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IDENTIFICAÇÃO PATRIMONIAL E INSTRUMENTOS DE INVENTÁRIO APLICADOS ÀS EDIFICAÇÕES HISTÓRICAS DE ESPÍRITO SANTO DO PINHAL - SP Camila Corsi Ferreira Resumo Relato de uma experiência de utilização de instrumentos de inventário aplicados às edificações históricas de Espírito Santo do Pinhal, uma cidade paulista em cuja região a ocupação, por mineiros e paulistas vindos de outra região, remonta o início do século XVIII, e que teve o apogeu de seu desenvolvimento no contexto da expansão da economia cafeeira. Trata-se da elaboração de um registro amplo que inclui levantamentos métricos, fotográficos, documentais e entrevistas, de edificações ecléticas em sua maioria, patrocinadas pela camada da população local formada por proprietários rurais e negociantes bem sucedidos. Numa perspectiva de preservação do patrimônio cultural já foram identificados 34 imóveis que deverão ser conservados integralmente, uma vez que expressam um somatório de valores urbanísticos, históricos e arquitetônicos relevantes para o local. Estes casarões constituem um significativo acervo arquitetônico na cidade, e importante acervo arquitetônico do ecletismo e da história do ciclo cafeeiro no estado de São Paulo. O exemplo apresentado é o do Chalet Monte Negro. Ao longo dos últimos anos, grande parte dessas edificações está sendo destruída ou descaracterizada. Com essa análise buscamos destacar a importância do estudo e do registro da arquitetura da burguesia cafeeira, apontando para a necessidade de conscientização e preservação deste patrimônio como documento histórico e arquitetônico. Palavras-chave: Patrimônio histórico. Inventário. Ecletismo. Ciclo do café. Espírito Santo do Pinhal - SP. Arquiteta e urbanista, graduada e mestre pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo, e doutoranda pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo – Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected] 1

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Artigo IDENTIFICAÇÃO PATRIMONIAL E INSTRUMENTOS DE INVENTÁRIO APLICADOS ÀS EDIFICAÇÕES HISTÓRICAS DE ESPÍRITO SANTO DO PINHAL - SP

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IDENTIFICAO PATRIMONIAL E INSTRUMENTOS DE INVENTRIO APLICADOS S EDIFICAES HISTRICAS DE ESPRITO SANTO DO PINHAL - SPCamila Corsi Ferreira(Resumo

Relato de uma experincia de utilizao de instrumentos de inventrio aplicados s edificaes histricas de Esprito Santo do Pinhal, uma cidade paulista em cuja regio a ocupao, por mineiros e paulistas vindos de outra regio, remonta o incio do sculo XVIII, e que teve o apogeu de seu desenvolvimento no contexto da expanso da economia cafeeira. Trata-se da elaborao de um registro amplo que inclui levantamentos mtricos, fotogrficos, documentais e entrevistas, de edificaes eclticas em sua maioria, patrocinadas pela camada da populao local formada por proprietrios rurais e negociantes bem sucedidos. Numa perspectiva de preservao do patrimnio cultural j foram identificados 34 imveis que devero ser conservados integralmente, uma vez que expressam um somatrio de valores urbansticos, histricos e arquitetnicos relevantes para o local. Estes casares constituem um significativo acervo arquitetnico na cidade, e importante acervo arquitetnico do ecletismo e da histria do ciclo cafeeiro no estado de So Paulo. O exemplo apresentado o do Chalet Monte Negro. Ao longo dos ltimos anos, grande parte dessas edificaes est sendo destruda ou descaracterizada. Com essa anlise buscamos destacar a importncia do estudo e do registro da arquitetura da burguesia cafeeira, apontando para a necessidade de conscientizao e preservao deste patrimnio como documento histrico e arquitetnico.Palavras-chave: Patrimnio histrico. Inventrio. Ecletismo. Ciclo do caf. Esprito Santo do Pinhal - SP.AbstractReport of an inventory tools experiment applied to historic buildings of Esprito Santo do Pinhal, a city of So Paulo region in which the occupation, by mineiros and paulistas that came from another region, date back to the early eighteenth century, and had its developments peak in the context of the expansion of the coffee economy. This is the development of a comprehensive record that includes metric surveys, photographic, documentary and interviews, of eclectic buildings mostly sponsored by a class of landowners and successful businessmen. For the sake of preservation of cultural heritage have been identified 34 buildings to be retained in full, because they express a sum of urban values, historical and architectural relevant to the site. These houses constituteasignificantarchitectural heritage in the city,and importantarchitectural collectionof eclecticismand historyof the coffee cyclein the stateof SoPaulo.The example shown is that of Chalet Monte Negro. Over the pastyears, most of thesebuildings havebeen destroyed oruncharacteristic. Withthis analysis, we seekto highlight theimportance of studying and recording thearchitecture of thecoffee bourgeoisie,pointing tothe need forawareness and preservationof this heritageand architecturalhistorical document.Keywords: Historical Heritage. Inventory. Eclecticism. Cycle of coffee. Esprito Santo do Pinhal - SP.Introduo

Ao buscar a compreenso do presente para a construo de um futuro consciente, o estudo do passado e seu reconhecimento atravs de uma releitura constante dos fatos mais significativos se fazem questo fundamental. A identidade de um povo , alm de outros fatores, formada com referncias de sua memria, seu passado. O sculo XIX e o incio do sculo XX so de especial interesse por representarem um perodo de grandes transformaes no panorama da cultura nacional. A transferncia da Corte para o Brasil, a mudana da sede do governo para o Rio de Janeiro, deslocando o centro de decises e a polarizao do comrcio interno e externo, a abertura dos portos s naes amigas tiveram como consequncia o desencadeamento de fatos histricos como a Independncia e a decadncia e posterior abolio do trabalho escravo que iro culminar, em fins do sculo, com a proclamao da Repblica. A segunda metade do sc. XIX e as primeiras dcadas do sc. XX constituem um perodo de intensas transformaes no modo de vida patriarcal da sociedade paulista.

O sculo XIX foi tambm o perodo da introduo da cultura do caf no estado de So Paulo, um novo ciclo agrcola que j existia em Campinas em 1830, e cuja expanso atingiu, por volta de 1880, a regio de Esprito Santo do Pinhal, uma cidade paulista em cuja regio a ocupao, por mineiros e paulistas vindos de outra regio, remonta o incio do sculo XVIII, e que teve o apogeu de seu desenvolvimento no contexto da expanso da economia cafeeira. Financiados pela riqueza acumulada pelo caf, vrios casares urbanos foram construdos em Esprito Santo do Pinhal nas ltimas dcadas do sc. XIX, principalmente depois da instalao da ferrovia na cidade, e nas trs primeiras dcadas do sc. XX, e constituem um importante acervo arquitetnico do ecletismo e da histria do ciclo do caf no estado de So Paulo. Em geral, localizam-se no centro da cidade, principalmente prximo Praa da Matriz. Para a anlise e compreenso da histria das cidades e das pessoas, a arquitetura tem papel relevante por materializar, nas edificaes, os modos de vida e de construo de uma poca. Alm de referncia urbana, as edificaes so a histria materializada. Nesse sentido, entende-se que os bens de relevncia histrica e/ou arquitetnica devem ser devidamente documentados e inventariados, antes mesmo de qualquer ao preservacionista.

Nesse sentido, este trabalho apresenta o relato de uma experincia de utilizao de instrumentos de inventrio aplicados s edificaes histricas Esprito Santo do Pinhal, atravs da exposio de um levantamento completo. Trata-se da elaborao de um registro amplo que inclui levantamentos mtricos, fotogrficos, documentais e entrevistas, de edificaes eclticas em sua maioria, patrocinadas pela camada da populao local formada por proprietrios rurais e negociantes bem sucedidos. Numa perspectiva de preservao do patrimnio cultural j foram identificados 34 imveis que devero ser conservados integralmente, uma vez que expressam um somatrio de valores urbansticos, histricos e arquitetnicos relevantes para o local. Desse total, foi realizado o levantamento completo em 14 edificaes. As etapas necessrias para a elaborao do inventrio do patrimnio material de Esprito Santo do Pinhal foram guiadas por publicaes j existentes, baseando-se em seu trabalho de sistematizao, e tambm a partir da anlise de diferentes metodologias aplicadas pelo IPHAN, e pelos governos de vrios estados. O levantamento sistemtico consta de registro das caractersticas formais das edificaes e de anlise tipolgica, sistematizadas em ficha de identificao contendo dados histricos e construtivos, fotografias e plantas.

A construo do inventrio de bens arquitetnicos etapa indispensvel no processo de registro de bens culturais, trabalho necessrio no sentido de incentivar a preservao dos mesmos e viabilizar aes municipais nesse sentido. A organizao desse amplo registro pretende, atravs dos instrumentos de inventrio, fornecer subsdios para o conhecimento e a conscientizao da sociedade local sobre seu patrimnio, como documento histrico e arquitetnico, e a necessidade de preserv-lo. 1. A cidade Esprito Santo do Pinhal, cidade paulista que teve sua formao na mesma poca do surto cafeeiro e seu desenvolvimento por ele patrocinado, situa-se na regio sudeste do Brasil, a leste do estado de So Paulo, a 199 km da capital paulista, a 95 km de Campinas e apenas 20 km da fronteira com o sul do estado de Minas Gerais. Foi fundada em 27 de dezembro de 1849. Cidade de pequeno porte, sua populao de 40.480 mil habitantes distribudos em 392 km2, sendo o permetro urbano de 10 km2. Pinhal originou-se a partir de uma doao de terras que estava relacionada a uma disputa entre fazendeiros pela sua posse. Sua origem foi singular, uma vez que a cidade no surgiu a partir de povoaes preexistentes nem teve seu stio escolhido com o intuito de se formar uma aglomerao. O local onde hoje se encontra o centro, iniciado em 1849, foi escolhido por ter sido o palco de confronto relevante envolvendo os donos das fazendas. Trata-se de um lugar alto, um espigo circundado por crregos e ribeires na parte mais baixa, fazendo parte de um amplo entorno de topografia montanhosa. O ncleo inicial foi organizado em torno da praa da atual Igreja Matriz (Praa da Independncia), ento capela, de onde partem algumas ruas em tabuleiro de xadrez at o limite das divisas originais do patrimnio.

Os casares urbanos financiados por essa riqueza advinda da cultura cafeeira foram construdos em Pinhal nas ltimas dcadas do sculo XIX, principalmente depois da instalao da ferrovia na cidade, e nas trs primeiras dcadas do sculo XX, e constituem ainda um significativo acervo arquitetnico na cidade. So belas residncias construdas para fazendeiros de caf e profissionais liberais enriquecidos, como mdicos e advogados, em sua maioria no perodo compreendido entre 1880 o incio do progresso da cafeicultura na cidade e 1930, que, em decorrncia da quebra da bolsa em Nova Iorque, gerou um processo de estagnao na economia local e consequentemente, na produo arquitetnica.

Os registros de imagem mais antigos de Pinhal, que datam da dcada de oitenta do sculo XIX, indicam uma cidade com vnculos arquitetnicos tradicionais, percebidos nos casares edificados no alinhamento e nas laterais dos lotes, com telhados geralmente de duas guas com beirais, ainda construdos em taipa. Na dcada seguinte notrio o aumento no nmero de edificaes, e percebemos que, apesar das poucas modificaes empreendidas, j possvel encontrarmos construes da classe abastada comeando a incorporar os princpios do ecletismo, como as platibandas. Em Pinhal, a arquitetura ecltica foi introduzida pelo fazendeiro de caf, que frequentemente visitava So Paulo e Rio de Janeiro, e que, conhecendo tambm as cidades europeias, buscou inspirao na produo arquitetnica destes lugares para executar sua prpria residncia urbana, que deveria representar sua posio social e econmica. A consolidao dessa imagem do fazendeiro de caf passou necessariamente pela remodelao de sua residncia urbana. Dessa forma, esse ecletismo produzido em outros lugares e especialmente na capital da ento provncia de So Paulo serviu de para novas apropriaes e reinterpretaes locais.

Apesar de ser importante acervo arquitetnico, ao longo dos anos, grande parte dessas edificaes vem sendo destruda ou descaracterizada, sendo escassos os registros, documentao ou estudos mais aprofundados.

2. Instrumentos de inventrioPara a anlise e compreenso da histria das cidades e das pessoas, a arquitetura tem papel relevante por materializar, nas edificaes, os modos de vida e de construo de uma poca. Alm de referncia urbana, as edificaes so a histria materializada. Nesse sentido, entende-se que os bens de relevncia histrica e/ou arquitetnica devem ser devidamente documentados e inventariados, antes mesmo de qualquer ao preservacionista.

O trabalho de inventrio do patrimnio arquitetnico a principal ferramenta de documentao, e cria um amplo panorama dos bens arquitetnicos de uma localidade. A partir do levantamento de dados necessrios, como a construo do conhecimento histrico de como surgiu a edificao, quais suas caractersticas primitivas, seus elementos construtivos, suas alteraes ao longo do tempo etc, pode-se reunir as informaes para a elaborao de um inventrio, que deve seguir um procedimento metodolgico especfico e que servir de base para a elaborao de um dossi sobre a edificao.

Numa perspectiva de preservao do patrimnio cultural, visando legitimao e perpetuao, nessa sociedade, de seus bens culturais, seja pelo reconhecimento e preservao do objeto, ou atravs de sua documentao, vem sendo elaborado amplo registro das edificaes, atravs de levantamentos mtricos, fotogrficos, documentais e entrevistas. Tais instrumentos de inventrio sero um caminho para o conhecimento e a conscientizao da sociedade local sobre seu patrimnio e a necessidade de preserv-lo.

2.1 Abordagem metodolgicaAs etapas necessrias para a elaborao do inventrio do patrimnio material de Esprito Santo do Pinhal foram guiadas por publicaes j existentes, baseando-se em seu trabalho de sistematizao, e tambm a partir da anlise de diferentes metodologias aplicadas pelo IPHAN, e pelos governos de vrios estados. Nesse caso, o procedimento metodolgico utilizado tem como referncia principal as fichas de inventrio do Inepac Rio de Janeiro, as fichas desenvolvidas pelo Ipac Bahia, as fichas elaboradas pelo DPH So Paulo, e tambm pelo IPHAN, bem como textos de apoio que abordam a questo da metodologia para inventrios.Entre as edificaes de interesse histrico na cidade, correspondentes ao ciclo do caf, j foram identificados 34 imveis que devero ser indicados para serem conservados integralmente, uma vez que expressam um somatrio de valores urbansticos, histricos e arquitetnicos relevantes para o local. Alm disso, j foi realizado levantamento em 14 edificaes, cujos registros tero implantao no lote, planta, fotos internas e fotos externas, alm de uma ficha de levantamento contendo dados sobre a edificao. O levantamento documental de primordial importncia ao possibilitar a anlise e avaliao dos dados vistos in loco.

Figura 1. Mapa do centro da cidade com a localizao dos casares. (Fonte: Ferreira, 2010)A escolha dos casares obedeceu aos seguintes critrios:

cronolgico, edificados entre 1880 incio do progresso da cafeicultura na cidade e portanto da riqueza e 1930, perodo da quebra da bolsa, que gerou um processo de estagnao na economia local e consequentemente, na produo arquitetnica;

localizao das residncias, em sua maioria implantadas no centro da cidade;

disponibilidade das fontes, a fim de facilitar o trabalho e reduzir tempo;

diferenas tipolgicas e formais de exceo, dificilmente encontradas em cidades de pequeno porte com relao ao mesmo perodo;

edificaes que apresentarem risco de demolio, devido ao risco de perd-los sem documentao;

residncias onde ainda exista mobilirio de poca, possibilitando uma reconstruo mais consistente do modo de vida da poca.

A ficha de inventrio dever conter o maior nmero de informaes possveis sobre o edifcio, reunindo conhecimentos de vrios aspectos para sua catalogao e posterior anlise. Essa ficha dever apresentar:

nome da edificao;

nmero de registro;

localizao e endereo original;

primeiro proprietrio e atual proprietrio;

construtor e poca/ano da construo;

uso original e atual;

possibilidades de acesso ao bem inventariado;

data do levantamento e contato;

descrio e histrico arquitetnico, contendo descrio da rea do entorno;

existncia de projetos, fotos e mveis antigos, memoriais, documentao sobre o imvel etc;

intervenes realizadas;

estado de conservao;

descrio e caracterizao da edificao: tipologia, partido, implantao, caractersticas particulares, estilo arquitetnico;

dados tcnicos, materiais e sistemas construtivos;

levantamento arquitetnico contendo representao grfica da planta, utilizando a ferramenta CAD;

levantamento fotogrfico externo de todas as edificaes e interno quando possibilitado o acesso;

documentao iconogrfica;

meios de preservao.

3. Modelo de ficha de inventrio

A seguir ser apresentado um modelo de levantamento, documento histrico e instrumento indispensvel para possveis intervenes, que consiste no registro grfico do imvel construdo a partir da tomada de medidas das fachadas, ambientes internos e detalhes construtivos essenciais leitura do edifcio e sua representao. Nele consta o registro das caractersticas formais das edificaes e de anlise tipolgica, sistematizadas em ficha de identificao contendo dados histricos e construtivos, fotografias e plantas. Todo o material coletado foi digitalizado com o uso da ferramenta CAD.Buscou-se a reconstruo da histria do bem arquitetnico estudado, iniciando-se pela coleta de dados da edificao. As fontes para essa etapa foram os acervos locais pblicos e particulares, com material iconogrfico e bibliogrfico, visitas de campo e entrevistas. Em seguida foi definida a localizao da edificao na malha urbana, e posteriormente a tipologia arquitetnica, que tem relao com a funo do edifcio, implantao e distribuio dos espaos internos. Os produtos dessa etapa so as fotografias internas e externas e a representao grfica da planta e da implantao. Nesse momento buscou-se analisar a distribuio dos ambientes internos, bem como hbitos e costumes na poca da construo, e tambm classificar o estilo arquitetnico.

Procurou-se identificar tambm os sistemas e materiais construtivos, permitindo o conhecimento da tcnica construtiva utilizada no perodo da construo, dos seus elementos estruturais e arquitetnicos caractersticos, e dos materiais e mtodos de sua utilizao. 3.1 O Chalet Monte NegroAo contrrio dos outros fazendeiros, encontramos diferente opo por parte do Comendador Monte Negro, que preferiu se instalar longe do centro, prximo Estao Ferroviria recm-inaugurada, exatamente onde os imigrantes no pertencentes elite habitavam, local que Tamaso (1998) chamou de parte baixa da cidade. Essa regio compreendia o entorno da Vila Monte Negro, prximo ao prdio da Estao Ferroviria e ao chalet do Comendador, sendo que ambas as edificaes pertenciam ao Comendador Joo Elisrio de Carvalho Monte Negro. Prspero fazendeiro de caf, Monte Negro loteou essas terras e fundou a Vila Montenegro, doando uma parte para a instalao do prdio da Estao Ferroviria e construindo, em 1896, o chalet em um dos seus terrenos. O fechamento do terreno desse casaro era feito por meio de gradis de meia altura em 1903, mas atualmente cercado por muros altos, e tanto o porto de acesso principal quanto o porto para automveis so em madeira, sem ornamentos. Monte Negro emigrou para o Brasil no incio da dcada de 1840, vindo de Lous, prximo a Coimbra, Portugal, e se dedicou primeiramente ao comrcio, trabalhando como caixeiro viajante. Realizou sua primeira viagem provncia de So Paulo em 1856, e j em 1867 comprou as terras onde fundou a Colnia Nova Louz, onde se estabeleceu com 29 imigrantes portugueses, com trabalho livre e remunerado em plena poca do regime de escravido no Brasil, segundo Bartholomei (2010). Em 1894 realizou uma viagem Europa, retornando um ano depois, e em 1896 construiu seu casaro, conhecido em Pinhal como chalet do Comendador. Faleceu em 8 de maio de 1915, com quase 91 anos, solteiro, e est sepultado no Cemitrio Municipal de Pinhal em um tmulo simples, segundo seu desejo expresso em testamento. Como no teve filhos, deixou o chal para seu sobrinho Alfredo. O segundo proprietrio do casaro era da famlia Pieroti, e em 1949 passou a pertencer a Fernando V. Martins, sendo que sua esposa, Lavnia Lessa Martins, vendeu o imvel em 1976 para o atual proprietrio, Jacob Leme Antunes.

Entendemos que a opo do Comendador por construir sua residncia nesse local se deve ao fato de ser possuidor de quase todo o entorno nessa regio, e, alm disso, tambm era imigrante como a maior parte da populao desse local. Foi uma pessoa de ideias progressistas, avanadas para a poca, e pudemos perceber pelos registros que era uma pessoa altrusta, livre de preconceitos. Talvez por tudo isso Monte Negro tenha se sentido livre para se instalar em suas terras, em oposio elite do entorno da Igreja Matriz. Acreditamos, inclusive, na hiptese de ter sido o Comendador de certa forma excludo da sociedade abastada da poca, ainda que de maneira sutil e velada, por causa de seus pensamentos de liberdade em uma poca de escravido; de igualdade em um tempo da mais marcada discriminao social.O terreno onde foi construdo o sobrado em 1896 tem um pequeno declive. de uso residencial, elevado do solo com base de pedra e com poro que aproveita o declive natural do terreno, e as paredes so de tijolos, fabricados na olaria da Colnia Nova Louz, de sua propriedade, contendo suas iniciais. Foi erguido no alinhamento e com jardins laterais, sendo sua volumetria movimentada. Est implantado em lote bastante irregular, com seu formato parecido com um tringulo, e trs faces so voltadas para diferentes ruas. A fachada frontal simtrica, e as demais fachadas voltadas para a rua apresentam apenas janelas. As fachadas voltadas para o jardim lateral e para o quintal apresentam portas e janelas.

Figuras 2 e 3. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A primeira imagem contem as informaes gerais do edifcio; a segunda imagem mostra sua localizao e ambincia. (Fonte: Ferreira, 2010)

Figuras 4 e 5. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A figura 4 mostra a implantao do edifcio, e a figura 5 mostra a planta do trreo. (Fonte: Ferreira, 2010)

Figuras 6 e 7. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A figura 6 mostra a planta do pavimento superior, e na figura 7 vemos a descrio arquitetnica e dados tipolgicos e construtivos. (Fonte: Ferreira, 2010)

Figuras 8 e 9. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A duas figuras apresentam a descrio arquitetnica e os dados tipolgicos e construtivos. (Fonte: Ferreira, 2010) Figuras 10 e 11. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A figura 10 trata do estado de conservao e das intervenes realizadas no edifcio. A figura 11 mostra os dados histricos encontrados e a proteo existente, quando h, dos rgos de preservao. (Fonte: Ferreira, 2010)Concluso

A arquitetura do sculo XIX vem sendo progressivamente estudada e reavaliada, em um processo iniciado h algumas dcadas, passando necessariamente pela quebra dos preconceitos. Esse movimento certamente est contribuindo para o surgimento de uma nova conscincia sobre a proteo e a restaurao do patrimnio cultural do sculo XIX e das primeiras dcadas do sculo XX. Essa arquitetura guarda em si valores culturais, sociais e simblicos. So representantes de distino social e poder econmico de uma poca de importantes e significativas transformaes. fundamental a preservao dessas referncias que representam as razes culturais do lugar, documentos vivos da memria cultural da cidade.A construo do inventrio de bens arquitetnicos e posteriormente uma anlise da edificao em seu contexto mais amplo so etapas indispensveis no processo de registro de bens culturais, trabalho necessrio no sentido de incentivar a preservao dos mesmos e viabilizar aes municipais nesse sentido. Alm disso, almejamos propiciar um maior conhecimento do lugar, das pessoas e das edificaes, pois conhecendo a histria entenderemos nosso presente. Verificamos uma preocupante escassez de estudos referentes ao objeto, o que certamente impede que aes que assegurem sua manuteno sejam devidamente tomadas. No se preserva aquilo que no se conhece, preciso dar a conhecer para ento saber preservar. Nesse sentido, atravs do registro dessa arquitetura, pretendemos apresentar alguns subsdios para contribuir para que haja maior conscientizao sobre a necessidade de preservao desse patrimnio como documento histrico e arquitetnico.Referencias

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E-mail: [email protected]

O presente artigo foi elaborado a partir da dissertao de mestrado Arquitetura residencial urbana: Esprito Santo do Pinhal, 1880-1930, orientada pela Profa Dra Maria ngela P. C. S. Bortolucci e defendida em 2011 na EESC-USP.

No decorrer do texto iremos nos referenciar cidade apenas pelo nome Pinhal, por ser esta a forma mais usada por seus moradores.

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