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Você pode achar que fui condicionado pelos camaradas cosmopolitas do outro lado do mundo, pois é verdade. De certa forma fui; de certa forma, todos nós somos! A leitura de Victor Hugo, e o todo conceito de antropologia “eurocêntrico”. Metafônica: outra noite eu tive um sonho-pesadelo onde ouvia o bater de milhares de tambores, que continuaram dentro da minha cabeça por mais ou menos uma hora [depois]; mesmo eu estando acordado. Bom, não sei ao certo se foi bem um sonho, pois todo uso abusivo dessa droga de anfetamina ataca nosso sistema nervoso e transcendemos em um espaço-tempo bem longe da realidade. Nossas faculdades cognitivas se alteram por um tempo, mas, os objetos a priori acabam voltando; com o uso, a mente sente fortes alterações. Lembro-me da cerimônia que vi, e do longo serviço que seguiu: depois das bandeiras dos santos, dos cânticos e das orações na língua nativa, veio um camarada sacudindo o seu turíbulo. Mas o turíbulo era como um galo vivo, uma serpente caída do Éden ou algo assim. Era a mais profunda marca do Demônio na terra diante dos meus olhos. O camarada colocou a cabeça de uma ave na boca e decepou-a com uma mordida. Depois fez alguns desenhos místicos no chão, usando o pescoço da ave como um pincel, e seu sangue como uma tinta vermelho-ferrugem: algo extraterreno, não sei. Não estou acostumado com isso, é um mundo novo, que burla a realidade e ficção. Haviam noviços que eram trazidos como múmias, embrulhados em uns lençóis brancos cheirando a napalm, do qual caía apenas uma das mãos, mão que era exposta a uma chama viva pelos

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Voc pode achar que fui condicionado pelos camaradas cosmopolitas do outro lado do mundo, pois verdade. De certa forma fui; de certa forma, todos ns somos! A leitura de Victor Hugo, e o todo conceito de antropologia eurocntrico. Metafnica: outra noite eu tive um sonho-pesadelo onde ouvia o bater de milhares de tambores, que continuaram dentro da minha cabea por mais ou menos uma hora [depois]; mesmo eu estando acordado. Bom, no sei ao certo se foi bem um sonho, pois todo uso abusivo dessa droga de anfetamina ataca nosso sistema nervoso e transcendemos em um espao-tempo bem longe da realidade. Nossas faculdades cognitivas se alteram por um tempo, mas, os objetos a priori acabam voltando; com o uso, a mente sente fortes alteraes. Lembro-me da cerimnia que vi, e do longo servio que seguiu: depois das bandeiras dos santos, dos cnticos e das oraes na lngua nativa, veio um camarada sacudindo o seu turbulo. Mas o turbulo era como um galo vivo, uma serpente cada do den ou algo assim. Era a mais profunda marca do Demnio na terra diante dos meus olhos. O camarada colocou a cabea de uma ave na boca e decepou-a com uma mordida. Depois fez alguns desenhos msticos no cho, usando o pescoo da ave como um pincel, e seu sangue como uma tinta vermelho-ferrugem: algo extraterreno, no sei. No estou acostumado com isso, um mundo novo, que burla a realidade e fico. Haviam novios que eram trazidos como mmias, embrulhados em uns lenis brancos cheirando a napalm, do qual caa apenas uma das mos, mo que era exposta a uma chama viva pelos ajudantes envolvidos no rito, enquanto tambores batiam para cobrir os gritos e gemidos dos camponeses. Essas cerimnias so retradas em muitos quadros haitianos, em especial de Hector Hyppolite, que foi um sacerdote do vodu. Talvez durante o afeito da droga eu tenha viajado demais em um desses quadros, mas os tambores ainda continuavam, tocavam, tocavam e tocavam dentro da minha cabea e eu via imagens de um porco morto em uma aparncia de um assassinato ritual. Foi quando, enfim, o efeito da droga passou. Porra, que viagem! Tem havido muitos reinos de terror durante a histria. Por vezes, foram provocados por um idealismo deformado, outros foram dirigidos contra uma classe ou uma raa. Mas nenhum se compara ao barato do reino de terror das drogas sintticas; podemos compr-las em qualquer drogaria por a.

*

Mais uma vez me encontro inerte, na minha cama, tentando pegar no sono. Queria muito poder trazer das vsceras de uma histria qualquer, a viso ou qualquer coisa que pudesse cuspir no meu esprito canes. Isso meramente acontece, quando eu ando atento, ou produzindo pensamentos ou falando sozinho. quando De Andr, em uma tarde ensolarada, aps dias intensos de chuva, vem me visitar em si menor. Quando estou, justamente s, reclamando de mim mesmo ou da falta de inspirao para juntar letras e depois, vomit-las em palavras. No ceder, lutar, alle leggi del branco, dizem nos versos da letra Smisurata preghiera. Eu no sei exatamente onde possvel conter meu esprito. Procuro ardentemente a passagem para o plat, transcender novamente com qualquer barato de qualquer droga, na cobertura de um mundo que real com o irreal, mesmo que esse mundo, sempre, sempre ser como um simulacro. Mas a msica tambm uma droga, e letal. Essa sentena poderia ser aplicada a De Andr, que sempre procurou andar no plat em sua trajetria artstica. Obstinado e na direo torta. Sempre suspenso entre a figura do mito, do ritual no palco, no qual a sua persona adquiriu com o passar dos anos 60 em plena contracultura na Itlia. O real que ele abordava de maneira irnica e pungente era cantada em si menor, certamente em favorecimento do timbre de sua voz. Dele, um dos grandes poetas italianos do Novecento, aprendi que a vida tem uma retrica estpida de impossibilidade enquanto ela mesma no narrada pelo que real. Filho maldito de uma gerao perdida, como os chansonnieres franceses, cheia de riquezas plsticas e efmeras, nascido em uma poca que poucos queriam paz, onde os anticristos oriundos do autogoverno sonhavam com a desordem, guerra, devastao, runa e dissoluo. E o dinheiro. A Coreia. O Vietn. A Baa dos Porcos. O Golfo. O Afeganisto. E o Iraque. Passei anos penando para conseguir afastar de mim o desejo pelo pecado de querer fincar no racional, na Europa, nos EUA, nessa porra toda. Pois de um lado voc sabe que l est o dinheiro soberbo do mundo capitalista que te tenta convencer de que racional e de que a nica forma de se usar a razo para tentar ganhar dinheiro; de outro, um idealismo, e duas ou trs pessoas que falam a verdade e acreditam em revoluo como John Sinclair. So vrios idiotas tentando nos explicar das vantagens em se acumular, acumular, acumular. E depois, esses mesmos sujeitos dentro de um tubo televiso nos pedem para gastar, gastar, gastar. Com o intuito de se enriquecerem. O dinheiro, a ganncia sobre ele gera guerra, e h aqueles que cantam sobre ela. Outro dia pensei em colocar o cano de uma espingarda bem na minha garganta para poder sentir o gosto do chumbo e estar prximo de De Andr. Para conversamos sobre suas canes libertrias e pacifistas, alm de outros personagens a margem da sociedade, entre os quais, est os esquecidos, o mundo marginalizado dos tortos, e das prostitutas na sociedade italiana do ps-guerra. Meu dedo ficou duro, no dei conta. Como qualquer junky, procuro por mais um barato qualquer.