machado de assis - iaia garcia (1878)

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  • 7/28/2019 Machado de Assis - Iaia Garcia (1878)

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    Machado de Assis

    Iai Garcia

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    CAPTULO ILus Garcia transpunha a soleira da porta, para sair, quando apareceuum criado e lhe entregou esta carta:5 de outubro de 1866.Sr. Lus Garcia Peo-lhe o favor de vir falar-me hoje, de uma a duas horas da tarde. Preciso de seus conselhos, etalvez de seus obsquios. VALRIA.Diga que irei. A senhora est c no morro?No, senhor, est na Rua dos Invlidos.Lus Garcia era funcionrio pblico. Desde 1860 elegera no lugarmenos povoado de Santa Teresa uma habitao modesta, onde semeteu a si e a sua viuvez. No era frade, mas queria como eles asolido e o sossego. A solido no era absoluta, nem o sossegoininterrompido; mas eram sempre maiores e mais certos que cembaixo. Os frades que, na puercia da cidade, se tinham alojado nasoutras colinas, desciam muita vez, ou quando o exigia o sacroMinistrio, ou quando o governo precisava da espada cannica, e

    as ocasies no eram raras; mas geralmente em derredor de suascasas no ia soar a voz da labutao civil. Lus Garcia podia dizer amesma coisa; e, porque nenhuma vocao apostlica o incitava aabrir a outros a porta de seu refgio, podia dizer-se que fundara umconvento em que ele era quase toda a comunidade, desde prior atnovio.No momento em que comea esta narrativa, tinha Lus Garciaquarenta e um anos. Era alto e magro, um comeo de calva, barba

    rapada, ar circunspecto. Suas maneiras eram frias, modestas ecorteses; a fisionomia um pouco triste. Um observador atento podiaadivinhar por trs daquela impassibilidade aparente ou contrada asrunas de um corao desenganado. Assim era; a experincia, que foiprecoce, produzira em Lus Garcia um estado de apatia e cepticismo,com seus laivos de desdm. O desdm no se revelava por nenhumaexpresso exterior; era a ruga sardnica do corao. Por fora, havias a mscara imvel, o gesto lento e as atitudes tranqilas. Algunspoderiam tem-lo, outros detest-lo, sem que merecesse execrao

    nem temor. Era inofensivo por temperamento e por clculo. Como umclebre eclesistico, tinha para si que uma ona de paz vale mais que

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    uma libra de vitria. Poucos lhe queriam deveras, e essesempregavam mal a afeio, que ele no retribua com afeio igual,salvo duas excees. Nem por isso era menos amigo de obsequiar.Lus Garcia amava a espcie e aborrecia o indivduo. Quem recorria a

    seu prstimo, era raro que no obtivesse favor. Obsequiava sem zelo,mas com eficcia, e tinha a particularidade de esquecer o benefcio,antes que o beneficiado o esquecesse.A vida de Lus Garcia era como a pessoa dele, taciturna e retrada.No fazia nem recebia visitas. A casa era de poucos amigos; havia ldentro a melancolia da solido. Um s lugar podia chamar-se alegre;eram as poucas braas de quintal que Lus Garcia percorria e regavatodas as manhs. Erguia-se com o sol, tomava do regador, dava de

    beber s flores e hortalia; depois, recolhia-se e ia trabalhar antesdo almoo, que era s oito horas. Almoado, descia a passo lento at repartio, onde, se tinha algum tempo, folheava rapidamente asgazetas do dia. Trabalhava silenciosamente, com a fria serenidade domtodo. Fechado o expediente, voltava logo para casa, detendo-seraras vezes em caminho. Ao chegar a casa, j o preto Raimundo lhehavia preparado a mesa, uma mesa de quatro a cinco palmos, sobre a qual punha o jantar, parco em nmero, medocre na espcie,mas farto e saboroso para um estmago sem aspiraes nemsaudades. Ia dali ver as plantas e reler algum tomo truncado, at quea noite caa. Ento, sentava-se a trabalhar at s nove horas, que eraa hora do ch.No somente o teor da vida tinha essa uniformidade, mas tambm acasa participava dela. Cada mvel, cada objeto, ainda os nfimos,parecia haver-se petrificado. A cortina, que usualmente era corridaa certa hora, como que se enfadava se lhe no deixavam passar o are a luz, hora costumada; abriam-se as mesmas janelas e nuncaoutras. A regularidade era o estatuto comum. E se o homem amoldaraas coisas a seu jeito, no admira que amoldasse tambm o homem.Raimundo parecia feito expressamente para servir Lus Garcia. Eraum preto de cinqenta anos, estatura mediana, forte, apesar de seuslargos dias, um tipo de africano, submisso e dedicado. Era escravo elivre. Quando Lus Garcia o herdou de seu pai, no avultou mais oesplio, deu-lhe logo carta de liberdade. Raimundo, nove anos maisvelho que o senhor, carregara-o ao colo e amava-o como se fora seu

    filho. Vendo-se livre, pareceu-lhe que era um modo de o expelir decasa, e sentiu um impulso atrevido e generoso. Fez um gesto para

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    rasgar a carta de alforria, mas arrependeu-se a tempo. Lus Garciaviu s a generosidade, no o atrevimento; palpou o afeto do escravo,sentiu-lhe o corao todo. Entre um e outro houve um pacto que parasempre os uniu.s livre, disse Lus Garcia; vivers comigo at quando quiseres. Raimundo foi dali em diante um como esprito externo de seu senhor;pensava por este e refletia-lhe o pensamento interior, em todas assuas aes, no menos silenciosas que pontuais. Lus Garcia no davaordem nenhuma; tinha tudo hora e no lugar competente. Raimundo,posto fosse o nico servidor da casa, sobravalhe tempo, tarde, paraconversar com o antigo senhor, no jardinete, enquanto a noite vinhacaindo. Ali falavam de seu pequeno mundo, das raras ocorrnciasdomsticas, do tempo que devia fazer no dia seguinte, de uma ououtra circunstncia exterior. Quando a noite caa de todo e a cidadeabria os seus olhos de gs, recolhiam-se eles a casa, a passo lento, ilharga um do outro.Raimundo hoje vai tocar, no ? dizia s vezes o preto.Quando quiseres, meu velho.

    Raimundo acendia as velas, ia buscar a marimba, caminhava para ojardim, onde se sentava a tocar e a cantarolar baixinho umas vozesde frica, memrias desmaiadas da tribo em que nascera. O canto dopreto no era de saudade; nenhuma de suas cantilenas vinha afinadana clave pesarosa. Alegres eram, guerreiras, entusiastas; por fimcalava-se. O pensamento, em vez de volver ao bero africano,galgava a janela da sala em que Lus Garcia trabalhava e pousava

    sobre ele como um feitio protetor. Quaisquer que fossem asdiferenas civis enaturais entre os dois, as relaes domsticas os tinham feito amigos.Entretanto, das duas afeies de Lus Garcia, Raimundo era apenas asegunda; a primeira era uma filha.Se o jardim era a parte mais alegre da casa, o domingo era o dia maisfestivo da semana. No sbado, tarde, acabado o jantar, desciaRaimundo at Rua dos Arcos, a buscar a sinh moa, que estava

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    sendo educada em um colgio. Lus Garcia esperava por eles, sentado porta ou encostado janela, quando no era escondido em algumrecanto da casa para fazer rir a pequena. Se a menina o no via janela ou porta, percebia que se escondera e corria a casa, onde

    no era difcil dar com ele, porque os recantos eram poucos. Entocaam nos braos um do outro. Lus Garcia pegava dela e sentava-anos joelhos. Depois, beijava-a, tirava-lhe o chapelinho, que cobria oscabelos acastanhados e lhe tapava parte da testa rosada e fina;beijava-a outra vez, mas ento nos cabelos e nos olhos, os olhos,que eram claros e filtravam uma luz insinuante e curiosa.Contava onze anos e chamava-se Lina. O nome domstico era Iai.No colgio, como as outras meninas lhe chamassem assim, e

    houvesse mais de uma com igual nome, acrescentavam-lhe o apelidode famlia. Esta era Iai Garcia. Era alta, delgada, travessa; possuaos movimentos sbitos e incoerentes da andorinha. A bocadesabrochava facilmente em riso, um riso que ainda no toldavamas dissimulaes da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade.Longos e muitos eram os beijos trocados com o pai. Lus Garciapunha-a no cho, tornava a subi-la aos joelhos, at que consentiafinalmente em separar-se dela por alguns instantes. Iai ia ter com opreto.Raimundo, o que que voc me guardou?Guardei uma coisa, respondia ele sorrindo. Iai no capaz deadivinhar o que . uma fruta.No .Um passarinho?No adivinhou.Um doce?Que doce ?

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    No sei; d c o doce.Raimundo negaceava ainda um pouco; mas afinal entregava alembrana guardada. Era s vezes um confeito, outras uma fruta, um

    inseto esquisito, um molho de flores. Iai festejava a lembrana doescravo, dando saltos de alegria e de agradecimento. Raimundoolhava para ela, bebendo a felicidade que se lhe entornava dos olhos,como um jorro de gua pura. Quando o presente era uma fruta ouum doce, a menina trincava-o logo, a olhar e a rir para o preto, agesticular e a interromper-se de quando em quando:Muito bom! Raimundo amigo de Iai... Viva Raimundo!E seguia dali a mudar de roupa, e a visitar o resto da casa e o jardim.No jardim achava o pai j sentado no banco do costume, com umadas pernas sobre a outra, e as mos cruzadas sobre o joelho. Ia tercom ele, sentava-se, erguia-se, colhia uma flor, corria atrs dosinsetos. De noite, no havia trabalho para Lus Garcia; noite, comoo dia seguinte, era toda consagrada criana. Iai referia ao pai asanedotas do colgio, as puerilidades que no valem mais nem menosque outras da idade madura, as intriguinhas de nada, as pirraas decoisa nenhuma. Lus Garcia escutava-a com igual ateno queprestaria a uma grande narrativa histrica. Seu magro rosto austeroperdia a frieza e a indiferena; inclinado sobre a mesa, com os braosestendidos, as mos da filha nas suas, considerava-se o maisventuroso dos homens. A narrativa da pequena era como costumamser as da idade infantil: desigual e truncada, mas cheia de um coloridoseu. Ele ouvia-a sem interromper; corrigia, sim, algum erro deprosdia ou alguma reflexo menos justa; fora disso, ouvia somente. Pouco depois da madrugada todos trs estavam de p. O sol de SantaTeresa era o mesmo da Rua dos Arcos; Iai, porm, achava-lhealguma coisa mais ou melhor, quando o via entrar pela alcova dentro,atravs das persianas. Ia janela que dava para uma parte do jardim.Via o pai bebendo a xcara de caf, que aos domingos precedia oalmoo. s vezes ia ter com ele; outras vezes ele caminhava para ajanela, e, com o peitoril de permeio, trocavam os sculos dasaudao. Durante o dia, Iai derramava pela casa todas as sobrasde vida, que tinha em si. O rosto de Lus Garcia acendia-se de um

    reflexo de juventude, que lhe dissipava as sombras acumuladas pelotempo. Raimundo vivia da alegria dos dois. Era domingo para todos

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    trs, e tanto o senhor como o antigo escravo no ficavam menoscolegiais que a menina.Raimundo, dizia esta, voc gosta de santo de comer?Raimundo empertigava o corpo, abria um riso, e dando aos quadris eao tronco o movimento de suas danas africanas, respondiacantarolando:Bonito santo! santo gostoso!E santo de trabalhar?Raimundo, que j esperava o reverso, estacava subitamente, punhaa cabea entre as mos, e afastava-se murmurando com terror:Eh... eh... no fala nesse santo, Iai! no fala nesse santo! E santo de comer?Bonito santo! santo gostoso!E o preto repetia o primeiro jogo, depois o segundo, at que Iai,aborrecida, passava a outra coisa.No havia s recreio. Uma parte mnima do dia, pouco mais deuma hora, era consagrada ao exame do que Iai aprendera nocolgio, durante os dias anteriores. Lus Garcia interrogava-a, fazia-aler, contar e desenhar alguma coisa. A docilidade da meninaencantava a alma do pai. Nenhum receio, nenhuma hesitao;respondia, lia ou desenhava, conforme lhe era mandado ou pedido.Papai quer ouvir tocar piano? disse ela um dia; olhe, assim. E com os dedos na borda da mesa, executava um trecho musical,sobre teclas ausentes. Lus Garcia sorriu, mas um vu lhe empanouos olhos. Iai no tinha piano! Era preciso dar-lhe um, ainda comsacrifcio. Se ela aprendia no colgio, no era para tocar mais tarde

    em casa? Este pensamento enraizou-se-lhe no crebro e turbou oresto do dia. No dia seguinte, Lus Garcia encheu-se de valor, pegou

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    da caderneta da Caixa Econmica e foi retirar o dinheiro preciso paracomprar um piano. Eram da filha as poucas economias que ajuntava;o piano era para ela igualmente; no lhe diminua a herana.

    Quando no seguinte sbado, Iai viu o piano, que o pai lhe foimostrar, sua alegria foi intensa, mas curta. O pai abrira-o, ela acordouas notas adormecidas no vasto mvel, com suas mozinhas aindaincertas e dbeis. A um dos lados do instrumento, com os olhos nela,Lus Garcia pagava-se do sacrifcio, contemplando a satisfao dafilha. Curta foi ela. Entre duas notas, Iai parou, olhou para o pai,para o piano, para os outros mveis; depois descaiu-lhe o rosto, disseque tinha uma vertigem. Lus Garcia ficou assustado, pegou dela,chamou Raimundo; a criana afirmou que estava melhor, e

    finalmente que a vertigem passara de todo. Lus Garcia respirou; osolhos de Iai no ficaram mais alegres, nem ela foi to travessa comocostumava ser.A causa da mudana, desconhecida para Lus Garcia, era a penetraoque madrugava no esprito da menina. Lembrara-se ela,repentinamente, das palavras que proferira e do gesto que fizera, nodomingo anterior; por elas explicou a existncia do piano; comparou-o, to novo e lustroso, com os outros mveis da casa, modestos,usados, encardida a palhinha das cadeiras, rodo do tempo e dos psum velho tapete, contemporneo do sof. Dessa comparao extraiua idia do sacrifcio que o pai devia ter feito para condescender comela; idia que a ps triste, ainda que no por muito tempo, comosucede s tristezas pueris. A penetrao madrugava, mas a dor moralfazia tambm irrupo naquela alma at agora isenta da jurisdio dafortuna.Passou! Bem depressa os sons do piano vieram casar-se ao gorjeiode Iai e ao riso do escravo e do senhor. Era mais uma festa aosdomingos. Iai confiou um dia ao pai a idia que tinha de ser mestrede piano. Lus Garcia sorria a esses planos da meninice, to frgeis efugidios como suas impresses. Tambm ele os tivera aos dez anos.Que lhe ficara dessas primeiras ambies? Um resduo e nada mais.Mas assim como as aspiraes daquele tempo o fizeram feliz, erajusto no dissuadir a filha de uma ambio, alis inocente e modesta.Oxal no viesse a ter outras de mais alto vo! Demais, que lhe

    poderia ele desejar, seno aquilo que a tornasse independente e lhedesse os meios de viver sem favor? Iai tinha por si a beleza e a

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    instruo; podia no ser bastante para lhe dar casamento e famlia.Uma profisso honesta aparava os golpes possveis da adversidade.No se podia dizer que Iai tivesse talento musical: que importa? Paraensinar a gramtica da arte, era suficiente conhec-la.Resta dizer que havia ainda uma terceira afeio de Iai; era Mariadas Dores, a ama que a havia criado, uma pobre catarinense, paraquem s havia duas devoes capazes de levar uma alma ao Cu:Nossa Senhora e a filha de Lus Garcia. Ia ela de quando em quando casa deste, nos dias em que era certo encontrar l a menina, e iade So Cristovo, onde morava. No descansou enquanto no alugouum casebre em Santa Teresa, para ficar mais perto da filha de criao.Um irmo, antigo furriel, que fizera a campanha contra Rosas, era

    seu companheiro de trabalho.Tal era a vida uniforme e plcida de Lus Garcia. Nenhuma ambio,cobia ou peleja vinha toldar-lhe a serenidade da alma. A ltima dorsria que tivera foi a morte da esposa, ocorrida em 1859, meses antesde ir-se ele esconder em Santa Teresa. O tempo, esse qumicoinvisvel, que dissolve, compe, extrai e transforma todas assubstncias morais, acabou por matar no corao do vivo, no alembrana da mulher, mas a dor de a haver perdido. Importa dizerque as lgrimas derramadas nessa ocasio honraram a esposa morta,por serem conquista sua. Lus Garcia no casara por amor neminteresse; casara porque era amado. Foi um movimento generoso. Amulher no era de sua mesma ndole; seus espritos vinham depontos diferentes do horizonte. Mas a dedicao e o amor da esposaabriram nele a fonte da estima. Quando ela morreu, viu Lus Garciaque perdera um corao desinteressado e puro; consolou-o aesperana de que a filha havia herdado uma parcela dele.

    Assim vivia esse homem ctico, austero e bom, alheio s coisasestranhas, quando a carta de 5 de outubro de 1866 veio cham-lo aodrama que este livro pretende narrar.

    CAPTULO II

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    A hora aprazada era incmoda para Lus Garcia, cujos hbitos detrabalho mal sofriam interrupo. No obstante, foi Rua dosInvlidos.Valria Gomes era viva de um desembargador honorrio, falecidocerca de dois anos antes, a quem o pai de Lus Garcia devera algunsobsquios e a quem este prestara outros. No havia entre ela e LusGarcia relaes assduas ou estreitas; mas a viva e seu finadomarido sempre o tiveram em boa conta e o tratavam com muitocarinho. Defundo o desembargador, Valria recorrera duas ou trsvezes aos servios de Lus Garcia; contudo, era a primeira vez que ofazia com tamanha solenidade.Valria recebeu-o afetuosamente, estendendo-lhe a mo, aindafresca, apesar dos anos, que subiam de quarenta e oito. Era alta erobusta. A cabea, forte e levantada, parecia protestar pela altivez daatitude contra a moleza e tristura dos olhos. Estes eram negros, asobrancelha basta, o cabelo abundante, listrado de alguns fios deprata. Posto no andasse alegre nos ltimos tempos, estava naqueledia singularmente preocupada. Logo que entraram na sala, deixou-secair numa poltrona; caiu e ficou silenciosa alguns instantes. LusGarcia sentou-se tranqilamente na cadeira que ela lhe designou.Sr. Lus Garcia, disse a viva; esta guerra do Paraguai longa eningum sabe quando acabar. Vieram notcias hoje?No me consta.As de ontem no me animaram nada, continuou a viva depois deum instante. No creio na paz que o Lpez veio propor. Tenho medo

    que isto acabe mal.Pode ser, mas no dependende de ns...Por que no? Eu creio que chegado o momento de fazerem todasas mes um grande esforo e darem exemplos de valor, que nosero perdidos. Pela minha parte trabalho com o meu Jorge para quev alistar-se como voluntrio; podemos arranjar-lhe um posto dealferes ou tenente; voltar major ou coronel. Ele, entretanto, resiste

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    at hoje; no falta de coragem nem de patriotismo; sei que temsentimentos generosos. Contudo, resiste...Que razo d ele?Diz que no quer separar-se de mim.A razo boa.Sim, porque tambm a mim custaria a separao. Mas no se tratado que eu ou ele podemos sentir: trata-se de coisa mais grave, daptria, que est acima de ns.Valria proferiu estas palavras com certa animao, que a Lus Garciapareceu mais simulada que sincera. No acreditou no motivo pblico.O interesse que a viva mostrava agora em relao sorte dacampanha era totalmente novo para ele. Excludo o motivo pblico,algum haveria que ela no quisera ou no podia revelar. Justificariaele semelhante resoluo? No se atreveu a formular a suspeita e advida; limitou-se a dissuadi-la, dizendo que um homem de mais oude menos no pesaria nada na balana do destino, e desde que ao

    filho repugnava a separao era mais prudente no insistir. Valriaredargia a todas essas reflexes com algumas idias gerais acercada necessidade de dar fortes exemplos s mes. Quando foi precisovariar de resposta, declarou que entrava no projeto um pouco deinteresse pessoal.Jorge est formado, disse ela, mas no tem queda para a profissode advogado nem para a de juiz. Goza por enquanto a vida; mas osdias passam, e a ociosidade faz-se natureza com o tempo. Eu quisera

    dar-lhe um nome ilustre. Se for para a guerra, poder voltar coronel,tomar gosto s armas, segui-las e honrar assim o nome de seu pai. Bem; mas vejamos outra considerao. Se ele morrer? Valria empalideceu e esteve alguns minutos calada, enquanto LusGarcia olhava para ela, a ver se lhe adivinhava o trabalho interior dareflexo, esquecendo que a idia de um desastre possvel devia ter-lhe acudido, desde muito, e se no recuara diante dela, porque aresoluo era inabalvel.

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    Pensei na morte, disse Valria da a pouco; e, na verdade, antes aobscuridade de meu filho que um desastre... mas repeli essa idia. Aconsiderao superior de que lhe falei deve vencer qualquer outra. Em seguida, como para impedir que ele insistisse nas reflexesapresentadas antes, disse-lhe claramente que, diante da recusa deJorge, contava com o influxo de seus conselhos. O senhor nosso amigo, explicou ela; seu pai tambm foi nossoamigo. Sabe que um e outro sempre nos mereceram muitaconsiderao. Em todo caso, no quisera recorrer a outra pessoa. Lus Garcia no respondeu logo; no tinha nimo de aceitar aincumbncia e no queria abertamente recusar; procurava um meiode esquivar-se resposta. Valria insistiu por modo que eraimpossvel calar mais tempo.O que me pede muito grave, disse ele; se o Dr. Jorge der algumpeso a meus conselhos e seguir para a guerra, assumo uma porode responsabilidade, que no s me h de gravar a conscincia, como

    influir para alterar nossas relaes e diminuir talvez a amizadebenvola que sempre achei nesta casa. O obsquio que hoje exige demim, quem sabe se mo no lanar em rosto um dia como ato deleviandade?Nunca.Nesse dia, observou Lus Garcia sorrindo levemente, h de ser tosincera como hoje.Oh! o senhor est com idias negras! Eu no creio na morte; creios na vida e na glria. A guerra comeou h pouco e h j tanto heri!Meu filho ser um deles.No creio em pressentimentos.Recusa?No me atrevo a aceitar.

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    Valria ficou abatida com a resposta. Aps alguns minutos de silncio,ergueu-se e foi buscar o leno que deixara sobre um mvel, ao entrarna sala. Enxugou o rosto, e ficou a olhar para o cho, com um dos

    braos cados, em atitude meditativa. Lus Garcia comeou a refletirno modo de a dissuadir eficazmente. Seu cepticismo no o fazia duroaos males alheios, e Valria parecia padecer naquele instante,qualquer que fosse a sinceridade de suas declaraes. Ele quiseraachar um meio de conciliar os desejos da viva com a sua prprianeutralidade, o que era puramente difcil.Seu filho no criana, disse ele; est com vinte e quatro anos;pode decidir por si, e naturalmente no me dir outra coisa... Demais,

    duvidoso que se deixe levar por minhas sugestes, depois de resistiraos desejos de sua me.Ele respeita-o muito.Respeitar no era o verbo pertinente; atender fora mais cabido,porque exprimia a verdadeira natureza das relaes entre um e outro.Mas a viva lanava mo de todos os recursos para obter de Lus

    Garcia que a ajudasse em persuadir o filho. Como ele lhe dissesseainda uma vez que no podia aceitar a incumbncia, viu-a morder olbio e fazer um gesto de despeito. Lus Garcia adotou ento ummeiotermo:Prometo-lhe uma coisa, disse ele; irei sond-lo, discutir com ele osprs e os contras do seu projeto, e se o achar mais inclinado. . . Valria abanou a cabea.No faa isso; desde j lhe digo que ser tempo perdido. Jorge hde repetir as mesmas razes que me deu, e o senhor as aceitarnaturalmente. Se alguma coisa lhe mereo, se no morreu em seucorao a amizade que o ligou nossa famlia, peo-lhe que me ajudefrancamente neste empenho, com a autoridade de sua pessoa. Entrenisto, como eu mesma, disposto a venc-lo e convenc-lo. Faz meeste obsquio?Lus Garcia refletiu um instante.

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    Fao, disse ele frouxamente.Valria mostrou-se reanimada com a resposta; disse-lhe que fosse l

    jantar naquele mesmo dia ou no outro. Ele recusou duas vezes; masno pde resistir s instncias da viva, e prometeu ir no dia seguinte.A promessa era um meio, no s de pr termo insistncia da viva,mas tambm de encaminhar-se a saber qual era a mola secreta daao daquela senhora. A honra nacional era certamente o coloridonobre e augusto de algum pensamento reservado e menos coletivo.Lus Garcia abriu velas reflexo e conjeturou muito. Afinal noduvidava do empenho patritico de Valria, mas perguntava a simesmo se ela quereria colher da ao que ia praticar alguma

    vantagem especialmente sua.O corao humano a regio do inesperado, dizia consigo o cticosubindo as escadas da repartio.Na repartio soube da chegada de tristes notcias do Paraguai. Osaliados tinham atacado Curupaiti e recuado com grandes perdas: oinimigo parecia mais forte do que nunca. Supunha-se at que as

    propostas de paz no tinham sido mais do que um engodo parafortalecer a defesa. Assim, a sorte das armas vinha reforar osargumentos de Valria. Lus Garcia adivinhou tudo o que ela lhe diriano dia seguinte.No dia seguinte foi ele jantar Rua dos Invlidos. Achou a vivamenos consternada do que deveria estar, vista das notcias davspera, se porventura os sucessos da guerra a preocupassem tantocomo dizia. Pareceu-lhe at mais serena. Ela ia e vinha com um ar

    satisfeito e resoluto. Tinha um sorriso para cada coisa que ouvia, umcarinho, uma familiaridade, uma inteno de agradar e seduzir, queLus Garcia estudava com os olhos agudos da suspeita.Jorge, pelo contrrio, mostrava-se retrado e mudo. Lus Garcia, mesa do jantar, examinava-lhe a furto a expresso dos olhos tristese a ruga desenhada entre as sobrancelhas, gesto que indicava nele odespeito e a irritao. Na verdade, era duro enviar para a guerra umdos mais belos ornamentos da paz. Naqueles olhos no morava

    habitualmente a tristeza; eles eram, de costume, brandos e pacficos.Um bigode negro e basto, obra comum da natureza e do cabeleireiro,

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    cobria-lhe o lbio e dava ao rosto a expresso viril que este no tinha.A estatura esbelta e nobre era a nica feio que absolutamente podiaser militar. Elegante, ocupava Jorge um dos primeiros lugares entreos dndisda Rua do Ouvidor; ali podia ter nascido, ali poderia talvez

    morrer.Valria acertava quando dizia no achar no filho nenhum amor profisso de advogado. Jorge sabia muita coisa do que aprendera;tinha inteligncia pronta, rpida compreenso e memria vivssima.No era profundo; abrangia mais do que penetrava. Sobretudo, erauma inteligncia terica; para ele, o praxista representava o brbaro.Possuindo muitos bens, que lhe davam para viver farta, empregavauma partcula do tempo em advogar o menos que podia apenas o

    bastante para ter o nome no portal do escritrio e noAlmanaque deLaemmert. Nenhuma experincia contrastava nele os mpetos dajuventude e os arroubos da imaginao. A imaginao era o seu ladofraco, porque no a tinha criadora e lmpida, mas vaga, tumultuosa eestril. Era generoso e bom, mas padecia um pouco de fatuidade, quelhe diminua a bondade nativa. Havia ali a massa de um homemfuturo, espera que os anos, cuja ao lenta, oportuna e inevitvel,lhe dessem fixidez ao carter e virilidade razo.No foi alegre nem animado o jantar. Falaram a princpio de coisasindiferentes; depois Valria fez recair a conversao nas ltimasnotcias do Paraguai. Lus Garcia declarou que lhe no pareciam toms, como diziam as gazetas, sem contudo negar que se tratava deum srio revs. guerra para seis meses, concluiu ele.S?Esta pergunta foi a primeira palavra de Jorge, que at ento no fizeramais do que ouvir e comer. Valria tomou a outra ponta do dilogo,e confirmou a opinio de Lus Garcia. Mas o filho continuou a nointervir. Acabado o jantar, Valria ergueu-se; Lus Garcia fez omesmo; a viva, pousando-lhe a mo no ombro, disse em tomfamiliar e intencional:Sem cerimnia; eu volto j.

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    Uma vez ss os dois homens, Lus Garcia achou de bom aviso ir deponto em branco ao assunto que ali os reunira.No tem vontade de ir tambm ao Paraguai? perguntou ele logoque Valria desapareceu no corredor.Nenhuma. Contudo, acabarei por a.Sim?Mame no deseja outra coisa, e o senhor mesmo sei que dessaopinio.Uma resposta negativa roou os lbios de Lus Garcia; a tempo areprimiu, confirmando com o silncio a pia fraude de Valria. Tinhanas mos o meio de inutilizar o efeito do equvoco; era mostrar-seindiferente. Jorge distraia-se em equilibrar um palito na borda de umclix; o interlocutor, depois de olhar para ele, rompeu enfim a largapausa:Mas por que motivo cede hoje, depois de recusar tanto tempo? Jorge ergueu os olhos, fez-lhe um sinal e foram para o terrao. O senhor amigo velho de nossa casa, disse ele; posso confiar-lhetudo. Mame quer mandar-me para a guerra, porque no podeimpedir os movimentos do meu corao.Algum namoro, concluiu friamente Lus Garcia.Uma paixo.Est certo do que diz?Estou.No creio, tornou Lus Garcia depois de um instante.

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    Por que no? Ela conta com a distncia e o tempo, para matar umamor que supe no haver criado razes profundas.Lus Garcia dera alguns passos, acompanhado pelo filho de Valria;

    parou um instante, depois continuaram ambos a passear de um paraoutro lado. O primeiro refletia na explicao, que lhe pareceuverossmil, se o amor do rapaz era indigno de seu nome. Essapergunta no se animou a faz-la; mas procurou uma vereda tortuosapara ir dar com ela. Uma viagem Europa, observou Lus Garcia depois de curtosilncio, produziria o mesmo resultado, sem outro risco mais que... Recusei a viagem, foi ento que ela pensou na guerra. Mas se ela quisesse ir Europa, o senhor recusaria acompanh-la?No; mas mame detesta o mar; no viajaria nunca. possvelque, se eu resistisse at ltima, em relao guerra, ela vencessea repugnncia ao mar e iramos os dois...E por que no resistiu?Primeiramente, porque estava cansado de recusar. H ms e meioque dura esta luta entre ns. Hoje, vista das notcias do Sul, falou-me com tal instncia que cedi de uma vez. A segunda razo foi umsentimento mau mas justificvel. Escolho a guerra, afinal de quese alguma coisa me acontecer, ela sinta o remorso de me haverperdido.Lus Garcia parou e encarou silenciosamente o mancebo.Sei o que quer dizer esse olhar, continuou este; acha-me feroz, eeu sou apenas natural. O sentimento mau teve s um minuto dedurao. Passou. Ficoume uma sombra de remorso. No acusomame; sei as lgrimas que lhe vai custar a separao...Ainda tempo de recuar.O que est feito, est feito, disse Jorge erguendo os ombros.

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    Sabe que mais? Acho mau gosto dar a este negcio um desenlacepico. Que tem que fazer nisto a guerra do Paraguai? Vou sugerir-lheum meio de arranjar as coisas. Ceda metade somente; v Europa

    sozinho, volte no fim de dois ou trs anos...Jorge sorriu desdenhosamente.Seu conselho mostra a diferena de nossas idades, disse ele. Seeu fosse para a Europa, que sacrifcio faria pessoa a quem amo?Pelo contrrio, a sacrificada era ela. Eu ia divertir-me, passear, vercoisas novas, talvez achar novos amores. Indo guerra, diferente;sacrifico o repouso e arrisco a vida; alguma coisa. Separados,embora, no me negar sua estima...Sua estima? disse Lus Garcia admirado.No continuou; mas Jorge compreendeu, por aquela s palavra, a queclasse de mulheres ele supunha pertencer a eleita de seu corao.Fez um gesto; no se animou a dizer nada. Arrependeu-se talvez dehaver dito tanto. Sem ousar recomendar-lhe silncio, comeou a

    insinu-lo delicadamente; ttica escusada, porque Lus Garcia no erahomem de revelar o que se lhe confiava; e perigosa, porque faziacrescer as propores do mistrio. Lus Garcia sorriu interiormente aosentir a arte cautelosa de Jorge; e quando ela lhe pareceu enfadonha: Descanse, disse ele; no receie que eu v publicar seus amores.Repito-lhe o conselho: no se atire de cabea para baixo numaaventura sem fundo. Ir para a guerra muito nobre, mas h de serlevado de outros sentimentos. Um desacordo por motivo de namoro,

    no o Porto Alegre nem o Polidoro, um padre que lhe deve prtermo.Jorge sorriu com ar afvel, e despediu-se de Lus Garcia; foi dalivestir-se para ir ao teatro. Lus Garcia estava mais do que nuncaresoluto a deixar que os acontecimentos tivessem livre curso, semnenhuma interveno sua. Logo que Jorge saiu, disps-se a fazer omesmo, despedindo-se de Valria. Esta acompanhou-o at porta dasala.

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    No me diz nada? perguntou ela quando o viu prestes a transpor aporta.Que lhe hei de dizer?Falou a meu filho?Falei.Achou-o disposto?No digo que no.Mas de m vontade?No digo que sim.Valria sorriu com uma ponta de despeito.

    Vejo que este assunto o aborrece.Lus Garcia disse que no. Valria encostou-se ao portal.Ningum! exclamou ela. No tenho ningum a meu lado. S; ficareis. Sejamos francos, disse Lus Garcia; seu filho cede, mas cedeviolentado, e no vejo que se possa fazer dele um heri. Que motivoto forte a obriga a exigir desse moo um sacrifcio superior a suas

    posses?

    Valria no respondeu.Sei o motivo, disse ele da a um instante.Sabe?Suspeito; e se me permite ser franco, direi que o acho singular,

    pelo menos no h propores entre a causa e o efeito. Seu filho ama.

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    Trata-se de uma mulher de certa espcie? So correrias da mocidade,e as dele no so tais que faam escndalo, creio eu. Trata-se dealguma moa, cuja aliana lhe no parea aceitvel? Nada lhe direi atal respeito; mas reflita primeiro antes de o mandar ao Paraguai.Valria prendeu a mo direita de Lus Garcia entre as suas; refletiulongo tempo; depois disse com voz sumida:Suponha... que se trata... de uma senhora casada?Lus Garcia curvou a cabea com um gesto de assentimento. Comoseus olhos baixassem ao cho no pde ver no rosto da viva umaligeira cor que avermelhou e desapareceu. Se lha visse, se a fitasseimperiosamente, talvez a viva baixasse os olhos envergonhada dehaver mentido. Lus Garcia no viu nada. Calou-se, aprovou a vivae prometeu auxili-la.Era noite quando Lus Garcia saiu da casa de Valria. Ia aborrecidode tudo, da me e do filho, de suas relaes naquela casa, dascircunstncias em que se via posto. Galgando a ladeira a p, detendo-se de quando em quando a olhar para baixo, ia como apreensivo do

    futuro, supersticioso, tomado de temores intermitentes einexplicveis. No tardou a aparecer-lhe a luz da casa, e, da a pouco,a ouvir a cantilena solitria do escravo e as notas rudimentais damarimba. Eram as vozes da paz; ele apertou o passo e refugiou-sena solido.

    CAPTULO IIILus Garcia pouco trabalho teve no nimo de Jorge. A resoluo deste,uma vez declarada, no recuou mais. No desconhecia o moo que aempresa a que metia ombros era crespa de dificuldades. A guerra,sobretudo depois do desastre de Curupaiti, prometia durar muito; nohavia desnimo, e o governo era auxiliado eficazmente pelapopulao. Jorge obteve uma patente de capito de voluntrios.Vinte dias depois da conversa no terrao da Rua dos Invlidos,apresentou-se Jorge em Santa Teresa, fardado e pronto, de tal modo

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    porm que era ainda difcil separar o casquilho do militar. A mesmatesoura que lhe cortava os fraques, talhara a farda de capito. Trazia cintura uma banda vermelha, cujas pontas caam graciosamente aolado. Calava um botim reluzente, sobre o qual assentava a cala de

    fino pano. Inclinado levemente direita, o bon no lhedesconcertava o cabelo, penteado ao estilo de todos os dias; o bigodetinha as mesmas guias longas, agudas e lustrosas.Lus Garcia no pde furtar-se a um sentimento de pena, ao v-loentrar fardado e prestes a seguir para o Sul. Pareceu-lhe descobrirpor trs dele o perfil da morte, com o eterno sorriso sem lbios. Masesse sentimento de comiserao passou; lembrou-lhe logo a ltimapalavra da viva, e no pde deixar de conden-lo. Viu at, com certa

    repulsa, esse corao de vinte e quatro anos, que ia arriscar a vidaprpria, e talvez a de sua me, para no rejeitar um sentimento mau.Estou a seu gosto? perguntou Jorge com um ar de benvola ironia. H de estar melhor no fim da guerra, Sr. general, respondeu ooutro.General? Pode ser.

    Dizendo isto, Jorge entrou a falar de suas esperanas e futuros. Aimaginao comeava a dissipar a melancolia. Ele via j naquilo umaaventura romanesca e misteriosa; sentia-se uma ressurreio decavaleiro medievo, saindo a combater por amor de sua dama, castelopulenta e formosa que o esperaria na varanda gtica, com a almanos olhos e os olhos na ponte levadia. A idia da morte ou damutilao no vinha agitar-lhe ao rosto suas asas plidas e

    sangrentas. O que ele tinha diante de si eram os campos infinitos daesperana. Contudo, o momento era grave, e dificilmente podia oesprito esquivar-se reflexo intermitente. Alm disso, Jorge subiraa Santa Teresa com a resoluo de contar tudo a Lus Garcia, a fimde deixar um confidente austero e nico de seus amores; mas apalavra no se atrevia a sair do corao. Ou a idade do outro ou andole de suas relaes tolhia essa confidncia ntima; ainda mais doque uma e outra razo, havia naquele momento o gestosingularmente preocupado e duro de Lus Garcia. Jorge deu de mo

    ao projeto.

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    D-me o abrao de despedida, disse ele; embarco amanh.J amanh?Vim despedir-me do senhor.Lus Garcia considerou-o silenciosamente durante dois ou trsminutos; depois apertou-lhe as mos.V, disse; trabalhe pela terra; no se poupe a trabalhos, nem seexponha sem utilidade; em todo o caso, obedea disciplina, e nose esquea um s dia de sua me.Jorge saiu e desceu a passo largo e trmulo na direo da Rua de D.Lusa. A meio caminho parou, como se quisesse tomar outra direo;ergueu os ombros e prosseguiu. Ia mergulhado em si mesmo, e sdeu acordo ao parar diante de uma casa daquela rua.Antes de l entrar, vejamos quem eram os moradores.O defunto marido de Valria, no tempo em que advogava, tinha um

    escrevente, que, mais ainda do que escrevente, era seu homem deconfiana. Chamava-se o Sr. Antunes. Foram servios de certa ordemque os ligaram mais intimamente. A fortuna troca s vezes os clculosda natureza; uma e outra iam de acordo na pessoa daquele homem,nado e criado para as funes subalternas. Familiar com todas asformas da adulao, o Sr. Antunes ia do elogio hiperblico at osilncio oportuno. Tornou-se dentro de pouco, no s um escreventelaborioso e pontual, mas tambm, e sobretudo, um fac-totum dodesembargador, seu brao direito, desde os recados eleitorais at s

    compras domsticas, vasta escala em que entrava o papel deconfidente das entrepresas amorosas. Assim que, nunca lhe fezmngua a proteo do desembargador. Viu crescer-lhe o ordenado,multiplicaremse-lhe as gratificaes; foi admitido a comer algumasvezes em casa, nos dias comuns, quando no havia visitas decerimnia. Nas ocasies mais solenes era ele o primeiro que seesquivava. Ao cabo de trs anos de convivncia tinha consolidado asituao.

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    Justamente nesse tempo sucedeu morrer-lhe a mulher, de quem lheficou uma filha de dez anos, menina interessante, que algumas vezesvisitara a casa do desembargador. Este fez o enterro da me e pagouo luto da filha e do pai. O Sr. Antunes, que no era de extremas

    filosofias, tinha a convico de que debaixo do sol, nem tudo sovaidades, como quer o Eclesiastes, nem tudo perfeies, como opinao Doutor Pangloss; entendia que h larga ponderao de males ebens, e que a arte de viver consiste em tirar o maior bem do maiormal. Morta a mulher, alcanou do desembargador um enxovalcompleto para fazer entrar a filha num colgio, visto que at entonada aprendera, e j agora no podia deix-la sozinha em casa. Odesembargador dera o enxoval; algumas vezes pagou o ensino; asvisitas amiudaram-se; a criana, que era bonita e boa, entrou manso

    e manso no corao de Valria que a recebeu em casa, no dia em quea pequena concluiu os estudos.Estela era o seu nome, tinha ento dezesseis anos. Pouco antesfalecera o desembargador. O Sr. Antunes recebeu dois golpes em vezde um: o de o ver morrer, e o de no o ver testar. As aneurismas tmdessas perfdias inopinveis. A fim de emendar a mo fortuna, o paide Estela concentrou na viva a ateno que at ento repartira entreela e o marido, fato que alis decorria da prpria obrigao moral emque se achava para com a famlia do desembargador. Estela devia aessa famlia educao e carinho; podia talvez ir a dever-lhe um dote,um marido e considerao. Quem sabe? Talvez o corao de Jorgevinculasse as duas famlias. Esta ambio afagava-a o Sr. Antunes nomais profundo de sua alma.Jorge estava prestes a concluir os estudos em So Paulo; ia nametade do quarto ano. Vindo Capital durante as frias, achou-sediante de uma situao inesperada; a me esboara um projeto decasamento para ele. A noiva escolhida era ainda parenta remota deJorge. Chamava-se Eullia. Tinha dezenove anos na certido debatismo e trinta no crebro. Era uma moa sem iluses nem vaidades,talvez sem paixes, dotada de juzo reto e corao simples, e sobretudo isso uma beleza sem mcula e uma elegncia sem espavento.Uma prola! dizia Valria quando insinuou ao filho a conveninciade casar com Eullia. A prola, entretanto, no parecia ansiosa deornar a fronte de ningum. Quando Valria fez as primeiras

    sondagens no corao da jovem parenta, achou ali uma guatranqila, sem curso nem recurso de mars. Tratou de saber se

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    alguma brisa lhe roara a asa, e descobriu que no; ento chamouem seu auxlio o siroco e o pampeiro. No foi difcil a Eullia perceberos desejos da viva, nem resistiu quando chegou a entend-la. Arazo disse-lhe que o casamento era aceitvel; esperou. Valria ficou

    satisfeita com o resultado, e deu-se pressa em sondar as disposiesde Jorge, quando ele voltou no fim do ano.Graas sua arte de assediar as vontades alheias, Valria alcanoudo filho uma resposta condicional. Era j alguma coisa. O motivo dainsistncia da viva era complexo; eram as qualidades da parenta, aafeio grande que lhe votava, o receio de morrer subitamente e aconfiana que tinha em si mesma para conhecer e eleger caracteres.Durante o ltimo ano da Faculdade, Jorge pensou algumas vezes no

    casamento como se pensa num projeto remoto; mas, proporoque o tempo corria, o corao ia-se-lhe tornando retrado e medroso.Uma vez formado, deu de mo idia; no teve a franqueza de odeclarar me, e Valria esperou confiadamente que o corao dofilho dissesse noutra lngua aquilo que ela j lhe havia dito na sua. Para conhecer exatamente o motivo da repulsa de Jorge em relaoa uma moa, cujas qualidades deviam tentar qualquer outro, convmno esquecer que essas qualidades eram justamente as mais avessas ndole do filho de Valria. No bastava ser elegante e bonita,discreta e mansa; era preciso alguma coisa mais, que exatamentecorrespondesse imaginao dele; faltava-lhe um gro deromanesco.A isto acrescia um sentimento novo, que se apossou dele, ao cabo detrs semanas depois da chegada ao Rio de Janeiro. A vista quotidianade Estela produziu em Jorge uma impresso forte. Posto vivessem na

    mesma casa, era difcil acharem-se nunca a ss, porque a filha doescrevente passava todo o tempo ao p da viva; circunstncia queno teve a virtude de mudar o curso aos acontecimentos. Nopodendo passar de palavras gerais e estranhas ao que lhe quiseraconfiar, Jorge falava-lhe com os olhos, linguagem que a moa noentendia, ou fingia no entender. A imperturbvel seriedade de Estelafoi um aguilho mais, no menos cruel que a gentileza de suasformas, e certo ar de resoluo que lhe transparecia do rosto quietoe plido.

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    Plida era, mas sem nenhum tom de melancolia asctica. Tinha osolhos grandes, escuros, com uma expresso de virilidade moral, quedava beleza de Estela o principal caracterstico. Uma por uma, asfeies da moa eram graciosas e delicadas, mas a impresso que

    deixava o todo estava longe da meiguice natural do sexo.Usualmente, trazia roupas pretas, cor que preferia a todas as outras.Nu de enfeites, o vestido punha-lhe em relevo o talhe esbelto, elevadoe flexvel. Nem usava nunca traz-lo de outro modo, sem embargo dealgum dixe ou renda com que a viva a presenteava de quando emquando; rejeitava de si toda a sorte de ornatos; nem folhos, nembrincos, nem anis. Ao primeiro aspecto dissera-se um Digenesfeminino, cuja capa, atravs das roturas, deixava entrever a vaidadeda beleza que quer afirmar-se tal qual , sem nenhum outro artifcio.

    Mas, conhecido o carter da moa, eram dois os motivos umsentimento natural de simplicidade, e, mais ainda, a considerao deque os meios do pai no davam para custosos atavios, e assim nolhe convinha afeioar-se ao luxo.Por que no pe os brincos que mame lhe deu a semana passada?perguntouJorge a Estela, um dia, em que havia gente de fora a jantar.Os presentes mais queridos guardam-se, respondeu ela olhandopara a viva.Valria apertou-lhe a ponta do queixo entre o polegar e o indicador:Poeta! exclamou sorrindo. Voc no precisa de brincos para serbonita, mas v p-los, que lhe ficam bem.Foi a primeira e ltima vez que Estela os ps. A inteno era patente

    demais para noser notada, e Jorge no esqueceu nem a respostada moa nem o constrangimento com que obedeceu. No podiasupor-lhe ingratido, porque via a afeio com que Estela tratava ame. Em relao a ele no parecia haver afeio igual, mas haviacertamente respeito e considerao, rara vez familiaridade, e aindaassim, uma familiaridade enluvada, um ar de visita de pouco tempo.Jorge comeou a achar mais agradvel a casa do que a rua; e asnoites, quando no havia pessoas de fora, passava-as volta de uma

    mesa, lendo ou jogando com as duas, ou vendo-as trabalhar,enquanto contava anedotas da academia, lia as correspondncias do

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    Paraguai e de Buenos Aires, ou simplesmente alguma pgina deromance. Nessa vida, meio patriarcal, as horas corriam depressa, todepressa, que ele no as sentia. Ao cabo de cinco a seis semanas,fez-se ele seu prprio confessor, examinou a conscincia, descobriu

    l dentro alguma coisa que no era a fantasia sensual do primeiroinstante, e, longe de absolver-se, condenou-se crua penitncia deabsteno. Voltou aos antigos hbitos e deixou os seres domsticos.Mas a aplicao do remdio, por mais sincera que fosse, j no podiamuito contra a ao do mal. Estela freqentava-lhe tenazmente amemria; e na rua, no teatro, nas assemblias a que ia, o perfilsevero da moa vinha meter-se entre ele e a realidade. Se pudessedeixar de a ver, a convalescena no era ainda difcil; mas como fugir lembrana de uma mulher cuja figura lhe aparecia durante algumas

    horas de cada dia? Demais, a sonmbula que ele tinha no crebrovinha auxiliar a fatalidade das circunstncias. No fim de um ms, andole do sentimento havia mudado: era mais pura; mas o sentimentono parecia disposto a esvair-se: era mais violento.Como o Sr. Antunes levasse a filha, uma noite, a visitar pessoa desua amizade, Jorge aproveitou a circunstncia para insinuar a Valriaa convenincia de restituir Estela a seu pai.Por qu? perguntou a viva.Sempre um tropeo, uma pessoa estranha metida entre ns, replicouJorge. No lhe nego que tem boas qualidades; mas... uma pessoaestranha.Que importa, se me dou bem com ela? Conheo-a desde pequena;

    uma companhia melhor do que qualquer outra. Mas por que telembras disso agora?Estive pensando na responsabilidade que pesa sobre ns. Se fossenossa parenta, v, no se podia dispensar a obrigao; mas nosendo, creio que era melhor libertarmo-nos.Descansa; quando for tempo, caso-a. O que no admito algummarido de pouco mais ou menos. H de ser pessoa que a merea.

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    No sabes o que vale aquela menina. No s boa, tem certaelevao de sentimentos; nunca me desatendeu e nunca me adulou. Jorge confirmou com a cabea e no disse mais nada. O que acabava

    de fazer no passava de uma tentativa sincera, mas frouxa, paraarredar Estela da casa; era o imposto pago conscincia. Quite comela, entregou-se aos acontecimentos, confessando a si mesmo que operigo no era to grave, nem o remdio to urgente; finalmente,que ele era homem.No meio de semelhante situao, que sentia ou que pensava Estela?Estela amava-o. No instante em que descobriu esse sentimento em simesma, pareceulhe que o futuro se lhe rasgava largo e luminoso;mas foi s nesse instante. To depressa descobriu o sentimento,como tratou de o estrangular ou dissimular, tranc-lo ao menos nomais escuso do corao, como se fora uma vergonha ou um pecado. Nunca! jurou ela a si mesma.Estela era o vivo contraste do pai, tinha a alma acima do destino. Eraorgulhosa, to orgulhosa que chegava a fazer da inferioridade uma

    aurola; mas o orgulho no lhe derivava de inveja impotente ou deestril ambio; era uma fora, no um vcio, era o seu broquel dediamante, o que a preservava do mal, como o do anjo de Tassodefendia as cidades castas e santas. Foi esse sentimento que lhefechou os ouvidos s sugestes do outro. Simples agregada ouprotegida, no se julgava com direito a sonhar outra posio superiore independente; e dado que fosse possvel obt-la, lcito afirmarque recusara, porque a seus olhos seria um favor, e a sua taa degratido estava cheia. Valria, que tambm era orgulhosa,

    descobrira-lhe essa qualidade, e no lhe ficou querendo mal; aocontrrio, veio a apreci-la melhor.Pois o orgulho de Estela no lhe fez somente calar o corao, infundiu-lhe a confiana moral necessria para viver tranqila no centromesmo do perigo. Jorge no percebera nunca os sentimentos queinspirara; e, por outro lado, nunca viu a possibilidade de os inspirarum dia. Estela s lhe manifestava o frio respeito e a fria dignidade.Um dia, vagando uma casa de Valria no caminho da Tijuca,determinou-se a viva a ir examin-la, antes de a alugar outra vez.

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    Foi acompanhada do filho e de Estela. Saram cedo, e a viagem foialegre para a moa, que pela primeira vez ia aquele arrabalde.Quando a carruagem parou, supunha Estela que mal tivera tempo desair da Rua dos Invlidos.A casa precisava de alguns reparos; um mestre-de-obras, que j aliestava, acompanhou a famlia de sala em sala e de alcova em alcova.S ele e Valria falavam; Estela no tinha voto consultivo e Jorgeparecia indiferente. Que lhe importava a ele o reboco de uma paredeou o conserto de um soalho? Ele gracejava, ria ou sussurrava aoouvido de Estela um epigrama a respeito do mestre-de-obras, cujaprosdia era execrvel. Estela, que sorria com ele, cerrava entretantoo gesto aos epigramas.De sala em sala, chegaram a uma pequena varanda, onde umacircunstncia nova os deteve algum tempo. Numa das extremidadesda varanda havia um pombal velho, onde eles foram achar, esquecidoou abandonado, um casal de pombos. As duas aves, aps vinte equatro horas de solido, pareciam saudar as pessoas que aliapareciam repentinamente.Coitadinhos! disse Estela logo que entrou na varanda.Valria prestou um minuto de ateno, talvez meio, e seguiu a ver acasa. Estela ficara a olhar para os dois pombos, e no a viu sair.Quer lev-los? disse a voz de Jorge.A moa voltou-se e respondeu que no. Contudo, continuou ela, era bom d-los a algum para nomorrerem fome. So to bonitos!Mas por que no os h de levar a senhora mesma?Vou pedir ao mestre que os tire dali, disse ela dando um passopara dentro.No preciso: eu vou tir-los.

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    Estela recusou, mas o bacharel resolvera e ia satisfazer ele prprio odesejo da moa. O pombal no ficava ao alcance da mo; era precisotrepar ao parapeito da varanda, crescer na ponta dos ps e estendero brao. Ainda assim, precisaria contar com a boa vontade dos

    pombos. Jorge trepou ao parapeito. Se perdesse o equilbrio poderiacair ao cho da chcara; para evit-lo, Jorge lanou a mo esquerdaa um ferro que havia na coluna do canto, e que o amparou; depoisesticou o corpo e alcanou com a mo o pombal. Um dos pombosficou logo seguro; o outro, a princpio arisco, foi colhido depois dealgum esforo. Estela recebeu-os; Jorge saltou ao cho.A Sra. D. Valria, se visse isto, havia de ralhar, disse Estela.Grande faanha! respondeu Jorge sacudindo com o leno as mose a aba do fraque.Podia cair.Mas no ca; foi um risco que passou. So bonitinhos, no so?continuou ele apontando para os pombos que Estela tinha entre asmos.

    A moa respondeu com um gesto e deu alguns passos, a fim de ir tercom a viva. Jorge deteve-a, metendo-se entre ela e a porta.No se v embora, disse ele. Que ? perguntou Estela erguendo tranqilamente os grandesolhos lmpidos.Disfarada!Estela baixou silenciosamente a cabea e buscou dar outra volta paraentrar na sala ao p; Jorge, porm, interceptou-lhe de novo ocaminho.Deixe-me passar, disse ela sem clera nem splica. Jorge recuara at a porta, nica das trs que estava aberta. Eraarriscado o que fazia; mas, alm de que Valria e o mestre estavam

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    no pavimento superior, ele ouvia-lhes os passos, perderanaquela ocasio toda a lucidez de esprito. Era deserto o lugar, enaturalmente seria longo o tempo de que poderia dispor para lhe dizertudo. Mas os lbios ficaram cerrados alguns instantes, enquanto os

    olhos diziam a eloqncia da paixo mal contida e prestes a irromper.No insistiu Estela, mas ficou diante dele, quieta e sem arrogncia,como esperando ser obedecida. Jorge quisera-a suplicante oudesvairada; a tranqilidade feria-lhe o amor-prprio, fazendo-lhe verque o perigo era nenhum, e revelando, em todo caso, a mais duraindiferena. Quem era ela para o afrontar assim? Era a segunda vezque formulava essa pergunta; tinha-a feito nas primeiras auroras dapaixo. Desta vez a resposta foi deplorvel. Cravando os olhos em

    Estela, disse com voz trmula, mas imperiosa: No h de sair daqui, sem me dizer se gosta de mim. Vamos;responda! No sabe o que lhe pode custar esse silncio? No obtendo resposta, continuou depois de alguma pausa: animosa! Saiba que posso vir a odi-la e que talvez j a odeio;

    saiba tambm que posso tirar vingana de seus desprezos, e chegareia ser cruel, se for necessrio.Estela suspirou apenas, e foi encostar-se ao parapeito, a olhar para achcara. Era sua inteno no irrit-lo, com a resposta seca e m quelhe ditava o corao, e esperar que Valria descesse. Entretanto, naposio em que ficara tinha as costas voltadas para Jorge,circunstcia que no era intencional, mas que pareceu a este umsimples meio de lhe significar o seu desdm. A irritao de Jorge foi

    grande. Aps uns dois ou trs minutos de silcio, Jorge caminhou nadireo do parapeito, onde estava Estela, com a cabea inclinada, abeijar a cabea dos pombos, que tinha encostados ao seio. Deteve-se, sem que a moa mudasse de posio. Contemplou-a ainda uminstante, e se Estela olhasse para ele veria que a expresso dos olhosera de respeitosa ternura e nada mais.Esse instante, porm, voou depressa, e com ele a considerao.Inclinando-se para a moa, Jorge falou de um modo que nem a

    educao nem a ndole, mas s o despeito explicava:

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    Por que h de gastar, com esses animais, uns beijos que podemter melhor emprego?Estela estremeceu toda e ergueu para o moo uns olhos que fuzilavamde indignao. J no estava plida, mas lvida. Estupefata, no sabiaque dissesse ou fizesse, e infelizmente no sabia tambm que apergunta de Jorge, por mais ofensiva que lhe parecesse, no eraainda a mxima injria. No era; Jorge tinha uma nuvem diante desi, atravs da qual no podia ver nem o seu decoro pessoal nem adignidade da mulher amada; via s a mulher indiferente. Lanou-lheas mos cabea, puxou-a at si e antes que ela pudesse fugir ougritar, encheu-lhe a boca de beijos.Soltos com o movimento, os pombos esvoaaram sobre a cabea deambos, e foram pousar outra vez na casinha de pau, onde nenhumafatalidade moral os condenava quele amor sem esperana, quelaclera sem dignidade.Estela sufocara um gemido e cobrira o rosto com as mos. Ouviam-se as vozes de Valria e do mestre, que se aproximavem; Jorge teve

    um instante de incerteza e hesitao; mas a reao operara-se, e,alm disso, urgia apagar os vestgios daquela cena, de maneira queos no visse a viva.A vem mame, disse ele baixinho a Estela; no tive culpa noque fiz, porque gosto muito da senhora.Estela voltou-se para fora e enxugou o rosto; da a pouco entraramValria e o mestre. Este saiu logo depois, tendo ajustado as obras que

    era indispensvel fazer na casa. Valria irritada com a vista dosestragos que encontrou, criticava o desleixo dos inquilinos. S depoisdos primeiros instantes reparou que nenhum dos dois lhe respondianada. Jorge parecia acanhado e Estela triste. Posto houvesseenxugado as lgrimas, Estela tinha o rosto desfeito e murchos osbelos olhos. Jorge no ousava olhar para a me nem para Estela;olhava para a ponta dos botins, onde ficara um pouco da calia doparapeito; tinha as mos nas costas e estava arrimado a um portal.Valria reparou na atitude dos dois; mas como possua a qualidade

    de dissimular as impresses, no alterou nem o gesto nem a voz. Osolhos que nunca mais os deixaram.

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    Da a nada meteram-se no carro. Era tarde. A viagem foi quaseinteiramente silenciosa; pelo menos, s Valria disse algumaspalavras. Chegando Rua dos Invlidos, a viva suspeitava que

    alguma coisa havia entre os dois e grave. Todo aquele dia meditounos meios de conhecer a natureza e os pormenores da situao, enada achou melhor do que interrogar diretamente um deles. Jorgesara de casa logo depois e no voltou para jantar; Estela no sorriuem todo esse dia e quase no falou.No foi preciso interrog-la. Logo na seguinte manh, acabando delevantar-se, entrou-lhe Estela na alcova, e pediu alguns minutos deateno. Exps-lhe a necessidade de voltar para casa; estava moa,

    devia ir prestar ao pai os servios que ele precisaria de algum e tinhao direito de exigir da filha. No era ingratido, acrescentava; levariadali saudades eternas; voltaria muitas vezes; seria sempre obedientee grata. Cedia somente necessidade de acompanhar o pai. Estepedido confirmava a suspeita de Valria, mas s esclarecia metadeda situao. A retirada de Estela era um meio de fugir a Jorge ou delhe falar mais livremente? Valria tratou de perscrutar o corao damoa, dizendo-lhe que a razo dada era insuficiente e que algumacausa oculta a movia; depois, recordoulhe a amizade que lhe tinha ea confiana a que Estela no devia faltar.Vamos l, disse ela; confessa tudo.Estela afirmou que nada mais havia; mas, insistindo a viva,respondeu curvando a cabea, o que importava meia confisso.Valria lutou ainda muito tempo; empregou a brandura e a intimao,mas a moa no cedeu mais nada.Bem, disse a viva; faa-se a tua vontade.

    Foi assim que Estela, ao cabo de algum tempo de residncia na casade Valria, regressou casa do pai, na Rua de D. Lusa. O Sr. Antunesficou desorientado com a notcia; disse que vivia perfeitamente s;achou pouco decoroso e menos justo o procedimento de Estela, emrelao viva do desembargador; gastou largos conceitos, que lheno aproveitaram, porque Estela no recuou da resoluo, nem a

    viva tentou dissuadi-la.

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    A separao no valia nada ou valia coisa pior; fez recrudescer o amorde Jorge, por isso mesmo que entre um e outro rasgava espao imaginao. Duas foras reagiram no corao do rapaz; o obstculo,que tornava mais intenso o amor, e o remorso que o fazia mais

    respeitoso. Nenhum ressentimento lhe ficara da resoluo de Estela;sentia-se culpado, e mais ainda, sentia-se vtima da fuga da moa.Nem tudo isso seria efeito somente da paixo; cabia uma parte deinfluncia severidade do carter de Estela, que acabou por incutirno esprito de Jorge idia diferente da que ele a seu respeito fazia.Valria descobriu a pouco e pouco a ineficcia do remdio queaceitara; estava certa da paixo do filho, e via que, longe de expirar,entrava pela vida adiante, menos estouvada talvez, mas no menossincera e profunda; soube que Jorge freqentava a casa da Rua de D.

    Lusa; estremeceu pelo futuro e cogitou no modo de estrangular asesperanas em flor.Ou ela j o ama ou pode vir a am-lo, dizia consigo.Valria encarava os dois desenlaces possveis da situao, se a moalhe amasse o filho; ou seria a queda de Estela, que a viva estimavamuito, ou o consrcio dos dois, soluo que lhe repugnava aossentimentos, idias e projetos. Jamais consentiria em semelhantealiana. Urgia pronto remdio.Voltou energicamente ao projeto de casar o filho com Eullia, e ointimou a obedecer-lhe. Jorge comeou resistindo e acaboudissimulando; mas o artifcio no iludiu a me. Valria chamou logoem seu auxlio a jovem parenta. Eullia, que tivera tempo de refletir,francamente lhe disse que no estava disposta a ser sua nora, porqueJorge no a amaria nunca; e, conquanto no visse no casamento uma

    pgina de romance, entendia que a antipatia ou total indiferena erao mais frouxo dos vnculos conjugais.Desamparada desse lado, a viva cogitou ento a viagem Europa;e, quando ele lha recusou, recorreu guerra do Paraguai. No semcusto lanou mo desse meio, violento para ambos; mas, uma vezadotado, luziu-lhe mais a vantagem do que lhe negrejou o perigo.Assim foi que de um incidente, comparativamente mnimo, resultaraaquele desfecho grave, e de um caso domstico saa uma ao

    patritica.

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    CAPTULO IVEra noite fechada, quando Jorge chegou casa de Estela. O Sr.Antunes estava porta e talvez contava com a visita; recebeu-o comalvoroo e tristeza.Quatro meses haviam decorrido depois da cena da Tijuca, e duranteesse tempo Jorge fora muitas vezes casa da Rua de D. Lusa. Nolhe fugira Estela nem o maltratara; usou a mesma serenidade e friezade outro tempo, falando-lhe pouco, certo, mas com tamanhaiseno, que parecia no ter havido entre eles o menor dissentimento.Pela sua parte, Jorge forcejava por apagar a lembrana daqueleepisdio, havendo-se com o respeito e considerao que lhe pareciambastantes para resgatar a estima perdida. s vezes ficavam a ss nasala, porque o Sr. Antunes inventava algum motivo que o obrigassea eclipses parciais, com o fim nico, dizia ele consigo, de ajudar anatureza. Mas sobretudo nessas ocasies, alis propcias, notranspunha Jorge a linha que a si mesmo traara, no lhe sussurrava

    uma nica palavra amorosa, no lhe deitava um s olhar que apudesse fazer corar ou reagir. Qualquer aluso cena da Tijuca, aindade submisso, seria prejudicial causa de Jorge; ele evitava esse errotrivial, nada dizendo que prxima ou remotamente pudesse lembr-la moa. Falavam pouco e de coisas indiferentes, como pessoas denenhuma intimidade.Foi s quando perdeu de todo a esperana de a vencer pelos meiosordinrios, que ele aceitou a proposta de se alistar no exrcito. No dia

    em que lhes deu a notcia, a impresso no pai e na filha foi profunda,mas diversa, porque o pai ficou totalmente consternado e morto, aopasso que a filha sentiu a alma respirar livremente, e se uma vozsecreta e medrosa lhe disse: no o deixes ir; outra mais dominadorae forte lhe bradou que a partida era a liberdade e a paz. A viagem, adistncia, o tempo, a natureza das ocupaes militares deviamarrancar ao moo um sentimento que Estela temia fosse origem dedissenses domsticas, e que em todo o caso a abatia a seus prpriosolhos.

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    ento amanh? perguntou o Sr. Antunes fazendo entrar o jovemcapito.Amanh.Estela recebeu-o como das outras vezes, sem embargo do pai, queparecia apostado em lhe tornar amargos esses ltimos instantes. Atristeza do Sr. Antunes era mortal. Ele pertencia falange daquelesespritos que, atravs dos anos e ainda nos regelos do inverno,conservam as calcinhas da primeira idade, e para quem a vida temsempre o aspecto dos castelos de cartas que construram na infncia.Uma vez penetrado da idia de casar a filha com o bacharel, viveudela, como se a vira praticada. O incidente da guerra no lhedesvendou a realidade da situao, mas pareceu-lhe que adiava o seudesejo, e bastava a constern-lo. Agora que via fardado o filho deValria, prestes a embarcar no dia seguinte, creu deveras naseparao. Aps meia hora de conversa, o Sr. Antunes retirou-sealguns minutos da sala; ia ver charutos.Tome um dos meus, disse Jorge.Nada; os seus so muito fortes.

    Nunca os charutos de Jorge padeceram semelhante acusao da partedo Sr. Antunes, que fumava regularmente os do filho como haviafumado os do pai. Estela ficou humilhada com a resposta e a ao.Jorge que estava de p, junto a uma mesa, viu sair o pai de Estela, eficou a olhar para o cho. A moa cravou os olhos no trabalho queestava fazendo.Jorge ergueu enfim os olhos e pousou-os na moa, cuja beleza lhepareceu naquela noite ainda mais lmpida e espiritual, justamenteporque ele comeava a v-la atravs do nimbo da saudade. Elaatendia ao trabalho com uma quietao laboriosa. As mos, quepodiam emparelhar com as mais puras, moviam as agulhas semaparente comoo nem tremor. Ao mancebo j no humilhava esseaspecto indiferente e digno; podia medir, em si mesmo, a diferenadas situaes, o caminho vencido, desde as primeiras idias a respeitode Estela. Mas os minutos corriam e o silncio acanhava-o cada vez

    mais; enfim, resolveu romp-lo, e romp-lo de modo que tirasse

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    daquele minuto ou a salvao ou o naufrgio da vida que iaempreender. Deu dois passos para Estela.Talvez no nos vejamos mais, disse ele.Por qu? disse Estela sem levantar os olhos.

    Posso ficar enterrado no Paraguai.Sua me no gostaria de ouvir isso.Seguiram-se ainda dois minutos. Jorge ps toda a alma nestas

    palavras, ditas em voz baixa e triste:

    Embarco amanh para o Sul. No o patriotismo que me leva, oamor que lhe tenho, amor grande e sincero, que ningum poderarrancar-me do corao. Se morrer, a senhora ser o meu ltimopensamento; se viver, no quero outra glria que no seja a de mesentir amado. Uma e outra coisa dependem s da senhora. Diga-me;devo morrer ou viver?Estela tinha erguido a cabea; quando ele acabou, achava-se de p.Fitou-o alguns instantes com uma expresso muda e fria. A vaidadeda mulher podia contentarse daquela solene reparao, e perdoar;mas o orgulho de Estela venceu, e no deu lugar a nenhum outrosentimento de justia ou de humanidade. Um jeito irnico torceu-lheo lbio, donde saiu esta palavra m e desdenhosa:O senhor um tonto.Quando o pai voltou sala, instantes depois, Jorge estava com umadas mos no encosto de uma cadeira, plido como um defunto. Estelafora at porta da alcova da sala, resolvida a fechar-se por dentro.O Sr. Antunes no tinha observao; mas, ao ver o rosto dos dois,no era muito difcil adivinhar que alguma coisa se passara entre eles.Adivinhou-o; contudo, no atinara bem o que seria, se uma cena dedolorosa despedida, se outra coisa menos propcia a seus clculos.

    Foi ao jovem capito e pediu-lhe que se sentasse; mas Jorge declarouque ia sair e despediu-se. Sem encarar Estela, estendeu-lhe a mo,

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    que ela apertou com o ar mais tranqilo do mundo. O pai espreitavauma lgrima furtiva, um gesto disfarado, qualquer coisa que falasseem favor de suas esperanas. Nada; Estela no baixou orosto nemescondeu os olhos. Jorge, sim; no obstante o esforo que fazia,

    tremia-lhe a mo ao apertar a do escrevente.O Sr. Antunes acompanhou-o at a porta. Ali, antes de a abrir, quisabraar o moo oficial.D-me essa triste honra, disse ele; creia que estes braos so deamigo.Jorge deixou-se ir, sem entusiasmo; mas quando sentiu o corpo dopai de Estela, pareceu-lhe que abraava uma parte da moa, eapertou-o fortemente ao peito. Esta manifestao lisonjeouextremamente o outro; chegou a comov-lo.Conte comigo, murmurou ele; fico para ajud-lo.Jorge ouviu-o, apertou-lhe maquinalmente as mos, recebeu umabrao ltimo e atirou-se rua.Intolervel a dor que no deixa sequer o direito de argir a fortuna.O mais duro dos sacrifcios o que no tem as consolaes daconscincia. Essa dor padecia-a Jorge; esse sacrifcio ia consum-lo.No foi dali para casa; no ousaria encarar sua me. Durante aprimeira hora que se seguiu sada da casa de Estela, no pde regeros pensamentos; eles cruzavam-lhe o crebro sem ordem nemdeduo. O corao batia-lhe rijo na arca do peito; de quando em

    quando o corpo era tomado de calefrios. Ia despeitado, humilhado,com um dente de remorso no corao. Quisera de um s gestoeliminar a cena daquela noite, quando menos apag-la da lembrana.As palavras de Estela retiniam-lhe ao ouvido como um silvo de ventocolrico; ele trazia no esprito a figura desdenhosa da moa, o gestosem ternura, os olhos sem misericrdia. Ao mesmo tempo, lembrava-lhe a cena da Tijuca, e alguma coisa lhe dizia que essa noite era adesforra daquela manh. Ora sentia-se odioso, ora ridculo.

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    Tua me quem tem razo, bradava uma voz interior; ias descera uma aliana indigna de ti; e se no soubeste respeitar nem a tuapessoa nem o nome de teus pais, justo que pagues o erro indocorrer a sorte da guerra. A vida no uma gloga virgiliana, uma

    conveno natural, que se no aceita com restries, nem se infringesem penalidade. H duas naturezas, e a natureza social to legtimae to impediosa como a outra. No se contrariam, completam-se; soas duas metades do homem, e tu ias ceder primeira, desrespeitandoas leis necessrias da segunda.Quem tem razo s tu, dizia-lhe outra voz contrria, porque essamulher vale mais que seu destino, e a lei do corao anterior esuperior s outras leis. No ias descer; ias faz-la subir; ias emendar

    o equvoco da fortuna; escuta a voz de Deus e deixa aos homens oque vem dos homens.Jorge caminhava assim, levado de sensaes contrrias, at queouviu bater meianoite e caminhou para casa, cansado e opresso.Valria esperava-o sem haver dormido. Essa dedicao silenciosa,oculta, vulgar nas mes, natural naquela vspera de uma separaoacerba e longa, foi como um blsamo ao corao dolorido do rapaz.Foi tambm um remorso. Pungiu-lhe a conscincia ao ver queesperdiara algumas horas longe da criatura, a quemverdadeiramente ia deixar saudades, nica pessoa que pediria a Deuspor ele. Valria adivinhara onde estaria o filho, e tremia de medo proporo que as horas passavam, receosa de que, amando-o Estela,um e outro houvessem subtrado a sua ventura ao jugo das leissociais, indo refugiar-se em algum ignorado recanto. Pensou isso, efraqueou, e arrependeu-se, duvidando de si e da retido de seus atos.No duvidava da natureza do mal; mas no excedia a ele o remdioescolhido? Supondo que esse pensamento era a sua primeira punio,reagiu fortemente, coligindo as energias abatidas e dispersas e voltoua ser a mulher que era, com todas as suas fortes qualidades naturaisou contradas. Demais, a que viria o arrependimento, se era tarde?O filho entrou com as feies recompostas, mas tristes. Valriarecebeu-o sem nenhuma expresso de censura ou mgoa. Nada lhedisse; ele pouco falou e despediram-se sem expanso, aquela ltimanoite que ia o moo dormir sob o teto de seus pais.

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    A noite foi para ele aflita e melanclica. Quase inteira gastou-a eminvestigar a vida que ia acabar, em dar busca aos papis, queimar ascartas dos amigos, repartir algumas prendas, e finalmente emescrever disposies testamentrias e cartas a pessoas ntimas. Perto

    das quatro horas deitou-se; s sete estava de p. Valria havia-se-lhe antecipado. Algumas pessoas foram despedir-se dele eacompanhar a me no solene momento da despedida. Entre essasfigurava o pai de Estela, cuja tristeza, que era sincera, trazia umamscara ainda mais triste.Veio enfim o momento da despedida. Valria dominara-se at ondepode; mas o ltimo instante concentrava tantas dores, que eraimpossvel resistir-lhe. A organizao moral da viva era forte, mas a

    resistncia fora prolongada, e a vontade gastou-se nesse esforo detodos os dias. Quando soou o instante definitivo da separaorebentaram dos olhos as lgrimas, no tumultuosas, cortadas devozes e gemidos, mas dessas outras que retalham silenciosamente asfaces, resto de uma dignidade que cede a custo lei da natureza. Elaestendeu os braos, ainda formosos, sobre os ombros do filho; nessapostura contemplou-o algum tempo; depois beijou-o e apertou-oestreitamente ao corao.Vai, meu filho, disse com voz firme. Eu fico rogando a Deus por ti;Deus bom e te restituir a meus braos. Serve a tua ptria, elembra-te de tua me!Foram as ltimas palavras. Jorge no as ouviu; tinha o espritoprostrado e surdo. Chorou tambm, menos silenciosamente queValria, mas as mesmas lgrimas aflitas. Adeus, querida mame! disse ele arrancando-se enfim de seusbraos.Saiu; Valria no o viu sair; dera costas a todos e foi lastimar naalcova seu voluntrio infortnio.Pouco tempo depois, perdendo de vista a cidade natal, sentiu Jorgeque dobrara a primeira lauda de seu destino, e ia encetar outra,escrita com sangue. O espetculo do mar abateu-o ainda mais:

    alargava-se-lhe a solido at o infinito. Os poucos dias da viagem

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    desfiou-os nessa atonia moral que sucede s catstrofes. Enfim,aportou a Montevidu, seguindo dali ao Paraguai.A segunda viagem, as gentes estranhas, as novas coisas, o

    movimento do teatro da guerra, produziram nele saudveltransformao. O esprito elstico e mbil sacudiu as sombras depesar que o enoiteciam, e, uma vez voltado o rosto para o lado doperigo, comeou de enxergar, no a morte obscura ou ainda gloriosa,mas o triunfo e o laureado regresso. Bebido o primeiro hausto dacampanha, Jorge sentiu-se homem. A hora das frivolidades acabara;a que comeava era a do sacrifcio austero e diuturno. Ia encarartrabalhos no sabidos, expor-se a perigos inopopinveis; mas iaresoluto e firme, com a fronte serena e clara e o lume da confiana

    aceso no corao.

    CAPTULO VAs primeiras cartas de Jorge foram todas me. Eram longas ederramadas, entusisticas, descuidosas e at pueris. Descontada a

    escassa poro de realidade que podia haver nelas, ficava um clculo,que o corao de Valria compreendeu; era adoar-lhe a ausncia edissipar-lhe as apreenses.Cedo se familiarizou Jorge com a vida militar. O exrcito, acampadoem Tuiuti, no iniciava operaes novas; tratava-se de reunir oselementos necessrios para prosseguir a campanha de modo seguroe decisivo. No havendo nenhuma ao grande, em que pudesseprovar as foras e amestrar-se, Jorge buscava as ocasies de algum

    perigo, as comisses arriscadas, cujo xito dependesse de espiritoatrevido, sagacidade e pacincia. Esse desejo captou-lhe a simpatiados chefes imediatos.O coronel que o comandava atentou nele; sentiu-lhe a alma juvenilatravs do olhar brando e repousado. Ao mesmo tempo observouque, no meio dos gozos fceis e mltiplos do acampamento,convertido pela inao em povoado de recreio, Jorge conservava umretraimento monacal, um casto horror de tudo o que pudesse diverti-

    lo de curar das armas, ou somente de pensar nelas. O coronel era

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    homem de seuofcio; amava a guerra pela guerra; morreu talvez denostalgia no regao da paz. Era bravo e rspido. O que lhe destoou aprincpio na pessoa de Jorge, foi o alinho e um resto de seusademanes de sala. Jorge, entretanto, sem perder desde logo o jeito

    da vida civil, foi criando com o tempo a crosta de campanha. O desejode trabalhar, de arriscar-se, de temperar a alma ao fogo do perigo,trocou os sentimentos do coronel, que entreviu nele um bomcompanheiro de armas, e ao fim de pouco tempo procurou distingui-lo.Posto que Jorge falasse do coronel nas cartas que escrevia me,no o dava como amigo seu, nem tinha amigos no acampamento, ouse os tinha no os considerava tais. Ouvia confidncias de muitos,animava as esperanas de uns, consolava as penas de outros, nunca

    abria porm a porta do corao curiosidade transeunte. Devia serentretanto interessante uma pgina somente da vida daquele militar,jovem, bonito, abastado, que no ia ao teatro nem aos saraus doacampamento, que ria poucas vezes e mal, que s falava da guerra,quando falava de alguma coisa.Um dia, um major do Cear foi ach-lo sentado em um resto decarreta intil, lanado em stio escuso, ora a olhar para o horizonte,ora a traar com a ponta da espada uma estrela no cho.Capito, disse o major, parece que voc est vendo estrelas aomeio-dia?Jorge sorriu do gracejo, mas no deixou de continuar, nos demaisdias, a traar estrelas no cho ou a procur-las nas campinas do Cu.Os oficiais, arrastados pela simpatia, no lhe ficavam presos pelaconvivncia; Jorge era, no s taciturno, mas desigual, ora dcil, ora

    rspido, muitas vezes distrado e absorto. Era distrado, sobretudo,quando recebia cartas do Rio de Janeiro, entre as quais rara vezacontecia que no viesse alguma do Sr. Antunes. O pai de Estelaregava com a gua salobra de seu estilo a esperana que no perdera.As suas cartas eram epitalmios disfarados. Falava muito de si, emuito mais da filha, cuja alma, dizia ele, andava singularmente tristee acabrunhada. Jorge resistia ao desejo de falar tambm de Estela;mais de uma vez o nome da moa lhe caa dos bicos da pena; ele oriscava logo, assim como riscava qualquer frase que pudesse parecer

    alusiva aos seus sentimentos; as que escrevia ao pai da moa eramsecas, sem especial interesse, polidas e frias.

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    Um dia, porm, antes de meado o ano de 1867, no pde resistir necessidade de segredar o amor a algum ou proclam-lo aos quatroventos do cu. Ningum havia ao p dele que merecesse a

    confidncia; Jorge alargou os olhos e lembrouse de Lus Garcia, nicapessoa estranha a quem confiara metade do segredo que havia levadopara a guerra. Os coraes discretos so raros; a maioria no degavies brancos que, ainda feridos, voam calados, como diz a trova;a maioria das pegas, que contam tudo ou quase tudo.J nesse tempo o corao de Jorge padecera grande transformao.O amor, sem minguar de intensidade, mudara de natureza,convertendo-se em uma espcie de adorao mstica, sentimento

    profundo e forte, que parecia respirar atmosfera mais alta que a doresto da criao. Ele mesmo o disse na carta a Lus Garcia, sem lhedenunciar o nome da pessoa, nem nenhuma circunstncia quepudesse p-lo na pista da realidade; exigiu-lhe absoluto silncio econtou-lhe o que sentia:No importa saber quem , disse ele; o essencial saber que amoa mais nobre criatura do mundo, e o triste que no somente nosou amado, mas at estou certo de que sou aborrecido. Minha me iludiu-se quando sups que meu amor achara eco emoutro corao. Talvez desistisse de me mandar ao Paraguai, sesoubesse que esta paixo solitria era o meu prprio castigo. Era; jo no . A paixo veio comigo apesar do que lhe ouvi na vspera deembarcar; e se no cresceu, porque no podia crescer. Mastransformou-se. De criana tonta, que era, fez-se homem de juzo.Uma crise, algumas lguas de permeio, poucos meses de intervalo,

    foram bastantes a operar o milagre.

    No sei se a verei mais, porque uma bala pode por termo a meusdias, quando eu menos o esperar. Se a vir, ignoro os sentimentoscom que ela me receber. Mas de um ou de outro modo, este amormorrer comigo, e o seu nome ser a ltima palavra que h de sairde meus lbios.Meu amor no sabe j o que seja impacincia ou cime ou

    exclusivismo: uma f religiosa, que pode viver inteira em muitoscoraes. Talvez o senhor no me compreenda. Os homens graves

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    ficam surdos a estas sutilezas do corao. Os frvolos no asentendem. Eu mesmo no sei explicar o que sinto, mas sinto algumacoisa nova, uma saudade sem esperana, mas tambm semdesespero: o que me basta.Jorge releu o escrito, e ora o achava claro demais, ora obscuro.Hesitou ainda algum tempo; enfim, dobrou a carta, fechou-a eremeteu-a para o Rio de Janeiro.Quando a resposta lhe chegou s mos, preparava-se o exrcito paradeixar Tuiuti. Jorge estava todo entregue aos cuidados da guerra, asonhar batalhas, a acutilar mentalmente os soldados de Lpez. Aresposta de Lus Garcia dizia pouco ou nada do objeto da carta deJorge; compunha-se quase toda de conselhos e reflexes, dadas emlinguagem sbria e medida, reflexes e conselhos relativos quaseexclusivamente aos deveres de homem e de soldado.Jorge esperava aquilo mesmo; conhecia, ainda que pouco, o gnioseco e glido de Lus Garcia. Contudo, ficou momentaneamentedesapontado e triste. Seria certo que nenhum corao simpatizavacom seus secretos infortnios ou suas venturas solitrias? Ao cabo delargos meses de separao, nem Estela pensaria nele, nem ele achavapessoa com quem partisse o po das saudades, ltimo alimento deum amor sem cnjuge. A conscincia da solido moral abateu-o uminstante; esvaiu-se-lhe toda a fora acumulada durante aquelesmeses, e a alma caiu de bruos.Poucos dias depois operou-se a marcha de Tuiuti e Tuiu-Cu, a quese seguiu uma srie de aes e movimentos, em que houve muitapgina de Plutarco. S ento pde Jorge encarar o verdadeiro rosto

    guerra, a cujo princpio no assistira; figurou em mais de uma jornadaherica, correu perigos, mostrou-se valoroso e paciente. O coroneladorava-o; sentia-se tomado de admirao diante daquele mancebo,que combatia durante a batalha e calava depois da vitria, quecomunicava o ardor aos soldados, no recuava de nenhuma empresa,ainda a mais arriscada, e a quem uma estrela parecia proteger comsuas asas de luz.Notou ele uma vez, em um dos combates mortferos de dezembro de

    1868, ano e meio depois da carta de Lus Garcia, que a temeridadedo mancebo parecia ir alm dos limites do costume, e que em vez de

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    um homem que combatia, era ele um homem que queria morrer. Afortuna salvou-o. Findo o combate, recolhidos os feridos, repousadosos corpos, o coronel foi ter com ele na barraca, e achou-o tristementequieto, com os olhos inchados e parados. O coronel no reparou

    nisso; entrou a felicit-lo pelo comportamento que tivera, ainda queum pouco excessivo. Jorge tinha-se respeitosamente erguido e olhavapara o coronel sem dizer palavra. Este encarou-o e viu lhe sinais deabatimento.Que diabo tem voc, capito?Nada, respondeu o moo.Recebeu ontem cartas do Rio de Janeiro?Uma: de minha me.Est boa?De perfeita sade.Nesse caso...O coronel parou e refletiu; depois continuou:J sei o que .O que ! exclamou Jorge procurando sorrir.H de fazer-se, continuou o coronel; a coisa est a caminho, h defazer-se, no lhe digo mais nada.E bateu-lhe no ombro, com um gesto que tanto podia dizer:sossegue, capito, como: parabns, senhor major. Jorgeentendeu esse trocadilho gesticular, e apertou as mos do coronel,agradecendo-lhe, no o posto que lhe anunciava, mas a afeio quelhe tinha. O coronel encarou-o paternalmente alguns minutos.Subir! No sonham com outra coisa, rosnava ele consigo. E saiu.

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    Jorge ficou s, acendeu um cigarro, que no pde fumar at o fim.Depois sentouse, desabotoou a farda, tirou uma carta, abriu-a e releualgumas linhas do fim. A carta era de Lus Garcia. Dava-lhe notcias

    de sua me, que, por motivos de doena, fora tomar guas a Minas,e rematava com estas palavras assombrosas:... Resta-me dizer-lhe, se em alguma coisa lhe pode interessar minhavida, que sbado passado contra segundas npcias. Minha mulher a filha do Sr. Antunes. Sua me serviu-nos de madrinha.Com os olhos fitos nessas poucas linhas, Jorge parecia alheio a tudomais. O papel, recebido na vspera, estava amarrotado, como se lhepassara pelas mos durante um ano. Olhava, relia e no podiaentender; quando chegava a entender, no podia acreditar. Ocasamento de Estela era a seu ver um absurdo; mas, aps osintervalos de dvida, a realidade apossava-se dele. A razo mostrava-lhe que semelhante notcia devia ser certa. No fim de dois dias, tinhaele compreendido algumacoisa do silncio de sua me: o motivo era,sem dvida, o mesmo que a impelira a mand-lo ao Paraguai. Nuncalhe falara de Estela, nem do casamento de Lus Garcia, silnciocalculado para de todo extinguir em seu corao os derradeirosmurmrios de um amor sem eco.Jorge sentiu ento um fenmeno prprio de tais crises, ummovimento de dio a todo o gnero humano, desde sua me at oseu inimigo. Tornou-se descorts, violento, deliberadamente mau:efeito transitrio, ao qual sucedeu um abatimento profundo. Feridoda a dias em Lomas Valentinas, retirou-se por alguns meses doexrcito, cujas operaes s continuaram depois de meado o ano

    seguinte. Jorge teve parte nas jornadas de Piribebu e Campo Grande,no j na qualidade de capito, mas na de major, cuja patente lhe foiconcedida depois de Lomas Valentinas. No fim do ano estava tenente-coronel, comandava um batalho e recebia os abraos de seu antigocomandante, contente de o ver sagrado heri.Um acontecimento inesperado e desastroso veio ainda golpe-locruelmente, logo depois de maro de 1870, quando, acabada aguerra, estava ele em Assuno. Valria falecera. Lus Garcia lhe deu

    essa triste notcia, que ele antes adivinhou do que leu, porque as

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    ltimas cartas j lhe faziam pressentir o lgubre desenlace. Jorgeadorava a me.Se s a contragosto viera para a guerra, no menos certo que esta

    o cobrira de louros, e que ele os quisera depositar no regao deValria. O destino decidiu por outro modo, como se quisessecontrastar cada um de seus favores fazendo-lhe sangrar o corao.No fim de outubro volveu ao Rio de Janeiro. Tinham passado quatroanos justos. Penetrando a barra e descortinando a cidade natal, Jorgecomparava os tempos, as angstias e as esperanas da partida coma glria e o abatimento do regresso. No se sentia feliz nem infeliz,mas nesse estado mdio, que a condio vulgar da vida humana.Comparava-se ao mar daquela manh, nem borrascoso nem quieto,mas levemente empolado e crespo, to prestes a adormecer de todo,como a crescer e arremessar-se praia. Que aragem sonolenta ouque tufo destruidor, viria roar por ele a asa invisvel? Jorge no operscrutou. Trazia os olhos no passado e no presente; deixou aotempo os casos do futuro.

    CAPTULO VIAntes de irmos direito ao centro da ao, vejamos por que evoluodo destino se operou o casamento de Estela.Poucos poderiam supor, nos fins de 1866, que a campanha seprotrairia ainda cerca de quatro anos. O clculo do General Mitre,relativo aos trs meses de Buenos Aires a Assuno, tinha j cado,

    certo, no abismo das iluses histricas. Proclamaes so loterias; afortuna as faz sublimes ou vs. A do general argentino, que era juma afirmao errada, exprimiu contudo, no seu tempo, a convicodos trs povos. Do primeiro embate com o inimigo, viu-se que acampanha seria rija e longa; a iluso desfez-se; ficou a realidade, quenem por isso encaramos com rosto aflito. No obstante, era difcilpresumir, em outubro de 1866, que a guerra chegasse at maro de1870. Supunha-se que um esforo ingente bastaria a repararCurupaiti, a derrubar Humait, a vencer o ditador, no nos trs meses

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    do General Mitre, mas em muito menos tempo do que viria a ser narealidade.Isto posto, no admira que Valria receasse a cada instante a

    terminao da guerra e a pronta volta do filho. Se tal coisaacontecesse, ela teria dado um golpe intil, e o fogo podia renascerdas cinzas mal apagadas. Valria preferia as solues radicais. Umavez arredado o filho, viu a necessidade de aniquilar as ltimasesperanas, e o mais seguro meio era casar Estela. Assimprocedendo, satisfaria tambm a afeio que tinha moa, afeioque nunca lhe diminura. Sabia que entre Estela e o pai haviacontrastes morais de difcil conciliao. Cada um deles falava lnguadiferente, no podiam entender-se nunca, sobretudo (dizia ela

    consigo) na escolha de um consorte.Dois meses depois do embarque de Jorge, Valria mandou chamar oSr. Antunes a Santa Teresa, onde tinha uma casa de vero. O recadofoi escrito, circunstncia que lhe deu certa solenidade. Nunca atento a viva lhe escrevera. O Sr. Antunes leu e releu o bilhete,mostrou-o duas ou trs vezes filha, esteve tentado de mostr-lo aovizinho fronteiro. Enquanto se vestia, p-lo sobre a mesa, lanando-lhe a furto os olhos, pesando-lhe de cor as expresses corteses,espremendo-as, dissecando-as. Vestido, guardou-o cuidadosamentena algibeira. Na rua, separou-se de um importuno dizendoenfaticamente aonde ia. Quanto ao motivo do recado, no atinavaqual fosse, nem teve muito tempo para isso. Cogitou, entretanto, esups que se tratava de algum obsquio que ela lhe ia encomendar.Era obsquio, e no lho pedia a viva; prestava-o, e no demoroumuito em dizlo. Ao cabo de dez palavras, pediu-lhe licena para

    dotar Estela.No quisera faz-lo, sem o seu consentimento, concluiu ela; porisso o mandei chamar.Do mais nfimo a que um homem haja baixado, a natureza pode faz-lo grave, ainda que por um s minuto. Esse minuto teve-o o pai deEstela. Imvel e sem fala a princpio; depois, ainda sem fala, mas noj imvel, o Sr. Antunes revelou em seu rosto, alis vulgar, umacomoo digna. A dignidade, porm, expirou com o silncio. Quando

    ele abriu a boca para agradecer a prova de afeio que a viva lhedava filha, a alma readquiriu o trejeito habitual. V