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2020 9 ª Edição revista atualizada ampliada Manual de DIREITO CIVIL Volume Único Sebastião de Assis Neto Marcelo de Jesus Maria Izabel de Melo

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Page 1: Manual de DIREITO CIVIL - Editora Juspodivm · A compra e venda é o contrato no qual um dos contratantes (alienante) se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro (adquirente),

2020

9ªEdição

revistaatualizadaampliada

Manual de

DIREITO CIVILVolume Único

Sebastião de Assis NetoMarcelo de Jesus

Maria Izabel de Melo

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PA R T E V

CONTRATOS EM ESPÉCIE

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CAPÍTULO I

COMPRA E VENDA

1. CONCEITOA compra e venda é o contrato no qual um dos contratantes (alienante) se obriga a transferir

o domínio de certa coisa, e o outro (adquirente), a pagar-lhe certo preço em dinheiro.

Observa-se, portanto, que o contrato de compra e venda, no sistema brasileiro, destina-se a criar a obrigação de transferir o domínio, mas não transfere, por si só, a propriedade. A trans-lação da propriedade, portanto, depende da tradição; ou transcrição, conforme os arts. 1.267 e 1.268 do Código Civil, verbis: “Art. 1.267. A propriedade das coisas não se transfere pelos negó-cios jurídicos antes da tradição. […] Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”.

1.1. Natureza jurídicaA compra e venda é contrato:

a) bilateral: decorre da confluência da vontade das duas partes contratantes e estabelece pres-tações recíprocas de ambas. A respeito, dispõe o art. 491 do Código Civil que, não sendo a venda a crédito, o vendedor não é obrigado a entregar a coisa antes de receber o preço.

Aqui se observa exemplo de norma que se coaduna com a melhor interpretação a ser dada à possibilidade de exceção de contrato não cumprido (Parte IV, Capítulo VI, item 3.1.2). Ali fizemos referência ao fato de que só se admite a exceptio non adimpleti contractus, de forma in-discriminada, quando a lei ou o contrato não estabelecer uma sucessividade de prestações, que é o caso da compra e venda, em que, como se vê do art. 491, sendo à vista e sem outras estipulações em contrário, obriga-se o comprador a, primeiro, pagar o preço, para só depois receber a coisa. Com efeito, decidiu o STJ que

a exceção de contrato não cumprido somente pode ser oposta quando a lei ou o próprio contrato não determinar a quem cabe primeiro cumprir a obrigação. Estabelecida a sucessividade do adimplemento, o contraente que deve satisfazer a prestação antes do outro não pode recusar-se a cumpri-la sob a con-jectura de que este não satisfará a que lhe corre. Já aquele que detém o direito de realizar por último a prestação pode postergá-la enquanto o outro contratante não satisfizer sua própria obrigação (REsp 981.750/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/04/2010, DJe 23/04/2010).

b) oneroso: na compra e venda, ambas as partes intentam ter proveito econômico com o negó-cio. Se um dos agentes tem o intento de praticar liberalidade, não se fala em compra e venda, mas sim em doação, ainda que se imponha ao donatário o cumprimento de um encargo;

c) consensual: a compra e venda não é contrato real, porquanto não depende da tradição para se considerar perfeita. O art. 482, aliás, reza que a compra e venda, quando pura, conside-rar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordem no objeto e no preço.

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Depende a compra e venda, portanto, para criar as obrigações nela contidas, somente da declaração das vontades das partes, sendo, por isso, meramente consensual.

Entretanto, a tradição da coisa vendida representa o exaurimento do objetivo do contrato de compra e venda, não havendo mais lugar, depois disso, em nosso entendimento, para resolução do contrato, ainda que por inadimplemento, a não ser que exista cláusula resolutiva expressa (pacto comissório).

Para se precaver contra o risco do adquirente não pagar o preço, tem o alienante, além do pacto comissório (que possibilita resolver o contrato), os instrumentos do contrato preliminar (compromisso de compra e venda) e da venda com reserva de domínio para efeito de não se trans-ferir a propriedade da coisa ao adquirente antes de ser pago integralmente o preço. No sentido do que expusemos acima, podemos citar o seguinte julgado:

Compra e venda de imóvel. Parte do pagamento já efetuada. Inexistência de pacto comissório. Res-cisão. A compra e venda não se resolve em não pagando o comprador integralmente o preço, salvo se existe estipulação em contrário no respectivo contrato. Assim, se o comprador está em mora no pagamento do preço e já houve transcrição ou tradição não pode o vendedor pretender a rescisão do contrato, cabendo-lhe direito tão somente à ação de cobrança (TJGO. Terceira Câmara Cível. Rel. Des. Mauro Campos. DJ, p.10, data: 13/08/1996)

Tem prevalecido, entretanto, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que, em todo contrato bilateral ou sinalagmático, subentende-se a existência de uma cláusula resolutiva tácita, a qual, sendo seguida da necessária interpelação judicial para constituição do devedor em mora, pode acarretar a resolução do contrato, com a consequente restituição das partes ao estado anterior. Vejam-se, a propósito, os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO CUMULADA COM PER-DAS E DANOS E REINTEGRAÇÃO DE POSSE. ALEGADO DESCUMPRIMENTO DE CLÁU-SULAS CONTRATUAIS. CONSTITUIÇÃO DO DEVEDOR EM MORA. INTERPELAÇÃO. EXIGÊNCIA. […] […] 4. Com efeito, havendo pedido de rescisão contratual com base em mora do devedor, e sendo pressuposta nos contratos sinalagmáticos a existência de cláusula resolutiva tácita, que permite à parte lesada pelo inadimplemento requerer a resolução, aplicável é o art. 119, parágrafo único, 2ª parte, do Código Civil de 1916, a exigir, para a resolução do contrato, a interpelação prévia com o escopo de constituir o devedor em mora, cuja ausência não é suprida pela citação. 5. Recurso especial provido. (REsp 780.324/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 24/08/2010, DJe 09/09/2010)

DIREITO CIVIL. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. MORA DO PROMITENTE VENDE-DOR. INAPLICABILIDADE DO Art. 1º DO DECRETO-LEI 745/69. INTERPRETAÇÃO EXTEN-SIVA. IMPOSSIBILIDADE. CLÁUSULA RESOLUTIVA TÁCITA. CONTRATOS BILATERAIS. PRESENÇA. CÓDIGO CIVIL, ARTS. 1.092, PARÁGRAFO ÚNICO, E 119, PARÁGRAFO ÚNICO. EXIGÊNCIA DE INTERPELAÇÃO PRÉVIA. CARACTERIZAÇÃO DA MORA. NÃO CONFIGU-RAÇÃO DE PRAZO CERTO. MORA EX PERSONA. CASO CONCRETO. RECURSO DESACO-LHIDO. […] II – A cláusula resolutiva tácita pressupõe-se presente em todos os contratos bilaterais, independentemente de estar expressa, o que significa que qualquer das partes pode requerer a resolução do contrato diante do inadimplemento da outra. III – A resolução do contrato, pela via prevista no art. 1.092, parágrafo único, CC, depende de prévia interpelação judicial do devedor, nos termos do art. 119, parágrafo único, do mesmo diploma, a fim de convocá-lo ao cumprimento da obrigação. IV – Uma vez constatada a inexistência de prazo certo para o cumprimento da obrigação, a configuração da mora não prescinde da prévia interpelação do devedor. […] (REsp 159.661/MS, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 09/11/1999, DJ 14/02/2000, p. 35)

Na confluência do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, portanto, é possível a reso-lução do contrato de compra e venda por inadimplemento do adquirente, mesmo após a tradição,

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Cap. I • COMPRA E VENDA 1147

com a consequente devolução da coisa ao alienante, independentemente de cláusula resolutiva expressa ou outra estipulação explícita que o possibilite.

Ressalve-se, no entanto, nas hipóteses de venda a prestações, a possibilidade da invocação, pelo adquirente, do adimplemento substancial (substancial performance), desde que enquadrados os seus requisitos, visando impedir a resolução e, consequentemente, limitar o direito do alienan-te a apenas exigir o pagamento das quantias em aberto.

d) não solene-consensual: em regra, a compra e venda não exige forma especial, a não ser nos casos especificados nos arts. 107 e 108 do Código Civil, verbis:

Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir. Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.

e) comutativo: a compra e venda, também em regra, é contrato comutativo, porque as presta-ções das partes se equivalem. Pode ser aleatória nos casos dos arts. 458 a 461, já comentados na parte anterior;

f) de execução instantânea, quando o pagamento é à vista; de execução diferida, quando se fixa termo certo para o pagamento a prazo; por fim, as partes podem fixar, também, o pagamento do preço em várias prestações. Nesse caso, diverge a doutrina a respeito de se transformar a compra e venda em obrigação de trato sucessivo, porquanto tal característica não é de sua natureza jurídica.

Acreditamos, no entanto, que, quando a compra e venda é contratada para pagamento em prestações, culmina por assumir o caráter de trato sucessivo. É certo que, sob o ponto de vista da obrigação do alienante, o seu cumprimento é instantâneo; no entanto, como pudemos observar, a natureza contínua das obrigações do adquirente possibilita, inclusive, a resolução do contrato por inadimplemento, consoante o entendimento prevalecente na doutrina e na jurisprudência do STJ. Por isso, o caráter de trato sucessivo, tendo em vista a continuidade da relação contratual.

2. REGRAS DA COMPRA E VENDAOs elementos da compra e venda, como vimos, são as partes, o objeto e o preço. As regras a

ela atinentes, portanto, versarão sobre esses elementos, sendo estas as mais relevantes:

2.1. Sobre as partesQualquer pessoa pode ser parte no contrato de compra e venda. Existem, no entanto, algu-

mas restrições legais, quais sejam:

a) proibição de venda a descendente (art. 496): é anulável a venda de ascendente a descen-dente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido.

Divergia a doutrina a respeito da natureza da invalidade fixada por este dispositivo, ou seja, se se tratava de negócio nulo ou anulável, ficando, a partir do CC-2002, definitivamente resolvida a questão, diante do texto do art. 496.

É possível, portanto, a venda a descendente que tenha sido objeto de confirmação, mesmo posterior ao ato, na forma dos arts. 172 e 173 do Código Civil. O ato de confirmação, nessa hipó-tese, é reconhecido pela jurisprudência do STJ. Confira-se:

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DIREITO CIVIL. VENDA A DESCENDENTE SEM O CONSENTIMENTO DOS DEMAIS. CÓ-DIGO CIVIL, Art. 1.132. DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIO-JURISPRUDENCIAL. CORRENTES. ANULABILIDADE DO ATO. – Sem embargo das respeitabilíssimas opiniões em contrario, na exe-gese do art. 1.132 do Código Civil, tem-se por anulável o ato da venda de bem a descendente sem o consentimento dos demais, uma vez: a) que a declaração de invalidade depende da iniciativa dos interessados; b) porque viável a sua confirmação; c) porque não se invalidará o ato se provado que justo e real o preço pelo descendente. (REsp. 977/PB, Rel. Ministro BUENO DE SOUZA, Rel. p/ Acórdão MIN. SALVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 29/11/1994, DJ 27/03/1995, p. 7160)

Importante mencionar, no entanto, que essa confirmação deve ser objeto de manifestação ex-pressa e conter a substância do ato, o que implica em dizer que deve guardar com ele equivalên-cia formal e material; vale dizer: se a venda a descendente é daquelas que exigem forma especial (imóvel de valor superior a trinta salários), a confirmação deve ser feita com respeito à mesma forma (equivalência formal); além disso, o ato de confirmação deve se referir expressamente ao negócio confirmado e mencionar a concordância expressa dos demais descendentes e do cônjuge (equivalência material).

Também não pode a confirmação do ato violar direitos de terceiros, de que é exemplo a transferência do bem para descendente visando fraudar credores.

Importante não deixar de mencionar, também, que a invalidação do negócio de venda a des-cendente dependerá, ainda, de que o ato tenha se dado de forma simulada (sem a correspondente e real contraprestação pelo adquirente) ou por preço abaixo daquele que seja justo pela realidade da coisa no mercado.

O problema é fixar-se de quem é o ônus dessa prova, podendo se afigurar, em uma análise apressada, que seria do adquirente, já que a norma prevê, em tese, a invalidade do ato.

Não é esse, no entanto, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, para o qual a anula-ção depende de prova de que houve simulação com o objetivo de se dissimular uma doação ou a prática de preço inferior àquele que se revela justo para a aquisição da coisa, visando beneficiar um descendente em detrimento dos demais. Vejam-se, a respeito, os seguintes precedentes:

Civil e processo civil. Recurso especial. Alegação de ofensa ao disposto no art. 535, II, do CPC. Omissão suprida em sede de embargos de declaração. Alegação de ocorrência de julgamento fora do pedido. Devida narração dos fatos. Correlato pedido julgado procedente na origem. Venda direta de ascendente a descendente sem o consentimento dos demais herdeiros. Ato jurídico anulável. Simula-ção. – […] – A anulação de venda direta de ascendente a descendente sem o consentimento dos demais descendentes necessita da comprovação de que houve, no ato, simulação com o objetivo de dissimular doação ou pagamento de preço abaixo do preço de mercado. Recurso especial parcialmente conhecido e provido. (REsp 476.557/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/12/2003, DJ 22/03/2004, p. 294)

CIVIL. SUCESSÃO HEREDITÁRIA. ALIENAÇÃO DE ASCENDENTE A DESCENDENTES. VENDA POSTERIOR A TERCEIROS. AÇÃO DE DECLARAÇÃO DE NULIDADE DAS ESCRI-TURAS. CC, Art. 1.132. AQUISIÇÃO DE BOA-FÉ. ATO ANULÁVEL. PROVA DE VENDA EFE-TUADA POR VALOR INFERIOR AO DOS BENS. AUSÊNCIA. I. A venda por ascendente aos filhos depende do consentimento de todos os descendentes, nos termos do art. 1.132 do Código Civil, sendo desinfluente o fato de o reconhecimento e registro daqueles concebidos fora da relação matrimonial, mas em sua constância, ter ocorrido após a alienação dos imóveis, porquanto se a existência de irmãos era desconhecida dos filhos legítimos, o mesmo não acontecia em relação ao genitor, na hipótese. II. Inobstante farta discussão doutrinária e jurisprudencial, adota-se a corrente que entende cui-dar-se de ato anulável, de sorte que o seu desfazimento depende da prova de que a venda se fez por preço inferior ao valor real dos bens, para fins de caracterização da simulação, circunstância

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Cap. I • COMPRA E VENDA 1149

sequer aventada no caso dos autos, pelo que é de se ter como hígida a avença. III. Impossibilidade, de outro lado, e independentemente disso, de se atingir as alienações ulteriores a terceiros de boa-fé, mormente quando concluído nos autos que os descendentes que lhes venderam parte dos imóveis não sabiam, à época, da existência de irmãos concebidos de vínculo extraconjugal. IV. Recurso especial não conhecido. (REsp 74.135/RS, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TUR-MA, julgado em 07/11/2000, DJ 11/12/2000, p. 205)

Ressalte-se, na oportunidade da transcrição do último julgado acima, que, como se vê:

a1) é anulável a venda a descendente ainda que eventuais outros descendentes sejam reco-nhecidos após o ato de alienação, exceto se o ascendente desconhecia a existência dos filhos havidos ainda não reconhecidos ou tidos fora da relação matrimonial;

a2) não se podem atingir eventuais direitos de terceiros de boa-fé que tenham adquirido, do descendente, a coisa que lhe fora alienada.

Em mais recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça voltou a reafirmar, usando outro termo (necessidade de demonstração de prejuízo) que a invalidade da compra e venda entre as-cendente e descendente não decorre pura e simplesmente do fato de ter se dado entre tais pessoas, conforme se vê do seguinte trecho do Informativo 514, verbis:

Não é possível ao magistrado reconhecer a procedência do pedido no âmbito de ação anulatória da venda de ascendente a descendente com base apenas em presunção de prejuízo decorrente do fato de o autor da ação anulatória ser absolutamente incapaz quando da celebração do negócio por seus pais e irmão. Com efeito, tratando-se de negócio jurídico anulável, para que seja decretada a sua invalidade é imprescindível que se comprove, no caso concreto, a efetiva ocorrência de prejuízo, não se admitindo, na hipótese em tela, que sua existência seja presumida. REsp 1.211.531-MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 5.2.2013. 4ª T.

Por outro lado, decidiu-se também que eventual pretensão de descendente do alienante que ainda não era reconhecido à época da venda não pode atingir a situação jurídica consolidada, tendo em vista a boa-fé – tanto do alienante, quanto do adquirente e dos demais descendentes que anuíram. Veja-se:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO OBJETIVANDO A “DECLARAÇÃO DE NULIDADE” DA VEN-DA DE COTAS DE SOCIEDADE REALIZADA POR ASCENDENTE A DESCENDENTE SEM A ANUÊNCIA DE FILHA ASSIM RECONHECIDA POR FORÇA DE INVESTIGAÇÃO DE PATER-NIDADE POST MORTEM. (...) 5. De outro lado, malgrado a sentença que reconhece a paternidade ostente cunho declaratório de efeito ex tunc (retro-operante), é certo que não poderá alcançar os efeitos passados das situações de direito definitivamente constituídas. Não terá, portanto, o condão de tornar inválido um negócio jurídico celebrado de forma hígida, dadas as circunstâncias fáticas existentes à época. Precedentes. 6. Na espécie, à época da concretização do negócio jurídico – alteração do contrato de sociedade empresária voltada à venda de cotas de ascendente a descendente –, a autora ainda não figurava como filha do de cujus, condição que somente veio a ser reconhecida no bojo de ação investi-gatória post mortem. Dadas tais circunstâncias, o seu consentimento (nos termos da norma disposta no artigo 1.132 do Código Civil de 1916 – atual artigo 496 do Código Civil de 2002) não era exigível nem passou a sê-lo em razão do posterior reconhecimento de seu estado de filiação. Na verdade, quando a autora obteve o reconhecimento de sua condição de filha, a transferência das cotas sociais já con-substanciava situação jurídica definitivamente constituída, geradora de direito subjetivo ao réu, cujos efeitos passados não podem ser alterados pela ulterior sentença declaratória de paternidade, devendo ser, assim, prestigiado o princípio constitucional da segurança jurídica. Ademais, consoante assente na origem, não restou demonstrada má-fé ou qualquer outro vício do negócio jurídico a justificar a miti-gação da referida exegese. 7. Recurso especial não provido. (REsp 1356431/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 08/08/2017, DJe 21/09/2017)

Entendemos, entretanto, que essa subtração do direito de anulação do descendente não reco-nhecido fica condicionada, estritamente, às hipóteses em que ausente demonstração de má-fé do

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ascendente e seus descendentes, ou seja, se houver conhecimento por eles da existência do filho – embora não reconhecido – estaria caracterizada a ausência de boa-fé necessária à anulabilidade do negócio.

Por fim, o prazo de decadência para anular o negócio é de dois anos (art. 179). Em am-bos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória;

b) venda entre cônjuges (art. 499): é lícita a compra e venda entre cônjuges, com relação a bens excluídos da comunhão. Quanto aos bens integrantes da comunhão, entendem-se pertencentes, em condomínio, a ambos os cônjuges, não se justificando, portanto, a compra e venda.

Observa-se, portanto, que a exclusão legal da possibilidade de um cônjuge alienar ao outro bens inseridos na comunhão visa evitar a ocorrência de fraudes e simulações, muitas vezes ence-tadas para prejudicar direitos de terceiros.

É válida, entretanto, a doação entre cônjuges, qualquer que seja o regime, na constância do patrimônio, já que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “são válidas as doações pro-movidas, na constância do casamento, por cônjuges que contraíram matrimônio pelo regime da separação legal de bens” (REsp 471.958/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/12/2008, DJe 18/02/2009).

A exegese do referido julgado implica em que, se para os casos em que lei impõe o regime de separação de bens, é possível a doação, com mais razão se deve permitir para os regimes de comunhão.

Em mais recente julgado, o STJ entendeu admissível a doação também entre conviventes, em caso de união estável. Veja-se:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSO-LUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. AUSÊNCIA DE CONTRATO DE CONVIVÊNCIA. APLICA-ÇÃO SUPLETIVA DO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. PARTILHA. IMÓVEL ADQUIRIDO PELO CASAL. DOAÇÃO ENTRE OS COMPANHEIROS. BEM EXCLUÍDO DO MONTE PARTILHÁVEL. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.659, I, DO CC/2002. RECURSO ESPE-CIAL NÃO PROVIDO. 1. Diante da inexistência de contrato de convivência entre os companheiros, aplica-se à união estável, com relação aos efeitos patrimoniais, o regime da comunhão parcial de bens (CC/2002, art. 1.725). 2. Salvo expressa disposição de lei, não é vedada a doação entre os conviven-tes, ainda que o bem integre o patrimônio comum do casal (aquestos), desde que não implique a re-dução do patrimônio do doador ao ponto de comprometer sua subsistência, tampouco possua caráter inoficioso, contrariando interesses de herdeiros necessários, conforme os arts. 548 e 549 do CC/2002. 3. O bem recebido individualmente por companheiro, através de doação pura e simples, ainda que o doador seja o outro companheiro, deve ser excluído do monte partilhável da união estável regida pelo estatuto supletivo, nos termos do art. 1.659, I, do CC/2002. 4. Recurso especial não provido. (REsp 1171488/RS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 04/04/2017, DJe 11/05/2017)

c) direito de preferência do condômino (art. 504): ocorrendo condomínio (propriedade co-mum de duas ou mais pessoas) de coisa indivisível, assiste aos demais condôminos o direito de preferência na compra da parte daquele que deseja alienar. Assim, não pode um condômi-no em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto (ou seja, pagando o mesmo valor).

Dessa regra ressai, portanto, que o condômino que intenta vender sua porção da coisa deve dar conhecimento aos demais dessa intenção. Discute-se acerca da forma dessa cientificação,

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Cap. I • COMPRA E VENDA 1151

pois, em outros casos, como o da locação predial (Lei 8.245⁄91, art. 27, caput), por exemplo, essa ciência pode se dar mediante notificação judicial, extrajudicial ou outro meio de ciência inequívoca.

Muito embora, nessa hipótese, o CC não tenha especificado a forma da cientificação dos demais condôminos, deve prevalecer a forma livre, por aplicação do art. 107 do próprio código.

A respeito, veja-se o seguinte precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo:

CONDOMÍNIO. Alienação de imóvel comum. Alegação de inobservância do direito de preferência aos demais condôminos. Cerceamento de defesa afastado. Prova suficiente. Nulidade da sentença. Inocorrência. Depósito do preço respeitou o prazo assinalado no art. 504 do CPC. No mérito, em-bora não seja necessária a notificação por escrito dos demais condôminos, não se comprovou de nenhuma outra maneira a ciência inequívoca para o exercício do direito de preferência. Sentença de procedência mantida (TJSP. 6ª Câmara de Direito Privado 30/07/2012 – 30/7/2012 Apelação APL 92178420108260562 SP 0009217. Data de publicação: 30/07/2012)

Observe-se que na raiz do conceito do instituto está a circunstância de que a oposição desse direito depende do condômino intentar vender a coisa a estranhos (art. 504). Se um condômino tem a intenção de vender a sua parte para outro condômino, não se viabiliza a pretensão ora comentada. Com efeito, decidiu nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça: “O direito de pre-ferência previsto no art. 504 do CC aplica-se ao contrato de compra e venda celebrado entre condômino e terceiro, e não àquele ajustado entre condôminos”. (REsp 1.137.176-PR, Rel. Min. Marco Buzzi, DJe 24.2.2016. 4ª T. – Info 577).

O condômino, a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de decadência.

Sendo muitos os condôminos, preferirá o que tiver benfeitorias de maior valor e, na falta de benfeitorias, o de quinhão maior. Se as partes forem iguais, haverão a parte vendida os compro-prietários, que a quiserem, depositando previamente o preço. Tem se entendido (e comungamos desse pensamento), que a regra se aplica, também, sempre que a coisa, embora divisível, se en-contre em estado de indivisão, máxime quando decorrente de direito sucessório.

Assim, o herdeiro que quiser alienar a porção a que teve direito por ocasião da partilha em bem da herança, deverá dar preferência aos demais, ainda que a coisa seja divisível, mas esteja ainda indivisa (condomínio pro indiviso). No Informativo 564 do Superior Tribunal de Justiça, consta exatamente que “o condômino que desejar alienar a fração ideal de bem imóvel divisível em estado de indivisão deverá dar preferência na aquisição ao comunheiro”. (REsp 1.207.129-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 26.6.15. 4ª T. (Info STJ 564).

Saliente-se que, neste caso, a lei estabelece típica obrigação com eficácia real, já que o detentor do direito de prelação poderá, depositando o preço, haver para si a coisa, ainda que já vendida a estranhos (CC-2002, art. 504, caput).

Esse direito é exercitável, inclusive, em caso de venda judicial da coisa, como podemos observar no seguinte precedente:

Prequestionamento. Súmula 211. Leilão. Condômino. Preferência. Direito. Exercício. – ‘Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apre-ciada pelo Tribunal a quo.’ – Não há ofensa ao art. 535 do CPC se, embora rejeitando os embargos de declaração, o acórdão recorrido examinou todas as questões pertinentes. – Na venda judicial de parte do condomínio, é lícito ao condômino exercer direito de preferência, desde que o faça por ocasião

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do leilão e não posteriormente (AgRg no Ag 850.765/SP, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Terceira Turma, julgado em 18/10/2007, DJ 31/10/2007 p. 326).

d) insolvência do comprador (art. 495): não obstante o prazo ajustado para o pagamento, se antes da tradição o comprador cair em insolvência, poderá o vendedor sobrestar na entrega da coisa, até que o adquirente lhe dê caução de pagar no tempo ajustado.

e) falta de legitimidade específica para a compra e venda: em alguns casos, o Código Civil disciplina que, embora capazes, certas pessoas não podem tomar parte na compra e venda. As regras se referem à compra de coisas pertencentes a pessoas determinadas ou expostas em específicas circunstâncias.

Nesse sentido, reza o art. 497 que não podem ser comprados, ainda que em hasta pública,sob pena de nulidade: I – pelos tutores, curadores, testamenteiros e administradores, os bens confiados à sua guarda ou administração; II – pelos servidores públicos, em geral, os bens ou direitos da pessoa jurídica a que servirem, ou que estejam sob sua administração direta ou indireta; III – pelos juízes, secretários de tribunais, arbitradores, peritos e outros serventuários ou auxiliares da justiça, os bens ou direitos sobre que se litigar em tribunal, juízo ou conselho, no lugar onde servirem, ou a que se estender a sua autoridade; IV – pelos leiloeiros e seus prepostos, os bens de cuja venda estejam encarregados.

A lei impinge a ilegitimidade nesses casos para preservar a idoneidade dos respectivos ne-gócios e até mesmo os proprietários dos objetos. De fato, muito temeroso seria a lei permitir que o tutor, por exemplo, adquirisse os bens de seu pupilo, possibilitando, conforme o caso, fraudes e simulações; da mesma forma, a vedação à aquisição pelos servidores públicos, pelos juízes ou pelos leiloeiros, em relação aos bens a eles confiados, atende ao princípio da moralidade, encar-tado no art. 37, caput, da Constituição Federal.

Esses casos, portanto, são de nulidade absoluta da venda, portanto, não passíveis de con-validação. Compreendem-se tais proibições também na cessão de crédito, entretanto, no caso do inciso III, não se compreendem os casos de compra e venda ou cessão entre coerdeiros, ou em pagamento de dívida, ou para garantia de bens já pertencentes a pessoas designadas no referido inciso.

A respeito da hipótese do inciso I do art. 497 – nulidade da compra, por juízes, de bens ou direitos sobre que se litigar em tribunal, juízo ou conselho, no lugar onde servirem, ou a que se es-tender a sua autoridade, o Conselho Nacional de Justiça, na Consulta 0001363-95.2013.2.00.0000 (Requerente: Tribunal Regional do Trabalho – 5ª Região (BA), entendeu o seguinte:

CONSULTA. PARTICIPAÇÃO DE CÔNJUGE DE MAGISTRADO EM HASTA PÚBLICA. OB-SERVÂNCIA DAS REGRAS VIGENTES. I. É vedada a participação de magistrado em hastas pú-blicas no âmbito do Tribunal a que está vinculado, a fim de dar cumprimento às normas vigentes e garantir transparência, moralidade, impessoalidade e lisura do ato. II. A participação de magistrado em hastas públicas realizadas por Tribunal ou ramo da Justiça diverso daquele em que atua condiciona-se à eventualidade. A participação reiterada configura prática de comércio, vedada pelo art. 36, I. da Lei Complementar nº 35/1979 (LOMAN). III. A participação de cônjuge ou companheiro de magistrado em hastas públicas equivale à do próprio magistrado. IV. Consulta respondida negativamente.

Registramos, desde já, nossa discordância quanto ao referido posicionamento, pois a norma do art. 497, I inspira-se na necessidade de não permitir que o magistrado se beneficie com aquisi-ção de bens em processos que estão sob sua jurisdição. Se o processo não está sob sua jurisdição, ou em juízo no qual a exerce ou ao qual esta se pode estender, não há motivo para a vedação, dado o preceito da legalidade, encartado no art. 5º, II da Constituição Federal.

Com efeito, a decisão do órgão consultivo culminou por impedir, por exemplo, que um de-terminado juiz, titular de uma comarca a mil quilômetros de outra, sobre a qual não tem qualquer

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autoridade ou influência, adquira bens em leilões ou hastas públicas realizadas nesta última, se localizada no mesmo Estado da federação.

Não se pode acreditar que, em nome de determinados princípios que, embora valorosos, como transparência, moralidade, impessoalidade e lisura, se possa restringir tanto assim a liber-dade contratual de uma pessoa, em função do exercício do seu cargo. Deve-se pensar, em última análise, na dignidade da pessoa humana.

Também não se pode ter por correta a conclusão de que, por não se configurar em aquisi-ções habituais, presume-se a prática de mercancia, pois é muito comum que magistrados sejam proprietários de pequenas propriedades rurais, chácaras de recreio, ou até mesmo propriedades produtivas, atividades que, em tese, lhe indicariam a necessidade de compra de bens ou insumos para essas atividades. É bom lembrar que ao magistrado não se veda a propriedade de bens de produção, uma vez que o art. 36 da LCP 35/79 lhe veda exercer comércio ou participar de socie-dade, resguardando-lhe auferição de lucros como acionista ou quotista.

Enfim, a simples presunção de que a participação de seu cônjuge equivale à sua própria cul-mina por limitar, ainda de forma pior, a liberdade negocial e comercial de pessoa que sequer está vinculada à vedação legal em questão.

Por outro lado, no que tange a servidores já aposentados, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, por exemplo, que “a vedação contida no art. 497, III, do CC não impede o oficial de jus-tiça aposentado de arrematar bem em hasta pública”. (REsp 1.399.916-RS, Rel. Min. Humberto Martins, DJe 6.5.15. 2ª T. Info STJ 561).

2.2. Sobre o objetoQualquer coisa, também, em regra, pode ser objeto de compra e venda. Devemos excluir, de

logo, aquelas a que nos referimos no item 4 do Capítulo IV da Parte II.

De qualquer sorte, o Código Civil disciplina algumas regras sobre esse objeto, como pode-mos ver a seguir:

a) compra de coisa futura (art. 483): a compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório (arts. 458 a 461);

b) compra por amostra (art. 484): se a venda se realizar à vista de amostras, protótipos ou modelos, entender-se-á que o vendedor assegura ter a coisa as qualidades que a elas correspondem.

Prevalece a amostra, o protótipo ou o modelo, se houver contradição ou diferença com a ma-neira pela qual se descreveu a coisa no contrato (ex.: contrato de compra de veículo, apenas pela amostra de um modelo, através de fotografias, que tinha diversos opcionais – câmbio automático, direção hidráulica, etc. – que não se verificam na coisa entregue, podendo, então, exigir-se a en-trega da coisa tal qual demonstrada na amostra);

c) responsabilidade civil pelos riscos da coisa (art. 492): em respeito ao princípio res perit domino, até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os do preço por conta do comprador.

Todavia, os casos fortuitos, ocorrentes no ato de contar, marcar ou assinalar coisas, que comumente se recebem, contando, pesando, medindo ou assinalando, e que já tiverem sido postas à disposição do comprador, correrão por conta deste.

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Nesse caso, já tendo sido a coisa incerta colocada à disposição do comprador, este responde pela perda.

Por fim, correrão também por conta do comprador os riscos das referidas coisas, se estiver em mora de as receber, quando postas à sua disposição no tempo, lugar e pelo modo ajustados. Trata-se, portanto, de exceção à regra res perit domino, mas em virtude do princípio geral de que a mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela conservação da coisa (art. 400).

Veja-se o exemplo do produtor rural que adquire um animal bovino de outro. Ficou conven-cionado entre eles que, a partir de determinado dia, o semovente estaria à disposição do compra-dor em determinada pastagem previamente combinada. Destarte, embora não tenha havido ainda a tradição, o comprador, mesmo que não seja ainda o dono, suportará eventuais danos causados ao objeto, como no caso da queda de uma descarga elétrica natural (raio) que venha a matá-lo eletrocutado;

d) lugar da tradição (arts. 493 e 494): a tradição da coisa vendida, na falta de estipulação ex-pressa, dar-se-á no lugar onde ela se encontrava, ao tempo da venda. Entretanto, se a coisa for expedida para lugar diverso, por ordem do comprador, por sua conta correrão os riscos, uma vez entregue a quem haja de transportá-la, salvo se das instruções dele se afastar o vendedor;

e) venda ad mensuram ou ad corpus (art. 500): ocorre a venda ad mensuram quando, nos termos do art. 500, na venda de um imóvel, se estipular o preço por medida de extensão, ou se determinar a respectiva área (ex.: venda de área de 500 hectares).

Já na venda ad corpus (art. 500, § 3º), o imóvel é vendido como coisa certa e discriminada, tendo sido apenas enunciativa a referência às suas dimensões (ex.: venda de área conhecida como fazenda barreiro, com as seguintes confrontações: a leste com fulano, a oeste com beltrano…).

e.1) regra na venda ad mensuram: se a venda for ad mensuram, e a área vendida não cor-responder às dimensões dadas, o comprador terá o direito de exigir o complemento da área, e, não sendo isso possível, o de reclamar a resolução do contrato ou abatimento proporcional ao preço.

Pelo contrário, se em vez de falta houver excesso, e o vendedor provar que tinha motivos para ignorar a medida exata da área vendida, caberá ao comprador, à sua escolha, completar o valor correspondente ao preço ou devolver o excesso;

e1.1.) ação ex empto: a ação para reclamar complemento de área, resolução do contrato ou abatimento do preço se chama ação ex empto. Alguns acreditam que, dada a letra da lei, o comprador deveria, primeiro, pedir o complemento da área e, ape-nas não sendo isso possível, pedir a resolução ou o abatimento proporcional.

Acreditamos, entretanto, que o legislador não quis destinar ao adquirente essa tarefa às vezes muito complexa de pesquisar a disponibilidade do alienante em lhe complementar a área, razão por que entendemos que a lei lhe dá o direito alternativo de exigir qualquer das providências definidas no caput do art. 500.

Ao vendedor é que cabe opor a exceção, dizendo e provando que há possibilidade de com-plementar a área, e só aí se eximir da obrigação de abater o preço ou de suportar as consequências da resolução do contrato, a qual poderá ser cumulada com perdas e danos.

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e1.2) prazo para propositura da ação ex empto: o art. 501 dispõe prazo de 01 (um) ano para a propositura das ações previstas no art. 500.

Esse prazo será decadencial quando se exigir a resolução do contrato ou a declaração do direito ao abatimento do preço ainda não pago integralmente, porque aí se formará sentença constitutiva desses direitos. Já no caso de se exigir a condenação ao complemento da área ou a devolução dos valores pagos esse prazo será prescricional, dado o caráter condenatório da sen-tença perseguida.

e.2) regra na venda ad corpus: Não haverá complemento de área, nem devolução de excesso, se o imóvel for vendido como coisa certa e discriminada, tendo sido apenas enunciativa a referência às suas dimensões, ainda que não conste, de modo expresso, ter sido a venda ad corpus.

Importante esclarecer que, quando se faz referência, no instrumento contratual, aos limites e confrontações do imóvel, a presunção de que a venda se deu sob o caráter ad corpus não é abso-luta, mas relativa, podendo ceder diante da demonstração de que o adquirente não teria interesse no negócio se tivesse conhecimento da extensão da área. É o que se dessume da jurisprudência:

Indenização. Compra e venda de imóvel rural. Venda ‘ad corpus’ e não ‘ad mensuram’. Imóvel que foi transferido como coisa certa e determinada, em relação a qual não se pode exigir complementação da área ou redução proporcional do preço. Presunção relativa. Ausência de prova de que, se fosse devida-mente informado sobre a área do terreno, o Autor não teria realizado o negócio jurídico. Ação impro-cedente. Recurso desprovido. (TJSP. Processo: APL 9243956562005826. Relator(a): Pedro Baccarat. Julgamento: 18/05/2011. Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado. Publicação: 20/05/2011)

Além disso, presume-se que a referência às dimensões foi simplesmente enunciativa, quan-do a diferença encontrada não exceder de um vigésimo (cinco por cento) da área total enunciada, ressalvado ao comprador o direito de provar que, em tais circunstâncias, não teria realizado o negócio. Ressalte-se que não se pode, em função dessa regra, estabelecer presunção em contrario sensu, ou seja, de que se a diferença encontrada for maior do que um vigésimo, a venda é auto-maticamente considerada ad mensuram, como já decidiu o STJ:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO EX EMPTO. NATUREZA DA VENDA. INCIDÊNCIA DAS SÚMU-LAS 5 E 7. DISCREPÂNCIA DA ÁREA QUE EXCEDE A UM VIGÉSIMO.INTERPRETAÇÃO A CONTRARIO SENSU DO § ÚNICO DO Art. 1.136/CC16. IMPOSSIBILIDADE. […] 2. Reconhe-cendo o Tribunal a quo que ao negócio jurídico entabulado pelas partes fora irrelevante a extensão da área do imóvel, caracterizando, com efeito, a venda ad corpus, a pretensão recursal encontra óbice nas Súmulas 5 e 7. 3. Ademais, a presunção contida no § único, do art. 1.136/CC16, de que a referência à área de imóvel vendido é meramente enunciativa se a discrepância não ultrapassar 5%, não conduz à conclusão, a contrario sensu, de que se ultrapassado esse percentual, tratar-se-ia de venda ad men-suram. 4. Recurso especial não conhecido. (REsp 618.824/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALO-MÃO, QUARTA TURMA, julgado em 01/12/2009, DJe 14/12/2009)

QUESTÃO ABERTA

(PGE-RJ – Procurador do Estado – RJ/2008) Abílio celebra contrato de compra e venda da Fazenda Santa Inês, de propriedade de Frederico, composta de 75 (setenta e cinco) alqueires mineiros, mediante o pagamento à vista da importância de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). Imitido na posse, Abílio é in-formado por pessoas que conheciam o imóvel de que a área não corresponde ao que consta da escritura de compra e venda. Realizada a perícia, verificou-se a existência de diferença a menor na propriedade, inferior a um vigésimo do total da área.

Procede a pretensão de Abílio no sentido da complementação da área? E quanto à resolução do contrato ou ao abatimento do preço?

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Resposta: Nos termos do art. 500, § 1º do Código Civil, “presume-se que a referência às dimensões foi simplesmente enunciativa, quando a diferença encontrada não exceder de um vigésimo da área total enunciada, ressalvado ao comprador o direito de provar que, em tais circunstâncias, não teria realizado o negócio”. Como a diferença, no caso, é inferior a um vigésimo da área total enunciada, não se aplicam ao caso as regras da venda ad mensuram (caput do art. 500), mas sim da venda ad corpus. Por isso, não assiste a Abílio o direito à complementação da área, nem à resolução do contratou ou abatimento no preço, a não ser que demonstre que, em tais circunstâncias, não teria realizado o negócio.

f) responsabilidade pelos gravames da coisa (art. 502): o vendedor, salvo convenção em contrário, responde por todos os débitos que gravem a coisa até o momento da tradição (pe-nhores, hipotecas etc).

Esse dispositivo, no entanto, não derroga, no caso da compra e venda, o direito de sequela do titular do direito real de garantia. Significa a norma apenas que o adquirente do imóvel gravado de ônus real acaba por suportar as suas consequências, como a excussão do bem pelo credor; não será o adquirente do imóvel dado em garantia legitimado para figurar no polo passivo da ação que visa a cobrança do crédito, a não ser que se tenha obrigado pessoalmente por ocasião da ce-lebração da compra e venda.

Aliás, os seguintes dispositivos, constantes do Código Civil de 2002, disciplinam, por exem-plo, a situação do adquirente de imóvel hipotecado:

Art. 1.479. O adquirente do imóvel hipotecado, desde que não se tenha obrigado pessoalmente a pagar as dívidas aos credores hipotecários, poderá exonerar-se da hipoteca, abandonando-lhes o imóvel. […] Art. 1.481. Dentro em trinta dias, contados do registro do título aquisitivo, tem o adquirente do imóvel hipotecado o direito de remi-lo, citando os credores hipotecários e propondo importância não inferior ao preço por que o adquiriu. […] § 4º. Disporá de ação regressiva contra o vendedor o adquirente que ficar privado do imóvel em consequência de licitação ou penhora, o que pagar a hipoteca, o que, por causa de adjudicação ou licitação, desembolsar com o pagamento da hipoteca importância excedente à da compra e o que suportar custas e despesas judiciais.

g) vícios redibitórios na venda de coisas em conjunto (art. 503): nas coisas vendidas conjun-tamente, o defeito oculto de uma não autoriza a rejeição de todas.

Observe-se que essa regra constante do art. 503 deve ser interpretada com tempero. De fato, a venda de coisas em conjunto, em alguns casos, autoriza a conclusão de que o adquirente não se interessaria por nenhuma caso tivesse ciência do vício que inquina uma delas.

O elemento essencial a se considerar, nesse caso, é o direcionamento da declaração de von-tade, de tal arte que a rejeição de todas as coisas por defeito de uma só delas pode decorrer, por exemplo, do fato de que, justamente aquela que se considera mais importante em relação às de-mais (algo como a cereja do bolo) se encontra com avaria.

Figure-se, por exemplo, a aquisição de uma coleção de discos antigos, como universalidade de fato, na qual se encontra um exemplar raríssimo de obra musical de interesse do comprador: se esse item, considerado o mais importante pelo adquirente, se encontra avariado, é permitido su-por que a sua vontade não se dirigiria no sentido de realizar o negócio, autorizando-lhe a rejeição de todas as coisas adquiridas em conjunto.

Na jurisprudência do STJ se encontra esse ensinamento de que a regra do art. 503 deve ser interpretada com temperamentos. Veja-se:

DIREITO CIVIL. VÍCIO DE CONSENTIMENTO (ERRO). VÍCIO REDIBITÓRIO. DISTINÇÃO. VENDA CONJUNTA DE COISAS. Art. 1.138 DO CC/16 (Art. 503 DO CC/02). INTERPRETA-ÇÃO. TEMPERAMENTO DA REGRA. […] – O art. 1.138 do CC/16, cuja redação foi integralmente

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Cap. I • COMPRA E VENDA 1157

mantida pelo art. 503 do CC/02, deve ser interpretado com temperamento, sempre tendo em vista a necessidade de se verificar o reflexo que o defeito verificado em uma ou mais coisas singulares tem no negócio envolvendo a venda de coisas compostas, coletivas ou de universalidades de fato. Recurso es-pecial a que se nega provimento. (REsp 991.317/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/12/2009, DJe 18/12/2009)

2.3. Sobre o preçoEm regra, as partes podem fixar, livremente, o preço sobre a coisa. Muita discussão existiu

sobre o tema, sobretudo durante a formação do Direito moderno, passando pela Idade Média.

É que, no Direito canônico, a lesão objetiva se configurava, nos contratos de compra e ven-da, quando se observasse a disparidade entre o valor da coisa no mercado e o que foi atribuído a ela no contrato.

Hodiernamente, com supedâneo na lição de Caio Mário da Silva Pereira (2005, p. 102), podemos dizer que as partes podem estabelecer, livremente, o preço pelo qual se vende a coisa, ainda que abaixo do valor praticado em mercado. Se presente, no entanto, alguma circunstância que vicie a vontade, pode ser caracterizada a anulabilidade, como nos casos da coação, do estado de perigo e da lesão.

No entanto, deve-se observar que, se praticado preço irrisório, pode-se concluir pela inexis-tência de compra e venda, mas sim de doação simulada. Em se caracterizando a doação, em razão da nulidade da compra e venda por simulação, os efeitos importarão em situações como a fraude contra credores (cujo tratamento, em caso de doação, é mais rígido do que no da venda), doações inoficiosas (art. 549), ou antecipação de legítima.

A fixação do preço é elemento indispensável à existência do contrato de compra e venda (art. 482), razão por que, sem ela, não existe esse negócio. Podem as partes, no entanto, caso não queiram ou estejam impedidas de fixar o preço, fazê-lo por alguma das maneiras especiais abaixo:

a) arbitramento do preço por terceiro (art. 485): a fixação do preço pode ser deixada ao arbí-trio de terceiro, que os contratantes logo designarem ou prometerem designar. Se o terceiro não aceitar a incumbência, ficará sem efeito o contrato, salvo quando acordarem os contra-tantes designar outra pessoa;

b) preço à taxa de mercado (art. 486): também se poderá deixar a fixação do preço à taxa de mercado ou de bolsa, em certo e determinado dia e lugar;

c) preço por índices ou parâmetros (art. 487): podem as partes estabelecer o preço por índi-ces ou parâmetros (em UFIRs, em sacas de arroz etc.).

Devem ser observadas, no entanto, as proibições referentes à utilização do salário mínimo (CF, art. 7º, IV), de ouro e de moeda estrangeira (CC, art. 378), salvas as exceções legais.

Atente-se, por fim, que os índices ou parâmetros devem ser determináveis por critérios ob-jetivos, não podendo, portanto, ficar ao arbítrio exclusivo de uma das partes ou de critérios sub-jetivos, porquanto tal importaria em cláusula potestativa, a qual sujeita o negócio à nulidade, nos termos do art. 489;

d) preço corrente nas vendas habituais do vendedor (art. 488, caput): Convencionada a venda sem fixação de preço ou de critérios para a sua determinação, se não houver tabela-mento oficial, entende-se que as partes se sujeitaram ao preço corrente nas vendas habituais

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do vendedor. Entende-se que essa hipótese somente se aplica quando o vendedor exerce, habitualmente, o comércio da coisa objeto do contrato;

Note-se que, se o vendedor tem o hábito de praticar preços diversos pela coisa, e não se chega a um definitivo acordo com o comprador acerca de qual deles aplicar para o negócio, reza o art. 488, parágrafo único do Código Civil que “na falta de acordo, por ter havido diversidade de preço, prevalecerá o termo médio”;

e) nulidade por cláusula potestativa (art. 489): Nulo é o contrato de compra e venda, quan-do se deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes a fixação do preço.

Aqui se contempla o caso em que, formado o contrato de compra e venda, após proposta e aceitação, e inseridos os seus demais elementos (as partes e o objeto), deixa-se “em branco” a resolução sobre o preço, atribuindo-se a prerrogativa da sua fixação ao puro arbítrio de uma das partes. Trata-se, como se vê, de condição puramente potestativa, a qual é vedada, de acordo com o art. 122, parte final do Código Civil. Por já estar inserida em contrato de compra e venda formado, culmina por torná-lo nulo;

f) encargo pelas despesas (art. 490): Salvo cláusula em contrário, ficarão as despesas de escritura e registro a cargo do comprador, e a cargo do vendedor, as da tradição. Tem--se entendido pela aplicação dessa regra não só para as despesas relativas à translação da propriedade de imóveis, mas também para os encargos referentes às transferências de automóveis no órgão administrativo de trânsito.

3. CLÁUSULAS ESPECIAIS À COMPRA E VENDA (PACTOS AD-JETOS)

Os pactos adjetos à compra e venda são cláusulas especiais que se podem fazer inserir ou não no contrato, tornando-o, portanto, especial. São chamados de adjetos porque têm a carac-terística de adjetivar a compra e venda.

Assim, em havendo retrovenda, costuma-se chamar o contrato de compra e venda com pacto de retrovenda; em havendo reserva de domínio, diz-se venda com reserva de domínio etc.

3.1. Retrovenda

A retrovenda é o pacto segundo o qual o vendedor de um bem imóvel (exclusivamente imóvel) se resguarda o direito de, no prazo máximo de três anos, recobrar do comprador a coi-sa vendida, desde que restitua o preço recebido mais as despesas que o comprador teve com o contrato e com a coisa (incluindo benfeitorias necessárias).

Antes de adentrar, propriamente, às regras da retrovenda (pactum de retrovendendo), é necessário que façamos um parêntese para duas observações pertinentes:

a) a lei brasileira não fez referência ao pacto de recompra (pactum de retroemendo), pelo qual o vendedor é quem se compromete a recomprar a coisa, dentro de um certo prazo convencionado. A razão parece simples, dado que, mesmo por força de cláusula expres-sa, obrigar-se alguém a adquirir algo é ofensivo à legalidade encartada pelo art. 5º, II da Constituição Federal. É bem mais grave que o compromisso de dispor da coisa em favor do alienante que se reserva o direito de resgatá-la através da retrovenda.

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Cap. VI • PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS 1237

a reparação do dano. Recurso especial não conhecido. (REsp 2.328/RS, Rel. Ministro NILSON NA-VES, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/04/1990, DJ 14/05/1990, p. 4157)

Quando o prestador é que é despedido pelo tomador sem justa causa, a norma do art. 603 do Código Civil continua, tal qual o art. 1.228 do CC-1916, destinando-lhe direito apenas à re-tribuição vencida e à metade do que lhe tocaria a partir da despedida arbitrária até o termo final do contrato.

Ainda sob a égide do código revogado, o Superior Tribunal de Justiça sufragou o entendi-mento de que a indenização que tocava ao prestador despedido sem justa causa era essa (metade do que lhe tocaria de então até o termo final do contrato), como se vê no seguinte precedente:

CONTRATO DE LOCAÇÃO DE SERVIÇOS. Ocorrendo a rescisão unilateral, sem justa causa, terá direito o locador às prestações vencidas e metade das vincendas (Código Civil – art. 1228). Essa segun-da parcela corresponde a indenização e não se acumula, em princípio, com a condenação decorrente de cláusula penal. (EDcl no REsp 39.569/SP, Rel. Ministro EDUARDO RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/02/1994, DJ 21/03/1994, p. 5483)

No sistema atual, no entanto, que privilegia a reparação integral dos danos, e repudia as indenizações tarifadas, acreditamos que, muito embora o dispositivo do art. 603 mantenha a redação da legislação revogada, o prestador terá direito à indenização suplementar sempre que demonstrar que o prejuízo experimentado pela despedida arbitrária seja superior ao valor da equação legal, sob pena de malferição ao princípio da boa-fé objetiva.

Um exemplo auxilia essa argumentação: figure-se que o dono de uma papelaria celebra contrato de prestação de serviço com terceiro para instalação e oferta de serviços de fotocópias aos seus clientes; ato contínuo, o prestador realiza investimento, com aquisição de maquinário para pagamento em prestações, reforma do local em que se dará o seu trabalho e outros gastos; vislumbrando que a atividade é altamente lucrativa, o proprietário do estabelecimento despede aquele prestador antes do tempo previsto pelo contrato, impossibilitando-lhe, com isso, continuar com o adimplemento das prestações que assumiu por ocasião da compra de seu maquinário, o qual vem a lhe ser tomado em ações propostas por seus credores: considerando os altos valores dos equipamentos, pode ocorrer que a fórmula prevista pelo art. 603 do Código Civil não seja suficiente para reparar o dano experimentado.

Em sendo assim, acreditamos que a inobservância, pelo tomador, dos deveres anexos decor-rentes da boa-fé objetiva, em especial – neste caso – o da lealdade, importa, como já vimos, em violação positiva do contrato, a qual se qualifica como espécie de inadimplemento, o que sujeita o agente que o pratica à responsabilidade por perdas e danos, nos termos do art. 389 do Código Civil, as quais, como é curial, ultrapassam os limites do dispositivo referido.

Diferentemente do CC-1916, que arrolava as hipóteses de justa causa, tanto para o prestador (art. 1.226) como para o tomador (art. 1.229), o Código Civil de 2002 evitou o casuísmo, en-quadrando, portanto, a justa causa, como espécie de conceito legal indeterminado, a ser definido, portanto, através da atividade integrativa do juiz no caso concreto.

Apenas a título de curiosidade, vejamos as hipóteses de justa causa previstas pelo CC-1916, primeiro para o prestador do serviço:

Art. 1.226. São justas causas para dar o locador por findo o contrato: I – ter de exercer funções públi-cas, ou desempenhar obrigações legais, incompatíveis estas ou aquelas com a continuação do serviço; II – achar-se inabilitado, por força maior, para cumprir o contrato; III – exigir dele o locatário serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato; IV –

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tratá-lo o locatário com rigor excessivo, ou não lhe dar a alimentação conveniente; V – correr perigo manifesto de dano ou mal considerável; VI – não cumprir o locatário as obrigações do contrato; VII – ofendê-lo o locatário ou tentar ofendê-lo na honra de pessoa de sua família; VIII – morrer o locatário.

E também para o tomador do serviço:Art. 1.229. São justas causas para dar o locatário por findo o contrato: I – força maior que o impos-sibilite de cumprir suas obrigações; II – ofendê-lo o locador na honra de pessoa de sua família; III – enfermidade ou qualquer outra causa que torne o locador incapaz dos serviços contratados; IV – vícios ou mau procedimento do locador; V – falta do locador à observância do contrato; VI – imperícia do locador no serviço contratado.

A alienação do prédio agrícola, onde a prestação dos serviços se opera, por sua vez, não importa a rescisão do contrato, salvo ao prestador opção entre continuá-lo com o adquirente da propriedade ou com o primitivo contratante (art. 609).

Por fim, saliente-se que, por corolário do sistema social implantado pelo Código Civil, o art. 608 prevê que “aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos”.

Protege-se, assim, o tomador de serviço pela despedida antecipada e arbitrária do prestador que, aliciado por terceiro, causa-lhe prejuízo, antecipando, com essa fórmula, a liquidação do prejuízo causado. Tal, no entanto, também não impede, a nosso ver, o direito à indenização por prejuízos além dos valores referidos na norma, valendo o preceito como indenização mínima.

QUESTÃO ABERTA

(TJ/SP – Juiz de Direito – SP/2013) João é locutor esportivo da TV Alfa desde 1990, atuando nas transmissões de partidas de futebol, sendo mesmo considerado o símbolo dessa emissora no que con-cerne a esse esporte. Em 1º de março de 2012, João renova seu contrato com a TV Alfa por mais 5 anos, no qual consta cláusula de exclusividade durante toda a vigência, e a seguinte cláusula penal: “a parte que descumprir as disposições deste contrato ficará sujeita à pena de R$ 5 milhões de reais, sem prejuízo do ressarcimento de eventuais perdas e danos”. Prevê-se, ainda, que o contrato será mantido em sigilo, salvo se sua exibição for necessária para defesa de direitos das partes.

No 1º de março de 2013, João anuncia abruptamente, sem fazer qualquer imputação à TV Alfa, sua imediata transferência para a TV Beta, onde assume o posto de principal locutor esportivo. Com isso, a TV Alfa perde patrocínio no valor de R$ 10 milhões, pois o patrocinador vinculara a verba à participação de João nas transmissões da emissora, sendo esse o único prejuízo comprovado decorrente da saída do lo-cutor. Considerado apenas prejuízos materiais, pedem-se respostas justificadas às seguintes indagações:

a) Considerados os dispositivos legais aplicáveis à espécie, qual o valor poderá ser cobrado pela TV Alfa de João?

b) Pode a TV Alfa reclamar ressarcimento também da TV Beta? Em caso afirmativo, de que valor?

Respostas: a) Confira-se no item 5.2.2 do Capítulo V da Parte III; b) Segundo o art. 608 do Código Civil, acima transcrito, “aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos”. O tema já foi tratado também no item 3.2 do Capítulo II da Parte IV, sob o título “proteção contra o terceiro ofensor”, decorrente do princípio da função social do contrato”. Ocorre que a situação deve ser vista, também, sob o prisma da boa-fé (CC, arts. 113 e 422). No caso, o contrato contém cláusula de ser mantido em sigilo, circunstância que, se observada, configura a boa-fé subjetiva do terceiro (TV Beta), o qual, portanto, nada deverá indenizar; caso se demonstre a sua má-fé (ciência da multa e dos prejuízos a serem causados à TV Alfa), deverá responder pelos prejuízos causados ao ofendido, por descumprimento do preceito da função social do contrato, inclusive, segundo defendemos, sem a restrição valorativa con-tida no art. 608 do Código Civil.