaassim,oquefoiqueelafizera,eopadreGarcíasoltou-aearrancouocachecoldopescoçocomumsafanão.Respirandocomdificuldade,pôsabocaparaforadajanelaeficouassim por um tempo, inclinado, de olhos fechados, aspirando com angústia o ar leve da noite.Depois,deixou-secaircontraobancodocarroetornouaseagasalharcomocachecol.

—ACasaVerdeéoprostíbulo,infeliz—roncou.—Euseiquemvocêé,seiporqueestáseminuaetodapintada.

—Nãochamaramummédico?—disseomotorista.—Quenotíciatriste,senhorita.Desculpequemeintrometa,maséqueconheçotantooharpista.Quemnãooconhece,todomundogostadele.

—Chamaram,sim—disseaSelvática.—OdoutorZevallosjáestálá.Masdizqueovelhosónão

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morrepormilagre.Estãotodoschorando,padre.OpadreGarcíacontinuavarecolhidonobancosemfalarnada,mas, intermitente, fraco,pertinaz,o

somescapavadocachecol.OtáxiparouemfrenteàsgradesdoClubeGrau;omotorcontinuourugindoefumegando.

— Eu iria até lá — disse o motorista —, mas a areia está muito fofa e certamente vamos acabaratolando.Sintomuitoportudoisso,deverdade.

EnquantoaSelváticadesamarravaumlenço,tiravaodinheiroepagavaotáxi,opadreGarcíadesceuefechouaporta comraiva.Começoua andarpeloareal, compassos firmes.Àsvezes tropeçava, imergia esubiaàsuperfícieirregulare,nanoiteclara,podia-severcomoavançavapelasdunasamarelas,corcundaeescurocomoumurubuagigantado.ASelváticaalcançou-onomeiodocaminho.

—Osenhoroconhecia,padre?—sussurrou.—Coitadinho,nãoé?Sevissecomotocava,quecoisabonita.Equasenãoenxergavanada.

OpadreGarcíanãorespondeu.Caminhavameioencolhido,comaspernasabertas,numritmomuitovivaz,suarespiraçãorevelavacadavezmaisansiedade.

—Como tudo aqui parece estranho, padre—disse a Selvática.—Não se ouve nenhum som, emqualqueroutranoiteamúsicadaorquestrachegariaatéaqui.Maisadiante,naestrada,seouveclaramente.

—Cale-se,infeliz—rugiuopadreGarcía,semolharparaela.—Fecheessaboca!—Nãosezangue,padre—disseaSelvática.—Nemseioqueestoufalando.Équefiqueitãotriste,o

senhornãosabecomodonAnselmoera.—Seimuitobem,infeliz—murmurouopadreGarcía.—Euoconheçodesdeantesdevocênascer.Dissemaisalgumacoisa,incompreensível,eouviu-senovamenteoestranhosomroucoeofegante.Nas

portasdosbarracosdasredondezashaviagente,e,quandoelespassavam,ouviammurmúrios,boas-noites,algumasmulheressepersignavam.ASelváticabateunaportae,imediatamente,umavozdemulher:estavafechado,hojenãoatendiam,senhora,eraela,opadreestavaaqui.Houveumsilêncio,passosprecipitados,aportaseabriueumaluzenfumaçadailuminouorostomagroedecrépitodopadreGarcía,ocachecolquedançavaemseupescoço.EntrouescoltadopelaSelvática,nãorespondeuaocumprimentoqueduasvozesmasculinaslhefizeramdobalcão,talveznemtenhaouvidoorespeitosomurmúrioquesedesatouemduasmesasrodeadasdefigurasimprecisas.Parouazedoeimóvelemfrenteàpistadedançavaziae,quandoumasilhueta sem rosto surgiu à sua frente, onde estava?, resmungou rapidamente, e aChunga, que lhe haviaestendidoamão,desviou-a e apontoupara a escada:onde,queo levassem.ASelváticapuxou seubraço,padre,elaialhemostrar.Atravessaramosalão,subiramatéoprimeiroandar,enocorredoropadreGarcíaselivroudamãodaSelváticacomumsafanão.Elabateudelevenumadasquatroportasgêmeaseabriu-a.Ficoudeladoe,quandoopadreGarcíaentrou,fechouaportaevoltouparaosalão.

—Faziafrio,láfora?—disseoBolas.—Vocêestátremendo.—Bebaisto—disseoJovemAlejandro.—Vaiesquentar.ASelváticapegouocopo,bebeueenxugouoslábioscomamão.—Opadre de repente ficou furioso—disse.—No táxime segurou pelos ombros eme sacudiu.

Penseiqueiamebater.—Émuitomal-humorado—disseoBolas.—Eunãoacreditavaqueviesse.—OdoutorZevallosaindaestálá,senhora?—disseaSelvática.—Desceuagorahápouco,paratomarumcafé—respondeuaChunga.—Dissequeelecontinuava

igual.—Voutomaroutradose,Chunguita,estouprecisando,paraosnervos—disseoBolas.—Nãotenho

dinheiro,depoisvocêdesconta.AChungaassentiu e encheuos coposde ambos.Depois, comagarrafanamão, foi até asmesasda

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pontadapista,ondeasmoradorascochichavamdiscretamente:queriambeberalgumacoisa?Nãoqueriam,senhora,muitoobrigada,enãovaliaapenaqueficassem,podiamirembora.Umnovocochichoveioemresposta,maisprolongado,umacadeirarangeu,senhora,senãoseimportavaelaspreferiamficar,podiam?,eaChunga,claro,comoquisessem,evoltouparaobalcão.Assombrascontinuaramseusdiálogosabafadosenquantoosmúsicosbebiamemsilêncio,olhandovoltaemeiaparaaescada.

—Porquenãotocamalgumacoisa?—disseaChunga,ameia-voz,fazendoumgestovago.—Seeleouvirtalvezgoste;vaisesentiracompanhado.

OBolaseoJovemhesitavam,aSelváticasim,sim,tinharazão,eleiagostar,eassombraspararamdemurmurar: bem, iam tocar para ele. Foram até o canto da orquestra, devagar, o Bolas se sentou nobanquinho,contraaparede,eoJovempegouoviolãonoassoalho.Começaramcomumtriste,esóbemdepois se atreveram a cantar, entre os dentes, sem fé,mas pouco a pouco foram aumentando o tom eacabaramrecuperandoadesenvolturaeavivacidadehabituais.QuandointerpretavamalgumacomposiçãodoJovem,pareciammaiscomovidos,diziamosversoscomumavozmorosaesentimental,evezporoutraoBolasseperdianamúsicaeficavacalado.AChungaveiotrazerunscopos.Elatambémpareciaperturbadaenão andava como aprumo ligeiramente arrogantede sempre, e simnaspontasdospés, semmexerosbraços nem olhar para ninguém, parecia atemorizada ou confusa, senhora: o doutor Zevallos estavadescendo.OBolaseoJovempararamdetocar,asmoradorasselevantaram,aChungaeaSelváticatambémcorreramparaaescada.

—Dei uma injeção— o doutor Zevallos limpava a testa com um lenço.—Mas não se pode termuitasesperanças.OpadreGarcíaestácomele.Édissoqueprecisaagora,querezempelasuaalma.

Passou a língua nos lábios,Chunga, estava com uma sede terrível: faziamuito calor lá em cima. AChungafoiatéobarevoltoucomumcopodecerveja.OdoutorZevallos jáestavasentadoaumamesacom o Jovem, o Bolas e a Selvática. As moradoras tinham voltado para os seus lugares e continuavamcochichando,monotonamente.

—Avidaéassim—odoutorZevallosbebeu,suspirou,fechoueabriuosolhos.—Todomundotemoseudia.Eubemantesquevocês.

—Eleestásofrendomuito,doutor?—disseoBolas,comvozdebêbado;masseuolhareseusgestoseramserenos.

—Não,foiparaissoquelhedeiainjeção—disseodoutor.—Estáinconsciente.Acordaàsvezes,porunssegundos.Masnãosentedornenhuma.

—Estavamtocandoparaele—sussurrouaChunga,comavoztambémembargadaeolhosvacilantes.—Pensamosqueiagostar.

—Doquartonãodáparaouvirnada—disseodoutor.—Maseu tenhoouvidoruim,quemsabeAnselmotenhaescutado.Gostariadesaberaidadedeleexatamente.Maisdeoitenta,nacerta.Émaisvelhoqueeu,quejáestoupertodossetenta.Dê-meoutrocopinho,Chunga.

Depoissecalarameficaramassimporumlongotempo.VezporoutraaChungaselevantava,iaatéobalcão e trazia cervejas e copinhos de pisco. O cochicho das moradoras continuava, às vezes áspero enervoso,outrasapagadoequaseinaudível.EderepentetodosselevantaramecorreramatéopédaescadaqueopadreGarcía vinhadescendo, semchapéunemcachecol, penosamente, fazendo sinais comamãopara o doutorZevallos.Este subiu os degraus segurando o corrimão, sumiupelo corredor, padre, o queacontecera,muitasperguntassurgiramaomesmotempoe,comoseobarulhoostivesseassustado,todossecalaramaomesmotempo:opadreGarcíamurmuravaalgumacoisa,engasgando.Seusdentesbatiamcomforçaeseuolharerrantenãosedetinhaemnenhumrosto.OJovemeoBolasestavamabraçadoseumdelessoluçava.Poucodepois,asmoradorascomeçaramaesfregarosolhos,agemer,aselamuriaremvozalta,asejogar nos braços umas das outras e só aChunga e a Selvática sustentavamo padreGarcía, que tremia e

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giravaosolhosdeformatenazeatormentada.Asduasoarrastaramparaumacadeiraeele,inerte,deixavaqueoajeitassem,friccionassemsuatestaebebiasemprotestarocopodepiscoqueaChungaderramavaemsuaboca.Seucorpoaindatremia,masseusolhosseacalmarameestavamfixosnovazio,circundadosporgrandesolheirasescuras.PoucodepoisodoutorZevallosapareceunaescada.Desceusempressa,cabisbaixo,esfregandolentamenteopescoço.

—MorreunapazdeDeus—disse.—Istoéoqueinteressaagora.Assombrasnasmesasdofundotambémseacalmarameocochichorenasceu,aindatímido,dolorido.

Osdoismúsicos,abraçados,choravam,oBolasmuitoalto,oJovemsemruídoetremelicandoosombros.OdoutorZevallos sentou-se,uma expressãomelancólica atravessou seu rostoobeso,padre: tinha chegado afalar com ele? O padre García fez que não com a cabeça. A Selvática acariciava sua testa e ele, todoencolhidonoassento,faziaesforçosparafalar,nãooreconhecera,eumassobioroucobrotavadasuabocae,maisumavez,seuolharrecomeçouumaextraviada,incessanteexploraçãodosarredores:otempotodoLaEstrelladelNorte,eraaúnicacoisaqueseentendia.Suavoz,abafadapeloprantodoBolas,malseouvia.

—Eraumhotelqueexistiaquandoeuerajovem—disseodoutorZevallos,comcertanostalgia,paraaChunga,maselanãoescutava.—NaPraçadeArmas,ondeagoraficaoHoteldeTuristas.

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III

—Você passa o tempo tododormindo, nem aproveita a viagem—dizLalita.—E agora vai perder achegada.

Ela está debruçada na amurada eHuambachano, no chão, encostado num rolo de corda, os olhosesbugalhados, quem dera estivesse dormindo, sua voz soa fraca e enferma, só fechava os olhos para nãovomitarmais,Lalita: játinhabotadoparaforatudooquetinha,mascontinuavacomânsias.Aculpaeradela,porqueelequeriaterficadoemSantaMaríadeNieva.Commeiocorpoparafora,Lalitadevoracomosolhosohorizontedetetosvermelhos,asfachadasbrancas,aspalmeirasaltasqueenfeitamacidadeeassilhuetas,muitoprecisas agora,mexendo-senoporto.Opessoalda coberta lutapara conseguirum lugarpertodaamurada.

—Pesado,nãoseja frouxo,vocêvaiperderamelhorparte—dizLalita.—Olheparaminhaterra,Pesado,quegrande,quelinda.Ajude-meaprocuraroAquilino.

OrostoabatidodeHuambachanoesboçaumsimulacrodesorriso,seucorporechonchudosecontorcee afinal se levanta, comdificuldade.Uma atividade intensa toma a coberta; os passageiros verificam seuspertences, põem os volumes nos ombros e, contagiados pela excitação, os porcos grunhem, as galinhascacarejamfrenéticasebatemasasas,eoscachorrosvãoevoltam,latindo,comasorelhasrígidas,osrabosvibrantes.Uma sirene perfura o ar, a fumaça preta da chaminé ficamais espessa e chovempartículas decarvão sobre as pessoas. Já entraram no porto, avançam por um arquipélago de lanchas amotor, balsascheiasdebananas,canoas,Pesado,vocêvê?,queobservassebem,tinhaqueestarporali,masoPesadoestápassandomaloutravez:malditoazar.Temumataquedeânsiasmasnãovomita,afinalseconformacomumacusparadaraivosa.Seurostooleosoestácontritoevioláceo,seusolhosficarammuitovermelhos.Dapontedecomando,umhomenzinhogritaordens,gesticulando,edoismarinheirosdescalços,depeitonu,encarapitadosnaproa,jogamascordasparaocais.

—Você está estragando tudo,Pesado—dizLalita, semdeixar de observar o porto.—Eu volto aIquitosdepoisdetantotempo,evocêadoece.

No vaivém das águas gordurosas balançam latas, caixas, jornais, lixo. Estão rodeados de lanchas,algumasrecém-pintadasecombandeirolasnosmastros,edebotes,balsas,boiasebarcaças.Nocais,aoladodapassareladetábuas,umapequenamultidãoamorfadecarregadoresrugeegritaparaospassageiros,dizemosprópriosnomes,batemnopeito,todostentamocuparoprimeirolugar,bememfrenteàpassarela.Atrásdelesháumacercaeunsgalpõesdemadeiraondeseaglomeraopúblicoqueaguardaosviajantes:estavaali,Pesado, aquele de chapéu.Que grande, que bonito, quedesse adeusinho, eHuambachano abre os olhosfrágeis,queocumprimentasse,Pesado,eleergueebalançaamão,frouxamente.Aembarcaçãoestáimóveleos dois marinheiros pulam para o cais, manipulam as cordas, amarram-nas nuns pilotes. Agora oscarregadoresberram,pulametentamconquistaraatençãodospassageiroscomcaretasegestos.Umhomemdeuniformeazul eboinabrancapasseia impassíveldiantedas tábuas.Atrásdacerca, aspessoasagitamasmãos,rieme,nomeiodoalvoroço,aintervalosregulares,seouveasireneestridente:Aquilino!Aquilino!Aquilino!As cores voltamao rostodeHuambachano e seu sorriso agora émaisnatural,menospatético.Abrepassagementreasmulherescheiasdeembrulhos,arrastandoumamalainchadaeumasacola.

—Eleengordou,estávendo?—dizLalita.—Ecomosevestiuparanosreceber,Pesado.Digaalgumacoisa,nãosejamal-agradecido,seráquenãopercebetudooquefezpornós.

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—Sim,estágordoepôsumacamisabranca—diz,mecanicamente,Huambachano.—Jáerahora,eunãofuifeitoparaaágua.Meucorponãoseacostuma,sofriaviageminteira.

Ohomemdeuniformeazulrecebeaspassagense,comumempurrãoamistoso,entregacadapassageiroaossimiescos,desesperadoscarregadoresquesejogamsobreele,tiramosanimaiseospacotesdassuasmãos,suplicando,vociferandosealguémresistirasoltarsuabagagem.Sãoapenasumadezena,masparecemcempelobarulhoquefazem;sujos,descabelados,esqueléticos,estãovestindoumascalçascheiasderemendose,umououtro, camisetas esfarrapadas.Huambachanoos afasta aos empurrões, patrão,quanto elequisesse,fora, e eles voltamà carga,porra, cinco reales,patrão, e ele fora, chega.Deixa-ospara trás e chega até acerca,cambaleando.Aquilinovaiaoseuencontroeosdoisseabraçam.

— Deixou crescer o bigode — diz Huambachano —, está de brilhantina. Como você mudou,Aquilino.

—Aquinãoécomolá,agentetemqueandarbem-vestido—sorriAquilino.—Comofoiaviagem?Estouesperandodesdecedo.

—Suamãefezboaviagem,estavacontente—dizHuambachano.—Maseuenjoeimuito,vomiteiotempotodo.Tantosanossemsubirnumbarco.

—Istosecuracomumcopinho—dizAquilino.—Oquehouvecomaminhamãe,porqueficoulá.Maciça,comoslongoscabelosgrisalhossoltosnascostas,Lalitaestárodeadadecarregadores.Inclinada

paraumdeles,seuslábiossemexem,eoobservabemdeperto,comumacuriosidadequaseagressiva:essesmerdas,nãoviamqueelaestavasemmala?Oquequeriam,carregá-la?Aquilinori,pegaummaçodeInca,ofereceumcigarroaHuambachanoeoacende.AgoraLalitapôsumadasmãosnoombrodocarregadorefalacheiadevivacidade;eleescutaematitudereservada,negacomacabeçae,poucodepois,saiesemisturacomosoutros,começadenovoapular,agritar,acorreratrásdosviajantes.Lalitachegaàcerca,veloz,debraçosabertos.EnquantoelaeAquilinoseabraçam,Huambachanofumae seurosto,entreasvolutasdefumaça,jáparecerecompostoeplácido.

—Vocêjáéumhomemfeito,vaisecasar,logovaimedarnetos—LalitaapertaAquilino,obriga-oarecuareagirar.—Ecomoestáelegante,quebonitão.

—Sabemondevãosehospedar?—dizAquilino.—NacasadospaisdeAmelia,eutinhaarranjadoumhotelzinhomaselesnadadisso,preparamosumacamaaquinaentrada.Sãoboaspessoas,vocêslogovãofazeramizade.

—Quandoéocasamento?—dizLalita.—Trouxeumvestidonovo,Aquilino,paraestrearnodia.EoPesadoprecisacomprarumagravata,aquetinhaestavamuitovelhaenãodeixeiqueeletrouxesse.

—Domingo—dizAquilino.—Jáestátudopreparado,aigreja,paga,edepoisvaihaverumafestinhana casa dos pais de Amelia. Amanhã meus amigos vão fazer uma despedida. Mas vocês ainda não mecontaramsobreosmeusirmãos.Estãotodosbem?

—Sim,massonhandoemvirparaIquitos—dizHuambachano.—Atéocaçulinhaquerdarofora,comovocê.

Rumaram para o Malecón e Aquilino leva a mala no ombro e a sacola embaixo do braço.Huambachano fumaeLalitaobserva cobiçosamenteoparque, as casas,os transeuntes,os carros,Pesado,nãoeraumacidadelinda?Comotinhacrescido,nadadissoexistiaquandoelaeragarota,eHuambachanocerto,comumaexpressãodesinteressada:àprimeiravistaparecialinda.

—Vocênuncaesteveaquiquandoeraguardacivil?—dizAquilino.—Não,sóestiveemlugaresdacosta—dizHuambachano.—E,depois,emSantaMaríadeNieva.—Nãosepodeirapé,ospaisdeAmeliamoramlonge—dizAquilino.—Vamostomarumtáxi.—Umdiaqueroirláondenasci—dizLalita.—Seráqueaindaexisteaminhacasa,Aquilino?Vou

chorarquandovirBelén,quemsabeacasaaindaexisteeestáigualzinha.

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—Eoseutrabalho?—dizHuambachano.—Vocêganhabem?—Porenquanto,pouco—dizAquilino.—Masodonodocurtumevaimelhoraronossosalárionos

próximoanos,eleprometeu.Emeadiantouodinheiroparaapassagemdevocês.—Oqueécurtume?—dizLalita.—Nãotrabalhavanumafábrica?—Ondesecurtemoscourosdejacaré—dizAquilino.—Parafazersapatos,bolsas.Quandoentrei

nãosabianada,eagorajámemandamensinaraosmaisnovos.EleeHuambachanogritamparacadatáxiqueveem,masnenhumpara.—Jápassouoenjoodorio—dizHuambachano.—Masagorasintoenjoodacidade.Tambémme

desacostumeidisto.—AcontecequeparavocênãohánadaigualaSantaMaríadeNieva—dizAquilino.—Éaúnica

coisaquelheinteressanomundo.— É verdade, eu não moraria mais na cidade — diz Huambachano. — Prefiro a chácara, a vida

tranquila.QuandopedibaixanaGuardaCivil,disseàsuamãequeiamorreremSantaMaríadeNievaepretendocumprirapalavra.

Umcalhambequeparaàfrentedelescomumestrondodelatas,rangendocomosefossedesmanchar.Omotoristapõeamalanoteto,amarra-acomumacorda,eLalitaeHuambachanosesentamatrás,comAquilinoaoladodomotorista.

— Descobri o que você pediu, mãe — diz Aquilino. — Deu muito trabalho, ninguém sabia,mandavam-meparacáeparalá.Masafinaldescobri.

—O quê?— diz Lalita.Olha embriagada as ruas de Iquitos, com um sorriso nos lábios, os olhoscomovidos.

—OsenhorNieves—dizAquilinoeHuambachano,comumasúbitadeterminação,ficaolhandopelajanela.—Foisoltoanopassado.

—Ficoupresotantotempo?—dizLalita.—DeveteridoparaoBrasil—dizAquilino.—OscarasquesaemdacadeiavãoparaManaus.Aqui

nãoconseguemtrabalho.Eledeveterarranjadoalgumacoisaporlá,seeramesmoumpilototãobomcomodizem.Mas,tantotempolongedorio,talveztenhaesquecidooofício.

— Não pode ter esquecido — diz Lalita, interessada de novo no espetáculo das ruas estreitas epopulosas,comcalçadasaltasefachadascompeitoris.—Pelomenos,finalmenteosoltaram.

—Qualéosobrenomedasuanoiva?—dizHuambachano.—Marín—dizAquilino.—Umamoreninha.Tambémtrabalhanocurtume.Nãoreceberamafoto

quemandei?—Fiqueianossempensarnascoisasdopassado—dizLalita,derepente,virando-separaAquilino.—

EhojevejoIquitosoutravezevocêmefaladoAdrián.—Ocarrotambémdáenjoo—interrompeHuambachano.—Faltamuito,Aquilino?

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IV

JáamanheceentreasdunasatrásdoQuartelGrau,masassombrasaindaestãoescondendoacidadequandoodoutorPedroZevalloseopadreGarcíaatravessamoarealdebraçosdadoseentramnotáxiparadonaestrada.Embuçadoemseucachecol,comochapéupuxadoparaafrente,opadreGarcíaéumpardeolhosfebris,umnarizcarnudoquecresceembaixodeduassobrancelhasespessas.

—Comoosenhorestá?—dizodoutorZevallos,sacudindoabainhadacalça.—Minhacabeçacontinuarodando—murmuraopadreGarcía.—Masvoumedeitarjá,issopassa.—Nãopode ir para a cama assim—diz o doutorZevallos.—Antes vamos tomar um café, uma

bebidaquentecairábem.O padreGarcía faz um gesto de contrariedade, não iam encontrar nada aberto a essa hora,mas o

doutor Zevallos o interrompe adiantando o corpo e dizendo ao motorista: será que o bar de AngélicaMercedesjáestavaaberto?Deviaestar,patrão,eopadreGarcíaresmunga,elaabriacedinho,lánão,esuamãotremediantedorostododoutorZevallos,lánão,tremedenovoevoltaparaasuatocapregueada.

—Deixe de ficar resmungando o tempo todo— diz o doutor Zevallos.—Tanto faz o lugar.Oimportanteéforrarumpoucooestômagodepoisdestanoitepesada.Nãofinja,osenhorsabemuitobemquenãovaipregaroolhoseforparaacamaagora.NobardaAngélicaMercedespodemostomaralgumacoisaeconversar.

Umsoproásperoatravessaocachecol,opadreGarcíasemexenoassentosemresponder.OtáxientranobairrodeBuenosAires,passaemfrenteaoscasarõescomamplosjardinsenfileiradosnasduasmargensdaestrada, contorna o opaco monumento e desliza até o vulto sombrio da catedral. Algumas vitrines daavenidaGraucintilamnamadrugada,ocaminhãodelixoestáemfrenteaoHoteldeTuristaseunshomensdemacacãosedirigemparalá,carregandolixeiras.Ochoferestácomumcigarroacesonaboca,umanesgacinzentacorredosseuslábiosatéobancodetráseopadreGarcíacomeçaatossir.OdoutorZevallosabreumpoucoajanela.

—EntãonãovemàMangacheríadesdeovelóriodeDomitilaYara?—dizodoutorZevallos;nãoháresposta:opadreGarcíaestádeolhosfechadoseroncamal-humorado.

—Osenhorsabequequaseomataramdaquelavez,novelório?—dizomotorista.—Cale-se,homem—sussurraodoutorZevallos.—Seeleouvir,temumataque.—Oharpistamorreumesmo,patrão?—dizomotorista.—Foipor issoqueoschamaramàCasa

Verde?AavenidaSánchezCerroseprolongacomoumtúnele,napenumbradascalçadas,detantoemtanto

sedelineiaasilhuetadeumaarvorezinha.Nofundo,sobreumhorizontedifusodetetoseareais,despontacintilandoumairisaçãocircular.

— Morreu esta madrugada — diz o doutor Zevallos. — Ou acha que o padre García e eu aindaestamosemidadedepassaranoitenacasadaChunga?

—Paraissonãoháidade,patrão—riomotorista.—Umcolegameutransportouumadasmulheresquando foi buscar o padreGarcía, a tal que chamamde Selvática. Eleme contou que o harpista estavamorrendo,patrão,quedesgraça.

OdoutorZevallosolha,distraído,paraosmuroscaiados,osportõescomaldravas,oprédionovodosSolari,asalfarrobeirasrecém-plantadasnascalçadas,frágeisegraciosasemseusquadriláterosdeterra:como

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asnotíciasvoavamnestelugar.Maseletinhaquesaber,patrão,eomotoristaabaixaavoz,eraverdadeoqueopovodizia?,espreitaopadreGarcíapeloretrovisor,eraverdadequeopadretinhaqueimadoaCasaVerdedoharpista?Osenhorconheceuessebordel,patrão?Eramesmotãograndecomodiziam,tãobacana?

—Porqueospiuranos são assim—dizodoutorZevallos.—Depoisde trinta anos, aindanão secansaramdamesmahistória?Envenenaramavidadopobrepadre.

—Nãofalemaldospiuranos,patrão—dizomotorista.—Piuraéaminhaterra.— Minha também, homem — diz o doutor Zevallos. — Além do mais, não estou falando, só

pensandoemvozalta.—Masdevehaverqualquercoisadeverdade,patrão—insisteomotorista.—Senão,porqueopovo

fala,porquerepetemtantoincendiário,incendiário.—Nãosei—dizodoutorZevallos.—Apostoquenãotemcoragemdeperguntaraopadre.—Comogênioqueeletem!Nembrincando—riomotorista.—Maspelomenosmedigaseotal

bordelexistiumesmoouétudoinvençãodopovo.Agoraestãopassandopelosetornovodaavenida:embreveavelhaestradavaiseencontrarcomesta

pista asfaltada e os caminhões que vêm do sul e seguem viagem para Sullana, Talara e Tumbes nãoprecisarãomaisatravessarocentrodacidade.Ascalçadassãolargasebaixas,ospostesestãorecém-pintadosde cinza, aquele altíssimo esqueleto de cimento armado será, talvez, um arranha-céumaior que oHotelCristina.

—O bairromaismoderno vai encostar nomais velho e pobre— diz o doutor Zevallos.—NãoacreditoqueaMangacheríaduremuitotempo.

—VaiteromesmodestinoqueaGallinacera,patrão—dizomotorista.—Vãopassartratoresemcimaefazercasascomoestas,parabrancos.

—Eparaondediaboosmangachesvãocomsuascabraseseusburros?—dizodoutorZevallos.—EondesepoderábeberumaboachichaemPiura,então?

—Osmangachesvãoficarmuitotristes,patrão—dizomotorista.—Oharpistaeraumdeusparaeles,maispopularqueSánchezCerro.Agora tambémvãoacendervelasparadonAnselmoe rezarcomofazemcomasanteiraDomitila.

Otáxisaidaavenidae,aospulos,sacolejando,avançaporumaruelaterrosa,entrecasebresdepauapique.Levantaumanuvemdepoeira e enfurece os cachorros vagabundosque correm, coladosnopara-lamas,latindo,patrão:osmangachestinhamrazão,aquiamanheciamaiscedoqueemPiura.Sobaclaridadeazul,atravésdenuvensdepoeira, seveemcorposdeitadosemesteirasnasportasdascasas,mulherescomcântarosna cabeça atravessando as esquinas, asnosdeolhar sonolento e apático.Atraídospelo rugidodomotor,saemmeninosdoscasebrese,nusouesfarrapados,corrematrásdotáxi,dandoadeus,oquehouve,bocejando,oqueera:nada,padre,jáestavamemterraproibida.

—Deixe-nosaqui—dizodoutorZevallos.—Vamosandarumpouco.Descem do táxi e, de braços dados, devagar, um se segurando no outro, percorrem um caminho

oblíquo, escoltadospelosmeninos quepulam, incendiário!, gritam e riem, incendiário!, incendiário!, e odoutorZevallossimulaapanharumapedraejogá-laseusmerdas,gurisdemerda,aindabemquejáestavamchegando.

A cabana de Angélica Mercedes é maior que as outras e as três bandeirinhas que ondulam em suafachada de adobe lhe dão um ar bem-cuidado e elegante. O doutor Zevallos e o padre García entramespirrando, escolhemdoisbanquinhos eumamesade tábuas grosseiras, sentam-se.Ochão foi regadohápoucotempoetemcheirodeterraúmida,coentroesalsinha.Nãoháninguémnasoutrasmesasnemnobalcão. Aglomeradas na porta, as crianças continuam gritando, esticam as cabeças sujas e hirsutas, donaAngélica!, seus braços magros, dona Angélica!, riem mostrando os dentes. O doutor Zevallos esfrega as

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mãos,pensativo,eopadreGarcía,entreumbocejoeoutro,observaaportacomocantodoolho.AfinalchegaAngélicaMercedes,fresca,roliça,matutina,comabarradasaiatraçandofigurassobreosbanquinhos.OdoutorZevallosselevanta,doutor,elaabreosbraços,masqueprazer,quemilagrevê-loporaquiaestashoras, faz tantos meses que não vinha e estava cada dia mais bonita, Angélica, como fazia para nãoenvelhecer?,qualeraoseusegredo?Eporfimparamdetrocarelogios,Angélica,nãotinhavistoquemeletrouxe?,nãooreconhecia?Umpoucotemeroso,opadreGarcíajuntaospéseescondeasmãos,bomdia,ocachecolmugeasperamenteeochapéuseagitaporumsegundo,VirgemSanta,eraopadreGarcía!Comasmãosjuntasemcimadocoração,osolhosalvoroçados,AngélicaMercedesseinclina,padrecito,quealegriavê-lo,elenempodiaimaginar,quebomqueotrouxe,doutor,eumamãoossudaedesconfiadaseerguesemafetonadireçãodeAngélicaMercedes,retira-seantesqueelaabeije.

—Podenosprepararalgumacoisaquente,comadre?—dizodoutorZevallos.—Estamosmortos,passamosanoiteemclaro.

—Sim,lógico,agoramesmo—AngélicaMercedeslimpaamesacomabarradasaia—,umcaldinhoeumpiqueo?Tambémunsclaritos?Não,aindaécedoparaisso,voufazerunssuquinhosecafécomleite.Mascomonãosedeitaramatéagora,doutor?OsenhorestálevandoopadreGarcíaparaomaucaminho.

Umgrunhido sarcástico sobe do cachecol e o chapéu se endireita, os olhos fundos do padreGarcíafitamAngélicaMercedes e ela para de sorrir, vira o rosto intrigado para o doutor Zevallos que, com oqueixoentredoisdedos,temagoraumarmelancólico:ondeestiveram,doutorzinho?Suavozétímida,suamãoseguraabarradasaiaaalgunsmilímetrosdamesaeestáimóvel:nacasadaChunga,comadre.AngélicaMercedessoltaumgritinho,nacasadaChunga?,estátransfigurada,nacasadaChunga?,tapaaboca.

—Sim,comadre,oAnselmomorreu—dizodoutorZevallos.—Éumanotíciatristeparavocê,eusei.Paratodosnós.Oquesevaifazer,assiméavida.

Don Anselmo?, gagueja Angélica Mercedes, com a boca entreaberta, a cabeça inclinada, morreu,padrecito?, e suasnarinaspalpitammuito rápido, aparecemumas covinhasnasbochechas, osmeninosdaportaestavamcorrendoeelasacodeacabeça,tocaemseusbraços,morreu,doutor?,chora.

—Todomundomorre—rugeopadreGarcía,batendonamesa;ocachecolseabreesuacaralívida,sembarbear,estádeformadapelotremordaboca.—Você,eu,odoutorZevallos, todostêmasuahora,ninguémselivra.

—Acalme-se, homem—o doutorZevallos abraçaAngélicaMercedes, que soluça apertando a saiacontraosolhos.—Acalme-sevocêtambém,comadre.OpadreGarcíaficoumuitonervoso,émelhornãofalarcomele,nãoperguntenada.Vamos,preparealgumacoisaquenteparanós,nãochore.

Angélica Mercedes assente sem parar de chorar e se afasta, com o rosto entre as mãos. No outroaposento começa a falar sozinha, suspirar. O padre García tinha ajeitado o cachecol, agora novamenteenroscadonoseupescoço,etiradoochapéu:cinzentas,arrepiadas,asmechasdecabelodassuastêmporasescondemparcialmenteumcrâniolisoecheiodepintas.Apoiaoqueixonopunho,umarugacavilosacortaasuatestaeabarbamalfeitadáàsbochechasumaspectodecoisagastaesuja.OdoutorZevallosacendeumcigarro. Já é dia, e o sol que inunda o local e doura os bambus secou o chão,moscas azuis e sibilantesinvademoar.Láfora,asvozes,latidos,balidos,zurroseruídosdomésticosaumentamgradativamentee,aolado,AngélicaMercedesreza,murmuraonomedasanteiramisturadocominvocaçõesaDeuseàVirgem,doutor:aquelamachonatinhafeitodepropósito.

—Masparaquê—murmuraopadreGarcía.—Emtrocadequê,doutor?—Nãotemimportância—dizodoutorZevallos,vendoafumaçadesvanecer-se.—Edepois,talvez

nemtenhasidodepropósito.Vaiverfoiporacaso.—Bobagem, elamandou chamar o senhor e amimpor algummotivo—diz o padreGarcía.—

Querianosfazerpassarummaumomento.

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OdoutorZevallosencolheosombros.Recebeumraiodesolnocentrodatestaemetadedoseurostoestádouradaebrilhante;aoutrametadeéumamanchacordechumbo.Seusolhosparecemimersosnumasuavemodorra.

—Nãosounadaperspicaz—diz,apósumapausa.—Nemmeocorreupensarisso.Masosenhortemrazão,talvezquisessemesmofazer-nospassarummaumomento.Éumamulherestranha,aChunga.Acheiqueelanãosabia.

Vira-se para o padre García e a mancha ganha terreno, ocupa todo o rosto, só uma orelha e amandíbula recebem agora o banho amarelo; não sabia, o quê. O padre García olha de lado o doutorZevallos.

—Queeuatrouxeaomundo—odoutorZevalloslevantaacabeçaeestaseacende,suacalvíciesedestaca,reluzenteegranulosa.—Quempodeter lhecontado?Anselmonãofoi,comcerteza.EleachavaqueaChunganãotinhaamenorideia.

—Nestevilarejofofoqueirotudoacabasesabendo—resmungaopadreGarcía.—Mesmotrintaanosdepois,sabe-setudooqueacontece.

— Ela nunca foi ao meu consultório — diz o doutor Zevallos. — Nunca me chamou para coisanenhuma,eagoramechama.Sequeriamefazerpassarummaumomento,conseguiu.Elamefezrevivertudoderepente.

—Asuahistóriaestáclara—grunheopadreGarcíacomosefalassecomamesa.—Eleviuminhamãemorrer,quevejaomeupaimorrertambém.Mas,porqueaquelamachonatinhaquemechamar?

—Oquesignificaisto?—dizodoutorZevallos.—Oquefoi?—Venhacomigo,doutor—avozvemdadireita,retumbanoaltodosaguão.—Agoramesmo,assim

comoestá,doutor,nãohátempo.— Pensa que não o reconheço? — diz o doutor Zevallos. — Saia daí, Anselmo. Por que está se

escondendo?Ficoudoido,homem?—Venha,doutor,rápido—umavozembargadanaescuridãodovestíbuloqueoecorepete,noalto.

—Elaestámorrendo,doutorZevallos,venha.O doutor Zevallos levanta a lanterna, procura e afinal o encontra, não distante da porta: não está

bêbado nem furioso,mas crispado demedo. Seus olhos dançam loucamente nas órbitas inchadas e suascostasseapertamcontraaparedecomosequisessemderrubá-la.

—Suamulher?—dizodoutorZevallos,atônito.—Suamulher,Anselmo?—Podem estarmortos os dois,mas eunão aceito—opadreGarcía dá um soconamesa e o seu

banquinhorange.—Nãopossoaceitaressainfâmia.Dentrodecemanostambémachariainfame.Aporta do vestíbulo se abre e ohomem recua como se visse um fantasma, fogedo conede luz da

lanterna.Afiguradebatabrancadáunspassospelopátio,filhinho,eantesdechegaraosaguão:quemestavaaí?, por que não entravam? Era ele,mãe, o doutorZevallos abaixa a lanterna, escondeAnselmo com ocorpo:tinhaquesairuminstantinho.

—Espere-menoMalecón—sussurra.—Voubuscarminhamaleta.—Podemirtomandoocaldinho—AngélicaMercedespousaduascabaçasfumegantesnamesa.—Já

temsal,numsegundotragoopiqueo.Elanãoestámaischorando,massuavozaindaéqueixosaejogaraumamantapretanosombros.Volta

paraacozinha,agoraquasenãorebolaaoandar.OdoutorZevallosmexeocaldo,pensativo,opadreGarcíalevantaacabaçacomquatrodedos,aproximaonarizeaspiraocheiroquente.

—Eutambémnuncaentendi,naépocacreioquetambémacheiinfame—dizodoutorZevallos.—Agorajáestouvelho,vimuitaáguapassarporbaixodaponteenadamaismepareceinfame.SeosenhorestivesselánaquelanoitenãoodiariatantoopobreAnselmo,padreGarcía,juro.

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— Deus lhe pague, doutor — choraminga o homem enquanto corre esbarrando nas árvores, nosbancosenoparapeitodoMalecón.—Façooqueosenhorpedir,eulhedoutodoomeudinheiro,doutor,todaaminhavida,doutor.

—Estáquerendomecomover?—resmungaopadreGarcíaparaodoutorZevallos,aindaamuralhadoatrásdacabaçaquecontinuafarejando.—Tenhoquecomeçarachorartambém?

—Naverdade,nadadisso temmais importância—sorriodoutorZevallos.—Coisasqueoventolevou,meuamigo.MasporculpadaChunguitavoltaramestanoiteàminhacabeçaecontinuamaqui.Sófaleidissoparadesafogar,nãoligue.

OpadreGarcíasenteatemperaturadocaldocomapontadalíngua,sopra,tomaumgolinho,arrota,grunhe uma desculpa e continua bebendo golinhos e soprando. Pouco depois, Angélica Mercedes voltatrazendoumabandejacomopiqueoesucodelúcuma.Tinhacobertoacabeçacomamanta,doutor,nãoestavabom?,esuavozseesforçaparaparecernatural,muitobom,comadre.Umpouquinhoquente,assimqueesfriassetomaria,equeapetitosoopiqueoquetinhafeito.Já, jáesquentavaocaféparaeles,qualquercoisa era só chamá-la, padrecito. O doutor Zevallos balança a cabaça com um dedo, examinameticulosamenteasuperfícieturvaeredondaqueoscilaeopadreGarcíacomeçaraacortarpedacinhosdecarneeamastigarcomafinco.Mas,derepente,para,todoselessabiam?,eficadebocaaberta:asperdidaseosperdidosqueestavamlá?

— Elas sabiam a história do romance desde o começo, lógico — murmura o doutor Zevallos,acariciandoabordadacabaça—,masnãocreioquealguémmaissoubesse.Haviaumaescadinhaquedavaparaopátiodetrás,eporelasubimosatéatorre,quemestavanosalãonãonosviu.Ládebaixovinhaumbarulho ensurdecedor, Anselmo devia tê-las instruído para que distraíssem os clientes e não deixassemninguémdesconfiardoqueestavaacontecendo.

—Osenhorconheciabemaquele lugar—opadreGarcíamastigadenovo.—Nãodevetersidoaprimeiravezquefoi,imagino.

—Tinhaidodezenasdevezes—dizodoutorZevallos,comumbrilhofugaznosolhos.—Euestavacomtrintaanos.Aflordaidade,meuamigo.

—Porcarias,bobagens—grunheopadreGarcía,massuamãolevaogarfoàboca.—Trintaanos?Eutinhamaisoumenosessaidade.

—Éclaro,somosdamesmageração—dizodoutorZevallos.—Anselmotambém,masumpoucomaisvelhoquenós.

— Já não sobra muita gente daquela época — diz o padre García com um humor rouco. —Enterramostodososoutros.

Mas o doutor Zevallos não o ouve. Está movendo os lábios, piscando, balançando a cabaça atéderramargotinhasdecaldonamesa,homem,comoiaimaginar,nemquandoviuovultonacama,homem,quempodiaadivinhar.

—Nãofiquefalandoparadentro—resmungaopadreGarcía—,nãoesqueçaqueestouaqui.Oquenãopodiaimaginar?

—Queamulherdeleeraaquelacriança—dizodoutorZevallos.—QuandoentreivinacabeceiraumaruivagordaquechamavamdePirilampoenãomepareceudoenteeeujáiafazerumapilhériaeentãoviovultoeosangue.Osenhornãopodeimaginar,meuamigo,nos lençóis,nochão,oquartotodoeraumamanchasó.Pareciaquetinhamdegoladoalguém.

OpadreGarcía não corta, tritura ferozmente os nacos de carne, fura como garfo, aperta contra atravessa.Opedaçogotejantenãosobeatéasuaboca,acriançaestavaseesvaindoemsangue?,ficatremendonoar,comoasuamãoeogarfo,sangueportodososlados?,eumabruscarouquidãoosufoca,sanguedessamenina?Umfiozinhodebabaclaradescepeloseuqueixo,imbecil,queasoltasse,nãoerahoradebeijos,ele

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a estava sufocando, tinha que fazê-la gritar, imbecil: eramelhor esbofeteá-la.Mas Josefinopõeumdedosobreoslábios:nadadegritos,esqueceuquehaviatantosvizinhos?,nãoosouviaconversando?Comosenãoestivesseescutando,aSelváticagritacommaisforçaeJosefinotiraolençodobolso,inclina-sesobreocatreetapaasuaboca.Semsealterar,donaSantoscontinuafuçando,manipulandocomdestrezaasduascoxasmorenas.Eentãoviuorosto,padreGarcía,esuaspernasesuasmãoscomeçaramatremer,eesqueceuqueestavamorrendoeeleestavaaliparatentarsalvá-la,sóatinavaa,sim,sim,olharparaela,nãohaviadúvida:eraaAntonia,meuDeus.DonAnselmotinhaparadodebeijá-lae,caídoaospésdacama,ofereciadenovoseudinheiro,doutorZevallos,suavida,salve-a,eJosefinoseassustou,donaSantos,nãotinhamorrido?Quenãoamatasse,quenãoamatasse,donaSantoseelapsiu:sódesmaiou.Melhorassim,nãoiafazerbarulhoetudoacabariamaisrápido,quemolhassesuatestacomopano.OdoutorZevallospassou-lheabaciacomviolência,quefervessemaiságua,imbecil,choramingandoemvezdeajudar.Estáemmangasdecamisa,decolarinho aberto e, agora, muito sereno. Anselmo não consegue segurar a bacia, ela cai das suas mãos,doutor,quenãomorresse,resgataabaciaechegaengatinhandoatéaporta,doutor,elaeraasuavida,esai.

—Putaqueopariu—murmuraodoutorZevallos.—Queloucura,Anselmo,comopôde,homem,quebestialidadevocêfez,Anselmo.

—Dê-meosaco—dizadonaSantos.—Eagoravoulheprepararummatezinhoeelaacorda.Leveistoeenterrebem,equeninguémveja.

—Havia alguma esperança?—murmurou entredentesopadreGarcíamartirizandoospedaçosdecarne,espetando-osearrastando-osdeumladoparaoutro.—Eraimpossívelsalvaramenina?

—Talveznumhospital—dizodoutorZevallos.—Masnãosepodiatransportá-la.Tivequeoperá-laquaseàscegas,sabendoqueelaestavamorrendo.FoiummilagreaChunguitasesalvar,nasceuquandoamãejáestavamorta.

—Milagre,milagre—resmungaopadreGarcía.—Tudoémilagreaqui.TambémdisseramquefoimilagrequandomataramosQuirogaeameninasesalvou.Seriamelhorparaelatermorridotambém.

—Osenhornãopensanamoçaquandopassapelocoreto?—dizodoutorZevallos.—Eulembrodela, sempre imaginoqueavejo sentadaali, tomandosol.Masnaquelanoitechegueia termaispenadeAnselmoquedaAntonia.

—Poisnãomerecia—repreendeopadreGarcía.—Nempena,nemcompaixãonemnada.Todaessatragédiafoiculpadele.

— Se o senhor o tivesse visto esperneando, beijando meus pés, pedindo que eu salvasse a garota,tambémteriapiedade—dizodoutorZevallos.—SabequesenãofossepelaminhacomadreaChunguitatambémmorreria?Elameajudouasocorrê-la.

FicamemsilêncioeopadreGarcíalevaumpedaçodecarneàboca,masfazumacaretadenojoesoltaogarfo.AngélicaMercedesvoltacomoutrojarrinhodesuconamão,espantandoasmoscascomaoutra.

—Ouviu,comadre?—dizodoutorZevallos.—EstávamosnoslembrandodanoiteemqueAntoniamorreu.Agorapareceumsonho,nãoé?EstavadizendoaopadrequevocêmeajudouasalvaraChunga.

Angélica Mercedes olha muito séria para ele, sem assombro nem inquietação, como se não tivesseentendido.

—Nãomelembrodenada,doutor—dizafinal,emvozbaixa.—Eueraacozinheiradelá,masnãolembro.Paraquefalardissoagora.VouàmissadasoitorezarpordonAnselmo,paraqueeledescanseempaz.Edepoisvouvelarocorpo.

—Queidadevocêtinha?—murmuraopadreGarcía.—Nãolembrocomovocêera.DoAnselmoedasperdidaslembrobem,masnãodevocê.

—Eraumamoleca,padrecito—amãodeAngélicaMercedeséumlequerápido,eficiente:nenhumamoscaseaproximadatravessanemdossucos.

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—Não passava dos quinze anos— diz o doutor Zevallos.— E que bonita, comadre. Todos nósestávamosdeolhonelaeoAnselmoaltolá,nãoémoradora,ninguémbotaamão,cuidavadelacomoumafilha.

—Eu era virgem e opadreGarcía nãoqueria acreditar—umbrilhomalicioso animaos olhos deAngélicaMercedes,masseurostoaindaéumamáscarasevera.—Iameconfessartremendodemedoeosenhorsempresaíadessacasadodiabo,vocêjáestácondenada.Tambémnãoselembra,padre?

— O que se fala no confessionário é segredo — resmunga o padre García com uma espécie derouquidãojovial.—Guardeessashistóriasparavocê.

—Casa do diabo—diz o doutorZevallos.—Ainda acha queAnselmo era o diabo? Ele cheiravamesmoaenxofreouerasóparaassustarosbeatos?

AngélicaMercedeseodoutorsorrieme,debaixodocachecol,logodepois,soaalgumacoisainesperadaetosca,híbridacomoumacessodetosseederisosufocante.

—Naqueletemposóficavalá,naCasaVerde—dizopadreGarcíapigarreando.—Agoraochifrudoestáemtodososlados.Nacasadamachona,narua,noscinemas,Piurainteirasetornouacasadochifrudo.

—MasaMangacheríanão,padrecito—dizAngélicaMercedes.—Aquielenuncaentrou,nósnãodeixamos,santaDomitilanosajudanisso.

—Aindanãoésanta—dizopadreGarcía.—Vocênãoiafazercafé?—Jáestápronto—dizAngélicaMercedes.—Voutrazer.—Faziapelomenosvinteanosqueeunãopassavaumanoiteemclaro—dizodoutorZevallos.—E

agoraperditotalmenteosono.DesdeoinstanteemqueAngélicaMercedesdámeia-voltaasmoscasvoltamesejogamsobreatravessa

decomida,salpicando-adepontosescuros.Unsmeninosesfarrapadoscorremdenovoemfrenteàportae,através das fendas, se veem pessoas que passam falando alto e um grupo de velhos tomando sol econversandonaportadacabanaemfrente.

—Pelomenosestavaarrependido?—gemeopadreGarcía.—Percebiaqueameninatinhamorridoporsuaculpa?

—Saiucorrendoatrásdemim—dizodoutorZevallos.—Ficousecontorcendonoareal,queriaqueeuomatasse.Levei-oparaaminhacasa,dei-lheumainjeçãoemandei-oembora.Eunãoseidenada,nãovinada,váembora.Masnãofoi,desceuatéorioeficouesperandoalavadeira,comosechamava?,aquecriouaAntonia.

—Semprefoidoido—resmungaopadreGarcía.—Espero,porele,quetenhasearrependidoequeDeusotenhaperdoado.

—Emesmoquenãosearrependa, játevecastigosuficientecomtudooquesofreu—dizodoutorZevallos.—Edepois,sabe-seláseelerealmentemereciacastigo.EseaAntonianãofoisuavítima,terásidosuacúmplice?Eseestivesseapaixonadaporele?

—Não diga disparates— resmunga o padreGarcía.—Vou acabar pensando que ficou demiolomole.

—Poiséumacoisaquesempremeperguntei—dizodoutorZevallos.—Asmoradorasdiziamqueeleamimavaequeameninapareciamuitocontente.

—Agoraachanormal?—grunheopadreGarcía.—Roubarumacega, levá-laparaumprostíbulo,engravidá-la.Écertofazerisso?Acoisamaisnormaldomundo?Eledeviaserpremiadoporessagraça?

—Nãotemnadadenormal—dizodoutorZevallos—,masnãolevanteavoz,cuidadocomaasma.Sódigoqueninguémsabeoqueelaachava.AAntonianão sabiaoqueerabomnemoqueeramaue,afinal,graçasaoAnselmofoiumamulhercompleta.Eusemprepensei...

—Cale-se,homem!—eopadreGarcía investea tapascontraasmoscasque fogemespavoridas.—

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Mulher completa! As freiras por acaso são incompletas?Os padres são incompletos porque não fazemosporcarias?Nãovoupermitirquerepitaessasheresiasestúpidas.

—Osenhorestábrigandocomfantasmas—sorriodoutorZevallos.—EusóqueriadizerqueachoqueoAnselmogostavadeladeverdade,equeelaprovavelmentetambémgostavadele.

—Estaconversanãomeagrada—murmuraopadreGarcía.—Nãovamosconcordarnunca,enãoquerobrigarcomosenhor.

—Sófaltavaessa—murmuraodoutorZevallos.—Olhequemchegou.Eramosinconquistáveis,nãoqueriamtrabalhar,sóbeber,sójogar,eramosinconquistáveisequeriam

tomarocafé,puxavida:quemestavaaqui.—Vamosembora—resmungaopadreGarcía,exasperado.—Nãoqueroficarpertodestesbandidos.Mas os León não lhe dão tempo de levantar e avançam batendo palmas, padre García, os cabelos

despenteados,padrecito,osolhoscheiosderessacanoturna.PulamemvoltadopadreGarcía,hojevaicairneveemPiuraemvezdeareia,tentamapertar-lheamão,eraomilagredosmilagres,dãotapinhasemsuascostas, dia de festa para osmangaches, receber esta visita. Estão de camiseta, semmeias, com os sapatosdesamarrados,cheiramasuoreopadreGarcía,escondidoatrásdocachecol,sobochapéuquepôsàspressas,permaneceimóvel,olhandofixamenteparaacomidaagoraatacadanovamentepelasmoscas.

—Nãoadmitoque lhe faltemao respeito—dizodoutorZevallos.—Cuidadocomessas línguas,rapazes.Éumhomemdehábitoecabelosbrancos.

—Masninguémlhefaltouaorespeito,doutor—dizoMacaco.—Estamosfelicíssimosdevê-loaqui,palavradehonra,sóqueremosapertarsuamão.

— Nunca se viu um mangache que não seja hospitaleiro, doutor — diz José. — Bom dia, donaAngélica.Temosquecomemoraresteacontecimento,tragaalgumacoisaparabrindarcomopadreGarcía.Vamosfazeraspazescomele.

AngélicaMercedesvemcomduasxícarasdecafénasmãos,muitoséria.—Porqueessacaradezangada,donaAngélica?—dizoMacaco.—Nãoestácontentecomavisita?—Vocês são o quehá de pior nesta cidade— resmunga opadreGarcía.—Opecadooriginal de

Piura.Nemquemematemvoubebercomvocês.—Nãoseenfureça,padreGarcía—dizoMacaco.—Nãoégozação,estamosmesmocontentesque

tenhavoltadoàMangachería.—Corrompidos,vagabundos—opadreGarcíainiciouumanovaofensivacontraasmoscas.—Com

quedireitosedirigemamim,seusperdidos!—Presteatenção,doutorZevallos—dizoMacaco.—Vejaquemfaltacomorespeitoaquem.—Deixemopadreempaz—dizAngélicaMercedes.—DonAnselmomorreu.Opadreeodoutor

estavamcomele,nãodormiramanoitetoda.Põeaxícaranamesa,voltaparaacozinhae,quandosuasilhuetadesaparecenoaposentodetrás,sóse

ouvemotinidodascolherinhas,osgolesdecafédodoutorZevallos,arespiraçãodifícildopadreGarcía.OsLeónseentreolham,parecematurdidos.

—Viram,rapazes—dizodoutorZevallos.—Nãoédiaparabrincadeiras.—DonAnselmomorreu—dizJosé.—Morreuoharpista,Macaco.—Maseleeraomelhor,doutor—balbuciaoMacaco.—Eraumgrandeartista,doutor,umaglória

dePiura.Eomelhordetodos.Estoucomocoraçãopartido,doutorZevallos.—Eracomoumpaiparatodosnós,doutor—dizJosé.—OBolaseoJovemdevemestarmorrendo

de tristeza,Macaco. Eram seus discípulos, doutor, carne e unha com o harpista.O senhor não imaginacomocuidavamdele,doutor.

—Nósnãosabíamosdenada,padreGarcía—dizoMacaco.—Desculpepelasbrincadeiras.

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—Morreuassim,derepente?—dizJosé.—Ontemmesmoestavatãobem.Jantamoscomeleaqui,doutorZevallos,estavarindoebrincando.

—Ondeestá,doutor?—dizoMacaco.—Temosqueirvê-lo,José,precisamosarranjarumasgravataspretas.

—Estálá,ondemorreu—dizodoutorZevallos.—NacasadaChunga.—MorreunaCasaVerde?—dizoMacaco.—Nemsequerlevaramoharpistaparaohospital?—IstoéumverdadeiroterremotoparaaMangachería,doutor—dizJosé.—Nadavaiserigualsemo

harpista.Balançam as cabeças, consternados, incrédulos, e os monólogos e diálogos prosseguem enquanto o

padreGarcíabebeocafé,semtiraraxícaradoslábiosquedespontamacimadocachecol.OdoutorZevallosjátomouoseueagorabrincacomacolherinha,tentaequilibrá-lanapontadeumdedo.OsLeónsecalam,porfim,esesentamaumamesavizinha.OdoutorZevallosoferececigarros.QuandoAngélicaMercedesentra,poucodepois,estãotodosfumandoemsilêncio,igualmenteaflitosecarrancudos.

—PorissoLitumanãoveio—dizoMacaco.—DeveestarcomaChunguita.— Ela se fazia de indiferente, de pessoa fria — diz José. — Mas por dentro também deve estar

sangrando.Nãoacha,donaAngélica?Osanguefala.—Deveestartriste,talvez—dizAngélicaMercedes.—Mascomelanuncasesabe,poracasofoiuma

boafilha?—Porquefalaisso,comadre?—dizodoutorZevallos.—Osenhorachacertoteropaicomoempregado?—dizAngélicaMercedes.—OdoutorZevallosagoraachatudocerto—repreendeopadreGarcía.—Navelhicedescobriuque

nãohánadadeerradonomundo.—Osenhorfalacomsarcasmo—sorriodoutorZevallos.—Mas,pensandobem,háalgodeverdade

nisto.—DonAnselmomorreriasenãopudessetocar,donaAngélica—dizoMacaco.—Osartistasvivem

dasuaarte.Oquehaviadeerradoemtocarlá?AChunguitalhepagavabem.—Tomelogoocafé,meuamigo—dizodoutorZevallos.—Osonobateuderepente,meusolhos

estãofechando.—Aíestáonossoprimo,Macaco—dizJosé.—Quecaradeluto.OpadreGarcíaenfiaonariznaxícaradecaféesoltaumgrunhidosurdoquandoaSelvática,desapatos

namão,osolhosmuitomaquiadoseabocasempintura,seinclinaàsuafrenteelhebeijaamão.Litumasacode a poeira do terno cinza, da gravata de bolinhas verdes, dos sapatos amarelos. Está com o cabelodespenteadoecheiodebrilhantina,asfeiçõesabatidas,ecumprimentaodoutorZevallosmuitosério.

—Vãofazerovelórioaqui,donaAngélica—diz.—AChungapediuparalheavisar.—Naminha casa?—dizAngélicaMercedes.—Eporquenãoodeixamonde está?Paraquevão

mexercomocoitado.—Querqueelesejaveladonumprostíbulo?—censuraopadreGarcía.—Oquevocêtemnacabeça?—Emprestoaminhacasacomtodoprazer,padre—dizAngélicaMercedes.—Sóqueacheiqueera

pecadoandarcomodefuntodaquiparalá.Nãoésacrilégio?—Poracasovocêsabeoquequerdizersacrilégio?—grunheopadreGarcía.—Nãofaledoquenão

entende.—OBolaseoJovemforamcomprarocaixãoetratardoenterro—Litumasentou-seentreosLeón.

— Depois vão trazê-lo. A Chunga paga tudo, dona Angélica, a bebida, as flores, diz que a senhora sóemprestaacasa.

—AchoótimoqueovelóriosejanaMangachería—dizoMacaco.—Eleeraummangache,queseus

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irmãosovelem.—EaChungagostariaqueosenhorrezasseamissa,padreGarcía—dizLituma,tentandosernatural,

mas sua voz émuito lenta.—Fomos à sua casa para lhe dizer istomas não abriram a porta. Foi sorteencontrá-loaqui.

Acabaçavaziarolaatéochãoeháumtorvelinhodepregaspretasemcimadamesa,comautorizaçãodequem,opadreGarcíaesmurraatravessadepiqueo,quemlhepermitiudirigir-lheapalavra,eLitumaselevantanumpulo,incendiário,masquejeitodefalareraaquele:incendiário.OpadreGarcíatentalevantar-seegesticulaentreosbraçosdodoutorZevallos,canalha,chacal,eaSelváticapuxaopaletódeLituma,quesecalasse,dandogritinhos,quenãofaltasseaorespeito,eraumpadre,quetapassemabocadele.Irialogoparaoinferno,canalha,lápagariatodas,sabiaoqueeraoinferno,canalha?Comorostoinflamado,abocatorta, opadreGarcía treme comoumavara verde eLituma empurra aSelvática semconseguir afastá-la,incendiário, que não o insultasse, que não o chamasse de canalha, incendiário, e o padreGarcía perde,recuperaavoz,eleeraaindapiorqueessaperdidaqueosustentava,eestendeasmãosexasperadasparaovazio,umparasitadaimundície,umchacal,eagoraosLeóntambémestãosegurandoLituma:iaquebrarafuçadessevelho,nãoaguentava,mesmosendopadre,incendiáriodemerda.ASelváticacomeçouachorareAngélica Mercedes levanta um banquinho, balança-o na frente de Lituma como se estivesse disposta aquebrá-loemsuacabeçaseeleavançasseummilímetro.Naporta,portrásdosbambuzais,hácabeçasatentaseexcitadasemvoltadoestabelecimento,olhos,cabeleiras,cotoveladaseumvozeriocrescentequeparecesepropagarpelorestodobairro,eosnomesdoharpista,dosinconquistáveisedopadreGarcíadespontamàsvezesnocoroestridentedosmeninos:incendiário,incendiário,incendiário.AgoraopadreGarcíatosse,debraçosparacima,foradesi,vermelhocomoumabrasa,alínguadefora,eespalhasalivaemvoltadesi.OdoutorZevallossegurasuasmãosnoalto,aSelváticaoabana,AngélicaMercedeslhedátapinhassuavesnascostaseagoraLitumaparececonfuso.

—Qualquerumperdeasestribeirasquandoéinsultadoàtoa—dizcomumavozjávacilante.—Nãoéculpaminha,vocêssãotestemunhasdequefoielequemcomeçou.

—Masvocê lhe faltouao respeitoeeleévelhinho,primo—dizoMacaco.—Passouanoite sempregarosolhos.

—Nãodeviaterfeitoisso,Lituma—dizJosé.—Peçadesculpas,homem,vejacomoodeixou.—Desculpe-me—gaguejaLituma.—Agoraseacalme,padreGarcía.Tambémnãoéparatanto.Mas o padreGarcía continua trêmulo de tosse e de espasmos, e seu rosto está encharcado de baba,

ranhoe lágrimas.ASelvática limpa sua testa coma saia,AngélicaMercedes tenta fazê-lobeberumcopod’águaeLitumaempalidece,estavapedindodesculpas,padre,ecomeçaagritar,oquemaisqueriamquefizesse,apavorado,queelenãomorresse,maldição,etorceasmãos.

—Nãoseassuste—dizodoutorZevallos.—Éaasmaeaareiaqueentrounagarganta.Jávaipassar.MasLitumanãoconseguemaisdominarosnervos, insultavaedepoiselemesmoficavaabatido,ese

lamenta quase chorando entre osLeónque o abraçam, estava arrasado com tanta desgraça, soluça e poralgunsinstantesparecequevairomperemprantos,primo,calma,elesentendiam,eelebatendonopeito:tinhadespidooharpista,lavado,vestidodenovo,ninguémresistiria,eletambémerahumano.Eelesqueseacalmasse,primo, ânimo,mas elenão aguentava,porra,porra,não aguentava, edesabanumbanquinhocomacabeçaentreasmãos.OpadreGarcíatinhaparadodetossire,emboraaindarespirassecomesforço,estácomumaexpressãomaisserena.ASelváticaseajoelhaaoseulado,padrecito,estavamelhor?Eleassente,só que ela era uma perdida, problema dela, grunhindo, infeliz,mas devia ser burra, condenando-se porsustentaruminútil,umassassino,devia serburraeela sim,padrecito,masquenão se aborrecesse,que seacalmasse,játinhapassado.

—Deixeeleinsultarseissootranquiliza,primo—dizoMacaco.

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—Está bem,deixo, eume controlo— sussurraLituma.—Podeme insultar, podeme chamar deassassino,inútil,continue,tudooquequiser.

—Cale-se,chacal—grunheopadreGarcía,jásemímpeto,comumaevidenterelutância,enaporta,portrásdosbambus,ouve-seumaondaderisos.—Silêncio,chacal.

—Estoucalado—enfurece-seLituma.—Masnãomeinsultemais,eusouhomem,nãogostodisso,caleaboca,padreGarcía.Peçaosenhor,doutorZevallos.

—Jápassou,padrecito—dizAngélicaMercedes.—Nãodigapalavrões,no senhorparecepecado,padre,nãoseenfureçaassim.Queroutrocafezinho?

OpadreGarcía tira um lenço amarelado do bolso, está bem, outro cafezinho, e assoa o nariz comforça. O doutor Zevallos alisa as sobrancelhas, limpa a saliva das lapelas com uma expressão decontrariedade.ASelváticapassaamãopelatestadopadreGarcía,ajeitaasmechasdastêmporaseeleadeixaagir,carrancudoedócil.

—Meuprimoquerlhepedirperdão,padreGarcía—dizoMacaco.—Elelamentaoqueaconteceu.—QuepeçaperdãoaDeuseparedeexplorarmulheres—resmungatranquilamenteopadreGarcía,

jáaplacado.—EvocêstambémpeçamperdãoaDeus,seusvagabundos.Evocê,tambémsustentaessesdoisvagabundos?

—Sim,padrecito—dizaSelváticaeháumanovaondaderisosnarua.OdoutorZevallosouveaquilocomardivertido.

—Nãosepodedizerquelhefaltefranqueza—resmungaopadreGarcía,esgaravatandoonarizcomolenço.—Vocêémesmoumaidiotacompleta,suainfeliz.

—Eumesmamedigo issomuitasvezes,padre—reconheceaSelvática, tocandonatestarugosadopadreGarcía.—Etambémdigoaeles,bemnacara,sabe.

AngélicaMercedestrazoutraxícaradecafé,aSelváticavoltaparaamesadosLeóneapósumtempoaspessoas amontoadas na porta e atrás dos bambuzais começam a se dispersar. As crianças voltam às suascorridasempoeiradas,ouvem-sedenovosuasvozesfinaseincômodas.Ospassantesfazemumaltonaportadachichería,metemacabeça,apontamparaopadreGarcíaque,meioabaixado,tomaseucaféaosgolinhos,e partem.AngélicaMercedes, os inconquistáveis e a Selvática falam ameia-voz sobre comidas e bebidas,calculamquantagenteviráaovelório,murmuramnomes,cifrasediscutempreços.

— Já tomouo café?—diz odoutorZevallos.—Tivemos agitaçãodemais porhoje, vamospara acama.

Nãoháresposta:opadreGarcíaestádormindopacificamente,comacabeçainclinadasobreopeito,umapontadocachecolmergulhadanaxícara.

—Adormeceu—dizodoutorZevallos.—Dápenaacordá-lo.—Querquepreparemosumacaminhapara ele?—dizAngélicaMercedes.—Nooutro aposento,

doutor.Vamosagasalhá-lobem,semfazerbarulho.—Não,não,queacordeeeuolevo—dizodoutorZevallos.—Elenuncadáobraçoatorcer,mas

euoconheço.FicoubastanteabaladocomamortedeAnselmo.—Deviaestarcontente—sussurraoMacaco,comtristeza.—SemprequeviadonAnselmonaruao

xingava.Tinhaódiodele.—Eoharpistanãorespondia,faziadecontaquenãoescutavaeatravessavaparaaoutracalçada—diz

José.—Nãooodiavatantoassim—dizodoutorZevallos.—Pelomenosnestesúltimosanos.Masjáera

umcostumedele,umvício.—Masdeviaserocontrário—dizoMacaco.—DonAnselmoéquetinhamotivosparaodiá-lo.—Nãodigaisto,épecado—dizaSelvática.—OspadressãoministrosdeDeus,nãosedeveodiá-los.

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— Se é mesmo verdade que botou fogo na casa dele, que grande alma tinha o harpista — diz oMacaco.—NuncaoouvifalarnemmeiapalavracontraopadreGarcía.

—RealmentebotaramfogonaquelacasadedonAnselmo,doutor?—dizaSelvática.—Masnãoconteiessahistóriacemvezes?—dizLituma.—Paraqueprecisaperguntaraodoutor?—Porquevocêsemprecontadiferente—dizaSelvática.—Perguntoporquequerosabercomofoi

deverdade.—Caleaboca,deixeoshomensconversaremempaz—dizLituma.—Eutambémgostavadoharpista—dizaSelvática.—Tinhamaiscoisasemcomumcomeleque

você,esqueceuqueerameuconterrâneo?—Seuconterrâneo?—dizodoutorZevallos,interrompendoumbocejo.—Claro,moça—dizdonAnselmo.—Igualavocê,masnãodeSantaMaríadeNieva,nemseionde

ficaessepovoado.—Émesmo,donAnselmo?—dizaSelvática.—Osenhortambémnasceulá?Nãoéverdadequea

selvaélinda,cheiadeárvoresedepassarinhos?Nãoéverdadequeláaspessoassãomelhores?—Aspessoassãoiguaisemtodolugar,moça—dizoharpista.—Maséverdadequeaselvaélinda.Já

esquecitudooqueexistelá,menosacor,foiporissoquepinteiaharpadeverde.—Aqui todosmedesprezam,donAnselmo—diz a Selvática.—Todosme chamamdeSelvática,

comoseissofosseuminsulto.—Não leve amal,moça—diz donAnselmo.—É com carinho.Eunãome incomodaria seme

chamassemdeselvático.—Écurioso—odoutorZevalloscoçaopescoço,enquantoboceja.—Maspossível,afinaldecontas.

Tinhapintadomesmoaharpadeverde,rapazes?—DonAnselmo eramangache— diz oMacaco.—Nasceu aqui, no bairro, e nunca saiu daqui.

Ouvi-odizermilvezessouomaisvelhodosmangaches.—Claroquetinhapintado—afirmaaSelvática.—EsempremandavaoBolaspintardenovo.—Anselmo, selvático?—diz o doutorZevallos.—É possível, afinal de contas, por que não, que

curioso.—Mentiradela,doutor—dizLituma.—ASelváticanuncanosdisseisso,acaboudeinventar.Senão,

porquesóresolveucontaragora?—Ninguémperguntou—diz aSelvática.—Vocênãodizqueasmulheres têmque ficardeboca

fechada?—Eporque lhecontouisso?—dizodoutorZevallos.—Antes,quandonósperguntávamosonde

tinhanascido,elesempremudavadeassunto.—Porqueeutambémsouselvática—dizelaelançaumolharorgulhosoemvolta.—Porqueéramos

conterrâneos.—Vocêestácaçoandodenós,recolhida—dizLituma.—Recolhidamasbemquevocêgostadomeudinheiro—dizaSelvática.—Meudinheirotambém

lheparecerecolhido?OsLeóneAngélicaMercedessorriem,Litumafranziuatesta,odoutorZevalloscontinuacoçandoo

pescoçocomolhosmeditabundos.—Nãomeprovoque,garota—Litumasorriartificialmente.—Nãoéhoraparadiscussões.—Émelhornãoirritá-la—dizAngélicaMercedes.—Semelavocêmorredefome.Nãosemetacom

ohomemdafamília,inconquistável.OsLeónbatempalmas,seusrostosnãoestãomaisdelutoesimmuitoalegres,eLitumatambémacaba

rindo, dona Angélica, de bom humor, ela podia ir embora quando quisesse. Vivia grudada nele feito

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marisconapedra,tinhamaismedodeJosefinoquedodiabo.Seodeixasse,ooutroamatava.—Anselmonuncamaislhefaloudaselva,moça?—dizodoutorZevallos.—Eramangache,doutor—afirmaoMacaco.—Elainventouqueeraseuconterrâneosóporqueestá

mortoenãopodesedefender,parabancaraimportante.—Uma vez perguntei se ele tinha família lá—diz a Selvática.—Quem sabe, disse, já devem ter

morridotodos.Masoutrasvezesnegavaedizianascimangacheevoumorrermangache.—Viu,doutor?—diz José.—Seeledissealgumavezqueeraconterrâneodela, estavabrincando.

Finalmentevocêfalouaverdade,prima.—Nãosousuaprima—dizaSelvática.—Souumaputaeumarecolhida.—QueopadreGarcíanãoouçasenãotemoutroataque—dizodoutorZevallos,comodedonos

lábios.—Eoquehouvecomooutroinconquistável,rapazes?Porquenãoandammaiscomele?—Brigamos,doutor—dizoMacaco.—ProibimossuaentradanaMangachería.—Eraumsujeitoruim,doutor—dizJosé.—Mápessoa.Nãosoubequecaiunofundodopoço?Foi

atépresocomoladrão.—Masantesvocêseraminseparáveis,viviamatazanandoapaciênciadetodaPiurajuntocomele—

dizodoutorZevallos.—Oproblemaéqueelenãoeramangache—dizoMacaco.—Ummauamigo,doutor.—Precisamoscontratarumpadre—dizAngélicaMercedes.—Paraamissa,etambémpararezarno

velório.Aoouviristo,osLeóneLitumasimultaneamentefechamacara,franzemocenho,concordam.—AlgumpadredoSalesiano,donaAngélica—dizoMacaco.—Querqueeuaacompanhe?Háum

simpático,quejogafutebolcomosmeninos.OpadreDoménico.—Sabe futebolmasnão sabe espanhol—grunhe afônico o cachecol.—OpadreDoménico, que

disparate.—Está bem, padre—diz AngélicaMercedes.—É para fazer um velório comoDeus quer, sabe?

Quempoderíamoschamar,então?OpadreGarcíaestáempé,ajeitandoochapéu.OdoutorZevallostambémtinhaselevantado.—Euvenho—opadreGarcíafazumgestoimpaciente.—Aquelamachonanãopediuqueeuviesse?

Paraquetantofalatórioentão.—Sim,padrecito—dizaSelvática.—AsenhoraChungapreferiaosenhor.OpadreGarcíaandaatéaporta,encurvadoeescuro,semlevantarospésdochão.OdoutorZevallos

puxaacarteira.—Nempensenisso,doutor—dizAngélicaMercedes.—Éofertadacasa,pelaalegriaquemedeu

trazendoopadre.—Obrigado,comadre—dizodoutorZevallos.—Masdeixodequalquermaneira,paraasdespesas

dovelório.Atélogomais,eutambémvenhoestanoite.ASelváticaeAngélicaMercedesacompanhamodoutorZevallosatéaporta,beijamamãodopadre

Garcíaevoltamparaachichería.Debraçosdados,opadreGarcíaeodoutorZevalloscaminhamnomeiode um terral, sob um sol hostil, por entre burros carregados de lenha e de vasilhas, cachorros lanudos ecrianças, incendiário, incendiário, incendiário, com vozes incisivas e infatigáveis.O padreGarcía não sealtera: arrasta os pés com afinco e avança, com a cabeça abaixada sobre o peito, tossindo e pigarreando.Quandoentramnumaruazinhareta,umrumorpoderosovemaoseuencontroeosdoistêmqueseapertarcontraumacercadebambuparanãoseratropeladospelamassadehomensemulheresquevemescoltandoumvelhotáxi.Umabuzinaraquíticaedesafinadacortaoarotempotodo.Doscasebressaigentequeseincorporaaobulício,algumasmulheressoltamexclamaçõeseoutraserguemosdedosemcruzparaocéu.

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Umgaroto para à sua frente sem fitá-los, comos olhos vivazes e atordoados, o harpistamorreu, puxa amangadodoutorZevallos,vinhaalinaqueletáxi,comsuaharpaetudo,esaidisparado,gesticulando.Porfim,amultidãoterminadepassar.OpadreGarcíaeodoutorZevalloschegamàavenidaSánchezCerro,dandopassinhosmuitocurtos,exaustos.

—Euvireibuscá-lo—dizodoutorZevallos.—Vamos juntosparaovelório.Tentedormirumasoitohoraspelomenos.

—Estábem,estábem—resmungaopadreGarcía.—Nãomeamolecomtantosconselhosotempotodo.

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Glossário

Achuales:triboindígenadaAmazônia.Aguarunas:triboindígenadaAmazônia.Akítai:túnicadetearusadapelasmulheres.Ayañahui:vaga-lume,noidiomaquéchua.Boras:triboindígenadaAmazônia.Cajón:instrumentomusicaldepercussão(“caixa”)deorigemafro-peruana.Capanahua:árvoretípicadaregiãodeLoreto.Chicha:bebidaalcoólicaqueseobtémporfermentaçãodomilho.Chichera:vendedoradechicha.Chichería:estabelecimentoondesevendechicha.Chifa: culinária peruana de origem chinesa; a palavra também se aplica aos lugares onde se servem esses

pratos,geralmentepequenosrestaurantespopulares.Chulla-chaqui:diabodaflorestaquesequestracrianças,namitologiadosíndiosperuanos.Chulucanas:nomedeumpovoadodointeriordePiura,aonortedoPeru.Chupe:pratotípicodeArequipa(guisadodecamarõescomarrozelegumes).Claritoamares:chichacamponesacommuitaespuma,tambémchamadadechichadestilada.Corrido:composiçãomusicalcantadaaduasvozes,comumatodaaAméricaLatina.Galinaço: Adaptação ao português de gallinazo, que significa urubu e designava (não injuriosamente) os

habitantesdaGallinacera.Gallinacera:favelanacidadedePiurahabitadaprincipalmentepornegros.Huambisas:triboindígenadaAmazôniaperuana.Huayno: gênero de dança emúsica andina de origem pré-colombiana, considerada a dança nacional do

Peru.Itípak:túnicafeitanotear.Jirón:viaurbanaformadapeloentrecruzamentodeváriasruas.Lamistas:triboindígenadaAmazôniaperuana.Marinera:dançaentreduaspessoasseparadas.Masato: bebida preparada commandioca,mastigada e cuspidanum recipiente, emque se fermenta com

água.Muratos:triboindígenadaAmazôniaperuana.Pachamanca:literalmente,“panelanaterra”.Guisadodecarne,vegetaisetubérculosquesecozinhadebaixo

daterra,comocalordaspedras.Pasillo:dançatípicaperuana.Picantería:restaurantepopularondeseservempetiscospicantes,muitotemperados.Piqueo:pratotípico,combinadodepratosfriosservidocomoentrada.Secodechabelo:fritadadecarnesecacombananaamassada.Shapras:triboindígenadaAmazôniaperuana.Tondero:dançaegêneromusicaldonorteperuano.Triste:cançãodonortedoPeru,geralmentetratadeamoresnãocorrespondidos.

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Urakusas:triboindígenadaAmazôniaperuana.Yaguas:triboindígenadaAmazônia.