marcio seligmann-silva - variaÇÕes sobre a ontologia da traduÇÃo (2011)

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    of translation and shadow writing. It includes an analysis of the crossingsamong the concepts ofskiagraphia and translation. In the conclusion, theauthor points towards two conceptions of translation that can be seen asopposed to the tradition of this fusion of translation and shadow, namely,the works of Walter Benjamin and of Vilm Flusser.Keywords: Translation and authorship,secundity, skiagraphia, mimesisand translation,Vilm Flusser.

    Em 2010 Claude Demanuelli recebeu o prmio Baudelaire detraduo da Socit des Gens de Lettres. Nessa ocasio, em umaentrevista, ela declarou : Un traducteur nest quun crivain en se-cond, en italiques, entre parenthses. Il nexiste que dans les notesde bas de page, sous la forme dabrviations [...] Un traducteur est

    un crivain de lombre. Il ne prendra jamais la place dun crivain.2 Essa declarao retoma uma longa tradio que v no tradutor

    um artfice menor, um simples tcnico da transposio de lnguas.A secundidade dessa posio enfatizada pela ideia que ele seria

    um escritor de emprstimo ou por termos comosombra. O tra-dutor seria a sombra, ou seja, uma imagem plana e sem detalhes,escura, do original. Essa tomada de posio de Demanuelli no surpreendente para quem conhece a histria da traduo. O que eugostaria de fazer aqui explorar essa ideia de secundidade, de de-rivao submissa da obra do tradutor. Para tanto, vou apropriar-me

    dessa expresso de Demanuelli e explorar as possveis relaes quepodemos estabelecer entre o reino das sombras e o da traduo.Nesse ponto vou servir-me da obra de alguns filsofos e escritores.Nosso priplo pelo reino das sombras dever vir at nossos dias,quando introduzo na minha reflexo a questo da desconstruodessa tradio. Nesse ponto Walter Benjamin e Vilm Flusser de-vero ajudar a exorcizar essas sombras, ou a sombra dessas som-bras. Assim o espero. Iniciemos.

    Comecemos pelo mais evidente, pelo mais claro, ou seja, pelaluz. Impossvel falar de sombra sem pensar nas luzes, afinal, amatriz de toda metaforologia ligada sombra derivada ( umasombra) da imagem da luz como causa originria da sombra. A

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    oposio luz/sombra tem sido uma fonte inesgotvel de expresses,de metforas e de provrbios. Podemos falar que esse contraste

    um dos mais fecundos na histria enquanto um modelo de pen-samento e uma imagem que estrutura nossa viso de mundo. Nodicionrio Houaiss a primeira definio de sombra remete a essacomplementaridade entre sombra e luz. A sombra caracterizadacomo a obscuridade produzida pela interceptao dos raios lumi-

    nosos por um corpo opaco. Para chegarmos sombra precisamosprimeiro de uma luz, fonte da claridade, depois de um obstculo e,finalmente, temos a sombra. Essa ao mesmo tempo um decalquee uma marca, ou um ndice (como diramos com Peirce), ou seja,inscrio de uma presena, e tambm, de modo quase paradoxal,

    uma marca de ausncia, de uma falta. A traduo para ser enca-rada como uma sombra precisa ser entendida como o resultado

    ltimo de um processo que se inicia com o original, que, porsua vez, seria compreendido, por assim dizer, como a sua luzoriginria. Para fazer uma transposio exata do dispositivo dasombra, que acabamos de ver, para o da traduo, precisamospensar esta como uma sequncia de emanaes do original, queseriam filtradas por um obstculo para, finalmente, chegarmos aoresultado sombrio, ou seja, quilo que denominamos de tradu-o. A emanao original pode ser pensada como a obra origi-

    nal (que tomada aqui como entidade estanque e perfeitamenteidentificvel), o obstculo seria a diferena de lnguas e, por fim,a traduo seria a sombra. Como se pode observar, a transposi-o no total (ou seja, no existe uma traduo perfeita) entreesses dois dispositivos, o da sombra e o da traduo. O problemanesse esquema que no acontece na traduo, como no jogo luz/sombra, um decalque perfeito do obstculo, mas sim o prpriooriginal de onde emana a luz seria filtrado e empalidecido pelaoperao tradutria. Essa diferena, no entanto, no tem impedi-do que continuemos a ver a traduo como sombra.

    Creio que podemos entender sem dificuldades o porqu dessatransposio metafrica. Tanto na sombra como na traduo esta-

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    mos diante de variaes de um outro paradigma bem conhecido eno menos poderoso, a saber, o dispositivo mimtico. Ammesis entendida como imitao e cpia rege os dois dispositivos, o dasombra e o da traduo. Nos dois casos vemos, como nammesis,o estabelecimento de uma relao causal entre dois objetos, sendo

    um deles considerado a fonte primeira e o outro uma derivaosecundria. Na sombra e na traduo percebemos a participao

    do original, que estaria apenas subtrado de algumas de suas quali-dades. No decalque de sombra existe tambm,ex negativo, a pre-sena da luz original. A sombra tem sua origem no obstculo, massem a luz no poderamos falar de sombra, e a silhueta ela mes-ma meio sombra (sua parte interna), meio luz (tudo que delimitaseu contorno). Por outro lado, a metfora solar vai mais longe nocampo da traduo. Afinal, normalmente a concepo da traduocomo uma cpia plida do original parte de uma viso de mundorepresentacionista, que no s encara as palavras como vestimen-ta intercambivel de ideias, mas tambm v na prpria criaoda obra original uma sequncia de tradues. O original seriao resultado de uma ideia de seu autor. Refiro-me aqui ao antigomodelo poetologico-retrico que, como costuma-se esquematizar,via na obra o resultado de umainventio(ou seja, o encontro domito ou fbula), de umadistributio e, finalmente, de umaelocutio

    (o vestimento lingustico da ideia). Pensando assim, poderamosver na traduo a sombra ainda mais empalidecida daquela ideiaoriginalmente criada. O obstculo que provoca o ensombrecimento a diferena das lnguas e, de modo mais concreto, a figura dotradutor. O tradutor, nessa viso tradicional da traduo, o obs-tculo. Ao invs de agente de circulao, de meio de reflexo e dedesdobramento da obra original, o tradutor visto como o muroque impede a ideia de brilhar.

    Para completar esse priplo pela metafsica da traduo comosombra, no podemos deixar de lembrar que, se alguns tradutoresse tomam como uma espcie deskiagrapho (ou seja, de pintor desombras), por outro lado a tradio ocidental na maioria das vezes

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    tendeu a anular esse ensombrecimento da atividade do tradutor.Antes, como bem o sabemos hoje, valorizou-se a transparnciada traduo, como se os raios originrios, puros, do autor e dooriginal, pudessem penetrar sem mais atravs das diferentes ln-guas. Esquematizando, pode-se dizer que foi apenas com a deca-dncia do paradigma dammesis, que pode ser acompanhado aolongo do sculo XVIII e que culminou no romantismo, que os

    tericos comearam a mergulhar a fundo na teoria da diferena eda intraduzibilidade entre as lnguas. Ou seja, por mais que des-de o Renascimento possamos acompanhar uma histria da crticada traduo, a viso da traduo como sombra um produto decerta forma de um momento de transio do paradigma dabelleinfidle para o da traduo apesar da diferena, que passa aospoucos a dominar aps o romantismo. Fiquemos com essa figurado tradutor comoskiagrapho, ou seja, como um tipo particularde pintor que se utiliza de sombras para dar a iluso do coloridodo original. Esse modelo que eu gostaria de explorar aqui, pen-sando as suas implicaes em termos de uma teoria da traduo.Lembremos rapidamente da histria do conceito deskiagraphia.

    Lumen et umbrae o termo latino que traduzia o gregoskiagra- phia, que literalmente significa algo como escrita com a som-bra. Apolodoro, o pintor grego que viveu no final do sculo V

    a.C., era conhecido comoskiagrphos. Plnio o Velho, que iden-tificava Apolodoro como um dos pais da pintura, tinha a prpriaexpressolumen et umbraecomo um sinnimo da pintura (paradiferenci-la do desenho). (cf. Keuls 72) No caberia entrar aquiem detalhes sobre o significado exato do termo gregoskiagra-

    phia, mas importante lembrar que ele foi entendido tanto como uma tentativa de se criar a iluso da cor pela utilizao do som-breado, quanto como uma tentativa de se introduzir a perspectivana pintura. Os especialistas disputam se a traduo correta seriachiaroscuro, sombreamento ou mesmo perspectiva. Todasessas acepes so importantes no nosso contexto, ou seja, nessaaproximao entre o reino metafrico das sombras e o da traduo

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    que proponho aqui. A traduo como um jogo de sombra seriaentendida como uma espcie de simulao Verstellung e norepresentao,Vorstellung do original, na qual se reconquista-ria a cor e a perspectiva por meio da sombra. Notemos que essaideia de simulao, dentro da tradio humanista e iluminista, quase sempre vista sob uma luz negativa. Apenas os romnticosde Iena iriam colocar aVerstellung em uma posio no s igual

    mas at superior daVorstellung. No por acaso, esses mesmoromnticos seriam os primeiros a comemorar a traduo como uma obra que pode ser vista como igual ou superior ao original,rompendo a tradio que separava de modo estanque a ideia deoriginal e de cpia. J a traduo encarada como perspectiva tra-duz a ideia de que, assim como na representao pictrica emperspectiva, o mundo imitado, mantendo (via iluso perspec-tiva) a sua tridimensionalidade, por sua vez, o tradutor deveriatentar aplicar-se para dar um volume (ainda que artificial) suacpia do original. Para os historiadores da traduo conhecidoque uma constante a ideia da traduo como um achatamentoda tridimensionalidade do original. Gadamer expressou de modobem claro essa concepo da traduo como simplificao e acha-tamento do original em seu texto Mensch und Sprache (1966):Todo mundo sabe como a traduo deixa como que cair no plano

    o que dito na lngua estrangeira. Este ltimo se reproduz numplano de tal modo que o sentido literal e a forma da orao copiamo original, mas a traduo como queno possui espao. Falta aela aquela terceira dimenso a partir da qual o dito originalmente(no original) se construa no seu mbito semntico [Sinnbereich].Este um limite inevitvel de toda traduo (Eu grifo; Gadamer:1993, p.153; cf. Seligmann-Silva: 1998, p. 20). Pensar o tradutorcomo umskiagrapho que perspectiva seria como imaginar, doponto de vista de autores como Gadamer, que o tradutor devetentar introduzir esse volume em seu plano achatado.

    Essa introduo de um termo importante na histria e teoria daarte, ou seja, o deskiagraphia, no deve ser vista aqui como um

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    mero capricho. Ele revela maneiras de se aprofundar a comparaoentre a traduo e o dispositivo da sombra, permitindo vislumbrarsob uma outra luz em que medida, quando se fala de traduo,fala-se tambm de cpia, de representao e de imitao. Ou seja,diante dessa aproximao que esboo aqui, espero que fique claroo quanto a teoria das artes e a teoria da traduo poderiam ganharse dialogassem mais do que tem ocorrido at hoje. Antes de mais

    nada porque ambas partem, como vimos, de um mesmo paradigma,o paradigma dammesis como imitao e cpia. Esse modelo, quetradicionalmente pensado a partir da filosofia platnica, tem naobra do filsofo grego um momento de particular interesse parans aqui. Refiro-me passagem famosa na qual Plato apresenta asua teoria das ideias, lanando para tanto mo do mito da caverna.Tambm essa imagem platnica pode ser vista como um aparelho,

    uma tcnica de conceituar e formatar uma viso de mundo. Ela digna de nota, sobretudo porque est cheia de ambiguidades, comocostuma acontecer com o que vem de Plato e com o que gravita emtorno da tcnica. Nessa imagem da caverna encontramos a humani-dade amarrada diante de um espetculo de sombras. Essa uma dasprotocenas da metafsica ocidental e como ela se estrutura a partirdo contraste e da diferena entre a luz e a sombra, ela essencialpara nosso percurso. Lembremos a famosa passagem do dilogo

    platnico, nomeadamente da conversa entre Scrates e Glauco:

    [Scrates:] [...] compara o efeito da educao e da sua fal-ta na nossa natureza a uma experincia como a seguinte:imagina seres humanos habitando uma espcie de cavernasubterrnea, com uma longa entrada acima aberta para aluz e to larga como a prpria caverna. Esto ali desde ainfncia, fixados no mesmo lugar, com pescoos e pernassob grilhes, unicamente capazes de ver frente, visto queseus grilhes os impedem de virar suas cabeas. Imaginatambm a luz de uma fogueira acesa a certa distncia, aci-ma e atrs deles. Tambm atrs deles, porm num terrenomais elevado, h uma vereda que se estende entre eles e a

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    fogueira. Imagina que foi construdo ao longo dessa vereda um muro baixo, como o anteparo diante de manipuladoresde marionetes acima do qual eles os exibem[IMAGENS1 E 2].

    [Glucon :] Eu o estou imaginando.[Scrates:] Ento tambm imagina que h pessoas ao lon-

    go do muro, carregando todo tipo de artefatos que so er-guidos acima do nvel do muro: esttuas de seres humanos ede outros animais, feitas de pedra, madeira e todo material.E, como seria de esperar, alguns desses carregadores con-versam, ao passo que outros esto calados.[Glucon :] Descreves uma imagem estranha [...] e prisio-neiros estranhos.[Scrates:] So como ns. Supes, em primeiro lugar,que esses prisioneiros vem alguma coisa de si mesmos e

    uns dos outros alm das sombras que a fogueira projetasobre o muro frente deles?[Glucon :] E como poderiam, se tm de manter suas ca-beas imveis atravs da vida?[Scrates:] E quanto s coisas que so carregadas ao lon-go do muro? O mesmo se aplica a elas?[Glucon :] - Claro.[Scrates:] E se eles pudessem falar entre si, no achasque suporiam que ao nomear as coisas que vissem estariamnomeando as coisas que passam diante de seus olhos?[Glucon :] - o que suporiam.[Scrates:] E se se sua priso produzisse um eco queviesse do muro que se ope a eles? No achas que acredi-tariam que as sombras que passam diante deles estivessem

    falando toda vez que um dos carregadores que caminhasseao longo do muro o estivesse fazendo?

    [Glucon :] Certamente acho.[Scrates:] Por conseguinte, os prisioneiro acreditariamcabalmente que a verdade no seria nada mais seno assombras desses artefatos.[Glucon :] Isso necessariamente. (Plato 514a-515c;2006 307s.)

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    Mais adiante Scrates arremata: Toda essa imagem, Glucon,deve ser aplicada ao que dissemos anteriormente. A regio vi-svel deveria ser comparada morada, que a priso e a luz dafogueira nela ao poder do sol. E se interpretares a subida e oexame das coisas acima como a ascenso da alma regio inte-ligvel, ters captado o que espero transmitir, uma vez que isso o que querias ouvir. Se isso verdadeiro ou no, s o deus o

    sabe. (Palto 517b; 2006, p. 310) Nessa viso dantescaavant lalettre, a humanidade acorrentada vive na iluso de ver a verdade,quando mira apenas sombras e escuta ecos. Os objetos que v socomo sombras carregadas por fantoches. Um muro, nas costasda humanidade, a separa do mundo das formas originarias. Jaqui, portanto, vemos uma das imagens mais fortes na origemdo preconceito contra tudo o que derivado, segundo e simula-o. Como nota Victor Stoichita, se nesta passagem as sombrasso tratadas como phantasmata, em outra passagem da Repbli-ca, pouco anterior a esta imagem (alegoria ou mito) da caverna,Plato havia feito uma distino do visvel segundo o grau declareza e de obscuridade afirmando: Porimagens (eikona) en-tendo em primeiro lugar, sombras (skias), em seguida reflexosna gua ( phantasmata) em todas as superfcies de textura densa,lisa e reluzente, e tudo desse gnero, se que entendes (Plato:

    509d-510a; Plato: 2006, p. 304). Segundo Stoichita, para Platoso as sombras o estgio mais distante com relao verdade(Stoichita: 2000, p. 25). Na teoria das artes comommesis, naqual elas aparecem como cpias de cpias, na mesma Repblica,podemos ver uma condenao daskiagraphia que, ainda segun-do Stoichita, vale tanto para seu sentido de pintura de sombras,

    um simulacro, quanto para sua acepo como perspectiva, ouseja, iluso mimtica. Plato escreve: porque exploram essadebilidade de nossa natureza ( pathma) que a pintura enganosa[de sombras] (skiagraphia), a feitiaria (thaumatopoia) e outrasformas de prestidigitao tm poderes aos quais pouco falta demagia (goteia) ( Repblica 602d; Plato: 2006, p. 430). Se nos-

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    so mundo mera cpia, como Plato desenvolve na sua teoria dasartes, o artista est afastado em um grau a mais da luz originria,seu trabalho cpia da cpia. Da a condenao daskiagraphia,pensada como arte da pintura. Plato, por ser grego (ou seja,parte de uma cultura que preferia se ver como original), nementra no mrito da questo da traduo, que seria uma imitao deterceiro grau. Mas com essas passagens da Repblica fica claro o

    modo de pensar platnico com seu privilgio da noo de origeme de luz originria e sua condenao da cpia e dos derivados.Rigorosas hierarquias so estabelecidas com esse mito to estra-nho, como nota Glauco.

    Mas essa trama platnica que tenta criar via mito uma origemsolar para a verdade e hierarquizar as imagens, no deixa de per-turbar em sua autoironia da qual nunca conseguiremos nos libertarinteiramente. Ademais, se estamos na caverna, no poderamosver sua estrutura. Se a vemos como no mito, um dispositivo es-cpico sobre o funcionamento da viso, criado por Plato e, poroutro lado, nos pomos a questionar Plato por seu logocentrismo,camos na armadilha de depreciar sua referida imagem como meromito, alegoria, metfora ou traduo, como se isso implicasse seumenor valor. O mito mesmo um teatro de imagens, e Scratesse preocupa em deixar sua encenao bem clara a Glauco, repre-

    sentante dos espectadores/leitores, nessa passagem do dilogo. Aocondenar esta encenao como mero mito, tornamo-nos tambm decerto modo platnicos ao criticar Plato... Esta astcia parte doplatonismo e de seu dialogismo dialtico. O mais importante aqui a estrutura da cena da caverna, ou do teatro de representao eda mmesis. Interessa-nos esse dispositivo de projeo e a ideia desombra como derivado menor.

    Mas da Antiguidade vem tambm um outro mito que igualmentepode nos ser til. Ele mostra justamente a origem das artes plsticas e outra vez a sombra desempenha um papel essencial. Refiro-mea duas passagens tpicas da Histria Natural de Plinio, que cito:

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    A questo das origens da pintura obscura [...] Os egpciosafirmam que esta arte foi inventada por eles, seis mil anosantes de passar Grcia; isto manifestao de uma v pre-tenso. Entre os gregos uns dizem que ela foi descoberta emSicyone, outros, em Corinto, mas todos afirmam como seiniciou por riscar com um trao o contorno da sombra hu-mana (omnes umbra hominis lineis circunducta). Este foi oprimeiro mtodo; o segundo, utilizando cores isoladas, foio chamado monocromo: em seguida vieram os aperfeioa-mentos, mas ele ainda existe ( Histria Natural , XXXV, 15;apud Stoichita, 11).

    Mais adiante Plnio narra o mito de origem da escultura. Nova-mente a origem criada a partir de um teatro de sombras.

    J dissemos mais do que o necessrio sobre a pintura. Se-ria indicado acrescentar a essas observaes algo sobre asesculturas. [...] modelando retratos a partir da argila foiprimeiro inventada por Dibutades [ou Butades], um oleirode Sicyon, em Corinto. Ele fez isso graas sua filha, queestava apaixonada por um jovem; ela, quando ele estavapartindo, desenhou contornando na parede a sombra de sua

    face projetada por uma lamparina. Seu pai calcou argila so-bre isso e fez um relevo, que endureceu expondo-o ao fogocom o resto de seus trabalhos; e diz-se que o tipo foi preser-vado no templo das Ninfas em Corinto at a sua destruiopor Mummius ( Histria Natural , XXXV 43).

    Esta origem da escultura retoma a ideia da origem da pintura: am-bas se devem a um decalque da sombra. Ambas so imagem de

    uma imagem, como em Plato. Mas esse mito acrescenta ideiaplatnica da caverna um elemento importante: a ideia de um enteamado que parte, o traamento de sua sombra, por sua amada, ea construo da esttua, por seu pai, como uma espcie de subs-

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    tituto para aplacar a saudade. A arte nasce como consolo, comocontraparte da morte e do desaparecimento. Ela altamente ero-tizada aqui, mas tambm transformada em culto, pois, afinal, aesttua acaba no templo das Ninfas em Corinto. Esse mito recordatambm a relao entre sombra e morte, uma constante na culturagrega. Na cena da escultura, a imagem do jovem (o qual em termosplatnicos j seria um derivado de uma ideia) primeiro projeta-

    da como sombra, depois pintada e, finalmente, transformada emesttua. Essas metamorfoses tambm podem ser vistas como umprocesso de traduo. No entanto, se aqui estamos ainda em meioao paradigma da arte comommesis, por outro lado substituiu-seo valor negativo da cpia pelo de umasobrevivncia do original.Seria interessante ver o tradutor como uma espcie de trabalhadorque fundiria em si tanto a figura da filha apaixonada (que cria odispositivo da lamparina e copia a sombra do amado), quanto ado seu pai (que executa uma escultura, d volume). Pensando de

    um ponto de vista platnico, que via na cpia artstica algo infe-rior, essa metfora de Plnio sobre a origem da escultura no deixade reverberar tambm questes de gnero. Pois a secundidade daarte, seu ser inferior, evidentemente no pode ser pensada sem aconcomitante submisso das mulheres nas sociedades tradicionais.As artes e, por tabela, a traduo como trabalhos menores seriam

    equivalentes ao papel considerado tambm menor das mulheres.Como arte feminina, no entanto, no mito de Plnio, ela tem umsuplemento paterno. Essa paternidade bem complexa: afinal, opai auxilia na criao de um totem que ir substituir tanto o amadocomo a ele mesmo. Mas, por outra via, podemos pensar nessa mopaterna como um plus em disseminao criadora. A cpia (aosecundria, submissa) teria algo de paternal, criador, fecundante.Da o limite da leitura platnica dessa passagem de Plnio, poisse trata de uma viso da cpia como meio de sobrevivncia e deentrada no campo religioso. Em uma chave (tambm passvel de

    uma leitura platnica), v-se a cpia como meio de se aproximare no de se afastar das ideias. Essa ambiguidade de certa maneira

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    pode ser aplicada tambm traduo. Se, por um lado, desde aAntiguidade trata-se o tradutor como uma espcie de copista (como

    um eunuco, como diria Nietzsche), um fraco sem vontade prpria,por outro lado, esse tratamento indica que era necessrio um con-trole desse copista. Desde a Roma antiga traduo e emulaoandam de mos dadas, da a teoria da traduo ter sempre tendidoa um controle da traduo e do tradutor em sua face fecundante.

    Ele deveria restringir-se ao papel da filha de Dibutades, traandohumildemente o contorno das grandes obras.Mas as sombras ainda no podem ser deixadas para trs. Afinal,

    uma das marcas das sombras tambm a sua paradoxal capaci-dade de sobrevivncia. Dibutades copia a sombra para ter parasi uma parte de seu amado. como se seu olhar se voltasse maispara o passado, para a saudade do que perdeu e, o de seu pai,para o futuro. Dibutades est tomada por essa sombra. Se, comovimos, a sombra pode ser pensada como um ndice particular quedepende da presena do seu original para existir sem o corpoa sombra no possvel , por outro lado, sabemos muito bem emque medida somos assombrados por sombras com o perdo dopleonasmo proposital. Fala-se desde a Antiguidade em reino dassombras como um modo de se referir ao mundo dos mortos. Asombra pensada como a parte espiritual dos homens, como aquilo

    que pode sobreviver quando o corpo se vai.3 A sombra tambm vista, nesse sentido, como indissocivel e correlata de nossa alma.Uma expresso alem proclama: Ohne Schatten, ohne Seele. EmShakespeare sombras perseguem tanto Hamlet como assassinos,como Ricardo III. Novamente a sombra se presta a comparaescom o reino da traduo, como ela vista no campo platnico.Afinal, tradicionalmente afirma-se a possibilidade de traduo,partindo-se do pressuposto (cunhado de platnico) de que podemosseparar sem problemas, na obra, seu texto (ou seja, seu corpo) deseu sentido (ou seja, sua alma ou esprito). A traduo, como ocolocou Antoine Berman em um artigo clebre, estruturalmenteplatonizante. Ela parte dessa possibilidade de separao entre cor-

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    po e alma. Nas palavras de Berman (que tambm acaba utilizandoo termo sombra), Le platonisme commence l o le singulieret luniversel sont spars; l o cette femme ci nest plus quelombre, le reflet, la copie de lide de la Femme (1986, p. 64). interessante como nesse exemplo a mulher, e no o homem,o guerreiro da anedota de Plnio, que posto como a figura fan-tasmtica. Mas, como Berman tambm nota, o esquema platnico

    tem que ser adaptado ao da traduo: se o esprito que permite atraduo (a sua concepo e a sua prtica), por outro lado, os qua-lificativos so invertidos: o no traduzvel, o que se deixa cair, ouseja, o corpo, que seria o original, na verdade recebe os atributosque o platonismo projeta no espiritual, ou seja, nas ideias (Berman:1986, p. 72). Essas que so consideradas imutveis. Na visoplatnica da traduo, o texto traduzido no eterno, mas sim oseu original. Contudo, como veremos, essa metafsica da tradu-o que s a v como descendente do platonismo, comeou a serrompida no romantismo e sobretudo com a ideia benjaminiana datraduo como forma. Mas ainda no o momento de chamarmosBenjamin para a cena.

    Antes eu gostaria de refletir um pouco mais sobre o paradigmada sombra, que iniciei a desdobrar aqui a partir da frase de ClaudeDemanuelli Un traducteur est un crivain de lombre. Pergunto-

    -me em que medida esse paradigma pode ser utilizado para umareflexo histrico-crtica sobre a traduo como a que ensaio aqui.Como sugeri, nem toda poca tradutria ou todo aquele que refletesobre a traduo, de dentro da enorme e vastamente predominantetradio platnica que marca esse tipo de reflexo e de prtica, re-pito, nem todos assumem esse ser sombra do trabalho do tradu-tor. Isso porque assumir esse estatuto inferior implicaria reconhe-cer tambm um certo fracasso da traduo. Esse reconhecimentose d, antes de mais nada, com a entrada em cena do romantismo,poca que significou uma virada nos estudos da traduo, ou mes-mo a sua fundao propriamente dita, se pensamos essa rea comseus contornos atuais. Os irmos Schlegel, bem como Novalis,

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    Schleiermacher, Hlderlin, Goethe so alguns dos pioneiros dessarea de estudos. Nessa poca, deu-se tambm a vertiginosa criaodo indivduo moderno, composto (como Schiller e, depois, Nietzs-che o descreveram) por uma interioridade e pela viso terrvel datemporalidade como um problema. A morte assume um papel total-mente diverso para esse homem moderno que no se identifica maiscom projetos de redeno. Nem mesmo a ideologia do progresso

    e muito menos os sistemas filosficos conseguem salv-lo dessaviso do tempo como aproximao inexorvel da morte, que passaa ser secularizada e vista como algo sem sentido. Esse sujeito estcindido entre um eu externo e o seu ntimo. Ele tem que conquistaro espao pblico e construir uma identidade a partir dos fragmentosque o constituem. Esse sujeito v a histria, ou seja, a diferenatemporal, como um problema e percebe as culturas como sendo umconjunto de mnadas insondveis. A diferena entre as lnguas nopode mais ser pensada simplesmente como uma questo de trocade palavras. A lngua ganha tambm um novo estatuto e passa a servista como construtora do mundo. Cada pessoa tem a sua prprialngua. Lngua expresso do esprito. Lnguas individuais. Gnio--da-lngua (Novalis: 1978, p. 349) escreveu Novalis. Aqui o para-digma da traduo abandona o eixo da traduzibilidade fundamentalpara abarcar a noo de uma intraduzibilidade tambm essencial.

    S agora o tradutor passa a poder se assumir como um escritor desombras. Essa metfora, como vimos, ainda platonizante, mas elaassume essa mencionada intraduzibilidade fundamental. Ela deixapara trs a ideia da transparncia do tradutor. Sabemos que nomain stream esse paradigma da transparncia manter o domnio;mas no campo dos estudos de traduo, ao menos na sua linhagemfilosfica e na teoria da literatura, cada vez mais a intraduzibilida-de ser o eixo sobre o qual as novas teorias vo se articular. Doponto de vista romntico seja na sua vertente mais conservadora,nacionalista, seja na sua vertente mais estruturalista, que v a ln-gua e a cultura como sistemas de diferenciao a traduo algoimpossvel. A diferena que para essa segunda vertente, que eu

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    chamo aqui de estruturalista, a traduo impossvel e ao mesmotempo necessria, j que o indivduo e as culturas so vistos comoprocessos de contnua autodiferenciao. Esse modelo abandonao platonismo. J a concepo que v o tradutor como escritor desombras tambm moderna, apesar de ainda presa ao modelo pla-tnico representacionista, como tentei mostrar aqui. Mas existemoutras maneiras de se ler essa ideia do tradutor comoskiagrapho.

    Como vimos, no mito de Dibutades e de sua filha a cpia estavaenvolvida em uma operao de sobrevivncia. A noo de que aobra traduzida uma modalidade de sobrevivncia do original tam-bm pode ser atualizada em um vis romntico, a partir dessa novasensao vertiginosa do tempo e das diferenas culturais. Assim, otradutor passa a ser visto como uma espcie de figura paradigmti-ca da modernidade, algum que enfrenta e tenta lidar com a mortee a questo da sobrevivncia a ela. No podemos nos esquecer dastransformaes que o paradigma dammesis sofria ento no roman-tismo. Basta lembrar da novela de Merry Shelley sobre a criaturafeita por Frankenstein a partir de pedaos de cadveres. A vida emseu jogo com a morte, assim como a imagem do homem modernocomo algum assombrado por uma interioridadeunheimlich (sinis-tra), se fundem nos personagens dessa novela. O mesmo acontecena traduo. Se, como vimos, os romnticos passaram a abrir a

    possibilidade de valorizarmos mais a traduo do que o original,iniciando a superao dessa dicotomia, esse elogio da sombra nopode deixar de ser posto em paralelo com essa fundao do novohomem como algum que porta dentro de si as suas sombras. A

    uma internalizao da sombra corresponde uma nova relao comela. A traduo mais e mais vai ser incorporada como meio decostura e confeco desse homem moderno. Podemos falar de umaverdadeira volta do recalcado: se a sombra sempre teve um papelsecundrio e foi reprimida e jogada em um limbo, agora ela podefinalmente entrar em cena. E ela o fez literalmente e em grandeestilo, nas histrias de autores do romance gtico, de E.T.A. Ho-ffmann, de Poe, de Albert von Chamisso (autor da novelaPeter

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    Schlemihl wundersame Geschichte). Artistas como Henry Fusely(autor de Cauchemar, obra na qual vemos um diabo ensombre-cido sobre uma plida mulher desfalecida), Caspar David Friedrich(que foi um dos inventores da paisagemUnheimlich, sinistra) eGoya (quem desenhou o interior da pessoa moderna e os espectrosque aassombram), representam esta tradio nas artes plsticas.4 O novo estatuto da teoria da traduo pode tambm ser posto ao

    lado do novo estatuto que esses fantasmas e essas sombras passama ter, que culminar na grande cincia ou arte de lidar com nossassombras interiores, que a psicanlise freudiana.5

    Para concluir ento, algumas palavras sobre a contribuio deBenjamin e a de Flusser a essa histria. Lembremos primeiro doensaio Die Aufgabe des bersetzers (A tarefa do tradutor,Benjamin: 1972, p. 9-21), na verdade a introduo s tradues depoemas que Benjamin fizera dosTableaux Parisien de Baudelaire eque foi escrito em 1921 e publicado em 1923. Neste famoso texto,Benjamin leva a cabo tambm sua crtica lgica da representaoe a um determinado modelo bipolar (neoplatnico) do signo. Atraduo a definida como tendo por fim no, de modo conven-cional, o transporte do sentido de uma lngua para outra, massim a exposio ( Darstellung) da relao mais interior das lnguasentre si (des innersten Verhltnisses der Sprachen zueinander,

    Benjamin: 1972, p. 12). Essa relao antes de tudo, para ele, uma convergncia (Konvergenz). Essa convergncia entre aslnguas, no entanto, no deve ser convencionalmente buscada nosentido comunicado, mas sim no que Benjamin descreve comoa complementaridade das diversas lnguas, a saber, na lnguapura, reine Sprache (Benjamin: 1972, p. 13). Ele no parte dapossibilidade de substituio (vertauschen) das diferentes Artdes Meinens (modos de intentar ou de dizer) de cada lngua.Ao invs de substituio, ele fala decomplementaocom relaoa esses diversos modos de intentar. A distncia da concepode traduo como um transporte do sentido enfatizada tambmna medida em que Benjamin a aproxima do gesto da poesia: Em

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    ambos a sua essncia no a comunicao, no a afirmao(Ihr wesentliches ist nicht Mitteilung, nicht Aussage, Benjamin:1972, p. 9). A traduo no deve servir (dienen) ao leitor, afir-ma Benjamin; nesse sentido ele transforma otopos da traduolivre, como atividade no submissa/escrava, ou seja, ele libertaessetopos da cadeia de polaridades e hierarquias senhor/ escravo,original/ copia, fidelidade/ liberdade, qual ele sempre aparecia

    vinculado a traduo vista antes de tudo agora como uma forma e no como um modo de representao/mimesis: bersetzung isteine Form, a traduo uma forma (Benjamin: 1972, p. 9).Como na concepo romntica da crtica como um operador dentrodomedium-de-reflexoda arte e comomedium das formas, a tradu-o de textos tambm funciona como um tal operador infinito queatua no s na ps-maturao (Nachreife) de cada obra singular(Benjamin: 1972, p. 12), como tambm na maturao da lnguacomo um todo (Benjamin: 1972, p. 17). Ao invs do princpioretrico da mxima utilizao da arte visando a iluso e o encobri-mento dessa prpria arte, Benjamin defende uma traduo que seapresente como tal; que no esconda o original. Essa transparnciada traduo s pode ser atingida via literalidade na transposioda sintaxe (Wrtlichkeit in der bertragung der Sintax), pois,Benjamin acrescenta, justamente ela [a literalidade] d provas que

    a palavra, e no a frase, o proto-elemento do tradutor. A frase o muro diante da lngua do original, a literalidade, a arcada(gerade sie erweist das Wort, nicht den Satz als Urelement desbersetzers. Denn der Satz ist die Mauer vor der Sprache des Ori-Denn der Satz ist die Mauer vor der Sprache des Ori-ginals, Wrtlichkeit die Arkade, Benjamin: 1972, p. 18). A trans-A trans-parncia implica um turvamento do sentido: portanto, o que menospermite o sentido, a mensagem passar o que torna mais visvel;ao menos dentro da visibilidade que importa a Benjamin, a saber,aquela que implica a revelao da diferena e da complementari-dade das lnguas como ocorre na relao entre as peas de umquebra cabeas, ou na imagem do vaso quebrado, cujos cacos sorecolados pelo tradutor (Benjamin: 1972, p. 18). Esse tradutor, ao

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    invs de muro, torna-se, pois, a arcada, o mediador da diferena.Em suma, para Benjamin seria impossvel se pensar na traduocomo sombra no sentido do modelo platnico da imitao, mas sepode sim vislumbrar na sua teoria uma forte defesa da traduocomo momento de sobrevivncia da obra. Nesse sentido, de modotambm romntico, ele v a histria da literatura (e da cultura)como um conglomerado de imagens espectrais que nos assombram

    e so reatualizadas via traduo.Finalmente concluamos com Flusser. O que esse grande ensastae terico da cultura e de suas imagens tem a nos dizer sobre a con-cepo do tradutor como um escritor de sombras? No seu ensaio Ahistria do diabo, de 1965, Flusser explora tanto a importncia dalngua materna, quanto s vantagens de abandon-la. Nesse ponto,para ele, o gesto da traduo essencial. Como j para WilhelmHumboldt, tambm Flusser acreditava que a lngua materna formatodos os nossos pensamentos, e fornece todos os nossos conceitos(2006, p. 91). E mais, toda lngua produz e ordena uma realidadediferente. Se abandonamos o terreno da nossa lngua materna,escreve o exilado Flusser, o nosso senso de realidade comea adiluir-se. O amor pela lngua materna restabelece o nosso senso derealidade, porque nos proporciona a vivncia da superioridade danossa prpria lngua. [...] Se perdemos o amor pela lngua mater-

    na, se aceitamos todas as lnguas como ontologicamente equivalen-tes, a nossa realidade se desfaz em tantos pedaos quantas lnguasexistem. E Flusser conclui: E nos abismos entre estes pedaosabre-se o nada, muito precariamente transposto pelas pontes duvi-dosas que as tradues oferecem. A perda do amor pela lngua ma-terna equivale a uma forma infernal da superao da luxria pelatristeza (2006, p. 91). Ou seja, o territrio niilista aberto parae pelo tradutor tambm o terreno de onde brota a melancolia,Antimusa to conhecida de Benjamin. Mas Flusser ensina tambmque esse tradutor no necessariamente triste por ter abandonadoo territrio e o abrigo da lnguamater . Como o prprio Flusser,esse tradutor pode aprender a ter muitas(os) amantes, ou seja, viver

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    em muitas lnguas. Em uma entrevista de 1990, Flusser formulou oseguinte quanto traduo e ao seu amor pelas lnguas. Observe-seque encontramos aqui a passagem do individual para o universal,do biogrfico para o terico:

    Meu caso no especfico. Mas vou falar sobre o meu casoporque ele caracterstico para outros casos. Eu tenho umamor inquieto, quente com relao lngua. Isto tambmpode ser esclarecido biograficamente eu nasci entre as ln-guas, um poliglota de nascena. E isto tambm me d essasensao singular do precipcio abrindo-se sob mim, sobreo qual eu salto ininterruptamente. Nesta prtica cotidiana datraduo pois traduo saltar tornou-se claro para mimque, de todas as mquinas que o ser humano j criou, aslnguas so as mais estupendas (FLUSSER: 1996, p. 146).

    Pode-se dizer que o ensaio no qual Flusser leva mais adiante a suafilosofia do exlio e a sua teoria do ps-nacionalismo o belo traba-lho tambm amplamente autobiogrfico Wohnung beziehen inder Heimatlosigkeit, publicado em portugus no volume Bodenlos com o ttulo Habitar a casa na apatricidade. Este texto, de mea-dos dos anos 1980, anterior, portanto, queda do bloco comunista,

    coloca-se como tarefa uma explorao, afirma Flusser, do mis-trio de minha apatricidade (2007 221), ou seja das Geheimnismeiner Heimatlosigkeit (1994 15; em um jogo de palavras difi-cilmente recupervel em portugus). Flusser prope que devemosabandonar as nossas concepes de ptria. Ele nos convida a despira roupa da nao e a contemplarmos nosso corpo sem o mistrioque, como ele percebe, sustenta toda ideia de ptria. Como Freudem seu artigo sobre oUnheimlich (sinistro), de 1919, Flusser ex-plora tambm a ambiguidade entre o familiar e o estranho, ou seja,entre Heimat (ptria, lar) eGeheimnis (mistrio). O prprio, ouseja, o heimisch, s existe com o seu avesso, oUnheimlich. dessa dialtica entre o familiar e o estranho que Freud deduz tanto

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    o nosso sentimento de intimidade que parece aos outros comoalgo misterioso e insondvel , quanto nossos contedos recalcadosno inconsciente, que aparecem a ns mesmos como inacessveis echeios de mistrio. Se a psicanlise tem como proposta o desvela-mento desse mistrio, mesmo sabendo que este mistrio nos cons-titutivo, Flusser por sua vez prope uma crtica radical do mistrioe da noo de ptria dialeticamente determinada por esse mistrio.

    Flusser quer exorcizar os fantasmas e as sombras que constituemo homem romntico. Novamente ele toma como ponto de partidasua vida para fazer esta reflexo: Sou domiciliado em no mnimoquatro idiomas e me vejo desafiado e obrigado a traduzir e retradu-zir tudo o que tenho a escrever (2007, p. 221). Flusser parte paraessa pesquisa, como Freud tambm, cruzando filognese e ontog-nese; ou seja, ele discute fenmenos da espcie humana que se re-fletem e se repetem na histria de cada indivduo. Ele mostra comoa humanidade apenas recentemente tornou-se beheimatet, querdizer, domiciliada, mas tambm, habitante de uma ptria, Heimat .Se, em outros momentos, Flusser recorda que a noo moderna depatriotismo um fruto da Revoluo Francesa (1994 95), nesse en-saio ele prefere uma visada a partir de uma longa temporalidade eafirma que o nosso patrismo seria uma aquisio derivada do se-dentarismo provocado pela inveno da agricultura. Na passagem

    do nomadismo para o sedentarismo tambm teramos aprendido asubmeter as mulheres. Tudo isto para ele, no entanto, estava sendorevolucionado e superado lembremos que estamos em meadosdos anos 1980 com a sociedade ps-industrial e ps-histrica.Os milhares de migrantes, e ele inclui a os trabalhadores estran-geiros, os expatriados (Vertriebene), fugitivos e intelectuais emconstante deslocamento, todos no devem mais ser vistos apenascomo marginais (Ausserseiten), mas como vanguardas do futuro(1994, p. 16; 2007, p. 223). Os vietnamitas na Califrnia, osturcos na Alemanha, os palestinos nos pases do Golfo Prsico eos cientistas russos em Harvard surgem no como vtimas dignasde compaixo que devem receber ajuda para retornar ptria per-

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    dida, mas sim como modelos a serem seguidos por sua suficienteousadia (2007, p. 223). Vemos aqui a ideia de que minorias expa-triadas no caso ele falava especificamente dos judeus da Europa teriam uma espcie de duvidoso privilgio de representar ahumanidade hoje. De certo modo, Flusser leva adiante aquilo queAnatol Rosenfeld denominou de teologia do exlio, ao se referira Kafka (1967, p. 10). Isto no nos surpreende, j que estes dois

    pensadores de Praga, Kafka e Flusser, de fato tinham muito emcomum. Sobre esse duvidoso privilgio de sofrer o exlio, outrosintelectuais judeus tambm escreveram, como Derrida, em 1992,em seu conhecido ensaio Le monolinguisme de lautre, tambmdentro de um modo de filosofar abertamente autobiogrfico. Toda

    uma linhagem do pensamento judaico do sculo XX (com razesno XIX, com Heine), poderia ser traada aqui a partir desse mote.Mas o importante no nosso contexto ver como com Flusser, di-ferentemente do que acontece com Benjamin, nem mais a ideia detraduo como sobrevivncia dentro de uma viso da cultura como

    jogo de espectros e sombras, possvel. Ele tentou pensar paraalm de toda espectralidade e sonhou com um indivduoheimatlos (sem-ptria) ebodenlos (sem-solo, sem-fundamento no funda-mentalista). O tradutor no seria mais o escritor de sombras, maso criador mesmo do difano corpo da cultura, que se constitui via

    saltar. ber-setzen.

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    Notas

    1. Texto originalmente apresentado como aula Inaugural do Programa de Ps--Graduao em Estudos da Traduo da UFSC em 14 de maro de 2011. Agrade-o a Isabella Tardin Cardoso pela leitura crtica do manuscrito.

    2. http://www.lecerclepoints.com/entretien-9.htm consultado em 9.03.2011.

    3. Sobre a relao entre sombra (umbra) e alma (anima) entre os mortos no Hadescomo um contraponto relao entre corpo e anima entre os vivos em Virgliocf. Cardoso 2003.

    4. Para uma interpretao da histria da cultura desde o Romantismo como umahistria de manifestao do sublime (ou o delicioso horror sublime, uma tradu-o do trgico ocorrida em termos do conceito de sublime na segunda metade dosculo XVIII) e do abjeto, remeto o leitor a meu livroO local da diferena (2006).

    5. Em outra ocasio pretendo desenvolver essa mesma questo da traduo emsua articulao com a reflexo sobre a sombra a partir do belo ensaio de JunichiroTamizaki, justamente denominado Em louvor da sombra. Tamizaki faz um hino cultura japonesa, como uma cultura das sombras, em oposio ao domnio dametfora da luz que predomina no ocidente. Interessante nessa obra de Tamizaki que, ao fazer esse elogio da sombra, ele faz tambm uma crtica das tentativas

    de traduo da cultura ocidental para o Japo. Essas tradues culturais estariamfadadas ao fracasso desde sempre, justamente por conta desse carter sombrio doJapo, incompatvel com a luz do ocidente. Mas, ao afirmar essa intraduzibilida-de, Tamizaki defende de modo essencialista e estanque um conceito de identidadecomo algo fechado em si. Nesse sentido ele se ope viso romntica do ser comoprocesso e traduo infinita de e para si.

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