maria schmitt - cortázar e a desconstrução dos cânones literários

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SCHMITT, Maria Aparecida Nogueira. “Cortázar e a desconstrução dos cânones literários: o insólito na interpenetração de códigos em “O livro de Manuel”. I Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional, 2012, Rio de Janeiro, UERGE Maria Aparecida Nogueira Schmitt 1 Resumo: Cortázar e a desconstrução dos cânones literários: o insólito na interpenetração de códigos em “O livro de Manuel” Na busca de uma estética literária que atenda as especificidades da América Latina, Julio Cortázar inaugura um estilo romanesco onde o leitor deixa de receber passivamente a leitura linear e previsível para, numa postura lúdica, envolver-se com o livro como co-participante do autor. Nos domínios das obras cortazarianas, “O livro de Manuel” reflete, no espelho textual, imagens vestidas de palavras e o autor, ao recorrer a recursos televisivos, como componentes do seu projeto de invenção lúdica, investe no processo renovador de uma narrativa de auto-destruição, híbrida de elementos imaginários e de dados documentais. Envolvido com o compromisso da alfabetização política, Cortázar se utiliza do insólito na busca de aproximação entre o leitor e o mundo das personagens, plasmadas na realidade cotidiana que circunda o homem latino- americano. No mosaico textual, fragmentos da vida e da arte formam a unidade na diversidade, numa técnica de construção em texto nascido de outros textos. Compondo um tecido complexo em que imagens e palavras são costuradas umas às outras, o fio do discurso consegue em “O livro de Manuel”, na destreza do escritor comprometido com a realidade, utilizar-se do onírico como elemento ancilar para se atingir a integralidade do ser. Palavras-chave: desconstrução - onírico realidade insólito - imagens - palavras Abstract: Cortázar and the Deconstruction of Literary Canons: the Unusual in the Interpenetration of Codes in "O livro de Manuel" In the search for a literary aesthetic which meets the specificities of Latin America, Julio Cortazar inaugurates a Romanesque style where the reader no longer receives passively the linear and predictable reading but, with a ludic approach, becomes involved with the book as the author’s partaker. In the domains of the Cortazian works, "O livro de Manuel" reflects, in the textual mirror, images dressed in

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Maria Schmitt - Cortázar e a Desconstrução Dos Cânones Literários

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Page 1: Maria Schmitt - Cortázar e a Desconstrução Dos Cânones Literários

SCHMITT, Maria Aparecida Nogueira. “Cortázar e a desconstrução dos cânones literários: o

insólito na interpenetração de códigos em “O livro de Manuel”. I Congresso Internacional

Vertentes do Insólito Ficcional, 2012, Rio de Janeiro, UERGE

Maria Aparecida Nogueira Schmitt1

Resumo:

Cortázar e a desconstrução dos cânones literários: o insólito na interpenetração

de códigos em “O livro de Manuel”

Na busca de uma estética literária que atenda as especificidades da América

Latina, Julio Cortázar inaugura um estilo romanesco onde o leitor deixa de receber

passivamente a leitura linear e previsível para, numa postura lúdica, envolver-se com o

livro como co-participante do autor. Nos domínios das obras cortazarianas, “O livro de

Manuel” reflete, no espelho textual, imagens vestidas de palavras e o autor, ao recorrer

a recursos televisivos, como componentes do seu projeto de invenção lúdica, investe no

processo renovador de uma narrativa de auto-destruição, híbrida de elementos

imaginários e de dados documentais. Envolvido com o compromisso da alfabetização

política, Cortázar se utiliza do insólito na busca de aproximação entre o leitor e o mundo

das personagens, plasmadas na realidade cotidiana que circunda o homem latino-

americano. No mosaico textual, fragmentos da vida e da arte formam a unidade na

diversidade, numa técnica de construção em texto nascido de outros textos. Compondo

um tecido complexo em que imagens e palavras são costuradas umas às outras, o fio do

discurso consegue em “O livro de Manuel”, na destreza do escritor comprometido com

a realidade, utilizar-se do onírico como elemento ancilar para se atingir a integralidade

do ser.

Palavras-chave: desconstrução - onírico – realidade – insólito - imagens - palavras

Abstract:

Cortázar and the Deconstruction of Literary Canons: the Unusual in the

Interpenetration of Codes in "O livro de Manuel"

In the search for a literary aesthetic which meets the specificities of Latin

America, Julio Cortazar inaugurates a Romanesque style where the reader no longer

receives passively the linear and predictable reading but, with a ludic approach,

becomes involved with the book as the author’s partaker. In the domains of the

Cortazian works, "O livro de Manuel" reflects, in the textual mirror, images dressed in

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words and the author, when turning to television resources as components of his ludic-

invention project, invests in the renewing process of a self-destruction narrative, hybrid

of imaginary elements and documentary evidence. Involved with the commitment with

the political literacy, Cortazar uses the unusual in the search for the closeness between

the reader and the world of the characters, shaped in the everyday reality which

surrounds the Latin American man. In the textual mosaic, fragments of life and art form

the unity in the diversity, in a text-construction technique born from other texts.

Composing a complex tissue in which images and words are stitched to each other, the

thread of the discourse in "O livro de Manuel" can, by means of the writer’s

commitment to the reality, use the oneiric as an ancillary component to achieve the

completeness of being.

Key-words: deconstruction - oneiric – reality – unusual – images – words

_____________________ 1

Especialista em Literatura Comparada, pela UFJF; mestre em Letras, concentração em Teoria da Literatura pela UFJF; doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ, concentração em Estudos Literários Neolatinos; pós-doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ, concentração em Estudos Literários Neolatinos. Professora do Programa de Mestrado em Letras do CES/JF –PUC Minas. [email protected] - [email protected]

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Cortázar e a desconstrução dos cânones literários: o insólito na interpenetração

de códigos em “O livro de Manuel”

Da inventiva armação de enredos brotados de um estilo inovador projetam-se

dardos no convencional e nos arquétipos da leitura linear. Abominando o “leitor-

fêmea”, passivo, Julio Cortázar procura dotar sua obra de um cunho enigmático, usando

de recursos vários para atordoar, irritar e despertar o desejo de desvendar mistérios

naquele que se aproxima de um mundo insólito. Interfere, sugere, dirige a leitura como

o faz um guia de informações cioso de sua responsabilidade quanto ao aproveitamento

total de quem acaba de adquirir um bem, dotado de vantagens múltiplas.

Indecifrável, como o são deuses nascidos do mito, chega a confundir poderosas

organizações, tendo sido considerado pela CIA como um perigoso esquerdista, uma

vez que em seus livros advoga a instauração do “socialismo” na América Latina. Julio

Cortázar deixa transparente, em muitas de suas obras, o desprezo total a instituições que

defendem ideologias do sistema capitalista. Leo Gilson Ribeiro divulga, por outro lado,

em sua obra “O continente submerso” a conclusão da KGB soviética, assinada por

Andropov:

Cortázar é um notório “agente do imperialismo a soldo da CIA” e

“perigoso agitador anti-soviético”. Em inúmeras ocasiões, Cortázar

denunciou a prisão, em Moscou, dos chamados “dissidentes”, como

Bukovsky, Plyusch, Sakharov e outros “traidores da Mãe-Pátria do

Socialismo” (RIBEIRO, 1988, p. 235-236).

Recorre às mágicas do gênero fantástico, assistindo a espetáculos através de

paredes de tijolos, utilizando-se de metamorfoses e duplos em seu castelo de espelhos

ao redor do qual teimam em desabrochar as rosas blindadas. Fragmenta seu texto como

um iconoclasta, mas a capacidade cabalística do autor, que aprisionou o Pégaso nos

domínios da imaginação, o refaz apresentando-o íntegro, sem trincas, como o mais

rutilante vaso de cristal.

Elaborada para quem não tem medo de sonhar, a literatura cortazariana requer,

no entanto, o árduo trabalho de procurarem-se caminhos próprios e individuais de

____________

* Pós-Doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ, área de concentração em Estudos

Literários Neolatinos; Professora e orientadora do Programa de Mestrado em Letras –

Literatura Brasileira - Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora CES/JF e UFJF. Linha

de pesquisa: Literatura Brasileira, tradição e ruptura.

leitura num garimpo em que, ao ser encontrado o primeiro diamante, este se torna, por

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encanto, o prenúncio de todo um tesouro. Basta, no entanto, que haja persistência e,

sobretudo, disposição para deixar-se envolver no jogo labiríntico.

Depois de sua morte, uma soma mais objetiva do que restou de Julio Cortázar

revela um outro aspecto de seus duplos: um autor que busca talento com sua erudição

canalizada para a inventividade e outro que se aproxima pelos destinos do homem, pela

justiça, pela liberdade e, sobretudo, pela igualdade de direitos e conquista de espaços

para cultivar a felicidade.

No interior de seus anagramas e entre os estilhaços de uma obra

desestabilizadora encontra-se o empenho para que, além de alimentação, teto e

emprego, o povo, e todo o povo, tenha acesso ao direito humano mais relegado ao plano

secundário: o ingresso ao mundo da cultura que não deve ser aprisionada nas mãos dos

que acumulam fortunas, mas estendida a uma elite de percepções, de capacidade

intelectual de inteligência que são independentes da posição social (Cf. RIBEIRO,

1988, 234).

Dentro da visão hippie em que Cortázar insiste num futuro no qual predominem

o amor, os jogos e a alegria, seu “O livro de Manuel” constitui-se, sem dúvida, em

profunda reflexão sobre a espécie de vida que se oferece àquele que acaba de chegar.

Mais que nunca acredito que a luta em prol do socialismo latino-

americano deve enfrentar o horror cotidiano com a única atitude que um

dia lhe dará a vitória: cuidando preciosamente, zelosamente, da

capacidade de viver tal como a queremos para esse futuro, com tudo o

que supõe de amor, de brincadeira e de alegria. (CORTÁZAR, 1984, p.

8)

A organização de um documentário pedagógico sutilmente leva o homem a

refletir que o mundo oferecido a uma criança é, na maioria das vezes, aquele que

qualquer um, com opção de escolha, se negaria a aceitar.

O enredo de “O livro de Manuel” é simples como o de um catecismo: trata-se do

bebê de um casal de latino-americanos que vive em Paris. Tanto os pais, Patrício e

Susana, quanto um grupo de amigos deles preocupam-se em registrar as atrocidades da

opressão de que estão sendo testemunhas e vítimas, esperançosos de que a criança,

Manuel, ao tomar conhecimento delas, no futuro, procure transformar o mundo,

tornando-o mais justo, mais humano e desvencilhado de preconceitos. Susana procura

elaborar um álbum com recortes dos acontecimentos da época em vários idiomas e

todos procuram ajudá-la.

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Páginas para o livro de Manuel: graças às suas amizades entre comovidas

e brincalhonas, Susana vai conseguindo recortes que cola

pedagogicamente, isto é, alternando o útil e o agradável, de maneira que

quando chegue o dia Manuel leia o álbum com o mesmo interesse com

que Patrício e ela liam no seu tempo “O tesouro da juventude” ou o

“Billiken”, passando da lição à brincadeira sem muito traumatismo, além

do que quem sabe qual é a lição e qual a brincadeira e como será o

mundo de Manuel e porra, diz Patrício, faz bem, minha velha, colhe

nosso próprio presente e também outras coisas, assim terá para escolher,

saberá o que foram nossas catacumbas e talvez o garoto consiga comer

estas uvas tão verdes que olhamos de tão baixo. (CORTÁZAR, 1984, p.

290)

No final, percebe-se que, por serem as notícias violentas, terríveis e

ameaçadoras, o livro que Susana idealizou como uma obra pedagógica, torna-se um

documentário aterrador. Um dos amigos do casal, Andrés, introduz, sem que Susana o

perceba, recortes de desenhos e notícias divertidas para aliviar a tensão que fatalmente

Manuel absorverá quando contactar com o mosaico dos acontecimentos abomináveis

que assolam a humanidade.

Nota-se que a estratégia acionada na feitura de “O livro de Manuel”, publicado

originalmente em 1973, quando o mundo estava sob o efeito inicial da introdução ao

meio doméstico de imagens vivas e atuais diante do rompimento com a distância, foi a

de recorrer às técnicas televisivas. “A televisão absorveu do cinema duas de suas

técnicas fundamentais: a técnica de corte e a técnica da câmara contínua ou câmara na

mão.” (PIGNATARI, 1984, p. 12)

Ao lado dos cortes, as vinhetas, anúncios e sintaxe própria da linguagem da

televisão mesclam toda a obra parecendo, à primeira vista, descontextualizadas e fora de

propósito. Não há compromisso com as partes isoladas do texto para tê-lo, em nível

profundo, com o todo. É a magia de que deuses profanados do templo da América

Latina dotam os que vieram para resgatá-los.

Em uma passagem, no início do livro, “aquele de quem lhe falei”, personagem

assim apresentado no início da obra pelo narrador e assim chamado durante toda a

narrativa, procurando passar sua ideologia, a revolução, e, ao ser tachado de simplista

por Marcos, outro personagem, contesta:

É minha agenda de todas as manhãs – diz aquele de quem lhe falei -, e

reconheça que se todo mundo acreditasse nesses simplismos, não seria

tão fácil à Shell colocar-lhe um tigre no motor.

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– É a Esso – diz Ludmila, que tem um Citroën de dois cavalos

aparentemente paralisados de terror pelo tigre.... (CORTÁZAR, 1984, p.

13)

No fragmento de diálogo acima percebe-se a dupla intenção do autor, ou seja, a

de alertar contra o perigo da comunicação de massa e levar o personagem a trocar os

nomes das marcas para que fique evidenciada a sua não submissão aos comerciais de

televisão.

Na apresentação de personagens pode-se perceber a técnica do cartão em vertical

tilt card “no qual os vários letreiros ou visuais são dispostos um em baixo do outro.”

(STASHEF, 1978, p. 130)

Ludmila

Gómez

Monique

Lucien Verneuil

Heredia

................ (CORTÁZAR, 1984, p. 15)

Prosseguindo a caminhada pelo universo cortazariano da obra em questão,

aparece o primeiro dos vários recortes de jornal que serão apresentados durante todo

“O livro de Manuel”. “... em Clermont-Ferrand o Conselho Provisório da Faculdade

denunciou as brutalidades dos policiais cometidas contra um professor adjunto.”

(CORTÁZAR, 1984, p.18)

Considerando que, segundo Décio Pignatari, todos os meios de comunicação

confluem para a televisão, assim como todas as informações confluem para o

computador, deduzindo que ela serve e se serve de todos os veículos e constitui-se em

uma “obra” aberta por excelência, Julio Cortázar, na apresentação dos fragmentos do

jornal, procura aproximar-se do leitor e convencê-lo paulatinamente da validade de

sua proposta a favor da integração ao cotidiano sem, contudo, deixar-se abater pelo

niilismo e pela anestesia que a violência consegue aplicar nos sentimentos dos que

contactam com ela seguidas vezes. “Não há nada mais parecido com a estrutura da

televisão do que a estrutura de um jornal: este é um mosaico verbal do mundo, aquele

um cinético mosaico audiovisual.” (PIGNATARI, 1984, p.103)

Utilizando-se, pois, dos recortes do jornal, Cortázar imprime ao seu livro

caracteres televisivos, apresentando-os como vinhetas inseridas na visualização dos

textos.

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Em outra passagem, o método televisivo do take , ou corte, utilizado para

“passarmos de uma tomada para outra.” (STASHEF, 1978, p. 43), é seguido para que

o leitor não se engane quanto à forma de o autor tratar o tempo e o espaço.

... daquele de quem lhe falei gostaria de dispor da simultaneidade,

mostrar como Patrício e Susana dão banho no filho no mesmo momento

em que Gómez, o panamenho, completa com visível satisfação uma série

correlata de selos da Bélgica e um tal de Oscar em Buenos Aires telefona

para sua amiga Gladis para informá-la de um assunto grave...

(CORTÁZAR, 1984, p. 14)

No desejo do personagem de apresentar alternância de situações, tempo, espaço,

o leitor consegue visualizar a mudança como se fosse a de uma tomada para outra em

televisão.

Continuando a leitura, mais uma vez o lampejo da presença da televisão,

quando “aquele de quem lhe falei”, após lembrar-se de fatos com cheiro de saudade de

um tempo muito anterior ao presente, em que crianças brincavam no jardim que a avó

havia regado ao anoitecer, vira as costas para as lembranças “e o dedo indicador da

mão direita apoia-se na tecla que imprimirá um ponto vacilante, quase tímido, ao

término do que começa, do que tinha que ser dito.” (CORTÁZAR,1984, p. 23)

A televisão, muitas vezes, tem seu texto, se não mutilado, omisso, no que se

refere ao que não foi dito.“No decorrer dos anos de televisão e de filmes para TV, certos

padrões sequenciais foram estabelecidos. Esses padrões ou convenções foram guiados

pelo tipo de informação que o público desejava ver.” (STASHEF, 1978. p. 18)

Os padrões sequenciais tomados no nível das notícias constituem, de fato, o

término do que começa, do que tinha que ser visto mas quer não pode ser mostrado; a

TV segue exatamente a opinião do público telespectador.

Na tarde de sábado 6, enquanto passeava pelo campus de Saint-Mastin-

d´Hères para ver os estudantes e compreender a razão de sua violência,

Aqui permita-me um sorriso, porque isso de não entender ainda a razão

de sua violência quase justifica ao que aconteceu ao pobre Etienne, fui

convidado a assistir ao “boom-barricada”. À noite me aproximei da

avenida que contorna o campus. Um carro se deteve na minha frente.

Desce um comando de sete pessoas.... (CORTÁZAR, 1984, p. 46)

Na tessitura do trecho acima, extraído de “O livro de Manuel”, percebe-se uma

das passagens mais comuns da televisão que é a fusão de imagens, uma “sobreposição

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de duas tomadas, onde a primeira desaparece, suave ou rapidamente, à medida que vai

aparecendo a segunda.” (STASHEF, 1978, p. 51)

Os anúncios publicitários da televisão constituem seu veio nutriente,

desempenhando uma função bem mais relevante do que por vezes possamos imaginar,

Às vezes, é difícil dizer o que não é publicidade na televisão. Este

“veículo” como os demais “veículos”, não é simplesmente um veículo ou

meio de comunicação:ele é o mais poderoso criador de folclore urbano de

nossos dias. E este folclore está ligado às vendas, diretamente – depende

delas, para existir e subsistir. (PIGNATARI, 1984, p. 29)

Muitas vezes, o telespectador tem a impressão de que é preciso suportar quinze

minutos de anúncio por hora para que lhe chegue o programa favorito. Na verdade é o

contrário que se passa: a programação da televisão está em função da publicidade. “Os

shows,os filmes, as novelas, o próprio telejornalismo são cuidadosamente ‘balanceados’

em suas emoções e informações, a fim de preparar a inserção do comercial.”

(PIGNATARI, 1984, p. 29)

Cortázar evidencia esse aspecto marcante do comercial de televisão com o seu

canto em homenagem aos deuses do sistema capitalista: “Fragmento para uma Ode aos

deuses do Século”.

Com o refrão “ofereça libações” o autor busca, através da ironia, alertar o leitor

mais uma vez contra o estado servil a que a comunicação de massa arrasta o homem,

atirando-o, sem que o perceba, ao calabouço do consumismo. O texto está repleto de

mensagens comerciais à semelhança da televisão que é essencialmente “um veículo de

propaganda.” (BESSA, 1988, p. 72) O telespectador não percebe o fascínio que os

comerciais exercem sobre ele e inconscientemente absorve as mensagens de tal forma

que “René Berger chama os publicitários de demiurgos do mundo moderno, pois as

casas, vestuários e alimentos que utilizamos são concebidos por eles.” (BESSA, 1988,

p.74) Segundo ainda Berger, não há “nada, nem mesmo a nossa intimidade

(desodorante, depilatório, remédio contra calvície) que não dependa dele.”

(BESSA,1988, p. 74).

Mais uma, dentre as muitas passagens, a presença do corte e da simultaneidade

se unem, em “O livro de Manuel”. Agora aparece no relato do sonho do personagem

Andrés.

...a cena foi cortada exatamente ao aproximar-me do sofá, mas ao mesmo

tempo sei que tenho algo a fazer sem perda de tempo, isto é, que ao

voltar à sala do cinema estou agindo simultaneamente como dentro e fora

Page 9: Maria Schmitt - Cortázar e a Desconstrução Dos Cânones Literários

do filme de Fritz Lang ou de qualquer filme de mistério, sou

simultaneamente o filme e o espectador do filme. (CORTÁZAR, 1984, p;

113)

No anúncio em que a palavra “horoscope” é destacada pelo tamanho das letras o

autor adentra no território dos materiais gráficos. “O termo “gráficos” inclui todos os

materiais visuais parados, sejam, eles trabalhos de arte originais, produzidos num

tamanho suficientemente grande para a utilização no estúdio, ou reproduzidos em slides

ou trechos filmados (filmletes)”. (STASHEF, 1978, p. 126)

O recurso do close-up é frequentemente utilizado em toda a obra através de várias

palavras que se destacam de outras ao serem escritas com os caracteres maiúsculos ou até como

big close-up, uma vez que há passagens nas quais se tem a impressão que as palavras

extravasam o espaço da folha do livro como olhos realçados na tez pálida do papel, fitando o

leitor.

y se La m

ta La man

ras cómo llo

- - Hicistes b

ao cabo. - - Así

- derán esas p. (CORTÁZAR, 1984, p. 205)

A técnica do close-up, empregada em televisão para “criar o intimismo e levar o

telespectador a ver claramente o que é relevante” (STASHEF, 1978, p. 26), pode ser

detectada em várias passagens do livro, atraindo a atenção do leitor para enfatizar

alguma palavra que poderia passar despercebida, se vista entre todas as outras, como um

detalhe particular, ressaltado de forma tal que não seria possível se fosse visto apenas

entre muitos objetos numa tomada mais aberta, dentro da ótica televisual.

O recuso do gancho que, segundo Doc Comparato, “...é o momento de grande

interesse que precede um comercial. Pequenos ou grandes clímax, arranjados de modo

tal que não permitam ao telespectador abandonar a história...” (COMPARATO, in:

CAMPEDELLI, p. 91), é utilizado algumas vezes por Cortázar antecedendo um take

para a introdução de um recorte de jornal

Naturalmente as incitações à imaginação de Manuel não tinham nada de

Angélicas, porquanto Susana havia previsto que aos nove anos ele já

estaria em condições de entrar na história contemporânea por via de

coisas como: Córdoba:Torturon a Cuatro Extremistas (CORTÁZAR,

1984, p. 135 - 136).

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Os dois pontos servem de ganchos para manter o leitor preso à narrativa

enquanto é introduzida uma notícia de tortura a quatro extremistas.

Uma vinheta de passagem poderia ser visualizada pela introdução da manchete

“3er. Aniversario” (CORTÁZAR, 1984, p. 363). As vinhetas de passagem, ou

chamadas, são utilizadas pelo diretor de interprograma em televisão para cobrir

qualquer possível emergência, ou seja, os “buracos” que possam sobrevir ao horário da

programação. (Cf. STACHEF, 1978, p.139)

Se o leitor considera o relacionamento do recorte apenas com o texto

fragmentado, a interligação parecerá inexistente, constituindo-se, então, uma vinheta de

passagem completando o vácuo aparente com a notícia colocada no interior da

conversa entre Lonstein e Anddrés.

A presença da fala televisual também pode ser reconhecida ao se fazer um corte

no diálogo entre Andrés e Ludmilla.

“Interrupção por motivo de força maior.” (CORTÁZAR, 1984, p. 179) Ou

quando Susana, ao realizar uma das suas traduções. Faz uma admoestação quanto às

interrupções “... ou calavam um pouco a boca ou lhes cortaria o canal a cores.”

(CORTÁZAR, 1984. p. 266)

A preocupação em agradar o público, semelhante a da televisão, fica marcada

quando Lonstein faz uma crítica àquele de quem lhe falei em relação ao seu empenho de

oferecer ao leitor o que ele deseja:

Bah, disse o rabininho, você me decepciona, tchê, começo a perceber que

o seu famoso fichário está escrito com um olho nas fichas e outro nos

futuros leitores, e é isso, as testemunhas presentes ou futuras, os juízes de

hoje ou do amanhã que dão medo em você, confesse a verdade a seu tio.

(CORTÁZAR, 1984, p. 256)

Mais uma presença de elementos televisivos na obra encontra-se na seguinte

fala: “Vou lhe contar velho, era para transmiti-lo via satélite, íamos e vínhamos pela

casa como se o outro não estivesse...” (CORTÁZAR, 1984, p. 226)

A alusão direta à televisão está registrada tanto na referência que Marcos faz à

pergunta de sempre que a vendedora lhe dirige quanto ao número de seu colarinho:

“Não se preocupe, digo-lhe, quero-a grande e larga. Silêncio, olhos de coruja, lábios

apertados, isso não pode ser, vejo-a pensar e irar-se mais claramente do que se tivesse a TV nas

franjinhas”. (CORTÁZAR, 1984, p.285) como em “... você está no expresso para

Bratislava e aí mesmo, pela cabeça, os novos buracos mânticos, os oráculos de juke-

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box, as alucinações diante da TV, quem sabe se os cinemas, olhando bem, entenda que a

fadiga visual nos torna mais receptivos...” (CORTÁZAR, 1984, p. 306)

Um anúncio publicitário ao lado da nota de um sequestro político passa

literalmente a ideia do telejornal que, quase simultaneamente às notícias, apresenta os

comerciais.

A receita de sandwiches que é colada no álbum de Manuel aproxima a obra de

Cortázar da televisão, mais uma vez, no sentido de apresentar programas de acordo com

a “vontade popular” pesquisada. “Guiam-se pelo lema ‘dar ao público o que ele gosta’.”

(STASHEF, 1978, p. 245)

Semelhante ao recurso do corte, a forma de apresentação dos depoimentos

revoltantes dos presos políticos assemelha-se à tela dividida, na qual desenrolam-se

fatos simultaneamente.

A mistura de notícias para aliviar a tensão, à semelhança da estratégia televisiva,

fica documentada no diálogo de Lonstein e Andrés:

- Pobre menino – disse Losntein - , essa não é uma maneira de equipá-lo

para o futuro, aos treze anos vai ser um neurótico completo.

- Depende – disse Andrés passando a tesoura para Susana, que colava os

recortes com um ar altamente científico - ,se der uma olhada no álbum

verá que nem tudo é assim, eu por exemplo, aproveitando-me de um

descuido dessa louca, pus uma quantidade de desenhos divertidos e

notícias muito pouco sérias para o consenso dos monoblocos, se é que me

entende.(CORTÁZAR, 1984, p. 427)

Com a interferência de Andrés, a estilo dos recursos da programação televisiva,

fica resguardada a aceitação do pequeno leitor, à obra que lhe é destinada com

exclusividade. Através da linguagem televisiva, por não haver passado nem futuro na

televisão, diacronismo e sincronismo fundem-se para articular signos, sinais e símbolos.

Fazer televisão é trabalhar com a arte do falso, é fabricar fantasias, criar

ilusões que possam alimentar nossas personalidades, sustentar a

tendência do ser social, vivendo o mundo das aparências, da competição,

da valorização dos aspectos externos da vida e das coisas. (STASHEF,

1978, p. 246)

“O livro de Manuel” traz a linguagem televisiva no interior das palavras, nos

trechos mesclados de comerciais, para não se tornarem demasiadamente longos, e nas

entrelinhas como se ao toque do dedo indicador surgisse um ponto de luz e imagens

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saltassem das letras vendendo fantasias e sonhos. Assim subverte códigos, cria palavras

e expressões para suprimir a distância entre o leitor e o mundo da escritura.

Procura ecofon com um mesin

mas que nunca uma Fortran

falte ao encontro, se queres

um orlopró de grande coerência

Boex! (CORTÁZAR, 1984, p. 218)

O recorte textual acima, aparentemente impenetrável na desconstrução da linguagem,

tem como chave de leitura as linhas que o antecedem na trama romanesca:

“- Bom, ninguém pretende que você o saiba, tchê. Fortran é um termo

significante na linguagem simbólica do cálculo científico. Em outras palavras,

formulação transposta dá Fortran,e isso não foi inventado por mim mas acho

que é uma bonita expressão, por que então não dizer boex por bonita expressão,

coisa que economiza fonemas, isto é ecofon não sei se está me acompanhando,

em todo caso ecofon teria que ser uma das bases da fortran. Com estes métodos

sintetizadores, isto é os mesin, se avança veloz e economicamente em direção à

organização lógica de qualquer programa, ou seja o orlopró. Neste papelzinho

pode observar o poema envolvente e mnemônico que preparei para reter os

neofonemas (CORTÁZAR, p. 217)

Julio Cortázar busca em sua obra novas formas de expressão, novos códigos e

mensagens, criando um universo de ficção poroso, aberto a expansões, numa articulação lúdica

do seu puzzle narrativo. Há um compromisso com o envolvimento do leitor para que o mesmo

venha a tornar-se um coautor, responsável por dar continuidade à elaboração da poética de uma

leitura participante.

A narrativa de Cortázar dá “Voltas e reviravoltas ao redor do mesmo eixo,

improvisações ou takes de um mesmo tema vital, tudo parece atrair para diferentes perspectivas

de abordagem, apesar da unidade e coesão do todo: é preciso ensaiar caminhos até o núcleo do

labirinto.” (ARRIGUCCI, 1973, p.31)

Na grande ciranda cortazariana giram de mãos dadas, ao lado da subversão dos cânones

literários europeizados, a denúncia ao machismo, às inibições sexuais impostas por instituições

religiosas tacanhas, à opressão da mulher, à do homossexual, à ditadura dos preconceitos, à

hostilidade à sucata do obsoletismo do não-pensar, o repúdio aos engodos políticos e à tortura

de presos.

Page 13: Maria Schmitt - Cortázar e a Desconstrução Dos Cânones Literários

É uma literatura que se estabelece no insólito para dar voz aos silenciados na

marginalidade pelos sistemas autárquicos que durante muito tempo se assenhoraram das letras

latino-americanas.

bibliografia

ARRIGUCCI, Davi Jr. O escorpião encalacrado. São Paulo: Perspectiva, 1973.

BESSA, Pedro Pires. Loyola Brandão – a televisão na literatura. Juiz de Fora: Editora

da Universidade Federal de Juiz de Fora.

COMPARATO, Doc. In: CAMPEDELLI, Samira Youssef. A telenovela. São Paulo:

Ática, 1985.

CORTÁZAR, Julio. O livro de Manuel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

PIGNATARI, Décio. Signagem da televisão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

RIBEIRO, Leo Gilson. O continente submerso. São Paulo: Best Seller, 1988.

STASHEF, Edward et al. O cronograma de televisão. Trad.e adap. de Luiz Antônio S.

de Carvalho. São Paulo: EPU, 1978.