lupus

Upload: sibely

Post on 10-Jan-2016

216 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

descreve sobre a doença do lupus

TRANSCRIPT

  • RELATOS DE CASOS

    plano diagnstico e teraputicoproposto pelo mdico hospitalar,bem como sobre prognstico eincapacidade, oferecendo-se aindaoportunidade para o reforo dealgumas medidas teraputicas nofarmacolgicas.Relata-se o caso de uma mulher de27 anos com um sndrome febrilprolongado que a levou a recorrervrias vezes a consultas de urgn-cia (no centro de sade e no hospi-tal) e a ser duas vezes internada paraestudo. O diagnstico de LES foi feitoapenas no segundo internamento,aps trs meses de evoluo doquadro e na sequncia de estudoefectuado nos Cuidados de SadePrimrios.Inscrita no Centro de Sade (CS) dasua rea desde h cinco anos, noqual, inclusive, vigiou parte da suagravidez, a doente manteve, desde oincio do quadro e nos meses se-

    guintes ao diagnstico, contacto fre-quente com o seu mdico de famlia(MF), partilhando apreenses, pro-curando conselho e levantandoquestes sobre o LES.Com a apresentao do caso, pre-tende-se, assim, rever as diversasquestes que o LES, enquanto enti-dade clnica rara na consulta deMedicina Geral e Familiar (MGF),pode levantar, nomeadamente: diag-nstico de suspeio, estudo com-plementar inicial, apoio ao doenterecm-diagnosticado, medidas tera-puticas no farmacolgicas e com-plicaes e incapacidades possveis.

    ARF, sexo feminino, 27 anos, recep-cionista/vendedora em loja deroupa, natural de Frana, ondeviveu at aos 22 anos. Desde ento,

    Rev Port Clin Geral 2006;22:445-451 445

    Um caso de lpus nocentro de sade

    *Assistente de Medicina Geral e FamiliarCentro de Sade da Senhora da Hora Unidade

    Local de Sade de Matosinhos

    MNICA GRANJA*

    INTRODUO

    OLpus EritematosoSistmico (LES) umadoena que, pela suacomplexidade e gravi-

    dade, implicando sofisticados meiosdiagnsticos e teraputicos, seinsere na rea de actuao doscuidados hospitalares. Porm, o seuprocesso diagnstico pode seriniciado a nvel dos Cuidados deSade Primrios, nomeadamenteperante doentes com queixas inex-plicveis de dois ou mais rgos ousistemas. Ainda, pelas suas maioresacessibilidade e relao de proximi-dade, o mdico de famlia pode serquestionado pelo doente recm--diagnosticado com LES sobre o

    RESUMOO Lpus Eritematoso Sistmico (LES) uma doena que, pela sua complexidade e gravidade, se insere na rea de actuao dos cuidados hospitalares. Porm, o seu

    diagnstico pode ser iniciado a nvel dos Cuidados de Sade Primrios, podendo o mdicode famlia vir a ser questionado pelo doente com LES sobre os planos diagnstico e

    teraputico, prognstico e incapacidade.Relata-se o caso de uma mulher de 27 anos que se apresenta com um sndrome febril

    prolongado e cujo diagnstico de LES foi feito na sequncia de estudo efectuado nosCuidados de Sade Primrios. Manteve, nos meses seguintes ao diagnstico, contacto

    frequente com o seu mdico de famlia, partilhando apreenses, procurando conselho, e levantando questes sobre o LES.

    Com a apresentao do caso, pretende-se rever as questes que esta entidade clnica(rara) pode levantar na consulta de Medicina Geral e Familiar, nomeadamente: diagnstico

    de suspeio, estudo complementar inicial, apoio ao doente recm-diagnosticado, medidasteraputicas no farmacolgicas e complicaes e incapacidades possveis.

    Palavras-chave: lpus eritematoso sistmico, cuidados de sade primrios

    ABSTRACTBecause of its complexity and severity, systemic lupus erithematosus (SLE) is typically ahospital-managed disease. However, diagnosis can be initiated in primary health care,and the family physician may be questioned by the patient with LES on the diagnosticapproach, the therapeutic plan, the prognosis and associated disability. The case of a 27 year-old woman, presenting with fever of unknown origin and to whomSLE was diagnosed on the basis of the investigations started up in primary care isdescribed. A frequent contact with her family doctor was kept in the months after thediagnosis, the patient sharing apprehensions, looking for advice, and questionning about SLE.With this case, the author intends to review the questions that this rare clinical entity canraise in Family Medicine: suspicion diagnosis, initial complementary study, support to thejust-diagnosed patient, non-pharmacological measures and possible complications and disabilities associated with the disease.

    Keywords: systemic lupus erithematosus, primary health care

    DESCRIO DO CASO

  • RELATOS DE CASOS

    hemoculturas, urocultura, copro-culturas, serologias de hepatite, s-filis, sida, salmonelose, vrus Epstein--Barr, vrus citomeglico e doenade Lyme, anticorpos anti-nuclea-res, factor reumatide, radiografiapulmonar e ecografia abdominal(alm das transaminases, dadesidrogenase lctica e da repetiodas anlises requisitados em Maio),realizando-se ainda de imediatouma prova de Mantoux (2 unidades).No chega a fazer os exames pedi-dos pois, no final desse mesmo dia,reinicia febre. Recorre de novo aoSASU onde, perante a histria e osresultados analticos de que era por-tadora, referenciada ao servio deurgncia hospitalar (SU).

    5 a 20 de JulhoNo SU realiza anlises que revelamanemia sobreponvel j detectada,acompanhada agora de ligeira leu-cocitose, com neutrofilia, e de umaPCR de 5,98 mg/dL (Quadro I).Realiza tambm radiografia torcica(que foi normal) e fica internada.

    446 Rev Port Clin Geral 2006;22:445-451

    reside em Custias, concelho deMatosinhos, frequentando a con-sulta do seu actual MF. Casada ecom uma filha de dois anos, encon-tra-se na fase 2 do ciclo familiar deDuvall, enquadrando-se, a nvel so-cio-econmico, na classe III deGraffar. Dos seus antecedentes,salienta-se: Pai e av paterna diabticos Apendicectomia aos 18 anos Diabetes gestacional insulino-tra-tada e reclassificada no ps-partocomo tolerncia diminuda glicoseoral IGIP: parto distcico (frceps e ven-tosa) em 2003Frequenta a consulta de MGF de for-ma assdua e cumpridora, tendo re-alizado trs consultas de planea-mento familiar prvias sua gravidez.A sua ltima consulta de vigilnciareportava reviso do puerprio edatava de dois anos antes da doenaactual. Nesse perodo, compareceuno CS regularmente para consultas,quer de vigilncia, quer por intercor-rncias, da sua filha.

    Incio de MaioConsulta mdico privado por quadroagudo de febre e mialgias. Ter rea-lizado teste de Combur, sendo-lhediagnosticada uma infeco do tra-to urinrio (ITU) e instituda an-tibioterapia que no sabe precisar.

    Meados de MaioConsulta de novo mdico privado,com sintomatologia semelhante jdescrita, sendo medicada comciprofloxacina.

    24 de MaioRecorre a consulta urgente com o seuMF relatando os episdios anteriores,intervalados de duas sema-nas. Aindasob antibioterapia, refere sentir-se mel-hor. So-lhe pedidos exames analticose uma ecografia reno-vesical.

    24 de JunhoRecorre a consulta no Servio deApoio ao Servio de Urgncia (SASU)por mialgias e febre desde a vspera. de novo medicada com antibiti-co, ficando rapidamente assin-tomtica e apirtica.

    5 de JulhoRecorre a nova consulta urgentecom o seu MF. Relata o ltimo epis-dio (o terceiro) e traz os exames pe-didos em Maio. Ao exame objectivosalienta-se apenas um pulso radialde 103 ppm (rtmico, regular e am-plo). Nos exames complementaresconstata-se uma ligeira anemia(11,2 mg/dL) normoctica normo-crmica e uma significativa elevaoda velocidade de sedimentao (VS)para 80 mm/h (Quadro 1). Posta ahiptese de um sndrome febril pro-longado (SFP), so pedidos os exa-mes habitualmente recomendadospara excluso de etiologia infecciosa,inflamatria e maligna: esfregaosanguneo, proteinograma, dosea-mento de protena C reactiva (PCR),

    QUADRO I

    CS* H** H H H CS CS H H H HJun 05-Jul 07-Jul 14-Jul 20-Jul 29-Jul 01-Ago 01-Ago 02-Ago 09-Ago 16-Ago

    Hb (g/dL) 11,2 11,6 10,8 10,7 10,1 8,9 9,8 8,6 8,8 9,0 9,9VGM (fL)/ HbGM (pg) N/N N/N N/N N/N N/N N/N N/N N/N N/N N/N N/N

    Leuccitos (n/L) N 11.500 13.400 N N N N N N N 11300PMN/linfcitos (n/L) N/N 9.000/N 11.500/1.000 N/N N/N N/N N/N N/N N/N N/N N/NVS (mm/h) 80 107 129 117 122 115 129 101PCR mg/dl 5,98 17,01 3,82 12,53 7,28Reticulcitos (%) 0,3Ureia (mg/dL) N N N N N 53 NCreatinina (mg/dL) N N N N 1,2 N NUrina II N alteradaProteinria urina

    24 horas (g) 1,23Clerance creatinina

    (mL/mn) 54,6Urocultura estril estril

    EVOLUO DOS PRINCIPAIS RESULTADOS ANALTICOS

    *pedidos no Centro de Sade**pedidos no Hospital

  • RELATOS DE CASOS

    Com paracetamol em SOS comonica teraputica medicamentosa,fica assintomtica e apirtica desdeo segundo dia de internamento e at alta, quinze dias depois.Durante o internamento so colhi-dos para cultura: sangue, urina, ex-sudado farngeo e medula ssea.Todos se revelaram estreis. Realizaainda serologias para sfilis, borre-lia, citomegalovrus, Epstein-Barrvrus, hepatite A, B e C e vrus daimunodeficincia humana. Nenhumdestes resultados foi compatvel cominfeco aguda.A prova de Mantoux iniciada no CS lida s 72 horas, no internamento,sendo o seu resultado negativo. Fazainda biopsia ssea que foi normal.So ainda monitorizados ao longodo internamento, entre outros,hemograma, plaquetas, VS, PCR efuno renal, verificando-se umlento, mas constante, agravamentoda anemia e PCR e VS persistente-mente elevadas, atingindo aprimeira um pico de 17,01 mg/dL(terceiro dia de internamento) e a VSum pico de 129 mm/h (nono dia detratamento Quadro I). A leucoci-tose com neutrofilia, verificada nasduas primeiras colheitas, j no severifica nas colheitas a partir donono dia de internamento. No re-aliza nenhum exame sumrio de uri-na ou sedimento (embora pedidos entrada, nunca foram realizados). assim que, assintomtica desde osegundo dia, tem alta ao fim dequinze dias. Com os resultados damielocultura ainda pendentes, umaanemia de 10,1 mg/dL, uma VS de117 mm/h e sem diagnstico, -lhemarcada consulta de MedicinaInterna para dali a cinco semanas.Durante todo o internamento tele-fona regularmente ao seu MF, pon-do questes sobre resultados dos exa-mes realizados, indagando possveisconcluses, pedindo explicaes

    vrias e revelando-se apreensiva por,apesar do seu bem-estar fsico, se en-contrar internada e ainda sem diag-nstico.

    25 de JulhoComparece, acompanhada do mari-do, a consulta urgente no CS con-tando que reiniciou febre logo no diaseguinte alta. Refere ainda asteniae impresso (no dolorosa) de corpoestranho farngeo, esta ltima jdesde o internamento e que teriamotivado a colheita de exsudadofarngeo. O casal revela-se preocu-pado perante a persistncia doquadro, a ausncia de um diagns-tico e a espera para a consulta hos-pitalar (5 semanas), dispondo-se aconsultar mdico em regime priva-do. Interrogada, a paciente refereque est sem trabalhar desde que foiinternada.Ao exame objectivo salienta-sepalidez acentuada da pele e mu-cosas. Na amgdala esquerda sovisveis reas de colorao brancacompatveis com exsudados puru-lentos. A palpao cervical e ab-dominal normal.Perante a evidncia de um SFP (febreem vrias ocasies durante umperodo de quase trs meses e semdiagnstico aps 15 dias de inter-namento), so pedidos novos exa-mes complementares, dos quais sedestacam aqueles ainda em faltapara estudo do sndrome, nomeada-mente, o estudo imunolgico e aecografia abdominal. Face a um pos-svel foco sintomtico a nvel daamgdala esquerda, contactadotelefonicamente o servio deOtorrinolaringologia (ORL) do hos-pital de referncia com o qual seagenda uma observao para o diaseguinte. A paciente e o marido soalertados para a eminncia de umdiagnstico, o que dispensaria, nes-ta fase, o recurso a uma consulta

    privada, tendo o casal acedido emaguardar algum tempo.

    29 de JulhoComparece de novo em consulta ur-gente no CS sendo portadora dos exa-mes pedidos e da informao clni-ca do colega de ORL: () caseumnas amgdalas e afta na lngua.Penso ser um problema de MedicinaInterna. Conta que na consulta deORL lhe foi retirado o caseum comuma esptula, com melhoria sin-tomatolgica imediata.Dos resultados disponveis (parciaispois falta ainda o estudo imunolgi-co), destaca-se uma queda dahemoglobina para 8,9 mg/dL e apersistncia da VS muito elevada(122 mm/h - Quadro I).A ecografia abdominal no revela al-teraes mas o radiologista faz refe-rncia a um aumento da ecogenici-dade do parnquima renal direito. Aecografia tiroideia revela um ndu-lo hiperecogneo no lobo direito com6,7 mm de maior dimetro e trsgnglios reactivos esquerda.Dado o agravamento sintomtico,analtico e imagiolgico do quadro, contactado o laboratrio de anlisessolicitando a maior brevidade pos-svel no fornecimento dos resultadosdo estudo imunolgico mas , desdelogo, recebida a informao de quetais resultados no estaro dispon-veis seno dentro de trs dias.Em face desta informao, so ain-da solicitadas novas anlises, comhemograma, com VS, creatininasrica (por lapso no pedida nas l-timas anlises) e funo tiroideia.

    1 de AgostoPor contacto telefnico com labo-ratrio so fornecidos os resultadosdo estudo imunolgico que sugereLES (anticorpos anti-nucleares posi-tivos, com pesquisas de anticorposanti-DNA de cadeia dupla e anti-

    Rev Port Clin Geral 2006;22:445-451 447

  • RELATOS DE CASOS

    referenciada consulta deGinecologia do hospital de refern-cia para escolha de mtodo contra-ceptivo em equipa multidisciplinar.Visto no dispor de conhecimentosque lhe permitam emitir conselhossobre a realizao da biopsia renal,o MF aconselha a paciente a ques-tionar o mdico hospitalar sobre in-dicaes, benefcios e riscos da mes-ma. Informa-a ainda da existnciada Associao Portuguesa deDoentes com Lpus, fornecendo-lheo respectivo contacto. -lhe aindapassada a declarao de iseno detaxas moderadoras de regime espe-cial de comparticipao medica-mentosa, cujo cdigo (despacho n11387-A/2003, de 23 de Maio) se in-sere na aplicao informtica do CS.

    21 de SetembroComparece a nova consulta urgenteno CS para informar que consultoumdico reumatologista a nvel pri-vado e que, doravante, permanecerna sua consulta, no planeando re-gressar consulta de MedicinaInterna do hospital de referncia.Nessa consulta privada foi-lhe re-duzida a dose de prednisolona para5 + 5 mg/dia e requisitadas novasanlises para confirmao do diag-nstico, visto no dispor de cpiadas realizadas no hospital. Caso odiagnstico seja confirmado, serreferenciada pelo mdico emquesto a uma consulta hospitalarde Reumatologia.-lhe pedido que, dado planear noregressar consulta de MedicinaInterna do hospital para onde foi pe-dida a consulta de Ginecologia, devepedir ao seu novo mdico (reuma-tologista) parecer sobre contra-cepo, de preferncia escrito, paraapresentar em Ginecologia.

    29 de SetembroContacto telefnico com MF

    referindo que se sente muito bem ecom vontade de regressar ao seu tra-balho, solicitando a sua opinio. --lhe explicado que, independente-mente do seu bem-estar imediato,deve ainda pedir parecer ao mdicoreumatologista que a assiste e que,dada a possibilidade de ainda vir anecessitar de deixar temporaria-mente de trabalhar, nomeadamentecaso necessite de realizar biopsia re-nal, antes de retomar o seu traba-lho se deve informar se a sua situ-ao contributiva lhe permitir, emqualquer dos casos, manter o sub-sdio de doena.

    30 de SetembroComparece a consulta com MF pararenovao de certificado de incapaci-dade temporria (CIT) pois optou porse manter sem trabalhar at termi-nar estudo solicitado pelo reumato-logista e obter deste um parecer fa-vorvel ao seu regresso ao trabalho.

    24 de OutubroComparece (convocada de vspera)a junta de verificao de incapaci-dade temporria para o trabalho,sendo considerada como mantendoa incapacidade.

    31 de Outubro consultada pelo seu MF para reno-vao do CIT. Sente-se bem e aindano fez os exames pedidos peloreumatologista nem voltou a ser ob-servada por ele. Tem marcao deGinecologia / Planeamento Familiarpara Janeiro de 2006. Mantmmtodo barreira. aconselhada arealizar os exames em questo e arecorrer consulta de Reumatologiapara pedir parecer tambm em re-lao ao mtodo contraceptivo, vis-to j no frequentar a consulta deMedicina Interna do hospital ondetem marcao para Ginecologia. reforado o uso do mtodo barreira

    448 Rev Port Clin Geral 2006;22:445-451

    -DNA de cadeia simples tambmpositivas), bem como uma ligeira el-evao da creatinmia (Quadro I).Estabelece-se ento contacto tele-fnico com colega de MedicinaInterna do hospital de refernciaque, perante o quadro e os resulta-dos mais recentes, recomenda ad-misso atravs do SU.

    1 a 17 de AgostoFica internada no servio deMedicina onde confirma resultadose completa estudo. Apesar de, en-trada, a creatinmia se situar no limi-te superior do normal, a clearanceda creatinina veio a revelar-se fran-camente diminuda, determinando--se ainda uma proteinria de 1,24g/dia (Quadro I). feito o diagnstico de LES,referindo-se na nota de alta a pre-sena de quatro critrios: doena re-nal (proteinria), anemia, alteraesimunolgicas e anticorpos antinu-cleares positivos). No 11 dia de in-ternamento inicia corticoterapia emaltas doses (1mg/kg/dia de pre-dnisolona), tendo alta ao 17 dia,aguardando a marcao de bipsiarenal e com consulta externa mar-cada para a semana seguinte.

    26 de AgostoComparece a consulta urgente noCS, contando do diagnstico re-cente. Sente-se bem mas refereamenorreia de oito semanas (desdeo primeiro internamento, altura emque abandonou a contracepo oralque fazia), usando actualmentemtodo barreira. Levanta questessobre a biopsia renal cuja marcaoaguarda, mas cuja necessidade nocompreende, revelando receio em arealizar. Afirma que gostaria de ou-vir segunda opinio e pede conselhosobre qual a especialidade indicadapara o efeito. Apresenta-se com hu-mor adequado.

  • RELATOS DE CASOS

    e lembrada a existncia da contra-cepo de emergncia.

    No caso descrito, o LES apresenta--se inicialmente ao MF como umquadro compatvel com duas ITU noespao de duas semanas (verosmildada a clnica e a boa resposta aosantibiticos referida pela paciente).Assim, a prioridade do MF foi ex-cluir uma pielonefrite (dados os sin-tomas compatveis com ITU alta)e/ou uma infeco por uma bactriaresistente (dada a recidiva clnica nointervalo de apenas 15 dias). Pediu,assim, alguns exames que avalias-sem esta possibilidade ou suas se-quelas, tentando, simultaneamente,detectar sinais de atingimentosistmico (atravs da VS e das enzi-mas hepticas).Na segunda consulta no CS, cincosemanas desde o incio do quadro eaps um novo (o terceiro) episdio dedor e mialgias e j na presena deestudo analtico que revelava atingi-mento sistmico (anemia ligeira e VSmuito levada), o MF suspeita de umSFP, planeando o estudo destinadoa despistar as etiologias infecciosa,inflamatria e maligna. excepo da prova de Mantoux,iniciada de imediato, este estudo noviria a ser realizado pois a doente internada no prprio dia. Este inter-namento discutvel pois no haviacritrios de gravidade clnica e, como actualmente consensual,1-2 a abor-dagem diagnstica do SFP pode serconduzida em ambulatrio.Durante este primeiro internamen-to, parece clara a existncia de umapresuno de etiologia infecciosa pordetrs de toda a abordagem diag-nstica conduzida (serologias vricas,culturas de sangue, urina, exsuda-do farngeo e medula ssea e um Rx

    pulmonar na admisso), no sendoconduzidos exames para avaliar pos-sveis etiologias inflamatrias ou ma-lignas para o quadro febril.Apesar do bem-estar que refere du-rante este primeiro internamento, apaciente considera sinal de gravi-dade o facto de ter sido internada eassiste, plena de interrogaes, marcha diagnstica empreendida.Mesmo internada, ao seu MF quetelefona regularmente em busca deesclarecimento.Reiniciando febre de imediato apsa alta, revela ao seu MF apreensocrescente pela falta de um diagns-tico e pela incapacidade que comeaa sentir (est sem trabalhar desde ointernamento). Neste contexto, dis-pe-se a consultar um especialista(sic) na medicina privada, pedindoconselho ao MF. No entanto, expli-cada que lhe foi a possibilidade dese chegar rapidamente a um diag-nstico e assumido o compromissode rpida referenciao aps o mes-mo, aceita a sugesto de completaro estudo com alguns exames sim-ples. So, de facto, os resultados doestudo imunolgico ento pedido,associados a uma ligeira subida dacreatinina, que colocam o LES comoprincipal hiptese diagnstica.As manifestaes clnicas do LES in-cluem habitualmente sintomas cons-titucionais (incluindo febre sem foco)e, simultaneamente, atingimentocutneo, msculo-esqueltico e/ouhematolgico.3 Outrora causa im-portante de SFP, nos nossos dias oLES raramente se apresenta como talpor ser mais facilmente diagnostica-do a nvel laboratorial.1 Por outro lado,dada a baixa prevalncia da doenaconferir baixo valor preditivo pesquisa de ANA,3 o American Collegeof Rheumatologists recomenda queeste teste s seja feito a doentes comatingimento inexplicado de dois oumais rgos ou sistemas (como era o

    caso da paciente em causa).O diagnstico de LES descrito nanota de alta como tendo sido feitocom os quatro critrios requeridospelo ACP mas, de facto, um deles, aanemia, no era hemoltica como re-querido (no se constatou reticulo-citose e a DHL e a bilirrubina man-tiveram-se normais). No entanto,sabemos que um outro quarto crit-rio estava de facto presente: uma l-cera aftosa da orofaringe observadapelo colega de ORL. Iniciada a res-pectiva teraputica, tendo sidoreavaliada na consulta externa deMedicina e aps pedir parecer ao MFsobre a realizao de biopsia renal,a doente acaba por consultar ummdico reumatologista em regimeprivado, abandonando a consultaexterna do hospital. Tal resultou,certamente, do facto de a pacienteno se sentir esclarecida quanto necessidade de realizar a biopsia re-nal (nem, talvez, quanto ao motivode tanta dificuldade diagnstica).Com o mdico reumatologista inicianovo e dispendioso estudo (alm devirtualmente desnecessrio, permi-tisse o sistema o rpido acesso aosexames j realizados), para confir-mar o diagnstico, com vista ao seuencaminhamento para a consultaexterna de outro hospital.Quando se comunica um diagnsti-co a um paciente sempre essencialassegurar que este recebe, de acor-do com o seu grau de literacia, a in-formao necessria compreensodo seu novo problema de sade e aceitao (ou recusa informada) decada um dos passos diagnsticos eteraputicos seguintes, avaliandosempre a sua adaptao ao seu novoestado.Esta a noo central do con-sentimento informado que deve estarimplcita em cada acto mdico, sobpena de reduzir a adeso aos cuida-dos necessrios ou de aumentar a in-satisfao perante resultados abaixo

    Rev Port Clin Geral 2006;22:445-451 449

    COMENTRIO

  • RELATOS DE CASOS

    cientes, o MF deve, desde logo, an-tecipar o risco de crise familiar eprovidenciar os necessrios cuida-dos de suporte. Neste contexto, as-sume ainda particular importnciaa informao sobre a existncia deassociaes de doentes.Acessrios, mas indispensveis nafase ps-diagnstico, so ainda osprocedimentos burocrticos decor-rentes de um diagnstico de LES,como o preenchimento da declara-o mdica para iseno de taxasmoderadoras e para regime especialde comparticipao medicamentosa.Na alada privilegiada da MGF caemainda as medidas teraputicas con-tinuadas do foro preventivo, nome-adamente a reduo do elevado riscocardiovascular destes doentesatravs da promoo da adopo dosestilos de vida saudveis. Uma dietapobre em gorduras saturadas e ricaem peixe, a manuteno do peso ade-quado, a prtica do exerccio fsico ea cessao dos hbitos tabgicos,so medidas de indispensvel pres-crio e monitorizao contnua.Outra questo que a doente vem le-vantar ao CS duas semanas aps aalta e trs dias depois da consultade seguimento de Medicina Interna, a do planeamento familiar. Ame-norreica e sem contracepo desdeo internamento, a paciente que as-sume esta iniciativa quando sobe-jamente sabido que a abordagemdas questes de planeamento fami-liar aps o diagnstico de LES numamulher em idade frtil obrigatria.Isto porque, por um lado, se inicia-da em perodo de actividade dadoena, a gravidez acarreta aumen-to do risco de exacerbaes do LESe de complicaes da prpriagravidez, e, por outro, porque po-dem surgir problemas associados amtodos contraceptivos eventual-mente em curso, impondo a pon-derao de mtodos alternativos.

    Num estudo, de 86 mulheres porta-doras de LES e frequentadoras deuma consulta especfica, 39 referi-ram no ter recebido qualquer acon-selhamento aps o diagnstico.5

    Importa referir que, no subgrupodas mulheres portadoras LES comanticorpos antifosfolipdeo, o uso decontracepo oral combinada au-menta o, j muito elevado, risco detrombose, pelo que est contra-in-dicada nestas mulheres.5 J a asso-ciao deste mtodo a exacerbaesda doena controversa. O uso deformulaes combinadas de baixadosagem tem sido advogado comoseguro,6 aguardando-se os resulta-dos de um ensaio clnico,7 j con-cludo e em fase de publicao, quepoder emitir orientaes mais pre-cisas neste campo. Quanto uti-lizao de contracepo progestati-va exclusiva, esta tem sido consen-sualmente considerada segura.7- 8 Odispositivo intra-uterino, pelo seumaior risco de provocar infeco, ,em geral, desaconselhado, em par-ticular nas mulheres sob teraputi-ca imunosupressora.7

    A fertilidade das mulheres com LESmantm-se, em regra, inalterada e fundamental tranquiliz-las, no sa este respeito como tambm em re-lao possibilidade de ocorrnciade uma gravidez de curso e desfechonormais. Em simultneo, devem (oscasais) ser informados das compli-caes possveis caso a caso, bemcomo da necessidade (para um me-lhor curso e desfecho) de planear agravidez para um perodo de bom es-tado geral de sade da mulher e apsuma remisso clnica de pelo menos6 meses (quanto mais longa melhor).O MF dever aproveitar as oportu-nidades que surgirem para aconse-lhar a mulher com diagnstico re-cente de LES sobre estes aspectos,assegurando que eles sejam devida-mente endereados, mas, a mdio e

    450 Rev Port Clin Geral 2006;22:445-451

    das expectativas do paciente. Infeliz-mente, o consentimento informado ainda por vezes encarado como umamera formalidade, ao servio de umaprtica mdica paternalista, inter-vencionista e no centrada nos pa-cientes, no chegando a cumprirquaisquer dos seus desgnios.Pela relao e conhecimento prviosque muitas vezes tem com o pa-ciente, o MF encontra-se numaposio privilegiada para ajudar apassar a informao necessria,pese embora ter mais dificuldade emestar na posse de todos os conheci-mentos necessrios, como aconte-ceu neste caso. A existir, seria demximo proveito uma articulaoentre o MF e o mdico hospitalar, umcompletando e facilitando as com-petncias do outro.De facto, lembrasse-se o MF que cer-ca de metade dos doentes com LESdesenvolvem nefrite lpica (definidacomo proteinria e, frequentemente,hematria e cilindrria), cujo po-tencial de evoluo para insuficin-cia renal terminal no tem corre-lao com os achados clnicos (sedi-mento, proteinria e creatinmia),mas sim com o tipo histolgico deleso glomerular, poderia talvez teraquietado a paciente. Explicar-lhe--ia, assim, que a biopsia renal estsempre indicada na nefrite lpicapois o tipo de leso encontrada queditar o prognstico e, logo, a agres-sividade da interveno teraputica.4

    No caso particular do diagnstico deuma doena crnica potencialmentegrave (ou at fatal) como o LES auma paciente jovem previamentesaudvel, as consequncias psi-colgicas (incluindo um processosemelhante ao do luto), familiares esociais dele decorrentes carecem deser correctamente previstas, avali-adas e orientadas por toda a equipade sade. Conhecendo tambm ocontexto scio-familiar dos pa-

  • RELATOS DE CASOS

    longo prazo, ser mais adequadoque as questes de planeamento fa-miliar sejam tratadas em equipamultidisciplinar pelo reumatologista(ou internista), ginecologista e/ouobstetra hospitalares.Ao fim de um ms e meio de corti-coterapia, sintomtica e laborato-rialmente melhorada, a pacienteconsidera, naturalmente, a possi-bilidade de retomar o seu trabalho.No entanto, sem poder prever a ne-cessidade de internamentos ou re-cadas a curto ou mdio prazo, v-serefm de um sistema de retribuiessociais que pune atitudes como a suapois, uma vez retomado o seu tra-balho, se voltar a ficar incapaz parao mesmo, poder no ter direito aqualquer retribuio at que volte atrabalhar um determinado perodode tempo de forma ininterrupta.Corroborando esta perversidade dosistema, ao ser convocada para jun-ta de verificao de incapacidade, aofim de dois meses de corticoterapia,assintomtica e com excelente esta-do geral, foi prontamente considera-da incapaz para o trabalho.Um estudo retrospectivo de 159doentes com LES identificou comofactores preditivos de incapacidadepara o trabalho o nvel de escolari-dade no superior, o facto de se teruma profisso fisicamente exigentee a existncia de doena com eleva-da actividade no momento do diag-nstico.9 Neste mesmo estudo, 40%dos pacientes referiu ter deixadocompletamente de trabalhar e 68%referiu alguma alterao sua situ-ao profissional. Numa doena queatinge frequentemente pessoasjovens (por vezes mesmo ainda emfase de formao escolar), a questoda incapacidade deve ser abordadanuma perspectiva no s de curtoprazo, ajudando os doentes a equa-cionarem a durao da sua inca-pacidade, como tambm de mdio e

    longo prazo, estimulando os doentescom menos escolaridade e activi-dades profissionais fisicamente maisexigentes a reformularem a sua situ-ao, investindo, por exemplo, noatingimento de nveis mais elevadosde escolaridade.O processo de tomada de decisoclnica uma das caractersticas es-pecficas da MGF10 e prende-se como facto de, na consulta de MGF, osproblemas se apresentarem maisfrequentemente de forma indiferen-ciada (mantendo-se como tal mesmoaps alguma investigao) e no seenquadrando claramente nosgrandes quadros que classicamenteaprendemos nos livros e encon-tramos nas enfermarias hospita-lares. Sendo em MGF a prevalnciade muitas doenas inferior suaprevalncia em cuidados se-cundrios, so tambm inferiores osvalores preditivos dos respectivossintomas ou achados, deixando as-sim o MF numa posio privilegiadapara excluir doena (e o mdico hos-pitalar, que v pacientes previamentetriados e com uma prevalncia dedoenas superior, em melhor posiopara confirmar diagnsticos).Com a apresentao deste caso,ilustrativo do processo de tomadade deciso caracterstico dos dife-rentes nveis de cuidados, pretende--se ainda salientar o papel do MF en-quanto especialista em pessoas e re-duto final de todos os seus proble-mas de sade, espcie de gestor dopaciente atravs dos diferentesnveis de cuidados do sistema desade, actuando, se necessrio,como advogado dos seus interesses,tal como vem sendo assumido comodesejvel pela WONCA (WorldOrganization of Family Doctors, es-trutura internacional representantede 97 associaes de MF), nas suasmais recentes reflexes sobre a dis-ciplina da MGF.10

    1. Amin K, Kauffman CA. Fever of un-known origin: a strategic approach to this di-agnostic dilemma. Postgrad Med 2003 Sep;114 (3): 69-75.

    2. Mourad O, Palda V, Detsky AS. A com-prehensive evidence-based approach to feverof unknown origin. Arch Intern Med 2003 Mar10; 163 (5): 545-51.

    3. Gill JM, Quisel AM, Rocca PV, WaltersDT. Diagnosis of systemic lupus erythemato-sus. Am Fam Physician 2003 Dec 1; 68 (11):2179-86.

    4. Kasper DL, Braunwald E, Fauci A,Hauser S, Longo D, Jameson JL. Harrison'sprinciples of internal medicine. London: Mc-Graw-Hill; 2004.

    5. Lakasing L, Khamashta M. Contracep-tive practices in women with systemic lupuserythematosus and/or antiphospholipid syn-drome: what advice should we be giving? JFam Plann Reprod Health Care 2001 Jan; 27(1): 7-12.

    6. Rampone A, Rampone B, Tirabasso S,Panariello S, Rampone N, Vozza A, et al. Con-traception with the latest estroprogestagens inwomen suffering from systemic lupus erythe-matosus. Minerva Ginecol 2001 Feb; 53 (1Suppl 1): 75-7.

    7. Mok CC, Wong RW. Pregnancy in sys-temic lupus erythematosus. Postgrad Med J2001 Mar; 77 (905): 157-65.

    8. Ioannou Y, Isenberg DA. Current con-cepts for the management of systemic lupuserythematosus in adults: a therapeutic chal-lenge. Postgrad Med J 2002 Oct; 78 (924):599-606.

    9. Partridge AJ, Karlson EW, Daltroy LH,Lew RA, Wright EA, Fossel AH, et al. Risk fac-tors for early work disability in systemic lu-pus erythematosus: results from a multicen-ter study. Arthritis Rheum 1997 Dec; 40 (12):2199-206.

    10. WONCA Europa. A definio europeiade Medicina Geral e Familiar. 2002. Dispon-vel em: URL:http://www.apmcg.pt/docu-ment/71479/457322.pdf [acedido em02/09/2006].

    Contactos:Mnica GranjaCentro de Sade da Senhora da HoraUnidade Local de Sade de MatosinhosR. Lagoa, 4460 SRA. DA HORA229568560

    Recebido para publicao em 24/01/2006Aceite para publicao em 05/09/2006

    Rev Port Clin Geral 2006;22:445-451 451

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS