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Mário Tavares Chico 1905—1966

Colectânea subsidiada pelo INSTITUTO DE ALTA CULTURA

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António Jorge Dias Sílvio de Vasconcelos George Kubler Luigi Crema Rodrigo Mello Franco de Andrade Lúcio Costa Fernando Peres Guimarães Mário de Castro Mário Barata Artur Nobre de Gusmão Paulo Thedim Barreto Maria João Madeira Rodrigues Joaquim Veríssimo Serrào Artur Moreira de Sá Lygia Martins Costa Augusto Silva Telles Renato Soeiro Irisalva Moita José Maia Atayde José-Augusto França Manuel Rio-Carvalho Odylo Costa, Filho Carlos de Azevedo Robert Smilh Rubén Andresen Leitão Vitorino Nemesio Abel de Moura. Jorge Pais da Silva Paulo Santos Paul Antoine Evin Fernando Chueca y Goitya

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MÁRIO TAVARES CHICÓ, O HOMEM E O AMIGO

Conheci o Prof. Mário Tavares Chicó em Évora, numas férias de verão, durante a II Grande Guerra Mundial, há quase 30 anos. Foi-me apresentado nessa altura pelo Dr. Luís Silveira, que eu tinha encontrado na Alemanha, em 1935.

Eu vinha mostrar Portugal a minha Mulher, e Évora era um dos pontos fundamentais do programa. Chicó foi o nosso cicerone, com aquela simplicidade fidalga de quem gosta de comunicar e de ensinar sem o fazer sentir.

Ficámos com a óptima impressão de ter conhecido um director de Museu, absolutamente senhor do seu assunto, e cujo saber trasbordava do Museu para todos os monumentos de Évora e que, ao mesmo tempo, era profundamente civilizado.

De tempos a tempos, nas minhas vindas a Lisboa, encon-travamo-nos, e ficava-me sempre uma agradável recordação desse encontro.

Em 1950, fizemos ambos parte da delegação portuguesa ao Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros em Washington, e quis a sorte que ficássemos sentados um ao lado do outro no avião. Nesses dias de convívio com colegas estrangeiros, as nossas relações estreitaram-se mais e começou a nascer uma grande simpatia mútua.

No decorrer dos anos viajámos muito, os nossos horizontes foram-se alargando em relação às gentes e às coisas, permitindo conversas sobre os temas mais variados. Chicó tinha sempre uma opinião sua, mas nunca a conversa tomava ar de polémica, nascida da necessidade de a fazer prevalecer. Não era um homem de discussão — era um homem de diálogo, com respeito pelo opositor.

A minha admiração por Mário Tavares Chicó nunca foi desiludida; pelo contrário, cada vez cresceu mais, até se tornar numa verdadeira e profunda amizade, que hoje se transformou numa grande saudade.

Durante os anos em que fui professor da Faculdade de Letras, as relações com Mário Chicó amiudaram-se. Almoçávamos juntos, pelo menos, uma vez por semana e foi sempre enorme o proveito que tirei desses encontros regulares durante vários. anos.

Chicó era, além do seu vasto saber, um representante de um tipo de homem europeu, hoje extremamente raro. Era o europeu de raiz greco-latina, mas homem do seu tempo e aberto a todos os problemas da cultura viva. Era daqueles para quem a forma e a beleza tanto estavam num quadro, como numa catedral, numa casa rústica, como num livro, no convívio com outra pessoa, como numa refeição bem preparada, num bom vinho ou num concerto de câmara. Não era de maneira nenhuma o tipo de super-especializado, ambicioso de publicar, invejoso, competidor, maledicente, angustiado com falta de tempo, como é hoje tão frequente na nossa profissão. Creio mesmo que não tinha qualquer ambição que não fosse a de ser um intelectual, que se realiza harmoniosamente na vida de todos os dias. E realizava-se tanto na cátedra, como na conversa, numa conferência, num colóquio, como num trabalho que escrevesse.

Talvez ninguém me desse o bem-estar que me dava o Chicó. O seu equilíbrio perfeito servia-me de espelho, onde por contraste via muitos dos meus defeitos e fraquezas, e sobretudo os defeitos e fraquezas da grande maioria dos homens. Chicó, o peripatético sorridente, não tinha complexos de inferioridade, nem de superioridade, não tinha sentimentos de frustração, nem de angústia, não tinha inveja, nem ódios. Na sua conversa não se ouvia uma palavra violenta, nem criticava ninguém com azedume. Quando fazia uma referência crítica a alguém, usava sátiras cheias de finura e de espírito e, nesses momentos, os seus olhos azuis-claros tinham um brilho agaro-tado, enquanto com a mão tapava a boca, naquele gesto que lhe era tão peculiar.

As nossas conversas sobre cultura portuguesa eram intermináveis. Excelente observador, relacionando com facilidade dados de diferentes ramos do saber, as suas opiniões e objec-ções eram sempre pertinentes e fecundas. Deambulador infatigável, nunca escravo do tempo, Chicó era um dos poucos portugueses verdadeiramente civilizados que conheci, inteiramente despido do provincianismo que, muitas vezes, é aflitivo, mesmo em pessoas muito sabedoras.

Para o fim da vida, que aliás eu estava longe de prever, o reumatismo apoquentava-o. A grande pasta com fotografias e diapositivos que sempre o acompanhava, foi substituída por uma pasta leve. As mãos começavam a deformar-se, mas nunca se queixava. As idas e vindas ao Brasil, com as mudanças bruscas de clima agravavam o seu mal, mas na sua fisionomia nunca transparecia a preocupação ou o sofrimento. Vivia com a maior dignidade, sem querer dar aos outros o espectáculo

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deselegante do sofrimento.

Quando lhe dizíamos que não devia comer certas coisas, ou beber vinho, porque estava a tomar cortisona, respondia sorrindo que era precisamente para poder comer e beber o que lhe apetecia, que tomava as drogas.

Esta atitude podia parecer um pouco inconsciente; mas eu creio que era de pura coerência. A vida tinha de seguir o seu ritmo normal, com a harmonia e a elegância de sempre. Ele não era homem para a alterar de qualquer maneira.

A doença não conseguiu vencê-lo, a não ser pelo aniquilamento, pois quando o visitei poucos dias antes de nos deixar, Chicó, já só com a pele sobre os ossos, continuava a conversar e os seus olhos a sorrir da mesma maneira agarotada. Não lhe ouvi um queixume, uma frase de desânimo, era o Chicó de sempre, que a natureza devorava mas não conseguia dominar.

Viveu com a elegância, a nobreza e a harmonia de um homem grande, e deixou esta vida fiel aos princípios que sempre soube manter.

ANTÓNIO JORGE DIAS

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Tive a ventura de desfrutar da amizade de Mário Chicó de três maneiras distintas. Na primeira delas estavamos ambos no Brasil onde o Mestre pronunciava conferências. Por todo o tempo em que estivemos juntos só falou-me de Portugal, Descreveu-me seu país e seu povo como se dissesse de seu próprio lar e de sua família. Referiu-se à história portuguêsa com tanta intimidade e minúcia como se a tivesse vivido. Os Mosteiros, as Igrejas, as Fortificações, os artistas, Portugal por inteiro desfilou em suas palavras, com precisão extraordinária, enriquecido por um amor e saudade ostensivos.

De certa maneira surpreendeu-me sua conduta. Estavamos justamente a percorrer povoações tradicionais brasileiras que Mário viera conhecer, mas que parecia desprezar, com a atenção voltada para sua terra.

Disse que parecia desprezar porque, mais tarde, nos encontramos em Lisboa onde permaneci por alguns meses, pes-quizando a Colecção Pombalina na Biblioteca Nacional, por deferência da generosa Fundação Calouste Gulbenkian sob empenho de Mário. Contràriamente ao que esperava, em consequência de nosso conv,vio no Brasil, o querido amigo então sòmente se referiu ao meu país. Demonstrou à exaustão o interêsse que havia dedicado aos monumentos brasileiros. Recordamo-nos com carinho dos amigos comuns. Mário revelou-me vários estudos que vinha empreendendo para as possíveis influências sofridas pela arquitetura brasileira dos primeiros séculos, que entendia próxima de soluções encontradiças nas províncias ultramarinas lusitanas.

Concluí que seu conhecimento e amor pelas coisas de sua terra incluia o Brasil, extravasando-se por regiões e mares onde seu povo havia deixado testemunhos imperecíveis de sua ação civilizadora.

O terceiro contato que mantivemos foi epistolar. Corres-pondiamo-nos com frequência porque Mário, pronto nas respostas, as exigia com amabilidade impossível de ser inatendida. Muitas idéias, consultas e observações trocamos em cartas que diziam da premente necessidade de um maior entendimento cultural luso-brasileiro.

Pouco tempo antes de sua morte, estavamos os dois a projetar uma exposição da arte portuguêsa no Chile. Com ela pretendiamos inaugurar um trabalho conjunto em benefício da divulgação dos valores de nossas pátrias no mundo hispano-americano. Embora já acamado, Mário não escondia seu entusiasmo pela iniciativa e, juntos, imaginavamos outras.

Ainda esperava carta sua, com auspiciosas notícias, quando colheu-me a surpresa de sua morte. A exposição que haviamos programado, lamentavelmente não poude ser realizada, a despeito da continuidade de meus esforços.

O falecimento de Mário sensibilizou-me profundamente. Ademais, surpreendeu-me porque nunca me havia confessado senão moléstia banal, que esperava debelar de pronto. É que sua dedicação à cultura superava de muito sua preocupação consigo mesmo, e seus próprios males.

Se alguma coisa cá do Brasil se pode dizer de Mário Chicó —e creio que êle gostaria que fôsse dita— se alguma característica fundamental de sua personalidade devesse ser enfatizada, não seria outra senão aquela que se consubstancia em seu amor incomensurável pelos valores produzidos por seu povo, aquem ou além mar. A sua terra e a seus amigos entregou-se de corpo inteiro por tôda sua vida. Não trazia consigo outra preocupação. Cada palavra pronunciada, cada gesto seu, cada iniciativa — nos museus que organizou, nas exposições, nas conferências, nos desimportantes colóquios a dois— revelava sempre a constância de sua dedicação e o exclusivismo de seu pensamento.

Se alguma coisa cá do Brasil se pode dizer da importância de sua personalidade, nada mais significativo de que o trabalho realizado pela união cultural luso-brasileira. Não creio ninguém mais tenha tanto alcançado nêsse sentido, com o só concurso de sua atuação pessoal, do que Mário Chicó. Muito além de suas palavras, seu exemplo demonstrou o quanto portuguêses e brasileiros se confundem e se devem confundir culturalmente. Não preconizava; agia. E em agindo, tornou-se de fato, élo inquebrantável entre povos irmãos. Élo que por tôdas as razões deve ser mantido e reforçado, multiplicado e compreendido, cada vez mais, para benefício comum da gente de lingua portuguêsa.

Mário Chicó, ademais de amigo muito querido, há de ser, perenemente, a sombra estimuladora do entendimento luso--brasileiro. Sua memória continuará, atravez o tempo, a estimular a união cultural de brasileiros e portuguêses, em torno das realizações progressas de ambos, para maior glória dos pósteros. Essa a homenagem maior que a êle se prestará, pois inteiramente conforme os objetivos e desejos que por tôda a vida perseguiu.

SÍLVIO DE VASCONCELOS

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My grateful recollections over many years of friendship with Mário Chicó are perhaps best concentrated in the record of a trip my wife and I made with him to Évora in 1964. His wife and their daughter with her fiancé were of the party, and we had the incomparable pleasure of seeing that magical city through the eyes of the man who installed its museums, and who knew its past as one who had studied there as a youth.

One for our main objectives was to examine the Cartuxa in the light of the drawings here first published, which I recently found in Madrid. Many of the observations I record now were made directly on the site with Mário Chicó and the Prior, Dom Pedro Domecq, who graciously allowed us to visit and photograph.

Giovanni Vicenzo Casale was an Italian architect active in Portugal from 1586 until at least 1602. His career is known mainly by a portfolio of his drawings in Madrid.1 Casale was probably Florentine by adoption if not by birth, as the portfolio includes work by Giovanni Angelo Montorsoli, the Florentine sculptor, whom the portfolio index mentions as the teacher of Casale, and as a pupil of Michelangelo.2 Casale's own work in Italy, where he had been employed as a military engineer by Philip II, is represented by drawings for fountains at Tivoli very much like Montorsoli's (fos. 34-35), and a drawing for the royal chapel in Naples (fo. 94) as well as designs for the royal stables there (fo. 146). Both Montorsoli and Casale were Servite friars.

In 1586 Casale was ordered to Portugal by Philip II in order to direct works of military engineering. He arrived with a nephew, Alessandro Massay, who remained in Portugal at least until 1618.3

Among Casale's military projects in Portugal were plans in 1589 for an unexecuted remodelling of the Manueline Tôrre de Belem in connection with an overall modernization of the defenses of the Tagus estuary. These preparations were meant for the defense of Lisbon against an English invasion, suppor-ting the pretender. Dom António. Casale's instructions were to increase the open water between tower and shore and to point its batteries at Caparica. To achieve these aims, Casale recommented demolishing the tower and enlarging the platform with a huge apron pointing across the Tagus, as well as case-mates commanding east and west approaches. Fortunately none of this was done, but Casale's three alternate designs survive as documents of the military preparation of Lisbon under Viceroy Albert.

Casale's major work was the new Cartuxa at Evora, which he began soon after arrival in Portugal for Dom Teotónio de Braganza in 1587. Several other plans had been submitted for this large monastery outside the city, including designs by Tiburcio Spanoqui another military engineer, who was «Comendador» and «Engenheiro geral das Espanhas», and by Felipe Terzi, as well as by Juan Gómez de Mora, «architect to the Spanish King and disciple of Juan de Herrera.» The projects by Spanoqui and by Terzi are missing from the portfolio, but Juan Gómez de Mora's are still in it (fols. 51-4) as well as a plan of the Carthusian monastery and church of S. Croce in Gerusalemme at Rome (fol. 62).4 Casale's plans are on fols. 55, 61; and none is missing: the index describes them as «the plans on which building began at the order of the Archbishop of Evora.»

Juan Gómez de Mora's designs are less extensive and more asymmetrical than Casale's, and they resemble S. Croce in Rome, in having a large cloister behind the church, and a smaller cloister for lay brothers flanking the church. The cells are ample 4-room apartments, each with its garden, and a living room 18 feet square with fireplace, study, bedroom, and vetisbule. The elevations are in the Madrid manner of Juan Gómez de Mora, all on one story with simple Tuscan mol-dings, and a groin-vaulted church 33 Castilian feet wide and 50 feet high.

Casale's plans5 made better use of the sloping site, with the cells at a lower level than the cloister,

1 Biblioteca Nacional, sección de Bellas Artes. An index ot the portfolio in Portuguese, made in the seventeenth century, enumerates 96

leaves (of which three were missing in 1963). 2 Biblioteca Nacional, sección de Bellas Artes. An index ot the portfolio in Portuguese, made in the seventeenth century, enumerates 96

leaves (of which three were missing in 1963). 3 A. Vieira da Silva, «Torre de Belém. Projectos de remodelação no século XVI», Arqueología e História, VI (1927-8), 178-183;

Pellegrino António Orlandi, Abecedario •pittorico, Naples, 1733, 154. Massay com-posed a Descripção do Reino do Algarve (1621, unpublished MS In possession of A. Vieira da Silva In 1928) containing 39 views of towns and fortresses in Portugal.

4 Spanoqui, fols. 48, 47; Terzi, fols. 48, 49, 50. The portfolio con-tains loose leaves, of which these numbers are missing, but the des-criptions exist in the Portuguese inde

5 The portfolio lacks one ot the drawings enumerated in the index (66). The one numbered 65 is a plan only of the southern por-tion trom atrium to sanctuary, ad it is probably a first draft, filled with correcions and additions, such as an entrance portico, and more stairs. N° 67 is a fair copy of a further stage ot elaboration in the plan. N° 68, signed by Teotónio de Braganza and by the Catalan prior, Joan Bellot, is a nearly complete fragment of the aproved desig. No 59 is a project for the ideally complete monastery, lacking some correc-tions in N° 53.

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and access to the cloister by spiral stairs. The purpose of having the cells at a lower level was to benefit from the runoff from the cloister roofs for the toilets and gardens of the monks. The entire design was enclosed within a quadrangle about 600 x 800 palmos (10 palmos de Portugal = 14 pies de Castilla) having offset towers at the corners. The church was larger than the Spaniard's, and it had a domical vault over the altar as well as an ample vaulted narthex and an imposing series of Tuscan bays in the nave. The main cloister elevations were far loftier, and the design in every respect excluded the modest aims of Juan Gómez de Mora, even through the cells in both were for the same number of occupants. Casale's elevations are as distinctly Florentine, as Juan Gómez de Mora's are Spanish, but the plans by Casale reflect his Spanish travels6, in the atrium and symmetrical cloisters surrounding the church within a rigorously proportioned envelope evoking the Escorial more than any Italian building.

Casale's buildings were ready for occupancy by a group of Catalan Carthusians in 1598, having cost 200 000 cruzados. The outer portico today bears the date 1604, and in 1622, J. B. Lavanha noted that parts of the monastery were still in cons-truction, but that «when completed would be among the best houses of the Order».7

A manuscript account in the Biblioteca pública at Evora (Cod. CVII, 1-28, 286 fos.), entitled «Inventario de tudo o que Arcebispo tem dado aos Padres Cartuxos do Mosteiro de Scala Coeli... (1588)» enumerates gifts made between August 1587 and June 1598 including every kind of perishable supplies and permanent equipment, as well as slaves and livestock. The establishment probably began to function as soon as building began, with lay brithers serving as the labor force.

In 1663 when Juan de Austria besieged Evora, the Cartuxa was occupied by Spanish troops, and the church suffered severe damages, being rebuilt at the end of the century, under Pedro II (regnavit 1667-1706). The nave received a new barrel vault like that of the Espirito Santo, and the church façade was entirely rebuilt by using stones salvaged from the ruins of Casale's Doric narthex and outer atrium porch.

New at the end of the seventeenth century were certainly the Ionic and Corinthian half-columns of the upper façade, and the bulbous finials and balusters. Retained from Casale's narthex are the Doric half-columns and entablature which now form the alpendre or porch. The façade we now see thus summarizes the course of the seventeenth century in Portu-guese architecture, having Italianate forms below, and elements of northern, Netherlandish fantasy in the upper portions. The two portions are separated by three generations and the Res-toration, and they mark the increasing hold of Low Countries ornament upon Portuguese architecture.

Lisbon, February 1969

GEORGE KUBLER

No 60 seems to be the long section corresponding to No 59. A typical apartment-cell on the main cloister appears in two versions on N° 61.

6 The portfolio contains Casale's drawings of the cathedral of Segovia (fol. 68), his plans tor the remodelling of Villavicioso de Odón (fol. 20) and ot S. Millán de la Cogolla (fols. 172, 173), and a drawlng of a crane at the Escorial (fol. 44).

7 Viagem, 1622, 6v.cf. Guia de Portugal, II, 79, and A. F. Barata, Evora antiga, Evora, 1909, 102-103.

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A causa delle mie cattive condizioni di salute rispondo con ritardo al cortese invito a collaborare al volume in ricordo del compianto prof. Mario Tavares Chicó.

Purtroppo il mio contributo non può che essere modesto anche se è in me tuttora vivissimo il ricordo della figura dell'illustre studioso e il rimpianto per la sua scomparsa. Ricordo che è suprattutto legato alla interessantissima mostra dell'architettura barocca portoghese che il prof. Chicó orga-nizzò a Milano nel marzo del 1961 e all'illustrazione che ne fece con la sua profonda conoscenza dell'argomento e con la sua forza animatrice. Fu allora mia cura che i miei Assistenti e Allievi del Politecnico approfittassero delia preziosa occa-sione per acquistare una migliore conoscenza di una cosi importante area artistica.

Ebbi la fortuna di incontrarmi più di una volta in quei giorni col prof. Chicó, di accompagnarlo nella visita a un gruppo di monumenti lombardi e di discuterne con lui i pro-blemi.

A questo avrebbe dovuto far seguito un altro incontro a Lisbona, dove io avrei dovuto tenere una serie di conferenze. Purtroppo l'esecuzione di questo progetto, a me carissimo, fu in un primo tempo rimandata per altri miei impegni e annullata poi per una mia malattia, e ne provo ora ancor più profondo rammarico.

É per me questa una gradita anche se triste occasione per ricordare una personalità come quella del prof. Chicó che mi è rimasta e mi rimane quanto mai presente per il suo valore scientifico e per le sue qualità di uomo.

LUIGI CREMA

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UM PROJETO DO PROFESSOR MÁRIO CHICÓ PARA A UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Embora seja de singular interêsse esclarecer e divulgar o que representou a contribuição do Professor Mário Chicó à obra de cooperação intelectual luso-brasileira, as limitações do texto incumbido a cada um dos colaboradores desta publica, em homenagem à sua memória, não permitem fazê-lo aqui. Cabe, entretanto, aproveitar-se a oportunidade para dar conhecimento, em Portugal e no Brasil, de um trabalho do grande e saudoso mestre, que merece a leitura atenta dos meios interessados nos dois países, pela atualidade da matéria tratada.

O assunto é a organização de cursos universitários e administrativos visando à formação de museólogos e profissionais de especialidades afins, problema que os círculos responsáveis portuguêses e brasileiros consideravam na ocasião e consideram ainda no momento com atenção particular, os primeiros porque então planejavam a reformulação consumada pelo Decreto-lei n.° 46.758, promulgado em Lisboa em 18 de dezembro de 1965, enquanto os segundos diligenciam por adotar reforma com objetivo semelhante, do lado brasileiro.

Professor universitário de admirável capacidade, além de organizador e diretor de museu, com atributos de erudição e finura de sensibilidade artística raramente reunidos no mesmo indivíduo, Mário Tavares Chicó preocupava-se desde algum tempo com aquêle problema, que em Portugal e no Brasil se impunha aos responsáveis, apresentando aspetos não muito diversos. Lá e cá, museólogos em número de insuficiência chocante em relação às necessidades das instituições do gênero. Meios também insuficientes para a formação e o aperfeiçoamento dos referidos especialistas. Omissão das universidades no sentido da organização de cursos para a finalidade desejada.

A própria organização dos museus existentes nos dois países e sua coordenação reclamavam também estudo sério para melhoria e desenvolvimento das instituições, assim como para assegurar-lhes articulação eficaz, de acôrdo com um critério coerente e bem atualizado. Em decorrência dessa nova organização, tornava-se indispensável a reestruturação dos quadros do respetivo pessoal técnico e administrativo.

A tôdas as questões aludidas, tôdas òbviamente interligadas mas cada uma com sua feição própria a solicitar consideração particularizada, o saudoso Professor Chicó atendeu, com a notável competência profissional, a acuidade de observação, a experiência cultivada, o bom senso vigilante e até mesmo com a dose de ironia desabusada que punha em sua extensa atividade. Quem quer que tenha tido a feliz oportunidade de ouví-lo, em confiança, sôbre tais matérias, há de ter conservado a lembrança viva do interêsse extraordinário e do valor de seus conceitos e sugestões.

Aqui no Brasil, faltam-nos elementos para ajuizar da contribuição que o caríssimo Professor Chicó terá podido emprestar à preparação e à elaboração do Decreto-lei português n.° 46.758, de 1965. Temos, entretanto, impressão de haver algum reflexo de seu pensamento, quer nos conceitos da parte justificativa, quer nas disposições do texto legal.

Dêste outro lado do Atlântico, a ação que êle principiou a exercer ocorreu num período de grave instabilidade política no país. Embora desde algum tempo se planejasse uma vasta reforma administrativa no âmbito federal, nas últimas vêzes em que tivemos o privilégio da estada do Professor Mário Chicó entre nós, o problema da reorganização geral dos museus brasileiros e da reestruturação dos respetivos quadros de pessoal técnico, com as medidas adequadas à melhor formação de conservadores e especialistas, não chegara a objeto de estudo dos encarregados daquela reforma. Todavia, a nova Universidade de Brasília, que aspirava a se tornar pioneira de muitas iniciativas ambiciosas visando à atualização do ensino superior no país, interessou-se vivamente por aproveitar o alto espírito de cooperação do mestre da Universidade de Lisboa para a criação de cursos de certas matérias de sua especialidade.

Em contato com o Arquiteto Alcides da Rocha Miranda, coordenador dos cursos de arte na instituição universitária da nova Capital brasileira, de quem já era amigo, e logo com o então Reitor Darcy Ribeiro, que soube apreciá-lo e estimar a qualidade excepcional de sua colaboração, êle foi solicitado a delinear o projeto que, a seguir, se divulga pela primeira vez, para documentar a identificação do Professor Mário Chicó com o atendimento às necessidades da cultura no Brasil.

Tive a honra de ser incumbido por êle, em março de 1965, de encaminhar o aludido projeto à Reitoria da Universidade de Brasília, quando já se haviam dali afastado tanto o primeiro Reitor, o eminente Professor Darcy Ribeiro, quanto o Arquiteto Alcides da Rocha Miranda, do posto de Coordenador dos Cursos de Arte. Desde aquela época até agora, as circunstâncias não permitiram

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que a generosa contribuição prestada ao Brasil pelo grande mestre e amigo pudesse ser utilizada, mas há fundamento para se esperar que venha a sê-lo, pois corresponde muito ajustadamente a nossas conveniências, das quais ajuizou bem, com a acuidade de seu espírito e o calor de sua simpatia fraterna.

O texto do projeto redigido em 1965 pelo Professor Mário Chicó é o seguinte:

Instituto Central de Arte Cursos de História da Arte

A — Para professores do ensino secundário: I.° ANO: l — INTROD. À HISTÓRIA DA ARTE E DA ARQUITETURA —1.° e 2.° semestres. 2—HISTÓRIA DA CULTURA NO OCIDENTE —1.° e 2.° semestres. 3—HISTÓRIA SOCIAL DA ARTE—l.ª parte—2.° semestre. 2.° ANO: 1—HISTÓRIA MUNDIAL DA ARTE—l.º e 2.° semestres. 2—HISTÓRIA SOCIAL DA ARTE—2.ª parte—1.° semestre. 3—HISTÓRIA DA ARTE NA AMÉRICA — l." parte — 2.° semestre. 3.º ANO: l—HISTÓRIA DA ARTE NA AMÉRICA — 2.- parte—1.º semestre. 2 — HISTÓRIA DA ARTE E DA AROUITETURA MODERNAS 1.° e 2.° semestres. 3—HISTÓRIA DAS ARTES INDUSTRIAIS NO OCIDENTE 1.° e 2.° semestres. 4 — HISTÓRIA DA ARTE E DA ARQUITETURA NO BRASIL 1.° e 2.° semestres. B—Para professores das Faculdades de Filosofia e Letras: 1.º ANO: 1—HISTÓRIA DA CULTURA NO OCIDENTE — l.° e 2° semestres. 2—HISTÓRIA SOCIAL DA ARTE—l.º e 2° semestres. 3—INTRODUÇÃO A HISTÓRIA DA ARTE E DA ARQUITETURA—1.° e 2.° semestres. 4—HISTÓRIA MUNDIAL DA ARTE — l." parte — 2° semestre. 2.º ANO: 1—HISTÓRIA MUNDIAL DA ARTE — 2." parte — l.° semestre. 2—HISTÓRIA DA ARTE EUROPÉIA—1.° e 2.° semestres. 3—HISTÓRIA DA ARTE NA AMÉRICA — l.ª parte — 2º semestre. 4—HISTÓRIA DAS ARTES INDUSTRIAIS NO OCIDENTE —. 1.° e 2.° semestres. 3.° ANO: l—HISTORIA DA ARTE NA AMÉRICA — 2.ª parte—l.º semestre. 2 — HISTÓRIA DA ARTE E DA ARQUITETURA NO BRASIL — 1.° e 2.° semestres. 3—* CADEIRA DE OPÇÃO—l.º e 2.° semestres. 4—HISTÓRIA DA ARTE NO ORIENTE E NO MUNDO MUÇULMANO—l.° e 2° semestres. 4.º ANO: 1—HISTÓRIA DA ARTE NA ÁFRICA (arte autóctone e arte de influência européia e asiática) — 1.° e

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2.° semestres. 2—HISTÓRIA DA ARTE E DA ARQUITETURA MODERNAS—1.° e 2.° semestres. 3—* CADEIRA DE OPÇÃO—l.° e 2.° semestres. 4—HISTÓRIA DA CRÍTICA E DAS TEORIAS DA ARTE— 1.° e 2.° semestres. C — Para professores da História da Arte nas Faculdades de Arquitetura: Curso semelhante ao anterior, mas com as seguintes alterações: 3.º ANO—4.ª CADEIRA: HISTÓRIA DA ARQUITETURA: PROBLEMAS TÉCNICOS E PROBLEMAS

ESTÉTICOS em vez da HISTÓRIA DA ARTE NO ORIENTE E NO MUNDO MUÇULMANO. 4º ANO—l." CADEIRA: HISTÓRIA DO URBANISMO NO OCIDENTE E NO ORIENTE em vez de

HISTÓRIA DE ARTE NA ÁFRICA. CADEIRA DE OPÇÃO: A—Para professores de História da Arte nas Faculdades de Filosofia e Letras: ** l—HISTÓRIA DA FILOSOFIA EUROPÉIA—4 semestres (2 anos). 2—HISTÓRIA DA LITERATURA EUROPÉIA—2 semestres. 3 — HISTÓRIA DA LITERATURA NA

AMÉRICA SAXÔNICA E NA AMÉRICA LATINA—2 semestres (l ano). 4—HISTÓRIA DA LITERATURA EM PORTUGAL E NO BRASIL—2 semestres (l ano). 5—HISTÓRIA DA ARTE E DA LITERATURA NO ORIENTE (ÍNDIA, CHINA E JAPÃO)—4 semestres

(2 anos). 6—HISTÓRIA DA MÚSICA NO OCIDENTE—2 semestres (l ano). 7—HISTÓRIA DO CINEMA—2 semestres (l ano). B — Para professor de História da Arte na Faculdade de Arquitetura: Além das cadeiras indicadas: 8—HISTÓRIA DA ARTE NO ORIENTE E NO MUNDO MUÇULMANO. 9—HISTÓRIA DA ARTE NA ÁFRICA. UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA CURSO DE MUSEOLOGIA Para licenciados em Letras, Arte e Ciências: l.º ANO— CURSO GERAL 1—MUSEOLOGIA GERAL—2 semestres (l ano): a) história e tipos de museus de arte, história e etnografia e de museus científicos; b) museus nacionais e museus regionais. 2 — ORGANIZAÇÃO E EXPOSIÇÃO DAS COLEÇÕES—2 semestres (l ano): a) seleção e catalogação das espécies: livros de registo e fichas descritivas, bibliográficas e

fotográficas; b) tipos de letreiros e de etiquetas; c) apresentação das espécies: obras destinadas às salas de exposição, às galerias de estudo e aos

depósitos visitáveis; d) colocação das obras-eixos e das obras secundárias das coleções. 3 — ARQUITETURA E EQUIPAMENTO — 2 semestres (l ano): a) tipos de salas e de galerias de exposição; b) iluminação e circulação nos museus de arte, história e etnografia e nos museus científicos; c) material de exposição; d) bibliotecas, salas de estudo e de conferências, depósitos e serviços administrativos. 2.° ANO — CURSOS ESPECIAIS A — Para conservadores de museus de arte, história e etnografia: 1—CONSERVAÇÃO E PROTEÇÃO DOS MONUMENTOS, DAS OBRAS DE ARTE E DE

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DOCUMENTOS HISTÓRICOS E ETNOGRÁFICOS — 2 semestres (l ano). 2—FUNÇÃO SOCIAL DOS MUSEUS DE ARTE, HISTÓRIA E ETNOGRAFIA—2 semestres (l ano). 3-4 —CADEIRAS DE OPÇÃO (1.°, 2° ou 3.° grupos). B—Para conservadores de museus científicos: l — CONSERVAÇÃO DAS ESPÉCIES NOS MUSEUS CIENTÍFICOS—2 semestres (l ano). 2—FUNÇÃO SOCIAL DOS MUSEUS CIENTÍFICOS—2 semestres (l ano). 3-4—CADEIRAS DE

OPÇÃO. CADEIRAS DE OPÇÃO (para conservadores de museus de Arte, História e Etnografia) 1.º grupo: a) PALEOGRAFIA (2 semestres—l ano); b) NUMISMÁTICA e ESFRAGÍSTICA (2 semestres — l ano). 2.° grupo: a) HISTÓRIA E TÉCNICAS DA GRAVURA (2 semestres—l ano); b) ICONOLOGIA (2 semestres—l ano). 3.º grupo: a) ANTROPOLOGIA CULTURAL (2 semestres — l ano); b) ETNOGRAFIA (2 semestres—l ano). SEMINÁRIOS DE HISTÓRIA DA ARTE PARA PÓS-GRADUADOS (Análise e discussão dos principais problemas relacionados com cada assunto; direção de pesquisas

e de teses e dissertações) Professores propostos para os dirigir: l—HISTÓRIA DA ARTE NA AMÉRICA ANTIGA Prof. George Kubler. II—HISTÓRIA DA ARTE NA AMÉRICA LATINA Profs. Mário Buschiazzo, Kubler e Rober C. Smith. III—HISTÓRIA DA ARTE E DA ARQUITETURA

EM PORTUGAL E NO BRASIL Profs. nacionais e portugueses. IV — HISTÓRIA DA ARTE EUROPÉIA Profs. nacionais e estrangeiros, entre eles os profs. Ger- rnain Bazin e Fernando Chueca. V—HISTÓRIA DA ARTE E DA ARQUITETURA MODERNAS Profs. nacionais e estrangeiros. VI — HISTÓRIA DAS TEORIAS E DA CRÍTICA DA ARTE Prof. Newton Sucupira e profs. estrangeiros. VIl—HISTÓRIA DAS ARTES INDUSTRIAIS NO

OCIDENTE Prof. H. Malvaux.

RODRIGO MELLO FRANCO DE ANDRADE

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VÍNCULO COMPASSIVO

Mário Tavares Chicó

Nada direi da minha admiração e do meu respeito pelo erudito e mestre, que outros, mais qualificados, saberão louvar.

Direi apenas da saudade que me ficou do nosso primeiro encontro, em Lisboa, num longo passeio além Tejo, propiciado por Lino António, com minha mulher e as meninas, quando a «Tribo Costa», como nos apelidara Le Corbusier, ainda estava inteira.

Depois, nas suas vindas ao Rio para fazer conferências, planejar cursos ou organizar exposições, sempre que nos víamos aflorava a lembrança dessa tarde feliz, e o sorriso de uma fugidia imagem se interpunha, por um instante, ao nosso olhar.

Quando soube da sua morte — vira-o pela última vez já acamado, mas sempre lúcido, sensível, cortês —, senti partir-se, dentro de mim, mais esse ténue elo de uma saudade sem remédio que breve também terá fim.

Poderá parecer por demais sucinto e introspectivo este testemunho; contudo, é a palavra espontânea que me ocorre em memória do nosso espaçado, mas comungado, convívio.

Rio, 5/6/69

a) LÚCIO COSTA

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Escrever algumas palavras, por reduzidas que sejam, sobre a personalidade e a acção do Professor Mário Tavares Chicó, é tarefa que, para mim, apresenta tais dificuldades que, lógica e coerentemente, me deveria recusar a redigi-las.

Sem embargo, porque me considero velho admirador e sincero amigo, porque lhe devo, ainda, muito do interesse que sinto pelas coisas da história da arquitectura e da sua lenta e laborada evolução, entendo que é meu dever participar, embora modestamente, na sincera homenagem que um grupo de amigos quis prestar à sua memória.

O meu encontro com o Professor Mário Tavares Chicó verificou-se na cidade de Évora, há perto de 25 anos, e essa circunstância e a camaradagem e amizade que se lhe seguiram, ao longo dos anos da sua curta vida, marcaram de forma muito vincada a minha formação profissional.

Na verdade, colocado na Secção do Sul da Direcção dos Serviços dos Monumentos Nacionais, naquela cidade, iniciava receosamente os primeiros passos da carreira que escolhera e venho percorrendo penosamente desde então, extraordinàriamente diminuído em face dos problemas inerentes a todos os aspectos da conservação do património arquitectónico que possuímos.

Considerava — e muito justamente — que eram intransponíveis as barreiras que à minha volta se avolumavam, visto serem singularmente graves as tarefas a enfrentar, não só como resultado da genuína peculiaridade dos aspectos que as informavam, como ainda e muito principalmente, pela carência absoluta de conhecimento da doutrina expressa sobre a matéria, que a formação escolar não facultara.

O entusiasmo juvenil que possuía aniquilava-se sistemàticamente, conduzindo-me a situações de desânimo, que poderiam ter tido consequências irreversíveis na minha actuação.

O encontro com a personalidade do Professor Mário Tavares Chicó e os permanentes contactos que a partir dessa data se encetaram, permitiram-me reencontrar o equilíbrio momentâneamente perdido, na medida em que encontrei nele um apoio basilar, na precisa circunstância em que este mais se justificava e impunha.

Nas longas e agradabilíssimas deslocações que promovemos pelo Alentejo —que progressivamente me foi sendo revelado e explicado magistralmente pelo Professor Chicó — foi-me dado o raro privilégio de acompanhar os seus, só aparentemente desordenados, bosquejos, seguindo encantado, a par e passo, a análise objectiva, incisiva, profunda e sistemática que promovia à arquitectura daquela vasta e rica região, recolhendo e catalogando o espólio abundante das suas observações, que considero, hoje em dia, constituíram para mim, um verdadeiro curso pós-escolar, informalmente proferido para um só aluno e, como tal, mais proveitoso ainda.

Foi-se-me revelando e impondo, deste modo, a sua profunda cultura, a fascinante e lúcida personalidade, o poder de síntese que caracterizava todas as suas observações, a sensibilidade notável para os problemas da arquitectura e, até, a clareza com que ilustrava, num pequeno croquís, tantos dos elementos que observava nos próprios locais.

A estas qualidades aliava-se uma modéstia natural, uma genuína simplicidade de trato e uma delicadeza nata que contribuíam, ainda mais, para que todos os que com ele conviveram assìduamente, o considerassem um camarada e companheiro excepcional.

Estas relações de amizade que firmemente se solidificaram, quando da elaboração dos estudos de remodelação do Museu Regional de Évora e, ainda, durante a parcial realização dos trabalhos, deixaram, pois, no meu espírito a recordação de um dos mais gratos instantes da minha vida, para além de, pelo seu significado, terem contribuído também, como acontecimento da mais alta importância, para a minha própria evolução cultural.

FERNANDO PERES GUIMARÃES

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PARA O «IN MEMORIAN» DE MÁRIO CHICÓ

Mário Chicó?

Na medida em que se pode definir um homem por uma essencialidade da sua fisionomia espiritual, direi que ele foi a incarnação de um requintado «esprit de finesse» em todos os domínios em que actuou, desde a convivência à Arte passando pelo Magistério.

Lisboa, 4 de Março de 1969

MÁRIO DE CASTRO

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O PROFESSOR MÁRIO CHICÓ E O ENSINO HISTORIOGRÁFICO-ARTÍSTICO NO RIO DE JANEIRO

Em outra oportunidade' relembrei a figura nobre de «gen-tleman» e o valor raro de estudioso do Professor Mário Chicó. Acentuei, de um lado, a fidalguía e generosidade de seu modo de ser; de outro, a exemplaridade de sua posição como «scho-lar», no domínio da história da arte, contribuindo com seriedade científica ao desdobramento do ensino universitário em seu país, à museologia de nível internacional, através da dire-ção do Museu Regional de Évora, à investigação de aspectos do passado artístico do mundo português, incluindo monumentos da Ásia, e à difusão da arte lusa por intermédio de primorosas exposições fotográficas ou de originais, que levou a várias partes da Europa e trouxe ao Brasil. Coloquei em relêvo a sua formação, no entre-duas-guerras, no Instituto de Arte e Arqueologia da Universidade de Paris, adquirindo característica metodológia minuciosa no estudo de monumentos medievais e também se influenciando com a visada profunda e sensível de Henri Focillon, de modo geral. Sua posterior admiração pelos métodos historiográficos alemães, alargou a sua maneira de trabalhar e de conceber a História da Arte.

Hoje limitar-me-ei a depor a respeito da influência considerável que exerceu, entre 1954 e 1965, no plano do ensino histórico-artístico, no Rio de Janeiro. Chegando a nosso país, pela primeira vez, para o II Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, realizado em São Paulo, logo compreendeu a importância da atuação centralizadora, no campo da historiografia artística, da sede da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, na época dirigida pelo dr. Rodrigo Mello Franco de Andrade, na então capital do país. Entrou em contacto com a mesma e com os estudiosos que com ela se entrosavam, aproveitando-lhe a experiência e o acervo.

Outros apontarão a fecundidade do intercâmbio do Professor Chicó com a citada Repartição e com várias universidades do país. No ensino histórico-artístico no Rio de Janeiro, Mário Tavares Chicó exerceu uma ação viva e catalisadora, concentrando os resultados benéficos dos Colóquios de Estudos Luso-Brasileiros, numa década em que se verificou pequena expansão e algumas transformações da situação do mesmo, na Universidade Federal da grande cidade.

Após o período retardatário do início do século, em que, no âmbito nacional, persistia o interêsse quase exclusivo pela lição antiga, grego-romana, e a admiração retórica pelo classicismo renascentista, os historiadores de arte no Brasil se encaminharam —em consequência do surto «modernista» e da ação da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional— para o fenômeno plástico-visual realizado in locum.

Coincidiu com a vinda do Professor Chicó e êle o favoreceu, o momento em que, lógica e consequentemente, o interesse pelo estudo das raízes brasileiras conduzia, na prática, à necessidade de compreender suas origens portuguesas. Daí a atmosfera favorável para a ação do mestre da Universidade de Lisboa e do Museu de Évora. Êste colocou ràpidamente, à disposição dos brasileiros, veteranos e jovens, o instrumental de que dispunha e exposições, algumas vêzes completadas por catálogos feitos com capricho.

Proferiu conferências, sobretudo na Escola de Belas Artes ou sob o seu patrocínio, que marcaram essa fase de conexão dos estudos historiográficos do Brasil com os de Portugal, em nossa especialidade. Todos sentiam os critérios rigorosos de suas análises, a metodologia segura de seu trabalho.

Destacarei as efetuadas em outubro de 1958, de colaboração com a citada Escola. Foi então figura central do I Ciclo de Conferências sôbre Arquitetura e Escultura Portuguesas, efetuado em parte no Gabinete Português de Leitura, onde promoveu exposição de Fotografias de Arte Portuguesa na Ásia, incluindo construções religiosas e edificações civis e militares, fotografadas em grande número pelo próprio mestre. A nota pessoal e nova, para o Brasil, no tipo de mostras trazidas pelo Professor Mário Tavares Chicó, era a apresentação paralela e abundante de reconstituições, levantamentos, traçados e pormenores à margem, que muitas vêzes sintetizavam, com felicidade e ênfase, o objetivo didático ou crítico do grande especialista e a essência do monumento.

A primeira lição foi proferida, na referida Escola, sôbre «A Arquitetura e a Escultura Portuguesa, do fim da Idade Média ao periodo barroco»; a segunda e a terceira, versaram os «Monumentos Portugueses na Ásia» e a quarta, realizada no Liceu Literário Português, tratou de «Évora, seus museus e monumentos». Tôdas acompanhadas de magníficos diapositivos, também selecionados com o capricho que caracterizava o saudoso Professor português. Nas da Escola, o dr. Mário Tavares Chicó respondeu a perguntas do auditório sôbre aspectos da arte portuguesa.

Generalizou-se assim, nos anos 1954-1964, nos meios universitários do Rio de Janeiro, a noção da importância de um confronto e exame de nossas coisas de arte, comparativamente às da antiga

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Metrópole. Aumentou a corrente dos bolsistas e pesquisadores que se dirigia a Portugal e, nos programas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a contribuição lusa às artes visuais foi mais explicita e pormenorizadamente incluida. Em dezembro de 1965, já mortalmente abalado na sua saúde, trouxe ao Rio de Janeiro uma bela exposição comemorativa do quarto centenário da cidade, à cuja ação didática não pôde dedicar tôdas as energias necessárias. Regressou logo a Lisboa, onde o encontrei, dois meses depois, magérrimo e doente, mas ainda brilhante nas imagens e conceitos e caloroso no amor pelo seu Museu e ao ensino ou ante a necessidade de prosseguir nos laços culturais luso-brasileiros, que tanto consolidou. Recordo-me ainda, com emoção, dêsse último contacto com meu particular amigo, entremeado de almoço fidalgo em restaurante de tipo inglês, do pôrto de Lisboa, no qual já comeu menos ainda do que de hábito, mas não estava triste, nem sem ânimo. Na verdade, sabia que sua obra se completara bem e se fizera fecunda, tanto em Portugal, como no Brasil. Que seu exemplo persistia e deveria, por muito tempo, iluminar o caminho de historiadores de arte, em ambas as bandas do Atlântico.

MÁRIO BARATA

• Palavras em sessão conjunta ira memoriam do Prof. Mário Chicó, promovida no Rio de Janeiro pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pela Diretorla do Património Histórico e Artístico Nacional, quando da morte do saudoso mestre.

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Em Fevereiro de 1935, imprimiu-se em Lisboa uma separata de «Medicina — Revista de Ciências Médicas e Humanismo», pequeno trabalho de 19 páginas, intitulado «A Catedral de Évora — Plano de documentação fotográfica para o seu estudo a distância».

O seu autor, Mário Tavares Chicó, então com trinta anos de idade, pois havia nascido em 1905, em Beja, fizera nesta mesma cidade, e nas de Coimbra e de Évora os seus estudos secundários, vindo a licenciar-se em Ciências Históricas e Filosóficas pela Faculdade de Letras de Lisboa, e na capital realizaria também um estágio dos Museus Nacionais.

Dois anos depois de publicada aquela separata, testemunho da escolha de uma carreira ou promessa de realização de um destino atraído à Arte pelas poderosas forças da História e da Museologia, rumaria ao estrangeiro, com uma bolsa do Instituto de Alta Cultura, em busca de mais profunda preparação e de mais conhecimentos. Durante os anos lectivos de 1937-38 e 1938-39, frequentaria o Instituto de Arte e de Arqueologia da Universidade de Paris, o Colégio de França, orientado, sobretudo, por Henri Focillon mas também por Élie Lambert e seguiria na «École des Charles» um curso de Arqueologia Medieval. Este sinal de particular atenção pela arte medieval não significa que o bolseiro se não interessasse igualmente quer pela história mundial da arte, quer pela museologia, viajando pela Europa, visitando museus e monumentos, em França, na Bélgica, na Alemanha, na Suíça, na Inglaterra e em Espanha e informando-se, com especial cuidado, acerca da organização das novas unidades museográficas em Paris, Londres, Bruges e Colónia. Regressado a Portugal, de 1940 a 1942, logo poria o seu saber e a sua sensibilidade ao serviço da constituição do Museu da Cidade de Lisboa, colaborando no restauro do Palácio em que ele está instalado. Em 1943, conquistaria no concurso de provas públicas, o lugar de Director do Museu Regional de Évora e, em 1945 seria nomeado professor de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, tendo desempenhado estes dois últimos cargos até à data da sua morte, em 1966.

Voltemos porém ao trabalho de 1935, dedicado à catedral de Évora e que, tanto quanto sabemos, foi o seu primeiro estudo publicado.

Não temos a preocupação, neste momento e neste lugar, de esboçar uma biografia ou de analisar a obra de Mário Tavares Chicó. Com diferente propósito, antes buscamos trabalhar uma palavra: a palavra que procuramos ao longo de quanto dissermos que possa oferecer-se como homenagem de sincera saudade, e também de profunda admiração. Por isso, e porque a palavra de saudade envolve também a admiração, quisemos deter-nos no trabalho inicial de quem, em continuidade de estudos e publicações se confirmaria como um dos mestres incontestáveis da historiografia contemporânea da Arte, no nosso País.

Sobretudo, queremos assinalar naquele trabalho a potencialidade bem desenhada de um método, e discernimento da informação, o enunciado da perspectiva intelectual, as linhas mestras de um programa de trabalho a que não mais seria infiel, mas que sem desfalecimento enriqueceria no robustecer progressivo da sua formação cultural e na realização plena de uma Obra. E queria deixá-lo assinalado porque creio importante que quanto se apontou aflore, em 1935, num trabalho que antecede o seu estágio de bolseiro fora do País.

Colhemos na referida separata que «os estudos analíticos e comparativos são sempre necessários como ponto de partida» e que «sem descurar completamente a análise do pormenor decorativo» se atendera, com mais cuidado, no estudo do monumento, «à parte essencial da estrutura —a construção— relacionando os seus elementos com os de outras igrejas similares».

Afirma, por outro lado, que «pela fotografia é hoje possível realizar rigorosos estudos comparativos», que são naturalmente complemento indispensável dos estudos no local, pois a documentação fotográfica, «graças à sua precisão mecânica, veio substituir, com apreciável vantagem, os antigos desenhos e gravuras». Mas Mário Tavares Chicó aflora também, recordando Riegl, a introdução do conceito de vontade artística nos métodos de investigação, em História de Arte, lembra Worringer e anota que a expressão poder artístico «é então adoptada por todos os pensadores alemães». Assim, crê que os nossos arquitectos românicos imprimiram vontade artística ao granito das numerosas igrejas do Norte do País. Independentemente das influências recebidas de Espanha ou de França, mostram-se nesses monumentos características de um românico tardio, cuja nacionalização se operou por coincidência com a maneira de ser do povo português. Esse românico perdurará e atingirá a «plena época do gótico» na Batalha, por exemplo, e alcançará até monumentos posteriores.

Importa sublinhar o significado de estas ideias expressas por Mário Tavares Chicó em 1935, antes de seguir para o estrangeiro.

Elas reflectem, se bem ajuizamos, uma orientação particularmente articulada com o pensamento

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alemão. Cita, efectivamente, Riegl, o esteta mais notável da Escola de Viena, Deonna, que, embora suíço, desenvolveria muitos dos dados facultados por Riegl, Meumann, Max Scheller, e Karl Woer-mann.

Por sua vez, os estudos franceses de História da Arte estão sobretudo presentes pela citação de Camille Enlart e de André Michel. A grande contribuição de Focillon para a formação de Mário Tavares Chicó, essa só terá atingido toda a plenitude em Paris.

É justo referir que a bibliografia citada no estudo a que vimos aludindo comporta, além de obras de Watson, do Marquês de Lozoya e de Lampérez y Romea, outras, a que evidentemente também ficou a dever a sua preparação, do Prof. Reynaldo dos Santos, de Joaquim de Vasconcelos, de Vergílio Correia, de Manuel Monteiro, de Aguiar Barreiros.

Riegl, Deonna e Worringer significam efectivamente um movimento de reacção contra um conceito de História da Arte denunciado por excessivamente materialista. A «Abstracção e Empatia» de Worringer, referida por Chicó, e «As Leis e Ritmos na Arte», a obra de Deonna, que cita, significam a atenção que lhe mereciam as ideias explanadas por ambos.

É sabido que Worringer, opondo-se à orientação de Taine e dos seus discípulos, defendeu que «a verdadeira psicologia do estilo só começa quando se explicam os valores formais como expressão precisa dos valores interiores, de modo a fazer desaparecer todo o dualismo de fundo e forma». Aspira, contudo, a uma ciência da Arte, que se quer tornar «aproxidadamente objectiva», em vez de ser, como até então, «apreciação arbitrária e subjectiva de factos artísticos; é, em suma, uma História da Arte» não como a simples história do saber artístico, mas como a das intenções», pois as variações de estilo são variações de intenções, pelo que as não devemos considerar arbitrárias ou fortuitas. Pensa que «toda a época se entrega com uma força particular a uma actividade artística que corresponde à sua própria intenção formal; ela dá preferência à expressão artística e à técnica cujos meios exprimem mais seguramente e mais livremente a vontade artística. Basta pois interrogar os factos históricos, procurar as expressões artísticas que predominam nas diferentes épocas: assim nos encontramos na posse de um meio, o mais importante e o mais elementar, para determinar a vontade criadora das épocas em causa.»

Na linha de desenvolvimento de estas ideias, Wölfflin defenderia que «além do estilo individual, há pois um estilo de escola, um estilo de região, um estilo de raça», e assim a sua definição dos fins da História da Arte é a que considera acima de tudo o estilo como expressão, a do estado de espírito de uma época e de um povo, como também a de um temperamento pessoal.

Mário Tavares Chicó preconizava também o recurso à documentação fotográfica, como vimos referido no seu trabalho de 1935. Parece-nos óbvia a importância da fotografia, mas não devemos esquecer que Chicó tinha em vista não a utilização da fotografia como ilustração, mas como um valioso documento de trabalho.

Ao inscrever a sua utilização no método que seguiu, precisou, a par da importância da «fotografia de exactidão», a da «fotografia de deformação».

Se Mário Tavares Chicó, antes de partir como bolseiro, não teve porventura conhecimento, do tomo VIII da História Geral, em que Pirenne, Cohen e Focillon, se ocuparam, em 1933, da civilização ocidental, desde o século XII até ao fim do século XV, e em que as ideias de Focillon contêm o essencial do que lançará na sua obra fundamental «A Arte do Ocidente», que é de 1938, nem por isso em alguns aspectos Mário Tavares Chicó deixava de mostrar, já em 1935, pontos de vista que o seu mestre lhe confirmaria.

Consideramos Henri Focillon como um dos historiadores da Arte dos que melhor realizaram a síntese de esta disciplina com a da Estética. Focillon preconizou também uma atitude formalista, pois «a vida é forma e a forma é modo de vida». Assim, em 1934, no trabalho que dedicou à vida das formas, buscou mostrar que regras próprias elas têm, que essas regras se estudam e se revelam no caminho das experiências, das mudanças, das metamorfoses. Para ele, «a forma, pelo jogo das metamorfoses, vai perpètuamente da sua necessidade à sua liberdade», a vida de todo o estilo «atravessa várias idades, vários estádios», de uma idade experimental a uma idade clássica, a uma idade de refinamento, a uma idade barroca. Seguiu nestas ideias, como explìcitamente o afirma, o caminho desbravado por Deonna e que este, de algum modo, encontrara, para o desenvolver, no pensamento de Riegl, ao conhecer a existência de ciclos artísticos.

Ainda que ràpidamente, afigura-se-nos útil recordar alguns princípios e ideias enunciados em «A Arte do Ocidente», de Henri Focillon, publicado durante o período em que foi mentor de Mário Tavares Chicó, pois o discípulo, ao assumir as suas funções docentes na Faculdade de Letras de Lisboa, logo no primeiro ano do seu ensino, aquele mesmo em que o tivemos por Professor, num

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curso dedicado à arte românica, situou-nos «A Arte do Ocidente» como peça mestra de toda a bibliografia. Não encontro razões que permitam pensar que, salvo um ou outro ponto de pormenor, essa obra de Focillon tivesse desmerecido na admiração que lhe votou sempre o seu discípulo.

Focillon considerou os estilos como «sistemas orgânicos» que podemos acompanhar na maneira como se fizeram e como viveram, seguindo certos movimentos-experiências, progressão interna, flutuações, permutas, expansão. Defendeu a ideia que «a arquitectura domina a Idade Média», de que a arquitectura «subordina e determina todas as forças vivas da arte medieval». Viu a arte da Idade Média «dominada pela Arquitectura», e com uma «rigorosa lógica construtiva», «um raciocínio sobre as relações de forças e de formas, caracterizadas pela tendência ao universal». Viu que «os estilos não se sucedem como dinastias...», que a «arte românica persiste na Alemanha até ao século XIII, mais tarde ainda na Itália e na Espanha Mediterrânea»; que «se a Idade Média é talvez o fermento do Renascimento, se é a sua autenticidade—... a sua vitalidade é ainda mais longa e mais forte no ocidente pròpriamente dito, de que ele definiu o poder original de invenção. Continua-se a construir gótico até ao fim do século XVI e até mais tarde ainda». E assim, afirma igualmente:

«podemos mesmo dizer que a prática da ogiva nunca foi absolutamente interrompida..., como atestam abóbadas de mais de uma das igrejas construídas na época clássica».

Detivemo-nos, porventura demasiadamente, nesta nota relativa à formação de Mário Tavares Chicó e das orientações por ele colhidas e seguidas ao iniciar a sua carreira.

Pareceu-nos contudo que tal nota era indispensável como achega para o entendimento da sua obra de historiador de Arte pois a essa, sem desdouro para as que realizou noutros sectores, designadamente no da Museologia, nos referiremos mais circunstanciadamente.

É que, em nosso entender, Mário Tavares Chicó, definido nas linhas essenciais o seu método, não mais o abandonou, antes o enriqueceu ao calor dos ensinamentos colhidos à medida que se foi realizando como historiador da Arte. É que Mário Tavares Chicó não tratou especìficamente problemas da metodologia da História da Arte. Fez História da Arte e fê-la de modo exemplar. Assim, o seu método está realidade viva na sua obra.

Regressado a Portugal, o bolseiro, logo em 1940, manifestaria o grande interesse por um dos monumentos capitais da nossa História da Arte: Santa Maria da Vitória, a Batalha.

Publicou nesse ano, no Boletim do Instituto Francês em Portugal, o estudo que intitulou «Remarques sur le choeur de 1'église Sainte-Marie de la Victoire». E, em 1944, saiu impresso outro trabalho seu «Arquitectura da Idade Média em Portugal», em que reuniu duas comunicações, uma ao Congresso para o Progresso das Ciências, realizado no Porto em 1942, e outra, feita em 1943, na 40.ª sessão de estudo dos conservadores do Museu Nacional de Arte Antiga. Na primeira, aborda o problema das fontes de inspiração da Batalha, evidenciando entre elas a charola da Sé de Lisboa, e na segunda ocupa-se do tipo de cobertura da nave e do transepto daquela mesma Igreja, à luz de soluções idênticas em construções góticas anteriores no País.

Pode dizer-se portanto, que os anos de 1940, 1942, 1943 e 1944 foram vividos por Mário Tavares Chicó como medievista especialmente interessado na articulação de Santa Maria da Vitória com os monumentos portugueses antecedentes, cujo estudo iria, aliás, culminar com o seu trabalho de síntese, e renovador em muitos aspectos, constituído pelos capítulos que escreveu para o II volume da «História da Arte em Portugal», que havia sido iniciada por Aarão de Lacerda.

É certo que publicaria ainda antes um estudo sobre a igreja dos Loios de Évora, uma monografia sobre a catedral da mesma cidade, esta saída em 1946, ano em que dedicou igualmente um outro estudo às esculturas do mesmo monumento nos séculos XV e XVI.

Nestes trabalhos não faltam referências que nos permitiriam mostrar como Chicó seguia rigorosamente os seus desejos de estudo comparativo dos monumentos e da particular atenção que nesses estudos dava às estruturas, aos elementos construtivos.

Por exemplo, e a propósito de Santa Maria da Vitória, em que encontrou «um dos exemplares mais elegantes e harmoniosos da arquitectura religiosa após a fase clássica da arte gótica», explicou que «o seu merecimento consiste principalmente em ter sabido conservar todo o valor aos elementos da estrutura». Também na monografia de 1946 sobre a catedral de Évora, em que além de dedicar lúcidas páginas ao problema das fontes de inspiração do seu zimbório, fez a reconstituição conjectural da cabeceira do tempo, escrevendo:

«Nenhuma outra catedral portuguesa a iguala na elegância das combinações de volumes, ... e, em nenhuma outra também, incluídas as que foram construídas posteriormente, se conjugam com tanta originalidade, elementos estruturais e decorativos românicos e góticos, de tão diferentes

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proveniências».

Neste mesmo trabalho afloram já elementos importantes, que desenvolveria quanto à caracterização do gótico português, ao inserir a cabeceira edificada por D. Durando neste templo, numa linha de realizações em que sobressai, antes de Santa Maria da Vitória, como exemplo mais elegante, S. Domingos de Elvas.

Assim, a colaboração que veio depois a lançar em 1948, para a «História da Arte em Portugal», iniciada por Aarão de Lacerda, se é a sua primeira visão de conjunto sobre a nossa arte gótica, é também o detido e minucioso estudo dos monumentos portugueses desde pràticamente as primeiras experiências da arte gótica realizadas no nosso País.

O primeiro dos quatro capítulos em que se condensa a sua colaboração à referida «História da Arte», foi dedicado, em ligação que nos dispensamos de encarecer, com os seus trabalhos anteriores, ao Mosteiro da Batalha e à arquitectura em Portugal nos fins do século XIV e no século XV. Seguem--se-lhe os capítulos consagrados à escultura decorativa e monumental e à escultura funerária durante o mesmo período, às artes decorativas em Portugal no século XV e, especialmente, à ourivesaria e à arquitectura em Portugal na época de D. Manuel e nos princípios do reinado de D. João III, e também ao gótico final português, ao estilo manuelino e à introdução da arte do Renascimento.

Em continuada e normal progressão, o medievista ultrapassava, pois, pela primeira vez, o âmbito das suas investigações anteriores e, nessa medida, consideramos estes capítulos como a abertura de um novo ciclo na sua obra.

Aliás, creio que ele próprio assim o entendeu, pois num «curriculum» que elaborou, agrupou todos os trabalhos anteriores num sector que designou de «Arqueologia Medieval», abrindo com os que foram acima referidos um sector de «História da Arte».

Não obstante, a assinalada rotura do limite medieval não significa que Mário Tavares Chicó se afastasse, de vez, dos problemas da Arte da nossa Idade Média. Nunca o faria, aliás, e mais do que uma vez lhe ouvi confessar como que com nostalgia, quando já se ocupava da nossa Arte dos séculos XVII e XVIII. Compreende-se, naturalmente, que em 1953 se tenha dedicado ao estudo da Catedral de Lisboa, evidenciando o lugar primordial que lhe cabe no quadro da Arte Portuguesa na Idade Média, em comunicação feita nesta Academia, de que foi membro ilustre, comunicação publicada no Boletim e editada em separata.

Compreende-se também que no ano seguinte, o de 1954, tivesse apresentado ao 16.° Congresso Internacional de História da Arte uma comunicação sobre «A evolução da igreja gótica de três naves em Portugal», comunicação que fez igualmente imprimir.

Compreende-se finalmente que, em 1954, se tenha iniciado a publicação em fascículos da sua obra decisiva «A Arquitectura Gótica em Portugal», padrão extraordinário do seu grande legado cultural.

Em 1951, Mário Tavares Chicó havia, porém, chefiado uma Missão de Estudo à Índia Portuguesa, e essa viagem, quanto a nós, marcou um novo período na obra do estudioso da nossa Arte1.

Paralelamente haveria que evidenciar o grande número de exposições de documentação fotográfica que organizou, tanto em Portugal como no estrangeiro, em Lisboa como em Évora, em Londres como no Rio de Janeiro, no Salvador ou no Recife, em Salamanca como em Santa Cruz de Tenerife ou em Milão. Na verdade, os catálogos de essas exposições, contêm pequenos mas esclarecidos textos para os estudiosos da Arte Portuguesa e abrangem linhas essenciais do desenvolvimento da nossa Arquitectura religiosa, civil e militar, desde a arte românica à arte barroca. O catálogo de uma de elas sobre a Arquitectura Portuguesa da Época dos Descobrimentos, menciona as que até então, 1960, haviam sido organizadas pelo Museu que dirigiu e às quais haveria de acrescentar depois outras mais.

Seria necessàriamente muito longo se pretendesse extrair de todas as publicações a que fiz referência o ensinamento que em cada uma de elas sempre se contém.

Limitar-me-ei, por isso, a focar particularmente a sua preocupação central com a caracterização da Arte Portuguesa. Encontrou na arte nacional uma autêntica força criadora que, absorvendo embora influências diversas, ao longo dos tempos, como desenvolveu em lição proferida num dos cursos de História da Arte em Portugal, promovidos pela Fundação Calouste Gulbenkian, no seu auditório, soube revelar uma vontade artística a impor disciplina mediterrânea às importações nórdicas. É a vontade artística dos habitantes de um país de vertente atlântica e de vertente

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mediterrânica, geradora de uma personalidade que Mário Tavares Chicó sobretudo procurou definir nos estudos que dedicou quer à nossa arte gótica quer à nossa arte contemporânea da expansão, quando as formas originais que criámos se projectaram no Brasil como no Oriente e quando à Arte Portuguesa coube o duplo papel de incorporar na sua própria unidade sugestões lá recebidas e de ser exportadora de formas de arte europeia.

Por outro lado, defendeu que o «nacionalismo em Arte verifica-se em Portugal muito melhor na Arquitectura e na Escultura do que nas chamadas Artes Decorativas».

Encareceu pois a importância da Arquitectura, enriquecendo o exame de essa Arte, em que foi crítico da maior agudeza e penetração, vindo ùltimamente a juntar aos seus iniciais exames de estrutura a subtil interpretação dos espaços. Por exemplo, e por palavras suas: «como estas duas artes — a arquitectura e a escultura decorativa e arquitectural — são aquelas em que melhor se definem o equilíbrio, o sentido espacial e a rude sobriedade da vontade artística portuguesa, Goa, teve, por certo, maior importância do que a que lhe tem sido atribuída na história das relações artísticas do Mundo Atlântico com o Mundo Oriental, misterioso, tumultuário e distante» ou, «No estudo da Arquitectura religiosa não é apenas a fachada que deve ser analisada com interesse: uma igreja é um todo em que convém observar até que ponto a frontaria se harmoniza com a planta e com a estrutura, e o espaço interior corresponde às combinações de volumes e é por eles modelado.»

Eis, em outro exemplo, como definiu a originalidade da nossa Arquitectura, a propósito das igrejas manuelinas saídas daquelas em que a fachada corresponde à disposição interior:

«A continuidade da arquitectura portuguesa mantém-se em oposição com o espaço compartimentado da arquitectura espanhola que não consegue desprender-se das influências muçulmanas, e as fachadas são quase sempre muito simples e a sua evolução muito lenta.»

Não devo, porém, terminar sem referir, ao menos por forma sincopada, outras facetas da acção de Mário Tavares Chicó.

No campo da Museologia, além da organização do Museu da Cidade de Lisboa, sobre que escreveu também um estiudo publicado em 1943, foi sobretudo notável a criação de essa obra museográfica do maior alcance, realizada no Museu Regional de Évora e, na sua dependência, que é o Museu de Arte Sacra instalado na Igreja das Mercês.

Exerceu a sua actividade, neste domínio, em comissões e em júris de concursos para conservadores e directores de Museus. Deu colaboração aos seus colegas do Brasil, país que tanto amou.

E nesta faceta da sua obra importa sublinhar que, para a realizar, o historiador de Arte contava com uma formação sólida e vasta, que mal se desprenderia de quanto assinalámos se não recordássemos que o extraordinário crítico de arquitectura estudou também a talha, a ourivesaria, a escultura, a pintura, arte a que dedicou, por exemplo, o trabalho «Pinturas flamengas e holandesas do Museu Regional de Évora», impresso em Lisboa em 1954. A sua cultura e a sua sensibilidade permitiam-lhe situar-se, sempre com grande discernimento, perante a obra de arte de outros tempos como perante a dos nossos tempos.

E poderia, particularmente, sublinhar a extensão e a riqueza dos seus conhecimentos dando conta das múltiplas trocas de impressões com José-Augusto França e comigo, quando publicámos o «Dicionário da Pintura Universal».

Comporta naturalmente a sua actividade a vida dos Congressos. Participou no IV da Associação Portuguesa para o Progresso das Ciências, no Porto, em 1942, fez parte da Comissão Organizadora do XVI Congresso Internacional de História da Arte, presidiu à Secção de Belas-Artes do I Congresso Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, em Washington, 1950, onde apresentou uma comunicação sobre a arquitectura religiosa do Alto Alentejo nos séculos XVI, XVII e XVIII, participou no II Colóquio em S. Paulo, 1954, com a comunicação:

«Monumentos da Índia Portuguesa», fez parte da Comissão do III, em Lisboa em 1954 e participou no IV, na Baía, em 1959, em que foi um dos relatores.

A sua obra notável de pedagogo compreende os cursos que regularmente professou na Faculdade de Letras de Lisboa, em acção que seria inadequadamente avaliada se não se referissem, a contribuição dada através da orientação de dissertações de licenciatura e a menção de outros cursos que regeu no estrangeiro: nas Universidades de Poitiers, La Laguna, Milão e, sobretudo ,no Brasil, nas do Recife — que lhe conferiu a distinção de Professor «Honoris causa»— da Bahia, e do Brasil, no Rio de Janeiro.

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O alto apreço em que era tido naquele País e as amizades que nele contraiu têm testemunho na condecoração com a Ordem do Cruzeiro do Sul, com que foi agraciado, e com a desolação provocada pela notícia do seu desaparecimento, que pude sentir ao vivo, por ali me encontrar nessa altura dolorosa, na viagem em que tive a honra de acompanhar o Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian.

Então ali perduravam os ecos da sua última dádiva constituída pelas exposições levadas ao Rio de Janeiro, na oportunidade das comemorações da criação da cidade.

Seja-me lícito referir que a perda do Professor da Faculdade de Letras de Lisboa, do Director do Museu de Évora, do membro do Conselho Superior do Instituto de Alta Cultura, representa também a perda dum valioso colaborador da Fundação Calouste Gulbenkian, pois era o seu consultor para exposições, para a atribuição de bolsas de estudo e, sobretudo, para a planificação da iniciativa, já em curso, de recolha de documentos de arquivo de interesse para a História da Arte em Portugal.

Ficámos todos mais pobres e, atrevo-me a dizer, eu mais do que os outros. Perdi um Mestre desde o seu primeiro curso na Faculdade, um colaborador desde que me vi investido nas funções que me estão confiadas na Fundação Calouste Gulbenkian, e um Amigo desde que o conheci em Évora, nos tempos já distantes em que lá chegou para tomar conta do seu Museu.

A homenagem à memória do Professor, do investigador e do museólogo exigia a evocação, ainda que parcelar e fragmentária, da sua obra e não podia dispensar-se de tentar documentar aspectos do que foi o alto valor da sua contribuição para a cultura portuguesa. Assim o entendi e procurei fazer.

A homenagem ao Amigo, a um tempo mais simples e mais difícil, essa, dispensa palavras, é intimidade de recolhimento comovido e doloroso silêncio.

ARTUR NOBRE DE GUSMÃO

' De essa mesma viagem foram resultando, em progressiva contribuição, vários trabalhos, entre os quais me permito apontar:

— «Aspectts of Religious Art of Portuguese India», In Marg, Bombaim, 1954;

— «A Igreja do Priorado do Rosário da Velha Goa, a arte manuelina e a arte de Guzarate», no Boletim desta Academia, n.º» 7, 1954;

— «A escultura decorativa e a talha dourada nas Igrejas da Índia Portuguesa» (Belas Artes, n.º» VII, 1954);

— «A Igreja dos Agostinhos de Goa e a Arquitectura da Índia Portuguesa» (Garcia de Orta—II, fasc. 2—Lisboa, 1954);

—«Igreja de Goa» (Garcia de Orta, número especial, 1956);

— «A cidade ideal do Renascimento e as cidades portuguesas da Índia» (Garcia de Orta, número especial, 1956);

— «Algumas observações acerca da arquitectura da Companhia de Jesus no distrito de Goa» (Garcia de Orta, número especial—Lisboa, 1956);

— «Gilt carved-work retables of the churches of Portuguese India» (Connoisseur—número especial—Londres, 1956);

—«A Arquitectura Indo-Portuguesa» (Colóquio n.° 17—Fevereiro, 1962).

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Do saudoso e querido Professor Mário Tavares Chicó, mestre seguro no dizer, austero, simples e delicado, venho recordar com emoção um dos últimos passos de seu labor em prol do intercâmbio cultural luso-brasileiro, em 1966.

Trata-se da exposição organizada pela Comissão Nacional de Comemorações do 4.° Centenário do Rio de Janeiro, comissão lusa por êle orientada tão esclarecida e superiormente.

A exposição teve «como objetivo mostrar aos estudiosos e ao público interessado alguns aspectos mais característicos da arquitetura portuguesa, desde a segunda metade do século XVI até o final da primeira metade do presente século». E, para habilitar o visitante a apreciar com proveito a exposição, Chicó tomou a iniciativa de organizar uma bela publicação intitulada Aspectos da Arquitetura Portuguesa, 1550-1950.

Foi seu coadjuvante Jorge Henrique Paes da Silva, a quem coube discorrer sôbre a Arquitetura Portuguesa na Segunda Metade do Século XVI e os seus Prolongamentos. Chicó reservou para si a Introdução e o capítulo destinado aos Aspectos da Arquitetura em Portugal no Século XVIII. Concorrendo para o mesmo fim, Alfredo Evangelista Viana de Lima, tratou da Arquitetura Nacional Oitocentista e na Primeira Metade do Século XX.

Paes da Silva e Viana de Lima, cujas contribuições são exemplos de seriedade, ficaram bem à altura do ilustre mestre, de quem foram colaboradores considerados e queridos.

Fez parte também da Comissão Organizadora o douto Manuel Maia Athayde, autor muito apreciado dos Monumentos de Lisboa e a quem, sob a invocação da memória caríssima de Chicó, aqui renovo o pedido, para que venha um dia a dedicar-se, de modo particular, às janelas e sacadas, que assinalam as fachadas lisboetas, frontarias que tanto caracterizam a Ulisséia.

Outro nome que cabe registar é o de Mário Novaes, o fotógrafo esplêndido.

A exposição passou como passam tôdas as exposições. Mas ficaram suas lições, condensadas no catálogo.

Já na Introdução, bastaram a Chicó quatro parágrafos pequenos para traçar com seu grande saber uma síntese notável da arquitetura portuguesa no transcorrer daqueles quatro séculos. E não necessitou senão de duas páginas e meia de formato reduzido para o que disse e soube dizer muito, sôbre os Aspectos da Arquitetura em Portugal no Século XVIII.

De entrada, ensina que a arquitetura não dá saltos, exemplificando com a Sacristia do antigo Colégio de Santo Antão e com a igreja do Menino Deus, ambas em Lisboa, prevenindo que certas características das formas desses monumentos procedem de intercepção de influências do século anterior. Em seguida, passa, com agilidade, das fachadas das hallenkirchen, da segunda metade do século XVI, como a de Santo Antão, de sua querida Évora, e da da Matriz de Monsaraz, para ir aos mosteiros beneditinos, dos seiscentos, de Santo Tirso e do Rio de Janeiro. Depois, sem demora, focaliza João Frederico Ludwig, colocando-o no lugar que lhe é devido. E, a propósito de Ludwig, volta à sua amada Évora, recordando a atual capela-mór da Catedral, de «proporções mais elegantes que a da Basílica de Mafra».

A Carlos Mardel faz referências, a propósito de projetos de fontes, ao uso da «mansarda germânica», alude às cúpolas bulbosas e a certos alçados de quarteirões da «Baixa Pombalina»; relembra o solar do Marquês de Pombal, em Oeiras e a casa de Lázaro Leitão Aranha, na Junqueira, em Lisboa.

Retorna, entretanto, rápido aos seiscentos para aludir à casa nobre com reflexos no Brasil, mas não tarda a mencionar a ocorrência, pelos anos de setecentos, dos «palacetes iluminados por janelas de ombreiras frágeis e de verticalidade acentuada». Atenta para a mudança da decoração, exemplificando com o Palácio dos Galvões Mexias, em Lisboa, informando haver outros mais pela Beira Litoral, Extremadura e Alentejo. Faz referência então a certos conjuntos urbanos: a Praça Velha de Coimbra, e a do Giraldo, em Évora, e «quarteirões do largo central de Estremoz». Analisa com largas e justas observações o Palácio de Queluz—«o único e grande lampejo de uma sociedade «rocaille». Torna à «Baixa Pombalina» e evoca Manuel da Maia e Eugênio dos Santos, dos quais o ponto dourado é o Terreiro do Paço — porta monumental não só de Portugal mas da Europa inteira. Dali parte sua visada segura rumo ao norte e noroeste do país e focaliza Nicolau Nasoni, que com tôda proficiência «sabe aceitar as soluções locais, e as do Minho e da Galiza tem influência» na renovação do Pôrto. E previne que Nasoni também «sabe criar discípulos». No Pôrto, na igreja dos Clérigos, «obra principal» de Nasoni, o que mais o sensibiliza não é a supreendente tôrre que fere o céu; é a escadaria que dá acesso à nave; e a composição da fachada. Entre outras obras do italiano, distingue a fachada da igreja da Misericórdia, o pórtico da Catedral e o Palácio do

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Freixo, declarando que sua influência «chega de facto mais longe». Aproveita a ocasião para dar notícia de Figueiredo Seixas, autor da igreja do Carmo, da qual Chicó com sua aguda percepção nota a «nobreza e dignidade» da fachada; e vai logo alertando que a tradição portuguesa está manifestada na densidade da parte superior do frontispício e no ático—observações modelares. A propósito, traz à baila o interêsse da decoração em três tipos de casas que estão distribuídas pelo Minho, Braga, Guimarães e no Vale de Lima. Na Beira, onde sobejam solares, especifica a igreja da Misericórdia da Guarda, «cujo interior é semelhante ao de várias igrejas de Minas Gerais».

É um século de arquitetura condensado por um espírito superior.

Pelo Catálogo dos Desenhos e das Fotografias, verifica-se que se utilizou apenas de cento e quarenta e quatro modelos.

Fotos e desenhos que foram arrumados com arte e com o maior sentido didático, exibindo assim, com tam poucos elementos, quatro séculos de arquitetura portuguesa no Palácio da Cultura, no Rio de Janeiro.

A Exposição foi um marco erudito do valor português ao longo de quatrocentos anos, graças à sua realização podemos contemplar monumentos dos mais expressivos, chantados em Almada, Beja, Braga, Coimbra, Évora, Guarda, Guimarães, Leiria, Lisboa, Mafra, Monção, Portalegre, Porto, Queluz, Santarém, Santo Tirso, Sidroz, Tomar, Valença e Viana do Castelo.

Chicó, nos Aspectos da Arquitetura Portuguesa, 1550-1950, tem outra oportunidade de provar a finura de «sua capacidade seletiva», usando-se a expressão de Renato Soeiro, e a demonstra por uma segunda triagem, com a reprodução de quarenta e duas fotografias de exteriores e interiores de monumentos, e de doze plantas baixas, o que representa cêrca de trinta e sete por cento do material apresentado no recinto da exposição. Nos limites restritos dêste apontamento não se justificaria analizar-se cada uma dessas cinquenta e quatro imagens. Mas vale reafirmar que é agrupamento substancioso, para o qual não faltará a atenção de quanto se interessem pela matéria.

Não contente, Chicó enriqueceu ainda mais o seu trabalho com uma rica Bibliografia, torrente de escritores consagrados, que se contam pelos mesmos quatro séculos tratados. Para citar apenas alguns dos que estão em glória, relembram-se aqui Luís Marinho de Azevedo, Luís Serrão Pimentel, Manuel de Azevedo Fortes, Matias Aires Ramos de Eça, Frei Antônio do Sacramento, Antônio José Moreira, James Murphy, Cyrillo Volkmar Machado, Visconde de Jurumenha, José da Costa Sequeira, A. Raczynski, Joaquim Possidônio Narciso da Silva, Júlio de Castilho, Visconde de Sanches Baena, Inácio Vilhena Barbosa, Albrech Haupt, F. Marques de Sousa Viterbo, Gustavo de Matos Sequeira e o próprio Mário Tavares Chicó, cuja perda abala ainda os seus amigos e admiradores.

1966 foi o ano dêsse último esfôrço de Chicó. Com Viana de Lima, êle viera ao Rio de Janeiro dirigir a montagem de sua Exposição, no Palácio da Cultura. Eram, aliás duas exposições, pois a outra, mais brilhante, por se tratar de obras originais foi realizada no Museu Nacional de Belas Artes.

Chicó assistiu à consagração de suas mostras. Mal, porém, pôde ter êsse confôrto, porque inesperadamente, sob os nossos olhares apreensivos e deixando os nossos corações angustiados, sentiu-se forçado a voltar à sua extremecida terra, onde pereceu, cedo demais, o grande mestre, tão prezado em Portugal quanto no Brasil. Lá e aqui consola-nos reverenciar sua memória, amada de Minerva.

PAULO THEDIM BARRETO

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Conheci Mário Tavares Chicó desde muito nova mas foi após 1960 que mais assìduamente com ele convivi. Coincide a data com a época do meu interesse por problemas urbanísticos e recordo comovida a afabilidade, o interesse, o estímulo com que acolheu os meus projectos. Talvez por inexperiência e entusiasmo, certamente por juventude esses projectos atingiam sempre proporções magníficas e era o Professor Chicó, com uma palavra breve, os olhos iluminados por uma ironia bem intencionada, que me fazia a crítica e me dava o timbre que me regularia. E recordo essa época porque, circunstância a que no momento não dei amplitude devida, mas que o correr dos anos tem vindo a dar uma outra perspectiva, recordo porque ele corresponde a uma fase de grande actividade sua. É na verdade surpreendente que o Professor Chicó, ocupado na Universidade, submerso na sua actividade além-Atlântico encontrasse tempo para o dispensar como o dispensava aos seus alunos. Porque a minha experiência não foi singular e porque todos os seus alunos contavam com o seu interesse e apoio sem condições, a sugestão esperada, a ideia estimulante. Esse apoio que nos dava na Universidade e pela vida fora com uma generosidade inesgotável continuava a dispensar-nos, nunca revestia aspecto de um paternalismo. Homem essencialmente de diálogo o seu maior prazer era provocar nos seus alunos a revelação das qualidades próprias a cada um e ajudar a encaminhá-las no melhor sentido.

Foi esse o modo como o Professor Chicó me sugeriu e encaminhou com a paixão e entusiasmo com que descrevia o seu trabalho, para o trabalho nos museus. Sim porque se na maior parte dos casos se recorda Mário Tavares Chicó como professor, investigador, conferencista, não se deve perder de vista que a sua primeira actividade teve lugar nos museus e é o Museu que o preocupa desde o início da sua carreira. Muito cedo elabora programas piloto bem documentados no estudo feito em 1940 e apresentado como tese no exame final de conservador tirocinante e posto em prática durante toda a sua vida, primeiro no Museu da Cidade de Lisboa, depois no Museu de Évora.

Datam do meu último ano de estágio no Museu de Arte Antiga as impressões que me apresentaram Mário Tavares Chicó fora do ambiente da Universidade e absorvido pela tarefa de Conservador de Museu, e datam também dessa época as conversas que julguei casuais mas que hoje reconheço como um curso de museologia em meu benefício. Após 1964, quando o meu conhecimento dos museus não nacionais e o exercicio da profissão num Museu me faziam uma interlocutora mais apetrechada evoco toda essa massa de recordações que constituem toda uma filosofia de Museus.

Para o Professor Chicó o Museu era essencialmente uma faceta da actividade humana inteligente. Não entendia nem podia aceitar o Museu-missão ou o Museu como um fim em si. Não podia aceitar soluções em que não se desenhasse uma ambivalência, efeito de implicações lógicas estéticas a que presidisse uma sólida cultura humanística. Deste modo, da solução americana de museus usa só as implicações práticas e certos aspectos de comunicação em grande escala dando a sua verdadeira preferência ao museu tipo holandês, claro e simples à medida do homem e para o homem feito. Contudo é sempre incondicional a sua afirmação de que as soluções não nacionais são experiências e que cada museu deveria constituir uma experiência única válida dentro do grupo cultural a que pertence e estudado especìficamente em relação ao meio, ao momento e passado históricos, as colecções que agrupa a função que poderá desempenhar na comunidade. Via muitas vezes o museu como o campo experimental da actividade do historiador ou do cientista, recusando-lhe também muitas vezes a função de eclectismo tão ao gosto dos americanos quando a fazer-lhe preencher o seu papel de análise e crítica e enquadra dentro das preferências germânicas. A sua atitude perante o arranjo de museu, salas, métodos de exposição, reflectia a sua formação de historiador de arquitectura, formação que transparecia a cada passo dando-lhe a faculdade de interpretar o espaço e usá-lo com uma certa independência do envólucro formal, o que se reflectiu nos seus conceitos de agrupamento e na recusa das soluções apenas agradáveis e decorativas. Para além de um todo harmónico estava interessado em promover o museu dando-lhe o fim específico que o justificasse dentro da evolução humana. Os museus por que se interessava são sintomàticamente aqueles que para além de uma beleza formal, existissem dentro de uma realidade cultural. Eles explicam uma cidade, um monumento, uma época. Daí também o seu veto ao museu metropolitano e monumental, inumano e formal quanto ao contexto e estéril quanto aos resultados. Depois e como está bem documentado nos cursos que planificou para a Universidade de Brasília não compreendia nem aceitava soluções empíricas no arranjo dos museus ou no estudo das suas colecções recusando a fórmula americana e pseudo-ecléctica dava a sua preferência aos tipos anglo-saxó-nicos e germânicos enquadrando o museu na universidade como extensão ou campo de trabalhos práticos. Dizia então frequentemente «sem conhecimentos teóricos o conservador não é um especialista, é um operário especializado». Em consequência a museologia era então um estudo prático sim, mas que fora antecedido por uma sólida preparação técnica e integrada na Universidade de que constituía uma disciplina. Este papel da universidade era porém ambivalente e recordo o seu interesse quando em 1965 foi inaugurado o Museum of History and Technology de Washington. O

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Museu não seria exclusivamente dependente de uma Universidade Clássica mas participaria de disciplinas exactas. Os museus que deixou documentam bem este espírito sintético em que o espírito científico e a sensibilidade artística se conjugam — o Museu da Cidade de Lisboa e o Museu de Évora.

É fugaz e insuficiente a evocação e apenas parcialmente documenta uma das facetas da personalidade extraordinàriamente rica de Mário Tavares Chicó. Fique como apontamento breve de uma grande saudade e de um reconhecimento profundo.

MARIA JOÃO MADEIRA RODRIGUES

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UM AMIGO INESQUECÍVEL

Não foi longa no tempo a Amizade que me ligou ao Prof. Mário Chicó, mas de tal maneira a vivemos que meia dúzia de anos pode representar o afecto comum de uma longa vida.

Fora eu escolar em Coimbra, entre 1943 e 1948, na época em que ele já regia História de Arte em Lisboa, num magistério em que soube formar, ao mesmo tempo, discípulos e amigos. O interesse que me despertou a nova dimensão de O Gótico em Portugal fizera com que, ao redor de 1953, eu tivesse recorrido à sua Cultura para clarear aspectos nebulosos do estilo ogival em Santarém. Recordo-me que nesse breve contacto eu beneficiei já da gama de conhecimentos e da largueza de concepções de Mário Chicó. Mas as nossas estradas apenas voltaram a cruzar-se em 1959, desta vez para um convívio de três semanas na cidade do Salvador, que ele considerava a mais portuguesa das terras do Brasil. E aí pude melhor apreciar a riqueza da sua Cultura e o encanto do seu convívio.

A partir de 1961 o nosso encontro passou a ser quase diário. O intervalo de dois cursos para alunos estrangeiros permitia que nos reuníssemos no seu gabinete de trabalho, atulhado de livros, de mapas e de material de história de Arte. Nesse convívio de fins de tarde, num diálogo em que recebia o conselho sereno e o apoio moral para vencer horas de desalento, habituei-me a admirar o Colega, a respeitar o Homem e a sentir um carinho imenso pelo Amigo.

Que lições de equilíbrio, de tolerância e de grandeza de Alma! O raciocínio de Mário Chicó era geométrico, mas expresso de forma tão sensível que ia direito ao pensamento e ao coração dos Amigos. Mesmo o fundo de cepticismo, que por vezes o embalava sobre os homens e as coisas terrenas, não tinha o amargor derrotista de quem não faz nem deixa criar. Em Mário Chicó havia um ideal de permanente criação, um sentimento de confiança nos outros, a certeza de que a Vida é uma conquista do homem e de que este deve ser digno de a sentir e viver. Era um esteta, no sentido mais nobre do termo, e que impunha uma ordem mental na apreciação das coisas, buscando a medida clássica.

No azul diáfano do seu olhar havia sempre um clarão luminoso que transmitia a quietação aos Amigos; e da sua voz pausada destacava-se uma série de conceitos de riquíssimo conteúdo e que eram um constante apelo à Razão e ao bom senso, uma forma de repúdio das coisas medíocres e uma abertura constante a nobres ideais do Espírito. Mesmo a sua ironia subtil e que poderia, para quem não o conhecesse, revestir uma forma cáustica, mais não era do que a marca de uma atracção crítica destinada a corrigir, quando não a encorajar, mas sempre a servir de bordão aos Amigos mais jovens que buscavam o seu ponderado conselho.

Soam-me ainda os ecos dessa tomada de consciência que devo a Mário Chicó: «não demos forma material às coisas do Espírito, porque barateamos a Vida; precisamos, pelo contrário, no dia a dia, de transformar a matéria em Beleza»;

«a desordem exterior apenas existe em quem não sabe impôr uma ordem ao Espírito; «servir o ensino é amar e compreender os estudantes, dar-lhes uma formação mental e uma linha moral, mas ter a coragem de os corrigir nos seus excessos»;

«pactuar com os medíocres é ser também medíocre, logo um mau serviço que prestamos a nós próprios»; ou então, quando dizia à moda alentejana: «ai, que este Senhor é um crédulo»!

Quase três anos decorridos sobre a morte de Mário Chicó, a sua lembrança mantém-se viva em quanto tiveram o privilégio de o conhecer. Uma grande saudade continua a envolver o seu nome e obriga os seus amigos, num preito de gratidão perene, a recordar esse belo Espírito. Mas o sentimento é unânime: cada um, à sua maneira e com a alma cheia de saudades, pretende apenas confessar a falta que lhes tem feito a inesquecível companhia de Mário Chicó.

Paris, 23 de Março de 1969

JOAQUIM VERÍSSIMO SERRÃO

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O MEU AMIGO PROF. MÁRIO CHICÓ

Não tive a sorte de ser aluno do Prof. Mário Chicó. Mas nos últimos anos do meu Curso em Ciências Históricas e Filosóficas anunciava-se já o próximo ingresso no corpo docente da Faculdade de Letras de um notável investigador e historiador da Arte Portuguesa. Foi assim que o nome do Dr. Mário Chicó passou a ser conhecido, pelos alunos, nos claustros do velho Convento de Jesus e a ser ansiosamente esperado pelos que queriam saber algo de Arte Portuguesa.

Conheci-o uma tarde na Faculdade, e não pude deixar de ficar fascinado com a sua simplicidade e com a sua comuni-cabilidade. Sempre ajoujado de livros e de fotografias maravilhosas, as suas aulas na Faculdade passaram a despertar um interesse extraordinário entre os alunos, pelo que começaram a surgir os seus primeiros discípulos, muitos deles actuais professores de História de Arte Portuguesa. Sobre o primeiro discípulo que lhe conheci, lembro-me muito bem de lhe ter ouvido: «Gosto muito deste moço, pois trabalha muito bem; o Artur Gusmão há-de ir longe».

Tempos depois, quando eu saía da sala de actos onde acabava de prestar a última prova do doutoramento em Filosofia, o Dr. Chicó veio direito a mim, num amplo abraço e as suas palavras, vinte e cinco anos depois, ainda soam nos meus ouvidos: «Não gosto de ver arguentes com má vontade, mas gosto muito de ouvir respostas à letra. Dê cá um abraço».

Coração generoso e sempre aberto para auxiliar os que dele se abeirassem a pedir conselhos ou a procurar aumentar conhecimentos, o Dr. Mário Chicó era dotado de um sentido de justiça e de rigor que sempre muito lhe admirei.

Num dia de Julho, em exames de licenciatura, fui encontrar o Dr. Chicó menos alegre e comunicativo do que o costume. À minha interrogação, respondeu-me de pronto: «Vai suceder uma coisa aborrecida, pois tenho de criticar hoje a dissertação de um moço que sabe pouco disto; aceitou sem criticar hipóteses que não têm base e a partir delas apresenta novas teorias da Arte Portuguesa». Como lhe dissesse que isso não parecia motivo para aborrecimentos, por ser atitude frequente entre os jovens licenciados, respondeu-me: «Está enganado. A mim custa-me, pois o rapaz está convencido de que escreveu um trabalho admirável, e o pior é que o pai não me larga, convencido da maravilha da dissertação do filho».

Pouco depois, o Dr. Chicó sentado a meu lado na mesa do júri, com a sua simplicidade natural, com uma calma e uma soma de conhecimentos admiráveis, mas com um vigor que é apanágio dos estudiosos desfez a dissertação sem ficar pedra sobre pedra. Tenho fortíssimas dúvidas sobre a correcção da atitude posterior do aluno, mas a nobre e generosa atitude que o Dr. Chicó manteve durante a crítica e depois na reunião do júri, bem merecia que o Dr. Chicó nunca se tivesse sentido, como sentiu.

Neste caso, como em tantos outros, a consciência do Prof. Mário Chicó ficou tranquila. Isso é que conta para os professores, suceda o que suceder.

Mas não se pense que a actividade do Dr. Chicó, na Faculdade, se limitava sòmente à docência. O seu interesse pela nossa Faculdade era total e daí a sua múltipla actividade em vários sectores, muitas vezes com prejuízo da sua precária saúde.

Quando se projectava o actual edifício da Faculdade, na Cidade Universitária, o então Director, Prof. Gonçalves Rodrigues, constituiu uma pequena comissão, de que faziam parte ele próprio, o Prof. Mário Chicó e o signatário. Esta comissão teve muitas reuniões com os arquitectos encarregados de planear a obra, para esclarecer, sugerir, solicitar. Se bem me recordo, o Dr. Chicó esteve sempre presente naquelas inúmeras reuniões, que eram de trabalho e portanto desconhecidas do grande público e, pelo que depois se verificou, também da maioria dos Professores da Faculdade.

Estas reuniões eram longas e obrigavam-nos a estar quase sempre de pé, debruçados sobre as mesas onde se achavam desdobradas as plantas.

Numa destas múltiplas reuniões, a certa altura o Dr. Chicó começou a sentir-se indisposto, pelo que houve necessidade de o deitar e reanimar. Quando recobrou os sentidos, as primeiras palavras do Dr. Chicó foram para dizer que aquilo não tinha tido importância e que já podíamos continuar a sessão de estudo. Por mais que tivéssemos instado por o levar a casa ou, ao menos, para suspendermos a sessão, a tudo se opôs e não houve outro remédio senão continuarmos mesmo a trabalhar, com constante actividade do Dr. Chicó.

À noite, na Versailles, encontrei o Dr. Chicó com uma enorme pasta de documentos, pois ainda tinha ido trabalhar com o Director-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes!

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Perante o meu espanto, respondeu-me: «Primeiro estão as coisas da nossa Faculdade e da Direcção-Geral. Depois é que está a saúde. Mas agora reparo, ainda nem jantei.»

Foi este interesse sinceríssimo pela Arte Portuguesa, pelos seus alunos, pela sua Faculdade, que sempre me ligaram espiritualmente ao meu querido e saudoso Amigo, o Prof. Mário Chicó, modelo de simplicidade e rectidão.

Lisboa, Páscoa de 1969

ARTUR MOREIRA DE SÁ

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MÁRIO T. CHICÓ E A EXPOSIÇÃO DE ARTE PORTUGUESA

(1550-1950)

Em atenção ao honroso convite de participar das homenagens que Portugal, com êsse «In Memoriam», presta a um grande filho seu, o Professor Mário Tavares Chicó, venho trazer o meu depoimento acerca de um de seus últimos trabalhos—a Exposição de Arte Portuguesa (1550-1950), organizada para as comemorações do 4.° Centenário da fundação da cidade do Rio de Janeiro, e que constituiu, com a exposição Aspectos da Arquitetura Portuguesa também sob sua orientação, o mais importante e mais completo acervo de arte que Portugal já mandou às Américas.

Professor-historiador de arte e museólogo, Mário T. Chicó aliou dois tipos de vivência que se completam e que deviam estar sempre ligados: o conhecimento profundo de um setor de cultura e o trato íntimo com o material que documenta êsse setor, formando o profissional em sua plenitude.

Convidado especial do II Congresso Nacional de Museus patrocinado pela Organização Nacional do ICOM e realizado em S. Paulo em 1959, trouxe êle esplêndida mostra fotográfica de museus portugueses que apresentou com a sensibilidade seletiva e crítica de um expoente do «métier», o que, aliás, já se dera no Rio com a exposição fotográfica de Arte Portuguesa na Índia, realizada no Gabinete Português de Leitura. Convidado, em 1962, para ministrar um curso de Arte Portuguesa na Universidade de Brasília, curso que só pôde levar a efeito em fins de 1963, confirmou-se entre nós como professor insigne que já se mostrara em várias conferências e curso rápido dado na Faculdade de Filosofia do Rio, tendo impressionado a ponto de suscitar ao então Reitor da Universidade, Professor Darcy Ribeiro, incumbir-lhe planejar um Curso Superior de História da Arte e Museologia, assunto em que trabalhou quase um ano. Antes mesmo de dar por finda essa missão, era encarregado pelo Govêrno de seu país da organização da Exposição de Arte Portuguesa (1550-1950), a ser trazida ao Rio de Janeiro para as comemorações do 4.° Centenário da fundação da Cidade. Nesse desempenho, embora doente desde as primeiras etapas do trabalho, deu-nos sua última lição de historiador de arte e museólogo.

Preparo da Exposição.

A 14 de julho de 1964 Mário T. Chicó, na reunião da Comissão Encarregada de Estudar a Participação Portuguesa nas Comemorações do 4.° Centenário da Cidade do Rio de Janeiro, presidida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dr. Franco Nogueira, apresentou o anteprojeto da Exposição de Arte Portuguesa (1550-1950), bem como a de uma de documentação fotográfica de arquitetura portuguesa, cuja organização estudava juntamente com o Diretor e professores da Escola Superior de Belas Artes do Porto. Êsse projeto, que a 15 de agosto enviava desenvolvido ao Ministro, já continha em linhas gerais o plano-diretor da obra. Quatro dias após o Ministro Franco Nogueira apunha-lhe sua aprovação, e determinava que o Professor Chicó deveria deslocar-se ao Rio para estudar as possibilidades de localização da mostra.

Já doente, não pôde viajar logo. Em carta de 22,10 ao Diretor-Geral do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Dr. Rodrigo M. F. de Andrade, escrevia: «Como seria perigoso sair agora de Lisboa devido ao meu estado de saúde, tenho de adiar por mais umas semanas a minha ida ao Brasil. Espero encontrá-lo esta vez e recorrer aos seus bons conselhos. Bem desejaria que a exposição causasse boa impressão e fosse, de fato, representativa do largo período que abarca e que é, afinal, da história do Rio.»

Entrementes foi delineado o projeto da Exposição com a colaboração do pintor Abel de Moura, então Diretor do Museu Nacional de Arte Antiga; do Dr. Artur Nobre de Gusmão, Professor da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e Diretor do Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gul-benkian; do arquiteto Alfredo E. Viana de Lima e do Dr. Jorge H. Pais da Silva, Professores da Escola Superior de Belas Artes do Porto, que constituíam com êle próprio a Comissão Organizadora da mostra. E viajou pelo país na escolha do material a figurar.

Só em meados de Março chegou ao Rio. Estudou os locais disponíveis: preferiu o Salão de Exposições do Palácio da Cultura para a Exposição Aspectos da Arquitetura Portuguesa. Quanto à Exposição de Arte, teve dúvidas entre o Museu de Arte Moderna, que possibilitava mostra mais espetacular porém de pouca duração, e o Museu Nacional de Belas Artes que, embora só tivesse um 3.° andar a oferecer, admitia uma apresentação simpática e sua visitação por dois meses, fator êste que prevaleceu na escolha.

Decidido o local escrevia-nos a 10.4.65: «Como o tempo que aí passei me permitiu estudar a disposição a dar às salas e as características do material de exposição que convem levar, vou ver se consigo, dentro da verba de que disponho, mandar construir ràpidamente as vitrines, os bancos e

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outro mobiliário». Daqui levara a planta do local—galerias corridas em tôrno de um páteo quadrado. De acôrdo com seu projeto compartimentou toda área, reservando para cada período cronológico a metragem necessária; reduziu ligeiramente o número de peças, subordinando-o ao espaço disponível; obteve do arquiteto Viana de Lima o estudo de vitrines sóbrias e elegantes, garantindo o máximo de visibilidade e de flexibilidade;

e para acomodar o visitante, providenciou a execução de bancos discretos e cadeiras savonarolas.

No fim do mês partiu com Abel de Moura para o Porto e Coimbra a ver o estado de conservação dos quadros que iam ser requisitados. Até fins de novembro desdobrou-se e desgastou-se no preparo das exposições e no acondicionamento das obras que, de natureza diversa, exigiam tratamento condizente com sua fragilidade. Afinal despachou-as para o Brasil e veio, exgotado, assistir à chegada do material e dar início à montagem da Exposição.

A Exposição pròpriamente dita.

A condensada e erudita Introdução do catálogo feita pelo Professor Chicó dá como escopo da iniciativa «mostrar ao público interessado e aos estudiosos algumas das manifestações mais características da arte portuguesa...»; a que acrescenta: «Não é uma exposição de obras-primas mas de obras representativas das constantes da arte portuguesa e do seu papel de elemento transmissor das correntes artísticas da Europa para a Ásia, para o Brasil e para as ilhas do Atlântico.» Certamente o autor deixa à sensibilidade do público e perspicácia do estudioso a revelação da grandeza da exposição que nos trouxe—exposição que, dentro das limitações impostas à saída do país de peças extraordinàriamente valiosas, representou, de sobejo, as qualidades da arte de seu povo, tendo se constituído talvez na mostra mais opulenta que já recebemos de fora. Organizada com espírito de verdadeira lição, refletiu, pela seleção do material, pela apresentação, pelo catálogo e ainda pelas coleções colaboradoras, a segurança, a sutileza, o método e o prestígio do mestre.

Seleção.

As peças trazidas confirmam os propósitos apontados por Chicó:

1.°—representar a arte portuguesa de 1550-1950 nos seus diversos aspectos, isto é, pintura, desenho, escultura, ourivesaria, mobiliário, cerâmica, tecido e bordado;

2.°—revelar o carácter expressivo da raça que, com maior ou menor intensidade, se filtra através das influências estrangeiras;

3.°—denunciar o momento da fusão artística oriento-ocidental, devida a intromissão de elementos portugueses na arte do Oriente e de elementos orientais na arte portuguesa.

Observação mais profunda, porem leva-nos a perceber pontos desse critério de seleção que êle não cuidou de declarar, mas que se tornam evidentes no Quadro I:

Q. I

PEÇAS Pint. Aquar. e Des.

Escult. Ouriv. Mobil. Ceram. Tec. e Bord.

Total

sec. XVI 7 3 — 7 1 — — 18

XVII 8 l 1 10 11 10 2 43

XVIII — 5 8 6 5 5 l 30

XVIII-XIX 4 10 — 4 — 2 — 20

XIX 12 4 1 — — — 17

XIX-XX 20 1 — — — — — 21

XX 27 7 7 — — — — 41

indeterm.0 — — — 3 — — — 3

Total 78 31 17 30 17 17 3 193

a)—traduzir a importância de cada século e de cada setor artístico no panorama geral da arte

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portuguesa (confronto dos totais com o total absoluto);

b)—manifestar o conceito de cada setor artístico dentro de sua época e no decorrer dos séculos (confronto das parcelas com os totais relativos);

c) — apresentar peças ou facetas menos conhecidas da arte portuguesa que, de certa forma, interessam ao público brasileiro, tais como:

—a presença de 10 desenhos da transição sec. XVIII-

-XIX (série de retratos da família real do Reino-

-Unido Portugal-Brasil);

— a ênfase dada à pintura de transição sec. XIX-XX e à do próprio século XX (desconhecidas no Brasil, conquanto numerosos os exemplares da fase naturalista do século XIX);

d)—destacar o século XVII, o mais representado e o único que participa de todos os setores artísticos, momento expressivo da arte portuguesa e particularmente das artes decorativas, cuja importância o confronto do Quadro II evidencia:

Q. II

Total A. Decor. %

sec. XVI 18 8 48,9

XVII 43 33 76,7

XVIII 30 17 56,7

XVIII-XIX 20 6 30

XIX 17 — —

XIX-XX 21 — —

XX 41 — —

indeterm.0 3 3 —

Total 193 67 34,7

Apresentação e aspecto da Exposição.

Em obediência à distribuição determinada em seu plano-diretor, reservou Chicó a sala introdutória para fotografias ampliadas dos museus participantes e apresentação das publicações portuguesas feitas para as Comemorações, e as demais salas, que arrumou em ordem cronológica e com o gôsto mais apurado, para a evolução da arte portuguesa.

Na galeria do sec. XVI ressaltavam, entre desenhos de Campeio, Vanegas e outros, as pinturas Martírio de São Sebastião, atribuida a Gregório Lopes, os retratos dos reis D. João III e D. Catarina, de Cristóvão Lopes, e o Inferno de autor ignorado, todas do Museu Nacional de Arte Antiga, além de coleção de magníficas peças de ourivesaria que por sua confecção esmerada e inexistência entre nós mereceram atenção tôda especial. O sec. XVII, o mais impressionante de todo conjunto e ao qual Chicó dedicou-se com um carinho emocionante, reuniu dois grupos exposicionais: o de arte ocidental, avultando as esplêndidas pinturas Retrato de D. Catarina de Bragança, de autoria ignorada. Natureza Morta e Cordeiro Místico de Josefa d'Óbidos, todas do Museu de Évora, e peças de ourivesaria e mobiliário preciosas, no gênero das que constituem o orgulho de algumas nossas coleções; o de arte oriental, bastante raro entre nós, com o grande e valioso biombo japonês do Museu N. de Arte Antiga, oratórios interessantíssimos, boas peças de mobiliário de teca e marfim, ourivesaria, colchas, tapetes e cerâmicas, a ratificar afirmativa de Chicó na Introdução: «A influência do Oriente intensifica-se na cerâmica, no mobiliário, nos tapetes e bordados; em muitos conventos e casas nobres quase não há um prato ou uma jarra que não evoque, numa linguagem menos requintada, a decoração das peças vindas da China e do Japão».

Do sec. XVIII sobressaiam as notas coloridas da escultura Fuga para o Egito, de representação

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excepcional no Brasil, e dos grupos primorosos do barrista Antonio Ferreira, pertencentes ao presépio da Madre de Deus, que completavam, com peças de mobiliário e de ourivesaria ricamente trabalhadas e familiares aos nossos olhos, o ambiente opulento e um tanto declamatório do século. Na pequena sala do sec. XVIII--XIX, suave pelo domínio dos desenhos, distinguiam-se a imaginária dourada e as pinturas de Sequeira, inclusive o gracioso Retrato do Conde de Farrobo, contrastando com a sala seguinte, da primeira metade do sec. XIX, em que se salientavam o vigor e a observação psicológica dos retratos de Lupi e do Visconde de Menezes.

Em recinto maior reservado à segunda metade do século, Marques de Oliveira, Columbano e Pousão sobrepujavam, por sua sensibilidade pictórica e tonal e linguagem pessoal, o realismo dos Silva Porto, Malhoa e Souza Pinto presentes, e o bronze de Soares dos Reis era nota robusta numa extremidade. As pinturas de Veloso Salgado e Joaquim Lopes, dentre vários impressionistas, constituiam agradável música de fundo para a obra de Carlos Botelho, do princípio do sec. XX, enquanto na última sala Souza Cardoso e Dórdio Gomes, por caminhos diferentes mas igualmente fortes, destacavam-se a anunciar tendências informais e formais da geração mais nova. A escultura, representada sobretudo por Franco, Duarte e Feyo, quer em desenhos vigorosos, quer em sua técnica própria na pedra ou no bronze, reafirmava-se como uma das presenças marcantes da arte contemporânea.

Catálogos.

Programados dois tipos desde o anteprojeto, os catálogos viram diminuida sensìvelmente a distância entre ambos pela uniformização do número de ilustrações, da inclusão do estudo introdutório de Chicó e das notas biográficas dos artistas. Passaram, pois, a se diferençarem apenas pela inserção, no especial, de prestimosa bibliografia — tão ao gôsto do mestre — de obras gerais sôbre arte portuguesa, e especializadas sôbre pintura e desenho, escultura, e artes decorativas, além de uma ilustração a côres. Colaboraram em sua redação D. Maria Antonieta Pessanha Santos e D. Maria João Madeira Rodrigues, respectivamente professora e publicista, e conservadora do Museu de Arte Sacra da Misericórdia de Lisboa.

Fartamente ilustrados (54 fotos em prêto e branco), todos os setores artísticos foram representados, seguindo de um modo geral critério idêntico ao da seleção das peças.

Colaboradores.

Exposição organizada pelo Govêrno Português, mereceu da parte dos museus nacionais, regionais e municipais todo o apoio, ao qual se juntaram alguns colecionadores. Colaboraram: o Museu Nacional de Arte Antiga (AA), Museu Nacional de Arte Contemporânea (AC), Museu Nacional Soares dos Reis (SR), Museu Regional de Évora (E), Museu Regional de Lamego (L), Museu de Grão-Vasco, de Viseu (V), Museu da Cidade de Lisboa (Lx), Museu-Biblioteca Albano Sardoeira, de Amarante (A), Professor Dr. Paulo Cunha (PC), Dr. José da Silva Braga (SB), Dr. Fausto de Figueiredo (FF), e Escultor Joaquim Correia (JC), segundo informa o Quadro III:

Q. III MUSEUS COL. PARTICULARES

AA

AC

E

SR

LX A L V PC SB FF

JC

An.o

Pintura — 78

13

26

5

8

8 8 — — 4 3 l

2

Des. Aq.— 31 18 — — 4 2 2 — — — — — — 5 Escult. — 17 4 5 5 2 — — — — — — — l —

Ouriv. — 30 14 — 4 6 — — 4 2 — — — — —

Mobil. — 17 9 — 8 — — — — — — — — — —

Ceram. — 17 16 — ; — — 1 — — — — — — — — T. Bord.— 3 3 — — — — — — — — — — — —

Total 193

77

31

22

20

11

10

4

2

4

3

l

l

7

Total—177 peças (91,7%) Total: 16 peças (8,3%)

O Amigo.

Tal foi a Exposição que para nós organizou e trouxe Mário Tavares Chicó.

Referir-se ao Professor representa sempre uma emoção para os que o conheceram —

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inteligente, erudito, probo, arguto, sagaz, sensível, exigente à qualidade, malicioso talvez, mas de malícia fina — é o preito que todos indistintamente lhe rendem. Mas seus amigos, que privaram mais intimamente com suas qualidades, com o encanto de sua palestra ao mesmo tempo viva e sutil, com seu trato de homem civilizado sem asperezas e excessos, têm algo a acrescentar: um coração grande que, com carinho e desvêlo raros, cultivava suas amizades.

Não admira, pois, que tivesse amigos, e muitos. Em Portugal, por terras onde andou, no Brasil sobretudo, onde foi feito Doutor «honoris-causa» pela Universidade de Pernambuco, titulo que lhe merecia um apreço particular. Sua presença entre nós tornou-se frequente desde 1957, e a sede da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional casa sua, graças à afeição profunda que se estabeleceu entre êle Diretores e técnicos da instituição. Correspondendo-se com e o então Diretor-Geral, Dr. Rodrigo M. F. de Andrade, demais assiduidade, todos sabíamos onde andava e o que fazia, tendo sido por isso mesmo sua moléstia acompanhada por todos passo a passo, dolorosamente, desde setembro de 1964:

21.9.64—da Costa de Caparica—«Na volta de Bruxelas... cheguei a Lisboa mal disposto e muito fatigado... e agora veio-me um ataque de reumatismo...». Um mês depois, a 22.10 escrevia: «...embora doente e movendo-me com dificuldade devido a um forte ataque reumático, tive de continuar a planificar as exposições de arquitetura e de arte portuguesa (1550-1950) que vão ser enviadas para o Rio...»

Ainda doente, em março esteve no Rio a serviço, pondo-nos apreensivos. E voltou mais uma vez —a última— em dezembro com as exposições, acompanhado do amigo e colaborador Arquiteto Viana de Lima, que arrumaria a mostra de arquitetura.

Todos compreendemos que êle estava mal. Seu abatimento, cansaço, os movimentos difíceis, as contrações de dôr seguidas, e a trabalhar na montagem da exposição a ser inaugurada antes do Natal. Nas vésperas do Ano Novo, angustiados vímo-lo partir. Escreveu-me em 11.1.66: «Saí do Rio... sentia-me porém muito fatigado e, mal cheguei a Lisboa adoeci... aqui estou a escrever-lhe da cama...». E a 8.2 desabafou: «De fato peorei bastante no Rio, mas já ia doente e muito fatigado, e não quero atribuir a uma cidade de que gosto e onde me sinto tão bem a artrite reumatoide que me tem obrigado estar em casa—e quase sempre de cama.». E inquieto com o trabalho:

«Preocupa-me ver-me assim impossibilitado de fazer a vida normal e a poucas semanas do encerramento das exposições.».

Não pôde vir desmontá-las, incumbindo a tarefa aos seus assessores do Museu de Évora. Mas estava atento: «Espero que a reembalagem das exposições seja feita com o maior cuidado... Não pude cumprir o prometido: um breve curso sôbre a arte e a arquitetura portuguesa de 1550 a 1950... As exposições, embora lá não vá, têm-me dado muito trabalho aqui...». E ainda com esperanças de voltar ao Rio dizia: «Ficará para setembro, quando se realizar o ciclo de conferências sôbre os museus portugueses».

Em gôzo de bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian cheguei a Lisboa em fins de abril. Acompanhei de perto seus últimos meses. Embora bastante doente e preocupado por casos que surgiam com relação às Exposições, já tomava providências para que elas fôssem repetidas no Museu Nacional de Arte Antiga, como contribuição às festividades de inauguração da ponte sôbre o Tejo. Mas os fados contrariaram êsses planos. Como também o de sua volta ao país «onde se sentia tão bem».

LYGIA MARTINS COSTA

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EM MEMÓRIA DO PROFESSOR MÁRIO TAVARES CHICÓ

A figura de homem, de mestre e de pesquisador cultural que foi o Professor Mário Tavares Chicó, marcou profundamente, de forma positiva, o convívio cultural entre Portugal e Brasil, nos dois últimos decênios.

Desde que, em 1954, por ocasião do II Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, realizado em São Paulo, aqui estêve, trazendo a extraordinária exposição de fotografias da arquitetura do sul de Portugal, o Professor Chicó tornou-se amigo de número considerável de brasileiros, que o prezavam como mestre insigne, e com quem se correspondia intensamente.

Tôdas as vêzes em que houve oportunidade, por convite brasileiro ou por incumbência de sua pátria, para aqui veio, demorando-se em visitas aos monumentos e aos núcleos de arquitetura antiga e de maior interêsse cultural e em contactos com especialistas brasileiros. Inúmeras palestras e cursos realizou no Brasil, e várias foram as exposições que para cá trouxe, inclusive as duas últimas, por ocasião do IV Centenário do Rio de Janeiro, quando o Ilustre Professor já se encontrava bastante enfermo.

O falecimento do Professor Mário Chicó representou para nós, além da perda do grande e excepcional Amigo, um desastre sério, pois que caminhava, êle, no sentido de concretizar em artigos e em livros a análise da arquitetura brasileira, principalmente, a do setecentos. Lembro-me, bem, de ter-me falado, certa vez, da intenção de dar início a trabalho para ser publicado, creio, que pela Fundação D. Pedro IV, versando sôbre o dezoito brasileiro. Aliás, o fato de ter tomado para si, a apresentação dêsse século da arquitetura portuguêsa no catálogo da exposição realizada no Rio, em 1965, é, um forte indício da orientação que tomavam seus estudos. Seus trabalhos impressos não haviam alcançado essa centuria. Tendo iniciado estudos pela análise da fase românica, do gótico e do manuelino em Portugal, dedicou-se, a partir de 1950, ao estudo e crítica do maneirismo português e de sua repercussão no ultramar: Índia e Brasil.

Muito bem analisou o Dr. Rodrigo M. F. de Andrade a obra do Professor Chicó, ao apresentá-lo ao público brasileiro, por ocasião de uma série de palestras realizadas em 1959:

«Sua obra publicada até agora, conquanto menos numerosa do que lhe permitiriam extendê-la a vastíssima erudição e as singulares aptidões de que é dotado, dilatou, como raras outras o terão feito, tanto o conhecimento dos fatos de maior relêvo da história da arte, em Portugal, quanto a compreensão mais completa e perfeita do respectivo encadeamento e dos traços essenciais que lhe distinguem o conjunto. A acuidade e o saber que possui, desenvolvidos e afinados por uma experiência já imensa, ao contrário de o inclinarem a imprimir com largueza as aquisições acumuladas em seus estudos e enriquecidas em seu pensamento, têm-no induzido a uma contenção demasiadamente rigorosa, que talvez se explique como reação do seu desinterêsse pelas obras de mera divulgação, as conjecturas mais ou menos temerárias e as sumarizações ligeiras, em que tantos de nós pecamos, de uma beira e da outra do oceano. Mas, por isso mesmo que escrupulosamente amadurecida e elaborada, sua produção impressa se impõe pela solidez e a qualidade invulgar».

Prematuramente perdemos o Professor Chicó. Cabe agora, aos especialistas e estudiosos de arte da comunidade luso--brasileira continuar as pesquisas, dar prosseguimento às análises e estudos das artes em Portugal e no Brasil, visando a maior compreensão das mútuas influências e interdependências entre as culturas dos dois povos irmãos.

Muitos são os problemas que se propõem à análise, dúvidas que se apresentam na evolução da arte luso-brasileira, e que estão a exigir observação e comparação de número considerável de elementos; argúcia e meditação na proposição de soluções capazes de explicar as influências que agiram no desenrolar das diversas fases da história da arte.

Há um problema que, creio, merece uma análise e um estudo acurado pela comfunidade cultural luso-brasileira.

Refiro-me à origem do partido que predomina nas igrejas brasileiras do século XVIII, isto é, as igrejas de nave única ladeada por corredores que se estendem, desde a frontaria até a sacristia, normalmente localizada aos fundos da cape-la-mor.

Este partido é predominante no Nordeste, na área do Recôncavo baiano, na região fluminense, e, em geral, em todo o país. Não me consta que seja usual em Portugal. Germain Bazin, em seu livro sobre a arquitetura religiosa brasileira, aventa como interpretação para o aparecimento dêste partido, a mesma solução que, há poucos meses, propôs-me o Professor Santos Simões, por ocasião do Festival do Barroco em Salvador: origem nos avarandados envolventes, que teriam

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aparecido nas regiões tropicais, como proteção térmica para o corpo da igreja.

Tal interpretação, no entanto, a despeito da existência de igrejas e capelas, notadamente rurais, envolvidas por simples pórticos ou por avarandados, como, por exemplo, a da Conceição em Comendaroba, no Sergipe, não resolve de forma completa o problema, pois que uma das mais antigas capelas envolvidas por avarandados que conhecemos no Brasil localiza-se fora da região tropical. Trata-se da capela de São Miguel, do início de seiscentos, que pertenceu à antiga missão jesuítica de S. Miguel do Ururai, e se acha no planalto paulista, atualmente na própria cidade de São Paulo.

Fato a também merecer exame é o da alteração introduzida neste partido, na segunda metade do dezoito, em Minas Gerais, com a eliminação dos corredores laterais à nave, propiciando as soluções geniais criadas por Antônio Francisco Lisboa. Será tema, não tenho dúvida, da maior importância e oportunidade, digno de ser desenvolvido por especialistas portuguêses e brasileiros conhecedores dos dois acervos arqui-tetônicos, sob a evocação do saudoso Professor Mário Tavares Chicó.

AUGUSTO CARLOS DA SILVA TELLES

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PROFESSOR CHICÓ

Das atividades mais constantes do Professor Chicó guardo, entre outras lembranças, os ensinamentos e as observações sempre procedentes do museólogo, em permanente busca da solução mais adequada aos objetivos que justificam um museu, quer na sua correta apresentação, quer na captação sempre maior do interêsse do seu frequentador. O Museu de Évora era, assim, por êle tratado como um laboratório onde se apuravam métodos e processos, cujos resultados muitas vêzes iriam beneficiar outras organizações do gênero.

Ao reexaminarmos, juntos, o problema da iluminação apropriada para o nosso Museu Nacional de Belas Artes transmitiu-me, com detalhes e precisão técnica, os efeitos da nova distribuição de luz conseguidos em Évora e que poderiam ser adaptados ao caso brasileiro. Foi entretanto uma circunstância de consequências felizmente não muito graves para a sua saúde, em fevereiro de 1963, quando acabara de escapar de um acidente de automóvel regressando de Santiago de Com-postela, que me deu a oportunidade de convívio mais amiudado com o Mestre, em Lisboa, e apreciar-lhe um dos aspetos mais cintilantes da sua inteligência — o crítico de arquitetura. Modificando o meu roteiro em Portugal, convenceu-me da inoportunidade de ir para o Norte e da conveniência de ficar na Capital — dizia-me não ser o inverno a época própria para conhecer a região então cinzenta e sem contrastes; o sol faria falta no Pôrto, no Minho e na cidade de Trás-os-Montes, ao passo que Lisboa não se ressentia da falta de luz.

E como aluno, condição em que sempre me senti ao seu lado, comecei a entender aquela cidade, e a aprender em profundidade sua arquitetura, a evolução do seu traçado urbano desde a configuração originalmente romana à traça desenvolta que lhe imprimiu o renascimento e a renovação consequente do terramoto de 1755.

O profundo conhecimento do técnico e a sensibilidade do artista, mesmo quando interessado particularmente por um determinado período da história ou da sua arquitetura, não quebravam a unidade de apreciação em conjunto da obra que analisava nos seus aspetos histórico, artístico e social. Reencontrei a velha Sé, que se me tornou familiar com a identificação dos séculos que assistiram à sua edificação; os Jerônimos, que não soubera apreciar devidamente, nas fases distintas da sua construção, em certas peculiaridades como as que marcam a presença de Boitaca, de João de Castilho e de outros artistas que nêle trabalharam. Explicando e comparando, com a presença de uma memória e sensibilidade sempre atentas, indicava e comentava as soluções, as intenções havidas e a conceituação devida ao espaço arquitetural.

Mostrou-me, como só êle o poderia fazer, o que resta da Lisboa manuelina ou, o que mais o interessava, da cidade renascentista, fixando-se às vêzes mais demoradamente em uma ou outra particularidade de um dos seus preciosos monumentos.

Proveito maior de suas lições tirei em identificar e entender melhor a arquitetura portuguêsa feita no Brasil, e a distinção dessa quando, emancipada, constituiu a apreciável contribuição que representa para a história da arte o barroco mineiro.

Os ensinamentos colhidos in locum foram repassados e revividos — em grande maioria, na oportunidade das memoráveis exposições que organizou com superior critério e carinho no Rio de Janeiro, por ocasião das comemorações do seu 4.° Centenário. Os respetivos catálogos constituem elementos indispensáveis aos estudos que se realizaram após aquela data, com vistas ao entendimento da arte lusa desde a segunda metade do século XVI até os meados do século XX.

Para os seus amigos brasileiros, essa atividade constituiu a última lembrança da presença física da sua personalidade.

Já muito doente, só o interêsse pelo Brasil — sua gente, sua terra e seus bens culturais — deram a energia necessária para completar êsse último trabalho em proveito do país que tanto o admirava. Logo depois de ultimado, já de Lisboa, a 2 de abril de 1966 dizia-me: «estou bastante melhor mas ainda ando a custo e não seria possível deslocar-me agora ao Rio. Tenho, é claro, muita pena de aí não ir, tanto mais que não cheguei a ver a exposição depois de inaugurada».

A análise da considerável obra deixada por êle será empreendida com a profundidade que se impõe, destacando-se com realce aquela referente à sua atuação em proveito da história e crítica da arquitetura. Seus trabalhos inéditos e que muito o preocupavam até o fim, sem dúvida estarão também sendo objeto de cuidados especiais.

A respeito dos mesmos, ainda naquela carta de abril escrevia:

«Estou agora a preparar um livro há anos prometido ao Dr. Rodrigo—refiro-me à Arquitetura

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Portuguêsa da Época dos Descobrimentos, baseado na exposição que realizei em Évora em 1960, repetida no ano seguinte em Milão e que foi inaugurada pelo Dr. Rodrigo. Espero tê-lo pronto até fins de outubro. Igualmente preparo com os meus colaboradores uma pequena obra sôbre Monumentos e Casas Típicas de Lisboa que será dirigida por mim (farei apenas uma pequena parte) e redigida pelo Dr. Paes da Silva, pelo engenheiro Mário Athayde e pelo Dr. Fernando de Almeida, professor de Arqueologia da Faculdade de Letras de Lisboa». Na última correspondência que dele recebi a 24 de junho daquele seu último ano, era ainda a preocupação do trabalho que o animava. Melhorando, se deslocara para a praia nas férias de junho:

«...sentia-me bem disposto e retomei até os estudos que andava a fazer sôbre a arquitetura portuguêsa da Época do Descobrimento.

Infelizmente o mau tempo voltou...» E o foi também para todos aquêles que o estimavam pois o perdiamos pouco tempo depois.

É a mais justa a presente homenagem, de iniciativa de um grupo de seus amigos. Na oportunidade desejo deixar registrado o reconhecimento da DPHAN, instituição que sempre prestigiou, quer colaborando através do concurso da sua inteligência e estímulo, quer a distinguindo através da amizade pessoal conferida ao seu fundador e Diretor até 1967, Rodrigo M. F. de Andrade, distinção que bondosamente tornou extensivas aos demais integrantes daquele órgão, entre os quais me incluo.

RENATO SOEIRO

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A TALHA BARROCA NUMA LIÇÃO PRÁTICA DO DR. CHICÓ

Preparava-me para o exame de admissão ao Estágio de Conservadores de Museus, Palácios e Monumentos Nacionais (Novembro de 1953) quando, encontrando o Dr. Chicó, meu professor na Cadeira de Estética e História de Arte na Faculdade de Letras, alguns anos antes, naturalmente lhe falei da disposição em que estava de concorrer àquele Estágio. Logo apoiou, entusiàsticamente, esta decisão, submetendo-nos, em seguida, a interessado interrogatório sobre a orientação que dávamos aos nossos estudos. Como, na altura, andava a contas com a preparação do Barroco —matéria que, aliás, não fora abordada nas lições da Faculdade de Letras — orientei a conversa para este sector, sobre o qual, de momento, teria mais interrogações a pôr ao meu antigo Mestre. A certa altura —ou porque pressentisse o nosso interesse pelo assunto ou, talvez, porque notasse insegurança na arrumação da matéria— num gesto espontâneo, aliás, muito de acordo com a sua maneira de ser, propôs-nos uma visita a alguns monumentos barrocos da capital, através da qual faria uma lição prática sobre a evolução da talha barroca entre nós.

Esta proposta, ou melhor, oferta, além de, naturalmente, nos ter sensibilizado, encantou-me duplamente, pois, além do proveito imediato que sabia íamos tirar da lição —e, no momento, o aspecto prático da questão não era de menosprezar— conhecia, por anteriores experiências, o que valiam, em interesse e poder de transmissão, estas «despretensiosas conversas» guiadas pelo Dr. Chicó1. Na verdade, não era quando falava do alto da cátedra, onde foi grande Mestre pelos vastos e seguros conhecimentos que dava toda a dimensão dos seus poderosos recursos no que respeita a clareza e entusiasmo. Era sim, diante do documento, numa exposição não preparada, que o Mestre se revelava grande Professor.

No dia e hora aprazados — cerca das lOh e 30m — passava, gentilmente, pela minha morada — na altura, residia na rua do Quelhas, à Estrela— propondo-nos fazer o «tour» a pé para aproveitar o tempo da deslocação em explicações complementares.

Como fora escolhida para início da aula prática a igreja de S. Roque, enquanto descíamos ao Poço dos Mouros e subíamos a Calçada do Combro, foi preparando, em conversa amena, a introdução necessária à evolução do retábulo barroco, razão e fim desta visita.

Recordou a quebra provocada na tradição do retábulo renascentista, tão bem interpretado, entre nós, por um Chan-terène ou um João de Ruão, e que havia de dominar a primeira metade do século XVI, pelas novas concepções de austeridade introduzidas pelos mentores da Contra-Reforma e que se traduziu, no que respeita ao retábulo, no regresso às formas simplificadas, às ordens clássicas e molduras arquitectónicas, com uma notável preferência pela pintura, no que respeita à figuração imaginária. Efectivamente, durante a segunda metade do século XVI, os retábulos foram dominados por um grande painel central, enquadrado em moldura de sabor clássico (como o altar do Crucificado das Carmelitas Descalças do Museu Nacional de Arte Antiga, em que aquela consta de um simples arco de volta perfeita descansando sobre duas pilastras), ou, não menos frequentemente, por molduras coroadas por frontão de sabor maneirista. No último quartel do século e, por influências que nos chegavam de Espanha, generalizam-se os retábulos em forma de pórtico monumental, constituídos por vários painéis dispostos em andares. Destes, assume importância fundamental, o retábulo da Capela-mor da Sé de Portalegre2, introdutor, entre nós, de certas novidades que vão perdurar, como o aproveitamento total do fundo da capela-mor, que vai obrigar a um remate em forma de arco de volta perfeita, e o papel, ainda que secundário, já aí conferido à escultura, características que dominarão, como constantes, no chamado «estilo nacional» (último quartel do século XVII—primeira metade do século XVIII).

Entretanto, aproximávamo-nos de S. Roque, tendo o Dr. Chicó chamado a nossa atenção para o lugar ocupado por esta e outras igrejas da Companhia de Jesus, no contexto do maneirismo português. Baltazar Álvares, seu arquitecto e principal intérprete da nova corrente, respeitando a simplicidade imposta aos membros da Companhia, vai, contudo, imprimir às suas obras novas proporções e uma feição que as integra dentro da tradição nacional, afastando-se, assim, das formas procuradas e italianizantes dum Terzi.

Com a entrada neste templo iria iniciar-se, pròpriamente, a lição prática, isto é, lição a partir do documento, a que esta visita se destinava. Postados diante do altar-mor, cujo retábulo, de cerca de 1624, é um belo modelo maneirista, ligado à tradição inaugurada pelo retábulo da Sé de Portalegre, na interpretação dos artífices da Companhia, o Dr. Chicó chama a nossa atenção: para as formas alongadas e magras no gosto inaugurado pela Contra-Reforma, que o integra no grupo de retábulos de moldura arquitectónica, constituída por pares de colunas coríntias, pintadas de azul e estriadas a dourado, com o terço inferior decorado, sustentando arquitraves ao gosto clássico, rematando, na parte superior, em forma de tímpano semi-circular, onde se abre um óculo ou «tondo»;

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para a disposição dos vários elementos em dois andares, sendo dada já à imaginária lugar relevante — além da imagem do orago colocada no nicho central (andar inferior), os quatro nichos formados por outros tantos pares de colunas, foram destinados às imagens dos maiores Santos da Companhia;

para o facto da pintura apenas se representar no painel central (andar superior) e na tela que cobre o óculo do tímpano; para a decoração dourada sobre fundo policrómico que preenche os frisos dos entablamentos e o terço inferior das colunas e que, ainda que no puro estilo maneirista, já anuncia certo aparato barroco.

A este retábulo liga-se uma longa série de exemplares, com larga representação em todo o país (os altares da Sagrada Família e de S. Francisco Xavier da igreja de S. Roque, mais recentes alguns anos do que o altar-mor, integram-se na mesma tradição maneirista). No decurso de Seiscentos os modelos vão-se adulterando, ao mesmo tempo que se acentua o barroquismo que apenas se esboçava nos modelos do princípio do século (por exemplo, no retábulo da Capela de N.ª Sr.ª da Assunção, da mesma igreja de S. Roque, a decoração que, anteriormente, se restringia ao terço inferior das colunas, já invade todo o fuste). Por isso mesmo a este grupo de retábulos que antecede o aparecimento do retábulo de «estilo nacional», ou retábulo barroco, pròpriamente dito, cuja evolução se processa no último quartel do Sec. XVII, se tem denominado de proto-barrocos3.

Descemos, em seguida, à Igreja dos Paulistas (à Calçada do Combro), onde os retábulos das capelas laterais deste templo nos iriam servir de paradigmas para a exemplificação da talha barroca dos finais de Seiscentos e princípios do século XVIII. Pelo caminho, foi-nos falando na forma como se operou esta evolução, ao papel que nela coube ao nosso isolamento político como reacção política contra a Espanha, e às dificuldades criadas pela Guerra da Restauração que nos obrigariam a contentar com os nossos próprios recursos.

Depois de nos recomendar a visita da igreja da Conceição dos Cardais, cujo altar-mor é um dos espécimes mais ricamente caracterizados do barroco dos finais do Sec. XVII, o Dr. Chicó passa a analisar a nova fase, sem dúvida a mais interessante pela originalidade, em toda a sequência do barroco português.

Nela há a considerar o aparecimento de elementos vindos de fora, ainda que adaptados ao nosso gosto, como a coluna salomónica e a maior parte dos motivos que entram na decoração; e elementos de pura criação nacional, como a configuração do retábulo em forma de portal românico (o Dr. Chicó lembrou o favor que gozaram sempre, entre nós, as formas românicas) e o aparecimento do trono, ocupando o grande vão da tribuna. Foi da combinação destes elementos e do uso exclusivo da talha dourada, como material de construção, que se operou, na segunda metade do século XVII e se generalizou a partir do último terço daquele século, o aparatoso retábulo barroco que se convencionou chamar de «estilo nacional», cuja exuberância decorativa e abuso do dourado, empresta impressionante efeito cénico. Mesmo os elementos de importação, como a coluna salomónica e a folha de acanto, vão receber das mãos dos artífices nacionais interpretação muito pessoal.

A coluna salomónica de origem italiana, onde aparece largamente representada em mármore de várias cores, ainda que, a princípio, apareça entre nós, despida de decoração (Capela de N.ª Sr.ª do Calvário da Igreja dos Paulistas), cedo, porém, reveste-se duma decoração sobrecarregada e exuberante que, ao contrário do que acontece em Espanha, cedo envolve todo o fuste da coluna. Igualmente, a folha de acanto, elemento constante do barroco internacional, toma entre nós riqueza e relevo desusado, preenchendo, por assim dizer, todos os espaços não ocupados por outros motivos: mísulas, peanhas, bases de colunas, molduras, etc., sempre em enrolamentos caprichosos e cada vez mais relevados que darão a nota mais característica ao gordo barroco nacional.

Tomando, como paradigmas, alguns dos retábulos das capelas laterais (N." Sr." da Assunção, Santa Ana, S. Miguel, S. Joaquim, N." Sr.ª da Conceição), o Dr. Chicó passa a caracterizar o novo estilo, chamando, especialmente, a nossa atenção para a matéria que entra na composição —madeira dourada— e para a configuração em forma de portal de volta perfeita, constituído por pares de colunas salomónicas (dois, três ou mais pares conforme a importância) que se prolongam, encurvando-se, na parte superior, em forma de arcos concêntricos de volta perfeita, unidos, entre si, por pequenas peças trapezoidais, com disposição irradiante. Este portal emoldura sempre um espaço vazio, a tribuna, onde se levanta, quando se trata do altar-mor, um aparatoso «trono» (peça em degraus sobrecarregada de decoração) que servirá de peanha à imagem do orago; nos retábulos dos altares laterais, como os que nos serviam de exemplo, esse espaço é, geralmente, preenchido por um baixo-relevo polícromo ou simplesmente dourado. Insiste na observação dos pormenores decorativos, de cujo tratamento e combinação advém, sem dúvida, grande parte da originalidade ao barroco português: as parras e cachos de uvas que, dispondo-se ao longo dos

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enrolamentos das salomónicas, cobrem todo o fuste das colunas e a decoração acântica que, combinando-se com a anterior, entra na composição decorativa de todos os outros elementos do retábulo. Numa segunda fase, primeiros anos do séculos XVIII, esta decoração vegetalista vai enriquecer-se com elementos de outra ordem, numa combinação que ficará restrita ao barroco nacional, como pássaros de sentido eucarístico que se enroscam sob os ramos da vide e carrancas e meninos rechonchudos, os graciosos «putti», que espreitam por baixo dos enrolamentos de acanto (retábulo da capela de N.ª Sr." da Conceição), motivos que passarão ao barroco joanino.

Depois de recordar o que nos fora referido em relação ao retábulo da capela de N.ª Sr." da Piedade (c. 1711), durante a visita a S. Roque, apresentando-o como um modelo que marca a transição do «estilo nacional» para o barroco joanino de influência italiana—neste retábulo já as arquivoltas do remate quase desaparecem subjugadas por uma decoração constituída por meninos e folhas de acanto ladeando as armas reais—transporta-nos para junto do altar-mor da igreja dos Paulistas que irá servir de paradigma a esta última fase.

O barroco joanino que se encontra largamente representado em retábulos a partir dos finais do primeiro quartel do século XVIII, não apresenta quebra de continuidade em relação à fase anterior; é, antes, uma fase de renovação do «estilo nacional» pela introdução de elementos de inspiração italiana, adulterados, na fase antecedente, pelos artistas nacionais. Efectivamente, analisando o exemplar que tínhamos em presença, verifica-se: permanência das colunas salomónicas, alternando-se com pilastras e apresentando o terço inferior decorado com estrias, à maneira italiana; desaparecimento da pesada decoração de parras e cachos de uvas, substituida por finos festões de flores que se dispõem em espiral ao longo das concavidades das salomónicas; enriquecimento da decoração pela introdução de motivos anunciadores do novo gosto «rocaille» que se aproxima (cabeças de anjo, volutas, conchas, festões, grinaldas). Em relação aos motivos anteriores observa-se, principalmente, mudança de proporções, o aparecimento dos meios corpos, transformando-se alguns dos «meninos» em verdadeiros atlantes (principalmente os que aparecem por sob a folhagem das mísulas). A modificação mais espectacular sofrida pela estrutura do retábulo respeita às alterações introduzidas no remate, pelo desaparecimento dos últimos vestígios das arquivoltas seiscentistas e regresso, ainda que tímido, à moldura arquitectónica, percebendo-se, numa tentativa de construção dum frontão, volutas e arcos quebrados, porém, ainda dominados por exuberante composição escultórica, onde se combinam festões, volutas, plumas, cabeças de anjo, e os muito característicos querubins reclinados. Entre os elementos da fase anterior que permanecem conta-se a tribuna e o «trono», apresentando este, agora, decoração cada vez mais «rocaille».

Como complemento, e depois de nos ter recomendado a visita da igreja de N." Sr.ª da Pena, cujo altar-mor constituiu outro belo espécime do barroco joanino, o Dr. Chicó refere-se aos retábulos contemporâneos com dossel ou baldaquino, muito difundidos, tanto no norte como no sul do País. É principalmente o retábulo com dossel de que se conhecem belos exemplares joaninos que vai passar ao reinado seguinte, recebendo, então, um tratamento já inteiramente «rocaille».

No regresso e, apesar de a hora do almoço há muito estar sacrificada, o Dr. Chicó ainda nos quis acompanhar à paroquial das Mercês (antiga igreja de Jesus) para nos mostrar os dois belos retábulos que ocupam as capelas do transepto (N." Sr.a do Patrocínio e S. José), protótipos já com nítida influência «rocaille» de altar de baldaquino. Neles persistem os elementos estruturais do barroco joanino, como, por exemplo, a tão característica salomónica. A grande revolução é operada na decoração, onde os concheados, dispostos na elegante dissemetria de influência francesa, se combinam com os festões, as grinaldas, volutas, cabeças de anjo, etc., que caracterizam a decoração rococó.

Ainda aproveitou a visita a este templo para chamar a nossa atenção para o altar-mor no gosto neo-clássico que se difunde, entre nós, principalmente na fase de reconstrução que se seguiu ao Terramoto de 1755. Recorda o que nos dissera diante do retábulo da capela de S. João Baptista, da igreja de S. Roque (encomendado na Itália, a Vanvitelli, por D. João V em 1742) e que já representa um acabado —e, neste caso, rico — modelo neo-clássico. Foi este retábulo, chegado num momento em que ainda dominava, entre nós, o barroco, que vai exercer grande influência no meio artístico nacional, operando uma mudança de gosto no sentido do regresso às formas simplificadas e estruturas clássicas. Refere-se também ao papel que cabe ao arquitecto Ludovici, na sua preferência pelas formas arquitecturais e materiais caros e sóbrios e na responsabilidade que lhe cabe na diferenciação da linha evolutiva do barroco do norte do País —onde vão persistir até tarde os retábulos de talha no gosto rococó— e do sul—principalmente dominado pela forte personalidade do arquitecto de D. João V.

Porém, os retábulos ao gosto neo-clássico, tal como o altar-mor da igreja das Mercês que nos servia de paradigma, que se difundem, entre nós, no período pombalino, depressa vão trocar os materiais caros (os mármores) por imitações baratas (madeira pintada). Verifica-se o abandono

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definitivo das salomónicas, últimos vestígios barrocos, e a sua substituição pelas ordens clássicas. Regressa-se aos frontões arquitectónicos de influência borrominiana, formados pela combinação de arcos quebrados, sobre os quais se apoiam querubins reclinados. Ae decoração perde a exuberância e reduz-se, na maior parte dos casos, a um ou outro motivo rococó, cabeças de anjos ou festões combinados com os infalíveis concheados. A tribuna e respectivo «trono» ainda se mantêm nalguns raros exemplos, mas torna-se cada vez mais frequente o aparecimento do grande painel pintado tapando o vão central.

Em casa, refizemos as notas que tínhamos tomado durante o percurso, que completámos com nova visita que fizemos dias depois aos mesmos monumentos e ainda a mais alguns dos que nos foram recomendados. Foi baseando-nos nestas notas que resolvemos reconstituir esta, para nós inesquecível, ula prática individual, orientada pelo Dr. Chicó, não, certamente, com o intuito de, com ela, documentar a envergadura do Mestre —pois, uma aula e, principalmente, na interpretação de outrem, nunca poderá nem deverá servir para tal avaliação — mas para chamar a atenção para as suas grandes qualidades humanas como professor, sempre atento aos interesses e à curiosidade dos discípulos, pronto a sacrificar-lhes boa parte do seu precioso tempo. Esta reconstituição servirá, pois, e só, de documento ao homem que foi o Dr. Mário Tavares Chicó e não ao Mestre que, felizmente, se afirmou em vasta obra conhecida.

IRISALVA MOITA 1 Efectivamente, já tivera oportunidade de fazer, em grupo, algumas visitas guiadas por este

saudoso Professor, entre as quais não Quero deixar de citar uma que fizéramos a alguns monumentos do Alto Alentejo, na companhia duma nossa colega que preparava, então, a Dissertação de Licenciatura em assunto da Cadeira de História de Arte. Nessa ocasião, porém, a oferta fora feita a esta nossa colega, nós, apenas, nos juntámos para aproveitar a lição.

2 Monumento que visitáramos na companhia do Dr. Chicó quando da referida excursão ao Alto Alentejo.

3 Antes de deixarmos este templo, o Dr. Chicó chamou ainda a nossa atenção para o altar de N.ª Sr." da Piedade, modelo que marca a transição do «barroco nacional» para o barroco joanino de influência italiana e para o retábulo da capela de S. João Baptista que introduzirá, entre nós, o gosto neo-clássico. Por uma questão de arrumação cronológica a eles nos referimos mais adiante.

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MÁRIO CHICÓ

A notícia da morte do professor Mário Chicó caiu desola-doramente no círculo largo dos amigos e discípulos, de todos os que haviam tido a sorte de com ele privar, de o ouvir discorrer sobre os problemas que o apaixonavam, naquela voz de registo comedido e pobre de inflexões, mas, por isso mesmo, incapaz de temperar ou mascarar o rigor do pensamento. E não era tanto o significado da morte — fenómeno inexpli-cado da vida —o que os esmagava; mas sim o sentimento ainda incompletamente consciencializado, porém nítido, da falta tremenda que o seu exemplo, o seu conselho mais sugerido do que dado mas nunca negado, a claridade do seu critério iam deixar atrás de si.

O sentimento geral que nos minava a todos os que tínhamos aprendido com ele, não só o sentido profundo das lições do Mestre, mas também o valor inestimável da sua amizade — discreta mas altamente efectiva— foi-me traduzido poucos dias depois da sua morte, de forma casual e inesperada, por alguém que muito estimo, bom amigo e artista notável, espírito inquieto e hipercrítico, que mais do que uma vez, por feitio e formação estética se sentira chocado pelas serenas mas incisivas palavras de Mário Tavares Chicó. Esse choque de duas sensibilidades, tão agudas mas tão diferenciadas, fora tema várias vezes aflorado em nossas longas e animadas discussões; mas, nessa noite, o meu amigo achava-se por demais emocionado, e apenas me disse:

—Morreu o Chicó. Calculo quanto sentiu. E após um silêncio breve, gravemente, comovidamente, acrescentou:

—Sabe? À medida que passam os dias, cada vez mais me dou conta da falta que ele faz. Porque não vejo aí quem possa substituí-lo...

Tinha razão o meu amigo. O professor Mário Chicó deixou vagas as cadeiras de História da Arte na Faculdade de Letras de Lisboa. Pessoalmente, julgo haver boas razões para confiarmos em que esta herança difícil será sustentada com acerto e dignidade. Mas ele não será substituído no seu estilo, tão pessoal, de leccionar e conviver.

Aqueles que pretenderem debruçar-se sobre a vida e a obra, numa palavra, sobre a personalidade tão singular de Mário Tavares Chicó, divergirão certamente em muitos pontos do seu juízo. Mas numas tantas coisas essenciais se encontrarão sempre de acordo; pois não poderão falar, nem do Homem nem do Professor, sem que lhes surjam, a cada passo, palavras ou expressões como: bondade, amizade, finura de espírito, lucidez de raciocínio, solidez de critério, elegância intelectual.

Aparentemente, a sua obra escrita não pode considerar-se vasta, apesar dos numerosos trabalhos que publicou; pois, à parte a sua preciosa colaboração em «História da Arte em Portugal» após a morte de Aarão de Lacerda, e «Arquitectura Gótica em Portugal», sua obra de maior fôlego, o restante compõe-se de pequenos volumes, artigos em revistas, ou notas de apresentação nos catálogos das frequentes exposições didácticas que tanto gostou de nos proporcionar. Na realidade, porém, tudo o que lhe saía da pena exigia do estudioso uma leitura atenta e meditada. É uma obra cheia de significado, onde nada está a mais; e, por isso, «A Arquitectura Gótica em Portugal», onde pela primeira vez se estabelece, exaustivamente, a problemática do fenómeno gótico no nosso país e se desenvolve com paciente lucidez um método eficaz para o seu estudo rigoroso, deve considerar-se, com justiça, obra magistral. Muitas gerações encontrarão nela inesgotável motivo de meditação e estudo. Por isso, também, as curtas notas de catálogo em que fixava, com raro poder evocador, o interesse básico de uma exposição, ficarão como excelentes sínteses de uma época da Arquitectura, de um tipo particular de monumentos ou de um estudo comparativo de artes afins. São pequenos resumos escorreitos e densos, que se relêem sempre com proveito e onde, não raro, se encontram insuspeitadas perspectivas de uma larga visão de História da Arquitectura. A este grupo pertence a última obra escrita, ditada no seu leito de agonia a poucos dias do fim, que é a «Introdução» ao catálogo da exposição «Pontes e Aquedutos de Portugal», destinada a comemorar a inauguração da Ponte sobre o Tejo, em Lisboa; exposição cuja ideia, a princípio mal compreendida, lhe pertenceu inteiramente. Em quatro páginas incompletas, com modelar e impecável clareza, situa a Ponte — obra de arte— na história das obras de arte portuguesas do seu tipo. É um depoimento oportuno e importante.

Foram talvez esse poder de síntese e a probidade intelectual, as qualidades que mais admirei no cientista Mário Chicó. A estas aliava, em elevado grau, um tesouro de compreensão humana. Ainda hoje não me é possível recordá-lo sem funda emoção. Na apagada homenagem que aqui lhe presto teria preferido não falar de mim; mas foi, precisamente, na convivência pessoal com que me honrou que mais aprendi a venerá-lo.

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Conheci o professor Mário Chicó há perto de vinte anos. Ocorrera-me a feliz inspiração de matricular-me na única cadeira de História da Arte que então existia na Faculdade de Letras de Lisboa. Para mim, oriundo de outro sector, habituado ao estudo das ciências positivas e exactas, outro mestre e outro espírito ter-me-iam certamente decepcionado. Mas o professor Mário Chicó conquistou desde logo o meu interesse e a minha admiração, pelo sentido de exactidão posto em todas as suas palavras, pela maneira discreta de suscitar o raciocínio sem impor a solução dos problemas, pela seriedade do ensino e por essa bondade intrínseca, que era a constante mais saliente da sua personalidade. Os reparos que fazia aos seus alunos tinham sempre um ar meio irónico, meio tímido; não por espírito amesquinhador nem, tão-pouco, por tibieza de carácter, mas sim pela força dessa mesma bondade e do desejo íntimo de não ferir o interlocutor.

Em breve, aluno fora do tempo e, talvez, do lugar próprio e Mestre no lugar exacto e no seu próprio tempo, compreen-demo-nos e ficámos amigos. A convivência com Mário Tavares Chicó não era fácil. Encontrá-lo era por vezes um problema sério, dispersa a sua actividade pelos múltiplos aspectos do seu sonho de cientista e de esteta—de uma estética activa e actual, em luta com a rotina paralisante. Mas o tempo perdido era sempre compensado por essa convivência altamente frutuosa e fecunda: porque ele gostava de saber e gostava de transmitir o que sabia. Por isso a sua conversação quotidiana, em absoluto isenta de todo o ar professoral, foi uma lição permanente.

Por triste privilégio da amizade, foi-me permitido acompanhar regularmente a marcha da enfermidade que o prostrou. Foi uma experiência, ao mesmo tempo fascinante e terrível, a luta valorosa e sem queixume desse Homem fisicamente débil e que, nas derradeiras semanas atingira o extremo limite da fragilidade. Todavia, a vida intelectual mantinha nele a mesma acuidade. Fazia projectos a longo prazo, com o escrupuloso cuidado que punha em tudo; discutia-os e solicitava, mesmo, a nossa opinião, com aquela simpatia generosa que foi um dos mais raros aspectos do seu carácter e que, desde logo, colocava aqueles a quem concedia a dádiva da sua confiança na posição de poderem tratar com ele, como de igual para igual, assuntos em que era mestre e que conhecia melhor do que ninguém.

Sempre que o visitava tinha, para me oferecer, ensinamentos novos. Chamava a minha atenção para o último livro acabado de sair dos prelos; discorria sobre um novo ângulo a encarar no estudo de um assunto discutido; rectificava, depurando-a mais e mais, determinada teoria ou ideia em que meditara com a lucidez rigorosa que as dores físicas mais cruciantes nunca puderam empanar. Começara a revisão do estudo que escrevera anos antes para a «História da Arte em Portugal» planeada e começada por Aarão de Lacerda, com vista a uma nova edição; e falava-me dela com o entusiasmo de quem tem uma longa vida à sua frente.

E no entanto, ele sabia. Sabia, melhor que os seus amigos, aquilo que estes temiam adivinhar. Disse-mo, claramente, a poucos dias do final, num momento em que conversávamos sòzinhos. Mas foi apenas um momento, fugaz. Sabia, mas não se rendia.

A nossa última conversa foi curta. Já lhe era extremamente penoso falar, mas mantinha toda a clarividência. Na manhã desse dia tinham-lhe trazido o catálogo da exposição «Pontes e Aquedutos de Portugal», enobrecido com a magistral «Introdução». Era bonito o catálogo e nós tínhamos o maior empenho em recolher as suas impressões. Elogiou-lhe a organização e o aspecto gráfico, mas sentia-se, nas suas palavras entrecortadas, uma ansiosa preocupação. Confidenciou-me que havia uma incorrecção no seu texto, onde saíra a palavra classicismo por neoclassicismo. Verifiquei, desolado, a justiça do seu reparo, no qual eu tinha forte responsabilidade, pois fizera, a correr, a única revisão que a urgência da edição permitira. Daria tudo para ter-lhe evitado esse pequeno desgosto em tal momento. Mas só pude assegurar-lhe que nenhum exemplar seria distribuído sem a correcção do lapso que me escapara. Creio que consegui tranquilizá-lo.

Já não durou dois dias.

Assim, até o extremo limite das suas forças ficou sempre igual a si mesmo, na singela generosidade do seu trato e na exigente disciplina do seu labor intelectual.

Lisboa, 31 de Março de 1969

JOSÉ MAIA ATAYDE

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O PROF. MÁRIO T. CHICÓ

A PROPÓSITO DE «A ARQUITECTURA GÓTICA EM PORTUGAL»

Quando se planeava este volume «in memoriam» do Professor Mário T. Chicó saiu a segunda edição da sua obra A Arquitectura Gótica em Portugal que pela primeira vez se publicara em 1954. Há muito que a edição, feita com aparato de luxo e em pequena tiragem, se encontrava esgotada. A nova publicação, devida a «Livros Horizonte», sem perda de qualidade documental e com imediato acrescento de moderna perfeição gráfica, no seu formato mais razoável e no seu preço acessível, tornou-se num verdadeiro instrumento de trabalho universitário—que já à sua origem fora mas não parecia.

Instrumento de trabalho universitário. Detenhamo-nos nesta constatação que é extremamente importante.

A bibliografia nacional de que dispõem os aprendizes de história de arte em Portugal é pràticamente nula — ou menos do que isso, na medida em que o pouco que existe em letra de forma que diga respeito aos seus programas leva a situações metodológicas lamentáveis. Por outras e talvez mais graves palavras: pouco há de válido, no domínio da história da arte em Portugal, nas épocas ditas clássicas, a não ser, e quase sòmente, uma ou outra monografia, limitada em páginas e em ambições culturais. É esta a triste verdade—e o tristíssimo resultado do total desprezo que desde sempre os poderes públicos, de todas as cores, manifestaram pela cultura artística por via historiográfica (para só desta falar, que de outras, estéticas ou oficinais, será pior ainda). No último quartel do século passado, em vão um homem culto e erudito se bateu por uma reforma de mentalidade em que ninguém estava nem havia de estar interessado. Chamava-se Joaquim de Vasconcelos, valia mais do que a teoria de medíocres que entretanto assumiam funções docentes—e morreu octogenário, sem conseguir ensinar o que sabia, deixando uma vasta obra que nem sempre pôde levar a cabo. Pelo seu saber e pela inteligência e fineza do seu entendimento problemático, Joaquim de Vasconcelos foi um caso único na historiografia portuguesa. Compiladores honestíssimos de documentos, ou brilhantes (sequer!) e apressados generalizadores, faltando a uns o que sobrava aos outros, lhe sucederam, sem lhe suceder, porque iam por outros caminhos muito portuguêsmente cómodos, e muito provincianamente arredados duma consciência cultural dos problemas que a historiografia da arte do nosso tempo põe, ou leva a pôr. Com uns ou outros defeitos a mancharem as qualidades que naturalmente também exibiam, quase não conheço excepção a este prolongado estado de coisas — que tende a eternizar-se em licenciaturinhas por tabela, sem saída prática numa docência ou numa pesquisa aplicadas.

Um homem porém trabalhou em Portugal, que pôde ser a excepção desejada. Foi Mário T. Chicó, professor de História de Arte na Faculdade de Letras de Lisboa.

Conheci-o bem, nunca foi meu professor, convidei-o a colaborar na direcção de uma obra de que me encarregaram, e com ele bastante aprendi, culturalmente. Aprendi, por exemplo, que nada se podia aprender em Portugal nesta matéria. Ele o dizia: «tudo quanto aprendi foi no estrangeiro»—e segui-lhe obrigatòriamente o exemplo. Ele dizia também, quando se falava em doutoramentos que não tinha: «mas quem é que pode dar o grau, em Portugal?» Ninguém, certamente—e não só, decerto, por razões burocráticas. Também nisso lhe segui a lição...

Foi ele professor de duas espécies de alunos: uns, que se tornaram os melhores dentro do estreito quadro da investigação nacional (dois ou três); muitos outros que dele se queixavam, do seu irregular ritmo de trabalho, das suas faltas, do que supunham ser o seu desinteresse. É claro que uma acção docente é sempre discutível e, dela muito, ou tudo, há a exigir —o muito que Mário T. Chicó não dava, dando, para quem o merecesse, outras coisas que se encontram mais relacionadas com a cultura do que o número de capitéis da igreja românica de Santa Cunegundes...

Mário T. Chicó teria sido um excelente professor a um nível superior que a faculdade não exigia nem podia suportar, dentro dos seus esquemas pós-liceais. Teria sido um mestre de pensamento e de cultura, capaz da mais sensível e da mais fina decifração de qualquer objecto artístico, plástico ou literário, numa leitura relacional, sempre situada para além da erudição que também tinha. Teria sido—mas não foi, a não ser para quem o conheceu bem e o respeitou. Não foi, nem poderia sê-lo nas tristes, e tragicómicas, condições de trabalho da nossa universidade — sem bibliotecas, sem laboratórios, sem grupos de trabalho, sem cultura anterior, sem saída profissional na especialidade que era a sua e amava profundamente. Diante do que a realidade lhe oferecia, que podia ele fazer?

Disso tudo me lembro de o ter acusado e louvado, uma noite de deambulação, quando nos deixámos à entrada da minha porta. Mostrava ele então uma esperança assaz irónica não sei em que possível instituto. Concordou comigo, silenciosamente, olhando-me bem. Foi a última conversa

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que com ele tive.

... Saíu agora, dizia eu, ao princípio deste texto, a segunda edição da sua obra A Arquitectura Gótica em Portugal. Foi a única que publicou — o que é pouco, sem dúvida. Mas muito é, vendo o que ninguém mais deu à estampa. Fossem outras as suas condições de trabalho e outras coisas teria produzido

—ele, e os discípulos que formaria. E também, muito provàvelmente, outros universitários que idênticos prejuízos de organização docente sofrem.

O livro em questão é uma obra exemplar, tal como nos anos 50 devia ser pensada e escrita—com uma dimensão erudita e aguda consciência duma problemática gramatical que evoluía já então do campo da sintaxe das estruturas formais para o campo da semântica «significativa» dessas estruturas. A todo o momento, Mário T. Chicó relaciona, pondo nessa operação mental, e altamente sensível sempre, um sentido de pesquisa e uma formulação crítica que ultrapassa os dados imediatos, morfológicos (tantas vezes apenas aparentes) dos problemas. É um livro para ser aprendido e ser meditado, a um nível metodológico. Naturalmente que outras problemática pode ser articulada à de Mário T. Chicó, vinda de processos críticos mais recentemente explorados; naturalmente que hoje o livro se faria de outro modo, e o próprio autor seria provàvelmente levado a realizá-lo em outra perspectiva—agora que tantos estudos (e a grande exposição de Paris, em 1968) lançam nova luz sobre «a transformação social e espirítual» que carrega a estética gótica.

De qualquer modo, esta obra sólida, inteligente e única no panorama da ciência histórica nacional, serve, melhor do que qualquer outro argumento, para fazer, muito sentidamente, o elogio póstumo do Professor Mário T. Chicó.

JOSÉ-AUGUSTO FRANÇA

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LUÍS BIVAR, 83-3.° ESQ.

É sobre um aspecto muito particular da personalidade do Prof. Mário Tavares Chicó que incidirei, pois o julgo uma das facetas mais ricas deste que foi um mestre de toda uma geração, e por ter sido aquele que mais particularmente me impressionou. Refiro-me ao convívio com o Prof. Chicó, fora da Faculdade, mas relacionado com a sua função docente. Sempre, mas mais frequentemente na época da Licenciatura, o Prof. Chicó foi verdadeiramente exemplar em muitos planos. O facto de aceitar as minhas propostas, depois de as ouvir atentamente e discuti-las, sabendo e que iria tratar de uma época histórica na qual não estava particularmente interessado; o aconselhar e informar o meu trabalho, mas dando sempre uma margem à minha tonalidade psicológica; os assaltos, embora culturais, mas assaltos, que sofreu sempre de bom humor são mais do que recordações sentimentais, são prova da sua enorme dedicação pelo aluno; sendo o meu caso um entre muitos.

Nestas ocasiões, nestes auxílios que nós lhe pedíamos, o Prof. Chicó ultrapassava largamente o dado concreto que procurávamos; transformava-o numa verdadeira lição magistral. Num corredor da Faculdade, ao longo da cidade, num café, em sua casa, o Prof. Chicó transcendia-se.

Considero-me devedor ao Prof. Chicó de muito, mas a maior dívida, o que mais me formou foram estas «aulas» verdadeiramente geniais, numa pura gratuitidade fora de qualquer horário ou imposição. A sua enorme cultura e a sua visão dos problemas histórico-artísticos manifestavam-se de um modo, quanto a mim, ainda mais penetrante que nas próprias aulas. Nunca poderei esquecer uma lição magistral sobre Worringer, numa Cervejaria da Costa da Caparica e uma breve mas fundamental sobre o Barroco em Portugal, num dia de Natal em sua casa.

Hoje, passados alguns anos, sei quanto o Prof. Chicó se prejudicou com esta dádiva de si próprio que o dispersava de uma linha de conduta pragmática, realizo quanto roubámos o seu tempo precioso; mas também sei que estes momentos foram momentos felizes para o professor. Era um homem que gostava de se dar, de transmitir a sua visão das coisas e isso deve-nos libertar de um complexo de culpa por o termos importunado tantas vezes.

Toda uma geração foi acolhida em casa do Snr. Prof. de um modo verdadeiramente carinhoso. A sua casa era a casa de um Mestre, para o que muito contribuiu a Sr.a D. Maria Alice, que nunca se impacientou com o tempo que lhe fazíamos perder. Luís Bivar, 83-3.° Esq. foi um local privilegiado onde o Prof. Chicó continuava incansàvelmente o seu magistério, um local de esclarecimento.

MANUEL RIO-CARVALHO

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SAUDADES DE MÁRIO CHICÓ

A primeira vez que ouvi falar do homem foi na casa que um amigo nos cedera, em frente ao mar, no Leblon, para atravessar os dias mais dolorosos da minha vida. Gladstone Chaves de Melo (Afonso Arinos Filho, que o acompanhava, fervia de generoso entusiasmo) enumerava as seduções de Portugal a fim de me convencer a aceitar o convite para Adido Cultural da Embaixada em Lisboa. Falava na ida a Évora. —«Mas Évora tem que ser vista com Mário Chicó, só com Mário Chicó. Êle conhece cada pedra, bate a bengala em cada pedra e sabe a sua idade e a sua história.»

Quando atravessei o mar fomos a Évora com Mário Chicó. Iam também minha mulher e a dêle, Maria Alice. Tocamos pedra por pedra. Nazareth, rindo, previa que Mário só nos mostraria o que tivesse mais de 300 anos. Era quase verdade:

no Colégio dos Jesuitas (5000 alunos, o primeiro dia de férias e nem um só risco de lápis nos azulejos) foi Alice quem nos guiou. Corremos tudo e Mário fotografava rindo, rindo inclusive da mocidade de minha filha e do noivo que a acompanhava. Vimos tudo, pedra por pedra e igreja por ingreja. Até os ossos, feitos parede na capela do Convento de S. Francisco. Meditação sôbre a morte? Sôbre a vida. Vinha a melancolia de pensar que nas mãos do homem a pedra também envelhecia: as que deixáramos à vista nas montanhas eram ainda mais eternas, intocadas pela maldição que pesa sôbre o ser. A hospitalidade de Chicó florescia em requintes inesperados. Desejava que víssemos uma nave de determinado ângulo, excluindo certo altar que ao ser restaurado fôra deturpado.

—«Venha ver daqui, é o autêntico.» De repente, na noite, uma igreja se abria, o luar entrava pelo vitral e, de abafados que estávamos, caíamos no espanto total. Manejado por mão invisível, o órgão começava a tocar, e as luzes sàbiamente contracenavam sem quebrar as sombras da noite. Como não ajoelhar? Deus «era». Subimos em seguida a Reguengos de Monsaraz. Das ruínas do antigo castelo via-se chão de Espanha além Guadiana. Uma casa tinha na grade a data da reconstrução— 1838. Muros eram brancos. Vimos as coisas antigas, coisas de antes do Brasil inventado, as conservadas e as redescobertas. Depois, na taberna, comemos, sem sofreguidão mas com honrado apetite, sopa à Alentejana (em que o coentro trazia a fragância nova da terra fresca), pão saloio, porco misturado de mariscos com o vinho do lugar. No antigo castelo havia montes de estevas — combustível do pobre. O taberneiro, rindo, me conduzia pelos meandros da casa até a cozinha, limpa, limpa, caiada de branco como se nela alguém fôsse noivar. Assim, pelas mãos de Mário Chicó, conheci dois limites de Portugal—um no tempo, outro no espaço.

E com o passar dos dias fui me habituando àquela conversa entreverada de epigramas. Não digo novidade a quem o conheceu. Êle tinha êsse dom fino e sutil — em três risos definia um homem, uma sociedade, uma civilização. Lembro-me ainda de certa vez à mesa de agradável, ruidosa e amiga confraria que se reune no Rio às sextas-feiras para desabafar saudades de Portugal em tôrno de uma cozinheira, insistente perita em bacalhau à Transmontana. Estávamos só homens. Não havia convidado estreante, condição que obriga a discurso. Então, para animar o fim do almôço, um dos convivas ergueu-se e leu, no livro de ouro da casa, dois sonêtos bem cabeludos, que se diriam escritos por Gregório de Matos em dia grosso

—com facúndia, sôlto da língua. Quiseram depois que Chicó dissesse alguma coisa. Não um discurso, apenas a opinião sobre os versos; e êle:—«Digo apenas que vejo com prazer como está viva a virilidade portuguesa do século XVII.» Rimos todos, mas meditamos depois. Como êsse, quantos outros risos agudos pelo caminho, jogados na conversa, perdidos...

Acompanhamo-los o fim. Sua mulher foi perfeita, admirável. Eu e Nazareth, cada vez que entrávamos para vê-lo saíamos arrasados, e a presença da morte era opressiva. Duas pessoas não a notavam, êle e Alice. Que companheira ela foi! E êle de cama, com os grandes olhos abertos, cintilando, o mesmo riso e a um só tempo largo e fino, a falar no Brasil, a pensar no Brasil, a ler livros sôbre o Brasil. O Brasil e Portugal não eram só o objetivo constante da sua meditação mas o tema que estudava e decifrava com teimosia mais própria de erudito principiante do que de grande mestre, de sabedor profundo. Foi assim até o último dia.

ODYLO COSTA, FILHO

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MÁRIO CHICÓ E A ÍNDIA

O ano de 1951 marcou uma viragem da maior importância na vida e nos interesses de Mário Tavares Chicó. Medievalista já com a sua reputação firmada, formado nas melhores escolas e com uma larga visão da arte europeia, Mário Chicó conseguiu nesse ano levar avante um projecto que acalentava há muito — o reconhecimento da arte cristã na Índia, a análise dos dos seus edifícios e dos seus problemas. Tal tentativa estava na ordem do dia. Em todo o lado os historiadores de arte se debruçavam sobre as civilizações pouco conhecidas dos países tropicais, quer no Oriente, quer nas Américas. O ressuscitar desse passado deve muito a tal esforço e se hoje temos um conhecimento do que se passou na Índia foi porque se fez nessa altura aquilo que importava fazer. Aprovado superiormente e com o patrocínio e auxílio dos Ministérios da Educação Nacional, Ultramar e Obras Públicas, o projecto de Mário Chicó concretizou-se em 1951, ano em que chefiou uma missão de reconhecimento e estudo a Goa, Damão e Diu, missão de que o autor destas linhas teve a honra de fazer parte. O objectivo era iniciar o estudo pormenorizado da arquitectura cristã e as suas relações com a arte local. Tal iniciativa implicava a recolha de uma abundante documentação fotográfica, quer dos edifícios religiosos, militares e civis erguidos na Índia pelos portugueses, quer dos outros que continuaram tradições locais e cujo número incluía, portanto, os tempos indus e as mesquitas muçulmanas.

A repercussão desta notícia fez-se ouvír para lá de Goa, Damão e Diu e durante todo o tempo que a missão permaneceu na Índia, foi alvo da curiosidade e simpatia dos especialistas indianos que depressa se aperceberam do interesse do trabalho a realizar. Por esse motivo nos procuraram repetidas vezes, e tal contacto culminou com a Reunião Extraordinária da «Bombay Historical Society», a 28 de Maio de 1951. O êxito de tal reunião foi um grande triunfo para Mário Chicó. O prestígio que então alcançou fez dele, verdadeiramente, uma figura internacional, de tal forma que a sua colaboração foi procurada pelos historiadores de arte e arqueólogos indianos, quer para elaboração de estudos, quer para visitas a outras regiões da Índia. Colaborou então na revista MARG e esse primeiro e sumário estudo foi o ponto de partida para uma série de artigos e ensaios em que analisou com a costumada clareza e competência o «caso» da arquitectura religiosa portuguesa no Oriente. A visão da arte ultramarina determinou então uma viragem nos interesses do historiador de arte. De facto, alguns anos depois, Mário Chicó, que já dedicava mais tempo ao estudo da arte barroca, virava-se para o Brasil, que o acolheu com igual entusiasmo. Nos últimos anos, ao Brasil voltava repetidamente, para fazer cursos e conferências, que passaram a ter ainda esse outra dimensão do mundo brasileiro que ele assimilou ràpidamente com a sua costumada avidez intelectual. Ali, a sua reputação cresceu e impôs-se de tal forma que ele é hoje igualmente recordado dos dois lados do Atlântico.

Na Índia, recordo-o como trabalhador incansável, duma resistência prodigiosa a um clima impiedoso, duma visão rápida e arguta que lhe permitia equacionar logo os problemas. Senhor duma sólida preparação em que há que destacar a sua aprendizagem com Henri Focillon e Elie Lambert —dois grandes nomes da França— Mário Chicó regressou do Oriente com a bagagem que lhe permitiu olhar com renovado interesse para os problemas da arte portuguesa. A sua viva e clara inteligência faziam com que atingisse profundamente tais problemas e um dos seus grandes triunfos foi sempre a forma genial como procurava enquadrar a história da arte portuguesa no seu contexto universal. No caso da Índia, Mário Chicó não só estabeleceu imediatamente a relacionação com os edifícios da metrópole, como chamou a atenção para a influência da arquitectura ocidental nos templos indus de Goa. De resto, toda a arte indiana o fascinava e cabe aqui recordar que o seu próprio nome de família —Chicó— era goês e o seu entusiasmo pela terra indiana misturava-se sem dúvida com razões afectivas que o faziam sentir-se perfeitamente à vontade no meio ambiente. Foi enorme a sua satisfação, por exemplo, quando um dia descobriu descendentes de nome Chicó em Candolim.

A arquitectura cristã na Ïndia foi, na verdade, uma revelação que lhe ficamos devendo. Ninguém se debruçara sobre o assunto até então. Embora Goa tivesse sido conquistada em 1510, só passados uns cinquenta anos os portugueses estavam aptos a construir novos e monumentais edifícios. Até aí, a maioria das igrejas —e mesmo as fortalezas— eram construções temporárias, de materiais pouco resistentes, em que predominava a madeira. Em 1562, porém, é iniciada a grande Sé de Goa e a concepção monumental de tal edifício marcava o começo da nova fase que iria, daí a poucos anos, conduzir ao esplendor da «Goa dourada». O surto da arquitectura cristã do Oriente, portanto, coincide com a época do «maneirismo» em Portugal continental, ou seja, a arquitectura duma fase final renascentista que só recentemente se começou a definir e a distinguir. É a época em que se ergue em Lisboa a grande igreja de S. Vicente e em que predomina uma influência italianizante na arte portuguesa. A cidade de Velha-Goa surge então como uma das mais ricas desta

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época tão dada a novas concepções no domínio das teorias de arquitectura. Embora arrastando-se por longos anos, a construção da Sé de Goa iria influenciar outros edifícios e ajudar a criar, acima de tudo, uma expressão monumental que não teve igual. Os arquitectos e construtores portugueses fizeram mesmo de terras da Índia um campo experimental e nalgumas cidades demonstraram claramente como se preocupavam com as novas ideias do Renascimento. Se é certo que a tradição medieval persistiu até muito tarde em certas cidades do ultramar, a verdade é que na Índia os portugueses desmentiram a afirmação de que construíam «sem ordem» e, quer no caso de Damão, quer no de Baçaim, não hesitaram em lançar as bases da «cidade ideal» que preocupava os teóricos do tempo. Para tal chamou a atenção Mário Chicó e a observação atenta das plantas destas cidades confirma que, em determinado momento os portugueses abandonavam as ideias tradicionais e aceitavam abertamente a «cidade ideal». A esses dois tipos de cidades, observava ainda Mário Chicó—o que se empregava no Brasil e que «tinha fundas raízes na história do urbanismo continental, e o que se inspirava na cidade ideal do Renascimento e que apareceu na Índia, corresponderam também duas atitudes diferentes da política artística de Portugal».

A interpenetração de influências locais contribuiu também para a originalidade dessa arte cristã que surgiu na Índia e já em pequeno estudo publicado em 1956 Mário Chicó chamava a atenção para os grandes edifícios de Goa — Bom Jesus, Agos-tinhos, a Sé, Santa Mónica, etc. — que denunciavam influências da escultura indiana e mogol. Se a época áurea de Goa se prolonga até ao segundo quartel do século XVII, ainda posteriormente se levantaram edifícios que embora sem a monumentalidade e a qualidade da primeira fase, combinam motivos barrocos, hindus e mogois numa afirmação simbiótica que estava profundamente enraizada. Surgem mesmo algumas igrejas —em Bardez e Salsete, por exemplo— cujas torres de secção octogonal lembram as dos templos hindus que começavam surgindo novamente na terra goesa e, por outro lado, esses templos revelam também a influência da gramática decorativa ocidental.

Este fenómeno da adaptação e transformação da arte ocidental foi igualmente apontado por Mário Chicó que observava com acerto que à medida que se acentuava «a tendência para o preenchimento total do espaço pela decoração, maiores são também as modificações introduzidas nos motivos importados do Ocidente».

Por outro lado, se os monumentos luso-indianos constituem um extraordinário testemunho do esforço dos portugueses na Índia, a escultura arquitectural e a talha apresentam invariàvelmente maior originalidade do que a planta desses edifícios e a sua concepção espacial. Sob este ponto de vista, Mário Chicó não hesitava em afirmar que a talha dourada «é mais original do que a do Brasil», se bem que reconhecesse que nem sempre tem a mesma importância. Com o seu costumado método, caracterizou imediatamente a talha da Índia em três períodos distintos — desde o período inicial em que esta se encontra ligada à talha maneirista da metrópole até ao século XVIII em que a mesma passa a ser policromada.

Estes três pontos focados tão sumàriamente parecem-nos resumir, de alguma forma, o pensamento de Mário Chicó quanto à importância dos problemas da arte luso-indiana. Sem dúvida que de outros aspectos se ocupou. Mas na planificação dos problemas que o caso da Índia põe, importa salientar antes de mais nada a forma como abordou o problema dos grandes edifícios de Velha Goa e de outras regiões da Índia, o problema das influências recíprocas e a originalidade da talha. A sua visão esclarecida permitiu-lhe apreender ràpidamente o que fora a «política artística» na Índia e convirá não esquecer a sua lição, porque os estudos de arte ultramarina tiveram nele o seu grande pioneiro e orientador.

CARLOS DE AZEVEDO

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Conheci o Professor Mário Tavares Chicó desde o ano de 1948 até o momento da sua prematura morte. Conheci-o nas longas jornadas do seu Alentejo, nos trabalhos de um congresso internacional em Lisboa e no Porto, na solidão da sua Caparica. Conheci-o também no Brasil e durante a única visita que fez aos Estados Unidos, quando presidiu uma sessão do Primeiro Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros. Durante todo este período mantivemos uma correspondência constante.

Devo muito ao Professor Chicó, como tantas outras pessoas. Devo-lhe a oportunidade, que me veio em 1961 de ensinar na Universidade de Lisboa, quando tive a honra de substituí-lo durante alguns meses. Devo-lhe o convite de escrever o meu primeiro livro em língua portuguesa, o qual me abriu um caminho seguro e feliz, que tanto tem enriquecido a minha vida.

Mas devo muito mais ao Professor Chicó. Devo-lhe a recordação do seu gosto impecável em todos os aspectos da arte como da vida humana, da sua mestria na prática de museo-logia, do seu conhecimento extraordinário de mil assuntos diferentes.

Refiro-me à curiosidade do Professor Chicó, que foi além da de qualquer outro intelectual que tenho conhecido. Ele possuía uma paixão de saber o que se fazia nas artes e nas ciências em todos os países que conhecia. Lendo tudo, aprofundava as correntes e os movimentos mais diversos e assim era uma figura verdadeiramente internacional. Lembro-me da facilidade e da destreza com que explicava uma nova carosserie italiana, o funcionamento de um motor sueco, o vocabulário de um poeta francês e as frases de qualquer crítico de Espanha.

Tinha o Professor Chicó outra paixão pelas fotografias, sabendo com tanta razão que é quase exclusivamente através delas que se ensina a história de arte. Eu partilhava este seu entusiasmo, porque sempre tenho sido fotógrafo e sempre tenho pensado em organizar exposições fotográficas. É com estas que se associam algumas das minhas mais preciosas recordações deste homem infatigável, de um entusiasmo que nunca se apagava, abrindo a sua pasta castanha e extraindo da massa de papéis e livros que continha as últimas provas de Mário Novaes!

Lembro-me das nossas maravilhosas viagens juntos à procura de novos negativos de templos, túmulos e talha. Duma vez estivemos os dois em Portalegre no mesmo dia sem o sabermos. Depois quando lamentava tê-lo perdido, respondeu-me com elegante ironia, «É sempre assim nas grandes cidades!»

Assim era o Professor Chicó, cheio de bondade, de sabedoria e de simplicidade. Despretensioso em todas as suas acções, sabia despertar em mim como nos seus tantos outros discípulos o mais intenso interesse por todas as coisas que ele nos dizia e o mais profundo desejo de continuar a trabalhar com e para ele.

Deixo a outras pessoas mais qualificadas a tarefa de avaliar a sua obra escrita, coroada da magnífica análise do gótico nacional, que nos deu. Limito-me a estas poucas palavras de apreciação do aspecto humano deste eminente e adorado colega, cujo trágico falecimento nos empobreceu.

ROBERT C. SMITH

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UM HOMEM BOM

Um homem chora. Não escondo as lágrimas, frente a mim olho um amigo que partiu. Salta o desgosto do meu requiem, abalam-se os alicerces, e as lágrimas deixam transparecer a imagem de quem foi um Homem. Ser Homem é ser bom, depois... deixar que a inteligência e a cultura tomem posse dos dias crescidos. O Mário Chicó comunicava o simples, na clareza de quem ao falar quer dizer aos outros o que lhes falta. Ensinava a falar, ensinava a ver, ensinava a amar a vida, e ensinava a desculpar. Companheiro de hora a hora, meu tributo é parco de análises, rico de saudades. Ele ensinava uma nova abertura, indicava na seta que havia também outra direcção. A vida? Ah! Isso resolve-se. Ele nunca desafiara a vida— era um homem corajoso. Compreendia a vida, essa a sua valentia, como a de poucos. Compreendia sem atropelar, sem o rude de quem deixa passar o que de imbecil acontece. Traquinava na controvérsia, branco-preto, preto-branco, claro-escuro, es-curo-claro, era a forma de mostrar aos outros que, nos contrários da vida, duas coisas vivem sempre no alerta, dois eus. No pedestal era amigo, na vida comum Mestre e Director do Museu de Évora. E que Museu? «Ó Mário, daqui a quanto tempo fica pronto?» — «Ah, daqui a 400 contos». Era assim a resposta, cheia de tudo que aprendia a absorver num rápido penetrante, na luta de contrários que ele desinquietava. Vivia a enriquecer os outros, sábio na humildade—a forma mais difícil de conviver, e no bom gosto, na arte da sua vida o diálogo surgia claro, caudaloso, e aqui aproximo as lágrimas que correm no drama íntimo que travo comigo mesmo. Sabia de aviões, interessava-se nos pormenores, tanto de um quadro, de uma capela, como de um bom vinho branco, de umas lulas grelhadas, comia pouco, como os pássaros, mas alimentava o niquento da existência, a iguaria era, por exemplo, a conversa esclarecedora da visita de há pouco a Ouro Preto. Sabia por intuição, lia numa análise de quem acerta no alvo cada vez que transporta a alça em direcção ao que quer exprimir ou explicar. A lição não se aprende só nos livros, sim, no momento a momento desde manhã cedo, lição viva que compreende o que está a nosso lado e é o ser vivo. O Mário relacionava, na lógica de quem encontra um raciocínio mais perfeito para a sua qualidade de Homem. Deixava para trás o acontecido de entendedor, de mestre, a riqueza de quem lia, lia e parecia que nunca mostrava os carregamentos bibliográficos que aprendera na véspera. Ensinou-me coisas fabulosas —a mais extraordinária de todas—não ter pressa. O Mário nunca tinha pressa, o tempo chegava-lhe sempre, tanto para ir ao Rio de Janeiro —e houve nos últimos vinte anos quem compreendesse melhor o que o Brasil representava para nós?— como para ir dar uma volta e beber a conversa, suco de que ficávamos a pensar. Penetrante, metódico, arrumava as ideias como as peças do Museu de Évora, tudo tinha uma lógica, mesmo que a lógica não tivesse lógica, fosse motivo de ver o que um dos nós pensava. Esta a sua nobre missão, sabia aprender com os outros—era Homem. Deus poupara-lhe a maldade, ignorava o que isso era, mudava de conversa, falava de aviões, do serviço, dos livros, do museu permanente que trazia no seu frágil corpo. Abria-se, destituído de mistérios, nas coisas simples ele era óbvio, descascava, esclarecia, e no remexer eu ficava tonto de ver um edifício de pernas para o ar. É assim que se ensina, é assim que se aprende.

Querido Mário: espero aos poucos ir aprendendo a lição da vida que V. tão generosamente distribuiu por todos, todos seus amigos. Bastava penetrar no seu âmbito e a Amizade batia fundo no coração, um coração sempre novo, amigo, assim iniciava a compreensão da vida — que para si foi sempre o sentido de dar aos outros aquilo de que mais necessitam — a compreensão humana de ser Bom. Um homem chora.

RUBEN ANDRESEN LEITÃO

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Eu ia faltando ao encontro dos colegas e amigos de Chicó neste justo In Memoriam. Triste acidente de um mundo de violências e de pressas, que mais fàcilmente apanha um imaginativo descuidado do que um «homem de acção», geralmente cúmplice da universal urgência...

E como me perdoaria eu mesmo essa deserção absurda? Amigo e camarada de Mário Tavares Chicó desde o começo dos anos 30, naquela ala do claustro franciscano a Jesus cujos azulejos historiados espelhavam a nossa mocidade a contas com as várias cadeiras da Faculdade de Letras, é certo que só muito mais tarde estreitámos a nossa camaradagem, mas então para sempre e bem a fundo!

Eu era passageiro em trânsito e da última hora na escola que Chicó frequentara desde o primeiro ano. Como Orlando Ribeiro, ligado ao amigo por forte e fidelíssima estima; como Cunha Leão, Manuel Mendes que Deus haja, outros ainda.

Escolho estes de entre o punhado de alunos do velho casarão conventual («única Faculdade no Mundo —dissera Rodrigues Lapa— em que se entra a descer»...) porque eles me deram a mim, coimbrão de estudos e ilhéu de origem, a nota do carácter que Lisboa e o Sul imprimem no português: o modo de ser e as opções próprias da capital, e às vezes até da Brasileira, — a Brasileira do Chiado.

Chicó não era alfacinha, mas alentejano, de Évora: novo laço, que, nascendo de Mário de Castro, meu amigo fraterno E compadre, me viria a unir ìntimamente ao outro Mário, esse ser de eleição que comemoramos aqui.

A sua intimidade preciosa não tinha o ímpeto habitual do português de fogachos. Era, antes, calma e como que distante, feita de finura irónica e de pequenas delicadezas, obra-prima de convívio superior, mas sem o mínimo traço de pretensão ou «imenso bem». Chicó, afinal um requintado, não perdia no trato a singeleza de um qualquer. Sábio como poucos, não só no seu raro ofício de historiador da arte mas a toda a extensão do humanismo, não conheci universitário algum menos marcado do que ele pelos estigmas da classe: a peroração, o magister dixit, o olhar para a própria sombra.

Talvez porque Chicó chegou ao ensino universitário sem ter pensado nisso como quem escolhe carreira: pela porta da solidez e raridade do seu saber entre nós: o da história da arquitectura, e, mais do que isso, a genética das formas, sua unidade e correlação em todo o campo plástico.

Não foi o estudante laureado («urso» se dizia em Coimbra) que visa ao capelo e à cátedra, mas o homo humanior que elege um departamento do saber porque ele naturalmente responde às suas preferências genuínas, desligadas de qualquer aspiração social a satisfazer através de um nível académico. Assim, começou por franco-atirador, digamos assim, do campo estético, para afinal chegar à mais rigorosa e alta especialização como professor de história da arte e museólogo.

Esse «desinteresse», e até horror ao cálculo na ética profissional, — ele que trouxe à nossa historiografia cultural o gosto da exactidão e do livre jogo das formas! — foi o grande fiador da originalidade da sua obra, porque a fez sincera e livre, ajustada às qualidades de observação e de gosto com que nascera. E então a sinceridade e a liberdade coincidiram com a consistência e o alcance.

Não me compete ajuizar do que Chicó deixou na bibliografia portuguesa. Os especialistas dirão. Mas a um historiador da cultura não é alheia a ordem de conseguimentos de um historiador das artes plásticas: no caso de Chicó a renovação dos métodos de análise da nossa arquitectura baixo-medieval, fruto maduro da sua preparação junto dos grandes mestres franceses, Focillon à cabeça, e das suas viagens ao longo da carta do gótico europeu, e sobretudo a sua admirável campanha, documentação e genética do nosso barroco e maneirismo. O fotógrafo focal e implacável que coexistia em Chicó com o historiador recolhia o essencial e o relevante; o exegeta exercia sobre o material próprio a finura da análise; o artista nato «criava» o ambiente da demonstração, ordenava as provas, — e expunha.

Assim correu os maiores centros da Europa, e principalmente do Brasil, assegurando às nossas exposições o cunho científico e o gosto, a sobriedade e o valor documental. Trabalhando em íntima harmonia com a historiografia brasileira de arte (Rodrigo de Melo Franco e Lúcio Costa foram seus amigos fraternos), contribuiu decisivamente para a calma consciência nacional brasileira de originalidade do seu maneirismo, tanto o mineiro do signo do Aleijadinho de Vila Rica e de Congonhas, como o baiano dos grandes monumentos do Terreiro de Jesus e o pernambucano e paraibano devidamente comparados.

Revelados em parte por ele os grandes padrões do nosso barroco de Goa, a correlação territorial

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das formas de uma «gramática» comum aos pontos cardeais da nossa expansão cultural é, como se sabe, obra principalmente sua. Assim como a torêutica luso-brasileira se não entende sem se passar pela bibliografia de Robert Smith, assim quem quiser captar a nossa arte de alçados seiscentista passará pelos sóbrios, decisivos estudos de Chicó, e sobretudo pela sua preciosa documentação diapositiva e fotográfica.

Ainda nisso, na coincidência de caminhos e no paralelismo de métodos, Chicó foi fiel às suas afinidades de moço. Com Orlando Ribeiro, principalmente. Enquanto este lançava os sólidos fundamentos e as grandes linhas da geografia humana da expensão —o urbanismo da ocupação, a migração das plantas alimentares e decorativas, a «civilização do milho»,— Chicó traçava a carta da correlação das formas plásticas, principalmente da arquitectura.

Paro aqui. Fico-me com a saudade do amigo, tamanha ou maior que a admiração do sábio. Fico-me com o Chicó das horas vagas, da viagem a Bruxelas, no Acordo Cultural, com Medeiros de Gouveia—outro companheiro subtil e firme destas nossas andanças culturais. O amigo inexcedível da boa conversa, capaz de pôr num pormenor de bagagem todo o tesouro do seu sentimento de escolha e do seu saber dos estilos. O vizinho inexcedível da Costa da Caparica (ele e a sua gentil companheira), na tertúlia de café, de família a família, solícito para todos, com invisíveis antenas para a fragilidade feminina e com o dom do discreto socorro à angústia e à timidez... Enfim o amigo querido, generoso e malogrado que acompanhei piedosamente na última viagem, — o que se chama a última, do último torrão de terra, o verdadeiramente terrível!

Ilha Terceira, 9.7.1969.

VITORINO NEMÉSIO

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MÁRIO TAVARES CHICÓ

Nestas palavras de homenagem à memória de Mário Chicó, temos presente a obra apreciável que realizou no campo da Museologia e no da História de Arte, cujos assuntos constituíram objecto de notáveis lições e de muitas das suas atraentes conversas. De espírito empreendedor e aguçada inteligência, o Dr. Chicó criou centros de interesse nos mais diversos sectores da Arte Portuguesa; testemunham-no os seminários que organizava com os seus discípulos, quer no campo da formação estética quer no da história de arte.

Tavares Chicó estudou e trabalhou em França com notáveis museólogos e investigadores; no seu regresso, devotou-se apaixonadamente ao estudo do gótico em Portugal. Relembro as suas comunicações sobre este tema realizadas nas reuniões periódicas do Museu Nacional de Arte Antiga, onde expunha a sua larga documentação fotográfica e os seus elucidativos desenhos de plantas e alçados destinados ao importante trabalho que mais tarde publicou.

Entretanto era nomeado Conservador do Museu da Cidade de Lisboa, onde teve o ensejo de empreender uma nova apresentação das espécies, documentada numa publicação especial dos Serviços Culturais da Câmara Municipal.

Passados alguns anos, dispondo já de uma larga experiência, realizou, de forma notável, a actualização do Museu Regional de Évora, que proficientemente dirigiu até o fim da sua vida. Mário Chicó orgulhava-se e muto legìtimamente, da forma como concebera a apresentação das espécies do seu Museu, nomeadamente o núcleo da escultura tumular e o das peças de arquitectura do período gótico e renascentista, criteriosamente reunidas. Da judiciosa e dedicada colaboração prestada pelo arquitecto que então dirigia a secção dos Monumentos do sul do país, resultou a notável apresentação das peças monumentais que enriquecem sobremaneira aquele Museu.

O núcleo de pintura flamenga nele integrado despertava em Tavares Chicó um interesse não menos válido: o de juntar todos os painéis do grande retábulo da monumental igreja de S. Francisco.

Convidado a reger a cadeira de Estética e História de Arte na Faculdade de Letras de Lisboa, o Dr. Mário Chicó realizou inúmeras lições práticas nos monumentos e nos museus. O Museu de Arte Antiga foi um dos lugares que mais frequentou com os seus alunos da Faculdade e dos cursos de férias que dirigia.

Intimamente ligado aos múltiplos problemas da Museologia e da História de Arte, o Prof. Chicó entregou-se com entusiasmo à formação de especialistas que encaminhou no estudo directo das obras de arte e no da classificação dos valores autênticos do nosso património artístico.

Mário Chicó interessava-se pêlos problemas de conservação e valorização do património artístico nacional. A ideia de se estabelecer uma colaboração útil entre conservadores e arquitectos esclarecidos em matéria de recuperação e protecção da obra de arte, merecia sempre o seu mais entusiástico apoio.

Recordamos também a importante missão que chefiou na nossa província ultramarina da Índia, onde procedeu ao levantamento de plantas e alçados dos monumentos ali existentes.

Outras actividades de grande interesse educativo de Mário Tavares Chicó incidiram na organização de exposições temporárias no país e no estrangeiro, na realização de conferências e cursos nas Universidades europeias e americanas. Em todas estas actividades se manifestou o seu excepcional talento e o seu devotado interesse pela divulgação dos valores culturais do nosso país.

ABEL DE MOURA

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Três horas antes de terminar o seu martírio ainda o ouço, a sós. Arde em febre, respira com dificuldade e o pulso está tão agitado que chego a duvidar da minha contagem. Fala ainda. Mas de que fala? Não pede alívio, não há uma queixa. Débil como nunca e também como nunca corajoso, o que provoca as suas derradeiras preocupações são os amigos, o Brasil tão amado, a história da arte. Recomenda-me que faça chegar ao Recife e ao Salvador e a Belo Horizonte, a todos os postos vigilantes do Património Histórico e Artístico Nacional, os catálogos das exposições de arte e arquitectura portuguesas comemorativas da Fundação do Rio, última grande iniciativa cultural das muitas que ali dirigiu com particular carinho. E que não esqueça o Dr. Rodrigo. E para os Museus do país. Tento, sem saber como, dar-lhe alguma tranquilidade, que não se agite agora por causa disso, que farei quanto puder. Agarrado a frágil esperança, eu não adivinhava ainda que era a despedida do mestre, uma última e espantosa lição de robustez de ânimo, de fidelidade às amizades, uma sobre-humana lição de amor ao dever e de desprendimento por si próprio.

A lição iniciara-se para mim vários anos antes, ainda nos bancos do velho edifício da Faculdade instalada no Convento de Jesus. Revejo a sala de aulas, o velho preparador, o cansado epidiascópio — ou as visitas à Sé, a Évora, ao Museu Nacional de Arte Antiga... Torno a ouvir a voz serena guiando o olhar de todos nós na análise firme e sensível da obra de arte, que então ali mesmo se recreava a uma luz totalmente inesperada; após a desmontagem seguia-se a vigorosa síntese, a inscrição da peça no devido contexto histórico, o cotejo com membros da mesma família, permitindo que a personalidade autêntica da obra se recortasse com clareza.

A lição veio depois a ampliar-se, desdobrada em inúmeras experiências de um convívio de rara atracção. Não escapavam à sua sensibilidade a analogia formal semi-imperceptível, a qualidade de uma massa monumental, os segredos das linguagens artísticas. Da delicadeza singular no trato à espontânea elegância na discussão, da capacidade de sacrifício físico e material à juventude mental —essa juventude que determinava permanente curiosidade acerca de tudo e de todos —, foram múltiplos os testemunhos que acumulei. No «diagnóstico» subtil o olhar azul parecia capacitado a trespassar a própria matéria para apreender com rigor os textos pintados ou esculpidos na totalidade da sua mensagem, e o arquivo visual, prodigioso ficheiro de catalogação invisível, alcançava a identificação instantânea de muitos milhares de peças. Ouvinte por vezes isolado, privilegiado, não era sem espanto que me dava conta da ferramenta adquirida e da forma como era utilizada. A planificação genérica de um museu monográfico ou a carroçaria de uma locomotiva, a arte mogol ou Carlos Drummond de Andrade, o aroma de um vinho, a talha do Funchal, o padrão de um tecido: sempre a mesma vivacidade na apreensão e sempre a mesma naturalidade no comunicar, como se tantas vezes não rasgasse subitamente horizontes à escala do seu Alentejo. Era para ele normal a prática desse generoso magistério extra-escolar tão discreto e tão nobre que a lição ficava a ressoar para além da interrupção eventual, actuando a longo prazo, desdobrando-se nos rumos, despertando novos valores poéticos, incitando à meditação. Frágil, mas de firme robustez mesmo na adversidade, estimulante na ironia, inesgotável na bondade de se oferecer — assim foi dando riqueza o professor Mário Chicó, Mestre para além do Fim.

JORGE HENRIQUE PAIS DA SILVA

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MÁRIO TAVARES CHICÓ

Nenhuma outra personalidade terá sido um elo tão forte entre a história crítica da arquitetura de Portugal com a do Brasil, como o professor Mário Tavares Chicó na fase que vai de 1954, em que pela primeira vez nos visitou, até à sua morte em 1967. Nas suas visitas, com que já contavamos todos os anos em alvissareira expectativa, êle enriquecia a nossa vida privada com o seu convívio fraternal e humano, e a nossa vida espiritual com o fulgor do seu espírito e a riqueza da sua cultura sempre à Ia page naquelas matérias em que era um luminar do moderno Portugal.

Ao passo que nós, no Brasil, os que nos dedicamos à História da Arte ou da Arquitetura somos geralmente auto-didatas, porque nas escolas que cursamos não havia mais do que umas poucas disciplinas que ensinavam essas matérias, tôdas sem o objectivo determinado da formação de críticos ou professôres, impressionava-nos em Chicó a sua formação especializada nesse objetivo, feita, se não estou enganado, no Instituto de Arte e Arqueologia da Universidade de Paris, e quiçá noutros estabelecimentos da mesma cidade, em contato com Henri Focillon, Élie Lambert e outros mestres eminentes, vários dêles membros do Instituto de França, com todos os quais hauriu, mais do que a informação dos conhecimentos, o manejo de um método de investigação e análise morfológica, que haveria de constituir o seu instrumento de trabalho por tôda a vida.

A investigação da arte medieval feita na intimidade das obras de Émile Mâle, Marcel Aubert, dos citados H. Focillon, É. Lambert e tantos e tantos mais —a que se referia a cada passo nas suas conversas —, constituiu, creio, o alicerce principal da sua cultura histórico-artística, que abrangia a arqui-tetura, a escultura, a pintura e as artes aplicadas.

Da pintura, explica-se assim ter sido escolhido, juntamente com Arthur Nobre de Gusmão e José Augusto França para orientar o Dicionário da Pintura Universal. É pena tenha falecido antes que se completasse o 3.° tomo, reservado à Pintura em Portugal e no Brasil, em que com certeza teria interferido de maneira muito substancial.

Sôbre a crítica histórica da escultura, na Idade Média, Renascimento e Barroco, discorria com naturalidade, como o fêz de improviso numa inesperada intervenção no plenário do Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros de 1959 na Bahia, em a qual dissecou a gênese de uma imagem de santo objeto da comunicação de um dos congressistas, situando-a no lugar e no tempo e provando que havia inadequação na proposição formulada.

Mas foi à arquitetura que dedicou o principal dos seus escritos, em que sobressaem a parte de arquitetura do 2.° tomo da História da Arte de Aarão de Lacerda e, principalmente, um alentado livro sôbre A Arquitetura Gótica em Portugal —obra em que as exaustivas análises e investigações morfológicas, em estudos comparativos que abrangem monumentos da França, Espanha, Alemanha, Inglaterra, etc., assumem quase o carácter de uma dissecação anatômica —, comentário que, diga-se de passagem, não compreendo porque, desagradava a Chicó. Não gostava de ser comparado a um anatomista.

A mesma preocupação de dissecar as raízes estilísticas, revelou-a êle no estudo sôbre a Arquitetura Manuelina, também incluido no 2.° tomo da História da Arte de Aarão de Lacerda, no qual, desprezando esquemas interpretativos tidos como definitivos (pelo menos aqui no Brasil), voltou, no essencial, à concepção de considerar o Manuelino como extensão do gótico — o que de resto, está coerente com a sua formação universitária—, situando-o consequentemente num plano muito mais amplo e diversificado em que as características de arte dos descobrimentos, inspirada no Oriente e no mar, que, na interpretação consagrada conferia sedução singular a essa fase áurea da arquitetura portuguêsa, foram substituídas pela busca de uma exatidão geneológica e anatômica maiores, à luz da verdade estrutural.

Chicó não sacrificava ou encobria o que julgava ser a verdade histórica ainda quando fôsse ela aparentemente menos atraente como expressão estilística para valorização do plano geral do trabalho. Era enxuto. Severo. Exigente. Não fazia concessões. Policiava, talvez exageradamente os seus pronunciamentos escritos, tendo-os verbalmente muito mais numerosos, como arautos do que tinha em mente mais tarde escrever.

Daí talvez não ter escrito, para a obra de Aarão de Lacerda, os capítulos sôbre o Renascimento, o Maneirismo e o Barroco. Daí também não ter feito o tão esperado trabalho sôbre Évora. Cremos que Chicó queria estudar êsses temas em profundidade antes de passá-los para a linguagem escrita. Animava-se a abordá-los em conferências, como fêz em épocas diversas no Rio de Janeiro; ou em fragmentários artigos de revista. Mas não em livro.

Foi importante a semente que lançou no artigo sôbre a Cidade Ideal da Renascença e as cidades

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portuguesas na Índia. Também nos artigos sôbre A Arquitetura na Velha Goa. E ainda nos prefácios dos catálogos das exposições que realizou no Rio de Janeiro e na Bahia sôbre a Arquitetura Portuguêsa metropolitana e do Oriente. Estava se aprestando a escrever — disse-m'o mais de uma vez —, um trabalho de conjunto sôbre a Arquitetura de Portugal no ultramar, em que pretendia tirar ilações originais, jamais abordadas por nenhum outro crítico —, entre as arquiteturas das diversas colônias portuguêsas e a Metropolitana. Creio que êsse trabalho estava sendo feito por encomenda de determinada instituição, que não menciono porque não tenho certeza dessa assertiva.

Chicó era apaixonado nas suas opiniões e incisivo no aprovar ou contrariar. Mas sempre sincero. O que tinha a dizer, dizia mesmo, sem temor de magoar. Porque não tinha nunca esse propósito, situando-se sempre num plano impessoal. Muitas das suas observações verbais merecem registro.

Quando lhe dissemos, por exemplo, que o artigo de Lucio Costa A arquitetura dos Jesuítas no Brasil (1938), graças ao método de análise e investigação histórica pela primeira vez adotado entre nós iniciou uma nova fase objetiva e positiva nos estudos de história da nossa arquitetura, até então feita em bases predominantemente românticas. Chicó observou-nos que também em Portugal esse artigo tinha dado comêço a uma nova fase de investigação e análise. E confirmou isso logo em seguida, de público, na palestra que a nosso pedido pronunciou na Faculdade de Arquitetura (1959).

Falando sôbre a nossa arquitetura dita Barroca do século XVIII, objetou que a maioria das edificações civis e muitas das religiosas, pelo sentido estático da composição, filiavam-se antes à Renascença do que ao Barroco —opinião que embora não divergindo da que muitos de nós tínhamos aqui no Brasil, levou —e aqui com opinião inteiramente pessoal—, até às igrejas mineiras do ciclo do ouro (intervenção no plenário do Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros da Bahia, em 1959, relativamente à Igreja de S. Francisco de Assis, de Ouro Preto).

Comparando a igreja dos Jesuítas do Salvador com a franciscana da mesma cidade, louvou a arquitetura da primeira relativamente à da segunda, sob o fundamento principal de que as proporções desta não se enquadravam nos canones franciscanos, o que lhe parecia fundamental, porque era rígido na observância dêsses valores, com uma personalidade muito marcada que não se deixava influenciar pelas opiniões dos outros.

Eram particularmente saborosas suas palestras sôbre a arquitetura Civil em Portugal e as suas comparações entre a arquitetura do Norte e a do Sul, comparações que, em linguagem escrita, não viveu o bastante para levar além dos catálogos das exposições — de resto, tão bem feitos, tão ricos de ensinamentos, como já acentuou Paulo Barreto no estudo que lhe dedicou.

A personalidade de Chicó é tão rica que comporta ser estudada sob facetas numerosas, que os seus colegas portuguêses — em tão boa hora mobilizados pela Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes e a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais —, com melhor conhecimento de causa, e por conseguinte com mais profundidade e proficiência do que nós aqui no Brasil, ressaltarão devidamente na obra que lhe é tão justamente dedicada.

PAULO SANTOS

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SON EXIGENCE, LE PROFESSEUR MÁRIO CHICÓ

D'emblée, je voudrais saisir au moyen d'une expression frappante, d'un mot-clé, la caractéristique essentielle de son esprit. EXIGENCE, est ce qui semble le mieux lui convenir. Cette rigueur, ce scrupule dans la recherche et dans 1'étude correspondaient chex lui à une probité innée, à un penchant familier pour ce qui est juste et clair. Exigeant, il 1'était, avant tout à 1'égard de lui-mème, mais son intuition critique lui faisait discerner, mème sous leurs déguisements, les incons-ciences, les confusions et les complaisances qui sont 1'étoffe de tant d'ouvrages présentés comme scientifiques. En ces ter-res latines, ou l'on a distribué et distribue encore à la lègère 1'appélation; Votre Excelence, une plus significative, plus précise et plus altière désignation lui eut convenu: Son Exigence, le Professeur Mário Chicó.

Universitaire, il avait fait choix d'une discipline 1'Histoire de 1'Art ou la méthode est souvent bafouée et la licence tenue pour génie. Il eut la foi et s'imposa le devoir de lutter contre cette négligence et ce préjugé. Dans son pays et sur les sujets dont il fit choix, sa tàche d'historien fut particulièrement méritoire et souvent mal interprétée. Avec intransigeance, il appliqua à 1'étude de la création artistique 1'esprit de la recherche scientifique. Aux belles histoires sur 1'art, trop divul-guées et trop facilement acceptées, il opposa la patiente élaboration de ses ouvrages, les moyens de sa vaste érudition. Il faut, au Portugal, 1'honneur de sa spécialité.

C'est cet esprit aussi curieux qu'averti, que j'appris à con-naitre, en nos années de jeunesse, dans un milieu ou les mèmes consignes de scrupule et de rigueur présidaient à nos études, 1'Institut d'art et d'Archéologie de la Sorbonne. Jeune professeur, il eut la chance de rejoindre notre equipe en un temps ou elle fut le lieu d'une conjoncture exceptionnelle. Le cénacle des assistants et des étudiants de la chaire d'Histoire du Moyen-Age qui se reconnaissaient sous le sigle du G. H. A. (le Groupe d'Histoire de 1'Art) vivait dans le rayonnement des leçons d'Henri Focillon. Chicó partagea nos ferveurs, nos humeurs, nos pérégrinations à travers 1'art gothique. Notre troupe de garçons et de filies, de nationalités diverses, accueillit le Portugal, représenté par sa silhouette tendue, attentive, déli-cate, à la fois souriante et grave. Dans la traditionnele Sorbonne ou, bien à travers les provinces de France, dont nous apprenions, au cours de nos perpétuels déplacements, à connai-tre les oeuvres d'rt, nos camarades étrangers, évoquaient, à 1'occasion, 1'art de leur pays d'origine, exprimant ainsi, pour nous, de façon vivante, 1'universalité du monde de 1'art. Je pense que Chicó sensible à ces confrontations, y developpa Ia large vision dont il fit preuve plus tard dans sés ouvrages où nous voyons une époque ou une expression artistique envisa-gées sans limites de frontières, sans restrictions nationales.

En dehors de 1'amitié qui nous unit pour des raisons impondérables (parce que c'était lui et parce que c'était moi, disait Montainge d'Amyot), le fait que j'eusse entrepris 1'étude et 1'inventaire de 1'art manuélin, cette floraison dernière de 1'art gothique, contribua à me rapprocher de lui en un instant ou se dessinait sa vocation d'historien de 1'art gothique au Portugal. De cet art, il appréciait surtout Ia rigueur architecturale de la bonne époque, et moi, je trouvais à sa «belle époque» de saveur baroque une expression particulièrement vigoureuse lorsqu'elle vint à s'étendre au Portugal et je m'efforçai de démontrer qu'elle avait été jusqu'ici mal interprétée. Il fut le premier à publier 1'image de monuments de la famille spiri-tuelle du Manuélin qui surgirent ailleurs en Europe. Par amitié, mais aussi sans doute, en vertu de sa probité intellectuelle exemplaire, il voulut que je fisses parí de mes points de vue en des conférences et des communications,

Voyageurs dispersés par des missions ou des voyages, nous nous retrouvions, trop peu souvent, hélas, dans sa maison de Caparica, ou dans ma maison du Brésil, à moins que ce fut dans un congrès, à Bahia ou à Lisbonne. Nous parlions d'art, sans doute, et surtout de la manière dont il était envisagé autour de nous. Il confrontait des opinions, soulignant leurs mérites ou démontrant leurs erreurs, et je comprenais que son éxigence correspondait à une sensibilité et à une lucidité dont il avait le privilège. L'affectueux sentiment que j'éprouvais pour lui se doublait alors d'une admiration fervente que je me gardais pourtant d'exprimer car la délicatesse de son ami-tié eut trouvé cela hors de propos.

Je ressens aujourd'hui une amère satisfaction à pouvoir proclamer cette admiration, avec une conviction et une ardeur trop longtemps contenues par notre amitié mème.

PAUL-ANTOINE EVIN

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... Me honré, ciertamente, con la amistad del Professor Chicó a quien tuve la fortuna de conocer y a quien admiraba en todo su valor. Por lo tanto será para mi una satisfaccion poder enviarle a Vd un trabajo dentro de los temas de Historia de Arquitectura o Arqueología que eran de su especial competencia.

F. CHUECA Y GOITYA

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PROBLEMATISMO DEL ESTILO GOTICO EN LA EDAD MEDIA ESPAÑOLA

La Edad Media española se cierra con los Reyes Católicos. A partir de ellos las cosas cambian profunda y aceleradamente. Sintomas de este cambio, cambio de la conciencia europea en general, crisis del Renacimiento, se advierten ya en el siglo XV, pero son Don Fernando y Doña Isabel los que todo y siendo criaturas de espíritu profundamente medieval, acaban con la Edad Media. A veces parece que ese siglo XV, que va a asistir a la desaparición de una larga etapa de vida histórica, exacerba, extrema y hasta caricaturiza algunos rasgos de ese mismo mundo que se prepara a liquidar. A veces, por ejemplo, parece en su extremosidad el mas gótico de los siglos góticos y si goticismo es manifestación de medievalismo, el mas medieval de los siglos medievales.

No es mal ángulo pues iniciar estas consideraciones sobre el estilo gótico y el mundo medieval español, no desde el comienzo sino desde el final y una vez partiendo del final ver lo que ha ido pasando para llegar a él.

Los Reyes Católicos comienzan a reinar en España, unida por ellos — al menos virtualmente — en 1474. Podemos pues decir que el último cuarto del siglo XV es el siglo de los Reyes Católicos. Sin embargo solo lo es en una cuarta parte. Lo que sucede es que la evolución de los hechos históricos parece concentrase en un final y desde ese final se ve luego todo el siglo.

El reinado mas largo de este siglo es el de Juan II (1407--1454), padre de Isabel la Católica y el tercero de los cuatro Trastamaras (Enrique II - Enrique III - Juan II - Enrique IV). Está dominado por la figura del válido D. Alvaro de Luna, cuya política intenta lograr la unidad y autoridad que luego consiguieron los Reyes Católicos desde un plano mas alto y menos movedizo que el de Don Alvaro.

El proceso que se produce en el siglo XV y cuyo cumplimiento se acelera sobre todo bajo el mando de los Reyes Católicos es de una enorme transcendencia para la historia de España y como se produce en el momento de la expansión americana para el provenir tambien de todo el mundo hispánico.

El proceso en lineas muy generales consiste en la transformación de la pluridad en unidad. España se forma en la Edad Media en la pluralidad que le impone un destino singular, sin paralelo en el resto de Occidente. Ultimamente se ha producido una polemica de alta resonancia intelectual, que há dividido a sus participantes entre defensores de una España eterna, sobre la que hace escasa mella la invasión musulmana y los siete largos de su permanencia en la península y los de una España en formación que nada tiene que ver con el pasado peninsular preislámico. Los campeones de ambas tendencias — todo el mundo lo sabe — han sido Claudio Sanchez Albornoz y Americo Castro.

De la polémica a todos interesa lo que ambas tesis, movidas a menudo por la pasión, van a contribuir a esclarecer la historiografia española. En busca de argumentos se han alumbrado nuevas fuentes y se han elaborado nuevos conceptos fértiles y eficaces para comprender nuestra historia.

No nos importa ahora afiliamos a uno u otro bando. Del todo no nos alistaríamos a ninguno. De todas maneras estamos de acuerdo con Américo Castro en el enorme impacto que la invasión musulmana y el consiguiente pluralismo medieval han tenido en la constitución de la conciencia de los españoles en cuanto tales. Qué antes del año 711 existía sobre la peninsula algo y mas que algo que pudieramos entender por una pre-

-España tampoco a mi juicio cabe ninguna duda y que esto sirvió de substrato a lo que vino luego, tambien. Castro es excesivamente radical en la negación de esa presunta pre-

-España. Entre decir que Viriato, Séneca o Trajano sean de hecho españoles —lo que es gran ingenuidad— y negar que algo existía en la península antes del año 711, que sirvió de soporte a lo que vino luego, media un largo trecho donde pueden conciliarse los aparentemente inconciliables.

Los historiadores clásicos llamaron a la invasión musulmana y a la caida del sistema visigodo la perdida de España, la destrucción de España. Desde Pelayo a los Reyes Católicos se produce la lenta recuperación. La España perdida se vuelve a encontrar, y aquí no ha pasado nada. Todo ésto es pueril, todo ésto es quimérico. Precisamente en esos setecientos años es cuando ha pasado todo o casi todo, todo o casi todo lo que nos ha interesado e afectado, bien fuera por acción o por reacción.

Si la España del siglo XV y XVI no hubiera tenido que reaccionar contra esa anterior «perdición», el desenvolvimiento de la historia moderna hubiera sido también muy distinto. No hubiera sido la historia de un arrepentimiento con toda la anormalidad psíquica que produce en el alma de los hombres o de las naciones un sentimiento de culpa.

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La historia de estos siglos medievales dió su peculiar fisonomía a la cultura española, qe en cuanto cultura diferencial es una cultura fuertemente orientalizada. Ahora bien, la península — pensamos — era aquella parte de Occidente mas proclive de antiguo a los contactos con Oriente. Existe todo un orientalismo anterior a la invasión de los musulmanes, orientalismo que se denuncia en múltiples signos sobre los que no vamos a detenernos ahora. El Oriente vino aquí porque el terreno estaba en parte preparado. En lo Oriental previo halló el arte de los Omeyas los puntos de arranque para sua evolución y el venero de inspiración para sus proprias creaciones.

Castro acentua lo oriental de nuestra cultura, pero como si este ingrediente hubiera surgido de golpe con la entrada de España en la orbita del Islam. Por decirlo así sin previo aviso. Sanchez Albornoz pone la España musulmana entre parentesis, entre un antes y un despues, que son la verdadera España occidental, romana y cristiana. Enriqueceriamos este panorama y le salvariamos de su excesivo esquematismo si estudiaramos lo que en ese «antes» de España existe ya de toriental —emprezando por la geografía y el paisaje— lo que explicaría la lozanía con que se va desenvolver la cultura de al-Andalus.

Pero no vayamos tan lejos y volvamos a nuestro siglo XV, mejor dicho a las tensiones que viniendo de atrás operan en este siglo. La España medieval es la España del pluralismo en todos los sentidos: pluralismo, casi atomismo político;

pluralismo de peqieños o grandes estados; pluralismo de castas y sobre todo pluralismo religioso. Desde el año 711 al 1212 España, ademas de ser plural, esta escindida en dos partes:

mediodía musulman y norte cristiano. A partir del siglo XIII esa escisión casi ha desaparecido, porque el Reino de Granada no tiene un volumen decisivo, pero el pluralismo sigue vigente. Es mas, es cuando puede hablarse de mayor pluralismo en los reinos cristianos. Es el momento de la España mudejar.

España es mudejar con plena aceptación, con plena conciencia de su equilibrio, en armonía y convivencia totales, durante los siglos XIII y XIV. Cuando Fernando III murió en Sevilla, en 1252 cristianos, moros y judios pusieron sendos epitafios en su sepulcro, prueba de la armonía reinante.

Las matanzas de judios el año 1391, promovidas por el arcediano de Ecija Ferran Martínez y el nacimiento de una nueva clase, la de los «conversos» o «confesos» (por propria inclinación o por temor a represalias), dieron al traste con el equilibrio. El siglo XV sigue siendo un siglo mudejar pero lo es a retropelo. Es un siglo de crisis. Utilizando terminología de Castro, un siglo conflictivo.

Como ha dicho Castro la conciencia de los españoles fué en este largo periodo «tricefala». No era lo mismo ser español de ascendencia cristiana, o de ascendencia mora, o de ascendencia judia.1

En la población española tricefala se produjo de una manera natural un reparto de papeles: «El cristianismo dominaba y combatía, el mudejar edificaba castillos y viviendas, el judio administraba las finanzas y hacía todo lo demas».2

Este ensamblaje fué de capital importancia y sin tenerlo en cuenta no llegariamos a compreender muchas cosas de las que suceden en este momento crucial de la Historia de España. Si queremos estudiar el arte de un determinado periodo y sus internas modificaciones no tenemos mas remedio que acudir a estas realidades. De la misma manera que las canciones de Gesta, el Romancero y el Teatro de Lope fueron los vehículos de expresión de la vida castellana, de la casta dominadora y nos explican su carácter fiero y combativo, su desprecio por lo empleos lucrativos, por las artes y la industria, su sentido del honor y el mantenimiento de la honra etc....... En esto los

hispanocristianos no hicieron ninguna dejación, ni encargaron a otros que se ocuparan de lo que juzgaban principal.

No fué así con relación a las artes mecánicas o liberales, a la industria, al comercio, a la administración, que estuvieron casi siempre em manos ajenas a la clase dominante. Por esta dejación, por aceptar este sistema de valores, que consideraba impropio del cristiano viejo el ejercicio intelectual, apenas hubo ciencia española. Decía hace poco Salvador de Madariaga3 que a pesar de todos los esfuerzos de Don Marcelino Menendez Pelayo la nómina de nuestros científicos resultó muy pobre y, ademas, cada hombre de ciencia con que se tropezaba resultaba judio.

Si una actividad quedó netamente adscrita a una de las tres castas fué la de la construcción en todas sus facetas.

Moricos fueron los maestros de la edificación, los constructores de templos, palacios, castillos, obras públicas e insignificantes viviendas. Don Manuel Abizanda y Broto publicó una serie de documentos en el siglo XVI para la Historia Artística y Literaria de Aragón tomados del archivo de

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protocolos de Zaragoza.4 En los tres tomos publicados existem abrumadoras bruebas documentales para demostrar cual era la condición social de los maestros alarifes que se encargaban del alojamiento de los hombres, de sus templos y edificios públicos. Muchas veces eran dinastías familiares que mantenían el oficio de padres a hijos. Abundan los nombres de Mahoma, Alí, Aben, Yusuf, etc. Algunos de estos maestros, hábiles y trabajadores llegaron a reunir buenas fortunas que generalmente colocaban en propriedad urbana.

Si esto ocurría en Aragón durante el siglo XVI, ¿qué sucedería en siglos anteriores? En Aragón la población morisca era de las mas numerosas y de las que mas perduraron. Fernando el Católico por el fuero de Monzón de 1510 suspendió, a petición de los señores aragoneses y valencianos toda nueva providencia en materia de moriscos. Para los grandes se cumplía aquello de «quien tiene moro tiene oro» y «a mas moros más ganancias».

Lo mismo que sucedía en Aragón sucedía en casi todo el resto de la peninsula, con mayor intensidad en las regiones mas arabizadas. El hispano-cristiano no se sentía disminuido por esta cesión de los medios de expresión artística. Es curioso que siendo el castellano tan celoso de la limpieza de sangre y de la contaminación con el sarraceno o con el israelita no tuviera el menor inconveniente ni escrupulo en rezar en las iglesias que habían sido o parecían mezquitas, en vivir en casas árabes y en vetirse y alhajarse a menudo a la manera musulmana. Parece que la literatura es, por excelencia, el arte nacional, el arte a que se vincula, incluso formalmente, la expresión de las virtudes de la raza. En cambio algo tan abstracto como la arquitectura y la decoración resultan todavía indiferentes. El cristiano no asocia todavía su condición de cristiano a la forma o decoración de su templo.

En la mayoría de las ciudades conquistadas al Islam, Toledo, Sevilla, Córdoba, Jaén, etc. las antiguas mezquitas sirvieron muchos años, a veces siglos, como iglesias e catedrales, según su importancia. Si luego muchas se destruyeron para edificar en su solar templos cristianos fué en su mayoría por razones prácticas, pero no por lo espiritual del ambiente ni por el carácter de la decoración. La mezquita era la construcción mas inadecuada para el desenvolvimiento de la liturgía cristiana. Pero cuando las disposiciones eran convenientes no importaba que la decoración fuera musulmana. Esto es sintesis una iglesia mudejar; un templo de disposición cristiana construido en formas, técnicas y decoración musulmanas.

Los hispano-hebreros que tanta preponderancia alcanzaron en la Edad Media Española tambien dejaron el arte de construir em manos musulmanas. Los que pueden envanecerse de tantos nombres ilustres en la filosofía, la teología, la medicina, la filología, el derecho y en general en todas las actividades del espíritu, no nos dejaron ninguna huella de su paso por la vida española en el campo de las artes plásticas. Las sinagogas no fueron sino mezquitas adaptadas a sua culto. Nunca vehículos de expresión propia.

Durante casi todo el siglo XV Castilla estuvo desasosegada e inquieta. Por todos lados estallaban querellas intestinas. La violencia se había enseñoreado de los campos y de las populosas ciudades. La nobleza nunca estuvo mas levantisca, ni el poder real mas débil. En esta pugna entre la aristocracia y el rey va cobrando importancia el tercer factor: el estado llano, los «menudos» o «comunes». En la lucha que desgataba a ambos, nobleza y poder real, los «menudos» se fueron dando cuenta de su propia importancia y cuando los Reyes Católicos, gracias a la fuerza que les daba la unión de Castilla y Aragón pudieron sojuzgar a la nobleza, el villanaje se sintió mas fuerte y los Reyes tuvieron que hacer concesiones a los «menudos» porque representaban una fuerza y porque esa fuerza era menester tenerla propicia.

Una de esas concesiones a la clase popular fué la persecución de los hebreos, odiados por sus riquezas, a veces ganadas con la usura, pero en cualquier caso víctimas de la codicia de todos. La incautación de sus bienes, tras los procesos inquisitoriales, fué el motor de muchas de estas persecuciones. La monarquía, restaurada en su prestigio y en su poder, se atrevio a prescindir de los que antes habían sido inestimables apoyos suyos. La población cristiana se sentió con fuerza suficiente para prescindir de las otras dos, moros y judios. La situación, roto el equilibrio, se tornó conflictiva.

Puede decirse que al fin del siglo XV el impulso ascensional de España es formidable, pero tamaña fortuna parece que lleva en sí los gérmenes de destruccioón. Cuanto mas sube y mas aceleradamente, mas se desarrollan tambien estos gérmenes.

España se une bajo una dinastía castellana. Castellana es la reyna y castellano es el rey, biznieto de Don Fernando de Antequera. Despues de su matrimonio en 1469 Don Fernando intenta, por su cuenta, levantar un partido en Castilla y reclamar par sí la corona, como pariente varon mas próximo de Enrique IV. En este caso Isabel sería simple reina consorte. Pero Isabel tenía fuerza y ambos en

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lugar de dividirse se unieron por la Concordia de Segovia (1475), que arbitraron el Arzobispo de Toledo Alonso Carrillo y el Cardenal Don Pedro Gonzalez Mendoza.

Es pues la hora de Castilla, que da tono a la vida que desde ese momento puede llamarse nacional. Es cierto que los Reyes Católicos cortan las alas y doblegan la cerviz de la nobleza, fortalecen al Consejo Real y fomentan la afición y amor que los comunes les tienen5, pero eso no quita para que los grandes señores castellanos, los Enriquez, los Velasco, los Pacheco, los Mendoza, los Luna, los Fonseca, los grandes prelados, los nuevos conversos exaltados a muchas sillas episcopales y lugares eminentes hayan sido un factor decisivo en la constitución, temple y tono de vida de la España del siglo XV. Primero desde sus omnímodos privilegios, cuando todo el poder les pertenecía, en el reinado tumultuoso de Juan II y bajo el débil y vacilante mando de Enrique IV; luego desde el sistema autocrático de los Reyes Católicos, que si bien limitaron las prerrogativas de la nobleza, aprovecharon y encauzaron sus energías, en la guerra de Granada, en Nápoles y en las Indias. Los Reyes Católicos dieron un cometido nacional a tan desbordantes energías. Prepararon una sugestiva tarea de empresas comunes. Pero esas energías estaban allí en madio de las luchas, disturbios y colapsos que parecían arrastrar al pais a su perdición.

Estas energías se translucen en las formas externas de la vida, en el gusto por la fastuosidad, en la multiplicación de fiestas, torneos, pasos de armas; en la etiqueta, cada vez mas alambicada y formalista de las cortes de los reyes y de las preudo-cortes de los grandes; en el aparato, cada vez mas recargado, de la liturgía; en el boato de los principes de la iglesia y en el poderío de las grandes casas monásticas. Es una de las épocas en las que el lujo debió rayar mas alto y sobre todo debió ofrecerse a la contemplación con mas descaro e impudicia. El lujo, como veremos, no se recata sino que se exhibe, cuanto mas estentóreamente mejor. El lujo es un vehículo del prestigio, es decir propaga este prestigio. El lujo es entonces el elemento mas valioso de la propaganda. La propaganda adquiere, por conseguiente, un caracter de imposición visual.

La arquitectura que pudiéramos llamar oficial de la España cristiana era desde el siglo XIII la arquitectura gótica, pero esta arquitectura gótica en España estuvo siempre muy condicionada a factores locales, que impidieron su desarrollo con la amplitud y pureza que alcanzó en otras naciones de occidente, Francia, Inglaterra y Alemania sobre todo. España, como Italia, son naciones que cuentan relativamente poco en el desenvolvimiento del gótico.

No puede decirse lo mismo del arte románico. El románico español tiene una fuerza, una autenticidad y una coherencia que le faltan al gótico. Las razones pueden ser varias: primero el hecho de que el románico corresponde al periodo de la España escindida y cada parte de España daba lo mejor de sí misma en soluciones propias; el gótico corresponde a la época de la España pluralista, después de las Navas de Tolosa y cuando el mudejar entra en juego de una manera decisiva. En segundo lugar el románico es el estilo de la via de perigri-nación a Santiago y esta gran corriente de dovoción y de cultura imprime a este estilo urna lozanía y un vigor peculiares. En tercer lugar la arquitectura románica obedece mejor al caracter y energía de la raza hispana y a su suelo pobre y áspero. El románico es el estilo para la gran abadía lo mismo que para la humilde iglesia rural. El estilo gótico exige la catedral y quien dice la catedral dice la estructura elegante, esbelta, refinada, compleja, pudieramos decir que excesivamente técnica.

España no tuvo una pujante arquitectura gótica. Nos suele inducir a error pensar en nuestras hermosas catedrales góticas del siglo XIII, Burgos, Toledo, y León. Son orgullo de España y por eso nos creemos con derecho a figurar en la nómina del gótico europeo con el mismo derecho que otras naciones. Sin embargo...... estas catedrales tienen cosas góticas y menos

góticas y son estas últimas las mas nuestras. León es aparte, porque es enteramente gótica, pero por lo mismo es enteramente importada. De todas maneras estas catedrales, como otros muchos templos de fuerte influencia francesa son, por así decirlo, excepcionales y no tuvieron aquí el arraigo de otros movimientos artísticos tambien importados.

Si no hubiera sido por los poderosos prelados del siglo XIII, empezando por el gran Rodrigo Jiménez de Rada y siguiendo por su tio Martin de Finojosa, por sua amigo Mauricio de Burgos, por Juan Dominguez y por tantos otros que formaban una aristocrática familia eclesiástica, bien trabada por lazos de parentesco e y afecto, el arte español hubiera sido entera presa del mudejarismo, que esgrimía dos terribles armas: el sugestivo encanto del Oriente y la facilidad de sus procedimientos constructivos, razón de su baratura. Los reyes y cortesanos gravitaban hacia Andalucía y de este lado hubiera vencido la balanza a no ser por aquellos eclesiásticos que estudiaban en Paris y habían asistido a la construcción de aquellas admirables estructuras que a fines del siglo XII y comienzos del XIII se elevaban en el norte de Francia.

El arte gótico entró en España de la mano de la reforma bernarda, es decir por medio de los

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monjes del Cister. Alfonso VII, el Emperador (1126-1157) es quien llama en 1137 a los hijos de San Bernardo oriundos de Claraval.

La reforma del gran San Bernardo en la ascética, en la vida monacal y en las costumbres no se detuvo aquí sino que abrazó tambien al arte y a todas las manifestaciones externas de la vida. La arquitectura fué profundamente renovada. Frente a los austeros conceptos de San Bernardo se levantan los del influyente Suger, abad de Saint Denis y regente del reino de Francia. Suger pensaba que la belleza, la elegancia y el lujo eran una oblación a Dios y una via para llegar a la Suma Belleza y a la Suma Bondad. San Bernardo temía, con temor irrefrenable, todo lo que halagara a los sentidos.

Suger dió nacimiento, con su apasionado fervor por la belleza, al arte gótico de la Isla de Francia, a uno de los movimientos mas refinados y exquisitos que han existido. La cabecera de la iglesia de Saint-Denis es la obra donde por primera vez aparece, como una adivinación, este estilo. De la cabecera de Saint-Denis —obra directa de Suger— nacerían luego en serie ininterrumpida, Chartres, N. Dame de París, Amiens, Reims, Beauvais, la Santa Capilla, el mas puro arte gótico. Ese arte que no se aclimata en nuestro áspero país.

En cambio San Bernardo no inventa ni quiere inventar estructuras. Natural de Borgoña, en esta tierra, que será cabeza y raiz de su Orden, halla lo que le hace falta. En las estructuras del románico borgoñón, fuerte y lógico encontró lo que necesitaba, con tal de privar a las antiguas iglesias románicas de toda ornamentación, superflua y no superflua. Estas estructuras borgoñonas totalmente desnudas son la base del gótico cisterciense.

Este gótico de la orden de los monjes blancos si que arraigó en España por varias razones ,alguns de las cuales vamos a enunciar: en primer lugar porque el románico borgoñón estaba aclimatado en nuestros reinos cristianos (Al románico borgoñón pertenecen templos como San Isidoro de León; San Vicente y San Pedro de Avila, la Catedral de Zamora, etc.), en segundo lugar porque la arquitectura cisterciense no rompe sino que continua un pasado románico y como hemos dicho el románico fué mucho mas afin que el gótico a los españoles; en tercer lugar porque la empresa monacal fué, en una sociedad guerrara como era la hispano--cristiana en los siglos XII y XIII, de suma importancia y realiza lo que no podían haver las instituciones civiles casi inexistentes en nuestra peninsula.

Viollet-le-Duc ha dicho que el gran movimiento constructivo del gótico francés no se debe solo a la fé, sino a la vez, a un instinto de unidad, de constitución civil, de protesta contra la feudalidad. Todas estas condiciones no se daban todavía en la España cristiana de los siglos XII y XIII. Por eso tuvieron tanta importancia los monasterios del Cister, asiento de una vida estable en medio del fragor y de las mudanzas de la guerra, centros del saber, depósitos de la cultura medieval, establecimientos agrícolas e industriales, asilos de caminantes, refugios de enfermos, retiro de Reyes y magnates y panteón de los restos mas insignes de la patria, reyes y caudillos. La importancia de los establecimientos del Cister en España superó la que habían tenido los Cluniacenses. La orden del iCster se propagó porque unió a la uniformidad de la vida y propósitos, la autonomía e independencia de gobierno. Cada nuevo monasterio repetía los anteriores, su misma iglesia, su mismo claustro, su misma Sala Capitular y su mismo refectorio. Todos vivían según la regla de San Benito y según las decretales de San Bernardo, todos mezclaban la plegaria con el trabajo y todos siendo casi lo mismo eran libres y autónomos, por eso recibieron el amparo de los reyes y señores que no tenían en ellos la existencia de un poder centralizado y extraterritorial. Ningún pais como España puede enorgullecerse de tan completa colección de monasterios cistercienses. Se fundaron mas de sesenta, y de ellos quedan unos treinta en pie, en mejor o peor estado.

La enorme importancia alcanzada por estos monasterios hizo que su arquitectura influyera poderosamente en otros templos seculares. Las Catedrales de Tarragona, Lérida, Santo Domingo de la Calzada, Tudela, Siguenza, son, por ejemplo, en cuanto arquitectura, verdaderos templos cistercienses y dentro de nuestro gótico, por su robustez, fuerza, dominio del macizo sobre el huoco y energía de masas, de los que tienen mas carácter hispánico.

Este gótico cisterciense fué importado al medio-dia cuando las conquistas de Fernando III abrieron nuevos territorios a la energía castellana. El grupo de iglesias de Córdoba (San Miguel, San Nicolas, San Pedro, Santa Marina, Santa María Magdalena, San Lorenzo, Santiago, San Pablo) es interesantísimo; replica fiel de la arquitectura del cister, con rasgos mudejares, en algún caso de tanto porte como en la iglesia del Convento de San Pablo. En menor grado se advierte tambien la influencia del arte cisterciense en las iglesias sevillanas como Santa Ana de Triana y San Antón de Trigueros.

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La arquitectura cisterciense, aunque importada, se españoliza por completo y muchas de las construcciones nacidas a su influjo pueden considerarse creaciones de un gótico autóctono español.

Despues de este grandioso desenvolvimiento de la arquitectura del cister y sus afines, la evolución del gótico español se hace incierta y vacilante. Como hemos dicho las grandes catedrales puristas son una excepción y mas excepción todavía la de León. La mas española de las tres es la de Toledo. Aunque deriva de París, Bourges y Le Mans sin embargo sus proporciones son otras, distinguiendose la nuestra por su menor altura y por su mayor dimensión de pilares. Por eso su interior tiene esa serena y robusta grandeza de las catedrales y abadías del grupo Tarraconense. Aparte de esto desde los comienzos surgen en la propia Catedral de Toledo destellos mudejares (Triforio de la girola).

Ademas, estas catedrales. Burgos, León, Toledo, pronto se transforman al paso del tiempo. Se añaden capillas y retablos, se construyen los hispánicos coros, cortando las perspectivas de las naves, se añaden monumentales rejas que fragmentan el espacio. Las catedrales dejan de ser lo que fueron y se convierten en otra cosa, abigarrada, lujosa, mágica, oriental, donde el oro brilla con destellos de cueva milagrosa. Todo esto nos demuestra que la estética del gótico en toda su pureza nos era y nos ha sido siempre ajena.

Las grandes estructuras góticas no tiene clientela que las sostenga. Castilla es pobra para levantar mas templos como Burgos o como León. Andalucía está recien conquistada y sus mezquitas hacen de Catedrales, Cataluña lleva otro camino propio, sin duda el mas interesante. En Castilla se produce, pues, una retrogradación. En lugar de seguir la evolución natural del gótico hacia formas mas audaces y esbeltas cada vez, se va hacia atrás. Se vuelve hacia una arquitectura mas pesada, menos aérea, con menos huecos. El siglo XIV no es creador en la arquitectura gótica, repite y embastece los modelos. El siglo XIV es creador en el mudéjar y por eso la arquitectura gótica sufre el poderoso impacto del mudejar, pero esto ya es otra cuestion.

La única región verdaderamente creadora en el siglo XIV es Cataluña. El gótico catalán es el gran gótico español del siglo XIV, el verdadero gótico autóctono. La grandeza del gótico catalán reside en que no es un arle importado ni deudor de nadie. Nace en el mundo mediterráneo, a un lado y otro de los pirineos: Rosellon, Languedoc, Cataluña y Valencia. El templo gótico catalán tiene por origen una estructura: la de una nave techada mediante una cubierta de madera a dos aguas sobre arcos transversales (que se suelen llamar arcos diafragmas). El elemento estructural básico es un plano (el plano de sustentación). El sistema de cubierta es adintelado, ya que se trata de viguería de madera. Tambien el elemento estructural básico es plano en la arquitectura hispano-musul-mana y mudejar. Pero en estas el plano es paralelo al eje principal del espacio arquitectónico. En cambio en el gótico catalán y sus derivados el plano de sustentación es perpendicular al eje principal del espacio. Es decir al eje longitudinal de la nave.

En Cataluña este problema había recibido de antiguo una solución airosa en los grandes dormitorios de Poblet, en las Atarazanas de Barcelona, en el Salon del Tinell. Esta solución se aplicó a la arquitectura religiosa, primero en las iglesias populares como San Felix de Jativa, la Sangre de Liria, San Salvador de Sagunto, etc.

Esta estructura daba lugar a unas naves divididas en tramos muy oblongos (anchos y cortos), pues venían condicionados por la longitud de las vigas de madera. De aquí surgió luego el que las iglesias abovedadas mantuvieran los tramos oblongos, como sucede en casi todas las iglesias catalanas de una nave y en menor medida de tres naves. Los estribos de los arcos diafragmas sirvieron para alojar capillas entre ellos. Así no perjudicaban el espacio interior ni sobresalían exteriormente.

La estructura fué el fundamento de toda la arquitectura gótica catalana y por esa razón este estilo se desarrolló con tanta lógica y grandeza. Sin vacilaciones.

La vacilación, es, como hemos dicho, la caracteristica del gótico castellano en el siglo XIV. Lo mas sabroso de él lo encontramos cuando se deja penetrar de mudejarismos. Tiene que llegar el siglo XV para que se inicie una renovación de la arquitectura gótica castellana.

Pero entonces esta renovación supone una ruptura con el pasado para partir de bases nuevas. Las fuentes del manantial autóctono se habían secado y si no se quería dejar reducida la arquitectura española al único estilo aquí nacido, al mudéjar, era necesario acudir al empréstito exterior. Entonces fué otra vez la iglesia la que por razones de prestigio y unidad mantuvo los fueros de un arte europeo y cristiano. La ocasión que se presentaba era la construcción de la Catedral de Sevilla sobre la antigua mezquita. Lo mismo que había hecho Toledo tenía que repetir la gran metropoli andaluza, próspera y floreciente cual ninguna. El cabildo hispalense necesitaba hacer una demonstración de prestigio. Ya se conoce la frase: «hagamos una iglesia tal que las generaciones

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que nos sucedan nos tengan por locos». La Catedral de Sevilla fué un acto de afirmación orgullosa del clero frente al mundo mudéjar en el que vivían inmersos. Se repite el caso de Toledo. Las Catedrales de Toledo y Sevilla son dos casos de contradicción con el medio. Dos grandiosas contradicciones.

Las dos catedrales coinciden en una cosa, en ser iglesias de cinco naves: las únicas con Granada. Destaquemos un hecho: las tres catedrales de cinco naves han sido edificadas sobre mezquitas. La planta de una mezquita mas cuadrada que la de una iglesia cristiana se superpone mejor sobre una iglesia de cinco naves que sobre una de tres.

Aunque los constructores de la catedral de Sevilla derribaron la mezquita para poner en ella un ambicioso templo moderno, europeo y cristiano, algo quedó de lo viejo en lo nuevo; la impronta de la planta. Esto explica tambien la anómala cabecera plana de la planta hispalense.

La catedral de Sevilla es artisticamente una incógnita. ¿De donde viene? ¿Quienes fueron sus creadores? Es necesario hacer un estudio histórico y arqueológico para poder relacionar este templo con sus antecedentes. Que es obra de artistas extranjeros, no cabe duda. Pero de que escuelas provienen y con que corrientes se emparentan está por dilucidar puntualmente.

Es posible que los tracistas que vinieron a España para proyectar la catedral de Sevilla estudiaran la de Toledo. Los capitulares sevillanos al querer superar a todas las catedrales tenían que superar a la mas ambiciosa de todas ellas hasta la fecha: la de Toledo. Es posible que la catedral de Sevilla sea consecuencia de tres factores: el arte, importado, de sus tracistas; el influjo de la Catedral de Toledo y el condicionamiento del medio y del sitio.

A partir de la catedral de Sevilla se renueva totalmente la arquitectura religiosa en Castilla. La Catedral de Sevilla es un hito. Su fecha inicial, 1402. A la Catedral de Sevilla y a su impulso se añaden luego, convergentes, las nuevas oleadas que llegan de Flandres, de Renania, de Borgoña. La influencia ya no viene ahora de los estados de la casa real de Francia, sino de los estados del Duque de Borgoña. Este espiritu flamenco-borgoñón que reinará en España todo el siglo XV y hasta el XVI, se vincula a nosotros de una manera tan completa y rápida que hay que pensar en afinidades previas. De hecho el espiritu flamenco-borgoñón y el castellano coinciden en muchas cosas, sobre todo aquellos años.

El arle flamenco-borgoñón será el que inspirará la última etapa de nuestro gótico. Viene, como otros movimientos que llegaron antes, para oponerse al mudejar y sin embargo acabará por dejarse prender en sus redes. De esta suerte la segunda mitad del siglo XV y el primer tercio del siglo XVI serán para España años de plenitud creadora. Si el impulso vino en parte de fuera, se elabora y se comdimenta en la cocina hispánica. Ningún otro pais desarrolla en este ocaso de la Edad Media una arquitectura tan sugestiva, tan llena de facetas, tan pletórica de vida, tan nueva en sus estructuras, tan audaz en sus experimentos.

Ahora nos encontramos con una arquitectura que parece comprimir en arrebatada síntesis el curso de varios siglos. En el comienzo de este ensayo decíamos que el siglo XV, que iba a terminar con la Edad Media, en algunos aspectos parecía el mas medieval de los siglos, como movido por un impulso ambivalente de destrucción y añoranza. En la arquitectura del gótico final tambien sentimos esta añoranza, ese deseo de recuperación y de absorción de un pasado, de un pasado múltiple y proteico en el que se unió lo medieval islámico y lo medieval cristiano; por eso a la vez que aspira a algo nuevo se viste con ropajes antiguos, por eso a la vez que mira a la universalidad de una nueva cultura se adscribe a localismos inequivocamente castizos. ¡Qué mayor localismo y casticismo que el que encontramos en el manuelino portugués o en el isabelino castellano!

Por eso mismo esta arquitectura ha sido generalmente tan mal comprendida y tan escasamente valorada!

Para nosotros, en cambio, es una de las épocas mas fértiles, mas originales y mas inventivas de nuestro arte. No en balde coincide con la formación de la nacionalidad española y con su afirmación ante el mundo. Que la época era, utilizando el neologismo de Castro, conflictiva, no cabe duda y esto lo refleja también la arquitectura que la representa.

1 «El nosotros de las Historias». Rev. de Occidente núm. 15. 2 Castro, De la Edad conflictiva, 2.a Edición, Madrid, 1961, pág. 53. 3 Rev. de Occidente núm. 16. 4 Manuel Abizanda y Broto. Documentos para la Historia Artística y Literaria de Aragón. Tres

Tomos. Zaragoza, 1915, 1917, 1932.

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5 F. P. de Pulgar. Crónica de los Reyes Católicos. Edición J. de M. Carriazo I, 143.

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