lume de uma intensa felicidade à qual responde o luzir do...

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2 A CASA DO MAR A casa está construída na duna e separada das outras casas do sítio. Esse isolamento cria nela uma unidade, um mundo. O rumor das ondas, o perfume do sal, o vidrado da luz marinha, o ar varrido de brisas e vento, a cal do muro, os nevoeiros imóveis, o arfar ressoante do mar estabelecem em seu redor grandes espaços vazios, tumultuosos e limpos onde tudo se abre e vibra. A casa é construída de pedra e cal e a sua frente está virada para o mar. No andar de cima da fachada há três janelas e uma varanda com grades de madeira. No andar de baixo há três janelas e uma porta. Essa porta, as janelas e as grades da varanda estão pintadas de verde. No chão, ao longo da parede, corre um passeio de pedra que separa a casa das areias da duna. Para além das dunas a praia estende-se a todo o comprimento da costa e só o limite do olhar a limita. E, de norte a sul, ao longo das areias, correm três linhas escuras e grossas de algas, búzios e conchas, misturados com ouriços, pedaços de cortiça e pedaços de madeira que são restos de bóias e de barcos. Sobre a areia molhada que a maré cheia alisou o poisar das gaivotas deixa finas pegadas triangulares, semelhantes à escrita de um tempo antiquíssimo. As traseiras da casa dão para um jardim inculto e rude e áspero onde o vento que dobra os arbustos se precipita e dança em volta do poço redondo. O chão está coberto de pequenas pedras soltas que rangem e saltam sob os passos. Presa num arame a roupa lavada a secar ao sol estala e palpita como as velas de um navio. A norte, a leste e a sul o jardim é limitado por três muros toscos feitos de calhaus de granito sem reboco. No muro do fundo, que dá para a rua deserta onde os plátanos sonham devagar a própria sombra, há uma cancela que continuamente bate e gira e geme no vento. Vai-se escangalhando dia a dia e, quando os gonzos rebentarem, ficará muito tempo caída no chão sem que ninguém a apanhe. No lado poente, onde os dias duram e luzem e se arrastam, o jardim avança pela duna e confunde-se com a praia, apesar dos pilares de granito que marcam os seus limites. Dali se avista, para o sul, no extremo da distância, para lá da foz do pequeno rio onde a costa se encurva levemente, uma cidade que vem até a orla do mar. O seu recorte esfuma-se um pouco nas névoas marítimas mesmo quando o tempo está radioso. Porém em certos dias, a cidade de repente torna-se extremamente nítida e concisa, quase geométrica, e vê-se claramente a torre aguda e fina da igreja. Então sabe-se que vai chover. Entre a casa e a cidade longínqua estendem-se as dunas como um grande jardim deserto, inculto e transparente onde o vento que curva as ervas altas, secas e finas faz voar em frente dos olhos o loiro dos cabelos. Ali crescem também os lírios selvagens cujo intenso perfume, pesado e opaco como o perfume de um nardo, corta o perfume árido e vítreo das areias. Dentro da casa o mar ressoa como no interior de um búzio. Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia como um molho de algas. Profundos os espelhos reflectem demoradamente os dias. E em frente das janelas o mar brilha como inumeráveis espelhos quebrados. Os móveis são escuros e finos, sem verniz, encerados. O chão é esfregado, as paredes caiadas. Em todas as coisas está inscrita uma limpeza de sal. A exaltação marinha habita o ar. A casa é aberta e secreta, veemente e serena. Nela o menor ruído — tinir de louça, degrau que range, respiração do vento, comboio que ao longe passa — é escutado. A casa está atenta a cada coisa. Todos os dias a renovam. A mais leve nuvem que passa ensombra o vidro dos espelhos. Nela cada dia é único e precioso como se contivesse a totalidade do tempo. No brilho da mesa, na transparência do copo, há como que uma intensidade repousada. Quem chega pelo lado de trás da casa entra num corredor largo onde há um grande armário de madeira escura no qual estão guardadas loiças. À direita, depois da copa, fica a cozinha onde uma pequena mulher temível reina em frente ao fogo. A cozinha é o antro da casa. É escura no interior da casa branca. Nela secam as ervas e as chaleiras gemem e soluçam como se sofressem. Apesar do fresco cintilante dos peixes, apesar do vermelho das carnes, apesar do amarelo dos limões, do verde polido dos pimentos empilhados no prato de barro, apesar do orvalho das manhãs que treme ainda na dureza tenra das grandes couves redondas e fechadas, a cozinha, com seus ferros, suas chamas, suas facas agudas, seu cantar de chaleiras, seus fumos, seu frigir de óleos, seu cheiro de amêndoa, gordura, fogo e fruta, tem algo de inquietante que acompanha o longo catálogo de malefícios, desgraças, acidentes, doenças, perigos, prenúncios e ameaças suspensas que a pequena mulher temível continuamente recorda em frente do fogo. À esquerda da copa, no lado da casa que dá para a praia, fica a sala de jantar. Tem no meio uma mesa comprida rodeada de cadeiras e em cada ângulo dos muros pequenas cantoneiras de madeira. No centro da mesa há um fruteiro redondo onde maçãs vermelhas se recortam sobre a madeira escura e contra a cal das paredes. Polidas e redondas as maçãs brilham e parecem interiormente acesas, como se as habitasse o

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A CASA DO MAR A casa está construída na duna e separada das outras casas do sítio. Esse isolamento cria nela uma unidade, um mundo. O rumor das ondas, o perfume do sal, o vidrado da luz marinha, o ar varrido de brisas e vento, a cal do muro, os nevoeiros imóveis, o arfar ressoante do mar estabelecem em seu redor grandes espaços vazios, tumultuosos e limpos onde tudo se abre e vibra. A casa é construída de pedra e cal e a sua frente está virada para o mar. No andar de cima da fachada há três janelas e uma varanda com grades de madeira. No andar de baixo há três janelas e uma porta. Essa porta, as janelas e as grades da varanda estão pintadas de verde. No chão, ao longo da parede, corre um passeio de pedra que separa a casa das areias da duna. Para além das dunas a praia estende-se a todo o comprimento da costa e só o limite do olhar a limita. E, de norte a sul, ao longo das areias, correm três linhas escuras e grossas de algas, búzios e conchas, misturados com ouriços, pedaços de cortiça e pedaços de madeira que são restos de bóias e de barcos. Sobre a areia molhada que a maré cheia alisou o poisar das gaivotas deixa finas pegadas triangulares, semelhantes à escrita de um tempo antiquíssimo. As traseiras da casa dão para um jardim inculto e rude e áspero onde o vento que dobra os arbustos se precipita e dança em volta do poço redondo. O chão está coberto de pequenas pedras soltas que rangem e saltam sob os passos. Presa num arame a roupa lavada a secar ao sol estala e palpita como as velas de um navio. A norte, a leste e a sul o jardim é limitado por três muros toscos feitos de calhaus de granito sem reboco. No muro do fundo, que dá para a rua deserta onde os plátanos sonham devagar a própria sombra, há uma cancela que continuamente bate e gira e geme no vento. Vai-se escangalhando dia a dia e, quando os gonzos rebentarem, ficará muito tempo caída no chão sem que ninguém a apanhe. No lado poente, onde os dias duram e luzem e se arrastam, o jardim avança pela duna e confunde-se com a praia, apesar dos pilares de granito que marcam os seus limites. Dali se avista, para o sul, no extremo da distância, para lá da foz do pequeno rio onde a costa se encurva levemente, uma cidade que vem até a orla do mar. O seu recorte esfuma-se um pouco nas névoas marítimas mesmo quando o tempo está radioso. Porém em certos dias, a cidade de repente torna-se extremamente nítida e concisa, quase geométrica, e vê-se claramente a torre aguda e fina da igreja. Então sabe-se que vai chover. Entre a casa e a cidade longínqua estendem-se as dunas como um grande jardim deserto, inculto e transparente onde o vento que curva as ervas altas, secas e finas faz voar em frente dos olhos o loiro dos cabelos. Ali crescem também os lírios selvagens cujo intenso perfume, pesado e opaco como o perfume de um nardo, corta o perfume árido e vítreo das areias. Dentro da casa o mar ressoa como no interior de um búzio. Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia como um molho de algas. Profundos os espelhos reflectem demoradamente os dias. E em frente das janelas o mar brilha como inumeráveis espelhos quebrados. Os móveis são escuros e finos, sem verniz, encerados. O chão é esfregado, as paredes caiadas. Em todas as coisas está inscrita uma limpeza de sal. A exaltação marinha habita o ar. A casa é aberta e secreta, veemente e serena. Nela o menor ruído — tinir de louça, degrau que range, respiração do vento, comboio que ao longe passa — é escutado. A casa está atenta a cada coisa. Todos os dias a renovam. A mais leve nuvem que passa ensombra o vidro dos espelhos. Nela cada dia é único e precioso como se contivesse a totalidade do tempo. No brilho da mesa, na transparência do copo, há como que uma intensidade repousada. Quem chega pelo lado de trás da casa entra num corredor largo onde há um grande armário de madeira escura no qual estão guardadas loiças. À direita, depois da copa, fica a cozinha onde uma pequena mulher temível reina em frente ao fogo. A cozinha é o antro da casa. É escura no interior da casa branca. Nela secam as ervas e as chaleiras gemem e soluçam como se sofressem. Apesar do fresco cintilante dos peixes, apesar do vermelho das carnes, apesar do amarelo dos limões, do verde polido dos pimentos empilhados no prato de barro, apesar do orvalho das manhãs que treme ainda na dureza tenra das grandes couves redondas e fechadas, a cozinha, com seus ferros, suas chamas, suas facas agudas, seu cantar de chaleiras, seus fumos, seu frigir de óleos, seu cheiro de amêndoa, gordura, fogo e fruta, tem algo de inquietante que acompanha o longo catálogo de malefícios, desgraças, acidentes, doenças, perigos, prenúncios e ameaças suspensas que a pequena mulher temível continuamente recorda em frente do fogo. À esquerda da copa, no lado da casa que dá para a praia, fica a sala de jantar. Tem no meio uma mesa comprida rodeada de cadeiras e em cada ângulo dos muros pequenas cantoneiras de madeira. No centro da mesa há um fruteiro redondo onde maçãs vermelhas se recortam sobre a madeira escura e contra a cal das paredes. Polidas e redondas as maçãs brilham e parecem interiormente acesas, como se as habitasse o

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lume de uma intensa felicidade à qual responde o luzir do mar cujo azul cintila entre as persianas. E, quando as vidraças estão abertas, o perfume seco das dunas mistura-se com o perfume das maçãs. Da sala de jantar passa-se para uma sala quadrada onde há uma porta que dá directamente para o patamar de pedra que confina com a duna. Quem vem de fora sacode os pés antes de entrar para não encher a casa de areia. Ali as cadeiras de vime pintadas de castanho quase preto fazem um círculo à roda da mesa baixa onde o cigarro poisado no cinzeiro arde sozinho ao lado de uma jarra cheia de dálias vermelhas. Nesta sala reinam as fotografias. Cercadas pelas molduras de prata, ora ovais ora redondas, ora rectangulares, as fotografias estabelecem, dentro do tempo, outro tempo, e, dentro de casa, outras casas e lugares e jardins. Verdes jardins sombrios e secretos cujo sussurrar se funde no silêncio. Largas salas de muros claros com mobílias império e cortinados brancos, onde respira a brisa. Claras varandas debruçadas sobre o tanque rodeado de vasos. Salas, varandas, jardins habitados por personagens que são, todos eles, estranhamente belos: como se o seu corpo fosse a sua alma. Talvez a arte do fotógrafo os tivesse idealizado, talvez o tempo tivesse feito uma escolha, ou talvez que, nessa época, só as pessoas belas fossem fotografadas. No papel semi-brilhante e semi-baço das fotografias pessoas e lugares, como se o tempo ali fosse outra coisa, vivem, sem cessar, a paixão e veemência do instante objectivo: a mão polida pela penumbra e pela luz e que docemente poisa sobre a mesa, o perfil sereno e claro com o cabelo brilhando sobre o vestido escuro, o colar de contas grossas em redor do pescoço fino, a pedra da escada, a sombra da tília sobre os ombros, a hera cobrindo o granito do muro, o longo corredor que tem, ao fundo, uma arca de cânfora sob o quadro do homem a cavalo, o quarto onde o rosto emerge branco da sombra, enquanto o espelho, ao fundo, mostra o outro lado do perfil. A parte de trás da casa forma um L pois o lado sul se prolonga numa ala formada por quatro quartos dispostos ao longo do corredor que contorna a casa. Das janelas desses quartos virados para o sul não se vê o mar: vê-se a chorina de grossos dedos verdes e de flores amarelas e roxas que cresce no jardim de areia, vê-se o muro de granito e, para lá do muro, a duna onde as ervas secas e transparentes desenham o ar e, aqui e além, ao longe, se avistam telhados, e se ouve, solitário, o ladrar dos cães. No andar de cima, mais pequeno do que o andar de baixo, há só quatro quartos. Para eles se sobe pela escada de madeira que estala e canta sob os passos acompanhando as idas e vindas da casa. O quarto que fica ao cimo da escada, à esquerda de quem sobe, é um quarto pequeno onde a cama enche a parede do fundo, e a cómoda ocupa, quase por inteiro, a parede que fica ao lado da porta e em frente da janela. Por cima da cómoda há um espelho onde se vê o mar. A cama e a cómoda são móveis antigos, amplos e pesados e atravancam um tanto o quarto onde não há muito lugar para o movimento das pessoas. É um quarto para dormir ou para longas sestas semi-acordadas em tardes de Agosto e nortada, quando o vento cintila, o sol cintila e a portada verde bate. Quando está frio corre-se o vidro da janela de guilhotina e então o exterior parece nebuloso e fosco porque os vidros entre os caixilhos de madeira estão picados e despolidos pelo morder do sal. No fundo do corredor, no outro extremo desse andar, há um quarto grande e comprido, orientado de este a oeste no sentido do comprimento, e todo atravessado pela luz que vem do mar. É um quarto simultaneamente luminoso, esverdeado e sombrio. Nas suas penumbras brilham pontos de oiro. E há reflexos vagabundos que vagueiam entre loiças, vidros, pratas, espelhos. No ar paira o perfume que sobe de um frasco de vidro doirado e preto que alguém deixou destapado. Uma nuvem de fumo azul sobe muito lentamente. O quarto está cheio de livros empilhados nas mesas, na estante e mesmo nas cadeiras. Livros de capas amarelas e brancas e cinzentas. Alguns dobrados ao meio, mostram a cor de trigo do papel e o desenho contínuo e cerrado das letras. O quarto tem algo de glauco e de doirado como se nele morasse uma mulher de olhos verdes e cabelos loiros, leves e compridos, de um loiro brilhante e sombrio, e cujo perfume é o perfume do sândalo. A beleza da sua testa é grave como a beleza da arquitrave de um templo. Nos seus pulsos há um quebrar de caule. Nas suas mãos, através da finura da pele e do azul das veias, o pensamento emerge. Nesse quarto se vê a pausa em que o instante, de súbito, surpreende e fita e enfrenta a eternidade. E ali se vê o brilho que navega no interior da sombra. Ali se ouve a linguagem que, como nenúfar, aflora à tona das águas paradas do silêncio. Porque o quarto sussurra como se fosse o interior de uma tília onde palpitam miríades de folhas verdes cujo reverso é branco e que batem como pálpebras, ora revelando ora escondendo o interminável brilho dos olhos magnéticos, verdes, cinzentos, azuis e desmesurados como mares. Ali o ar, em frente dos espelhos, oscila e parece arder como se as mãos, macias como pétalas de magnólia, alisassem e torcessem longas madeixas de cabelo denso como searas e leve como o fogo. No entanto, às vezes o espaço torna-se apaixonadamente vazio, como se apenas o povoasse um longo e monótono e alucinado mar e tudo fosse impossibilidade, separação e distância, ou como se aquele quarto fosse o umbral do vazio, do indizível, da solidão total, do caos, da noite, do indecifrável.

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É ali que, nas noites de vento sul, incide com mais força o clamor do temporal. Então, às vezes a janela abre-se de repente e o cheiro das flores selvagens da duna passa através da casa. Esse quarto grande e comprido comunica com um quarto pequeno e quadrado, onde a parede da esquerda está quase totalmente ocupada por um toucador de mogno e mármore que tem, no centro, um grande espelho oval. No toucador reinam os boiões e os frascos, as escovas e os pentes. Há o frasco de vidro dentro da caixa verde, a caixa de loiça, a tesoira, o anel esquecido, a écharpe caída. Quem sai do quarto do fundo e espreita pela janela do corredor que dá para o pátio das traseiras vê, lá fora, os dois perdigueiros que erguem a cabeça quando alguém, com o nó dos dedos, para os chamar, bate nos vidros. Entre o quarto do fundo e a escada, exactamente no centro da casa, fica o quarto que dá para a varanda de madeira pintada de verde. Nesse quarto os móveis — o divã, a mesa estreita e baixa, a pequena cómoda com o espelho, o armário — estão encostados à parede e o quarto tem, no centro, em frente do espelho, um espaço livre como um palco onde a luz, o nevoeiro e os gestos dançam. Sobre a mesa verde, ao lado dos cadernos de capa de oleado, onde, na leve escrita acinzentada do lápis, as palavras se alinham dia após dia como se emergissem dos dias, está uma jarra de vidro coalhado azul cheia de cravos cujo perfume se recorta, nítido e delimitado, no perfume salino do ar. Nas paredes brancas reflecte-se uma grande claridade de areal e o sabor a algas, como um grito de contínua alegria, invade todos os espaços, gavetas, armários, roupas, caixas, livros. Aqui, de manhã, se é acordado por um marulho de vaga e o dorso do mar coberto de brilhos cintila entre as persianas como um peixe na rede. O fulgor exterior assedia as orlas da penumbra. No centro vazio do quarto pode-se dançar. Os gestos deslizam entre o animal e a flor como medusas. E, às vezes, de súbito, uma gaivota atravessa, sem o quebrar, o vidro dos espelhos. Porém, como num jardim Zen, o quarto é também um lugar de contemplação. A luz é lisa. O espaço está atento, o silêncio imóvel. Mas esse silêncio e essa atenção recebem em si a larga respiração oceânica que no quarto implanta seu tumulto ébrio e lúcido. Há na casa algo de rude e elementar que nenhuma riqueza mundana pode corromper, e, apesar do seu halo de solidão e do seu isolamento na duna, a casa não é margem mas antes convergência, encontro, centro. Quem nas janelas do corredor olha para fora e vê o muro de granito, as árvores na distância e os telhados a oeste, aquilo que vê aparece-lhe como um lugar qualquer da terra, como um acidente, um lugar ocasional entre o acaso das coisas. Mas quem do quarto central avança para a varanda e vê, de frente, a praia, o céu, a areia, a luz e o ar, reconhece que nada ali é acaso mas sim fundamento, que este é um lugar de exaltação e espanto onde o real emerge e mostra seu rosto e sua evidência. Pelo gesto de dobrar o pescoço e de sacudir as crinas, as quatro fileiras de ondas, correndo para a praia, lembram fileiras brancas de cavalos que no contínuo avançar contam e medem o seu arfar interior de tempestade. O tombar da rebentação povoa o espaço de exultação e clamor. No subir e descer da vaga, o universo ordena seu tumulto e seu sorriso e, ao longo das areias luzidias, maresias e brumas sobem como um incenso de celebração. E tudo parece intacto e total como se ali fosse o lugar que preserva em si a força nua do primeiro dia criado.

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«APESAR DAS RUÍNAS E DA MORTE» Apesar das ruínas e da morte, Onde sempre acabou cada ilusão A força dos meus sonhos é tão forte, Que de tudo renasce a exaltação E nunca as minhas mãos ficam vazias.

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LUAR O luar enche a terra de miragens E as coisas têm hoje uma alma virgem, O vento acordou entre as folhagens Uma vida secreta e fugitiva, Feita de sombra e luz, terror e calma, Que é o perfeito acorde da minha alma.

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ATLÂNTICO Mar, Metade da minha alma é feita de maresia.

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MAR I De todos os cantos do mundo Amo com um amor mais forte e mais profundo Aquela praia extasiada e nua, Onde me uni ao mar, ao vento e à lua. II Cheiro a terra as árvores e o vento Que a Primavera enche de perfumes Mas neles só quero e só procuro A selvagem exalação das ondas Subindo para os astros como um grito puro.

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O JARDIM E A NOITE Atravessei o jardim solitário e sem lua, Correndo ao vento pelos caminhos fora, Para tentar como outrora Unir a minha alma à tua, Ó grande noite solitária e sonhadora. Entre os canteiros cercados de buxo Sorri à sombra tremendo de medo. De joelhos na terra abri o repuxo, E os meus gestos foram gestos de bruxedo. Foram os gestos dessa encantação, Que devia acordar do seu inquieto sono A terra negra dos canteiros e os meus sonhos sepultados Vivos e inteiros. Mas sob o peso dos narcisos floridos Calou-se a terra, E sob o peso dos frutos ressequidos Do presente Calaram-se os meus sonhos perdidos. Entre os canteiros cercados de buxo, Enquanto subia e caía a água do repuxo, Murmurei as palavras em que outrora Para mim sempre existia O gesto dum impulso. Palavras que eu despi da sua literatura, Para lhes dar a sua forma primitiva e pura, De fórmulas de magia. Docemente a sonhar entre a folhagem A noite solitária e pura Continuou distante e inatingível Sem me deixar penetrar no seu segredo. E eu senti quebrar-se, cair desfeita, A minha ânsia carregada de impossível, Contra a sua harmonia perfeita. Tomei nas minhas mãos a sombra escura E embalei o silêncio nos meus ombros. Tudo em minha volta estava vivo Mas nada pôde acordar dos seus escombros O meu grande êxtase perdido. Só o vento passou pesado e quente E à sua volta todo o jardim cantou E a água do tanque tremendo Se maravilhou Em círculos, longamente.

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«ÀS VEZES JULGO VER NOS MEUS OLHOS» Às vezes julgo ver nos meus olhos A promessa de outros seres Que eu podia ter sido, Se a vida tivesse sido outra. Mas dessa fabulosa descoberta Só me vem o terror e a mágoa De me sentir sem forma, vaga e incerta Como a água.

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CASA BRANCA Casa branca em frente ao mar enorme, Com teu jardim de areia e flores marinhas E o teu silêncio intacto em que dorme O milagre das coisas que eram minhas. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... A ti eu voltarei após o incerto Calor de tantos gestos recebidos Passados os tumultos e o deserto Beijados os fantasmas, percorridos Os murmúrios da terra indefinida. Em ti renascerei num mundo meu E a redenção virá nas tuas linhas Onde nenhuma coisa se perdeu Do milagre das coisas que eram minhas.

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«TUDO ME É UMA DANÇA EM QUE PROCURO» Tudo me é uma dança em que procuro A posição ideal, Seguindo o fio dum sonhar obscuro Onde invento o real. À minha volta sinto naufragar Tantos gestos perdidos Mas a alma, dispersa nos sentidos, Sobe os degraus do ar...

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PAISAGEM Passavam pelo ar aves repentinas, O cheiro da terra era fundo e amargo, E ao longe as cavalgadas do mar largo Sacudiam na areia as suas crinas. Era o céu azul, o campo verde, a terra escura, Era a carne das árvores elástica e dura, Eram as gotas de sangue da resina E as folhas em que a luz se descombina. Eram os caminhos num ir lento, Eram as mãos profundas do vento Era o livre e luminoso chamamento Da asa dos espaços fugitiva. Eram os pinheirais onde o céu poisa, Era o peso e era a cor de cada coisa, A sua quietude, secretamente viva, E a sua exalação afirmativa. Era a verdade e a força do mar largo, Cuja voz quando se quebra, sobe, Era o regresso sem fim e a claridade Das praias onde a direito o vento corre.

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EM TODOS OS JARDINS Em todos os jardins hei-de florir, Em todos beberei a lua cheia, Quando enfim no meu fim eu possuir Todas as praias onde o mar ondeia. Um dia serei eu o mar e a areia, A tudo quanto existe me hei-de unir, E o meu sangue arrasta em cada veia Esse abraço que um dia se há-de abrir. Então receberei no meu desejo Todo o fogo que habita na floresta Conhecido por mim como num beijo. Então serei o ritmo das paisagens, A secreta abundância dessa festa Que eu via prometida nas imagens.

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AS FONTES Um dia quebrarei todas as pontes Que ligam o meu ser, vivo e total, À agitação do mundo do irreal, E calma subirei até às fontes. Irei até às fontes onde mora A plenitude, o límpido esplendor Que me foi prometido em cada hora, E na face incompleta do amor. Irei beber a luz e o amanhecer, Irei beber a voz dessa promessa Que às vezes como um voo me atravessa, E nela cumprirei todo o meu ser.

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QUANDO Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta Continuará o jardim, o céu e o mar, E como hoje igualmente hão-de bailar As quatro estações à minha porta. Outros em Abril passarão no pomar Em que eu tantas vezes passei, Haverá longos poentes sobre o mar, Outros amarão as coisas que eu amei. Será o mesmo brilho, a mesma festa, Será o mesmo jardim à minha porta, E os cabelos doirados da floresta, Como se eu não estivesse morta.

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«NARDO» Nardo Pesado e denso, Opaco e branco, Feito De obscura respiração E de nocturno embalo.

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PRAIA As ondas desenrolam os seus braços E brancas tombam de bruços.

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SONETO DE EURYDICE Eurydice perdida que no cheiro E nas vozes do mar procura Orpheu: Ausência que povoa terra e céu E cobre de silêncio o mundo inteiro. Assim bebi manhãs de nevoeiro E deixei de estar viva e de ser eu Em procura de um rosto que era o meu O meu rosto secreto e verdadeiro. Porém nem nas marés nem na miragem Eu te encontrei. Erguia-se somente O rosto liso e puro da paisagem. E devagar tornei-me transparente Como morta nascida à tua imagem E no mundo perdida esterilmente.

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CAMINHO DA MANHÃ

Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há de pedir-te que veijas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.

Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.

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AS GRUTAS

O esplendor poisava solene sobre o mar. E — entre as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido — quase me cega a perfeição como um sol olhado de frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul e rápido dos peixes. Porém a beleza não é só solene mas também inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um grande rascasso vermelho passa em frente de mim que nunca antes o imaginara. Limpa, a luz recorta promontórios e rochedos. É tudo igual a um sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas palavras, porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na superfície das águas lisas como um chão.

As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá ficando igual à almadilha da qual os pescadores dizem ser apenas água.

Estarão as coisas deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar? Ressoa a vaga no interior da gruta rouca e a maré retirando deixou redondo e doirado o quarto de areia e pedra. No centro da manhã, no centro do círculo do ar e do mar, no alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola branca do mar.

Desertas surgem as pequenas praias. Um fio invisível de deslumbrado espanto me guia de gruta em gruta. Eis o mar e a luz vistos por dentro.

Terror de penetrar na habitação secreta da beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento. Deslizam os meus ombros cercados de água e plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a arquitectura do labirinto paira roída sobre o verde. Colunas de sombra e luz suportam céu e terra. As anémonas rodeiam a grande sala de água onde os meus dedos tocam a areia rosada do fundo. E abro bem os olhos no silêncio líquido e verde onde rápidos, rápidos fogem de mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e desenham a claridade dos espaços matutinos. Os palácios do rei do mar escorrem luz e água. Esta manhã é igual ao princípio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se viu.

O meu olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam. E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são águas e paredes. Eu quereria poisar

como uma rosa sobre o mar o meu amor neste silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo de espanto e de medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe dos abismos e surge em suas portas.

Mas já no mar exterior a luz rodeia a Balança. A linha das águas é lisa e limpa como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados da glória matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu quereria chorar de gratidão com a cara encostada contra as paredes.

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RESSURGIREMOS Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos E em Delphos centro do mundo Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta Ressurgiremos ali onde as palavras São o nome doas coisas E onde são claros e vivos os contornos Na aguda luz de Creta Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo São o reino do homem Ressurgiremos para olhar para a terra de frente Na luz limpa de Creta Pois convém tornar claro o coração do homem E erguer a negra exactidão da cruz Na luz branca de Creta

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INSCRIÇÃO Quando eu morrer voltarei para buscar Os instantes que não vivi junto do mar

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LISBOA Digo: «Lisboa» Quando atravesso — vinda do sul — o rio E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna Em seu longo luzir de azul e rio Em seu corpo amontoado de colinas — Vejo-a melhor porque a digo Tudo se mostra melhor porque digo Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência Porque digo Lisboa com seu nome de ser e de não-ser Com seus meandros de espanto insónia e lata E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro Seu conivente sorrir de intriga e máscara Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata Lisboa oscilando como uma grande barca Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência Digo o nome da cidade — Digo para ver

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O BÚZIO DE CÓS Este búzio não o encontrei eu própria numa praia Mas na mediterrânica noite azul e preta Comprei-o em Cós numa venda junto ao cais Rente aos mastros baloiçantes dos navios E comigo trouxe o ressoar dos temporais Porém nele não oiço Nem o marulho de Cós nem o de Egina Mas sim o cântico da longa e vasta praia Atlântica e sagrada Onde para sempre minha alma foi criada Junho de 1995

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FOI NO MAR QUE APRENDI Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela Ao olhar sem fim o sucessivo Inchar e desabar da vaga A bela curva luzidia do seu dorso O longo espraiar das mãos da espuma Por isso nos museus da Grécia antiga Olhando estátuas frisos e colunas Sempre me aclaro mais leve e mais viva E respiro melhor como na praia

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ARTE POÉTICA III A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima de uma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua a inteira. E também a reconheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeu de Souza-Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida. Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda de uma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor. E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras. Diz o coro de Ésquilo: «nenhuma muralha defenderá aquele que embriagado, derruba o altar sagrado da justiça.» Pois a justiça se confunde com aquele equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer integrar o seu canto. Confunde-se com aquele amor que, segundo Dante, move o Sol e os outros astros. Confunde-se com a nossa confiança na evolução do homem, confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente do esplendor do mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, consequente consigo própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e protesto testemunha a unidade da nossa consciência. A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo duma profunda tomada de consciência. Depois de tantos séculos de pecado burguês a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona a poesia do nosso tempo diz: «Eu sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres.» Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa. O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto de uma torre de marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da convivência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos outros. Mesmo que o artista escolha o isolamento como melhor condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de rigor, de verdade e de consciência ele irá contribuir para a formação duma consciência comum. Mesmo que ele fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser. Eis-nos aqui reunidos, nós escritores portugueses, reunidos por uma língua comum. Mas acima de tudo estamos reunidos por aquilo a que o padre Teilhard de Chardin chamou a nossa confiança no progresso das coisas. E tendo começado por saudar os amigos presentes quero, ao terminar, saudar os meus amigos ausentes: porque não há nada que possa separar aqueles que estão unidos por uma fé e por uma esperança. (Palavras ditas em 11 de Julho de 1964 no almoço promovido pela Sociedade Portuguesa de Escritores por ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia atribuído a Livro Sexto)

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INDICE Da Histór ias da t e r ra e do mar [Stor i e de l la t e r ra e de l mare], 1984 A casa do mar La casa del mare Da Poes ia [Poes ia], 1944 «Apesar das ruínas e da morte» «Nonostante le rovine e la morte» Luar Luna Atlântico Atlantico Mar Mare O jardim e a noite Il giardino e la notte «Às vezes julgo ver nos meus olhos» «A volte credo di vedere nei miei occhi» Casa branca Casa bianca «Tudo me é uma dança em que procuro» «Tutto mi è un danza in cui procuro» Paisagem Paesaggio Em todos os jardins In tutti i giardini As fontes Le fonti «Há cidades acesas na distância» «Ci sono città accese nella distanza» «Sinto os mortos no frio das violetas» «Sento i morti nel freddo delle viole» «Que o Teu gládio me fira mortalmente» «Che il Tuo gladio mi ferisca mortalmente» «No ponto onde o silêncio e a solidão» «Nel punto in cui il silenzio e la solitudine» Da Dia do mar [Giorno de l mare], 1947 Jardim Giardino Dionysos Dionysos Os deuses

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Gli dei Alexandre de Macedónia Alessandro di Macedonia Navegação Navigazione Kassandra Cassandra Catilina Catilina Lua Luna Medeia Medea Aqui Qui Quando Quando Eurydice Euridice Da Coral [Coral lo], 1950 «As minhas mãos mantêm estrelas» «Le mie mani mantengono stelle» «Eis que o mundo em ti cai abolido» «Ecco che il mondo in te cade abolito» «Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.» «Terrore di amarti in un posto così fragile come il mondo» Soneto à maneira de Camões Sonetto alla maniera di Camões «Ouve» «Ascolta» «Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio» «Ti chiamo perché tutto è ancora al principio» «Nardo» «Nardo» «Luminosos os dias abolidos» «Luminosi i giorni aboliti» Pirata Pirata Árvores Alberi Barco Nave

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Da No tempo d iv id ido [Nel t empo d iv i so], 1954 Euridyce Euridice «Iremos juntos...» «Andremo assieme» Praia Spiaggia Poema de amor de António e de Cleópatra Poesia d’amore di Antonio e di Cleopatra Soneto de Eurydice Sonetto di Euridice Santa Clara de Assis Santa Chiara di Assisi O poeta Il poeta Da Mar Novo [Mare nuovo], 1958 Marinheiro sem mar Marinaio senza mare «Este é o tempo» «Questo è il tempo» Biografia Biografia Nocturno da Graça Notturno di Graça Luar Luna Noite Notte Os navegadores I navigatori Passagem Passaggio Da O Cris to Cigano [I l Cri s to g i tano], 1961 O amor L’amore A solidão La solitudine Trevas Tenebre Canção de matar Canzone per uccidere

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Da Livro Sexto [Libro s e s to], 1962 As cigarras Le cicale Pescador Pescatore Musa Musa Caminho da manhã Cammino del mattino As grutas Le grotte Ressurgiremos Risorgeremo No poema Nella poesia Inscrição Iscrizione Fernando Pessoa Fernando Pessoa Pátria Patria As pessoas sensíveis Le persone sensibili O velho abutre Il vecchio avvoltoio Da Geogra f ia [Geogra f ia], 1967 Ingrina Ingrina Procelária Procellaria Eu me perdi Mi sono persa Esta gente Questa gente Espera Attesa Ítaca Itaca Da Dual [Duale], 1972 III «Ausentes são os deuses» III «Assenti sono gli dei»

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O efebo L’efebo Ariane em Naxos Arianna a Naxos Lamentação de Adriano sobre a morte de Antínoos Lamento di Adriano sulla morte di Antinoo Os gregos I greci Da O Nome das Coisas [I l nome de l l e co s e], 1977 Cíclades (evocando Fernando Pessoa) Cicladi (evocando Fernando Pessoa) Torso Torso 25 de Abril 25 aprile Nesta hora In quest’ora Com fúria e raiva Con furia e rabbia Esteira e cesto Stuoia e cesto O rei de Ítaca Il re di Itaca Oásis Oasi A forma justa La forma giusta Da Navegações [Navigazion i], 1977-82 Lisboa Lisbona «À luz do aparecer da madrugada» «Alla luce dell’apparire dell’alba» Da I lhas [Iso l e ] , 1989 Epidauro 62 Epidauro 62 Habitação Abitazione O sol o muro o mar Il sole il muro il mare Fúrias Furie

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Da Musa [Musa], 1994 Os amigos Gli amici Tejo Tago De O Búzio de Cós e outros poemas [La conch ig l ia d i Kos e a l t r e poes i e], 1997 Arte poética Arte poetica O búzio de Cós La conchiglia di Kos Foi no mar que aprendi Nel mare ho appreso Varandas Terrazzi Homero Omero O infante L’infante Alentejo Alentejo Da Poemas dispersos [Poes i e d i sperse] A viagem Il viaggio Avulso, 1964 Poética III Poetica III