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Luiz Fernando da Silva Gisele C. Costa Lamericas.org Junho/2014

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  • Luiz Fernando da Silva

    Gisele C. Costa

    Lamericas.org Junho/2014

  • Lamericas.org 1

    Governo de Maduro negocia com burguesia, aplica

    pacote econômico antipopular e reprime protestos sociais

    Luiz Fernando da Silva1

    Gisele C. Costa2

    Introdução

    A crise política e social na Venezuela aprofunda-se com a intensificação da

    crise econômica no país. Os aspectos imediatos e mais visíveis de tal crise

    referem-se à inflação descontrolada e crescente desde 2012, endividamento

    público em alta (interno e externo) e desabastecimento de produtos alimentícios.

    De quebra os índices sobre a criminalidade no país assustam a classe média e

    preocupam o governo.

    Pelo agravamento da crise econômica e seus desdobramentos políticos e

    sociais, a conjuntura venezuelana aproxima-se do momento histórico enfrentado

    por outros países sul-americanos governados por projetos frentepopulista como

    Argentina e Brasil. Em geral, a fragilidade e submissão dessas Frentes Populares

    diante da crise internacional do Capital desdobram-se em descontentamentos

    populares materializados pelo aumento de protestos que questionam as políticas

    adotadas por esses governos.

    Na Venezuela, esse cenário central que permeia a vida da população,

    possibilita compreender a persistência dos protestos sociais estudantis, iniciados

    em fevereiro deste ano. Indica que esses não se sustentam exclusivamente na

    perspectiva político-ideológico golpista, como se manifestava na frase “La salida

    1 Graduado em História. Mestre e Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Pós-Doutorado em Sociologia pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Docente de Sociologia, Sociologia da Arte e Cultura Brasileira na Unesp. Coordenador do Grupo de Pesquisa América Latina e Marx: Movimentos Sociais, Partidos, Estado e Cultura – Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). Editor do Portal Lamericas (www.lamericas.org). E-mail: [email protected] 2 Graduada em Pedagogia – Universidade Estadual Paulista (Unesp). Mestranda em Educação pelo Programa de Integração da América Latina – Universidade de São Paulo (Prolam-USP). Integrante do grupo de pesquisa América Latina e Marx: Movimentos Sociais, Partidos, Estado e Cultura – Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). Pesquisadora da Rede de Estudos Latino-Americanos de Trabalho Docente (Red Estrado). E-mail: [email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]

  • Lamericas.org 2

    es por las calles”, palavra de ordem lançada pelo direitista Leopoldo López e

    seus correligionários. O oxigênio dessas mobilizações baseia-se em demandas

    concretas sociais e políticas. Evidenciam questões sensíveis não somente para

    setores das classes médias venezuelanas, por princípio anti-chavista e pró-

    estadunidense, mas também problemas muito concretos sentidos pela maioria da

    população. Em realidade, os protestos sociais sintonizam com a crise econômica

    que se acelerou no país, nos últimos dois anos.

    As manifestações serviram, ou melhor, foram utilizadas como base para

    três movimentos distintos ocorridos a partir de fevereiro: a) para a burguesia

    serviu como pressão política ao governo Maduro para retomar as negociações

    com a Fedecâmaras que foram suspensas em outubro de 2013; b) nas hostes

    governamentais possibilitou uma espécie de cortina de fumaça sobre as

    concessões econômicas e medidas antipopulares, como também

    legitimou/justificou o endurecimento do regime político contra os opositores

    burgueses, mas também a criminalização de opositores do campo operário e

    popular; c) dentro do chavismo rearticulou forças políticas e, no aparelho de

    estado, permitiu o fortalecimento principalmente da ala de Diosdado Cabello,

    ligado a setores militares empresariais, como vemos no crescimento desses

    setores em cargos estratégicos estatais.

    A intervenção governamental na área da política econômica em 2014

    sinaliza que o Governo de Maduro mantém-se sintonizado com o capital

    financeiro internacional, as multinacionais e a burguesia parasitária local. A

    “Mesa pela Paz Econômica”, rodada de negociações entre governo e a entidade

    empresarial Fedecâmaras, indica o retorno dos acordos e concessões

    governamentais às frações burguesas no país. Em meio ao aprofundamento da

    crise, o governo detonou um pacotaço econômico de caráter antipopular, mas

    preservando as reivindicações e interesses do empresariado. Maduro, no

    entanto, tem receio das reações populares contra essas medidas que atingem

    desde os reajustes dos produtos alimentícios, corte de subsídios à gasolina e

    elevação das tarifas de energia elétrica, passando por reajuste em 30% do salário

    mínimo (muito abaixo da inflação), até o chamado SICAD II que elimina o

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    controle cambial existente desde 2004. Essas medidas somente servem como

    combustível para a intensificação dos problemas sociais, uma vez que

    impulsionam ainda mais o processo inflacionário.

    Por qualquer ângulo que seja analisado o cenário venezuelano, salta aos

    olhos as evidências sobre a crise econômica no país, sincronizando com a crise

    internacional. Essa crise é contornada pelo governo por meio da receita clássica:

    jogar a crise sobre os trabalhadores e a população, manter a ordem social por

    meio de um controle social repressivo, e conceder cada vez mais para os setores

    empresariais.

    O governo “enfrenta” a crise econômica e política da seguinte maneira: a)

    negociação e concessão econômica para a burguesia, com aumento generalizado

    dos preços dos produtos alimentícios, lançamento do SICAD II e corte nos

    subsídios ao gás, energia elétrica, gasolina etc.; b) endurecimento político e

    criminalização dos movimentos de protestos, com prisões, processos judiciais e

    cassações de políticos; c) abertura da Mesa de Negociação com um setor da

    oposição liberal (MUD), mas sem conceder nenhum milímetro nas reivindicações

    oposicionistas.

    Protestos sociais estudantis e da oposição liberal radicalizada

    Em três meses de protestos sociais, de acordo com o Fórum Penal

    Venezuelano, desde fevereiro deste ano, 3076 manifestantes foram detidos e

    processados, dos quais 203 são menores de idade, e 165 manifestantes

    encontram-se privados de liberdade. Até o momento são mais de 550 feridos e

    41 mortos nos protestos. Ainda no marco da repressão, ocorreu a prisão de

    Leopoldo López, líder do partido Primeira Justiça, a cassação do mandato da

    deputada Maria Corina Machado, do partido Vente Venezuela, e as prisões e

    cassações dos prefeitos Daniel Ceballos (Sán Cristóbal) e Enzo Scarano (San

    Diego).

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    A repressão militar e perseguição política não ocorrem somente contra os

    estudantes e a oposição liberal representantes de frações das camadas sociais

    médias, frações burguesas e imperialismo. Ela também ocorre de maneira

    sistemática há tempos contra os trabalhadores e suas lideranças e organizações

    sindicais não atreladas ao governo, em várias regiões do país, nas greves e

    reivindicações. A coerção e perseguição ao movimento sindical de oposição de

    esquerda e a militarização dos espaços sociais sob o pretexto de combate à

    violência urbana são permanentes.

    As denúncias são inúmeras sobre o caráter intimidatório e truculento da

    Guarda Nacional Bolivariana (GNB) e do Sistema Nacional de Informação

    Bolivariana (Sebin) na desmobilização, prisões e processos judiciais contra

    trabalhadores em greve e suas lideranças. A diferença política principal em

    relação aos protestos estudantis é que os trabalhadores venezuelanos não

    conseguiram até o momento constituir um pólo aglutinador que lhe permitisse a

    independência organizativa e ideológica em relação ao chavismo. A principal

    razão encontra-se nas direções das instituições sindicais que majoritariamente são

    base social e política do chavismo.

    A oposição liberal agrupa-se em dois campos políticos, aparentemente

    distintos, com táticas que se diferenciam na atual conjuntura, mas que pertencem

    à mesma tradição golpista de 2002. Em torno da Mesa de Unidade Democrática

    (MUD), composta por cerca de 30 agrupações políticas. Na outra ponta

    encontram-se agrupamentos como o Primeira Justiça (PJ) e Vontade Popular

    (VP). Essa oposição, no período aberto em fevereiro, encontrou-se com

    iniciativas em dois campos: mesa de negociação com o governo, levada pelo

    MUD, e radicalização de rua apoiada pelo PJ e VP. Nesses dois campos

    oposicionistas encontram-se as principais referências políticas conservadoras e

    claramente de direita: Henrique Capriles, ex-candidato presidencial e governador

    de Miranda, e Leopoldo López.

    Certamente é possível verificar nessas ações táticas diferenciadas uma

    divisão no corpo da oposição burguesa. Por um lado, a aposta de que o desgaste

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    do governo somente ocorreria nas ruas; por outro lado, a ponderação de que

    seria um processo acumulativo de derrotas e desgastes da imagem governista que

    se encerraria em processo eleitoral.

    Essas aparentes diferenças táticas têm resultado conjugado. Talvez a melhor

    posição para olhar esse quadro político seja a seguinte: pela primeira vez na

    história do chavismo, desde 1998, a oposição criou espaços políticos que de fato

    conseguiram inúmeras concessões governamentais. A oposição liberal logrou a

    concessão de mesa de negociação, mesmo com a manutenção das prisões de suas

    lideranças e manifestantes, mas também mantém as mobilizações de rua, pois é

    onde de fato se localiza sua força política. Esse trunfo opera como uma faísca em

    barril de pólvora, uma vez que os protestos sociais podem se ampliar,

    extrapolando os setores médios estudantis para outros setores da população.

    Existe um cenário político que ultrapassa a realidade imediata apresentada

    como polarização entre forças governamentais e manifestantes “golpistas” anti-

    governo. Existem mediações relevantes na composição do quadro político

    venezuelano que escapam de tais classificações dualistas. Por baixo de tal

    polarização, em realidade o que ocorreu foi uma outra negociação, de Maduro

    com a burguesia, na chamada “Mesa de Negociação...”. Essa negociação teve um

    caráter estritamente econômico no qual o governo realizou praticamente todas

    as reivindicações do empresariado.

    A outra mesa de negociação, iniciada em 15 de março, e encabeçada pelo

    MUD teve um caráter exclusivo de negociação política, na tentativa de conter os

    protestos sociais estudantis. Com transmissão por rede nacional de rádio e

    televisão, possibilitou ao governo ganhar tempo, pouco ou nada concedendo à

    oposição. Com tal movimentação, logrou respaldo e mediação internacional

    junto ao Vaticano, Unasur e, de certa maneira, impediu que o EUA avançasse na

    tentativa de algum tipo de sanção à Venezuela, como exigia a oposição liberal

    radicalizada. Esse cenário isolou ainda mais a oposição política em torno de

    Leopoldo López, Maria Corina Machado e as entidades estudantis, como a

    conservadora Juventude Ação Venezuela (Javu). E o interessante é que tirou de

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    cena alguns dos principais líderes da oposição liberal extremada, que foram

    presas e perderam seus mandatos.

    A oposição do MUD, no entanto, retirou-se da “mesa de diálogo”, uma

    vez que de fato nada foi negociado nas reivindicações apresentadas ao governo,

    entre elas a anistia aos presos políticos, a começar por Leopoldo López, e outros

    que estão nas prisões desde a tentativa de golpe em fevereiro de 2002. Ao

    mesmo tempo, a criminalização e a repressão aos protestos e aos opositores

    somente aumentaram com a alegação supostamente “documentada” sobre a

    ação golpista e as datas para derrocada do governo. Os protestos de rua, por sua

    vez, estão pouco a pouco diminuindo, embora se mantenham radicalizados e

    com muitas prisões.

    Para o governo de Maduro estreitam-se os limites de manobra não

    somente em razão dos protestos sociais e fortalecimento político da oposição

    liberal, inclusive com repercussão internacional negativa sobre a repressão, mas

    também porque não consegue se manter como liderança pilar do chavismo.

    Suas posições sobre a mesa de negociação com a oposição liberal são criticadas

    por setores chavistas, uma vez que esses compreendem a oposição burguesa

    como eminentemente golpista. Por outro lado, também criticam a negociação

    econômica que foi realizada com a Fedecâmaras. A proposta política do SICAD II

    é exemplo manifesto das concessões governamentais à burguesia venezuelana.

    Nicolás Maduro opera com um chavismo que não se encontra coesionado,

    depois da morte de Chávez, sendo único ponto consensual a repressão e

    criminalização dos protestos sociais.

    As negociações de Maduro de fato ocorreram com a burguesia

    A inflação superou a marca dos 56,2%, em 2013, considerada a mais alta

    do mundo, sendo que a alta dos preços dos alimentou atingiu 72,7% e,

    anualizada em março de 2014, atingiu 79%. Ao lado disso, soma-se a escassez

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    generalizada de bens alimentícios que superou a 20% em média em 2013 e mais

    de 30% em março de 2014.

    Nesse cenário, o governo desvalorizou o bolívar, entre fevereiro de 2013 e

    março de 2014, em três momentos: a) passou o dólar Cadivi de 4,30 bolívares a

    6,30 (desvalorização de 46,5%); b) liberou o dólar Sitme de 5,30 bolívares para

    11,70 bolívares no Sicad I (120,7% de desvalorização); c) e no ano de 2014, com

    o Sicad II passando a média de 50,0 bolívares (desvalorização de 693,6%) com

    relação ao dólar Cadivi, agora chamado Cencoex. O dólar paralelo passou a 80

    bolívares em fevereiro de 2014, embora tenha recuado em 24 de março com a

    entrada em funcionamento do Sicad II, chegando a 67 bolívares em 15 de abril.

    A negociação realizada entre o governo e setores empresariais retomada

    em fevereiro último, duas semanas após o início dos protestos estudantis e da

    oposição liberal. Com a participação de setores empresariais, como a Empresa

    Polar, do magnata Lorenzo Mendonza, e com a Fedecâmaras (Federação de

    Câmaras e Associações de Comércio e Produção da Venezuela) estabeleceu-se aí

    um compromisso do Governo com os grandes empresários, no sentido de

    realizar concessões às suas reivindicações econômicas.

    Na designada “Mesa de Paz Econômica”, a burguesia conseguiu inúmeras

    concessões governamentais, como reajustes nos preços de produtos e serviços

    que estavam tabelados oficialmente, como a majoração nos preços dos

    alimentos, ajustes que também envolveu o aumento do valor das passagens de

    transporte público, corte do subsídio na gasolina e aumento das tarifas do setor

    elétrico. Se antes o empresariado era tachado pelos chavistas como “burguesia

    parasitária”, passou a ser valorizada como “setor produtivo”, o qual o governo

    oferece uma convivência pacífica para o desenvolvimento das “forças

    produtivas” nacionais.

    Nessa negociação, 56 medidas econômicas foram aprovadas pelo governo.

    Tais medidas foram publicizadas por meio de anúncios dispersos realizados pelo

    governo, como estratégia para atenuar o impacto político e social que realmente

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    tem o pacote de medidas econômicas adotadas3. Como são apresentados na

    página oficial do governo, os “56 pontos do acordo surgiram das propostas

    feitas pelos empresários do setor privado, depois de instalar seis mesas de

    trabalho com o Governo Bolivariano derivado da primeira Conferência da Paz,

    instalada pelo Presidente da República, Nicolás Maduro, em 26 de fevereiro

    passado”4.

    Antes dessa negociação, em janeiro já estava em curso a elaboração do

    Sicad II - Sistema Complementário de Administração de Divisas5 - que pôs por

    terra o controle cambial que há mais de uma década impedia a livre compra de

    divisas dentro da Venezuela e deve dar às empresas e indivíduos mais acesso ao

    dólar americano.

    Entre os reajustes de preços dos alimentos no comércio privado, por

    exemplo, encontra-se o café que teve 64,7% de aumento e o frango que passou

    de 18,73 bolívares/Kg para 66 bolívares/kg. A empresa estatal Lácteos Los Andes

    manteve dois valores para a garrafa de leite: na rede comercial do governo

    (Pdval, Mercal e Bicentenário) o preço ficou em 22,50 bolívar; na rede privada

    passou para 42,25 bolívar6.

    No comércio estatal foram anunciados os novos valores dos alimentos

    básicos, que tiveram uma variação entre 38% e 112%7; ainda assim o

    desabastecimento em março chegou a 27% dos produtos. Esses valores afetam

    3Heiber Barreto Sánchez, “Venezuela: ¿Un paquete económico al detal?”, Aporrea, 12/05/2014. http://www.aporrea.org/trabajadores/a188022.html 4Agencia Venezuelana de Notícias, “Gobierno y empresarios acuerdan 56 acciones para fortalecer economía productiva”, 13/03/2014. http://goo.gl/vmmxU7 5 O Sicad II consiste em autorizar a venezuelanos a comprar, via agentes bancários, de títulos da dívida venezuelana no exterior, cotada em dólares - algo chamado de "dólar permuta". Depois, após o pagamento de uma comissão ao operador, o comprador pode receber o dinheiro em sua conta no exterior ou manter, se preferir, a posse dos títulos, apostando em sua valorização. "É uma reforma fundamental. A questão cambial vem colocando sérios entraves e, até que isso seja resolvido, não serão resolvidos os problemas econômicos", afirmou à BBC Mundo o analista financeiro Asdrúbal Rivas. 6El Mundo, Lácteos Los Andes tiene un precio en red oficial y otro en la privada, 03/04/2014. http://goo.gl/TEhxdy 7 Últimas Noticias (20/03/14), “Mercal aumenta precios de sus alimentos para atacar el contrabando”, Últimas notícias, 20/03/2014. http://goo.gl/5VOgRg

    http://www.aporrea.org/trabajadores/a188022.htmlhttp://goo.gl/vmmxU7http://goo.gl/TEhxdyhttp://goo.gl/5VOgRg

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    64% da população que se abastecem nas redes públicas de alimentos8. A

    Superintendência dos Preços Justos oficializou o aumento de preços do frango

    em 43 bolívares/kg, um reajuste de 129% em relação ao preço anteriormente

    fixado. Também isso ocorreu com arroz que subiu 32%, passando de 7.20

    bolíbares/kg para 9,50 bolívares/kg; e o açúcar com aumento de 96%, 12

    bolívares/kg.9

    Os alimentos considerados “não prioritarios”, como manteiga, milho,

    açúcar e frutas, entre outros, foram anunciados pelo governo que passariam a ser

    importados não mais com a taxa de câmbio Cencoex, fixada em 6.30 bolívares,

    mas sim com a taxa do Sicad I, em média com o valor de 10 bolívares10.

    O valor das passagens dos transportes urbanos e interurbanos sofreu

    também majoração em torno de 40%. Essa medida afeta 80% da população

    venezuelana. As reações começaram a surgir, por exemplo, com cerca de trinta

    conselhos comunitários que passaram a anular em suas regiões tal medida

    publicada na Gazeta Extraordinária nº6.13011 .

    O reajuste da gasolina e da tarifa elétrica, nos próximos meses, certamente

    é o fechamento momentâneo das draconianas medidas anti-operárias e

    antipopulares. O governo nacional anunciou que estuda o aumento desses

    produtos e serviços. O ministro de Energia e Petróleo, o poderoso chavista

    Rafael Ramírez, também presidente da Pdvsa e vice-presidente na área

    Econômica, considera que o atual preço da gasolina não teria sentido12, porque a

    Pdvsa deixa de receber por venda na Venezuela e no exterior mais de US$12

    bilhões de dólares/ano. Por sua vez, o subsídio atual ao serviço elétrico seria

    8 Últimas Noticias (01/04/14). “Lanzan al ruedo propuestas para llenar anaqueles”, Últimas notícias, 01/04/2014. http://goo.gl/BDnW9O 9 El Mundo (28/04/14). “Sundde oficializa alza de precios de pollo, arroz y azúcar”, El mundo, 28/04/2014. http://goo.gl/NXzOzU 10

    El Mundo, “Cada vez más se comienzan a atender rubros prioritarios en el Sicad 1”, 02/04/2014. http://goo.gl/2ed3Cz 11 Últimas Noticias, “Opiniones encontradas por aumento de pasaje”, 25/04/2014, p. 4. 12 Últimas Noticias, “Insisten en debate para la gasolina”, 05/05/2014. http://goo.gl/4kWirH

    http://goo.gl/BDnW9Ohttp://goo.gl/NXzOzUhttp://goo.gl/2ed3Czhttp://goo.gl/4kWirH

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    “dantesco”, pois para o ano de 2012 alcançou a cifra de 4 bilhões e 700 milhões

    de dólares13.

    Embora a inflação tenha atingido 56% em 2013, o anuncio do reajuste em

    30% do salário mínimo não responde às perdas já ocorridas, nem permite

    minimamente enfrentar o pacotaço em implementação. O presidente da

    Fedecâmaras, Jorge Roig, considerou que o valor decretado em 29 de abril

    tenha sido “um aumento moderado a meu juízo”. Neste ano o governo

    consultou com “suficiente antecipação” aos empresários sobre tal medida14.

    Foi consensuado que haverá anistia econômica para a chamada corrupção

    em 2012 e 2013. O governo oferecerá recursos para o agora chamado “setor

    produtivo” que são recursos oriundos des fundos chineses, Alba-Mercosur e

    Fonden. O objetivo seria acelerar a nova Ofensiva Econômica e Produtiva15. Em

    outras palavras, os recursos que seriam destinados a projetos de inversão pública

    serão deslocados para os mesmos empresários que, em cumplicidade com os

    burocratas estatais, desfalcaram o país entre 2004-2012, de acordo com

    declarações do Ministro Jorge Giordani16 e a ex-presidenta do Banco Central da

    Venezuela, Edmmé Betancourt17. Entre tais empresários encontram-se aqueles

    que, de acordo com o ministro do Interior e Justiça, Rodríguez Torres, capturam

    de maneira fraudulenta os dólares que o Cadivi entregou a cerca de 40% de

    “empresas maletín”, no ano de 201318. A lista da burguesia empresarial

    “parasitária” e a burguesia “burocrática” que se fizeram associadas e em conluio

    para roubar os recursos públicos são ameaçadas de divulgação por parte do

    governo.

    13El Mundo, “Subsidio a la gasolina y a la electricidad entrampan gestión fiscal del Gobierno”, 02/04/2014. http://goo.gl/YADqQ8 14

    Últimas Noticias, “Fedecámaras considera "responsable" aumento de 30% del salario mínimo”, 30/04/2014. http://goo.gl/KuIRCL 15

    Últimas Noticias, “Gobierno dará a empresarios acceso a fondos en divisas”, 24/04/2014. http://goo.gl/7w7kX8 16

    Últimas Noticias, “Giordani: Con el Sitme se llevaron los reales del país”, 17/03/2013. http://goo.gl/PYQiMN 17 Aporrea, “Presidenta del BCV: Parte de los $59.000 millones entregados en 2012 fueron a "empresas de maletín", 24/05/2013. http://goo.gl/xpSIi5 18 Últimas Noticias, “Rodríguez Torres: 40% de empresas que compran dólares son fantasmas”, 12/12/2013. http://goo.gl/KYsZRQ

    http://goo.gl/YADqQ8http://goo.gl/KuIRCLhttp://goo.gl/7w7kX8http://goo.gl/PYQiMNhttp://goo.gl/xpSIi5http://goo.gl/KYsZRQ

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    A liberação do preço do dólar é outra medida que Maduro prepara. Desta

    maneira, os produtos serão importados a preços mais elevados que os atuais,

    beneficiando ainda mais a “burguesia parasitária” venezuelana. Além disso,

    inevitavelmente os preços gerais ainda mais se elevarão, impondo mais sacrifícios

    aos trabalhadores e à população19.

    O Instituto Nacional de Terra (Inti) registra um freio na expropriação de

    terras de latifundiários, em 2013. Enquanto em 2012, de acordo com o Inti,

    foram expropriados 550.494,57 hectares; esse número reduziu-se em 92% para

    localizar-se em 43.620 hectares, portanto não alcançando a meta traçada para

    aquele ano em 107.669 hectares para a “construção do socialismo agrário”. O

    freio desse chamado “socialismo agrário” parece manter-se em 2014, pois o

    presidente do Inti, William Gudiño, reuniu-se com 18 associações de produtores

    a quem manifestou que o Instituto trabalhe em “sanar erros do passado”. Em

    abril disse que o diretório do Inti “aprova semanalmente improcedências de

    resgates de terras, a fim de ressarcir algumas medidas em matéria de

    regularização e revogar inclusive títulos adjudicados”20

    .

    O governo de Madura também se comprometeu com o “setor produtivo”

    em privatizar empresas de alimentos ineficientes do Estado. Este compromisso foi

    proposto ao governo pela Câmara Venezuelana da Indústria de Alimentos

    (Cavidea) com a finalidade de “colocá-la a produzir em sua máxima

    capacidade”, o que será traduzido em 40 mil toneladas adicionais de açúcar ao

    mês, 8 mil de leite e 8 mil de azeite e 25 mil de farinha de milho.

    Para muitos chavistas, com tais medidas econômicas Maduro estaria

    operando uma guinada à direita e de alinhamento com a burguesia venezuelana.

    Ao nosso entender essas negociações e concessões sempre ocorreram, mesmo no

    período de Hugo Chávez. A diferença é que, com o aprofundamento da crise

    econômica no país, crescente déficit na balança comercial externa e aumento do

    endividamento público, não existe margem de concessão para as camadas

    19

    O primeiro a fazer a previsão dessa medida foi o deputado Ricardo Sanguino, diputado na Assembléia Nacional e presidente da Comissão de Finanças. El Mundo, “Sanguino: `Vamos a un sistema de cambio más flexible’", 03/04/2014. http://goo.gl/f0wvyL 20 El Mundo, “En 2013 Inti frenó política de intervención de tierras”, 08/04/2014. http://goo.gl/rwTnvm

    http://goo.gl/f0wvyL

  • Lamericas.org 12

    sociais populares e para a burguesia. Foi necessário priorizar os interesses “mais

    importantes”. Desse modo, o chavismo tende a perder sua base social e

    convulsionar ainda mais sua base política.

    Endurecimento político e repressão contra os protestos oposicionistas

    Para se equilibrar frente à onda de protestos contra seu governo, Maduro

    adotou duas linhas de ação: crescente repressão militar e institucional; e

    negociação com setores da oposição liberal, por um lado, e com empresários,

    por outro. Os recursos à repressão e criminalização dos opositores ao governo

    estenderam-se à cassação de mandatos de parlamentares e prefeitos. Paralelo à

    via do consenso desenvolveu-se desde o Palácio de Miraflores o endurecimento

    do regime político contra qualquer força opositora que seja consequente no

    questionamento ao governo.

    Os acordos econômicos entre governo e burguesia, criticados por muitos

    chavistas, impactam ainda mais no cotidiano da população mais pobre. Por parte

    do governo existe receio de que o pacotaço de fevereiro de 2014 suscite uma

    nova situação semelhante ao que emergiu em dezembro de 1989, que ficou

    conhecida como “caracazo”. Essa é a razão principal para que o governo

    acelerasse o processo de criminalização e repressão política, trazendo como

    “exemplo” os setores de classe média estudantil orientados por setores da

    oposição liberal golpista. Ao lado disso, opera o reforçamento das milícias

    chavistas nas localidades periféricas e nos morros.

    A violência militar estatal e paramilitar contra os protestos estudantis, ao

    lado da criminalização das manifestações, prisões, processos e perda de

    mandatos, agem no sentido de constituir um clima de medo e naturalização da

    violência estatal sobre qualquer forma de protesto social, inclusive dos

    movimentos de trabalhadores e movimentos populares. Esse é o ponto central

    do controle social e político contra as mobilizações populares. Nesse percurso, o

  • Lamericas.org 13

    governo realiza um processo de endurecimento, principalmente com a iniciativa

    baseada na justificativa sobre a articulação de um golpe de estado no país.

    O governo venezuelano e as organizações políticas e sociais que o apoiam

    afirmam que as manifestações iniciadas em fevereiro passado foram e são

    articuladas pelo Departamento de Estado dos EUA e as oposições políticas

    conservadoras venezuelanas. Também estariam associadas aos protestos de abril

    de 2013, quando 11 pessoas morreram nos confrontos de rua. Esses protestos

    teriam semelhança21 com a tentativa golpista contra Chavéz em fevereiro de

    200222

    .

    Para sustentar tal afirmação, o governo articulou um conjunto de “provas”,

    registradas pelo Serviço Nacional de Informação Bolivariano (SEBIN), que

    pretende uma visão “coerente” sobre tal ação golpista. Nesse aspecto, verdades,

    mentiras e informações distorcidas/truncadas23

    misturam-se. De qualquer maneira

    cabe verificar a versão chavista.

    No início de maio, o Ministro do Interior, Justiça e Paz, Rodriguez Torres,

    denunciou nacionalmente a articulação do golpe político contra o governo,

    envolvendo setores da oposição política liberal, Organizações Não-

    Governamentais e organizações estudantis. A novidade não foi a denúncia,

    porque esta já havia sido realizada pelo chavismo, mas a sua fundamentação em

    21

    Não vemos semelhanças no contexto político e ideológico daquele período com o atual. Em primeiro lugar, na ocasião existiam setores nas Forças Armadas que apoiaram a ação golpista. Na atualidade, embora existam, foram desarticulados dos centros nevrálgicos das FFAA. Em segundo lugar, a oposição liberal e burguesa encontrava-se muito fortalecida e unificada em 2002; no período atual encontra-se dividida. Em terceiro lugar, embora o imperialismo estadunidense, por meio de suas diversas instituições, financie setores da oposição liberal e estudantil, no entanto não existe uma posição fechada do imperialismo sobre uma ação golpista nesse período. Por essa razão, o imperialismo investe na mesa de negociação e no desgaste eleitoral do Governo Maduro, e não seguiu o pedido do grupo de Leopoldo López sobre os EUA adotarem medidas de sanção internacional contra o governo venezuelano. 22 Na ocasião Chavéz foi sequestrado do Palácio Miraflores por um dia. Instituiu-se uma junta de poder constituída pela presidente da Fedecâmaras, Carmona, setores militares e políticos e partidos oposicionistas. Na foto de posse encontravam-se lideranças dos atuais protestos, como Leopoldo López e outros. Os EUA, como comprovado documentalmente, apoiou o golpe. Na CNNE, a notícia era de que Chavez havia abandonado o governo. Uma surpreendente reação popular, desencadeada a partir dos bairros populares de Caracas, barrou o movimento golpista e recolocou Chavéz no governo. 23 Ao nosso entender, a versão governista sobre uma direita articulada e financiada por organizações estadunidenses e as posições estadunidenses não são fantasiosas. Embora, a pergunta que nos fica é por que somente agora essas informações vieram a público em cadeia nacional de rádio e televisão?

  • Lamericas.org 14

    “provas” que apoiam a denúncia. De acordo com o ministro, tal orquestração

    golpista seria tramada a partir dos EUA porque esse país teria dois objetivos

    estratégicos: impedir a propagação continental do ideário bolivariano e

    apropriar-se e controlar a maior riqueza petrolífera mundial.

    O ministro demarcou com provas documentadas (fotos, vídeos,

    documentos etc.) três momentos dessa atual “conspiração”. Em outubro de

    2010, no encontro denominado “Festa Mexicana”, participaram os atuais líderes

    estudantis, entre os quais Gabriela Arellano e Villca Fernandez, além dos setores

    de oposição liberal, como o hoje cassado prefeito de San Cristóban, Daniel

    Ceballos, o deputado e dirigente do Vontade Popular, Lester Toledo; o

    conselheiro municipal de Caracas, Freddy Guevara, entre outros. Esse encontro

    teria traçado ações violentas de rua e o denominado “golpe suave” contra o

    governo. Outro momento teria ocorrido em março de 2012, com a definição de

    um “Plano País”. Esse plano seria encabeçado por Humberto Prado, diretor do

    Observatório Venezuelano de Prisões (OVP), que de acordo com o ministro

    fustigou greves de fome e motins entre presos políticos nos centros de reclusão.

    Em abril de 2012, seguiria a mesma intenção com o encontro de Organizações

    Não Governamentais (ONGs) no qual participaram advogados de direitos

    humanos, líderes do Juventude Ativa Venezuela Unida (Javu), entre outros

    setores, com o objetivo de planificar ações de rua contra Chavez.

    No plano político latino-americano, ainda nessa perspectiva golpista

    estariam envolvidos o ex-presidente colombiano, Álvaro Uribe, o ex-presidente

    mexicano Vicente Fox e outros personagens políticos latino-americanos em

    articulação com os EUA. O financiamento internacional para o movimento

    estudantil, ONGs e partidos venezuelanos ocorreria por meio de instituições

    como Fundação Nacional para a Democracia (sigla em inglês NED), Freedom

    House, Otpor e embaixada estadunidense na Venezuela.

    As ações de rua, depois das eleições presidenciais de abril de 2013, seriam

    resultado de tais articulações. Na ocasião, Maduro lograra vencer Henrique

    Caprilles com uma diferença porcentual muito reduzida de votos (1,7%). A

  • Lamericas.org 15

    oposição denunciou fraude eleitoral e exigia recontagem dos votos, algo que

    não ocorreu.

    A declaração recente de Nicolás Madura, em 16 de maio, reafirmou as

    denúncias do ministro da Justiça, ao sustentar que derrotou um golpe de Estado

    em curso no país: “Nós temos derrotado um golpe de Estado continuado que

    tem diversos componentes”24

    . Em cadeia nacional de rádio e televisão, Maduro

    foi mais longe em suas declarações em reunião com as comunas de todo o país,

    ao afirmar que setores da própria oposição e informações do serviço secreto

    venezuelano indicaram-lhe que ocorrera uma reunião oposicionista para planejar

    o golpe de Estado em junho próximo. Ao lado disso, oposicionistas estariam

    pagando a grupos de criminosos para assassinar figuras políticas e televisivas

    conhecidas25

    . Ao contrário da suposta tentativa golpista, indicou por sua vez que

    junho seria o mês da “ofensiva revolucionária” bolivariana.

    A partir do anúncio de tal golpe em andamento, Maduro apresentou de

    fato o objetivo central do chavismo, em suas palavras: “Têm que ir presos todos

    esses grupos. Cárcere para os fascistas, cárcere para os terroristas. Que não haja

    vacilação no país, isto se combate com a lei, dura lei. (...). Não haverá mão

    branda nem impunidade para os golpistas. Tenham o nome que tenham, chame-

    se como se chame. O que se meter com a constituição e a paz se verá com a

    justiça. Não sou chantagista, não há poder no mundo que possa me dobrar o

    braço”26

    .

    Teodoro Petkoff27

    , oposicionista liberal e diretor do periódico Tal cual,

    observa que setores governista lutam para configurar um regime de partido

    único; isso proveria do que ele chama “politização anticonstitucional das Forças

    24 Ender Ramírez Padrino, “Maduro: cárcel para los fascistas”, El nacional, 17/05/2014. www.el-nacional.com/politica/Maduro-dicen-junio-acaba-revolucion_0_410959002.html 25 Ocarina Spinoza, “Maduro: golpistas no han renunciado a sus intenciones”, El universal, 17/05/2014. www.eluniversal.com/nacional-y-politica/140517/maduro-golpistas-no-han-renunciado-a-sus-intenciones 26

    Idem. 27 Petkoff, atualmente com 80 anos, participou da luta armada no país, na década de 1960/1970. Apoiou Hugo Chávez nos primeiros anos de seu governo e, depois, passou para o campo da oposição burguesa. Defende a mesa de negociação entre oposições e governo.

    http://www.el-nacional.com/politica/Maduro-dicen-junio-acaba-revolucion_0_410959002.htmlhttp://www.el-nacional.com/politica/Maduro-dicen-junio-acaba-revolucion_0_410959002.htmlhttp://www.eluniversal.com/nacional-y-politica/140517/maduro-golpistas-no-han-renunciado-a-sus-intencioneshttp://www.eluniversal.com/nacional-y-politica/140517/maduro-golpistas-no-han-renunciado-a-sus-intenciones

  • Lamericas.org 16

    Armadas e seu papel de sócio do partido governante” em uma aliança civil-

    militar28

    . Expressão desse fenômeno seria a quantidade de militares ocupando a

    estrutura governamental. Dentro das Forças Armadas, esse cenário tem

    produzido a marginalização de oficiais que não são solidários ao governo, sendo

    que mais de mil oficiais deram baixa ou estão confinados em suas funções, até as

    “obscenas amostras de adesão ao governo que em geral fazem suas cúpulas e às

    quais se obrigam o resto de seus oficiais e tropas”29

    .

    Essa tendência de militarização apontada por Teodoro Petkoff, no entanto,

    desenvolve-se desde o governo Hugo Chávez, embora ele tenha incorporado no

    aparelho estatal setores de sua base social de apoio, especialmente movimentos

    populares e setores da burocracia sindical. A tendência principal, no entanto, foi

    de cada vez maior influência da burocracia militar (alta hierarquia) em todos os

    aspectos da vida social, econômica e política do país. Essa condição explica

    também a unidade nas Forças Armadas e seu apoio incondicional no período do

    Governo de Hugo Chavez.

    Os chefes militares ocupam cargos ministeriais ou de direção em empresas

    estatais e órgãos públicos, inclusive em cargos eletivos. Essa tendência se

    acentuou em detrimento da presença dos setores populares e sindicais no

    governo. Neste sentido, não é casualidade o alto gasto militar, os incrementos

    salariais dos militares, as concessões governamentais a este setor e sua

    participação em grandes negócios com a permissão do governo.

    Maduro continuou essa ofensiva militarizante que já vinha desde os tempos

    de Chávez30

    . Militarizou a indústria elétrica, argumentando derrotar uma suposta

    sabotagem, que estaria sendo causada pelos trabalhadores do setor. Esta é a

    resposta do governo à crise do setor elétrico. Militarizou a Ferrominera pelo

    conflito com seus trabalhadores. Mas a questão não se reduz a isso, também

    existe a intenção de militarizar outras empresas básicas, e colocou renomados

    quadros militares em sua direção, como ocorre com o Banco da Venezuela e a

    28

    Teodoro-Petkoff,“Militarismo y democracia”,Tal Cual, 07/05/2014. www.talcualdigital.com/Nota/visor.aspx?id=102498&tipo=AVA 29 Idem. 30 UST

  • Lamericas.org 17

    Superintendência dos Bancos; assim também ocorreu em muitos governos

    provinciais.

    Mas o mais preocupante desse assunto é a permanente e repressiva

    presença de mais de 3000 efetivos militares nas ruas de Caracas, no marco do

    chamado “Plano Pátria Segura”, alegando estar dando uma batalha contra a

    insegurança e a delinquência. Este argumento, e concretamente a medida, são

    usados para ganhar a simpatia de setores da população, principalmente da

    burguesia e da pequena burguesia, que reivindicam a repressão e que querem

    que se garanta o seu direito de propriedade. Por outro lado, serve como forma

    de controle político e social contra manifestações de massa que possam ocorrer.

    Sem Chaves, disputas no governo, enfraquecimento eleitoral e radicalização

    O chavismo teve sua principal derrota com a morte de Hugo Chavez Frías

    (1954-2013), anunciada em 05 de março. Após a quarta vitória eleitoral em

    outubro de 2012, com 57% dos votos, em dezembro daquele ano Chávez

    ausentou-se do país destinando-se a Cuba, onde realizava tratamento contra um

    câncer desde junho de 2011. Somente retornou a Venezuela em 18 de fevereiro

    de 2013. Deste período até o anúncio oficial de sua morte, o líder bolivariano

    não realizou nenhuma aparição pública ou declaração. Em seu lugar, ocupou o

    cargo o vice-presidente Nicolás Maduro, que já ocupava a posição no mandato

    anterior e fora anunciado por Chávez como seu legítimo sucessor. Importa

    destacar nesse episódio que Diosdado Cabello foi preterido por Chávez como

    seu sucessor.

    Em decorrência da centralização política imposta por Chávez, pouco

    espaço existiu para que surgissem lideranças com maior envergadura e peso

    político no campo chavista. As disputas entre lideranças e grupos políticos foram

  • Lamericas.org 18

    subordinadas à relação autoritária na resolução dos projetos, programas e ações

    governamentais, no cenário econômico e político, nacional e internacional.

    Por essa razão, as disputas internas no governo encontram-se longe de se

    encerrarem nesse momento histórico, embora em momentos decisivos o

    chavismo apresente-se coeso em torno de Maduro, como ocorreu na disputa

    eleitoral presidencial em 15 de abril e nas eleições de dezembro de 2013 e, a

    partir de fevereiro de 2014, no enfrentamento aos protestos sociais.

    Dentro do chavismo, em linhas gerais, apresentam-se três correntes políticas

    com interesses próprios, disputando os espaços de poder dentro do aparato

    estatal (AGRELA, 2013, p.10). Uma das principais alas é formada por dirigentes

    oriundos das Forças Armadas. O tenente coronel reformado Diosdado Cabello,

    atual presidente da Assembléia Nacional, é figura central desse agrupamento. Ao

    lado de Chávez desde a tentativa de golpe militar em fevereiro de 1992, Cabello

    é considerado um dos homens mais ricos da cúpula chavista, acusado de

    enrequecimento ilícito e um dos representantes da chamada “direita endógena”.

    Outra ala dentro do chavismo é próxima aos movimentos populares, sindicais e

    intelectuais de esquerda e referencia-se em diversas tendências dentro do PSUV.

    Maduro, de origem civil, ex-militante da organização Liga Socialista (de origem

    maoista), ex-dirigente sindical, seria o principal representante desta pretensa ala

    esquerda do chavismo. Por último, com bastante peso teria a ala formada por

    proprietários privados que enriqueceram através de negócios com o Estado,

    particularmente aqueles organizados na entidade “Empresários por Venezuela”.

    Fazem parte desta ala, inclusive, ex-oficiais do exército feitos burgueses durante

    os últimos 14 anos. É a chamada “boliburguesia” venezuelana, ou seja, uma

    recente burguesia surgida por dentro do Estado venezuelano no período

    chavista.

    Com a morte de Hugo Chávez, uma nova eleição presidencial ocorreu. Em

    meio à comoção social pelo falecido e de duas derrotas eleitorais da oposição

    em 2012, o candidato do MUD Henrique Capriles disputou pela segunda vez a

    eleição presidencial ocorrida em abril de 2013. Mesmo em meio à situação de

  • Lamericas.org 19

    comoção nacional, o chavista Nicolás Maduro venceu Capriles com uma

    margem de votos muito estreita (1,7%).

    Essa situação eleitoral levou a oposição a denunciar o processo como

    fraude eleitoral e exigir recontagem dos votos. Inúmeras manifestações e

    protestos de rua ocorreram na ocasião, com a morte de 11 manifestantes. Setores

    da própria oposição acusaram Capriles de endossar a vitória de Maduro, ao

    invés de denunciar e tentar impugnar o processo eleitoral.

    Tal quadro político recolocou dentro de setores de oposição burguesa a

    questão da tática mais adequada para enfrentar o chavismo, se por via eleitoral

    ou nas ruas. De qualquer maneira, a oposição liberal saíra fortalecida e com

    grandes perspectivas para as eleições municipais de dezembro de 2014. Neste

    sentido, a tática do desgaste eleitoral estaria correto e a posição de Capriles

    estaria fortalecida no MUD.

    O quadro parecia delineado politicamente. Maduro e o chavismo

    perderam uma base social de apoio muito grande, na eleição presidencial de

    2013. Tal situação deveu-se ao processo de crise econômica e social em curso no

    país, que se intensifica desde o ano de 2012. Nesse sentido, Maduro teria sua

    posição política enfraquecida internamente no chavismo como também

    externamente. Por sua vez, embora setores da oposição liberal dentro do MUD

    questionassem as posições dos setores políticos ligados a Capriles e sua tática,

    ainda assim a oposição liberal apresentava-se com possibilidades reais de

    crescimento nas eleições de dezembro de 2013 para as administrações

    municipais.

    Com seu enfraquecimento eleitoral, fragilidade dentro do chavismo e crise

    econômica acentuando-se, Maduro passou a negociar com a burguesia por meio

    da Fedecâmaras. Esse movimento político ocorreu entre junho e outubro de

    2013. Sua popularidade decaía, principalmente porque passou a implementar

    medidas antipopulares. Depois desse giro à direita com as negociações com o

    empresariado, a partir de meados de 2013 ele deslocou-se novamente, desta vez

    para a esquerda. As eleições municipais que ocorreriam em dezembro daquele

  • Lamericas.org 20

    ano paralisaram as negociações com a Fedecâmaras. Passou a adotar medidas de

    caráter popular, como o congelamento dos preços de produtos (Preços justos) e

    perseguição e prisão de comerciantes que tirassem as mercadorias das prateleiras

    ou elevassem os preços. Seria o que chamou de “guerra econômica” contra a

    burguesia parasitária. A inflação crescente, na visão dos chavistas, seria resultado

    intencional contra o governo e o povo.

    Esse movimento permitiu ao chavismo vencer as eleições de dezembro de

    2013, na maior parte dos municípios venezuelanos, recompondo-se da perda

    ocorrida na eleição presidencial, em abril daquele ano.

    De outra maneira, a derrota da oposição liberal em torno do MUD

    possibilitou novamente a retomada da questão da tática de enfrentamento ao

    chavismo. Henrique Capriles saiu enfraquecido com a derrota ocorrida. Para o

    setor ligado a Leopoldo López a saída deveria ser pelas ruas.

    A perspectiva das organizações sindicais e esquerda política não-chavistas

    A gravidade do quadro econômico e político no país levou à tentativa de

    articulação de um campo sindical e popular que tenha como perspectiva uma

    alternativa econômica e política sob o ponto de vista dos interesses dos

    trabalhadores e das camadas sociais populares. Nessa perspectiva anti-chavista e

    antiburguesa, cerca de 150 dirigentes sindicais, estudantes, indígenas e ativistas de

    movimentos populares realizaram no dia 21 de março passado um Encontro

    Sindical e Popular31 com o objetivo de constituir uma resposta à crise econômica

    e política. Foi proposto nesse encontro um Plano Econômico e Social Alternativo

    que exige: aumento geral de salários e salário mínimo igual à cesta básica de

    31 Esse encontro foi convocado e articulado pela Corrente Classista, Unitária, Revolucionária e Autônoma (C-cura), entidade sindical encabeçada por sindicalistas como Orlando Chirino e José Bodas, pela União Nacional dos Trabalhadores (Unete) e outras organizações.

  • Lamericas.org 21

    alimentos; nacionalização da indústria petrolífera sem empresas mistas;

    desenvolvimento de empresas básicas; confisco dos capitais das empresas que

    realizam importações fraudulentas com divisas a taxas preferenciais. Em relação

    às questões políticas, exige a anulação dos processos judiciais contra os

    trabalhadores, camponeses e indígenas e em geral todos os processados por

    protestar ou defender seus direitos; assim como investigação independente sobre

    as violações aos Direitos Humanos no marco da onda de protestos em fevereiro

    deste ano, entre outras exigências.

    Na declaração emitida em abril pela C-Cura e outras organizações ficaram

    evidentes as preocupações e objetivos principais para o encontro: “os

    trabalhadores e os setores populares não podemos marchar atrás do governo

    que nos criminaliza e descarrega a crise econômica sobre nossos ombros, em

    acordo com a Fedecâmaras. Tampouco podemos marchar com a oposição que

    pretende apresentar-se aos trabalhadores e ao povo como uma opção para

    resolver a crise econômica e social de nosso país. (...). De igual maneira

    rechaçamos toda ingerência imperialista (...). Está claro que devemos e

    necessitamos mobilizarmo-nos de maneira independente, autônoma e classista

    para poder enfrentar o pacote econômico do governo e Fedecâmaras, que está

    contemplado também no programa econômico da MUD, e ao mesmo tempo

    defender as liberdades democráticas”.

    As preocupações apontam para a necessidade de uma organização dos

    trabalhadores que se coloquem contra as medidas econômicas e políticas do

    governo, independentes da oposição liberal e contra o imperialismo. Também

    caracteriza o quadro de negociações e interesses existentes entre governo e

    burguesia, especialmente presente nas medidas econômicas antipopulares

    (pacote) adotadas. Mas importa observar também a preocupação com a defesa

    das liberdades democráticas no país, uma vez que elas são fragilizadas pela onda

    generalizada de repressão que se apresentam contra os protestos sociais.

    As tentativas de organização sindical pela esquerda e de uma perspectiva

    classista são limitadas e ainda frágeis, em razão principalmente do forte cerco

  • Lamericas.org 22

    ideológico, político e organizativo imposto pelas organizações sindicais chavistas.

    Ao lado disso, a perspectiva governista é localizar todos os opositores como

    contra-revolucionários.

    Considerações finais

    A crise econômica mundial que provoca convulsões sociais nos quatro

    continentes e desestabiliza governos independentemente do regime político,

    chegou definitivamente à América do Sul. No subcontinente a porta de entrada

    dessa crise parece ser justamente os principais governos de Frente Popular que

    ascenderam no fim do século XX e início do século XXI e que não romperam

    efetivamente com os preceitos do grande Capital. É nesse contexto histórico que

    se desenvolve a tríplice crise venezuelana: crise econômica, política e social.

    Apesar de dinâmico, o quadro econômico e político venezuelano permitem

    algumas afirmações provisórias. Existe uma rápida deterioração econômica no

    país que se acentua sobre os trabalhadores, setores populares e, também, sobre

    as classes médias no país. As medidas econômicas antipopulares negociadas entre

    o governo e a Fedecâmaras deixam muito nítido o desdobramento desse

    momento: o aprofundamento da crise ocorrerá sobre a população. Por sua vez,

    o endividamento público continuará se agigantando, ficando nítido que o

    governo chavista manteve-se ao longo de sua existência preso à lógica do capital

    financeiro internacional. As medidas repressivas adotadas contra os protestos

    sociais estudantis e da oposição liberal burguesa indicam também o

    aprofundamento da repressão contra os setores populares e trabalhadores que se

    confrontarem com o governo e a burguesia. Exemplo disso é a repressão policial

    ocorrida contra a ocupação de várias fábricas por trabalhadores realizada pela

    Guarda Bolivariana Nacional e outros esquemas repressivos. É possível que se

    aprofunde as críticas e divisões políticas internas no chavismo. Tal possibilidade

    abre a discussão sobre o que ocorrerá com a base política ligada aos movimentos

    sociais chavistas? Diante do “pior” que seria o retorno da oposição burguesa ao

  • Lamericas.org 23

    governo, qual será a perspectiva desses setores? Enquanto isso, depois de muitos

    anos, o cenário político parece se descortinar para a oposição burguesa que até o

    momento beneficia-se desse rápido e irreversível desgaste do chavismo e sua

    expressão cadavérica em torno de Nicolás Maduro.

    Para o setor da MUD ligado a Henrique Capriles, interessa o plano original

    do imperialismo para a Venezuela, desde o fracasso do golpe em 2002. Esse

    plano consiste no desgaste político do chavismo por dentro do processo

    institucional e retomar o poder pela via das eleições. Portanto, não seria

    objetivo central desencadear ondas de manifestações que possam escapar do

    controle da direita.

    Evidencia-se que, embora seja um setor de direita quem convocou os

    protestos, foram desencadeadas forças sociais cujos rumos não estão definidos,

    uma vez que tais manifestações somente foram possíveis porque partiram de

    bases concretas como os problemas econômicos e sociais que afetam não

    somente a classe média, mas também a grande parte dos trabalhadores do país.

    Esse fato abre a incógnita se essas manifestações avançam ou não para os setores

    populares. Nesse sentido, tanto a direita ligada a Henrique Capriles como o

    Governo Maduro parecem pactuar do mesmo desejo: liquidar as manifestações,

    antes que o inverso se torne verdadeiro.