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    Princípio da lesividade e crimes de perigo abstrato, ou: algumas dúvidasdiante de tantas certezas.

    Luís Greco* 

    I. Considerações introdutórias

    Adoramos estar na moda. Isso vale para o que o vestimos, comemos,para os lugares que freqüentamos – por que não valeria para as teorias quedefendemos? Pois bem, não existe nada mais in, nada mais fashionatualmente do que dizer que os crimes de perigo abstrato seriam in totuminconstitucionais, por violarem o princípio da lesividade1. Afinal, segundoesse princípio, não haveria crimes sem lesão ou perigo concreto de lesão aum bem jurídico2. E como os crimes de perigo abstrato são justamenteaqueles cujo tipo se considera preenchido sem que o bem jurídico seja sequer

    exposto a um perigo concreto, neles o dito princípio da lesividade estariaviolado. Uma vez que este princípio teria hierarquia constitucional3, oscrimes de perigo abstrato seriam simplesmente contrários à constituição.Estariam já fulminados de inconstitucionalidade, não podendo mais seraplicados, apenas se passíveis de reeinterpretação em termos condizentescom o princípio. Não raro se complementa essa argumentação com algumasfórmulas também da moda: os crimes de perigo abstrato não seriamcondizentes com um direito penal garantista, com um direito penal mínimo4.Violariam a presunção de inocência, por presumirem um perigo, e o

    *

     Mestre pela Universidade Ludwig Maximilian, de Munique, e doutorando na mesmainstituição.1  O primeiro a defender esta tese entre nós, segundo vejo, foi Luiz Flávio Gomes, Acontravenção do artigo 32 da Lei das Contravenções Penais é de perigo abstrato ouconcreto? (A questão da inconstitucionalidade do perigo abstrato ou presumido), em: RBCC8 (1994), p. 69 e ss. Depois, seguiram-se Paulo Queiroz, Do caráter subsidiário do direitopenal, Del Rey, Belo Horizonte, 1998, p. 112, p. 150; Damásio de  Jesus, Crimes de trânsito,4ª edição, Saraiva, São Paulo, 2000, p. 2 e ss.; Lei antitóxicos, 6ª edição, Saraiva, São Paulo,2000, p. 15 e ss.; Luiz Flávio Gomes, Norma e bem jurídico no direito penal, RT, São Paulo,2002, p. 30; Mariângela  Magalhães  Gomes, O princípio da proporcionalidade no direitopenal, RT: São Paulo, 2003, p. 120 e ss.; Alice Bianchini, Pressupostos materais mínimos datutela penal, RT, São Paulo, 2003, p. 67 e ss. Mais contido, Ângelo Roberto  Ilha da Silva,Dos crimes de perigo abstrato em face da constituição, RT, São Paulo, 2003, p. 95 e ss., que

    admite a legitimidade destes crimes, desde que respeitados certos princípios.A doutrina italiana, que é a mais importante fonte de inspiração dos críticos nacionais doperigo abstrato, parece já há muito ter abandonado a atitude meramente negativa em favorde uma análise mais diferenciada (cf. Fiandaca / Musco, Diritto penale, p. 176 e ss.; Fiore,Diritto penale, Parte generale, Vol. I, Utet, Torino, 1999, p. 183 e ss.;  Mantovani, Dirittopenale, 3ª edição, Cedam, Padova, 1999, p. 232, n.º 70a;  Marinucci  /  Dolcini, Corso didiritto penale, 2ª edição, Giuffrè, Milano, 1999, p. 416 e ss.; Padovani, Diritto penale, 3ªedição, Giuffrè, Milano, 1995, p. 172; Pagliaro, Principi di diritto penale, 8ª edição, Giuffré,Milano, 2003, p. 246 e ss.; ).2 Por ex., Luiz Flávio Gomes, Princípio da ofensividade no direito penal, RT, São Paulo,2002, p. 14.3 Cf., por ex., Luiz Flávio Gomes, Princípio da ofensividade, p. 58 e ss.;  Jesus, Crimes detrânsito, p. 30, quer extraí-lo do art. 98 I da CF, que fala em infrações de menor potencial

    “ofensivo”.4  Cf., quanto ao impreciso conceito de “direito penal mínimo”, Greco, Princípio dasubsidiariedade no direito penal, em: Dicionário de princípios jurídicos, no prelo.

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    princípio da culpabilidade. Não examinaremos essa segunda bateria deargumentos. Objeto das seguintes reflexões será unicamente a primeira linhaargumentativa, a saber, a da medida em que o princípio da lesividade podelevar a que se reconheça a inconstitucionalidade de todos os crimes de perigoabstrato.

    O que mais impressiona em toda essa argumentação é, ao lado de suaevidente coesão lógica, o grau de convicção daqueles que a desenvolvem.Por trás dessa atitude está o justificado descontentamento com um legisladorque não para de criar novos crimes – para citar um exemplo recente, a novalei sobre armas de fogo define como crime inafiançável a conduta de“disparo de arma de fogo”, cominando-lhe pena superior à das lesõescorporais (art. 15, Lei 10.826/2003)5. O que me pergunto é se este tipo depostura não é quase tão descuidada e apressada quanto as normas que amotivam. Porque tal juízo global de condenação dos crimes de perigoabstrato repousa sobre uma série de premissas que não são de maneiraalguma tão seguras como parecem supor os defensores deste

    posicionamento.

    II. O primeiro grupo de dúvidas: o conceito de bem jurídico

    1.  Conceito dogmático e conceito político-criminal de bem jurídicoSe o princípio da lesividade significa a exigência de lesão ou perigo

    concreto de lesão a bem jurídico, o conceito de bem jurídico torna-se umadas questões centrais. E aqui, justamente, se apontarão as primeiras dúvidas.Antes de prosseguirmos, é necessário fazer uma distinção entre doisconceitos de bem jurídico. Quando afirmamos que toda incriminação visa adefender um bem jurídico, o conceito de bem jurídico pode ser entendido,aqui, tanto de uma perspectiva dogmática, quanto de uma perspectivapolítico-criminal, ou, para usar a famosa terminologia de Hassemer , tanto deuma perspectiva imanente ao sistema, quanto transcendente ao sistema6.

    De uma perspectiva dogmática, toda norma terá seu bem jurídico. Ocrime de casa de prostituição, por ex., (CP, art. 229), terá por bem jurídico a“moralidade pública sexual”7, a bigamia (CP art. 235) o “interesse do Estadoem proteger a organização jurídica matrimonial, consiste no princípiomonogâmico”8. Quanto a este conceito, não há qualquer dúvida ouproblema. Ele nada mais é que o interesse protegido por determinada norma,

    e onde houver uma norma, haverá um tal interesse. E alguns autoresconsideravam que a revogada incriminação do homossexualismo, na

    5 O dispositivo reza: “Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou emsuas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenhacomo finalidade a prática de outro crime. Pena – reclusão, de dois a quatro anos, e multa.Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável.”6  Hassemer , Theorie und Soziologie des Vebrechens, Europäische Verlagsanstalt, Frankfurta. M., 1980, p. 19. Na doutrina italiana, fala Ferrando  Mantovani, Diritto penale, p. 213, em

    concepção “metapositivista” e “juspositivista” de bem jurídico.7 Cf. Cézar Bitencourt , Código penal comentado, Saraiva, São Paulo, 2002, p. 912.8  Bitencourt , Código, p. 926.

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    legislação alemã, protegia o bem jurídico “interesse social na normalidade davida sexual”9.

    Mas quando discutimos os limites do poder legal de incriminar, não éesse o conceito de bem jurídico que aqui nos interessa. Afinal, este conceitoestá à completa disposição do legislador. Segundo ele, só se poderá dizer se

    algo é um bem jurídico se o legislador assim houver decidido. O queprecisamos saber é se é possível trabalhar com um conceito não maisdogmático, e sim  político-criminal  de bem jurídico, noutras palavras, se sepode esperar do conceito de bem jurídico alguma eficácia no sentido delimitar o poder de punir do Estado.

    Neste trabalho, não trataremos do conceito dogmático de bem jurídico, mas unicamente do político-criminal. Tal não implica separardogmática de política-criminal10, nem desconhecer em que medida oconceito dogmático dependerá do conceito político-criminal. A rigor, pensoque o conceito dogmático deverá ser construído nos moldes que lhe sejamfornecidos pelo conceito político-criminal, e alguns apontamentos neste

    sentido serão feitos no correr do estudo. Ocorre que, por razões de espaço,concentraremos nossos esforços no exame do conceito político-criminal debem jurídico, fazendo só observações pontuais a respeito da relevânciadogmática dessa categoria político-criminal.

    2. O primeiro problema: é possível um conceito político-criminalde bem jurídico?

    a) O panorama: entre defensores e céticosPrimeiramente, um curto panorama sobre a discussão no Brasil e na

    Alemanha. No Brasil, a doutrina tradicional, a rigor, sequer costuma utilizaras palavras “bem jurídico”, preferindo o termo objeto ou objetividade

     jurídica11. Como esta diferença é apenas terminológica, pode-se dizer que ela já conhecia o conceito de bem jurídico, mas em sua dimensãoexclusivamente dogmática. Ou seja, a nossa doutrina majoritária,acostumada exclusivamente com o conceito dogmático de bem jurídico, nãocostuma reconhecer qualquer função crítica ou político-criminal à idéia12.Em geral, só a partir de investigações mais recentes se começou a propor um

    9  Maurach, Deutsches Strafrecht, Besonderer Teil, 4ª edição, C. F. Müller, Karlsruhe, 1964,p. 411.10 O que não se mostra mais possível desde o fundamental estudo de Roxin, Política criminale sistema jurídico-penal, 2ª edição, trad. Luís Greco, Renovar, Rio de Janeiro, 2002(primeira edição publicada originalmente em 1970). Mais detalhes sobre essa abordagem“funcional” em Greco, Introdução à dogmática funcionalista do delito, em: Revista

    Brasileira de Ciências Criminais n.º 32, 2000, p. 120 e ss.11 Cf. Hungria #; Bruno #; Noronha, #; Fragoso #. #

    12 #

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    conceito de bem jurídico como diretriz para o legislador13. Segundo vejo,pioneiro aqui foi – como também alhures – Juarez Tavares14.

    Na  Alemanha, ao contrário do que se pensa, a situação não é tãodiversa. Ao lado de alguns defensores do conceito político-criminal de bem

     jurídico15, há uma vasta doutrina majoritária que ou a rejeita de modo

    expresso16

    , ou se mantém numa cética reserva17

    . E a Corte Constitucional

    13  Uma pequena amostra, ordenada alfabeticamente, sem qualquer pretensão de sercompleta: Nilo  Batista, Introdução crítica ao direito penal brasileiro, 4ª edição, Revan, Riode Janeiro, 1999, p. 96#; Fernando Capez, Consentimento do ofendido e violênciadesportiva, Saraiva, São Paulo, 2003, p. 114; Yuri Carneiro Coelho, Bem jurídico-penal,Mandamentos, Belo Horizonte, 2003, #;  Ilha da Silva, Perigo abstrato, p. 83 e ss.#; Magalhães Gomes, Proporcionalidade, p. 90 e ss.#; Luís Régis Prado, Bem jurídico-penal econstituição, 3ª edição, RT, São Paulo, 2003, p. 90 e ss.; Juarez Tavares, Teoria do injustopenal, 2ª edição, Del Rey, Belo Horizonte, 2002, p. 197 e ss.14 Com o estudo Tavares, Critérios de selação de crimes e cominação de penas, em: RBCCnúmero especial de lançamento, 1992, p. 75 e ss. (p. 78 e ss.).15

      Por ex., Freund , em: Heintschel-Heinegg (ed.), Münchener Kommentar zumStrafgesetzbuch, Beck, München, 2003, Vor §§ 13 ff./42 e ss.;  Hassemer , Grundlinien einerpersonalen Rechtsgutslehre, em: Philips / Scholler (ed.), Jenseits des Funktionalismus,Decker u. Müller, Heidelberg, 1989, p. 89 e ss. (p. 91, p. 92); Darf es Straftaten geben, dieein strafrechtliches Rechtsgut nicht in Mitleidenschaft ziehen?, em: Hefendehl / Wohlers / v.Hirsch (eds.), Die Rechtsgutstheorie, Nomos, Baden Baden, 2003, p. 57 e ss. (p. 64), para oqual proibições penais sem bem jurídico seriam “terrorismo estatal”; Hefendehl, KollektiveRechtsgüter im Strafrecht, Heymanns, Köln etc., 2002, p. 18 e ss.; Das Rechtsgut alsmaterialer Angelpunkt einer Strafnorm, em: Hefendehl / Wohlers / v. Hirsch (eds.), DieRechtsgutstheorie, Nomos, Baden Baden, 2003, p. 119 e ss.; Die Tagung aus derPerspektive eines Rechtsgutsbefürworters, em: Hefendehl / Wohlers / v. Hirsch (eds.), DieRechtsgutstheorie, Nomos, Baden Baden, 2003, p. 386 e ss.; Otto, Grundkurs Strafrecht, 6aedição, DeGruyter,Berlin / New York, 2000, § 1/40;  Roxin, Wandlung der

    Strafrechtswissenschaft, em: JA 1980, p. 221 e ss., p. 223; Zur Entwicklung derKriminalpolitik seit den Alternativ-Entwürfen, em: JA 1980, p. 545 e ss., (p. 546); Rudolphi,Die verschiedenen Aspekte des Rechtsgutsbegriffs, em: Festschrift für Honig, Otto Schwarz& Co., Göttingen, 1970, p. 151 e ss. (p. 163 e ss.); Systematischer Kommentar zumStrafgesetzbuch, 6ª edição, Luchterhand, Neuwied etc., 1997, Vor § 1/8; Schünemann,Strafrechtsdogmatik als Wissenschaft, em: Roxin-FS, 2001, p. 1 e ss. (26 e ss.); DieRechtsgutstheorie, 2003, p. 133 e ss.; Stächelin, Strafgesetzgebung im Verfassungsstaat,Duncker & Humblot, Berlin, 1998, p. 80 e ss.16   Amelung, Der Begriff des Rechtsguts in der Lehre vom strafrechtlichenRechtsgüterschutz, em: Hefendehl / Wohlers / v. Hirsch (eds.), Die Rechtsgutstheorie,Nomos, Baden Baden, 2003, p. 154 e ss. (a tradução deste estudo para o português encontra-se no prelo);  Appel, Verfassung und Strafe, Duncker & Humblot, Berlin, 1998, p. 206;Rechtgüterschutz durch Strafrecht?, KritV 1999, p. 278 e ss.; Bockelmann / Volk , Strafrecht

    - Allgemeiner Teil, 4a

      edição, Beck, München, 1987, p. 11; Frisch, An den Grenzen desStrafrechts, em: Küper / Welp (ed.), Festschrift für Stree und Wessels, C. F. Müller,Heidelberg, p. 69 e ss. (p. 71 e ss.); Wesentliche Voraussetzungen einer modernenStrafgesetzgebung, em: Eser (ed.), Vom totalitären zum rechtstaatlichen Strafrecht, MaxPlanck Institut, Freiburg,1993, p. 201 e ss. (p. 203 e ss.); Straftat und Straftatsystem, em:Wolter / Freund (eds.), Straftat, Strafzumessung und Strafprozeß im gesamtenStrafrechtssystem, C. F. Müller, Heidelberg, 1996, p. 135 e ss. (p. 136 e ss.); Rechtsgut,Recht, Deliktsstruktur und Zurechnung im Rahmen der Legitimation staatlichen Strafens,em: Die Rechtsgutstheorie, 2003, p. 215 e ss. (p. 216 e ss.);  Jakobs, Günther:Kriminalisierung im Vorfeld einer Rechtsgutsverletzung, em: ZStW 97 (1985), p. 751 e ss.,(p. 752); Strafrecht Allgemeiner Teil, 2ª edição, DeGruyter, Berlin, 1991, § 2/1 e ss. ;Michael  Köhler, Strafrecht, Allgemeiner Teil, Springer, Berlin etc., 1997, p. 24 e ss.;  Kuhlen, Strafrechtsbegrenzung durch einen materiellen Straftatbegriff?, em: Straftat,

    Strafzumessung und Strafprozeß im gesamten Strafrechtssystem, 1996, S. 77 e ss. (p. 89, p.96);  Lagodny, Strafrecht vor den Schranken der Grundrechte, Mohr-Siebeck, Tübingen,1996, p. 144;  Naucke, Die Reichweite des Vergeltunsstrafrechts bei Kant, in: Über die

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    alemã, que teve em 1994 a oportunidade de aplicar a teoria do bem jurídicoao examinar a problemática da proibição do porte de tóxico para uso pessoal,fez questão de não o fazer18. Desde essa decisão pode-se afirmar que osdefensores do conceito político-criminal de bem jurídico encontram-se nadefensiva, havendo mesmo quem brinque com a metáfora de estar o conceito

    de bem jurídico moribundo, no leito de morte, ou declarado morto por seusopositores19.Ainda assim, o conceito político-criminal de bem jurídico teve, ao

    menos historicamente, uma grande conquista: orientou amplasdescriminalizações no direito penal sexual alemão. Para lembrar unicamenteo exemplo mais significativo: na Alemanha, o homossexualismo masculinoera uma conduta punível até a década de 70. Alguns autores valeram-se deum conceito crítico, político-criminal de bem jurídico para dizer que talincriminação não tutelava bem jurídico algum, sendo, portanto, ilegítima20.Essa argumentação acabou por convencer o legislador, que a acolheu,abolindo o referido dispositivo, ao lado de muitos outros. Mas mesmo essa

    conquista é atualmente questionada por muitos. Para Frisch21  eStratenwerth22, por ex., o conceito de bem jurídico aqui pouco fez; adescriminalização do homossexualismo masculino decorreria de mudançasculturais, elas sim decisivas.

    Mais: alguns autores não vêem no bem jurídico qualquer conteúdoliberalizante, no sentido que lhe é atribuído por muitos, e sim um mecanismoque mais e mais serve de base para legitimar a expansão do direito penal23.

    Zerbrechlichkeit des rechtsstaatlichen Strafens, Nomos, Baden Baden, 2000, p. 79 e ss. (p.81); Stratenwerth, Zukunftssicherung mit den Mitteln des Strafrechts, ZStW 105 (1993), p.679 e ss. (p. 692); Das Strafrecht in der Krise der Industriegesellschaft, Verlag Helbing &

    Lichtenhahn, Basel, 1993, p. 17; Zum Begriff des „Rechtsgutes“, em: Eser etc. (ed.),Festschrift für Theodor Lenckner, Beck, München, 1998, p. 377 e ss. (p. 391);  Kriminalisierung bei Delikten gegen Kollektivrechtsgüter, em: Die Rechtsgutstheorie, 2003,p. 255 e ss.; Vogel, Strafrechtsgüter und Rechtsgüterschutz durch Strafrecht im Spiegel derRechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts, em: StV 1996, p. 110 e ss. (p. 112);Wohlers, Deliktstypen des Präventionsstrafrechts – zur Dogmatik „moderner“Gefährdungsdelikte, Duncker & Humblot, Berlin, 1999, p. 279.17  Cf. principalmente os manuais e comentários:  Lenckner , em: Schönke-Schröder,Strafgesetzbuch, 26ª edição, Beck, München, 2001, Vorbem §§ 13 e ss./10; Gropp,Strafrecht, Allgemeiner Teil, Springer, Berlin etc., 1998, § 3/27 e ss.;  Jescheck / Weigend ,Lehrbuch des Strafrechts, Allgemeiner Teil, 5ª edição, Duncker & Humblot, Berlin, 1996, p.7 e ss.; Wessels / Beulke, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 33ª edição, C. F. Müller, Heidelberg,2003, nm. 9.18

      BVerfG em NJW 1994, p. 1577 e ss.19  Cf. os dois defensores do conceito político-criminal de bem jurídico  Hefendehl, DieRechtsgutstheorie, p. 119; e Schünemann, Die Rechtsgutstheorie, p. 133.20  Em especial Herbert  Jäger , Strafgesetzgebung und Rechtsgüterschutz beiSittlichkeitsdelikten, Ferdinand Enke Verlag, Stuttgart, 1957, p. 6 e ss.;  Roxin, Täterschaftund Tatherrschaft, 1ª edição, Cram de Gruyter, Hamburg, 1963, p. 413 e ss.;  Hanack ,Empfiehlt es sich, die Grenzen des Sexualstrafrechts neu zu bestimmen?, Gutachten A fürden 47. Deutschen Juristentag, vol. I, Beck, München, 1968, p. A7 e ss. (nm. 29 e ss.).21 Frisch, Die Rechtsgutstheorie, p. 218.22 Stratenwerth, Lenckner-FS, p. 389 e ss.23 Este perigo, em especial no que se refere a bens jurídicos coletivos, é apontado mesmopor defensores do conceito político-criminal de bem jurídico, como repetidamente faz  Hassemer , Jenseits des Funktionalismus, 1989, p. 89; Symbolisches Strafrecht und

    Rechtsgüterchutz, em: NStZ 1989, p. 553 e ss. (p. 557); Einführung in die Grundlagen desStrafrechts, Beck, München, 2. edição, 1990, p. 275; Strafrechtswissenschaft in derBundesrepublik Deutschland, em: Simon (ed.), Rechtswissenschaft in der Bonner Republik,

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    Podemos mencionar aqui Jakobs, para o qual a idéia de bem jurídico pode nomáximo chegar a um direito penal de inimigo, oposto ao direito penalcidadão, sendo a finalidade deste não a proteção de bens jurídicos e sim amaximização de esferas de liberdade24, e Volk, que verifica que o conceitode bem jurídico mudou completamente de função, abandonando a função

    crítica para passar a fundamentar as novas incriminações do direito penaleconômico e ambiental25.Enfim, o conceito de bem jurídico pode ser tudo, menos amplamente

    aceito. Pelo contrário, tanto no Brasil, como na Alemanha, ele é defendidopor uma doutrina minoritária. A única diferença entre nós e os alemãesparece ser que aqui está na moda falar de bem jurídico, enquanto lá a modaagora é recusá-lo. Tais observações não significam, porém, que essa doutrinaminoritária não possa ter razão; elas valem, ainda assim, como primeiro sinalde cuidado, no sentido de que é melhor parar e refletir a respeito de nossascertezas. É o que faremos a seguir.

    b) A problemática do conceito político-criminal de bem jurídico:onde fundamentá-lo?

    Queremos um conceito de bem jurídico capaz de restringir o poderde incriminar do legislador26. O problema é, assim, de onde extraí-lo. NaAlemanha, as propostas são as mais variadas. Existem autores que buscaminspiração na filosofia de Kant e Fichte27, como outros que a procuram nafilosofia da linguagem de origem anglo-saxônica28. Pode-se observar,contudo, que a maior parte destas propostas ficou sem continuidade. Umaúnica delas parece de algum modo prosperar: a de definir o bem jurídicocom arrimo na constituição29. Estar-se-ia, assim, diante de um conceitopolítico-criminal de bem jurídico vinculante para o legislador, porque ele

    Suhrkamp, Frankfurt a. M.,1994, p. 259 e ss., (p. 299, p. 307); Perspektiven einer neuenKriminalpolitik, em: StV 1995, p. 483 e ss. (p. 484).24  Jakobs, ZStW 97 (1985), p. 756.25 Volk , Strafrecht und Wirtschaftskriminalität, em: JZ 1982, p. 85 e ss.26 Estamos abstraindo da pergunta, também relevante, quanto a se esta limitação ao poder dolegislador tem necessariamente de ser prestada pelo conceito de bem jurídico, e não poralternativas. Uma alternativa que vem ganhando cada vez mais adeptos é a teoria da lesão adireitos, que remonta a Feuerbach (cf. Feuerbach, Revision der Grundsätze undGrundbegriffe des positiven peinlichen Rechts, vol. I, Henningsche Buchhandlung, Erfurt,1799, p 65; Revision der Grundsätze und Grundbegriffe des positiven peinlichen Rechts,vol. II, Tasche, Chemnitz, 1800, p. 12 e ss.; Lehrbuch des gemeinen in Deutschland gültigen

    peinlichen Rechts, 14ª edição, Heyer, Giessen, 1847, § 21; entre os autores atuais, defendeposicionamento bastante similar à teoria da lesão a direito  Naucke, Zu FeuerbachsStraftatbegriff, em: Über die Zerbrechlichkeit des rechtstaatlichen Strafrechts, Nomos,Baden Baden, 2000, p. 191 e ss.; mais decididos, Klaus Günther , Möglichkeiten einerdiskursethischen Begründung des Strafrechts, em: Jung etc. [eds.], Recht und Moral,Nomos, Baden Baden, 1991, p. 205 e ss. [p. 210]; Von der Rechts- zur Pflichtverletzung.Ein „Paradigmawechsel“ im Strafrecht?, em: Institut für Kriminalwissenschaften Frankfurta. M. [ed.], Vom unmöglichen Zustand des Strafrechts, Peter Lang, Frankfurt a. M. etc.,1995, p. 445 e ss.; Kargl, Rechtsgüterschutz durch Rechtsschutz, in: Umöglicher Zustand, p.53 e ss. [p. 62]).27  Zaczyk , Das Unrecht der versuchten Tat, Duncker & Humblot, Berlin, 1989, p. 128 e ss.28 Kindhäuser , Gefährdung als Straftat, Klostermann, Frankfurt a. M., 1989, p. 137 e ss.29 Cf., entre outros,  Roxin, Strafrecht, Allgemeiner Teil, vol. I, 3ª edição, Beck, München,

    1997, § 2/9; Merkel, Strafrecht und Satire im Werk von Karl Kraus, Nomos, Baden Baden,1994, p. 297 e ss.; Stächelin, Strafgesetzgebung, p. 80 e ss.;  Rudolphi, SystematischerKommentar, Vor § 1/5; Schünemann.

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    seria extraído diretamente da constituição, portanto dotado de hierarquiaconstitucional. Esse parece ser igualmente o caminho preferido pelosdefensores brasileiros do conceito político-criminal de bem jurídico30.

    c) A problemática do conceito constitucional de bem jurídico (I):

    o caráter aberto e impreciso das constituiçõesO problema que tal conceito constitucional de bem jurídico  coloca

    salta aos olhos já à primeira vista. Se a constituição é necessariamenteaberta, se inúmeros valores, mesmo conflitantes, encontram acolhida em seuseio, como se pode falar numa limitação ao poder do legislador? Taisdúvidas, que são colocadas mesmo face à Lei Fundamental Alemã31,aplicam-se com muito mais razão diante de uma Constituição analítica comoa do Brasil. Exemplificando: nem mesmo a incriminação dohomossexualismo poderia ser deslegitimada com base exclusiva naconstituição, porque esta tem dispositivos tutelando a família (art. 226 e ss.)e a moralidade (art. 221 IV). Foi similar, aliás, a argumentação da Corte

    Constitucional alemã, quando, em 1957, se viu obrigada a examinar aconstitucionalidade da proibição, que foi decidida em sentido afirmativo32. A

     pergunta é, portanto, se a constituição, aberta como ela reconhecidamente é, pode excluir algum interesse, algum valor, para considerá-lo impassível de

    tutela através do direito penal.Parece-me que, apesar das considerações acima tecidas, a resposta

    deve recair em sentido positivo. Porque, por ex., uma norma como a “Lei deproteção do sangue alemão e da honra alemã”, de 15 de setembro de 1935,que, em seus §§ 1 e 2 proibia a “maculação da raça” (Rassenschande) pelocasamento ou pelo coito entre alemães e judeus33, seria manifestamenteilegítima face à ordem constitucional tanto alemã, como brasileira, quevedam discriminações por motivos de raça ou origem34. Mais: mesmo anorma que proíbe o homossexualismo poderia ser criticada com argumentosde direito constitucional, atinentes a direitos fundamentais como a liberdade,a privacidade e a intimidade, que teriam de prevalecer sobre a tutelaconstitucional da família e da moralidade.

    Mas uma vez que se responda a essa pergunta desta maneira, emsentido afirmativo, cai-se imediatamente em um novo problema: aargumentação crítica acima tecida aparentemente dispensa o conceito debem jurídico. O que se utilizaram foram valores e princípios constitucionais,e só – se o leitor duvidar, releia o parágrafo anterior. Não seria o conceito de

    bem jurídico algo dispensável? Não bastaria afirmar que o direito penal sópode tutelar valores acolhidos, ou ao menos não-vedados, pela constituição? 

    30  Batista, Introdução, p. 96; s.; Carneiro Coelho, Bem jurídico-penal, p. 130; Luiz FlávioGomes, Norma e bem jurídico, p. 86 e ss.;  Ilha da Silva, Perigo abstrato, p. 83 e ss.; Magalhães Gomes, Proporcionalidade, p. 90 e ss.; Régis Prado, Bem jurídico-penal, p. 90 ess. Contraditório, Capez, Consentimento, p. 114, que após dizer que o bem jurídico deve terassento constitucional, considera bem jurídico estados de coisas que até mesmo “antecedema própria existência do direito”, “estejam ou não previstos expressamente na Constituição”.31 Cf., levando em conta a doutrina do direito constitucional,  Appel, Verfassung und Strafe,p. 476; de acordo também Frisch, Rechtsgutstheorie, p. 217.32 BVerfG 6, 389@33

     A respeito, cf. Sigg, Das Rassestrafrecht in Deutschland in den Jahren 1935-1945 unterbesonderer Berücksichtigung des Blutschutzgesetzes, Sauerländer, Aarau, 1951, p. 49 e ss.34 Neste sentido também Roxin, Strafrecht I, § 2/11.

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    Com isso estamos diante do próximo problema, que diz respeito ànecessidade ou não de um conceito constitucional de bem jurídico ao lado daconstituição de que já dispomos.

    d) A problemática do conceito constitucional de bem jurídico

    (II): imprescindível ou mera duplicação conceitual?O conceito de bem jurídico teria alguma função ao lado do conjunto de

    valores constitucionais? Não se poderia dizer que o fim do direito penal éproteger valores constitucionais, sem precisar propor um novo termo,tornando sem razão de ser as intermináveis discussões a seu respeito?Parece-me que grande parte dos defensores do conceito de bem jurídico,especialmente entre nós, o utiliza como sinônimo desta descrição “valoracolhido ou não vedado pela constituição”, apesar de isso fazer do conceitoalgo dispensável. Não seria, portanto, mais adequado renunciar ao conceitode bem jurídico, falar unicamente em tutela de valores constitucionais, e comisso simplificar consideravelmente a teoria geral do direito penal?

    Mais uma vez, creio que a resposta deve recair em sentido negativo.Porque o bem jurídico-penal, apesar de ter de ser arrimado na constituição –pois, doutro modo, não poderia limitar o poder do legislador – deve sernecessariamente mais restrito do que o conjunto dos valores constitucionais.Nem tudo que a constituição acolhe em seu bojo pode ser objeto de tutelapelo direito penal. A palavra-chave aqui é o princípio da subsidiariedade, ouda ultima ratio, ou da intervenção mínima: como o direito penal dispõe desanções especialmente graves, não basta uma lesão a qualquer interesse decaráter ínfimo para legitimar a intervenção penal35. A nossa Constituiçãoprotege até mesmo os interesses do Colégio Pedro II, ao qual dedicadispositivo próprio, em que declara: “O Colégio Pedro II, localizado nacidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal” (art. 242, § 2º). Énecessário, muito mais, que o bem seja dotado de alguma relevância, defundamental relevância, de relevância tamanha que se possa justificar agravidade da sanção que a sua violação em regra acarreta. Daí porqueprecisamos de uma definição de bem jurídico mais restrita do que a merareferência a valores constitucionais.

    35 Observe-se que não trabalhei aqui com as tradicionais formulações do princípio, segundo

    as quais a pena seria a mais grave da sanções, à qual portanto só se poderia recorrer uma vezque o legislador não dispusesse de nenhum outro meio menos grave, como o direitoadministrativo ou o direito civil. É de se dar, a meu ver, razão a Tiedemann, que aponta quemuitas vezes, estes outros ramos do direito podem ser bem mais limitadores da liberdade doque o direito penal (Tiedemann, Tatbestandsfunktionen im Nebenstrafrecht, Mohr-Siebeck,Tübingen, 1969, p. 145, Rn. 22; Wirtschaftskriminalität als Problem der Gesetzgebung, em:Tiedemann [ed.], Die Verbrechen in der Wirtschaft, 2ª ed., C. F. Müller, Karlsruhe, 1972, p.9 e ss., SS. 16-17; Wirtschaftsstrafrecht – Einführung und Übersicht, em: JuS 1989, p. 689e ss., p. 690; Strafrecht in der Marktwirtschaft, em: Küper / Welp [ed.], Festschrift für Streeund Wessels, C. F. Müller, Heidelberg, 1993, p. 527 e ss. [pp. 530-531]; de acordo tambémSchünemann, Alternative Kontrolle der Wirtschaftskrimininalität, em: Dornseifer etc. [ed.],Gedächtnisschrift für Armin Kaufmann, Heymanns, Köln usw., 1989, p. 629 e ss., [p. 632]; Hefendehl, Kollektive Rechtsgüter, p. 234). Parece-me, portanto, que uma tarefa urgente

    diante da qual a moderna doutrina do direito penal se encontra é reestudar o princípio dasubsidiariedade levando em consideração este problema. Para mais reflexões, cf. Greco,Princípio da subsidiariedade, em: Dicionário de princípios jurídicos, no prelo.

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    e) A problemática do conceito constitucional de bem jurídico(III): como defini-lo?

    Com o que estamos diante do seguinte desafio: se o conceito de bem jurídico não pode servir de mero espelho da constituição, mas tem denecessariamente excluir algo, como defini-lo? Aqui, as propostas

    doutrinárias realmente abundam, e ao contrário do que declara o conhecidobrocardo latino, esta abundância de fato prejudica. Porque ela implica emconfusão, em desorientação, quando o que se quer é justamente umparâmetro para orientar o legislador. Já se propuseram as mais diversasdefinições de bens jurídicos, que vão desde “interesse juridicamenteprotegido”36, “valor objetivo que a lei reconhece como necessitado deproteção”37, “valor elementar da vida em comunidade”38, “unidade funcionalsocial”39, “pretensão de respeito”40, “relação real da pessoa com um valorconcreto reconhecido pela comunidade”41.

    Creio que este cansativo debate é, em grande medida, terminológico,e talvez seja por isso que se observa um crescente desinteresse da doutrina a

    seu respeito. Tem-se a impressão de estarem todos a dizer aproximadamentea mesma coisa, mas valendo-se de palavras distintas. Na verdade, parece-meque o essencial é, de fato, compreender que existem nada mais do que trêsquestões fundamentais no momento de definir o conceito de bem jurídico. Aprimeira delas diz respeito a que este interesse, valor, unidade funcional,pretensão de respeito etc. seja de importância fundamental  para alguém, demodo que a existência ou o bem-estar deste alguém estariam severamenteameaçados caso a incriminação inexistisse. Aqui, não há problema algum,parece haver grande acordo ou ao menos possibilidade de acordo nadoutrina. A segundo questão diz respeito a este mencionado “alguém”: paraquem o bem jurídico deve ter importância fundamental? Para os indivíduos,para a coletividade ou para os dois?

    Este tópico é calorosamente debatido atualmente na Alemanha. Sãoimagináveis três posições, apesar de, na prática, serem defendidasunicamente duas. De um lado, os defensores da chamada concepção dualistade bem jurídico, entre os quais se encontram Tiedemann42, Kuhlen43,Schünemann44, Hefendehl45 e Figueiredo Dias46, e que parece ser a posição

    36 Fundamental, Liszt , em: Liszt / Schmidt, Lehrbuch des Deutschen Strafrechts, 26ª edição,DeGruyter, Berlin / Leipzig, 1932, p. 4. Similar, Figueiredo Dias, A questão do conteúdomaterial do conceito de crime (ou fato punível), em: Questões fundamentais de direito penalrevisitadas, RT, São Paulo, 1999, p. 53 e ss. (p. 63).37

      Mezger , Strafrecht, Ein Lehrbuch, 3ª edição, Duncker & Humblot, Berlin, 1949, p. 201.Similar, Bitencourt , Tratado, p. #; Carneiro Coelho, Bem jurídico-penal, p. 13038 Welzel, Das deutsche Strafrecht, 11ª edição, DeGruyter, Berlin, 1969, p. 1, p. 2.39  Rudolphi, Festschrift für Honig, p. 163; de acordo, Fiandaca / Musco, Diritto penale,Parte generale, 3ª edição, Zanichelli, Bologna, 1995, p. 540 Schmidhäuser , Strafrecht, Allgemeiner Teil, 2ª edição, Mohr, Tübingen, 1984, § 5/27. Deacordo, Gropp, Strafrecht, § 3/28.41 Otto, Grundkurs, § 1/32.42 Tiedemann, Tatbestandsfunktionen, p. 119 e ss.; Die Neuordnung des Umweltstrafrechts,DeGruyter, Berlin / New York, 1980, p. 28; JuS 1989, p. 691; Wirtschaftsbetrug, DeGruyter, Berlin / New York, 1999, p. XII.43 Kuhlen, Umweltstraftrecht – Auf der Suche nach einer neuen Dogmatik, em: ZStW 105(1993), p. 697 e ss. (p. 704).44

      Schünemann, Kritische Anmerkungen zur geistigen Situation der deutschenStrafrechtswissenschaft, em: GA 1994, p. 201 e ss. (p. 208 e ss.), em áspera polêmica contrao conceito monista-pessoal de bem jurídico.

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    dominante: para esta concepção, há bens jurídicos tanto individuais, quantocoletivos, e não se pode reduzir os bens jurídicos individuais a sua dimensãode interesse coletivo e nem vice-versa os bens jurídicos coletivos a suadimensão de interesse individual. Bens jurídicos individuais e coletivosseriam ambos igualmente legítimos e admissíveis. Do outro lado, encontram-

    se os que pugnam por uma concepção monista-pessoal de bem jurídico. Paraestes autores, atualmente encabeçados por Hassemer , ponto de partida são osinteresses individuais47. Bens jurídicos da coletividade só podem serreconhecidos na medida em que referíveis a indivíduos concretos. Acoletividade por si só não é objeto de proteção do direito penal. A terceiraposição seria monista-estatal ou monista-coletivista, para a qual todos osbens jurídicos serão reflexos de um interesse do estado ou da coletividade.Bens jurídicos individuais não seriam reconhecíveis enquanto tais, porque oindivíduo só seria protegido na medida em que isso interessasse ao estado ouao coletivo. Como dissemos, esta posição, pelo seu evidente autoritarismo,tem hoje poucos defensores. Ela foi apaixonadamente propugnada por

     Binding48  e, na atualidade, Weigend   parece ser seu único defensor naAlemanha49. Entre nós, Shecaira e Corrêa Jr . parecem, em razão de algumascolocações, adeptos desta linha50.

    Para se utilizar um exemplo concreto: uma teoria dualista não teráqualquer dificuldade em reconhecer o meio ambiente como um bem jurídicocoletivo, nem sempre redutível a bens jurídicos individuais51. Já uma teoriamonista-pessoal poderá ter problemas com este conceito, havendo mesmoquem negue a existência de um bem jurídico coletivo meio ambiente,considerando todas as infrações ambientais meros crimes de perigo abstratocontra a vida ou a integridade física de pessoas concretas52.

    Creio que a teoria monista-pessoal do bem jurídico, por interessante queseja, não pode ser aceita, porque ela lança sobre os bens jurídicos coletivos

    45  Hefendehl, Kollektive Rechtsgüter, p. 73.46 Figueiredo Dias, Questões fundamentais, p. 63 e p. 74.47  Hassemer , Jenseits des Funktionalismus, 1989, p. 91, p. 92; Kennzeichen und Krisen desmodernen Strafrechts, em: ZRP 1992, p. 378 e ss (p. 379); de acordo, também,  Hohmann,Von den Konsequenzen einer personalen Rechtsgutsbestimmung im Umweltstrafrecht, em:GA 1992, p. 76 e ss.; Stächelin, Gregor: Strafgesetzgebung im Verfassungsstaat, Duncker& Humblot, Berlin, 1998, p. 100. Entre nós, decidido e enfático, Tavares, Teoria do injusto,p. 216 e ss.; próximos, ademais,  Zaffaroni  / Pierangeli, Manual de direito penal brasileiro,RT, São Paulo, 1997, p. 464 e ss., nº. 236.48

      Binding, Die Normen und ihre Übertretung, vol. I, 4ª edição, Felix Meiner, Leipzig, 1922,p. 35849 Weigend , Über die Begründung der Straflosigkeit bei Einwilligung des Betroffenen, em:ZStW 98 (1986), p. 44 e ss. (p. 59).50 Sérgio Salomão Shecaria  / Alceu Corrêa Jr ., A finalidade da sanção penal, em: Pena econstituição, RT, São Paulo, 1995, p. 33 e ss., p. 44: “a função da pena é a de proteger osbens jurídicos para garantir a sobrevivência do Estado”.51  Neste sentido, enfaticamente Schünemann, GA 1994, p. 209;  Zur Dogmatik undKriminalpolitik des Umweltstrafrechts, em: Schmoller (ed.), Festschrift für Otto Triffterer,Wien / New York, Springer, 1996, p. 437 e ss.; Vom Unterschicht- zumOberschichtstrafrecht. Ein Paradigmawechsel im moralischen Anspruch?, em: Kühne /Miyazawa (ed.), Alte Strafrechtsstrukturen und neue gesellschaftliche Herausforderung inJapan und Deutschland, Duncker & Humblot, Berlin, 2000, p. 15 e ss., p. 27; e Tiedemann,

    Neuordnung, p. 10, p. 18, p. 28; JuS 1989, p. 693; Kuhlen, ZStW 105 (1993), p. 705; Hefendehl, Kollektive Rechtsgüter, p. 307.52 Assim, especialmente, Hohmann, GA 1992, p. 82.

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    um estigma que não lhes faz verdadeiramente justiça. Bens jurídicoscoletivos não são uma novidade no direito penal. Eles não foramintroduzidos com o direito penal ambiental e com o direito penal econômico.Os crimes de falsidade de moeda e de corrupção, existentes em toda equalquer legislação penal desde tempos esquecidos, tutelam bens jurídicos

    coletivos, e nada há de errado com isso. O problema dos bens jurídicoscoletivos não está em referi-los a indivíduos, e sim, como veremos abaixo,em distinguir bens jurídicos coletivos autênticos de meras reificações debens jurídicos individuais. Veremos que, ao contrário do que defende ateoria monista-pessoal, quanto menos um bem jurídico coletivo se deixarreferir a indivíduos, menos problemático ele será. Além do mais, nemsempre será possível referir o bem jurídico coletivo aos interesses deindivíduos concretos. Para dar um exemplo53: a pretensão a arrecadar osimpostos devidos continua a ser um bem jurídico, ainda que o dinheiroobtido seja utilizado para comprar tanques de guerra ao invés de para aconstrução de jardins de infância. Da mesma forma, e agora o exemplo é

    meu, pouco importa que nenhum interesse individual seja afetado pelaconduta do particular que em segredo gratifica o funcionário público paraque este realize, já depois do expediente, um ato vinculado a que o particulartinha de qualquer forma direito, mas que só seria praticado bem depois. Seainda assim, apesar de ausente qualquer referência a interesses individuais,os defensores da teoria pessoal-monista quiserem admitir a punibilidadenestes dois casos (alegando, que por ex., a arrecadação de impostos ou ahonestidade da administração afetam, bem indiretamente, interessesindividuais), então acabam por trabalhar com uma noção de “referênciaindireta ao indivíduo” tão ampla, que só parecem diferir da concepçãodualista no que se refere à terminologia. Ou seja: temos de partir de umateoria dualista do bem jurídico.

    Resolvidas estas duas questões, a da fundamental relevância daquilo quese entenda por bem jurídico e a do titular do bem jurídico como osindivíduos e a coletividade, resta uma terceira: a de se o bem jurídico deveser entendido como realidade fática  ou como uma entidade meramenteideal. Entre as definições acima mencionadas, algumas há que com bastanteclareza consideram o bem jurídico um ideal: em especial as que se referem a“valores” ou à “pretensão de respeito”. Já as que se referem a uma “unidadesocial funcional” ou a uma “relação real” buscam fixar o bem jurídico narealidade. Esta questão não é, ao contrário do que possa parecer, meramente

    terminológica, porque ela está estreitamente ligada ao problema dos bens jurídicos aparentes ou falso, de que abaixo trataremos. Sem adiantar o quelogo além se irá dizer, declare-se unicamente que definições de bem jurídicoque o transformem em uma entidade ideal, em um valor, em algo espiritual,desmaterializado, são indesejáveis, porque elas aumentam as possibilidadesde que se postulem bens jurídicos à la volonté, para legitimar qualquernorma que se deseje. Ordem pública, segurança pública, incolumidadepública, confiança, tudo isso pode ser mais facilmente entendido como bem

     jurídico se o conceito deste se referir a meras entidades ideais, e não a dadosconcretos. Por isso, parece-me mais desejável trabalhar com um conceito de

    53  Amelung, Rechtsgutstheorie, p. 162

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    bem jurídico como realidade fática, posição que entre nós defende JuarezTavares54.

    Resolvidas estas três questões, aí sim o resto torna-se problematerminológico. Podemos falar em interesses, funções, dados, elementos, noque quisermos. Prefiro usar o termo “dados”, pela sua maior conotação

    fática55

    : bens jurídicos seriam, portanto, dados fundamentais para arealização pessoal dos indivíduos ou para a subsistência do sistema social,nos limites de uma ordem constitucional. Por isso é que o fato de o ColégioPedro II ser mantido na órbita federal não é um bem jurídico, enquanto avida, a liberdade, a autenticidade da moeda e a probidade da administração56 o são.

    3. O segundo problema: esse conceito político-criminal de bem jurídico pode ser condição necessária para a incriminação?

    Agora tocaremos numa das questões mais delicadas em torno dateoria do bem jurídico. Definimos bem jurídico como dado necessário para a

    realização pessoal e para a subsistência de um sistema social. Mas estará odireito penal adstrito a exclusiva proteção de bens jurídicos? Ser-lhe-árealmente vedado incriminar uma conduta para proteger algo que não umbem jurídico?

    Em regra, especialmente no Brasil, quem se vale de um conceitopolítico-criminal de bem jurídico não duvida desta vedação. Lembremosunicamente a afirmação de  Hassemer , segundo a qual incriminações sembens jurídicos não passariam de terrorismo estatal57. Afinal, de que valeria aidéia de bem jurídico, se o legislador não está adstrito a ela? Já na Alemanha,a situação começa a modificar-se. Poucos, mas cada vez mais autores,mesmo entre os defensores da teoria político-criminal do bem jurídico,começam a aceitar, ainda que em caráter excepcional, incriminações sembem jurídico, por alguns chamadas de delitos de comportamento58.

    Coloquemos um exemplo. O art. 32, da Lei 9605/98, erige em crimea conduta de “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animaissilvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. Se alguémpega seu cão e o tortura, para depois abandoná-lo mutilado, deixando-oagonizar por horas, não consigo duvidar do caráter criminoso desta conduta.Contudo, tampouco consigo vislumbrar aqui qualquer bem jurídico afetado.Porque definimos bem jurídico como dado fundamental de titularidade ou doindivíduo, ou da coletividade. Causar horríveis sofrimentos a um cão não

    54 Cf. Tavares, Critérios de selação de crimes e cominação de penas, em: RBCC númeroespecial de lançamento, 1992, p. 75 e ss. (p. 79): “o bem jurídico é uma realidade natural”.55 Não se ignoram as críticas à utilização deste termo (por ex., Stratenwerth, Lenckner-FS,p. 381), mas, como dissemos, elas não atingem o cerne da questão, uma vez que ao falar emdados se quer apenas sugerir que o bem jurídico é uma realidade, e que não pode ser fruto dasimples fantasia do legislador (ou do intérprete).56 Quanto a estes dois últimos bens jurídicos coletivos, há porém séria controvérsiadoutrinária a respeito da formulação adequada. Cf. a nota #, sobre o segundo deles, por ex.57  Hassemer , Rechtsgutstheorie, p. 64.58  Entre os defensores do conceito de bem jurídico, mencionem-se  Hefendehl, KollektiveRechtsgüter, p. 52 e ss. (insb. p. 64 u. p. 73); Rechtsgutstheorie, p. 128; Andrew v. Hirsch,

    Der Rechtsgutsbegriff und das “Harm Principle”, em: Rechtsgutstheorie, p. 13 e ss. (p. 21 ess., em especial p. 25);  Roxin, Neufassung § 2, Rn. 52 ss.;  Rudolphi, SystematischerKommentar, Vor § 1/11.

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    afeta de modo algum qualquer esfera individual. E tampouco se pode dizerque este comportamento fira bens jurídicos da coletividade.

    Talvez o leitor objete: como não? A revolta que sentimos diante detal comportamento dá indícios da existência de um bem jurídico, sim. Elepoderia formular-se como o sentimento de solidariedade para com certos

    animais superiores. Este sentimento tratar-se-ia, obviamente, de um bem jurídico coletivo.Tal formulação, não o nego, seria possível e defensável. Ela aliás fora

    proposta por Roxin na terceira edição de seu tratado59. Ocorre que ela criaum grande problema, talvez maior do que aquele que ela pretendesolucionar. Porque a partir do momento em que sentimentos de revolta pelaprática de dado comportamento servem de base para legitimar a sua punição,pode-se até mesmo declarar o homossexualismo uma conduta punível, vezque há muitíssimas pessoas que manifestam similar revolta diante de talcomportamento. Ou, para usar um exemplo de Jakobs, até a violação denormas de etiqueta à mesa poderia ser considerada um crime60: imagine-se a

    revolta que não  decorria do fato de alguém liberar sonoramente gasesmalvindos num jantar oficial. Noutras palavras: o preço de se dilatar oconceito de bem jurídico para compreender também sentimentos superioresimplica num abandono de qualquer função crítica. E é por isso que, na aindanão publicada quarta edição de seu manual, propõe Roxin que se reconheçaque, na tutela penal de animais, está-se diante de incriminações sem bem

     jurídico61.Roxin fala ainda em mais duas exceções à idéia de bem jurídico

    como condição necessária da punição. Além da proteção de animais eplantas62, menciona ele a proteção ao embrião63 e aos interesses de geraçõesfuturas64. Porque se é verdade que nenhum destes dois interesses é passívelde referência aos indivíduos hoje concretamente existentes, nem àscondições de subsistência do atual sistema social, também é verdade que asua excepcional fragilidade justifica uma intervenção do direito penal. Ouseja, seria necessário reconhecerem-se três exceções à necessidade de umbem jurídico para justificar uma punição. Deixemos porém de lado estasduas outras exceções, e concentremo-nos unicamente no delito de maus-tratos a animais, porque tanto o embrião, como as gerações futuras ainda sereferem a interesses de seres humanos, enquanto no caso da tortura imposta aum cão, nem mediatamente se pode falar em qualquer referência a uminteresse humano.

    Face a este estado de coisas, são possíveis três posturas. A primeira delas, radical e conseqüente, seria declarar que de fato os interessesenvolvidos no tipo de maus tratos a animais não são bens jurídicos e por isso

    59  Roxin, Strafrecht I, § 2/21.60  Jakobs, Strafrecht, § 2/19.61  Roxin, Neufassung § 2, Rn. 52 e ss.; assim também Jakobs, Strafrecht, § 2/19, e Rudolphi,Systematischer Kommentar, Vor § 1/11. Para um curto e não muito atualizado panoramadas discussões em torno do objeto tutelado pelo delito de maus tratos a animais, cf.Wiegand , Die Tierquälerei, Schmidt-Römhild, Lübeck, 1979, p. 125 e ss.62

      Roxin, Neufassung § 2, Rn. 55 e ss.63  Roxin, Neufassung § 2, Rn. 52 e ss.64  Roxin, Neufassung § 2, Rn. 57 e ss.

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    não podem ser objeto de tutela penal65. Creio que este posicionamento,louvável por sua consistência, é impraticável e indesejável. Em especial acrescente preocupação com o meio ambiente, com a biodiversidade, com asubsistência não só da fauna, como mesmo da flora, obrigarão a que se tutelepenalmente interesses não necessariamente referidos ao bem estar do

    homem.A segunda saída  seria a continuação da proposta de meu hipotéticoleitor. Ela consistiria em expandir o conceito de bem jurídico paracompreender também o bem-estar animal. Com isso, salvar-se-ia a idéia debem jurídico como necessário para qualquer incriminação. Mas o conceitode bem jurídico seria de tal maneira dilatado que sequer se poderia imaginaralguma incriminação que o dispensasse. Cair-se-ia ou numa teoria quelegitima a incriminação do homossexualismo ou que, caso nos referíssemosà idéia de valores constitucionais, a incriminação de tentativas de retirar oColégio Pedro II da esfera federal.

    A terceira proposta é nas linhas de Roxin e Hefendehl. Ela implica

    em reconhecer exceções à idéia de bem jurídico como condição necessáriapara a incriminação. Claro que ela teria a desvantagem de enfraquecer, àprimeira vista, o potencial crítico da categoria do bem jurídico, uma vez queagora pode-se proibir mesmo sem bem jurídico. Ocorre que talenfraquecimento é, em verdade, um fortalecimento. Porque a recusa de diluiro conceito de bem jurídico permite demarcar com precisão em que pontoestá-se utilizando o direito penal para tutelar interesses que já não sãoreferíveis ao homem e ao sistema social existentes, e que é necessário terboas razões para isso. Além disso, abre-se um horizonte completamentenovo para a investigação científica, a saber, o da formulação de critérios paraa legitimação de incriminações sem bem jurídico. Hefendehl, por exemplo,esforça-se no sentido de formular tais critérios, afirmando que é necessáriauma convicção enraizada no sentido da necessidade de respeitar determinadanorma de comportamento66. É verdade que esse critério tampouco parececonvincente, mas a necessidade de se pensara respeito nunca teria sido vista,caso insistíssemos em remendar a definição inicial de bem jurídico. Muitopelo contrário, muitas incriminações já estariam de antemão justificadas,porque sempre se poderia alegar defenderem elas bens jurídicos, segundo oconceito dilatado do segundo caminho. A terceira proposta merece, assim,nossa acolhida, porque ela mostra as coisas com maior clareza, impede que,através de uma modificação ad hoc das premissas iniciais, se jogue a poeira

    para debaixo do tapete, o que é a única maneira de evitar que depois nosdeparemos com surpresas desagradáveis. Ela está longe de ser ideal, éverdade. O problema diante do qual nos encontramos não é passível de umasolução perfeita, e o que interessa é saber qual dentre as possíveis soluções éa menos ruim. Parece-me que a terceira o é, porque, para usar uma imagem,ela ao menos evita que o cavalo de tróia atravessar as muralhas do bem

     jurídico e acabe por derrubá-las de dentro para fora.Ou seja: o bem jurídico é, em regra, necessário para legitimar uma

    incriminação. Mas somente em regra, sendo possíveis exceções: uma delas éo crime de maus tratos a animais, legítima, apesar de não tutelar dado

    65

     Neste sentido, pouquíssimos autores, como por ex. Dulce Santana Vega, La protecciónpenal de los bienes jurídicos colectivos, Dykinson, Madrid, 2000, p. 58.66  Hefendehl, Kollektive Rechtsgüter, p. 56.

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    necessário à realização de indivíduos, nem tampouco à subsistência dosistema social. Se há outras exceções, se elas são as três apontadas porRoxin, ou se também outras, qual o seu fundamento, tais são problemas quesó bem recentemente foram vistos e que no âmbito deste sucinto trabalhotêm ficar em aberto. Eles marcam porém pontos nevrálgicos para futuras

    investigações.

    4. O terceiro problema: como distinguir bens jurídicos coletivosautênticos de falsos bens jurídicos coletivos?

    Por fim, o terceiro e último problema a respeito do conceito político-criminal de bem jurídico. Optamos por uma concepção dualista do bem

     jurídico, isto é, reconhecemos bens jurídicos coletivos em seu pleno direito,ao lado de bens jurídicos individuais. Mas um rápido apanhado de bens

     jurídicos coletivos já demonstra que nem todos apresentam o mesmopedigree. De um lado, temos bens jurídicos coletivos como o meio ambiente,a fé pública (crimes de falso), a administração pública e sua probidade

    (crimes de corrupção). De outro, a incolumidade pública (chamados crimesde perigo comum67), a saúde pública (crimes de tóxico)68 , a segurança notrânsito (crimes de trânsito)69, as relações de consumo (crimes contra oconsumidor)70. O curioso é que este segundo grupo de bens jurídicoscoletivos é proposto e defendido pela generalidade de nossa doutrina, emalguns casos (crimes de perigo comum) sem maiores questionamentos, emoutros, como nos crimes de tóxico e de trânsito, justamente como alternativaà construção de crimes de perigo abstrato. Ou seja, eles são propostos pelosdefensores garantistas do direito penal dito mínimo, que repudia crimes deperigo abstrato. O que não parece ser visto é que, no final das contas,acabou-se por legitimar, da mesma forma, a antecipação do direito penal

    71.Só que no caso dos crimes de perigo abstrato, antecipa-se a proibição; nobem jurídico coletivo, antecipa-se a própria lesão. E mais: como agora háverdadeira lesão, e não mais mero perigo abstrato, como a saúde pública élesionada, e não somente posta em perigo abstrato pelo porte deentorpecentes (art. 16 da lei de tóxicos), desaparecem todos e quaisquerproblemas de legitimidade. Afinal, o tal princípio da lesividade, que exigelesão (ou perigo concreto) a um bem jurídico, está atendido – com o quesurgem dúvidas a respeito de se não demos uma grande volta para acabar emsituação pior daquela da qual saímos. Pois ao menos os crimes de perigo

    67

      Criticamente quanto a este conceito de perigo comum, cf.  Rudolphi, SystematischerKommentar, Vor § 1/9a, e  Heine, em: Schönke-Schröder, Strafgesetzbuch, Vorb. §§ 306ff./19, que acertadamente relevam que o perigo comum não se refere a um bem jurídicosupra-individual, e sim a bens jurídicos individuais de várias pessoas.68  Klaus Weber , Betäubungsmittelgesetz Kommentar, 2ª edição, Beck, München, 2003, §1/3 e ss.; Endriß /  Malek , Betäubungsmittelstrafrecht, 2ª edição, Beck, München, 2000, nm.30;  Borja Jiménez, Curso de política criminal, Tirant Lo Blanch, Valencia, 2003, p. 199; Jesus, Lei antitóxicos, p. 12; Celso Delmanto, Tóxicos, Saraiva, São Paulo, 1982, p. 16.69  Kühl, em: Lackner / Kühl, Strafgesetzbuch, Beck, München, 2001, § 315/1; Wessels / Hettinger , Strafrecht, Besonderer Teil, 27ª edição, C. F. Müller, Heidelberg, 2003, nm. 978; Rengier , Strafrecht, Besonderer Teil II, 2ª edição, Beck, München, 1999, § 43/1;  Jesus,Crimes de trânsito, p. 11, p. 13;.70  Jesus, Nova visão da natureza dos crimes contra as relações de consumo, em: RBCC 4

    (1993), p. 81 e ss. (p. 82).71  Jesus, Crimes de trânsito, p. 25, chega a antever esta crítica, e responde com poucaclareza. Quem duvidar, leia a página citada.

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    abstrato tinham a virtude de não ocultar o fato de que o direito penal está

    realmente se antecipando. Já certos bens jurídicos coletivos resolvem tudo,acabam com todos os problemas, e é nisto, justamente, que está o maiorproblema.

    Pois bem, este artifício não é uma construção nacional. Já há décadas

    empenham-se vários autores em inventar bens jurídicos coletivos a todomomento em que necessitam de um fundamento para legitimar umaproibição um tanto estranha72. E isso não tem interesse meramente teórico.Porque a postulação de um bem jurídico coletivo acaba tendo um segundoefeito prático, além da já apontada legitimação da criminalização antecipadaatravés de sua ocultação: uma legitimação da sanção exasperada. Vejamosalguns exemplos.

    O art. 311 da lei de trânsito define como crime a conduta de“velocidade incompatível”, definida nos seguintes termos: “trafegar emvelocidade incompatível com a segurança nas proximidades de escolas,hospitais, estações de embarque e desembarque de passageiros, logradouros

    estreitos, ou onde haja grande movimentação ou concentração de pessoas,gerando perigo de dano. Pena – detenção, de seis meses a um ano, ou multa”.Já a lesão corporal culposa (art. 121, § 6º, do CP) é punida com detenção dedois meses a um ano. Damásio de Jesus considera o referido crime de lesãoao bem jurídico coletivo incolumidade pública73; por isso, sequer se vêdiante do problema da sanção absurda. Já quem considere tal crime umcrime de perigo74 terá em suas mãos o instrumentário adequado para criticara cominação legal. Afinal, puniu-se a mera exposição a perigo com penamais grave do que a própria lesão ao bem jurídico individual integridadefísica.

    Outro exemplo ainda mais gritante, aliás um dos mais gritantes detodos, é a lei de tóxicos, que pune o tráfico de entorpecente com pena de 3 a15 anos de reclusão e multa (art. 12). Se temos um bem jurídico saúdepública, é mais fácil tentar explicar o porquê de tal sanção draconiana75. Ocrime passa a ser, afinal, crime de lesão76! Se dispensarmos, porém, essebem jurídico coletivo e trabalharmos unicamente com bens jurídicosindividuais, em especial com a integridade física de quem recebe o tóxico,transformando estes crimes em crimes de perigo abstrato, ganhamos duascoisas. Primeiramente, vemos a criticabilidade da proibição, que tutela umbem jurídico individual mesmo contra a vontade de seu titular. E com issoabrimos as portas para uma interpretação teleológica restritiva do tipo: este

    tipo só deverá aplicar-se caso a vontade do titular do bem jurídica seja juridicamente irrelevante, por estar viciada de erro, por ser ele doente

    72  Cf., além dos autores citados nas notas anteriores, principalmente Tiedemann, por ex.Wirtschaftsbetrug, § 265/6, onde argumenta ser necessário postular um bem jurídicocoletivo no crime de estelionato contra seguro, pois doutro modo não se conseguiria“explicar” (isto é, justificar) a elevada cominação penal. Também admitindo um bem

     jurídico coletivo neste crime, Kühl, em: Lackner / Kühl, Strafgesetzbuch, § 265/1.73 Crimes de trânsito, p. 227.74 Observe-se que a norma fala em “gerar perigo de dano”, o que é indicação clara de perigoconcreto, e não só abstrato. Mas até a interpretação deste tipo como de perigo abstrato seriamais benéfica do que a postulação do bem jurídico coletivo.75

     Se bem que nem assim isso seja de todo possível, como apontei em meu estudo Tipos deautor e lei de tóxicos, em: RBCC 43 (2003), p. 226 e ss.76 Assim Jesus, Lei Antitóxicos, p. 16.

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    mental, menor, louco ou inculpável77. O segundo problema deste bem jurídico coletivo é legitimar a sanção absurda. Pois se o tráfico de tóxiconada mais é do que uma conduta que gera um perigo abstrato de lesão àintegridade física, esta conduta não pode sofrer pena mais grave do que a doque respectivo crime de lesão, no caso as lesões corporais. Estas são punidas

    em sua forma simples com detenção, de três meses a, no máximo, um ano.E é por isso que parte da doutrina embarcou num empreendimentoque, segundo me parece, será uma mais fecundas utilizações da teoria dobem jurídico: a desconstrução de bens jurídicos só aparentemente coletivos.Roxin78, Schünemann79, Hefendehl80 e Amelung81, entre outros, esforçam-sepor criticar certos bens jurídicos, como os acima apontados e mais alguns,interpretando os respectivos tipos como crimes de perigo abstrato para umbem jurídico individual. Argumenta-se em especial que os referidos bens

     jurídicos só são aparentemente coletivos, uma vez que eles não passam dasoma de vários bens jurídicos individuais82. A soma de vários bens jurídicosindividuais não é suficiente, porém, para constituir um bem jurídico coletivo,

    porque este é caracterizado pela elementar da não-distributividade, isto é, eleé indivisível entre diversas pessoas83. Assim, cada qual tem a sua vida, a suapropriedade, independente das dos demais, mas o meio ambiente ou aprobidade da administração pública são gozadas por todos em sua totalidade,não havendo uma parte do meio ambiente ou da probidade da administraçãopública que assista exclusivamente a A ou a B. Já o bem jurídico saúdepública, por ex., nada mais é do que a soma das várias integridades físicasindividuais, de maneira que não passa de um pseudo-bem coletivo.

    Este empenho no sentido de desconstruir pseudo-bens jurídicoscoletivos é extremamente recente e tem sido levado adiante de modo aindamuito intuitivo. Não está claro se e em que medida o critério da não-distributividade realmente tem capacidade de efetivar aquilo que elepromete, a separação entre o joio e o trigo. Porque os defensores de tais benscoletivos não se cansam de afirmar que eles são mais do que a soma dosdiversos bens individuais84. É o momento, a meu ver, de se pensar emcritérios para a postulação de bens jurídicos coletivos, para impedir que selegitimem leis absurdas com construções ad hoc, sem qualquer fundamento,mantendo a consciência dos penalistas limpa e imperturbada, em razão deestarem respeitando o tal princípio da lesividade – ao menos da boca parafora. Mas esta necessidade de se formularem critérios para postulação de

    77

      Conclusão próxima em Frisch, Stree/Wessels-FS, 1993, p. 95; Vom totalitären zumrechtstaatlichen Strafrecht, 1993, p. 218; e Queiroz, Caráter subsidiário, p. 116.78  Roxin, Neufassung § 2, Rn. 79.79 Schünemann, Die Rechtsgutstheorie, 2003, p. 149; cf. também Alte Strafrechtsstrukturen,p. 26, p. 28.80  Hefendehl, Kollektive Rechtsgüter, p. 139 e ss.81  Amelung, Rechtsgutstheorie, 2003, p. 171 e ss.82  Cf. as passagens citadas nas notas anteriores. Só Amelung trabalha com consideraçõesum pouco diversas: para ele, estaremos diante de um bem jurídico aparente quando osuposto bem jurídico não passar de uma descrição substantivada do próprio comportamentoem conformidade à norma, tal como seria o caso no suposto bem jurídico “moralidade”.83 Cf. Hefendehl, Kollektive Rechtsgüter, p. 112, p. 123.84 Tiedemann, Das Verbrechen in der Wirtschaft, 1972, p. 10 e ss.; Welche strafrechtliche

    Mittel empfehlen sich für eine wirksamere Bekämpfung der Wirtschaftskriminalität?, em:Verhandlungen des 49. Deutschen Juristentages, Beck, München, 1972, p. C 19 e ss.; Jesus,Lei antitóxicos, p. 11.

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    bens jurídicos coletivos não foi vista nem mesmo na Alemanha. Aqui se abretodo um campo para um trabalho pioneiro.

    5. Síntese das considerações sobre o bem jurídicoEm síntese, podemos observar três aspectos:

    - o conceito político-criminal de bem jurídico é possível. Ele tem deestar arrimado na constituição, mas não se limita a meramente refletir osvalores que a constituição consagra, uma vez que somente valoresfundamentais podem justificar a gravidade da intervenção penal (princípioda subsidiariedade). Estes valores podem ser tanto do indivíduo, como dacoletividade, merecendo acolhida a concepção dualista de bem jurídico.Assim sendo, definimos bem jurídicos como dados fundamentais para arealização pessoal dos indivíduos ou para a subsistência do sistema social.

    - a tutela de um bem jurídico não é, porém, condição necessária paraa legitimidade de uma incriminação.  Em casos excepcionais, como o dosmaus tratos a animais, não será possível falar em bem jurídico no sentido

    acima proposto. Para evitar uma total diluição do conceito de bem jurídico,com sacrifício de seu caráter crítico, é melhor admitir exceções – ainda quecom enorme cautela. Abre-se, com isso, todo um novo campo para ainvestigação científica, que diz respeito aos critérios com base nos quais sepodem reconhecer tais exceções.

    - por fim, é preciso cuidado com pseudo-bens jurídicos coletivos.Falar em saúde ou incolumidade pública, por ex., esconde os déficits delegitimidade de antecipações da tutela penal. A categoria dos crimes deperigo abstrato, referida a um bem jurídico individual, é muito mais crítica,porque expõe estes problemas com toda clareza. É necessário, porém,formular critérios para a distinção entre bens jurídicos coletivos autênticos eaparentes, algo que ainda ninguém, nem mesmo Alemanha, sequer viu sernecessário.

    III. O segundo grupo de dúvidas: a estrutura do delito

    1. IntroduçãoDemos início a nossas considerações ao examinarmos a assertiva

    segundo a qual crimes de perigo abstrato seriam inconstitucionais, em razãodo tal princípio da lesividade. Ocorre que, após a análise do bem jurídico

    acima realizada, ainda não começamos a falar verdadeiramente daproblemática dos crimes de perigo abstrato. Porque, como foi sórecentemente visto na Alemanha, mas não ainda entre nós85, o problema doscrimes de perigo abstrato pouco tem a ver com a questão do bem jurídico. Alegitimação dos crimes de perigo abstrato não deve ser discutida à luz deconsiderações sobre o bem jurídico, e sim sobre outro tópico, que algunsautores começam a chamar de “estrutura do delito” (Deliktstruktur).  Aotratar do bem jurídico, está-se diante da pergunta: o que proteger? Ao

    85 Uma aparente exceção seria Luiz Flávio Gomes, Princípio da ofensividade, p. 43, em suas

    considerações a respeito das relação entre o que ele chama de “princípio da ofensividade” eo “princípio da proteção de bens jurídicos”. Mas a leitura do resto do trabalho demonstraque ele de fato não diferencia suficientemente as duas questões.

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    tratar da estrutura do delito, o problema já não mais o que proteger, e sim:

    como proteger? É neste “como”, na questão da estrutura do delito, que devemos examinar

    a problemática do crime de perigo abstrato. Explicitemos a questão atravésde um exemplo, a saber, o bem jurídico individual vida. Aqui, a primeira

    pergunta, quanto à existência de bem jurídico, se responde facilmente emsentido afirmativo, porque a vida é elemento necessário para a realizaçãopessoal, subsumindo-se, portanto, à definição acima proposta. A segundaordem de considerações diz respeito à estrutura dos delitos que protegem avida. Esta proteção pode ser efetivada através de delitos de lesão: ohomicídio culposo e o homicídio doloso, sem falar em várias outros crimesem que a destruição da vida figura como qualificadora (lesão corporalseguida de morte, estupro com resultado morte). Outra estrutura de proteçãoé a dos delitos de perigo concreto: a vida é protegida através desta estruturanos crimes de perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132, CP), noabandono de incapaz (art. 133)86, no incêndio (art. 250)87. Aqui, é necessário

    que, de uma perspectiva ex post, resulte efetivamente uma situação defragilidade para o bem jurídico tutelado, que só se salva por obra do acaso 88.Por fim, o bem jurídico vida pode ser protegido também contra através decrimes de perigo abstrato: por ex., o legislador proíbe a rixa (art. 137) não sóno interesse da incolumidade pública89, como, principalmente, porque essaconduta pode provocar mortes.

    Como vimos, entre nós tornou-se costumeiro declarar inconstitucionais intotum os crimes de perigo abstrato. Diz-se que tal resultaria do princípio dalesividade, da necessária referência a um bem jurídico. Podemos afirmar, jáde agora, que tal colocação do problema é falha, por tratar-se de um errocategorial. Nos crimes de perigo abstrato, o problema, em geral, não está nobem jurídico a ser defendido, pois este é o mesmo dos crimes de perigoconcreto e dos crimes de lesão, a respeito de cuja legitimidade não se podeduvidar. O que se está afirmando, a rigor, é que as estruturas do delitolegítimas se restringem a unicamente duas formas: a do delito de lesão e a dodelito de perigo concreto. Essa afirmativa já pouco tem a ver com oproblema do bem jurídico, previamente tratado. Com o que surge toda umasérie de questionamentos, a que agora daremos voz.

    2. A primeira dúvida: o que se deve entender por perigo concreto? A linha divisória entre o legítimo e o ilegítimo, segundo a tese que agora

    examinamos, seria dada pelo caráter concreto ou abstrato do perigo criado.Ou seja, defender esta tese erige ao status de problema fundamental adefinição do que seja perigo concreto, uma vez que ela demarcará os limitesdo ainda punível. Mas, curiosamente, todo o esforço de discussão dadoutrina moderna sobre o conceito de perigo parece ser soberanamenteignorado pelos inimigos dos crimes de perigo abstrato. Porque eles

    86 Apesar de parte da doutrina falar em um bem jurídico “segurança” ( Bitencourt , Códigopenal, p. 482).87 Apesar de parte da doutrina falar no pseudo-bem jurídico coletivo “incolumidade pública”( Bitencourt , Código penal, p. 954).88 Mais detalhes a respeito deste conceito normativo de perigo concreto abaixo, #.89

     Para alguns autores, este bem jurídico figura ao lado do bem jurídico individual comoobjeto de tutela penal ( Bitencourt , Código penal, p. 511). Para a posição aqui defendida,trata-se de um falso bem jurídico.

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    raramente se referem a esta discussão, e muito menos tomam partido emfavor de uma ou outra das posições nela defendidas. Aliás, o queencontramos em nossos manuais a respeito do conceito de perigo nãocostuma ser muito mais do que a inútil, superada e praticamente esquecidadiscussão a respeito da natureza subjetiva ou objetiva do perigo90.

    Ponto comum a todos os que se importam em definir o que seja  perigoconcreto é a perspectiva com base na qual ele deve ser ajuizado: trata-se da perspectiva ex post , isto é, levam-se em conta todas as circunstâncias reais,mesmo as somente conhecidas e cognoscíveis após a realização do fato91.Quanto a isto, não parece haver dúvida na doutrina alemã. Ainda assim, oscríticos do perigo abstrato só raramente esclarecem se partem de umaperspectiva ex ante ou ex post92. E mais: a principal fonte de inspiração doscríticos nacionais do perigo abstrato, a doutrina italiana, consideraamplamente que o juízo de perigo concreto deve formular-se segundo umaperspectiva ex ante, isto é, levando em conta unicamente as circunstânciasconhecidas e cognoscíveis no momento da prática do fato93. Com isso, os

    autores italianos acabam tendo um conceito de perigo concreto que é muitomais amplo do que o dos alemães, um conceito que compreende grande partedaquilo que os alemães chamam de perigo abstrato.

    Continuemos, porém, a nossa exposição, para depois tirarmosconclusões. Há, fundamentalmente, duas posturas a respeito do que sejaperigo concreto. Uma, de matriz ontológico, proposta sobretudo por Horn eque acabou por encontrar pouquíssimos seguidores, afirma existir perigoconcreto quando a não-ocorrência do resultado não é cientificamenteexplicável, através de uma lei natural94. Segundo Horn, se não fosse possívelafirmar em razão de qual lei natural o resultado danoso deixou de ocorrer, seas leis naturais de que dispomos levassem-nos a diagnosticar a ocorrência deum resultado o qual, na verdade, não se sucedeu, então estaríamos diante deuma verdadeira situação de perigo concreto. Já a segunda concepção, decaráter normativo, rechaça a possibilidade de que se possa recorrer a dadosônticos, inerentes ao mundo do ser, para definir quando há perigo concreto.Para este conceito normativo de perigo, na formulação que ele recebe deSchünemann

    95, estaremos diante de um perigo concreto somente quando nãose pudesse ter confiado na não-ocorrência do resultado. Noutras palavras: obem jurídico terá passado por perigo concreto quando a inocorrência dalesão parece mera obra do acaso, quando um homem racional não pudessecontar com um final feliz para os acontecimentos96. Este conceito normativo

    de perigo parte de longa tradição, tradição essa tanto doutrinária, podendoencontrar-se formulações similares ao menos desde Binding, que falava em

    90 #91 Por todos, Roxin, Strafrecht I, § 11/121.92 Uma aparente exceção é Jesus, Crimes de trânsito, p. 6, que fala em perspectiva ex post;digo aparente, porque, como veremos, este autor logo introduz mecanismos que compensama restrição de punibilidade resultante da adoção desta perspectiva (“perigo comum, difusoou coletivo”).93 Cf. Fiore, Diritto penale, p. 183; Mantovani, Diritto penale, p. 223 e ss.; Padovani, DirittoPenale, p. 170.94  Horn, Konkrete Gefährdungsdelikte, Otto Schmidt, Köln, 1973, p. 159.95

      Schünemann, Moderne Tendenzen in der Dogmatik der Fahlrässigkeits- undGefährdungsdelikte, in: JA 1975, p. 787 e ss. (p. 796).96 Damásio de Jesus, Crimes de trânsito, p. 6.

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    “abalo da certeza existencial de um bem jurídico”97; como jurisprudencial,havendo vários julgados em que a aparece idéia da não-ocorrência doresultado por mero acaso98. É este o conceito de perigo concreto hojemajoritário99.

    Agora surge a seguinte indagação: será esta a compreensão de perigo

    concreto acolhida por aqueles que consideram ilegítimos os crimes de perigoabstrato? Para dar um exemplo: digamos que alguém, em estado deembriaguez, ultrapasse um motociclista pela direita, além disso saindo de suafaixa e avançando bastante sobre a do motociclista. Ocorre que estemotociclista compete em motocross e não tem a menor dificuldade emrecuar um pouco a própria motocicleta, evitando, assim, um acidente. Seráque aqui a doutrina brasileira consideraria inaplicável o dispositivo do art.306, do Código de Trânsito, o qual incrimina a conduta de “conduzir veículoautomotor, na via pública, sob influência de álcool ou de substância deefeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”? Serealmente o entender como crime de perigo concreto, a resposta só pode ser

    afirmativa, uma vez que, aqui, o resultado não deixou de ocorrer por acaso, esim pelas superiores capacidades do motociclista. Mas Luiz Flávio Gomes,por ex., insiste que o tipo “não exige perigo concreto para pessoadeterminada, ao contrário, trata-se de perigo a um número indeterminado depessoas (perigo indireto ou comum), que entraram no raio de ação daconduta causadora de riscos”100. Da mesma forma, Damásio de  Jesus, que,apesar de adotar o conceito de perigo concreto da moderna doutrinadominante101, o faz só nominalmente, uma vez que se limita a exigir um“perigo comum (difuso ou coletivo)”, declarando que, no crime deembriaguez ao volante, “ainda que nenhum indivíduo da coletividade venhaa ser exposto a perigo, há crime, desde que ocorra rebaixamento do nível desegurança do tráfego”102,103.

    A rigor, nossos críticos do perigo abstrato só conseguem ser tãoradicais porque trabalham com um conceito de perigo concreto bem maisamplo, bem menos severo, do que o proposto pela doutrina alemã. Porque seaté “perigo comum”, perigo para número indeterminado de pessoas, é perigoconcreto, se existe uma “teoria do perigo concreto indireto”104, então grandeparte daquilo que a doutrina dominante pode, no máximo, considerar crimede perigo abstrato acabou sendo elevado à categoria dos crimes de perigoconcreto e tornada legítima.

    Ou seja: o primeiro problema da crítica global aos crimes de perigo

    abstrato é não explicitar o conceito de perigo concreto do qual ela parte. Estaindeterminação acaba por flexibilizar e atenuar a radicalidade da teseanalisada, porque muito do que costumamos compreender por crimes de

    97  Binding, Normen I, pp. 372-373.98 BGH NStZ 1996, p. 83 e ss.99  Por ex., Roxin, Strafrecht I, § 11/125; Ostendorf , Grundzüge des konkretenGefährdungsdelikts, in: JuS 1982, p. 426 e ss., (p. 430).100 Luiz Flávio Gomes, Princípio da ofensividade, p. 105.101 Como observei em nota anterior, #.102  Jesus, Crimes de trânsito, p. 8.103 Substancialmente idêntica também  Bianchini, Pressupostos, p. 69, que considera ser a

    sua tese o mesmo que na Alemanha se chama de “perigo abstrato-concreto”, apesar de esteconceito se referir a fenômeno bem diverso.104 Assim, Luiz Flávio Gomes, Princípio da ofensividade, p. 105.

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    perigo abstrato já passará a ser, segundo a imprecisa concepção examinada,perigo concreto – e escapará facilmente do juízo de ilegitimidade.

    3. A segunda dúvida: crimes de perigo abstrato e bens jurídicospseudocoletivos

    A radicalidade da tese defendida pelos inimigos do crime de perigoabstrato levaria, se fosse ela real, à inconstitucionalidade de muitos maisdispositivos do que eles parecem imaginar. Isso porque é muito fácil recusarglobalmente estes crimes, se se continua a trabalhar com aqueles bens

     jurídicos “coletivos” que acima criticamos, como a paz pública, aincolumidade pública, a saúde pública etc. Mas, uma vez que se recusem taisbens jurídicos, que devem ser decompostos em bens jurídicos individuaisque na verdade são, ver-se-á que muitíssimas incriminações antesindiscutidas não passam de crimes de perigo abstrato – e que nada há deerrado com isso.

    Vejamos, por ex., o crime de envenenamento de água potável ou de

    substância alimentícia ou medicinal (art. 270): “Envenenar água potável, deuso comum ou particular, ou substância alimentícia ou medicinal destinada aconsumo”. A doutrina dominante ainda trabalha com um bem jurídicocoletivo: a incolumidade pública105. Se compreendermos este delito comoum delito para a proteção de bens jurídicos individuais, como a vida e aintegridade física, será ele transformado em um crime de perigo abstrato106.Duvidará alguém da legitimidade desta incriminação? Aliás, uma vez que serecuse tanto o bem jurídico incolumidade pública, quanto a saúde pública,quase todos os crimes do Título VIII (Dos crimes de perigo comum)Capítulo III (Dos crimes contra a saúde pública) passarão a ser crimes deperigo abstrato contra bens jurídicos individuais.

    E isso com o ganho acima explicitado: primeiramente, abre-se todoum novo campo para interpretar restritivamente o alcance da proibição nos

    referidos tipos. Por ex., o crime de charlatanismo (art. 283), que pune o atode “inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível”, uma vezentendido como crime de perigo abstrato em defesa especialmente daintegridade física, mas em casos limite também da vida da pessoa enganada,tem seus alicerces profundamente abalados. Pois em princípio, a vítima podeautocolocar-se em perigo, sem que isto gere qualquer responsabilidade paraterceiros que venham a participar de tal ação perigosa107. Quem acredita em“cura por meio secreto ou infalível” o faz, em regra, a próprio risco, porque,

    nos dias de hoje, é amplamente sabido que tais meios não existem. Aexceção a esta regra será o caso em que a vítima padece de algum déficit deresponsabilidade: por ex., ela sofre de um mal grave, que turva a suacapacidade de compreensão ou de autodeterminação, em termos análogosaos do art. 26, CP (que trata da inimputabilidade), ou é menor, ou doente

    105  Bitencourt , Código penal, p. 991.106 Cf. Kühl, em: Lackner / Kühl, Strafgesetzbuch, § 314/1;  Heine, em: Schönke/Schröder,Strafgesetzbuch, § 314/2. No sentido do crime de perigo abstrato, também,  Bitencourt ,Código penal, p. 992, se bem que o autor dirija este perigo à incolumidade pública e não a

    bens jurídicos individuais.107 Cf. a respeito Roxin, Funcionalismo e imputação objetiva, trad. Luís Greco, Renovar, Riode Janeiro, 2002, § 11/91 e ss.

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    mental, ou está laborando em erro não imputável a ela mesma. Outroexemplo acima examinado foi o dos crimes de tóxicos.

    Em segundo lugar, como acima já apontamos, a desmistificação debens jurídicos coletivos faz penas desproporcionadas saltarem aos olhos.Não precisamos citar outra vez os exemplos acima dados; daremos

    unicamente mais um, o do art. 270, o crime de envenenamento de águapotável ou de substância alimentícia ou medicinal. Acabamos de dizer queninguém pode duvidar da legitimidade desta incriminação. É verdade; maspode-se e deve-se legitimar da legitimidade da pena de reclusão, de dez aquinze anos. Porque por mais perigosa que seja a presente ação, ela nãodeixa de ser um mero crime de perigo abstrato, que jamais pode ser punidocom pena mais alta que a do próprio delito de lesão. E os respectivos crimesde lesão, aqui, são punidos ou com reclusão, de dois a oito anos (tomemosunicamente a lesão corporal gravíssima), ou com reclusão, de seis a vinteanos (homicídio simples).

    As vantagens de se recusarem bens jurídicos pseudo-coletivos são,

    portanto, muitas. O que perguntamos, assim, é o seguinte: como seposicionam os críticos do crime de perigo abstrato em relação a esteproblema? Porque eles têm, a rigor, duas opções. A primeira é acolherem ascríticas aqui formuladas a tais bens jurídicos falsamente coletivos e com issoterem de declarar inconstitucionais quase todos os chamados crimes contra asaúde pública, por exemplo. E a segunda é, para salvarem aconstitucionalidade de tais proibições, terem de admitir a postulação de bens

     jurídicos coletivos a gosto, aqui e toda vez que se queira resgatar alegitimidade de alguma incriminação. É infelizmente esta segunda postura amais difundida entre os críticos brasileiros do crime de perigo abstrato.Alguns chegam mesmo a declarar que o bem jurídico coletivo é desejável,

     justamente por resolver todos os problemas108, deixando de ver que estaaparente simplificação é justamente o problema.

    Ou seja: a radicalidade da tese examinada, segundo a qual os crimesde perigo abstrato seriam inconstitucionais, sofre uma segunda atenuação,porque seus defensores não hesitam em postular falsos bens jurídicoscoletivos toda vez que se vêem diante de um tipo que querem imunizarcontra a crítica.

    4. O caminho promissor: abandono de soluções globais em favorde um detalhado desenvolvimento das diversas estruturas do delito

    E é por isso que um setor da doutrina moderna vem propondo umaterceira via, que renuncia às pretensões das quais parte um vasto setor depenalistas não só brasileiros, no sentido de que seja possível uma soluçãoglobal. Propõe-se, muito mais, uma solução diferenciada: da mesma formaque, na questão do bem jurídico, tentou-se separar o joio do trigo, excluindobens jurídicos só aparentemente coletivos, agora, face ao problema daestrutura do delito, tentar-se-á formular critérios para distinguir os crimes de

     perigo abstrato legítimos dos ilegítimos. Porque, se por um lado temos

    108  Assim, especialmente,  Jesus, Crimes de trânsito, p. 23; Luiz Flávio Gomes,Ofensividade, p. 103, que fala na necessidade de “descobrir” o bem supra-individual

    afetado, para que, com isso, o tipo seja posto em consonância com a idéia de ofensividade, oque é uma clara transformação do conceito dogmático de bem jurídico em conceito político-criminal.

  • 8/9/2019 Luis Greco - Princípio da lesividade e crimes de perigo abstrato.pdf

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    delitos de perigo abstrato indubitavelmente legítimos, de outro temos crimescomo o disparo de armas de fogo, recentemente introduzido pela nova lei dearmas de fogo, acima mencionado. Ou seja, é preciso formular critérios dedistinção um pouco mais complexos do que um mero tudo ou nada, e é nesteempreendimento que começam a embarcar vários autores. Um

    empreendimento que não é nem de aceitação global, de nem de obstinadarecusa, mas que busca um sadio meio termo, ciente que está daheterogeneidade dos problemas com que está lidando, o que tornaria a buscade uma solução unitária algo no mínimo ingênuo. Um vasto grupo de autoressubscreve esta linha de pensamento, entre eles se encontrando Roxin109,Schünemann110, Frisch111  e Jakobs112. Mas os dois mais importantestrabalhos nesta linha são as recentes teses de livre-docência de Wohlers e deHefendehl. Tentarei fazer uma apertada síntese do que dizem os dois jovensprofessores, para depois formular algumas conclusões.

    Após criticar os instrumentos teóricos com que até agora se vemtentando restringir o poder do legislador de incriminar113, declara Wohlers 

    que o caminho correto está em construir grupos de crimes de perigo abstratoe enunciar os requisitos de legitimidade que cada qual tem de atender114.Distingue ele três espécies de delitos de perigo abstrato: primeiramente, ospor ele chamados delitos de ação concretamente perigosa; depois, os delitosde cumulação; e, por último, os delitos de preparação.

    O primeiro destes grupos de delitos, o dos delitos de açãoconcretamente perigosa – minha tradução de konkrete Gefährlichkeitsdelikte– refere-se àqueles tipos que proíbem uma ação que leva, tipicamente, a umasituação não mais controlável pelo agente e, portanto, perigosa para o bem

     jurídico115. Um exemplo seria, no direito alemão, a conduta de embriaguezao volante116. Aqui, a proibição só é legitimável diante de uma ponderaçãode interesses que se assemelha bastante àqu