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CADERNO CRH, Salvador, v. 23, n. 60, p. 449-473, Set./Dez. 2010 449 Jacqueline de Oliveira Muniz, Washington França da Silva DOSSIÊ Jacqueline de Oliveira Muniz * Washington França da Silva ** MANDATO POLICIAL NA PRÁTICA: tomando decisões nas ruas de João Pessoa Este artigo volta-se para o chamado modus operandi dos patrulheiros da ordem pública da Polícia Militar da Paraíba, dirigindo o seu olhar para o que seja o “padrão operacional” dos PMs que fazem o “policiamento ostensivo” em João Pessoa. Toma como percurso o ponto de vista desses policiais sobre a sua práxis discricionária no atendimento às ocorrências criminais e não-criminais, buscando compreender como o mandato público de polícia se faz nas ruas e, por conseguinte, com que meios e modos a autoridade policial é concretamente exercida diante dos “fins” para os quais ela é chamada a atuar. PALAVRAS-CHAVE: mandato policial, poder discricionário, Polícia Militar, administração de con- flitos, uso da força. INTRODUÇÃO O que faz a polícia nas ruas diante do seu mandato? Como os policiais, na prática, empre- gam o “poder de polícia” a eles delegado? De que forma decidem quando e como atuar nos even- tos que são chamados a intervir? Que fatores conformam, aqui nas esquinas de nossas cida- des, as decisões e as soluções policiais produzi- das? Em que consiste a práxis discricionária nas atividades de policiamento público estatal? Essas são algumas indagações que estrutu- raram o campo de estudos policiais e que seguem sendo fundamentais para o entendimento das po- lícias e das práticas de policiamento em sociedades democráticas. Todas elas incidem sobre um ponto central: o poder de produção de alternativas legais e legítimas de obediência a uma dada ordem pac- tuada sob o império da lei, e o uso discricionário desse poder em sociedades livres e plurais. É o mandato do uso potencial e concreto de força, ou os meios e modos utilizados diante dos fins estabe- lecidos pela sociedade policiada e seu governo, que têm circunscrito o estado da arte da produção ci- entífica sobre as práticas de policiamento, a cons- trução negociada de enforcement [imposição da lei] e os atores autorizados a exercê-las. Skolnick (1994 [1966]) caracteriza o dile- ma entre lei e ordem como estruturante do fazer policial nas sociedades democráticas, situando a discricionariedade como práxis policial. Wilson (1968), a partir da oposição “law enforcement versus order maintenance” [imposição da lei versus manutenção da ordem], constrói uma tipologia de comportamentos policiais – “watchman style”, “service style” e “legalistic style” – [o “vigilante”, o “prestador de serviços” e o “legalista”] para circunscrever os fatores determinantes da discricionariedade e a exten- são do seu uso nas respostas produzidas pela * Antropóloga. Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ, Universidade Candido Mendes – UCAM. Professora do Mestrado em Direito da UCAM e da Graduação Tecnológica em Segurança e Ordem Pública (TECSOP) da Universida- de Católica de Brasília – UCB. Universidade Católica de Brasília. Qs 07, lote 01, epct, Bl. M sala 209 - Águas Claras – Taguatinga. Cep: 71966-700 - Brasília, DF – Brasil. [email protected] ** Oficial da Polícia Militar do Estado da Paraíba, especia- lista em políticas públicas de justiça criminal e segurança pública e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. [email protected]

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Jacqueline de Oliveira Muniz, Washington França da Silva

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Jacqueline de Oliveira Muniz*

Washington França da Silva**

MANDATO POLICIAL NA PRÁTICA:tomando decisões nas ruas de João Pessoa

Este artigo volta-se para o chamado modus operandi dos patrulheiros da ordem pública daPolícia Militar da Paraíba, dirigindo o seu olhar para o que seja o “padrão operacional” dos PMsque fazem o “policiamento ostensivo” em João Pessoa. Toma como percurso o ponto de vistadesses policiais sobre a sua práxis discricionária no atendimento às ocorrências criminais enão-criminais, buscando compreender como o mandato público de polícia se faz nas ruas e,por conseguinte, com que meios e modos a autoridade policial é concretamente exercida diantedos “fins” para os quais ela é chamada a atuar.PALAVRAS-CHAVE: mandato policial, poder discricionário, Polícia Militar, administração de con-flitos, uso da força.

INTRODUÇÃO

O que faz a polícia nas ruas diante do seumandato? Como os policiais, na prática, empre-gam o “poder de polícia” a eles delegado? De queforma decidem quando e como atuar nos even-tos que são chamados a intervir? Que fatoresconformam, aqui nas esquinas de nossas cida-des, as decisões e as soluções policiais produzi-das? Em que consiste a práxis discricionária nasatividades de policiamento público estatal?

Essas são algumas indagações que estrutu-raram o campo de estudos policiais e que seguemsendo fundamentais para o entendimento das po-lícias e das práticas de policiamento em sociedadesdemocráticas. Todas elas incidem sobre um ponto

central: o poder de produção de alternativas legaise legítimas de obediência a uma dada ordem pac-tuada sob o império da lei, e o uso discricionáriodesse poder em sociedades livres e plurais. É omandato do uso potencial e concreto de força, ouos meios e modos utilizados diante dos fins estabe-lecidos pela sociedade policiada e seu governo, quetêm circunscrito o estado da arte da produção ci-entífica sobre as práticas de policiamento, a cons-trução negociada de enforcement [imposição da lei]e os atores autorizados a exercê-las.

Skolnick (1994 [1966]) caracteriza o dile-ma entre lei e ordem como estruturante do fazerpolicial nas sociedades democráticas, situando adiscricionariedade como práxis policial. Wilson(1968), a partir da oposição “law enforcement

versus order maintenance” [imposição da leiversus manutenção da ordem], constrói umatipologia de comportamentos policiais –“watchman style”, “service style” e “legalistic

style” – [o “vigilante”, o “prestador de serviços”e o “legalista”] para circunscrever os fatoresdeterminantes da discricionariedade e a exten-são do seu uso nas respostas produzidas pela

* Antropóloga. Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ,Universidade Candido Mendes – UCAM. Professora doMestrado em Direito da UCAM e da Graduação Tecnológicaem Segurança e Ordem Pública (TECSOP) da Universida-de Católica de Brasília – UCB.Universidade Católica de Brasília. Qs 07, lote 01, epct, Bl. Msala 209 - Águas Claras – Taguatinga. Cep: 71966-700 -Brasília, DF – Brasil. [email protected]

** Oficial da Polícia Militar do Estado da Paraíba, especia-lista em políticas públicas de justiça criminal e segurançapública e associado do Fórum Brasileiro de SegurançaPública. [email protected]

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polícia. Goldstein (2003 [1977]), de posse da evi-dência de que a polícia exerce um amplo poderdiscricionário, indica rumos para o seu controlepelo governo e pela sociedade, categorizando eestruturando o que seja esse poder. Muir Jr. (1977)constrói tipos ideais de “personalidades polici-ais”, de inspiração weberiana, explorando a na-tureza política da coerção e os “paradoxos” doseu exercício, com base em uma etnografia dasinterações entre policiais e cidadãos. Klockars(1985), a partir do que seja a “ideia de polícia”na democracia, retoma as perspectivas deGoldstein e Muir Jr. acerca da discricionariedade,caracterizando a natureza seletiva do enforcement

policial e avaliando os modelos policiais de apli-cação seletiva da lei. Bayley ([1985] 2001), pormeio de uma perspectiva comparada sobre a evo-lução, a função e a política das polícias no mun-do moderno, propõe uma “teoria do policiamen-to” que ambiciona compreender os diversos me-canismos e arranjos de controle social que, dealguma maneira, possuem “poder de polícia”.

Todas essas perspectivas, seja quando seocupam de compreender aspectos do trabalhopolicial, funções ou práticas policiais historica-mente enraizadas, seja quando pretendemconceituar o lugar de polícia, sua natureza e atri-butos essenciais, dialogam de maneira mais oumenos direta com a proposta de Bittner ([1974]1990) de uma teoria de polícia. O núcleo durodessa teoria, esboçada inicialmente em 1971, é aconceituação do mandato policial expressa naproposição de que “The policeman, and the

policeman alone, is equipped, entitled, and

required to deal with every exigency in which

force may have to be used, to meet it.” (Bittner,[1974], 1990, p.256, ênfases no original).1

O policial é equipado tanto em termos demeios quanto de modos para o agir decisivo nocumprimento do seu mandato. Está autorizado

porque lhe são concedidos respaldo legal e con-sentimento social para policiar. E responde por

qualquer exigência, qualquer evento ou conflitoque ameace um dado status quo, cuja amplitudecorresponde à paz social pactuada entre a socie-dade e seu governo.

Para Muniz e Proença Jr. (2007a, p.233), aproposta conceitual de Bittner supera o clássicodilema entre lei e ordem, restituindo a totalida-de do trabalho policial pela incorporação de duasdimensões empíricas essenciais: “o que se espe-ra que a polícia faça” e “o que ela de fato faz”. Talintegralidade torna-se possível, uma vez queBittner “identifica o uso da força como o atribu-to comum que articula as expectativas sociaisem tudo que a polícia é chamada a fazer e oconteúdo substantivo de tudo que a polícia faz”.É dessa maneira que a teoria de Bittnerreconstitui a plenitude do mandato policial,conceituando “o que a polícia é”.

É porque a polícia está autorizada a usar deforça, e se espera que ela o faça sempre que issoseja necessário, que ela é chamada a atuar quando“algo que não deveria estar acontecendo está acon-

tecendo e alguém deve fazer algo a respeito agora”(Bittner, [1974], 1990 p.249, ênfases no original).Isso revela porque a polícia pode atender a emer-gências, respaldar a lei, sustentar a ordem pública,preservar a paz social, mediar conflitos, auxiliar,assistir, advertir, socorrer, dissuadir, reprimir oudesempenhar quaisquer outras funções sociais deforma reativa ou preemptiva. Esclarece porque aspolícias executam as mais diversas formas ou pa-drões de policiamento. Explica por que a polícia échamada a atuar, e deve fazê-lo em todas as situa-

ções em que a força possa ser útil. Enfim, possibi-lita compreender a “decisividade” no fazer polici-al, sua medida de autonomia decisória, suadiscricionariedade para produzir soluções legais elegitimas, porém provisórias, para problemasinadiáveis no tempo mesmo de sua ocorrência.

Mas como se dá esta decisividade policialali, quando os policiais “encontram com as ocor-rências” ou são “chamados” pelos cidadãos até elas?Como os policiais decidem à luz das exigências doseu mandato e diante das expectativas e represen-tações sociais do seu trabalho? Como se “tira polí-

1 Tradução livre: “O policial, e apenas o policial, está equipa-do, autorizado e é requerido para tratar com toda a exigên-cia em que a força possa ter de ser usada para enfrentá-la”

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cia” ou se faz “valer a autoridade do polícia”? Deque maneira sua competência decisória é, de fato,exercida no “calor dos acontecimentos”?

Este artigo volta-se para o chamado modus

operandi dos patrulheiros da ordem pública da Po-lícia Militar da Paraíba, dirigindo o seu olhar para oque seja o “padrão operacional” dos PMs que fazemo “policiamento ostensivo” em João Pessoa. Tomacomo percurso o ponto de vista desses policiais so-bre a sua práxis discricionária no atendimento àsocorrências criminais e não-criminais, situando osfatores que eles identificam como complicadores nacondução desses eventos e de que maneira constro-em o lugar de sua “autoridade”.

O CAMPO: um outro de nós mesmos

O retrato descritivo e exploratório aqui apre-sentado sobre como os PMs caracterizam a suadecisividade – navegando entre o legal, o legítimo,o politicamente respaldado e tolerado socialmente– tem como base empírica alguns resultados deum estudo de caso sobre a natureza do trabalho dapolícia ostensiva, realizado com os policiais milita-res da Paraíba empregados no policiamento da ci-dade de João Pessoa.2 Este estudo teve como obje-tivo primeiro verificar como esses agentes da lei eda ordem, no uso dos seus mandatos, atendem eadministram as ocorrências criminais de menorpotencial ofensivo e as não-criminais.3

Além dos levantamentos bibliográfico e

documental, durante a realização do trabalho decampo, foram aplicados questionários4 e entre-vistas individuais e coletivas a boa parte dessecontingente policial, o que resultou numa amos-tra de 156 questionários válidos5 e 40 entrevis-tas. Além disso, também foram realizadas en-trevistas com representantes do Ministério Pú-blico, delegados de polícia civil das delegaciasdistritais existentes na área de estudo, coman-dantes das unidades e subunidades de políciamilitar, docentes das escolas de formação e aper-feiçoamento dos policiais militares e com repre-sentantes das comunidades, beneficiários do ser-viço prestado por esses policiais fardados.

Especialmente nas entrevistas com os polici-ais militares responsáveis pelo patrulhamento dasruas, buscou-se criar um ambiente de descontração,de informalidade, de bate-papo, deixando-os livrespara se manifestar, para que pudessem, esponta-neamente, falar sobre a natureza do seu trabalho.Nessas conversas, a atenção estava voltada paraconhecer um pouco mais sobre suas práticas pro-fissionais, as formas utilizadas para interpretar eresolver as diversas situações de conflito e violên-cia social. Esses depoimentos livres foram tambémoportunos para se conhecer o dilema quanto aoslimites dessa intervenção, bem como as dificulda-des enfrentadas por esses policiais para desempe-nharem suas atividades.

Sem dúvida, entrevistar os policiais foi umdos momentos mais importantes do estudo, so-bretudo pelo seu caráter interativo e pela rique-

2 A pesquisa foi desenvolvida, no período de março a no-vembro de 2009, com os profissionais direta ou indireta-mente envolvidos com a gestão das ocorrências policiais:os do Centro Integrado de Operações Policiais – central deatendimento emergencial da polícia – e, principalmente,os lotados no 1º e no 5º Batalhões de Polícia Militar, quetrabalham exclusivamente no patrulhamento das ruas –ao todo 739 policiais militares –, atividade exercidamassivamente por praças (sargentos, cabos e soldados),personagens principais deste estudo.

3 Realizado pelo Cel PM Washington França da Silva, sob aorientação da Profª Dra. Jacqueline de Oliveira Muniz, essetrabalho monográfico, intitulado “Políticas, procedimen-tos e práticas da polícia ostensiva no atendimento às ocor-rências criminais de menor potencial ofensivo e as não-criminais: umm estudo sobre a atuação da Polícia Militarda Paraíba em João Pessoa”, foi apresentado, em dezembrode 2009, ao Centro de Altos Estudos de Segurança da Po-lícia Militar do Estado de São Paulo, para cumprir o re-quisito de conclusão do Curso Superior de Polícia, tendosido avaliado e aprovado pela banca examinadora com-

posta por: Profª Dra. Jacqueline de Oliveira Muniz (Uni-versidade Cândido Mendes), Profº Dr. Renato Sérgio deLima (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), Profª Dra.Haydée Caruso (Secretaria Nacional de Segurança Públi-ca), Cel PM José Vicente da Silva (Polícia Militar do Esta-do de São Paulo) e Maj PM Azor Lopes da Silva Júnior(Polícia Militar do Estado de São Paulo).

4 Os questionários com questões fechadas, destinado exclu-sivamente aos policiais do patrulhamento de rua, foramaplicados por três policiais femininas devidamente capa-citadas. O objetivo da escolha de policiais femininas comoentrevistadoras foi o de, contando com sua maior sensibi-lidade e, portanto, maior poder de persuasão, ampliar otrabalho da amostra e evitar qualquer sentimento deobrigatoriedade por parte dos entrevistados ao respondero questionário. Também para impedir qualquer resultadotendencioso, foram selecionadas policiais que não traba-lhavam no policiamento.

5 Correspondente a 21,1% do contingente de policiais mili-tares empregado no patrulhamento das ruas.

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za de informações a que se teve acesso, o quepossibilitou uma interpretação mais sensível dosdados obtidos por meio dos questionários.

De início, poderia parecer impossível a umpolicial, sobretudo pela sua condição de superiorhierárquico dos entrevistados, realizar um estudodessa natureza. Pois bem, para superar essa limita-ção inicial, foi preciso transpor a barreirahierarquizada da comunicação que, culturalmen-te, faz parte das relações entre oficiais e praças dasPolícias Militares do Brasil. Aqui, cabe um relato-testemunho de um dos autores, o Coronel PMWashington, um oficial tido como “boa praça”, aquem coube a condução das atividades de campo:

Devidamente autorizado pelo Comando daCorporação, assumindo a condição de aluno-pes-quisador, na maioria dos contatos com esses poli-ciais, literalmente, me despi do uniforme e pro-curei estabelecer uma relação horizontal, baseadana confiança, no respeito, na verdade e na sinceri-dade. Apoiei-me no fato de que, em algum nível,falávamos a mesma língua, a do policial militarque jurou “servir e proteger” a população. Afinal,“todo polícia calça 40”, como se diz no interiordas casernas. A minha disposição de ouvi-los iaao encontro da sua necessidade de falar, de com-partilhar as dificuldades e, até mesmo, desabafar,numa verdadeira catarse, que contava sem meiaspalavras, “o lado do PM” que “tira polícia”, o ladodas ruas, um lado bem diferente daqueles oficiaisque só serviriam para “canetar o PM”.Confesso que muitas vezes me emocionei, ven-do-me entre eles, um pouco como eles, um pou-co com um “outro” de “nós”. Este lugar de desco-bertas e de mútua identificação foi também favo-recido pelo fato de ser percebido pelos praçascomo um Oficial “diferente”, um Coronel “mo-derno”, sem “militarismos”, que “vê os direitoshumanos dos PMs”.Tudo isso só reforçou minhas convicções e con-solidou o meu respeito a esses profissionais. Foi,verdadeiramente, um importante exercício dediálogo, se constituindo num grande aprendiza-do sobre o fazer polícia nas ruas.

QUEM SÃO OS PMS DE RUA DE JOÃO PESSOA

No Brasil, conforme estabelece o § 5º doArt.144 da Constituição Federal, o trabalho depolícia ostensiva e de preservação da ordem pú-blica é da competência exclusiva das políciasmilitares, instituições estaduais integrantes dosistema de segurança pública (Brasil, 2007).

A Polícia Militar do Estado da Paraíba(PMPB),6 em particular, conta, hoje, segundo in-formações da sua Diretoria de Gestão de Pessoas,com 9.230 policiais militares, sendo 673 oficiais e8.557 praças. Esses efetivos estão distribuídos nosseus diversos órgãos de direção estratégica esetorial, de execução e vinculados, para assistir auma população, segundo estimativa do InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para oano de 2010,7 de aproximadamente 3.753.633habitantes, distribuída nos 223 municípios quecompõem o território paraibano.

A capital, João Pessoa, recorte geográficoda pesquisa, está incluída nas áreas de atuaçãode duas unidades operacionais, o 1º e o 5º Bata-lhões de Polícia Militar, os quais contavam, en-tão, respectivamente, com um efetivo de 489 e250 homens e mulheres, totalizando um contin-gente de 739 policiais militares para pronto-em-prego no policiamento ostensivo dos 62 bairrose 101 comunidades aglomeradas, onde moravam,segundo estimativa populacional do IBGE/2009,8

702.235 habitantes. Habitantes,9 ocupando umaárea territorial de 211 km². As modalidades maisdestacadas da atividade-fim desenvolvidas poressas duas unidades operacionais são a patrulhaa pé, a patrulha motorizada de auto (mais co-nhecida como RP ou radiopatrulhamento), omotopatrulhamento ou patrulhamento com motoe a ciclopatrulha ou patrulha de bicicleta.

Em relação à identidade social desses poli-ciais militares (PMs) que policiam as ruas de João

6 Conforme estabelece o Inciso II do Art. 4º da Lei Comple-mentar nº 87/2008, compete à Polícia Militar da Paraíba “exe-cutar com exclusividade, ressalvadas as missões peculiaresàs Forças Armadas, o policiamento ostensivo fardado paraprevenção e repressão dos ilícitos penais e infrações defini-das em lei, bem como as ações necessárias ao prontorestabelecimento da ordem pública.” (Paraíba, 2008).

7 Ver dados do Censo Demográfico de 2010 disponíveis nosite do IBGE e publicados no Diário Oficial da União dodia 04/11/2010, na Resolução nº 6, de 3 de novembro de2010 (IBGE, 2010b).

8 Ver o site do IBGE Cidades@ (IBGE, 2010c). Hoje, a popu-lação de João Pessoa, segundo o Censo Demográfico 2010,é de 716.042 (setecentos e dezesseis mil e quarenta e dois)habitantes (IBGE, 2010b).

9 A relação dessa população residente em João Pessoa com ocontingente policial empregado pelas duas unidadesoperacionais responsáveis pelo policiamento das ruas des-sa cidade para proteger essa mesma população é de apro-ximadamente 950 hab/PM.

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Pessoa, a pesquisa revelou que se trata de um uni-verso composto majoritariamente por homens(94%), integrantes do círculo hierárquico dos pra-ças – sargentos, cabos e soldados (96%).10 Na suamaioria, são jovens (68% têm, no máximo, 40anos de idade), paraibanos (88,9%) e nascidos nacapital (64,7%). Possuem o ensino médio com-pleto (80,4%),11 declaram-se casados (55,8%) e84,1% têm até três filhos. A maior parte delespossui uma renda familiar de até cinco saláriosmínimos (77,1%), e se apresenta como o princi-pal responsável pelo provimento familiar (66,4%).Os PMs relatam ainda que são católicos (64,5%).12

Eles formam um contingente de mestiços – par-do, moreno ou mulato (64,3%) –, que integram aCorporação há pelo menos dez anos (55,5%), pos-suindo, no máximo, cinco anos de experiência nopatrulhamento das ruas (47,5%). São esses, por-tanto, os profissionais que estão diuturnamentenas ruas da cidade de João Pessoa atendendo aosdiversos chamados da população: homens e mu-lheres, oriundos das classes populares, que come-çaram a trabalhar ainda quando eram adolescen-tes, e que viram na PMPB uma oportunidade de“entrar para o serviço público” e, com isso, alcan-çar a estabilidade e a ascensão social desejadas.

CHAMANDO A PM: ocorrências em números erelatos

Dizem que, no futebol, a bola sempre pro-cura o craque, o bom atacante. Pois, para os PMs

da ordem pública de João Pessoa, acontece algoparecido: as ocorrências sempre correm atrás dospoliciais, e não há (muito) como fugir delas. Res-ponsáveis por “servir e proteger o cidadão”, ospoliciais da ponta da linha são, diuturnamente,empregados na execução do policiamento osten-sivo. No jargão profissional, encontram-se “apostos”, “de prontidão” ou no “pronto-empre-go” para atender a todo tipo de chamada da po-pulação, o que vai do crime em andamento, pas-sando pelo bate-boca entre vizinhos, até a pro-saica retirada do gato do telhado.

Do interior de suas viaturas, eles cami-nham entre “empenhos”, de uma chamadaemergencial a outra, para intervir em ‘algo que

não deveria estar acontecendo [e que] está acon-

tecendo e [que] alguém deve[rá] fazer algo a res-

peito agora’. (Bittner, [1974], 1990 p.249, ênfa-ses no original). Eles estão sempre por aí, entrenós e os outros. Pelas ruas e grotões da cidade,para assistir, fazendo uso dos significados cor-rentes que essa palavra encerra: fazer-se presen-te ou ostensivo, ajudar e dar razão a alguém,antes, durante e depois das dramatizações coti-dianas do pior de nós mesmos.

Um retrato ampliado da realidade dos cha-mamentos à PM pode ser extraído do universode ligações, despachos e eventos atendidos peloCentro Integrado de Operações Policiais (CIOP)da Secretaria de Estado da Segurança e da Defe-sa Social da Paraíba (SEDS-PB), que funciona 24horas por dia, encaminhando as chamadasemergenciais. Na capital, entre os anos de 2007e 2008, a média diária de chamadas para a linha190 foi de 2.516 ligações telefônicas. Dessas, ape-nas 10% resultaram em ocorrências atendidas enotificadas como “não-criminais” e “criminais demaior e menor potencial ofensivo”. Para que sepossa compreender o uso dessas categorias napráxis policial, cabe fazer um breve parêntesispara, de forma sucinta, apresentar o seu conteú-do jurídico-policial.

A lógica-em-uso pela polícia de tradução ins-trumental dos atos praticados pelos cidadãos emfatos com rendimento policial e jurídico, tem como

10 Esse percentual é compatível com a distribuição hierár-quica do efetivo da Corporação, em que os oficiais repre-sentam apenas 7,3% do número total de policiais milita-res e os praças, 92,7% desse mesmo número total.

11 Desses, 26,1% têm formação educacional superior. Ape-sar de a exigência do ensino médio para ingresso na Polí-cia Militar da Paraíba ter sido estabelecida desde o ano de1999, verifica-se que 19,6% desses policiais militares nãotêm essa escolarização, o que aponta para a inexistênciade uma política de elevação da escolaridade na Corporação.

12 Também 23,2% se declararam evangélicos. Comparandoesses percentuais da amostra com os dados do Censo doIBGE (2000), em que 84,9% dos paraibanos se disseramcatólicos e 8,8% evangélicos, constata-se que, no universopesquisado, embora os católicos sejam grande maioria, éperceptível o crescimento do número de evangélicos, in-clusive com um percentual maior do que da populaçãocomo um todo.

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referência primeira os marcos legais em vigor, espe-cialmente a legislação penal. No processo interpre-tativo de convergência entre as leis do mundo e omundo da lei, as ocorrências classificadas como “cri-minais” são aquelas que mais diretamente encon-tram uma correspondência com os tipos penais pre-vistos em nosso ordenamento jurídico.

De acordo com Capez (2007), tomandocomo critério ordenador o “potencial ofensivo”dos eventos, tem-se que as ocorrências criminais

de maior potencial ofensivo são aquelas infraçõespenais de natureza grave, mas que não são defini-das como crimes hediondos. As ocorrências cri-

minais de menor potencial ofensivo, conforme aLei 9.099/95,13 reportam-se às contravenções pe-nais e aos crimes “... a que a lei comine pena má-xima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ounão com multa” (Brasil, 2007, p.765). Quanto àsocorrências não-criminais, elas podem ser defi-nidas como aquelas condutas humanas que nãoestão tipificadas criminalmente, mas que geramdisputas ou conflitos, podendo vir a expressar umpotencial violento ou criminal.

Ao se organizarem as chamadas que seconverteram em atendimentos registrados pelospoliciais segundo seu potencial ofensivo, tem-seuma interessante revelação. Conforme se verificano Gráfico 1, os PMs que patrulham as ruas deJoão Pessoa são mais chamados pela populaçãopara resolver, primeiramente, as ocorrências clas-

sificadas como não-criminais (44%), seguidas dascriminais de menor potencial ofensivo (31%) e,por último, as criminais de maior potencial ofen-

sivo (25%).Constata-se que parte expressiva das ocor-

rências que resultaram em alguma intervençãopolicial notificada, cerca de 75%, não diz respeitoaos chamados grandes delitos, que mobilizam asexpectativas e representações do senso comum edos próprios policiais sobre o verdadeiro traba-lho de polícia de “combater a criminalidade vio-lenta, os ‘bandidos de carreira’ que ameaçam asociedade”. Ao contrário, o que a base de dadosoficiais do CIOP/SEDS-PB aponta é que a maiorparte do tempo dos praças da PMPB é gasta dan-do conta de conflitos, incivilidades, desordens,violações de direitos e pequenos delitos. Enfim,incidentes e acidentes perpetrados por cidadãoscomuns que conformam a gestão cotidiana dissoque nomeamos como a ordem pública.

Em um recorte mais desagregado dos da-dos oficiais por tipo individualizado de ocorrên-cia, tem-se que as cinco categorias mais notifica-das do sistema classificatório da Polícia Militarsão: (i) averiguação de pessoa(s) em atitude sus-peita (18,5%); (ii) assalto ou furto (16%); (iii)pessoa(s) embriagada(s) ou drogada(s) pratican-do desordem (11,6%); (iv) acidente de trânsitosem vítima (8,9%); e (v) ameaça (7%). Note-seque, excluindo os crimes de rua mencionados

13 A Lei 11.313, de 28 de junho de2006, alterou a redação do art. 61 daLei 9.099, de 26 de setembro de 1995,ampliando o conceito das infraçõespenais de menor potencial ofensivo,anteriormente modificado pela Lei10.259, de 12 de julho de 2001 (Bra-sil, 2006). Ainda sobre essa lei, o seuart. 69 instituiu a figura jurídica doTermo Circunstanciado – registro qua-lificado das partes envolvidas numaocorrência de menor potencial ofen-sivo –, o qual deve ser lavrado pelaautoridade policial e encaminhado aosJuizados Especiais Cíveis e Criminais,instâncias competentes, segundo tam-bém define o art. 60 dessa mesma lei,para realizar “... a conciliação, o jul-gamento e a execução das infrações pe-nais de menor potencial ofensivo.“(Brasil, 2007, p.765).

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(assalto e furto), classificáveis como tipos crimi-nais de maior potencial ofensivo, os demais fa-zem parte da miríade de eventos enquadradoscomo tipos criminais de menor potencial ofensi-vo e não-criminais.

Essa realidade, em números, conflita coma percepção dos 156 sargentos, cabos e soldadosque responderam ao questionário da pesquisa.Para os nossos entrevistados, parte significativado seu tempo, algo como 81%, é mobilizado noatendimento às situações propriamente crimi-nais, de menor potencial ofensivo (45%) e demaior potencial ofensivo (36%). Já as ocorrênci-as não-criminais – que, de acordo com as infor-mações do CIOP/SEDS-PB, ocupam o primeirolugar das chamadas atendidas e registradas –aparecem na hierarquia estabelecida pelos poli-ciais em terceiro lugar, com 19% das respostasválidas, tal como ilustra o Gráfico 2.

Uma vez indagados sobre os cinco tiposindividualizados de ocorrências em que eles maisatuam, quatro das situações mais lembradas sãocategorizadas pela PMPB como criminais: (i) as-salto ou furto (19,4%); (ii) agressão física com esem ferimento ou lesão (11,4%); (iii) ameaça(9,6%); e (iv) pessoa(s) embriagada(s) oudrogada(s) praticando desordem (7,1%). Desseconjunto de respostas obtidas, apenas uma ocor-rência de tipo não-criminal, atrito verbal, dis-cussão ou bate-boca (8,8%), foi mencionada.

Os representantes comunitários que atu-am nas áreas de policiamento cobertas pelos PMsentrevistados compartilham da mesma percep-ção ampliada acerca da incidência e gravidadedos eventos criminais em suas comunidades.Quando perguntados sobre as situações em quea PM é mais chamada na sua vizinhança, a mai-oria das lideranças comunitárias (73%) apontouas situações criminais de maior potencial ofensi-vo como as mais frequentes, seguidas das crimi-nais de menor potencial ofensivo (24%) e, porúltimo, as situações não-criminais (3%), essasúltimas mencionadas de maneira pouco signifi-cativa. Do seu ponto de vista, são os eventos in-terpretados como a criminalidade – assaltos,homicídios, desordem, confusão, briga, tráficode drogas e furtos – que mais produzem medo einsegurança, motivando os moradores a chamara polícia.

Entre números e relatos, identifica-se umainversão simétrica das representações sobre a in-cidência dos eventos que ordenam o atendimen-to policial em João Pessoa. A narrativa extraídados registros policiais contrasta com as alegoriasdiscursivas vocalizadas pelos PMs e pelos porta-vozes de sua imediata clientela. A serviço de ló-gicas distintas de fabricação do real, a verdadedos números contraria a verdade ambicionadapelos relatos dos policiais e lideranças comuni-tárias, conforme é visualizado na Figura 1.

A seletividade domundo dos números indicaque não são os chamadosgrandes delitos que mais mo-bilizam o trabalho do poli-cial de rua, como enuncia aseletividade das percepçõesdos PMs e dos líderes comu-nitários, e, sim, as ocorrên-cias não-criminais e crimi-nais de menor potencialofensivo. São, por um lado,os pequenos delitos, e, poroutro, os conflitos, as práti-cas desordeiras e inciviliza-

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das, as quais não encontram tradutibilidade nasintaxe jurídico-penal e possuem pouco rendi-mento para a linha de produção do sistema dejustiça criminal, que mais mobilizam a popula-ção paraibana a acionar a polícia. São aqueleseventos cotidianos, violentos ou não, nos quaisqualquer um pode se envolver ou vir a estar ex-posto, que respondem pela maioria dos proble-mas de insegurança em João Pessoa.

Essa disparidade tem sua razão de ser. Res-guardadas as especificidades culturais, políticas elegais da administração da segurança pública emgrupos sociais, localidades, regiões ou mesmo pa-íses distintos, identificam-se padrões aproxima-dos de atendimento policial, tal como retratadopor Skolnick ([1966] 1994) e Bittner ([1974] 1990)nos Estados Unidos, por Bayley (1991) no Japão,por Reiner (1992) na Inglaterra e por Muniz (1999)no Rio de Janeiro, Brasil. Os estudos desses auto-res, com distintos recortes empíricos e teóricos,problematizam o mito do “verdadeiro trabalhopolicial”, caracterizado como o enfrentamento dogrande crime. E esclarecem que essa crença dis-seminada na vida ordinária, entre policiais e po-

pulares, possui várias serventias. Trata-sede uma espécie de meia-verdade, um“dourar de pílula”, rentável simbolica-mente, que atende a estratégias delegitimação, seja para mobilizar a atençãoprioritária da polícia no atendimento àsdemandas, seja para emprestar reconhe-cimento público ao próprio trabalho po-licial, frequentemente confinado ao tratocom pessoas, acontecimentos e coisas co-muns, ordinários e de baixa notabilida-de. Policiais e cidadãos, egressos do mun-do dos simples mortais em sua maioria,sabem que o fato de caracterizar eespetacularizar os eventos como “grandescrimes”, altamente perigosos e violentos,instrumentalizando a gramática do medo,permite tentar “furar a fila” das priori-dades das autoridades, da chamada “so-ciedade”, da mídia e da própria polícia,em relação aos seus problemas e deman-

das. As pesquisas de Manning (1988) e deWaddington (1993) sobre os significados das cha-madas e respostas da polícia revelam que os cida-dãos, por exemplo, para forçar um atendimentopolicial mais rápido, costumam exagerar os rela-tos, “criminalizando” os eventos que noticiam. Ospoliciais, por sua vez, fazem uso do mesmo expe-diente discursivo para sobrevalorizar suas atua-ções, colorindo a opacidade de seu cotidiano pro-fissional com as tintas fortes e vibrantes doenfrentamento do grande crime e da violência.

Tudo isso porque os pequenos fatos queconstroem a ordem pública, apesar de geraremos grandes problemas de insegurança, possuembaixa visibilidade social, fazendo parte das estó-rias legítimas de pessoas comuns, e não das his-tórias legitimadas pelos registros. Por tudo isso,são exatamente as pequenas ocorrências crimi-nais de menor potencial ofensivo e não-crimi-nais que ordenam o dia a dia da polícia ostensi-va e desafiam a compreensão dos processosdecisórios policiais.

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PADRÕES DE TOMADA DE DECISÃO POLICIALNAS RUAS: a “tal” da discricionariedade em ato

Proteger a sociedade não é uma missãofácil. Ela mexe muito com a “cabeça” dos PMs.Um dia sim outro também, eles são instados aintervir no imediato da ordem moral das coisas,interpondo-se entre nossas paixões e apetites,inscrevendo-se entre vontades em oposição ouinteresses em conflito. Os policiais ostensivosestão ali, na fronteira mesma entre o direito detodos, os direitos dos outros e os nossos direitos,(re) colocando a cerca, mais uma vez e de novo,entre as partes e suas mais (in)acreditáveis “ra-zões”. Nos cruzamentos e colisões de nossas tra-jetórias, situam-se como um tipo de alter ego

político, um streetcorner politician [político daesquina], como quer Muir Jr. (1977) que faz “va-ler a autoridade”, alguma autoridade, para tra-tar com a alteridade, procurando dar um enca-minhamento ao que se manifesta como volátil,dissimulado, humilhante, violento, difuso, vul-nerável, trágico, cômico e frequentemente paté-tico de nossa existência.

Não parece mesmo fácil preservar a (talda) ordem pública. Na condição de cidadãos, aspessoas podem sempre se encontrar com razãode mais ou de menos, com direito de mais ou demenos, necessitando da presença da autoridadepolicial para dar um destino à sua situação. Porisso, todo assunto pode vir a dar “assunto para apolícia”, se assim querem os cidadãos, se assimquerem o policiais, que reconhecem, na condutadas partes, algo que deve e pode ser transforma-do em um “caso de polícia”.

Estes quereres exprimem níveis dediscricionariedade que se manifestam no exercí-cio do mandato policial.14 O primeiro deles, e omais relevante, é a discricionariedade dos cida-dãos que, exterior à polícia, conforma a suaalocação, quando decidem, por exemplo, se cha-

mam a PM ou se optam por resolverem os pro-blemas por meios próprios, sejam eles violen-tos, excludentes ou discriminatórios. O segundocorresponde ao poder dos “agentes da lei e daordem” de decidirem sobre a ação policial maisadequada a uma determinada chamada, ou mes-mo de escolherem agir ou não agir diante de umevento ou em sua antecipação.

A produção de soluções policiais, quais-quer que sejam elas, combina essas instânciasdiscricionais, que não são necessariamente har-mônicas e revelam, no plano do vivido, tensõescognitivas e práticas na condução dos eventos.Em cada decisão policial, tem-se um tipo de con-ciliação prática, desafiadora do que seja o legal,o legítimo, o politicamente autorizado, o ético, otecnicamente válido e o socialmente tolerado.Tudo isso se manifesta em cada ocorrência, acada contexto, no tempo presente dos aconteci-mentos, na urgência daqueles que se veem, poralgum motivo, expostos aos riscos e perigos, re-ais ou imaginados, da vida em sociedade.

Por sua própria natureza e contexto, a açãopolicial só tem como ser produzida por uma abor-dagem autônoma. A solução policial, conforma-da pela discricionariedade dos cidadãos, encon-tra-se também premida pelas circunstâncias domomento, pelos imponderáveis da vida social.Ela responde às demandas inadiáveis, aos atosque estão em curso e têm de ser enfrentados no“agora”. O que faz da polícia uma polícia é essacapacidade discricionária15 de construir, com orecurso potencial ou concreto à força, oenforcement consentido pelos cidadãos policia-dos e com sentido para eles mesmos e para ospoliciais.

Ao assumirem as ocorrências criminais de

menor potencial ofensivo e não-criminais, defi-nidas como prioritárias pela decisão discricioná-ria dos paraibanos, os PMs de João Pessoa tam-

14 Para uma compreensão das múltiplas instâncias dediscricionariedade na conformação do mandato policial esuas implicações para a accountability de polícia, ver:Muniz e Proença Jr. (2007b).

15 Um entendimento instrumental da discricionariedade, am-plamente aceito no direito administrativo brasileiro, é o pro-posto por Meirelles (2009, p. 39): a discricionariedade cons-titui-se num dos atributos do poder de polícia, que, para serlegítimo, deve ser exercido dentro dos limites legais, poisesse atributo “... não se confunde com arbitrariedade”.

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bém põem em operação o seu poder de polícia,16

ou melhor, a sua decisão discricionária quantoaos meios e modos de cumprir o seu fim de ser,e seguir sendo, o senão da sociedade (Bittner,[1974] 1990 ).

O seu repertório de alternativas de obedi-ências autorizadas para o agir faz parte de um pre-cioso relicário de saberes-em-ato, muito apreciadoexatamente porque resulta de um empirismo oude um aprender fazendo nas ruas. Esse conheci-mento prático, em estado de alerta para o imedia-to, é caracterizado, em seus próprios termos, comoo modus operandis policial, do qual se extraem osfamosos POPs – procedimentos operacionais pa-drão. Eles, em boa medida, são validados pelaorganização policial, servindo, por vezes, comouma orientação geral de comando, um “guia rex”para o decisionismo policial. Sua ambição instru-mental é a de que sejam um receituário razoavel-mente adaptável às idiossincrasias de cada situa-ção e ao seu contexto.

Em nossa escuta junto aos praças de JoãoPessoa, foram identificadas seis categorias dePOPs que, do ponto de vista deles, resumem osprincipais procedimentos que adotam tanto nasocorrências criminais quanto nas não-criminais.São eles:§ Usar da força necessária para conter e contro-

lar a situação.§ Resolver no local, harmonizando ou concilian-

do as partes.§ Chamar a atenção, advertir e (ou) repreender

as partes.

§ Conduzir a(s) parte(s) à delegacia para desdo-bramentos legais.

§ Conduzir para outro órgão competente.§ Explicar às partes que não se trata de assunto

da polícia e orientar a procurar os órgãos com-petentes para solução do problema.

Todos esses encaminhamentos “tático-operacionais” fazem parte dos contornos do man-dato policial em sua expressão concreta.17 Elescircunscrevem o como se pode, ou se deve, exer-cer os poderes delegados de polícia, indicandoas exigências e predileções dos cidadãos policia-dos, dos governantes e dos agentes da lei sobreas alternativas que são desejáveis ou toleráveisna ação policial, para uma dada polícia, em umadada sociedade, com um determinado governo.Estabelecem os limites contextuais da decisãopolicial, identificando o que estaria aquém oualém do enforcement consentido. São eles quequalificam os modos e os meios do agir e do fa-zer policial. Como uma grande moldura, elesdelimitam o que pode estar dentro e o que podeestar fora da competência do PM, articulando,na prática, o que se espera que a polícia faça e oque a polícia faz, diante do que a polícia é.

Em um processo continuado de aproxi-mações com o real da coisa, um ir e vir entre asleis do mundo e o mundo das leis, os POPs re-tratam uma espécie de concertação simbólicainstrumental, ou, no jargão policial, um tipo de“termo (prático) de ajustamento de conduta”entre as expectativas sociais de justiça, as ambi-ções de legalidade e legitimidade postas na or-dem do dia. São, pois, uma bricolagem das prio-ridades políticas, das referências legais enormativas, das diretrizes organizacionais ouadministrativas, das doutrinas ou métodos deação, das demandas locais ou comunais, dos cla-mores, das vivências e das visões de mundo nas-cidas das experiências e experimentos entre oscidadãos e os seus policiais, diante das circuns-tâncias da vida real.

16 No Brasil, o poder de polícia é definido juridicamente noCódigo Tributário Nacional, Art. 78 da Lei 5.172/1966,elaborada no regime militar, e que dispõe sobre o “SistemaTributário Nacional e institui normas gerais de direito tri-butário”: “Art. 78. Considera-se poder de polícia ativida-de da administração pública que, limitando ou discipli-nando direito, interesse ou liberdade, regula a prática deato ou abstenção de fato, em razão de interesse públicoconcernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costu-mes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercíciode atividades econômicas dependentes de concessão ouautorização do Poder Público, à tranquilidade pública ouao respeito à propriedade e aos direitos individuais oucoletivos. (Redação dada pelo Ato Complementar nº 31,de 28.12.1966). Parágrafo único. Considera-se regular oexercício do poder de polícia quando desempenhado peloórgão competente nos limites da lei aplicável, com obser-vância do processo legal e, tratando-se de atividade que alei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio depoder” (Brasil, 2010a).

17 Uma apresentação analítica dos termos do mandato poli-cial – âmbito, alcance e contornos – e seus fundamentos eaplicações pode ser encontrado em Muniz e Proença Jr.(2007b).

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Do conjunto de POPs considerados prin-cipais e que parecem atender ao grosso da rotinapolicial ostensiva, identificam-se aqueles consi-derados pelos PMs como “os que a gente maisusa” na resolução das ocorrências, segundo o seupotencial ofensivo, ilustrados no quadro abaixo:

Com o auxílio dos materiais etnográficosconstruídos no decorrer da pesquisa, podem-seextrair desse enquadramento geral alguns pon-tos importantes para a compreensão dagramaticalidade decisória policial.

O primeiro deles, de natureza epistemológica,diz respeito ao processo mesmo de externalizar,de pôr na ordem do discurso, aquilo que se faz.A enunciação em palavras do que se faz e do quese pensa sobre o que se faz resulta de um jogopróprio do significar, que pressupõe instâncias denegociação – cumplicidade, confiança, reconhe-cimento e aceitação – entre os atores no contextointerativo. Um jogo lúdico “de gato e rato”, queenvolve a produção de sentidos consentidos e não-

autorizados entre os interlocutores, cuja engre-nagem, mais ou menos intencional, admite estra-tégias seletivas e pactuadas de ocultações e reve-lações. O verbo que se faz carne verbalizada, en-tre os PMs e os outros, é desvendado porque tam-bém habita em nós, em nosso senso comum eilustrado. Ou, como prefere a antropologia, tam-bém habita em nosso imaginário social acerca da

polícia e de suas práticas de policiamento. Esseverbo, em texto e em seu contexto, traz a suagraça e verdade, porque seus enunciados, comoqualquer enunciação, publicam mesmo que sempublicizar, deixando entrever, nas entrelinhas, oque está ou o que se quer como subentendido ou

conscientemente externado.O segundo ponto dirige-se à teoria

nativa do mandato policial, que se podeapreender dos procedimentos de atuação queforam priorizados pelos PMs, segundo a na-tureza da ocorrência. O saber prático dosPMs paraibanos, ao seu modo e tão ao gostoda teoria de Bittner ([1974] 1990), insinuauma hierarquia funcional entre os POPs cujofio condutor é a distribuição gradativa,reversa e redundante dos níveis decoercitividade para conduzir os eventos, deacordo com o que seja o seu potencial ofen-sivo. Em termos instrumentais, os PMs es-tabelecem um escalonamento no uso do nú-cleo central de seus poderes discricionais,

retratado nos chamados gradientes de uso da for-ça – potencial e concreta – para a resolução dasocorrências. Tal escalonamento vai do “não temconversa, ‘teje’ preso” até “liberação” ou “enca-minhamento das partes”, passando por sua con-ciliação, repreensão ou aconselhamento. Ou,num caminho inverso, vai do “ainda dá para con-versar”, passando pelo “chamar à consciência”ou “passar uma reprimenda”, até o “agora, vocêvai ter que se ver é com a justiça”. Ou, também,há o acionamento pelo policial de várias dessasalternativas, em uma mesma ocorrência, paraconseguir encerrar o caso.18 Essas alternativas deforça aparecem para os PMs como táticas conti-

18 Um rumo de compreensão da discricionariedade sobre oque chamamos de distribuição gradativa, reversa e redun-dante de coercitividades pode ser encontrado em Kenneth(1969), em seu livro intitulado Discretionary Justice. O au-tor chama atenção para duas possibilidades lógicas da deci-são discricionária: o “agir” ou “não agir” numa determina-da situação. Já Klockars (1985) e Muniz e Proença Jr (2007b)esclarecem que, na práxis policial discricionária, o “nãoagir” aparece como uma alternativa decisória possível, váli-da e, por vezes, superior, aberta ao policial para produzir asolução mais apropriada e oportuna para a circunstânciaenfrentada. Isso permite circunscrever a totalidade do“decisionismo policial” em termos de sua publicidade, vi-sibilidade e oportunidade de controle e accountability.

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nuadas, igualmente válidas, servindo, conformeas circunstâncias, como um repertório de senões

para o antes, o durante e o depois dos eventos,colocados à disposição dos cidadãos. Como, porexemplo, a decisão de encaminhar para outrosórgãos, seja porque o problema visto de pertorevela-se como não sendo um problema de polí-cia, seja porque a competência da PM na suacondução foi encerrada.

Note-se que, em todos esses procedimen-tos policiais identificados como operacionais,porque dariam certo, como padrão, porque po-deriam servir de guia, e como mais usados, por-que funcionariam e orientariam a ação policial,revela-se um atributo importante da produção deobediências consentidas. Trata-se da assimetria depoder entre quem detém a prerrogativa do usolegal e legítimo de força e aqueles sobre os quaisesse recurso está autorizado a ser empregado.

Esta assimetria, posta de antemão, entrepoliciais e cidadãos, condição de possibilidadepara o exercício do poder de polícia, com ou semconsenso, demarca a fronteira entre uma segu-rança pública para todos e os mecanismos tradi-cionais de proteção para poucos. É essa assimetriaque distingue a polícia pública de um bando ar-mado a mais, possibilitando a construção de al-gum enforcement. Isso quer dizer que todas assoluções policiais, declaradas ou justificadas comopreventivas, dissuasórias ou repressivas, trazemuma medida de coercitividade, o que as tornapossíveis e as faz demandadas pela população.Chama-se a polícia para tudo. Chama-se a políciaquando (só) pedir não basta.

Assim, as orientações extraídas dos POPsdos PMs de João Pessoa servem como um case

que evidencia que a sinfonia policial – em seusatos de conciliação, de aconselhamento, de cor-reção moral, de advertência, de levar para a de-legacia etc. – é constituída de variações sobre omesmo tema (controle e regulação social) e queos regentes policiais concertam, fazendo uso deuma variedade graduada de instrumentos po-tenciais ou concretos de força para o público esob a apreciação deste mesmo público. A rigor,

a diferença entre os POPs não é de natureza esim de grau. Talvez por isso, os PMs paraibanos,de posse de sua sociologia nativa, estão sempreprontos a dizer que “o que eu sou mesmo é polí-cia”. E porque eles são uma autoridade policial,com ênfase no policial, possuem as tais compe-tências residuais, fazendo os papéis de paicontrolador, de psicólogo, assistente social, departeiro, de despachante, de Florence Nightingale

in Pursuit of Willie Sutton (Bittner, [1974]) 1990),enfim, de “agentes itinerantes de justiça local deprimeira hora”.

Tudo isso, é claro, encontra guarida e âni-mo nas expectativas populares de um tipo dejustiça que, para ser justa, não pode estar pertodemais, nem longe demais. Tem que estar entreas pessoas e junto aos fatos, estabelecendo umaboa medida entre o que se ambiciona como uni-versal – está valendo para todos – e o que sequer como particular – “o meu caso é diferentedos outros”. E se espera que esse “espírito da lei”esteja incorporado no policial, como antecipouSkolnick (1966), em seu livro Justice Without Trial:

Law Enforcement in Democratic Society. Espera-se, pois, que esse seja o papel da polícia, comorelata um representante do Ministério Públicoparaibano: “... o policial militar é quem está emcontato direto com o povo; é quem sabe das coi-sas. Ele é quem faz a verdadeira justiça, pois ajustiça, para que ela seja importante, tem queser feita na hora”.

Espera-se, portanto, que seja esse o seu ver-dadeiro enforcement, traduzido em POPs, o que,afinal, esclarecendo a razão de ser das polícias emsociedades democráticas, permite compreender asimplicações que isso possa vir a ter em uma socie-dade de democracia emergente, como a brasileira.Trata-se de uma realidade na qual experimenta-mos uma desigualdade jurídica naturalizada (Lima,p.1999), teatralizada por uma cidadania relacional(Da Matta, p.1979), que se vê e se faz “regular” poruma administração estatal do poder delegado depolícia, cujo mandato público apresenta-se comouma procuração em aberto ou como um “chequeem branco” (Muniz; Proença, 2007b).

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O estado dos procedimentos que saem daboca dos PMs revela a existência de, ao menos,dois requisitos funcionais que concorrem para aconstrução de um encaminhamento policial acei-tável: (i) a percepção do grau de risco e delesividade dos eventos criminais ou não-crimi-nais; e (ii) a possibilidade, sempre aberta, de re-sistência dos envolvidos, até mesmo de suarecalcitrância armada, à presença, à expectativade presença e à solução dos policiais. O primei-ro requisito fala mais diretamente da fabricaçãode legalidades e suas implicações formais paraos cidadãos e para os próprios policiais. O se-gundo fala mais diretamente da fabricação delegitimidades, ou do reconhecimento e da acei-tação da autoridade policial pelos policiados. Ume outro se subordinam ao pragmatismo do“decisionismo” do policial, que sabe como fun-ciona o sistema entre nós. E, por isso, ele estásempre atento à “repercussão na sociedade” efrente ao governador e sempre alerta para oscomprometimentos legais e institucionais acer-ca de suas decisões e os custos delas para a so-brevivência na carreira policial. Aqui, a decisãodiscricionária segue levando em consideração osconteúdos práticos dos contornos de seu man-dato. À moda brasileira, isso significa dizer queos PMs paraibanos, “calejados toda vida”, tradu-zem as exigências da polity – sociedade e seugoverno – olhando para quem pode estar no alto,em baixo, ao lado e ao redor, tentando caminharentre as discricionariedades – em muitos casos,arbitrariedades – ora convergentes, ora diver-gentes, dos seus diversos “patrões”, como é ilus-trado por Muniz e Proença Jr. (2007c) no artigoMuita politicagem, pouca política os problemas

da polícia são.Para tentar “fazer a coisa certa”, decidir

pelo POP mais apropriado, é preciso, então, usardo bom senso policial e considerar o que mandaa lei, avaliando, em cada situação concreta, apossibilidade de justificativa e de desdobramen-to legais. Trata-se de sopesar, por exemplo, se aocorrência criminal ou não-criminal pode ter umatipificação delitiva rentável, alguma materialidade

que sirva para alimentar a linha de produção dosistema criminal que processualiza corpos, von-tades e coisas. Para encaminhar para a delegacia,é prudente ponderar se o fato típico vai dar emalgo mais à frente, ou se é melhor resolver nolocal, porque se sabe que “não vai dar em nada”.Ou seja, se a ocorrência será “quebrada” maisadiante, servindo apenas para desmoralizar o PM– entenda-se também deslegitimar, “prender a(sua) viatura na porta do distrito policial”, e gas-tar o seu tempo, ainda mais com os trâmitescartoriais para o registro da ocorrência.

O realismo pragmático dos PMs recomen-da que, diante do risco sempre iminente de seracusado de prevaricação19 por alguém insatisfei-to com trabalho da polícia, é de fundamentalimportância que se construa, sempre que possí-vel, uma camada de legalidade: por exemplo,passando o bastão adiante para o delegado, quan-do se está diante de um ato potencialmente cri-minal e, em alguma medida, ofensivo.

Mas, para sustentar alguma legalidade paraa decisão policial, é preciso também negociar, noato das ocorrências, alguma instância de legitimi-dade. E isso significa afirmar, (re)construir e atémesmo resgatar o assentimento público, ali repre-sentado pelas partes, em situações que expressamordens distintas de resistência ao exercício da au-toridade policial. Faz-se necessário repactuar o con-sentimento social ao mandato de polícia,rememorando e afirmando, pela decisão policialem contexto, a anterioridade política, social e legalde seus termos. Para policiar, a polícia precisa dis-por de – e, ao mesmo tempo, constituir – algumnível de reconhecimento e autorização. Isso se tra-duz na sua capacidade de dobrar a(s) resistência(s)que emergem em cenários entrecruzados deintencionalidades e acidentalidades de toda sorte,virtualmente conflituosas e quase sempre tem-peradas por expressões afetivas desmesuradas.

19 O Código Penal Brasileiro, Decreto-lei no 2.848, de 7 dedezembro de 1940, define o crime de “prevaricação” emseu artigo 319, aqui reproduzido: “Retardar ou deixar depraticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contradisposição expressa de lei, para satisfazer interesse ousentimento pessoal: Pena – detenção, de três meses a umano, e multa”.

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Isso significa estar preparado para o enfrentamentodos problemas, lançando mão de POPs para es-friar ou apaziguar os ânimos exaltados dos cha-mados “bandidos” e, sobretudo, dos “cidadãosde bem”, que, tendo direitos – para muitos, “pri-vilégios”–, acham que estão sempre com a razão,podendo “crescer para cima” de uma das partese (ou) da autoridade policial.

Quando a polícia chega, muitos se alimentam dapresença da polícia pra começar a disputa. Fa-zem da polícia um escudo, aí quer ter direito dexingar. Aí já cria uma outra situação. Muitas dasvezes, o pessoal, quando vê a viatura, aí quer“crescer”, principalmente mulher, dizendo: “Dêem mim agora, dê agora pra você ver!”. Ela se sen-te fortalecida porque foi ela que solicitou. (Cabo,com 16 anos de serviço)

Na linguagem dos POPs, a resistência20

entre as partes e, sobretudo, delas em relação aopolicial, é caracterizada como passiva ou ativa,conforme a percepção da periculosidade dos en-volvidos. Idealiza-se um continuum de aceita-ções coercitivas, que vai de uma atitude maiscooperativa até a menos cooperativa, inclusivearmada, para com a condução policial. É diantedessa expectativa de cooperação, ou melhor, deníveis negociados de adesão à autoridade de po-lícia, que se estabelecem as alternativas potenci-ais e concretas de força. Instrumentaliza-se, nostermos “tático-operacionais”, um fluxo desejadode correspondências entre condutas, nas quais aconduta das partes iria da submissa até a agres-

siva letal, e a do policial razoável, em pronta-resposta à primeira, caminharia do comando

verbal até a força mortífera. É, portanto, comessa ambição de conformidade que se racionali-za e se busca justificar a proporcionalidade dodecidir e do agir policiais, assentada na chamada“doutrina do uso progressivo de força,”21 gestada

nos meios policiais e que, mais recentemente,foi adotada como uma recomendação pela Se-cretaria Nacional de Segurança Pública(SENASP), do Ministério da Justiça.22

O emprego amplamente disseminado danoção de proporcionalidade pelos PMs, quecorresponderia conceitualmente à de suficiên-

cia, que articula os juízos de propriedade e opor-tunidade da ação policial (Muniz; Proença Jr.,2007a), tem a sua razão político-pedagógica deser. Ela aparece como um dispositivo para a pro-dução de legitimidades, perante as resistências,que estabeleçam uma sintonia com o senso co-mum e, especialmente, com o senso comum ju-rídico e político, que avalia o mérito da ação po-licial. Os policiais, em geral, e os PMs da Paraíba,em particular, sabem, por força da prática, queo comedimento desejado no uso dos recursoscoercitivos não tem como ser traduzido automa-ticamente em proporcionalidades do tipo res-posta-comando-resposta. Isso porque se pode terde decidir agir de menos, agir de mais e, princi-palmente, não agir, para poder produzir solu-ções superiores, igualmente válidas e capazes deresponder, de forma apropriada e oportuna, po-rém desproporcional, às circunstâncias, aos ter-mos do mandato policial, às prioridades da polí-tica pública. Sob essa perspectiva, as alegaçõesmorais e técnicas de proporcionalidade frente àsresistências revelam-se tão somente como estra-tégias de legitimação para respaldar o exercícioda autoridade policial.

Isso fica bastante evidente nas escolhasdos PMs quanto aos POPs mais empregados nasocorrências criminais de menor potencial ofen-sivo e nas não-criminais, que envolvem questões

20 O Código Penal Brasileiro define o tipo criminal resistên-cia, em seu artigo 329, da seguinte forma jurídica: “opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça afuncionário competente para executá-lo ou a quem lhe es-teja prestando auxílio” A pena prevista é a de “detenção,de dois meses a dois anos” (Brasil, 2007).

21 No Brasil, até então, inexiste, na legislação doméstica, umprotocolo para o uso da força pelos agentes com poder depolícia que referencie os termos normativos, políticos etécnicos, contornos do mandato policial. Por conta disso,temos como documento de orientação a legislação interna-

cional, especificamente o Código de Conduta para os En-carregados da Aplicação da Lei (CCEAL) e os PrincípiosBásicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo, ambosinstituídos pela ONU. O art. 3º do CCEAL, em particular,instituído pela Resolução da ONU nº 34/169, de 17 dedezembro de 1979, define que “os funcionários responsá-veis pela aplicação da lei só podem empregar a força quan-do estritamente necessária e na medida exigida para o cum-primento do seu dever.“ (Rover, 1998, p.464).

22 O Caderno Temático 5 da 1a Conferência Nacional de Se-gurança Pública, a CONSEG, realizada no final de 2009 epromovida pela SENASP/MJ, dedica-se ao “Uso Progres-sivo da Força: Dilemas e Desafios”, e pode ser encontradono portal: www.conseg.gov.br.

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sem maior gravidade para a justiça criminal eque dizem respeito ao universo heterodoxo dosconflitos interpessoais, ao complexo “feijão comarroz” da ordem pública.

De uma maneira geral, essas ocorrências nãosão pensadas como pertencentes à criminalidade,constituída por malfeitores que “não têm o queperder”. Ao contrário, elas teriam como prota-gonistas cidadãos que passam por dificuldades,têm problemas e chamam a polícia. Pessoas quepodem ter dado um “mau passo na vida”, masque são, em sua maioria, “humanos direitos” paraos quais os direitos humanos aparentemente fa-riam mais sentido.

Agressão física sem ferimento ou lesão,xingamento, insulto ou ofensa moral, ameaças, dí-vidas, mendicância, atrito verbal, discussão ou bate-boca, perturbação do sossego, briga entre vizinhos,conflito amoroso, jogar lixo na rua, arruaça, bebe-deira, transtorno mental, obscenidade, fazer cocôe xixi na rua, pichação, menor abandonado ou chei-rando cola, pessoa desaparecida, etc., fazem partedo rol de problemas para os quais a cidadania mo-biliza os PMs de João Pessoa. E é aí, quando se temalguma cidadania envolvida, que se pode melhorcompreender porque as soluções policiais têmmuito depende para se constituírem como um se-

não social. Depende de quem é o cidadão, de suadisposição cooperativa, da sua aceitação da polí-cia, do tipo de conflito em que está envolvido, dosmeios policiais de que se dispõe para escolher osmodos de ação e depende,também, da suscetibilidade dopolicial na confrontação doseu dever com o direito detodos. Pois cada um, no exer-cício desmedido de sua pró-pria razão, a razão de classe,por exemplo, pode querer ti-rar alguma vantagem do PM,ou demandar uma soluçãoque atenda à sua demandaparticular pela intervenção deuma autoridade.

No caso de briga entre moradores de classe mé-dia, a expectativa deles é de que não vai maisocorrer o problema pela presença da polícia na-quele momento e o constrangimento. Assim, nomeu entender, eles chamam a polícia pra que, nocaso, o acusado, se sinta pressionado a não fazermais, no caso, não ligar o som alto, não fazer umabaderna na garagem. (Sargento, com 7 anos deserviço).As pessoas da periferia, quando chamam a polí-cia, chamam com o propósito de intimidar. Quan-do a polícia chega, eles dizem: ‘Tira onda agora,misera! Vai desgraça, tira onda agora, tu né brabo!’É desse jeito. (Cabo, com 17 anos de serviço).

Equilibrando-se na corda bamba da lega-lidade e da legitimidade, no dilema prático en-tre o “agi mais do que devia e podia” e o “agimenos do que devia e podia”, os PMs optam, prag-maticamente, por não complicar o que já é com-plicado por sua própria natureza. Afinal, os pe-quenos delitos e eventos não-criminais abrem-sea irracionalidades, a uma maior imprevisibilidade,exatamente porque envolvem querelas pessoaisteatralizadas por meio de chantagens, vingan-ças, descontrole emocional, meias-verdades e“picuinhas” de todo tipo. E, por isso, são aquelesque, do ponto de vista dos policiais, mais po-dem “complicar o lado do PM”, como ilustradono Gráfico 3.

Aos olhos dos policiais, os cidadãos quere-lantes, marinheiros de primeira viagem na condu-ção de seus conflitos, não possuiriam um modus

operandi, reações previsíveis como a “bandidagem”,deixando-se mais facilmente contagiar por atitu-des destemperadas e inconsequentes em nome da

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defesa de suas próprias razões. Como “caldo degalinha” e muita paciência não fazem mal a nin-guém, as soluções de resolver no local; encami-nhar para outro órgão; ou dar condição para aspartes se explicarem e entrarem num entendi-mento, apresentam-se como alternativas razoá-veis, mesmo quando se espera encontrar resis-tências. Pode-se, com isso, encerrar ali mesmo oproblema, sobretudo liberando os PMs para se-guirem ao encontro de outra ocorrência.

Um atrito verbal, uma vias de fato, que a gente vêque os ânimos estão calmos, que não tem poten-cial ofensivo pra guarnição, nem pras pessoasenvolvidas que estão no local, a gente tenta ori-entar que cada um vá pras suas casas, se nenhu-ma das partes quiser prestar queixa. (Cabo, com23 anos de serviço)A gente chama as duas partes, primeiro, separaas duas partes e tenta entender o motivo que oca-sionou as vias de fato, a versão de cada uma daspartes. Baseado nisso aí, a gente vai tomar umaposição. Se uma das partes, realmente, teve oenvolvimento no início das vias de fato, a gente,dependendo da posição da outra parte, leva pradelegacia. Senão, se ela disser: “Não, eu só queroir pra minha casa mesmo, evitar problema e tal.Foi ele que procurou confusão comigo, eu nãoqueria nenhuma confusão, só fui revidar a agres-são”, então, se nenhuma das partes quer ir pradelegacia, a gente resolve no local. Agora, se ne-nhuma das partes chega a um entendimento e agente também não sabe quem começou a agres-são, a gente leva pra delegacia pra ser apurado. Odelegado coloca tudo num termo circunstancia-do e é apurado. (Cabo, com 23 anos de serviço).

Assim, os POPs mobilizados pelos polici-ais para dar conta daquilo que pode vir a se tor-nar perigoso e violento, sejam os pequenos deli-tos, sejam as desordens, incivilidades e confli-tos, evidenciam a motivação inicial, realista, deconstruir soluções que não evoluam rumo à bu-rocracia legal. Eles escolhem, primeiramente, nãocriminalizar essas ocorrências, alternando enca-minhamentos não-legais ou alegais para susten-tar a expectativa de legalidade com a legitimida-de carimbada pelas partes envolvidas. Eles bus-cam, assim, empreender uma adesão compelidaao “espírito da lei” e negociar um sentido de jus-tiça, decidindo por não fazer nada em termos daaplicação estrita da legislação.

Mas, como tudo no trabalho policial temum depende, para produzir enforcement nesses

eventos, principalmente os não-criminais, con-sidera-se o uso concreto de força para reverteras resistências. Tal evidência surpreende as ex-pectativas convencionais de que onde não have-ria um fato propriamente criminal, a “ação enér-gica do policial” ou o “emprego da força neces-sária” para conter os ânimos exaltados dos cida-dãos seriam remotos. Note-se que os PMs entre-vistados verbalizaram explicitamente essa opçãodo recurso à força como uma das que mais utili-zam. E eles têm boas razões para isso.

Quanto mais os atos se distanciam da pos-sibilidade de serem convertidos em fatos delitivostípicos, mais eles enunciam suas idiossincrasias,mais eles anunciam seus componentes de refra-ção ou irredutibilidade a racionalizações, e maiseles sinalizam para oportunidades de ruptura ouinsurreição classificatória, evidenciando sua com-plexidade e sua multiplicidade de sentidos pornegociar. Mesmo lá, no paraíso das ocorrênciasnão-criminais inomináveis da ordem pública,para as quais não se tem uma expressão formalem lei, tem-se a força legítima da espada parasustentar a desejada paz social, intervindo naimprevisibilidade, nas resistências por ela alimen-tadas.23 Tem-se a busca de afirmação da autori-dade policial e de seu consentimento para con-duzir a uma solução que seja razoável.

Não é incomum que as ocorrências não-criminais apresentem um potencial ofensivo quepoderia redundar em violações e violências comriscos de vitimização tanto civil quanto policial.Por sua vez, não é incomum que essas situações,pela sua natureza, apresentem atitudes recalci-trantes ou não-cooperativas. Inúmeros são oseventos relatados pelos policiais nos quais semobiliza a polícia ao mesmo tempo em que semanifesta a recusa de sua intermediação: um tipode reação corriqueira que, por diversas motiva-

23 Chama atenção a “interlegalidade” das ocorrências não-criminais, cujos eventos que cobrem admitem oacionamento de outros direitos. Onde direito penal silen-cia, o direito civil e, sobretudo, o direito constitucionalcostumam ser acionados pelo senso comum policial parasustentar uma legalidade tanto no processamento da ocor-rência dentro do que seria entendido como o escopo da“competência policial”, quanto no seu encaminhamento aoutros órgãos.

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ções, como o medo de represália, o vinculo pes-soal com o oponente, a desconfiança da polícia,etc., veicula a mensagem contraditória de “nãometer o bedelho onde se é chamado”.

Identificadas pelos policiais como “as maiscomplicadas de resolver”, tais ocorrências, quedesfrutam de baixa visibilidade social e, em boamedida, passam ao largo da justiça, são aquelasatravessadas por incertezas irrestritas. Particu-larmente, nessas manifestações entre cidadãoscomuns, é que “tudo pode acontecer”. Suas ex-pressões conflituosas, desordeiras e incivilizadaspropiciam a ocorrência de desacatos e abusos deautoridade.

Além de ser chamado de “seu guarda”,nada desagrada mais o policial do que ter a “mo-ral” de PM atingida e ver questionada ou desti-tuída a sua autoridade para conduzir a ocorrên-cia. E isso é ainda mais frequente nas tais ocor-rências não-criminais do que imagina a nossasensata consciência.

Em alguns casos, a indiferença à autori-dade policial acontece porque os envolvidos ex-perimentam estados alterados de consciência queos impedem de compreender e seguir a orienta-ção policial. Pessoas embriagadas, drogadas, comtranstornos emocionais ou psíquicos, frequente-mente oferecem níveis significativos de resistên-cia passiva e ativa, expondo a si mesmas e aosoutros a riscos de vitimização. Quem já teve aoportunidade de acompanhar o esforço policialde “colocar um bêbado na viatura” ou de “resga-tar um alienado mental” pode também observaro quão complexo é o uso concreto de força paraproduzir imobilização defensiva em pessoasalheias a quem lhes faz a guarda. Trata-se desituações em que se costuma usar de umquantum maior de força do que a expectativa deameaça oferecida.24 Aqui, o PM tende a escolheragir demais, para fazer o razoável.

Em outros casos, até mais frequentes doque os anteriores, a recusa da autoridade polici-al é intencional, podendo se manifestar desde oinício. Neles, os cidadãos em conflito, “esquen-tando a chapa”, produzem deliberadamente re-sistência passiva ou ativa para obter um resulta-do que atenda mais imediatamente a seus inte-resses, por sobre ou com a chancela policial.Quem já teve a oportunidade de acompanhar oesforço policial para mediar um conflito domés-tico ou de fazer cessar o bate-boca entre conhe-cidos também pode observar o quão complexo éusar do concreto de força para pacificar os âni-mos ou produzir submissão e retomar o contro-le daqueles que intencionalmente manipulam opolicial como a terceira parte. Trata-se de situa-ções em que se costuma usar de um quantum

menor de força do que a expectativa de ameaçaoferecida. Nelas, o PM tende a decidir agir demenos para fazer o razoável.

Nessas situações, por distintos fatores,ocorrem expressões de desobediência, com ousem sentido, às regras pactuadas do jogo da or-dem pública e, por sua vez, aos termos do seuenforcement, representado na figura do policiale de sua autoridade. Ressalte-se que as resistên-cias provocadas entre as partes e delas em rela-ção ao agente da lei assumem um caráter de de-sobediência provocativa ao policial, a qual favo-rece uma percepção ampliada do potencial ofen-sivo nas interações entre cidadãos e policiais.Como uma importante pista, elas sinalizam nãoapenas desentendimentos pontuais entre cidadãospoliciados e sua polícia, que poderiam não estarfalando a mesma língua. Elas remetem ainda aalgo mais estrutural do exercício dos mandatosde policiamento publico e estatal entre nós, poisdizem respeito a dinâmicas latentes ou explícitasde desautorizações consentidas, que produzemdeslegitimações continuadas da autoridade poli-cial. E, com isso, sabotam a condição democráti-ca primeira para se policiar: a autorização públi-ca, coletiva, para produzir obediências ao pactosocial sob o império da lei. Elas indicam a pers-pectiva sempre aberta de subalternização do lu-

24 Na coletânea Aspects of Police Work, Bittner (1990) refletesobre as práticas policiais de peacekeeping e deapprehension of mentally ill persons, como ilustrações daprodução de enforcement pela polícia e, por sua vez, dacomplexidade do seu mandato de produção de obediênci-as sob consentimento.

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gar e do sentido mesmo de uma autoridade pú-blica orientada pelos princípios universais daigualdade e da imparcialidade, os quais poderi-am colocá-la como uma terceira parte, autôno-ma e independente, entre nós e os outros. As-sim, tais resistências esclarecem que fazer polí-cia “à moda brasileira” pode significar navegarentre “carteiradas” que viriam de todos os lados:mais uma vez, do alto, de cima, de lado e aoredor do decidir policial.

“ELES ESTÃO DESCONTROLADOS?” AUTO-RIDADE DE MAIS, AUTORIDADE DE MENOSNA GESTÃO DAS OCORRÊNCIAS

“Mulher pelada, cachorro doido e PM(não) podem tudo”, como, à primeira vista, so-mos levados a fabular. Na prática, a fantasia de“superpoderes” democráticos da autoridade po-licial para sustentar o status quo estabelecido pelapolity, para garantir uma ordem de todos paratodos, é bem outra entre nós. O PM pode bemmenos do que são, ou deveriam ser, os poderesdelegados por seu mandato público. E semprepode bem mais quando se encontra “de serviço”e acontece de ter de se colocar a serviço de al-gum patrão da vez. Pode mais quando é forçadoa atender a algum pedido particular. Pode tudo,ou quase tudo, quando é constrangido a pagarum favor pessoal, a “fazer vista grossa”, a do-brar-se a uma camaradagem pedida “com jeiti-nho” pelos diversos “quem”, que se veem e sereconhecem como pessoas (Da Matta,1979): ci-dadãos de primeira classe que estariam por sobree ao largo da lei. Na lida cotidiana da administra-ção pública da segurança, temperada por nossaspráticas clientelistas, a ocasião não faz só o la-drão. Faz aparecer também os patrões de ocasiãoe sua lista sempre aberta de protegidos. Tudo issoconforme o acaso das ocorrências e o infeliz oca-

so policial de colidir com quem tem “costas quen-tes”, quem pode sacar uma “carteira de autorida-de” mais poderosa que o distintivo da polícia.

Saídos do mundo popular, os praças da

Paraíba experimentam os dois lados da nossa moe-da do poder, de uma sociabilidade política com olastro brasileiro, que põe em circulação uma reali-dade ambicionada como igualitária, mas reencenadacomo desigual (Lima, 1999). Como policiais, elespartilham da condição de autoridade, com algumamedida de poder, com alguma medida de autori-zação pública. Como cidadãos emergentes da clas-se trabalhadora, eles partilham da situação de “terde procurar os seus direitos”. De ter também deprecisar chamar por, e negociar com, uma autori-dade que, de fato, possa mais, que possa vir aoencontro do PM para corrigir uma injustiça na ocor-rência policial, compensando a sua falta de autori-dade, por conta de seu alegado déficit de cidada-nia. Como fica “a cabeça” do PM que necessitacolocar-se, todo o tempo, na fronteira mesma en-tre a convivência diária com oportunidades deapropriação privatista de seu mandato público e apossibilidade sempre aberta de acusação de coni-vência com quem manda mais?

Na área nobre, por mais que a guarnição estejacerta, a gente tá errado. Eles questionam e come-çam a intimidar a guarnição. A dificuldade aquide serviço é só essa. Diante dessa situação, geral-mente chamamos o oficial de serviço. Nos senti-mos acuados para agir, pois temos medo de serpunidos. Às vezes, a gente age certo e vem portrás uma pancada, geralmente de superiores.(Cabo, com 17 anos de serviço) (grifos nossos)

O saber policial de rua recomenda que a“cabeça” do PM não se esqueça de ponderar aconveniência do uso de seus procedimentosoperacionais padrão, mapeando, de partida, “comquem (se) está falando” e seus apetites por ilega-lidades privilegiadas.

A questão da embriaguez é uma ocorrência deli-cada, porque, geralmente, são pessoas de situa-ção financeira alta que, às vezes, ficam compli-cando pra gente dar andamento à ocorrência. Por-que, geralmente, quando acontece uma situaçãodesse tipo, sempre vêm aquelas perguntas: “Sabequem eu sou? Sabe com quem tá falando? Sabequem eu conheço?” Então, esses tipos de ocor-rências são muito melindrosos. (Cabo, com 17anos de serviço) (grifos nossos)Com relação aos casos de maior dificuldade dopolicial administrar, o que eu percebo é que tudovai depender do grau de escolaridade doqueixante, do queixoso e do poder aquisitivo dele.

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Eu acho, inclusive, que a radiopatrulha se sentemenos preparada quando se depara com umapessoa abastada do que com o pobre. (Oficial, com3 anos de serviço)

É preciso seguir fabricando legitimidade,mas “cobrindo o próprio lado”, levando em con-sideração o consentimento da polity para policiar.Só que, em um contexto de imprecisão políticadas competências federativas, de baixanormatividade e de vagueza administrativo-procedimental quanto ao que sejam os termos domandato de polícia no Brasil, que ainda persistecomo uma procuração em aberto, mesmo após aredemocratização (Muniz; Proença Jr., 2007c). É,então, preciso seguir relevando o “tal” do consen-timento que, no mundo de práticas cordiais e au-toritárias, acontece transversalizado por razõesde compadrio, de classe, de renda, de cor, de pres-tígio social, de posição hierárquica e de outrasmais que possam vir a “fazer a diferença” em umfazer-se desigual na gestão das ocorrências.

Eu acredito que a pessoa com poder aquisitivo ecom alto grau de escolaridade pode vir a preju-dicar ou questionar o serviço do homem da RP[rádio-patrulha]. E quando a pessoa não tem di-nheiro ou não tem instrução, ela não questionaou questiona muito pouco. (Oficial, com 3 anosde serviço).Já as pessoas de classe média gostam muito dedar pitaco, de tentar se defender e ir contra a po-lícia. Muitas vezes, não acham correto o trabalhoda polícia. (Soldado, com 2 anos de serviço).

Na maioria das vezes, o policial se sente“pisando em ovos”, já que, no lusco-fusco da nos-sa cidadania regulada, não fica muito claro quan-do é para exercer plenamente o lugar público deautoridade, quando se pode ser autoridade “demais”, quando se deve ser autoridade “de me-nos”. O que se tem como perspectiva interativaentre cidadãos policiais e os outros cidadãos é umarealidade que se mostra potencialmente ofensivaa um “alguém”. Uma realidade na qual a distri-buição estatal de coercitividades legais e legítimasadmite não apenas a presença ostensiva do PM,mas também a ação ostentatória de intermediári-os, atravessadores ou mercadores do poder pú-blico de polícia, que vai corroendo o direito (de-

legado) do estado de afirmar o estado de direitodos seus cidadãos. E, entre esses despachantesconsentidos a fazer uso da polícia para seus finsparticulares ou de outros, encontra-se a própriaclientela policial. Na dinâmica cotidiana de“carteiradas”, há desautorizações recíprocas e con-tinuadas entre os próprios promotores da lei.

Quando foi perguntado aos PMs que fato-res mais complicam as suas intervenções nasocorrências, apurou-se que a maior parte das res-postas (65%) referia-se ao envolvimento de poli-ciais, especialmente de superiores hierárquicos,outras autoridades e seus amigos ou afilhados,na condição de infratores. Tal como ilustrado deforma desagregada na Tabela 1, os quatro fatoresmais relevantes são: envolvimento de amigos desuperiores hierárquicos (16,7%); envolvimentode outros policiais militares, sobretudo superio-res hierárquicos (16,3%); envolvimento de poli-ciais civis e ou federais (16,2%); e envolvimentode autoridades políticas e judiciárias (15,6%).

Destaque-se que as referências dos PMs aos“suspeitos de sempre” de João Pessoa como fatoresque tornam complexa a ocorrência – bêbados, dro-gados, perturbados mentais, indivíduos armados,menores infratores, lutador de artes marciais e pes-soas com baixa escolaridade –, corresponderam asomente 22% do conjunto de respostas válidas.Ao considerar esse retrato fotografado pelos PMsque vêm “de baixo” e que estão abaixo na hierar-quia policial-militar, evidencia-se quem dá maistrabalho para a polícia: os cidadãos que se apre-sentam como “acima de qualquer suspeita”, den-tre os quais, evidentemente, estão aqueles commaior poder aquisitivo ou escolaridade, que rece-beram 12,5% das respostas obtidas.

Foi-se o tempo do patrimonialismo à modarural, no qual a polícia era só do senhor das ter-ras, ou do senhor dos negócios, ou do interventorgovernamental. O que se pode aventar com osrelatos dos PMs paraibanos é a de sua versão con-temporânea, revista e ampliada, na qual se obser-va o uso do poder coercitivo como uma mercado-ria política, que se abre à geração de receitas in-formais e ilegais (Misse, 2007; Muniz; Proença

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Jr., 2007c). Um tipo de clientelização diversificada,que estimula níveis de autonomização perversado mandato policial, auferindo rendimentos paraas redes sociais e para os negócios criminosos da“proteção”. Um tipo de clientelização de merca-do, que particulariza a autoridade, privatizandoos recursos públicos de segurança.

Tudo isso parece indicar que, na adminis-tração das ocorrências policiais, pode-se cami-nhar de consumidor a ‘sobrecidadão’, fazendouso de um direito, de uma prerrogativa funcio-nal, inclusive por extensão e empréstimo de ou-tros, para garantir alguma forma de tratamentoprivilegiado para poucos, sob um consentimen-to provisório e silencioso de todos.

A insegurança não costuma ser boaconselheira, principalmente para os PMs, que seveem na delicada situação de indulgência peranteuma “autoridade de mais” e de indigência diantede sua “autoridade de menos”. Os policiais de rua,tão ou mais inseguros que os cidadãos e sem mui-

tas oportunidades para fugir das ocorrências, ou-vem a voz do medo de ter encerrada a carreira.Especialmente nas chamadas que envolvem umaautoridade, consideram uma via prudente, paraencerrar a ocorrência, chegar (um pouco) depois,na expectativa de que alguma solução razoávelchegue antes ou já esteja em curso, necessitandoapenas do carimbo oficial da polícia. Como nãose sabe ao certo até onde se pode ir com a autori-dade policial, não é improvável que se prefira serum polícia do “depois”, que torce, a cada chama-da, por uma boa ocorrência: aquela que ninguémviu, que passou despercebida, que pode ser resol-vida no local e da qual, até o presente momento,ninguém reclamou.

A expressão muito usual, “O que o(a) Sr(a)quer que eu faça?” parece apontar para o desca-minho de uma legitimidade destituída, em de-sencanto ou em desagrado: obter algum as-sentimento, revelando a sua precariedade pelaaceitação reativa de usar de menos o lugar de

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autoridade policial. Quando isso acontece, tem-se uma clara manifestação de que “... a autorida-de fracassou.” (Arendt, 2009, p.129). Fica-se nojogo da sua palavra contra a minha, quedesautoriza o policial como instância legal e le-gítima de mediação entre as partes.

Sabe-se que a construção de legitimidadenão está relacionada apenas ao poder hierárquicoe funcional, típicos da burocracia, como descreveWeber (1999), ou ao poder formal de polícia, se-gundo define Meirelles (2009). Ela está alicerçada,principalmente, conforme reflete Arendt (2009),nas relações de confiança que se constroem entreos indivíduos e (ou) entre eles e as instituições, asquais são resultantes de um histórico de repre-sentações, expectativas e práticas sociais acercados fins, modos e meios do exercício concreto domandato policial, que se convertem em aceitaçãoe consentimento públicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Estado Democrático de Direito, talcomo nomeamos no Brasil, a Polícia, notadamentea polícia ostensiva, tem papel preponderante napreservação da ordem pública e, sobretudo, naproteção dos cidadãos, com vistas à garantia dasliberdades e direitos consagrados nas leis, emespecial, na Constituição.

Presente no cotidiano das pessoas duran-te 24 horas por dia, ela é o órgão mais atuante emais visível do Estado, que se presta a atenderàs diversas demandas da população, agindo sem-pre quando, segundo afirma Bittner ([1974], 1990p.249), “algo que não deveria estar acontecendo

está acontecendo e alguém deve fazer algo a res-

peito agora”, e já! (ênfase no original).As questões que são demandadas pela po-

pulação à polícia são de espécies diversas, por-que dizem respeito a tudo aquilo que pode sercompreendido como pertencente à ordem pú-blica. Elas vão desde os conflitos, incivilidades edesordens até os pequenos e grandes delitos. To-das apresentam algum nível de risco potencial

ou concreto, que exigem, por sua vez, graus dis-tintos de resolutividade e de distribuição gradativa,reversa e redundante de coercitividades. Isto re-quer dos streetcorner politicians (Muir Jr, 1977),a capacidade discricionária de tomada de deci-sões acerca dos meios e modos para a produçãoconsentida de soluções razoáveis, todas elas subor-dinadas aos termos concretos de um mandato po-licial e às suas dinâmicas de autorização pública esocial. Tudo isso para construir um enforcement

orientado por – e com sentido de – justiça.A expectativa social que se tem em rela-

ção ao decisionismo policial corresponde ao de-safio e à complexidade do lugar de polícia. Parti-cularmente nas sociedades de democracia emer-gente como a brasileira, em que a produção deobediências consentidas, com o recurso poten-cial e concreto de força, sob império da lei, se-gue, ainda, como um “cheque em branco” ouuma “procuração em aberto”. Tem-se tanto asubestimação quanto a superestimação do deci-dir e agir policiais. Essa ambição, para mais oupara menos, quanto ao dever-ser policial, muitasvezes extrapola os limites do que seriam os con-

tornos do seu mandato público, em termos doque se aspira como legal, legítimo, politicamen-te autorizado, tecnicamente válido e aceito cole-tivamente. Face à fragilidade dos mecanismosinformais de controle e dos dispositivos estataisde regulação, observa-se uma tendência de “pôrna conta da polícia”, ou de sua resolutividade,problemas que ultrapassam a natureza, a funçãoe os papéis propriamente policiais. Isso compro-mete as próprias alternativas de soluções sufici-entes, oportunas e apropriadas que qualquer or-ganização de força comedida, as polícias, podemproduzir no Estado de Direito.

De uma maneira geral, o trabalho dos po-liciais que patrulham as ruas, independentementedo tipo de problema que tenham que adminis-trar e (ou) resolver, apresenta-se orientado porum pragmatismo prudente, não apenas em rela-ção às características e circunstâncias que infor-mariam as ocorrências criminais e não-criminais,mas também em relação às formas pelas quais o

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lugar da autoridade policial é, na prática, consti-tuído e negociado.

E é essa a hora da verdade25 para a admi-nistração da chamada ‘paz social’ e suas alterna-tivas públicas de provimento de segurança. Éprecisamente ali, no “calor” das ocorrências, quese pode melhor compreender o modo mesmocom a práxis policial é construída a serviço dequal cidadania, diante de qual Estado, e para afir-mação de qual ordem.

Por meio da narrativa sobre os procedi-mentos operacionais padrão (POPs), revelou-seum modus operandi dos PMs de João Pessoa que,orientado por um saber em ato e em estado dealerta, ocupa-se de conciliar as expectativasconflitantes e, por vezes, paradoxais de legalida-de e legitimidade a cada chamada, em cada ocor-rência assumida. Nessa busca por uma boa me-dida, algum agir consentido e que faça sentidopara os envolvidos, sob o “espírito da lei”, cons-tatou-se que, quando se trata de questões crimi-nais violentas, consideradas de maior gravidade,a tendência dos policiais é dar um encaminha-mento formal, conduzindo os envolvidos para adelegacia de polícia, para o devido processo le-gal. Já nas situações criminais de menor gravida-de e não-criminais, que conformam a maior par-te do chamamento à polícia, observou-se que osPMs da ponta da linha buscam fazer, desde quenão haja risco iminente, uso de expedientes in-formais e alegais de tomada de decisão, resol-vendo no local, harmonizando, conciliando, ad-vertindo ou orientando os envolvidos.

Essa lógica em uso reporta-se ao sensívelcotidiano de produção de uma justiça queridacomo “justa”, como já anunciada por Skolnick(1966), mas que, à moda brasileira, mostra-sevulnerável ao acionamento das diversas razõesparticularistas, evocando o que seria um “direi-to à diferença” em um fazer-se desigual. E issode tal maneira, que o exercício legal e legitimo

da discricionariedade policial torna-se um espa-ço turvo, que enfraquece a tênue fronteira entreo arbítrio e as arbitrariedades, fazendo com queas interações entre cidadãos policiais e os outroscidadãos tenham como oportunidade e rumo oabuso de, e o desacato à autoridade e ao seusentido público. Em parte por conta disso, osencontros mais frequentes entre os cidadãos esua polícia, ou melhor, as chamadas ocorrênciascriminais de menor potencial ofensivo e as não-criminais são aquelas que os PMs revelam ser asmais difíceis de resolver, sobretudo quando setem a presença de alguma autoridade ou de seus“procuradores”. É aqui, em uma realidade debaixa visibilidade política e social, permeada deconflitos interpessoais e aberta a níveis signifi-cativos de irracionalidade e imprevisibilidade,que se assiste, de forma mais expressiva, ao de-safio democrático de fazer valer os princípios dauniversalidade e da imparcialidade, em um con-texto em que se quer ora autoridade de mais,ora autoridade de menos.

A essa altura, fica evidente a questão prin-cipal que atravessa todo o texto. Tratou-se deapreciar, através do decisionismo policial

paraibano, o concreto do exercício do poder depolícia entre nós. Buscou-se compreender o modomesmo como a autoridade policial é constituídanas esquinas de uma sociedade que se inscreveentre práticas tradicionais e ideais igualitários,universalistas (Da Matta, 1979).

Viu-se que os sentidos atribuídos ao queseja a autoridade consentida, legal e legítima,são atravessados por apetites oportunos e opor-tunistas de particularização. Os praças da Paraíbaingressam nas regras do jogo de “desigualizar”os que seriam idealmente iguais, pagando paranão ter problemas. Afinal, nunca se sabe ao cer-to quem, na ocorrência, acontece de querer di-

reito de mais ou de se contentar em ficar com

direito de menos.Na contabilidade perversa que acumula

dívidas de cidadania e déficits de autoridade,por meio de desautorizações recíprocas e conti-nuadas, os PMs, que há muito perderam a sua

25 Para a administração de serviços, que enfatiza a interaçãoentre servidor e cliente, a “hora da verdade” é “qualquerepisódio no qual o cliente entra em contato com qualqueraspecto da organização e obtém uma impressão da quali-dade de seu serviço.” (Albrecht, 2002, p. 27).

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inocência política, optam por uma posturareativa, tentando, sempre que podem, chegar(um pouco) depois, para encerrar a ocorrênciasem arriscar-se a ver encerrada a sua carreira.

Tal sabedoria, nascida da lida nas ruas comos “humanos direitos” que têm “muitos direitoshumanos”, põe em relevo o que parece invertero senso comum acerca do exercício do poder depolícia. Os PMs que patrulham João Pessoa usambem menos do que se imagina de sua autonomiadecisória ou de sua discricionariedade legalmenterespaldada. Na prática, o poder do policial ten-de a ser intencionalmente menor que a amplitu-de formalmente estabelecida no poder de polí-

cia. Inseguros, política e institucionalmente,quanto aos termos pactuados do seu mandatopúblico, os policiais militares escolhem poder

de menos, dramatizando que até podem de mais

para sobreviver entre as “carteiradas” que rece-bem dos seus variados “patrões”. Por isso, estãosempre dispostos a passar o bastão das ocorrên-cias para outrem, da forma mais rápida, segurae razoável.

Há o tal do bom senso policial nisso. Opadrão policial decisório, extraído dos materiaisetnográficos, evidencia estratégias de construçãode camadas de legalidade para (re) construir le-gitimidades, atendendo às expectativas de quealguma “lei” está sendo cumprida, mesmo emsituações em que não haveria tradutibilidadenormativo-legal. Tem-se como fundamento co-ercitivo para a abertura de negociação, o enca-

minhamento para a delegacia, que aparececomo um possível ponto de partida e um prová-vel ponto final, frente às esferas de resistênciaencontradas. A fabricação de camadas de legali-dade, pela encenação de que se está fazendo oque manda a lei, permite, no drama informal dacondução das ocorrências, reduzir aresponsabilização do policial por seus atos dis-cricionários. Nesse jogo de cena entre as partes eo policial, tem-se que, fazendo o que está na lei,o problema passa a ser de quem detém a tal dalei e não de quem faria o seu enforcement. Issodeixa como hipótese, para próximos trabalhos,

uma singela questão: o problema do poder depolícia não está propriamente na sua extensão,mas nos modos e meios de seu uso diante defins nem sempre públicos.

(Recebido para publicação em julho de 2010)(Aceito em setembro de 2010)

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Jacqueline de Oliveira Muniz - Antropóloga. Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ/ UCAM. Professorado Mestrado em Direito da Universidade Cândido Mendes e da Graduação Tecnológica em Segurança eOrdem Pública (TECSOP) da Universidade Católica de Brasília – UCB. Integra o Grupo de EstudosEstratégicos – GEE/Coppe/UFRJ e conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atua na áreade Antropologia e Ciência Política, com ênfase em estudos sobre Segurança Pública e Justiça Criminal,tendo publicado, entre outros, artigo no livro Comércio e segurança pública no estado do Rio de Janeiro(Rio de Janeiro: FECOMERCIO-RJ, 2010 (coletânea de vários autores) e editado (com Haydée CarusoeAntonio Carlos Blanco) a coletânea Polícia, Estado y Sociedad: prácticas y saberes Latinoamericanos.(Rio de Janeiro: Publit Seleções Editoriais, 2007), entre outros artigos.Washington França da Silva - Oficial da Polícia Militar do Estado da Paraíba, especialista em políticaspúblicas de justiça criminal e segurança pública e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

POLICE MANDATE IN USE: making decisionson the streets of João Pessoa

Jacqueline de Oliveira MunizWashington França da Silva

This article turns to the modus operandiof the police beat of public order officers of theMilitary Police of Paraíba, directing its focus onwhat is the “standard operation” of MPs who dothe “ostensive policing” in Joao Pessoa.

It follows the point of view of these officerson their discretionary practice in responding tonon-criminal and criminal incidents, trying tounderstand how the public office mandate workson the streets and, therefore, through which waysand means the police authority is concretelyexercised for the “purposes” for which it is calledto act.

KEYWORDS: police mandate, discretionary power,military Police, conflict management, use of force.

MANDAT DE POLICE DANS LA PRATIQUE:prise de décisions dans les rues de João Pessoa

Jacqueline de Oliveira MunizWashington França da Silva

Cet article traite dudit modus operandi despatrouilleurs de l’ordre public de la Police Militairede l’état de Paraíba, vu en particulier sous l’anglede ce que l’on appelle “le modèle opérationnel” desPMs (Policiers Militaires) qui s’occupent de la“surveillance ostensive” à João Pessoa. On part dupoint de vue de ces policiers par rapport à leurpratique discrétionnaire dans le cadre des affairescriminelles et non criminelles. On essaie decomprendre comment la police exerce sa fonctiondans les rues et, par conséquent, de savoir quelssont les moyens utilisés et de quelle manière s’exerceconcrètement l’autorité policière pour atteindreles “buts” auxquels sont action se destine.

MOTS-CLÉS: mandat de police, pouvoir discré-tionnaire, police militaire, administration deconflits, utilisation de la force.