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1288 LUGARES DE AFETO NADA EMPOEIRADOS: UMA DISCUSSÃO SOBRE MEMÓRIA E IDENTIDADE DO IDOSO ASILADO, O REGISTRO COMO PROMOÇÃO DE SAÚDE MENTAL Daniele Borges Bezerra 1 UFPel [email protected] Tatiana Bolivar Lebedeff 2 UFPel [email protected] A sociedade ocidental contemporânea apresenta um caráter excludente muito marcante que pode ser interpretado a partir de diversos níveis de categorização e nivelamento de seus integrantes. A velocidade com que o tempo e as ações se processam altera não apenas a identidade da pessoa contemporânea como também determina outras formas de ação no presente, outros fluxos de registro e usos da memória. Muito se tem falado de um mnemotropismo contemporâneo, explicitado como um período de ansiedade com relação ao futuro que ocasiona uma necessidade de armazenamento de memórias. Contudo, não se percebe, principalmente na sociedade ocidental, uma valorização do saber e das memórias do idoso, considerado como sujeito social improdutivo e de saber desatualizado. A memória dos idosos asilados antes de ser incorporada numa função de compartilhamento, de fonte de informações, assume uma função de alento pessoal, e rememoração de um passado ainda presente. O trabalho pretende discutir a importância do registro da memória do idoso asilado não apenas como fonte de informações para compreensão de identidades e patrimônio dos grupos sociais, mas, também, como possibilidade de que o momento de registro visual e sonoro, de coleta de dados, seja uma estratégia para promoção de saúde mental. Palavras-chave: Idosos – memória – saúde mental Falar de memória é, antes de mais nada, falar em marcas, impressões, inscrições, fixadas e justapostas no tempo. O homem desde os primórdios de seu desenvolvimento intelectual buscou formas de fixação no tempo. E é com naturalidade que faz uso de uma gama ilimitada de recursos simbólicos para sua expressão e inscrição no mundo através da linguagem: escrita, falada, artística. É neste caráter transmissor que a comunicação entre subjetividades faz circular 1 Artista Plástica, Fotógrafa, Especialista em Saúde mental Coletiva e Sanitarista pela Escola de Saúde Pública (ESP/RS). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). 2 Doutora em Psicologia do Desenvolvimento. Docente do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

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LUGARES DE AFETO NADA EMPOEIRADOS: UMA DISCUSSÃO SOBRE MEMÓRIA E IDENTIDADE DO IDOSO ASILADO, O REGISTRO COMO

PROMOÇÃO DE SAÚDE MENTALDaniele Borges Bezerra1

[email protected]

Tatiana Bolivar Lebedeff2

[email protected]

A sociedade ocidental contemporânea apresenta um caráter excludente muito marcante que pode ser interpretado a partir de diversos níveis de categorização e nivelamento de seus integrantes. A velocidade com que o tempo e as ações se processam altera não apenas a identidade da pessoa contemporânea como também determina outras formas de ação no presente, outros fluxos de registro e usos da memória. Muito se tem falado de um mnemotropismo contemporâneo, explicitado como um período de ansiedade com relação ao futuro que ocasiona uma necessidade de armazenamento de memórias. Contudo, não se percebe, principalmente na sociedade ocidental, uma valorização do saber e das memórias do idoso, considerado como sujeito social improdutivo e de saber desatualizado. A memória dos idosos asilados antes de ser incorporada numa função de compartilhamento, de fonte de informações, assume uma função de alento pessoal, e rememoração de um passado ainda presente. O trabalho pretende discutir a importância do registro da memória do idoso asilado não apenas como fonte de informações para compreensão de identidades e patrimônio dos grupos sociais, mas, também, como possibilidade de que o momento de registro visual e sonoro, de coleta de dados, seja uma estratégia para promoção de saúde mental.Palavras-chave: Idosos – memória – saúde mental

Falar de memória é, antes de mais nada, falar em marcas, impressões, inscrições, fixadas e justapostas no tempo. O homem desde os primórdios de seu desenvolvimento intelectual buscou formas de fixação no tempo. E é com naturalidade que faz uso de uma gama ilimitada de recursos simbólicos para sua expressão e inscrição no mundo através da linguagem: escrita, falada, artística.

É neste caráter transmissor que a comunicação entre subjetividades faz circular

1 Artista Plástica, Fotógrafa, Especialista em Saúde mental Coletiva e Sanitarista pela Escola de Saúde Pública (ESP/RS). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).2 Doutora em Psicologia do Desenvolvimento. Docente do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

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as memórias e configura um sentido de filiação e pertencimento no compartilhamento de memórias e identidades de grupos. É a partir de um processo permeado pela consciência individual que a pessoa seleciona, descarta, atualiza, ou recalca lembranças que num conjunto de experiências acumulativas constituem o indivíduo que vive e se percebe como parte de uma história da qual ele também é um personagem.

É neste contexto conceitual de memória e identidade como parte de um conjunto mais amplo e compartilhado que se situa a importância da escuta e do compartilhamento entre idosos. A manutenção desta participação em sociedade é aspecto central em um processo preventivo ao adoecimento.

Pensar o lugar do idoso na sociedade ocidental pressupõe a busca de indícios de sua inserção em sociedade. E, parece inevitável falar do idoso sem deixar de pontuar a associação de palavras de cunho pejorativo relacionadas como referência à identidade na velhice, de modo naturalizado. A mais comum é a palavra: velho3, associada a algo retrógrado, com validade vencida, que caducou, expirou, démodé, entre outros.

Percebe-se na sociedade ocidental contemporânea uma exagerada preocupação com o presente e com o futuro e uma espécie de luto em relação ao passado, como um passado perdido. Este modelo de sociedade é marcado pela velocidade e pela fragmentação do tempo a partir de um ritmo industrial centrado na produção. A pessoa idosa encontra-se a meio caminho entre passado e presente sem grandes projeções para o futuro e quando desconectado da vida familiar e produtiva encontra uma inadequação em relação à sociedade na qual está inserido.

É contraditório pensar que a sociedade contemporânea aprimore seus meios de armazenamento e registros do passado e, contudo, ignore a pessoa idosa como potencial arquivo vivo de memórias de um tempo ao qual não temos acesso. O tempo passado, presente na memória de idosos e em seus saberes, é muito pouco acessado na prática. Pode-se sugerir que o idoso, geralmente posto à margem da coletividade, experimente uma sensação de deslocamento temporal, um estar fora do tempo, simbólico. Pois, por estar a ele associada uma série de estigmas de improdutivo e incapaz sente, no seu futuro que se tornou presente, uma desvalorização da sua história e da própria identidade.

O idoso mesmo quando possui família pode sentir-se deslocado do eixo familiar e ao rememorar o passado perceber o presente com nostalgia. Tal fato ocorre pela sensação de decadência decorrente da desvalorização atual, marcada por um encolhimento em relação a sua prática social atual. Para Ecléa Bosi (2009, p. 83) “o velho é alguém que se retrai de seu lugar social e este encolhimento é uma perda e um empobrecimento para todos”. O termo “encolhimento”, utilizado por Bosi (idem), refere-se ao sentimento de perda de

3 Para Ecléa Bosi, que utiliza o termo velho como categoria social, no seu livro: Memória e Sociedade: lembranças de velhos: “a velhice, que é fator natural como a cor da pele, é tomada preconceituosamente pelo outro”. (BOSI, 2009, p. 79).

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participação em sociedade vivenciado pelo idoso que, ao contrário do que acontece em outras civilizações que não a ocidental, não é percebido como difusor, ou nos termos da autora, guardião, de saberes sociais que caracterizam tesouros culturais.

Por outro lado, a experiência de idosos asilados, com perda de vínculo familiar, evidencia ainda mais o aspecto de inutilidade, muitas vezes por eles incorporado. A sensação de abandono em paralelo a de isolamento social potencializa no idoso uma sensação de finitude antecipada. Neste sentido, o ato de compartilhamento4 a partir de narrativas de histórias anestesiadas pelo tempo e pela vida institucionalizada, pode ser benéfico e positivo, desde que se perceba na narrativa do idoso, uma ação cultural que implica em uma humanização do presente. Registrar tais memórias em diálogo com o presente é uma maneira de compreender a própria cultura e as identidades nela submersas. Por outro lado, é a própria carência de escuta e este esquecimento velado proposto pelas instituições a favor de um presente minimamente confortável, que salientam no idoso asilado, o sentimento de esvaziamento ou encolhimento que antecipam a morte, tornando-a vivamente presente.

Ecléa Bosi (idem) vê no idoso a função social própria de rememorar, sua imaginação faz longos voos em direção ao passado e com maturidade seleciona aspectos que considere importantes no presente. A rememoração é espontânea e natural, no entanto, muitas vezes se volta a espaços estéreis onde a escuta é negativa:

Mas, o ancião não sonha quando rememora: desempenha uma função para a qual está maduro, a religiosa função de unir o começo ao fim, de tranquilizar as águas revoltas do presente alargando suas margens: [...] Ele, nas tribos antigas, tem um lugar de honra como guardião do tesouro espiritual da comunidade, a tradição. (BOSI, 2009 p. 82)

Ao afirmar que o idoso não sonha, a autora exprime uma relação entre a maturidade do idoso e sua função como difusor de experiências, e pressupõe que com o idoso a projeção para o futuro se dê, a partir de outros, os mais jovens, a qual se vincula a ideia de sonho e, não do seu próprio futuro. Embora se estabeleça uma diferenciação entre a faculdade da memória e imaginação, a fins de validação das pesquisas em memória social, sabe-se que os mecanismos de ação do cérebro, no exercício de rememoração estão vinculados a um ato de imaginação. Com isso, nenhuma memória é reflexo fiel da experiência rememorada, mas uma referência que se altera com o tempo à medida que se

4 O estatuto do idoso através da lei Nº 10.741 de 1º de outubro de 2003, demonstra a notoriedade da função de compartilhamento no idoso e a importância do cumprimento destas recomendações como incremento para a memória e a identidade culturais: Art. 3º. IV – viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio dos idosos com as demais gerações; Art. 21º - § 2º- os idosos participarão das comemorações de caráter cívico ou cultural, para transmissão de conhecimentos e vivências às demais gerações, no sentido da preservação da memória e das identidades culturais.

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rememora. É neste percurso temporal que se altera também a identidade do sujeito das lembranças. Perceber o idoso enquanto categoria social faz necessária uma imersão nas origens desta categorização para gerar novas formas de percepção de sua função no tecido social.

A sociedade ocidental contemporânea apresenta um caráter excludente muito marcante que pode ser interpretado a partir de diversos níveis de categorização e nivelamento de seus integrantes. A velocidade com que o tempo e as ações se processam altera não apenas a identidade da pessoa contemporânea, como também, determina outras formas de ação no presente, outros fluxos de registro e usos da memória, bem como novas categorias para pessoas do presente e pessoas do passado, ainda no presente.

Os velhos, pode-se dizer formam hoje uma das categorias de sujeitos contemporâneos, tais como os jovens, os adultos e as crianças. A busca da longevidade, destacam Marques e Pachane (2010), sempre foi uma preocupação dos homens, intimamente ligada à capacidade física e relacionada à condição de produtividade social. Os autores chamam a atenção de que a crescente melhoria nas condições de vida ao longo do tempo contribuiu para a ampliação do número de idosos na sociedade moderna. Entretanto, paradoxalmente em nossa sociedade, ao mesmo tempo em que se busca a longevidade, nega-se a velhice.

A sociedade determina, de acordo com Marques e Pachane (2010), o lugar e o papel do idoso. O critério de idade não é o único usado pela sociedade, mas reúne em si justificativas para a desvalorização e não emancipação dos idosos.

Paula (2009) ressalta que estamos numa sociedade em que os mais velhos não são ouvidos, não são vistos e, por consequência, não são respeitados. Ser velho, de acordo com a autora, é estar à margem e, infelizmente, o idoso em nossa sociedade ainda não é visto como fonte de sabedoria.

Não se percebe na sociedade contemporânea, portanto, uma valorização do sujeito idoso, do saber do idoso, mas antes, o conhecimento do idoso é interpretado como um conhecimento desatualizado, produto de um sujeito social improdutivo; a memória antes de ser incorporada numa função de compartilhamento, assume a partir de lembranças, imagens evocativas, objetos e locais de memória, uma função de alento ou atestado de existência no presente. Conforme, Mazzuchi Ferreira apud Tedesco (2001, p. 37) os vestígios memoriais seja através de objetos, fotografias ou locais habitados no passado, são importantes porque funcionam “como armas contra a desconfiguração social dos velhos”; talvez como forma de resistência à desfiguração social, como negação ao lugar de desvio e tentativa de preservação numa moldura imagética do tempo áureo, contrária ao que lhes é atribuído no presente da velhice.

Muito se tem falado de um mnemotropismo contemporâneo, onde autores afirmam

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estar-se vivendo um período de ansiedade com relação ao futuro que ocasiona uma necessidade de armazenamento de memórias. A velocidade de produção e de consumo característicos da cultura contemporânea faz com que a sociedade assuma contornos efêmeros, quase solúveis. Propõe-se, aqui discutir a memória do idoso, enquanto fonte rica de dados para o patrimônio social, pelo viés da saúde mental.

A Organização Mundial de Saúde entende a saúde como “um estado de bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou dor”. Nesta definição, a “saúde mental” é entendida como um aspecto vinculado ao bem-estar, à qualidade de vida, à capacidade de exercer plenamente sua condição de pessoa e de se relacionar com os outros. Ao defini-la nesta perspectiva positiva, a OMS propõe a saúde mental para além da dicotomia saúde x doença expressa apenas a partir de sintomas. A definição revela o caráter biopsicossocial da pessoa para pensar a sua saúde como um bem estar integrado.

Acredita-se que a rememoração seja um ato constante na vida do idoso que, em momentos de ócio, transcorre longos períodos de imersão no passado. Antes de ser um ato nostálgico por natureza, propõe-se a escuta das histórias de idosos, carentes de vínculos familiares e sociais, como um ato terapêutico em si, além de uma contribuição para a memória social a qual acrescentam com sua visão de mundo.

Para Candau (2011; pp.118), “Transmitir uma memória e fazer viver, assim, uma identidade não consiste, portanto, em apenas legar algo, e sim uma maneira de estar no mundo.” Ou seja, tanto a transmissão de saberes, quanto a experiência registrada na memória a partir de memórias cumulativas são constitutivos da identidade da pessoa e sem tais memórias ou sem o ato de compartilhamento não haveria identidade. Segundo Candau (2011, pp. 59) “A perda de memória é, portanto, uma perda de identidade”.

As pesquisas sobre memória de idosos, no campo da memória, identidade e patrimônio, tem, a grosso modo, apresentado dois perfis de idosos:

a) Um idoso desiludido, deprimido, esquecido, sem função social, esperando a morte, muito presente nos textos de Eclea Bosi (2009).b) Um idoso ativo, que frequenta Grupos de Terceira Idade, trabalha, é arrimo de família com os ganhos da aposentadoria, assume a função de cuidar dos netos, guardião da tradição. Para este idoso temos como exemplo os Nonos de João Carlos Tedesco (2001).

Pode-se, então, ao analisar os trabalhos com memória de idosos encontrar duas grandes categorias de memória:

a) Uma Memória encerrada- A memória do já vivido visto como uma marca de finitude associada a idéia de que não há mais o que viver, encerramento dos ciclos e encerramento da função de compartilhamento social. O idoso se recolhe da participação social.

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b) Uma Memória aberta- da qual emerge a necessidade de transmitir e garantir a continuidade do já vivido, experenciado. Rememoração como o estabelecimento de uma intenção para o futuro (vínculo com o futuro) para alargar as margens do presente.

Foi possível encontrar, na bibliografia da área, diversos trabalhos que investigam a memória de idosos pelo viés de uma proposta que promova saúde mental, indicando as possibilidades do que seria uma “Memória Aberta”, como explicitado acima. Ao contrário de encerrar a discussão numa leitura do social que vitimizaria o idoso na sociedade contemporânea, busca-se, situar o idoso como potencial transmissor de memórias que compõem e enaltecem a identidade de seu grupo social. Para que tal função seja efetiva é necessária a compreensão do idoso como ser cultural, em posição privilegiada no compartilhamento de memórias, numa função que parece inerente à fase de vida na qual se situa.

Para Tedesco (2001) a reconstituição da memória é fundamental pelo fato de que a sociedade da informação, da técnica e da racionalidade econômico-consumista faz o tempo passar mais rápido e, com isso, os significados dos objetos são esquecidos mais rapidamente. A memória do idoso, tão pouco valorizada, em nossa sociedade tem, portanto, função imprescindível na compreensão de quem somos e de como fomos forjados e de nossas materialidades e subjetividades.

Tedesco (idem) afirma, ainda, que a socialização ocorrida cotidianamente, a partir da comunicação, e a narração como forma artesanal de comunicação, atualizam a memória e possibilitam uma representação da vida das pessoas, ou seja, geram novas imagens a partir do presente.

Da mesma forma Le Goff (2010), citando Pierre Janet, enfatiza o comportamento narrativo como ato mnemônico fundamental caracterizado, sobretudo pela sua função social, pois:

(...) se trata de comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo. Aqui intervém a linguagem, ela própria produto da sociedade (pg. 421).

Pode-se sentar para ouvir uma infinidade de histórias, se houver tempo no presente veloz em que se vive e, gerar saúde mental individual e social. Da mesma forma que as políticas públicas voltadas para a saúde se ocupam desta, na qualidade de direito universal amplo, possam ser recriados e exercidos verdadeiramente, os instrumentos de proteção que compreendem a cultura de um grupo, também como reflexo de saúde social.

Uma breve revisão bibliográfica sobre pesquisas que investigaram memória em idosos, tanto institucionalizados enquanto residentes como os que participam de atividades

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em ONGs, pode evidenciar o grande potencial que a rememoração de lembranças, a ativação de memórias podem ter para a saúde mental dos idosos.

Cabral, Amaral e Brandão (2009) desenvolveram um trabalho de Oficina de Memórias Autobiográficas com idosos. Entre 2003 e 2004 o trabaho foi realizado no Município de São Paulo, sendo implementado também, posteriormente, nos Municípios de Embu das Artes e Barueri.

O objetivo do trabalho, segundo as autoras, foi o de “ressaltar a importância da memória autobiográfica como vetor de integração dos atores da cidade com suas raízes e a preservação do patrimônio humano”. Além disso, as oficinas possibilitavam a reflexão sobre a trajetória de vida e o resgate da memória social das cidades pelo olhar de cada indivíduo. Como resultados das oficinas as pesquisadoras enfatizaram o resgate da dignidade e autoestima dos narradores, promovendo uma melhoria da sua qualidade de vida e a sensação de inclusão nas cidades. Nesse sentido, puderam constatar um processo de re-encontro e reapropriação da cidade por parte deste grupo de habitantes.

De maneira similar ao trabalho exposto acima, Sanches-Justo e Vasconcelos (2010) também desenvolveram oficinas de fotografia com idosos. O objetivo geral da pesquisa, segundo os autores, era “investigar os sentidos produzidos pelo ato fotográfico na relação do idoso com o tempo e com a memória, dando maior ênfase às possibilidades da fotografia enquanto prospecção do futuro”.

Nessas oficinas, que além de busca de memória tinham um caráter prospectivo, eram discutidas temáticas que levantassem questões sobre a história de vida, a memória, os desejos, sonhos e o planejamento do futuro. Para os autores, as pesquisas com memória de idosos, além de valorizarem o idoso como detentor de experiência e conhecimento devem, também, proporcionar ao idoso “impulsionar à percepção de si e da própria história como um percurso que não se finda aqui e agora, mas que continua no futuro”.

Filizola e Von Simson (2011) desenvolveram em uma entidade que atende pessoas de Terceira Idade, em Campinas, oficinas de fotografias com idosas com o objetivo de propiciar atividades diferentes daquelas cotidianamente desenvolvidas pelas mulheres, em suas vidas de donas de casa. A fotografia foi percebida como uma mistura de registro documental e de arte, o que para as idosas participantes era praticamente desconhecido, dado sua origem social e seu grupo etário. Ao final das oficinas foi realizada uma exposição das imagens que contribuiu para a recuperação de trajetórias pessoais. Para as autoras foi possível reconstruir “situações e vivências, que não haviam sido relatadas pela história oficial, delineando histórias diversas na cidade e na própria Vila Castelo Branco, como também, legitimando a função social dos velhos, entendida como o ato de rememorar”.

As relações entre gênero, velhice e fotografia foram discutidas por Da Costa e Choma (2012) a partir da de entrevistas de história oral com utilização de fotografias como

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recurso ativador da memória. Os autores consideram relevante, a partir do espaço social da velhice na contemporaneidade, “que mulheres e homens, ao narrarem suas histórias de vida, trazem à voz expressões do imaginário, do processo histórico vivenciado, de suas relações individuais com a memória coletiva, apropriações e identificações”. Como resultados os autores consideraram a atividade “um espaço aberto para diversificar memórias[...] Mais do que fechar questões, pensamos abrir para a reflexão sobre significados da rememoração para a pessoa idosa”.

Os trabalhos acima citados foram realizados com idosos que frequentavam grupos de Terceira Idade em Organizações não Governamentais. Já Reis e Amaral (2012) realizaram oficinas com idosos institucionalizados em residências de longa permanência utilizando-se da memória auto-biográfica para o resgate da história afetiva positiva. As Oficinas funcionaram tendo como eixo textos previamente selecionados pelas mediadoras, por meio dos quais se procurou estimular a evocação de lembranças significativas. Os idosos participantes foram convidados a escreverem suas memórias em um caderno de memórias, nos quais foram trabalhados a atenção, a expressão oral e a escrita. Neste processo, as autoras salientam que memória, inteligência e raciocínio estão interligados estimulando os canais de comunicação e as vias neurais.

Como resultado, ao final das oficinas, cada residente e a Instituição ficaram com os cadernos de memórias onde estão contempladas suas lembranças e as de seus colegas. Os cadernos são um registro que pode ser compartilhado com as famílias de cada participante, e suas histórias permanecem como um legado para seus descendentes. Além disso, foi observado, pela área da saúde, uma diminuição de casos de depressão entre os participantes e o estreitamento de laços afetivos.

O que os trabalhos aqui apresentados apresentam em comum é o papel de protagonismo do idoso em todas as pesquisas. Além dos objetivos de pesquisa serem alcançados, tais como a discussão do gênero como em Da Costa e Choma; a compreensão da urbanização de novos espaços, como em Cabral, Amaral e Brandão, entre outros, os trabalhos demonstram que há uma participação ativa, os idosos assumem o papel de protagonistas, valorizando identidades. Para Tedesco (2004; p.21) pesquisar memórias de idosos possibilita “torná-los agentes e sujeitos de vividos, permitindo que pudessem se presentificar pelo passado por intenções transtemporais”.

A Lei No 10.741, de 1º de Outubro de 2003, que estabelece o estatuto do idoso, destaca que os idosos participarão das comemorações de caráter cívico ou cultural, para transmissão de conhecimentos e vivências às demais gerações, no sentido da preservação da memória e da identidade culturais e, para tanto, salienta, o poder público deve viabilizar e formas alternativas de participação, ocupação e convívio do idoso com as demais gerações. As pesquisas que investigam a memória de idosos pelo viés da saúde mental,

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como as citadas neste trabalho, podem muito bem dar conta desta demanda legal.Para Bosi (2009) a função do idoso poderia ser comparada a de guardião do

tesouro espiritual da comunidade, porta voz da tradição, pois através da memória dos velhos pode-se ter contato com uma riqueza e uma diversidade que não se conhece. Esse contato possibilita, nas palavras da autora, a humanização do presente. Por outro lado, a impossibilidade desse contato provoca uma sensação de perda e morte, de empobrecimento para todos, pois o velho deixa de contribuir, para a comunidade, com o que é inerente à sua faixa etária: os dados das experiências, memórias, conhecimentos, vivências, dores e acertos, enfim, toda uma vida a ser contada e compartilhada.

Nesse sentido, é pertinente salientar o que Tedesco (2004; p.36) relata sobre as pesquisas com idosos:

Sentir e contar histórias em comum significa dar possibilidade de criação e fortalecimento comunitário. Os idosos por nós entrevistados determinam um tempo de pertencimento, que não é o de “hoje”, tempo esse de criação e participação ativa no seio comunitário, de identificação de um sentimento de um agir regido pela profunda autodeterminação de si.

A imagem “socialmente aceita” é a padronizada como reflexo de uma geração jovem, produtiva e muito especializada na cura do corpo evitando os sinais do tempo. A imagem do velho, conforme dito antes, assume de imediato pejorativos relacionados a um desvio do socialmente produtivo. A iminência da morte à finitude que assusta e tende a ser afastada dos olhos de todos.

Ao negar a velhice, a sociedade contemporânea acaba por negar, muitas memórias, identidades, conhecimentos, entre outros elementos, que forjaram o que somos hoje. A memória dos velhos explicita Bosi (2009), pode ser trabalhada como um mediador entre a nossa geração e as testemunhas do passado. A autora ressalta, ainda, que esta memória é um intermediário informal da cultura, diferenciando dos mediadores formalizados constituídos pelas instituições, que seriam as Escolas, Igreja, Partidos Políticos, entre outros. Conforme Bosi (2004), ao abordar o ato narrativo entre pessoas idosas: “O sujeito se sente crescer junto com a expressão desta intuição. Psiquicamente e até somaticamente se sente rejuvenescido” A autora contrapõe a experiência narrativa que revigora o conteúdo de suas vivências à letargia do presente, própria ao esquecimento. Com relação a isso, importa o registro identitário manifesto nas inscrições do tempo e na cristalização de memórias compartilhadas, ou não. Bosi (idem) reinterpreta o cone da memória proposto por Bergson (1896) sobre o ponto de vista da experiência no tempo mediada pelo corpo, e da memória enquanto conservação que o espírito faz de si mesmo. Ou seja, preservar viva a memória corresponde à preservação da própria identidade. Candau (2011, pg. 61) cita

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Santo Agostinho para falar do nascimento da consciência de si próprio no indivíduo que toma consciência de suas memórias estendendo a experiência para além das sensações: “é aí que me encontro comigo mesmo” Candau (idem), afirma ainda, que é na duração ou na repetição que surge uma consciência de si. Ao pensar o ato de rememoração promovido pela narrativa considera-se a percepção de Bergson (op. cit), acerca de memória, tempo e imaginação:

Imaginar não é lembrar-se. Uma lembrança, à medida que se atualiza provavelmente tende a viver numa imagem, (...) e a imagem pura e simples só me levará de volta ao passado se eu realmente tiver ido buscá-lo no passado, seguindo assim o progresso continuo que a trouxe da obscuridade para a luz. (Grifo do autor) (BERGSON, 1896, apud RICOUER, 2010, pg. 68).

Portanto, o trabalho aqui apresentado é fruto de um gesto a favor da rememoração. Pretende-se, a partir de evocativos da memória, estabelecer um contato permeado pela narrativa e pela reflexão do participante da pesquisa em um processo de re/vigor/ação da identidade e do lugar do idoso em sociedade. Acredita-se que é na evocação de um tempo pretérito prazeroso, eleito, que se suspende simbolicamente o tempo presente numa tentativa de preservação de si próprio. Assim, o tempo vivido é o tempo passado das lembranças, tempo de uma época boa que se mantém viva no ato de relembrar.

As memórias de idosos podem ser comparadas a pequenas caixas de estampa antiga, com publicidades de época, enfeitadas com fitas em petit pois, cheiro de papel amarelado e armazenadas com cuidado, em lugares de afeto nada empoeirados. Pois, revisitadas no presente como muita intensidade estes relicários de tempos idos são não apenas uma forma de resistência ao presente, simbolicamente nulo, mas também uma esperança de futuro que burla a ideia de morte anunciada pelo envelhecimento Uma morte que se dá em vida quando do aniquilamento da identidade do sujeito envelhecido por uma sociedade altamente mecanicista, quantitativa e materialista que configura a cultura contemporânea do descartável.

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Referências

BERGSON, H. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1896.

BÓSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 13.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.

----------------- O tempo vivo da memória: Ensaios de Psicologia social. São Paulo: Ateliê editorial, 2004.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 10.741, de 1º de Outubro de 2003. Estatuto do idoso. Brasília, 2003. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm. Acessado em 01/07/2012.

CABRAL, P.; AMARAL, R. e BRANDÃO, V. Oficinas de memória autobiográfica. Conversando com idosos: o registro das memórias vivas. São Paulo: Revista Kairós. 12(1), jan, p. 257-274. 2009.

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