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FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO MESTRADO PROFISSIONAL EM EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM SAÚDE Luciana Moreira Francisco Ramos PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE: uma análise a partir da escola pública da cidade de São João de Meriti Rio de Janeiro 2017

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  • FUNDAO OSWALDO CRUZ

    ESCOLA POLITCNICA DE SADE JOAQUIM VENNCIO

    MESTRADO PROFISSIONAL EM EDUCAO PROFISSIONAL EM SADE

    Luciana Moreira Francisco Ramos

    PRECARIZAO DO TRABALHO DOCENTE:

    uma anlise a partir da escola pblica da cidade de So Joo de Meriti

    Rio de Janeiro

    2017

  • Luciana Moreira Francisco Ramos

    PRECARIZAO DO TRABALHO DOCENTE:

    uma anlise a partir da escola pblica da cidade de So Joo de Meriti

    Dissertao apresentada Escola

    Politcnica de Sade Joaquim Venncio

    como requisito parcial para obteno do

    ttulo de mestre em Educao

    Profissional em Sade.

    Orientadora: Prof. Dr. Ana Margarida

    de Mello Barreto Campello

    Rio de Janeiro

    2017

  • Catalogao na fonte

    Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio

    Biblioteca Emlia Bustamante

    R175p Ramos, Luciana Moreira Francisco

    Precarizao do trabalho docente: uma anlise

    a partir da escola pblica da cidade de So Joo

    de Meriti / Luciana Moreira Francisco Ramos.

    Rio de Janeiro, 2017.

    123 f.

    Orientadora: Ana Margarida de Mello Barreto

    Campello

    Dissertao (Mestrado Profissional em Educao

    Profissional em Sade) Escola Politcnica de

    Sade Joaquim Venncio, Fundao Oswaldo Cruz,

    2017.

    1. Educao. 2. Polticas Pblicas.

    3. Precarizao. 4. Estado. 5. Trabalho Docente.

    I. Campello, Ana Margarida de Mello Barreto.

    II. Ttulo.

    CDD 379

  • Luciana Moreira Francisco Ramos

    PRECARIZAO DO TRABALHO DOCENTE:

    uma anlise a partir da escola pblica da cidade de So Joo de Meriti

    Dissertao apresentada Escola

    Politcnica de Sade Joaquim Venncio

    como requisito parcial para obteno do

    ttulo de mestre em Educao

    Profissional em Sade.

    Aprovada em 25/04/2017

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. Ana Margarida de Mello Barreto Campello (FIOCRUZ / EPSJV)

    Prof. Dr. Mrcia de Oliveira Teixeira (FIOCRUZ / EPSJV)

    Prof. Dr. Maria Ins do Rego Monteiro Bomfim (UFF)

  • Dedico esta, bem como todas as minhas

    demais conquistas, minha me Maria

    Jorginete, minha av Hortencia,

    minha irm Luana e ao meu marido

    Emmanuel.

    Porque famlia tudo.

  • RESUMO

    O estudo aborda o processo de precarizao do trabalho docente na educao pblica da

    cidade de So Joo de Meriti, no perodo de 2009 a 2016, sob o enfoque da aplicao de

    polticas pblicas relacionadas ao contexto do neoliberalismo. O objetivo foi

    desenvolvido a partir da anlise dos documentos produzidos pela Secretaria Municipal

    de Educao e dos boletins produzidos pelo Sindicato dos Profissionais de Educao,

    ambos da cidade meritiense, em dilogo com os fundamentos tericos, por meio da

    reviso bibliogrfica pertinente. Discute sobre o que ser docente atualmente da escola

    pblica, resultado de sucessivas negligncias e desigualdades. Compreende o papel do

    Estado enquanto instncia que formaliza os mecanismos que precarizam o trabalho do

    professor, atravs da elaborao e aplicao das polticas pblicas em educao. Analisa

    o conceito de precarizao para definir e caracterizar o trabalho docente da escola

    pblica de S. J. Meriti.

    Palavras-chaves: Educao. Polticas Pblicas. Precarizao. Estado. Trabalho Docente.

  • ABSTRACT

    The study discusses the process of precarious work teaching in public education in the

    city of So Joo de Meriti, in the period from 2009 to 2016, under the focus of

    implementation of public policies related to the context of neoliberalism. The goal was

    developed from the analysis of the documents produced by the Municipal Department

    of education and the bulletins produced by the Union of Professionals of education,

    both from the town meritiense, in dialogue with the theoretical foundations, through the

    relevant literature review. Discusses what it's like to be a faculty member currently from

    public school, the result of successive negligence and inequalities. Understand the role

    of the State as instance that formalises the mechanisms that the work of teacher

    precarizam, through the elaboration and implementation of public policies in education.

    Examines the concept of precariousness to define and characterize the work at the

    public school of S. J. Meriti.

    Keywords: Education. Public Policies. Precariousness. State. Teaching Work.

  • SUMRIO

    INTRODUO ....................................................................................................................................7

    CAPTULO 1: A EDUCAO PBLICA BRASILEIRA ..............................................................12

    1.1 Escola pblica: aproximaes com o espao do trabalho docente ...................................................13

    1.2 A educao brasileira est em crise?.............................................................................................16

    1.3 Ser professor da escola pblica: limitaes e desafios .....................................................................25

    CAPTULO 2: NEOLIBERALISMO E A REFORMA DA EDUCAO

    BRASILEIRA NOS ANOS 1990 .........................................................................................................32

    2.1 O papel do Estado na definio das polticas educacionais..............................................................33

    2.2 A configurao do neoliberalismo na reforma educacional brasileira de 1990 ...............................43

    2.2.1 A construo intelectual do neoliberalismo ..................................................................................43

    2.2.2 As bases da reforma educacional brasileira dos anos 1990 ...........................................................46

    2.2.3 A reforma educacional brasileira dos anos 1990 ...........................................................................56

    CAPTULO 3: PRECARIZAO DO TRABALHO DOCENTE NA ESCOLA

    PBLICA ..............................................................................................................................................65

    3.1 As definies do trabalho docente ................................................................................................66

    3.2 Um olhar sobre o termo precarizao ...............................................................................................69

    CAPTULO 4: A ESCOLA PBLICA EM SO JOO DE MERITI E A

    PRECARIZAO DO TRABALHO DOCENTE ............................................................................79

    4.1 Caracterizao da cidade de So Joo de Meriti ..............................................................................79

    4.2 Administrao municipal ..................................................................................................................79

    4.3 Educao ...........................................................................................................................................80

    4.4 A precarizao do trabalho docente meritiense ................................................................................86

    4.4.1 Polticas pblicas: a (des)valorizao docente ..............................................................................87

    4.4.2 A precarizao do trabalho docente meritiense: indicativos, consequncias e

    resistncias ..............................................................................................................................................90

    CONSIDERAES FINAIS ...............................................................................................................105

    REFERNCIAS ...................................................................................................................................107

    ANEXO I A: QUADRO DEMONSTRATIVO DE OCUPAES E VAGAS ............................114

    ANEXO I B: QUADRO DEMONSTRATIVO DE OCUPAES e/ou VAGAS

    EXTINTAS ............................................................................................................................................114

    ANEXO II: TABELA DE VENCIMENTOS .....................................................................................115

    ANEXO III: CLASSIFICAO DAS CLASSES DO QUADRO PERMANENTE......................123

  • 7

    INTRODUO

    Uma ampla literatura tem nos mostrado que a sociedade contempornea,

    particularmente nas ltimas duas dcadas, presenciou fortes transformaes em termos

    de regime produtivo e organizao poltica. O sistema neoliberal e a reestruturao

    produtiva da era da acumulao flexvel trouxeram, dentre outras consequncias, a

    precarizao crescente do trabalho do homem.

    De acordo com Paulani (2006), a doutrina conhecida como neoliberalismo,

    elaborada pelo economista austraco Friedrich Hayek (1899-1992) em 1947 e colocada

    em prtica a partir dos anos 1970 pela primeira-ministra do Reino Unido, Margareth

    Thatcher (1925-2013), defende um conjunto de ideias polticas e econmicas

    capitalistas de no participao do Estado na economia, possibilitando total liberdade ao

    mercado como modo de garantir o crescimento econmico e o desenvolvimento social

    de um pas. Na prtica, as medidas compreendem privatizao de empresas estatais;

    abertura da economia para a entrada de multinacionais; pouca interveno do governo

    no mercado de trabalho; reduo de salrios e direitos dos trabalhadores etc.

    Na anlise de Kuenzer (2007), a mudana da diviso social e tcnica do trabalho

    de base taylorista/fordista para o toyotismo imps novas relaes entre a economia e o

    Estado, trazendo profundos impactos sobre os trabalhadores e suas formas de

    organizao.

    Entendida a acumulao flexvel como o regime que, confrontando-se

    com a rigidez do fordismo, se apia na flexibilidade dos processos de

    trabalho, dos mercados, dos produtos e dos padres de consumo,

    tendo em vista assegurar a acumulao, tornam-se necessrias novas

    formas de disciplinamento da fora de trabalho, sobre a qual recaem

    os resultados do acelerado processo de destruio e reconstruo de

    habilidades, os nveis crescentes de desemprego estrutural, a reduo

    dos salrios e a desmobilizao sindical (Harvey, apud Kuenzer, 2007,

    1159).

    Em termos concretos, o avano do neoliberalismo no mbito da educao

    significou a instaurao de um processo que promove, de modo contnuo, a precarizao

    do sistema educativo e do trabalho de seus profissionais. Como processo gerido pelo

    Estado, e com forte influncia dos pases centrais, o sistema educacional tem sido

    assolado pela formulao de legislaes e programas de reforma, com fortes

    repercusses sobre o trabalho docente. Nesse contexto, inmeros mecanismos

  • 8

    promovem uma crescente desvalorizao da profisso docente, atravs de perdas

    gradativas nas condies de trabalho, nas condies financeiras, no respeito social e na

    autonomia, autoridade e controle do professor sobre seu processo de trabalho.

    O presente estudo tem por propsito aprofundar os conhecimentos sobre o

    processo de precarizao do trabalho docente ora em curso. Como delimitao do objeto

    de estudo, pretendemos considerar a dinmica do trabalho dos professores que atuam no

    Ensino Fundamental do Sistema de Ensino Pblico da cidade de So Joo de Meriti,

    localizada na Baixada Fluminense. Analisaremos como as aes da mquina

    administrativa pblica desta cidade tecem a precarizao do trabalho docente com a

    aparncia de naturalidade.

    Tendo em vista o objetivo geral de discutir o processo de precarizao do

    trabalho docente em escolas pblicas de Ensino Fundamental da cidade de So Joo de

    Meriti, definimos como objetivos especficos:

    Analisar as concepes, estratgias e finalidades educacionais elaboradas pela

    prefeitura de So Joo de Meriti;

    Identificar as concepes de trabalho docente assumidas pela prefeitura de So

    Joo de Meriti.

    A inquietao para reflexo sobre essa temtica se deu no contexto da minha

    histria de vida. Venho observando o cotidiano de diferentes escolas h pelo menos 5

    anos, desde que passei a exercer o cargo de agente administrativo nas secretarias de

    algumas escolas da cidade estudada. A observao do cotidiano escolar, o contato com

    colegas da educao, principalmente professores, que compartilham as dificuldades e os

    descontentamentos presentes no exerccio dirio de sua profisso, aliada a minha

    formao em Pedagogia ajudaram-me a ter um olhar histrico-social sobre os processos

    de educao.

    Escolhi para minha vida profissional a rea da Educao, iniciando a graduao

    em 2010 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e exercendo esse cargo

    pela dita prefeitura a partir de 2012. E assim comecei a amadurecer (ainda de que

    maneira inconsciente) o tema desse estudo, pois relacionava as ideias dos autores

    estudados durante meu processo de formao com o que de fato presenciava no meu

    trabalho, seja nas questes relacionadas com currculo, polticas pblicas, didtica etc.

  • 9

    De modo especfico, as determinaes impostas pela Secretaria Municipal de

    Educao de S. J. Meriti aos trabalhadores dessa rea, atravs de documentos oficiais,

    acabaram por despertar o meu desejo de estudar autores que ajudem a compreender

    melhor os processos que corroem tanto a educao como a configurao do trabalho do

    professor dessa cidade.

    Os documentos oficiais trazem determinaes para o trabalho dos docentes e

    demais profissionais como se fossem resultados de um processo democrtico, como se

    todos tivessem sido ouvidos de igual modo em sua elaborao. Entretanto, as aes por

    parte da administrao da cidade atendem a um sistema maior, o capitalista. E, por isso

    mesmo, o momento atual da educao e, consequentemente, do trabalho do professor na

    cidade muito nos revela sobre a hegemonia que mantida aparentando que tudo est

    dominado, submisso e que o trabalhador acredite que no h outra opo seno a

    situao de descaso existente.

    Questes como avaliao; mrito; metas; sobrecarga com turmas complexas;

    burocratizao do trabalho docente, que acaba por incorporar o trabalho domiciliar;

    competitividade; enfraquecimento do sindicato; surgimento de novas categorias de

    trabalhadores, sobretudo, os temporrios; pouco apoio qualificao; falta de incentivo

    pesquisa; baixos salrios; falta de materiais; descumprimento de prazos para

    pagamentos de salrios e outras remuneraes so aes da mquina administrativa

    pblica que vo sendo tecidas com a aparncia de naturalidade, mas que caracterizam a

    precarizao do trabalho docente, culminando com a educao sendo atendida com

    pouca qualidade.

    Em funo dessas caractersticas, surgem entre o corpo docente dessa cidade

    adoecimento; constantes conflitos nas relaes com alunos, pares e gestores;

    desorganizao dos trabalhadores enquanto classe; desistncia de lecionar; perda de

    controle sobre a estrutura do prprio trabalho; cansao etc. Nas reunies entre os

    representantes dos profissionais da educao (professor, merendeira, inspetor,

    funcionrio de secretaria etc) e da Secretaria Municipal de Educao para discutir os

    problemas, as consequncias da precarizao do trabalho ganham peso maior do que as

    causas determinantes, ou seja, discutem-se os problemas, que j esto colocados na

    realidade, mas no se problematiza porque eles existem na atual conjuntura. Esse estudo

    pretende entender o porqu das alteraes na configurao do trabalho do professor, de

    que maneira elas modificam as relaes de trabalho em educao e de que forma elas

    chegam ao mbito escolar.

  • 10

    Para tanto, temos como metodologia de estudo a anlise do contedo dos

    documentos produzidos pela Secretaria Municipal de Educao de So Joo de Meriti.

    Analisamos os documentos vigentes nos dois mandatos do prefeito Sandro Matos, cujo

    perodo compreende de 2009 a 2016. Temos como referncia para o desenvolvimento

    dessa metodologia, o dossi produzido pela autora Eneida Oto Shiroma (2004) sobre

    como analisar os conceitos de documentos da poltica educacional. De acordo com

    Shiroma, Garcia e Campos (2004), a anlise de documentos oficiais um caminho de

    conhecimento dos interesses e valores que permeiam as aes das instituies, assim

    como estas explicam a realidade e legitimam suas atividades.

    A legislao educacional em S. J. Meriti compreende, assim como em outras

    cidades do nosso pas, alguns documentos colocados como essenciais pelo campo da

    hegemonia discursiva (Jameson, apud Shiroma, Garcia e Campos, 2004), de modo a

    se alcanar uma educao nacional de qualidade e igualitria. Alm desses principais

    documentos, analisamos os boletins produzidos pelo Sindicato dos Profissionais de

    Educao de So Joo de Meriti (Sepe Meriti) como contraponto aos documentos

    oficiais. Contudo, a anlise documental ser apresentada em dilogo com os

    fundamentos tericos, por meio da reviso bibliogrfica pertinente.

    A escolha de pesquisar no mbito dos discursos dos documentos se deu por

    entendermos esse campo como vasto e rico de contribuies para nossa discusso em

    questo. Pois, como nos afirmam Shiroma, Garcia e Campos (2004), podemos abordar a

    legislao como um processo contnuo, cujo locus de poder est constantemente

    mudando. Refletir sobre o discurso elaborado pelos governantes se constitui num

    caminho para chegarmos compreenso da nossa estrutura social, de tudo aquilo que

    nos constitui, afeta e destri enquanto pessoas e trabalhadores.

    O estudo se encontra estruturado em quatro captulos. O primeiro, intitulado de

    A Educao Pblica Brasileira, busca discutir o que ser docente atualmente da escola

    pblica. Partimos da atual situao vivenciada pela educao pblica, resultado de

    sucessivas negligncias e desigualdades enraizadas na sua histria. Educao que se faz

    no cho da escola, espao de realizao do trabalho docente. Para isso, o captulo se

    divide em tpicos, com o primeiro discutindo a natureza pblica da escola, de que forma

    se constitui e a quais interesses tal natureza serve de fato. O segundo tpico aborda a

    dificuldade atual da escola pblica para garantir a todos uma educao de qualidade. E o

    terceiro tpico trata dos enfrentamentos que o professor pblico encontra mediante o

    desafio de educar tendo em vista suas precrias condies de trabalho.

  • 11

    O segundo captulo, Neoliberalismo e a reforma da educao brasileira nos

    anos 1990, inicia a discusso sobre como se d o processo de precarizao existente no

    trabalho docente, processo esse formalizado a partir de mecanismos elaborados pelas

    polticas educacionais. Para compreender essa relao, o captulo ser dividido em dois

    tpicos. O primeiro iniciar a discusso do papel do Estado enquanto instncia que

    elabora e aplica as polticas pblicas em educao. O segundo tpico do captulo

    destaca os aspectos relevantes da reforma educacional promulgada pelo MEC nos anos

    1990. Reforma que ajusta os sistemas educativos lgica destrutiva produtivista do

    neoliberalismo, a partir de tcnicas de racionalidade empresarial e econmica.

    O terceiro captulo, Precarizao do trabalho docente na escola pblica, busca

    apreender o processo de precarizao do trabalho docente realizado na instituio

    escolar pblica. Para tanto, o captulo composto por dois tpicos. O primeiro pretende

    entender e caracterizar o trabalho docente na atualidade, a partir da discusso de

    determinados conceitos e/ou categorias. J o segundo tpico analisa o uso desse

    conceito e/ou categoria precarizao para refletir o trabalho docente no setor

    pblico.

    O quarto e ltimo captulo, A escola pblica em So Joo de Meriti e a

    precarizao do trabalho docente, trar materialidade para essa questo terica, ou seja,

    buscamos compreender a definio e caracterizao da precarizao do trabalho dos

    professores que atuam em escolas pblicas de Ensino Fundamental da cidade de So

    Joo de Meriti.

  • 12

    CAPTULO 1: A EDUCAO PBLICA BRASILEIRA

    A educao torna-se um direito humano fundamental ao ser assegurada pela

    Declarao Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assemblia Geral da

    Organizao das Naes Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948. A partir desse

    momento, ao longo da histria, seguem-se inmeros documentos, movimentos e

    campanhas de afirmao e legitimao da educao enquanto direito da pessoa humana.

    Entretanto, desde a sua proclamao at os dias atuais, esse direito tem sido

    negado a muitas populaes de baixa renda dos pases com desigualdades sociais

    gritantes, como no Brasil. Mesmo depois da nossa Constituio Federal de 1988

    garantir os direitos sociais bsicos a todo brasileiro, sem qualquer distino, o

    cumprimento da legislao, em ofertar uma educao de qualidade visando o pleno

    desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exerccio da cidadania, ainda no se

    tornou uma plena realidade.

    H uma grande lacuna entre o legal e o existente na realidade da educao

    pblica brasileira. Inmeros foram os programas e promessas governamentais voltados

    para a educao. Porm, a maioria das promessas e dos programas esfacelou-se ao

    longo do caminho, levando consigo nossas escolas e seus atores, que sofrem

    frequentemente questionamentos sobre sua autoridade e preparao. Iosif (2007), ao

    discutir sobre a qualidade da educao na escola pbica brasileira, afirma que tivemos a

    escola pblica dos ricos, a escola pblica da classe mdia e hoje, a escola pblica pobre

    para os pobres.

    O presente captulo busca discutir sobre o que ser docente atualmente da escola

    pblica. Pretendemos partir da situao vivenciada pela educao pblica, por conta de

    sucessivas negligncias e desigualdades enraizadas na sua histria. Educao que se faz

    no cho da escola, lugar de ao, represso, contradio, limitao e resistncia do

    trabalho docente. Para isso, a primeira parte do captulo discute a natureza pblica da

    escola, de que forma se constitui e a quais interesses tal natureza serve de fato. A

    segunda parte aborda a dificuldade atual da escola pblica para garantir a todos uma

    educao de qualidade. E a terceira e ltima parte trata dos enfrentamentos que o

    professor pblico encontra mediante o desafio de educar tendo em vista suas precrias

    condies de trabalho.

  • 13

    1.1 ESCOLA PBLICA: APROXIMAES COM O ESPAO DO TRABALHO

    DOCENTE

    De modo geral, a escola pblica entendida como aquela gratuita, sendo

    oferecida e mantida administrativa e financeiramente pelo poder pblico. O

    ordenamento jurdico da democracia brasileira composto pela Constituio, pelas leis,

    pelos regulamentos, pelos tratados, pelas convenes, entre outras regulaes

    apresenta uma identificao do pblico com o estatal1, partindo do pressuposto de que o

    interesse pblico compreendido pelo interesse do Estado. Porm, no h unanimidade

    quanto a esse significado (Paoliello, 2010).

    Em oposio s formas tirnicas de poder, o Republicanismo se define com

    todos os cidados dividindo igualmente a constituio da sociedade. Paoliello (2010)

    destaca Innerarity (2006) em seus estudos para ressaltar que o espao pblico, onde se

    articula o comum e circulam as diferenas, no se constitui uma realidade dada; mas

    trata-se de uma construo trabalhosa, frgil e varivel que exige um permanente

    trabalho de representao e argumentao (p.1). Nesse sentido, a autora destaca trs

    possveis afirmaes: a) a diviso entre pblico e privado no ocorre de maneira

    espontnea, b) tempos e espaos distintos produziram conceitos distintos de pblico, e

    c) o pblico no permanente, nem um s, mas nico no sentido de que no h dois

    iguais (Paoliello, 2010, p.1).

    A participao fundamental para a formao de um pblico, no sentido de

    ultrapassar a ideia de simplesmente estar integrado(a). Implica tomar sua parte, no

    reconhecimento de que cada um possa ser ouvido, do mesmo modo que possa ouvir o

    outro. O pblico pode se manifestar de fato se o espao possibilitar as dimenses para

    tanto. E, nesse sentido, a escola estatal pode se constituir como pblica desde que

    apresente condies para tal. Entretanto, as reformas de cunho liberal neoconservador,

    produzidas pelo Estado ao longo de sua histria, buscam aprisionar a ao poltica numa

    estrutura de poder centralizado e concentrado, onde no haveria espao para a livre

    circulao de ideias e confronto das divergncias.

    Para Fernandes (1975), o carter dependente do capitalismo brasileiro a base

    _______________________________________________

    1 Vale ressaltar que ao lado do conceito de pblico estatal passa a coexistir, nos anos 1990, no Brasil, o

    conceito pblico no estatal. O primeiro se relaciona com servios e atividades, para grandes

    contingentes populacionais, sendo executados pelo setor estatal. O segundo conceito se relaciona com

    essa execuo feita pelo setor privado. Agora, abre-se a possibilidade do pblico administrado

    privadamente. O advento da privatizao da gesto introduziu na educao a possibilidade de que uma

  • 14

    escola continue sendo pblica e tenha sua gesto privada (pblico no estatal) (Pedroso, apud Freitas,

    2012, p.386).

    da excluso da maioria da populao. A burguesia monopolista, que articulava no Brasil

    os interesses internos e imperialistas, precisava solucionar seus problemas de

    hegemonia, porm, teria que resolv-lo mediante as condies estruturais de um

    capitalismo dependente e subordinado. A forma que a burguesia encontra para

    consolidar a ordem burguesa, solucionando seu problema de hegemonia, segundo o

    autor, instaurando uma democracia de cooptao.

    Para o autor, trata-se de entrelaar os mecanismos de uma democracia de

    cooptao com a organizao e o funcionamento do Estado autocrtico (Fernandes,

    1975, p.363). Ou seja, buscando a adeso parcial dos trabalhadores forma poltica

    democrtica, a burguesia cede muito pouco s demandas vindas das camadas populares,

    no respondendo substantivamente s necessidades vindas das mesmas. Logo, se define

    uma forma ainda mais marcante de democracia restrita, na qual persistem certas

    caractersticas autocrticas exatamente porque determina o carter do Estado burgus no

    Brasil (Iasi, 2014).

    dessa forma de democracia que resulta a escola pblica brasileira. Escola que

    expressa relaes mais amplas em confronto, cuja especificidade est associada a um

    conjunto de relaes polticas, econmicas e sociais implicado no processo de formao

    do Estado capitalista. A esse respeito, Algebaile (2009) aponta os papis de mediao

    cabidos escola brasileira:

    A escola pblica elementar, no Brasil, tendo em vista as funes

    de mediao que passa a cumprir para o Estado, nas suas

    relaes com os contingentes populacionais pobres, tornou-se

    uma espcie de posto avanado, que permite, a esse Estado,

    certas condies de controle populacional e territorial, formas

    variadas de negociao do poder em diferentes escalas e certa

    economia de presena em outros mbitos da vida social

    (Algebaile, 2009, p.15).

    A escola, como instituio social, revela elementos em sua composio que no

    necessariamente objetivam a funo de educar, uma vez que se evidencia uma

    multiplicidade de relaes que concorrem para sua produo. De modo geral, trata-se de

    relaes inseridas em longos processos disseminados no tempo e no espao. E que

    permitem, na escola, a abertura de outras esferas que no a educativa. Algebaile (2009)

  • 15

    especifica tais processos, onde as funes da educao escolar podem ser recriadas de

    acordo com outras finalidades e interesses.

    Os processos implicados com a organizao sistemtica das

    tarefas atribudas escola, com a produo de um corpo de

    normas jurdicas reguladoras das suas formas de execuo, com

    a designao de demarcaes espaciais e temporais prprias

    para sua realizao e de um corpo funcional autorizado e

    preparado para tal, no so processos que simplesmente

    viabilizam uma funo dada desde a origem das instituies

    possveis de serem chamadas de escolares. So processos no

    interior dos quais as funes escolares podem ser criadas,

    modificadas e moduladas conforme novas finalidades, ou ainda

    coadunadas com outras funes no necessariamente inscritas na

    esfera educativa escolar (Algebaile, 2009, p.26).

    Portanto, s aes educativas da instituio escolar, agregam-se outras,

    relacionadas particularmente aos interesses do sistema produtivo e da estrutura estatal.

    Alm, claro, do choque entre as determinaes contidas nos projetos que buscam

    ordenar a escola e as inegveis foras de resistncia dos atores que circulam nesse

    espao. E que lutam pelas suas demandas no atendidas pelo Estado. A escola pblica

    como lugar de encontro do coletivo, vinculada a outras instituies, entre outros

    aspectos, torna-se uma instituio social saturada de significaes e dimenses que

    extrapolam certos limites de sua especializao convencional (Algebaile, 2009,

    p.27).

    O uso do aparato escolar para finalidades no pertinentes ao plano educativo

    como, por exemplo, a instalao de postos de atendimento mdico no interior da escola

    ou a vinculao de programas assistenciais educao afirma a escola cumprindo o

    papel de agncia do Estado, sendo por vezes, em determinados lugares, a nica

    representao do poder pblico. Algebaile (2009), em seus estudos, destaca que a

    vinculao to direta entre reduo da pobreza e acesso escola expe um aspecto

    central na configurao da escola pblica elementar no Brasil, pois vlido pensar que

    escola pblica e pobreza se fazem, a ponto de suas histrias resultarem, em boa parte, de

    um profundo e mtuo atravessamento (Algebaile, 2009, p.15).

    De acordo com Connell (2002), os programas compensatrios entre as polticas

    educacionais possuem trs pressupostos problemticos: a) que o problema somente se

    relaciona com essa minoria afetada; b) que o pobre diferente da maioria (cultural e

    psicologicamente); e c) que a soluo para o problema tcnica. Sendo assim, a

  • 16

    complexa trama apontada pelo contexto escolar ignorada, pois o foco est na

    compensao de dficits atribudos s crianas, aos adolescentes e s suas famlias

    (rotuladas como desestruturadas).

    Por esse vis, a gesto da educao bsica pblica transcorre produzindo

    ideologias, distorcendo a realidade de opresso, explorao, desapropriao,

    encarceramento etc que os alunos e suas famlias vivenciam. a forma social capitalista

    produzindo mecanismos que permitem distorcer sua existncia no interior do seu

    prprio funcionamento, atravs de diferentes discursos que se combinam, de acordo

    com as condies sociais, para produzir um complexo discurso. A educao afirmada

    como uma das principais vias de enfrentamento dos problemas sociais. Como se dot-la

    de eficincia fosse, por si s, capaz de solucionar os problemas intrnsecos forma

    social capitalista.

    Atribuir expanso da escolaridade a expectativa de melhorar a justia social no

    pas, nos oferece uma falcia. O problema no unicamente garantir o acesso universal

    escola. O problema qualitativo e tico, mais do que quantitativo ou tcnico

    (Yanoullas e Soares, 2010). O valor e a qualidade da educao sendo concebidos a

    partir de seu impacto econmico na vida das pessoas, acabam por provocar a perda do

    seu sentido pblico, ou seja, seu significado tico-poltico. O declnio do sentido

    pblico da educao compreende um fenmeno exterior ao campo pedaggico, porm,

    suas consequncias impactam fortemente esse mbito.

    1.2 A EDUCAO BRASILEIRA EST EM CRISE?

    A conjuntura econmica e poltica que vinha se agravando, nos ltimos tempos,

    no Brasil, de fato se assevera no ano de 2016. A situao econmica do pas

    classificada de estagnao. J a situao poltica dada de total instabilidade. O pas

    vivencia o afastamento da presidente da Repblica eleita democraticamente, alm de

    constantes manobras polticas com denncias de corrupo, investigaes e escndalos

    contra lderes polticos.

    Paralelas a essa situao, temos os gastos dos Jogos Olmpicos refletindo

    gravemente na vida da classe trabalhadora: cortes de programas sociais; reformas na

    previdncia; diminuio nas verbas de manuteno de reas essenciais, como sade e

    educao; aumento dos preos e dos ndices de desemprego; diminuio do poder de

    compra dos consumidores; aumento da inflao; retrocesso sobre os direitos

    trabalhistas; crescimento da violncia urbana; aumento da represso por parte dos

  • 17

    governantes diante das manifestaes populares, dentre outras consequncias, num

    efeito domin.

    Nesse contexto, simultaneamente s constantes formulaes sobre a

    desqualificao e o fracasso da escola pblica, as questes da insuficincia e

    precariedade vm tona fortemente, no mais apenas por setores dos mbitos

    acadmico, governamental e mdia. A situao de descaso que sempre acompanhou a

    educao no Brasil de fato apresentada, nua e crua, pela tica dos professores e - de

    maneira surpreendente dos alunos. As denncias e reivindicaes eclodem em vrios

    estados do pas sob a forma de greves dos professores e ocupaes pelos alunos das

    escolas e secretarias de educao. Professores, alunos, dentre outros profissionais da

    educao, mostram-se preocupados e em luta com um mesmo discurso: sob que

    condies estamos estudando/trabalhando?

    Nos ltimos 20 anos, a educao brasileira se expandiu de maneira muito

    significativa, quando passou por um intenso processo de universalizao, como veremos

    adiante no captulo 2. Contudo, no houve investimento de maneira proporcional

    expanso, que se limita a organizar o setor educacional de forma a garantir a

    escolarizao nos aspectos mais elementares: a aprendizagem de conhecimentos e

    habilidades bsicos como ler, escrever e contar e a expanso da certificao escolar.

    A entrada de mais pessoas nos sistemas de ensino pblico, somada a menos

    investimento igual a gradual perda de qualidade da educao. Consequentemente,

    pelos espaos acadmicos, governos e, principalmente, mdia, a desqualificao da

    escola pblica recorrentemente definida como expresso de uma crise, que est

    circunscrita s falhas na eficincia e produtividade do prprio sistema de ensino.

    Essa ideia de crise da educao pblica se baseia nas limitaes da instituio

    escolar na realizao do seu papel, encobrindo as relaes e os propsitos que

    efetivamente a produz. As discusses sobre a crise, que do nfase aos problemas de

    funcionamento da escola, acabam por gerar propostas de interveno tcnica, de modo a

    se instaurar novos procedimentos de operao do ambiente escolar. possvel perceber

    esses apontamentos ao longo de vrios documentos, nacionais e internacionais,

    elaborados pelas polticas educacionais.

    De acordo com Shiroma, Garcia e Campos (2004), os documentos oficiais da

    poltica educacional muito nos revelam sobre como as instituies explicam a realidade,

    buscam legitimar suas atividades, assim como revelam interesses, valores e perspectivas

    de sujeitos. De fato, os organismos internacionais elaborando documentos que orientam

  • 18

    e justificam a reforma educacional nos pases perifricos, muito influenciam as nossas

    diretrizes educacionais, sobre o que deve ser concebido como valor da nossa educao.

    Para as autoras, esses documentos so adaptados de acordo com os interesses e acordos

    polticos existentes em cada local, no determinando, mas influenciando fortemente o

    campo da hegemonia discursiva, que busca alcanar uma educao nacional de

    qualidade e igualitria.

    So documentos que argumentam que suas propostas objetivam qualificar a

    educao bsica pblica, como por exemplo, os documentos Ptria Educadora A

    qualificao do ensino bsico como obra de construo nacional (SAE/2015),

    Professores excelentes como melhorar a aprendizagem dos estudantes na Amrica

    Latina e no Caribe (Banco Mundial/2014), dentre outros. Num primeiro momento,

    esses documentos tendem a caracterizar o cenrio preocupante da educao,

    descrevendo os problemas de modo distorcido e culpabilizando o professorado. Ao

    mesmo tempo, que propem a restrio e o controle sobre seu trabalho por parte dos

    gestores, a quem cabe o papel de policiar e aplicar as punies prescritas igualmente

    pelos documentos.

    De modo geral, os documentos desmoralizam os professores ao apont-los como

    os responsveis pela baixa qualidade do ensino, pois compreendem que a maioria do

    sexo feminino; com status socioeconmico relativamente baixo; a maioria envelhecida;

    com altos nveis de educao formal, mas habilidades cognitivas precrias quando

    comparado a outros profissionais; sem talento, ambio e, por isso, sem capacidade de

    escolher outra opo de profisso; com fraco domnio do contedo acadmico; treinado

    de maneira ineficiente; com prticas ineficazes em sala de aula (baixo uso do tempo de

    instruo, pouca utilizao das ferramentas de TIC, falta de estratgias de ensino para

    manter o aluno envolvido etc); alm do pouco profissionalismo por parte dos docentes

    (Bruns e Luque, 2014).

    H uma clara desvalorizao e discriminao do magistrio na tentativa de

    justificar os problemas educacionais. Estratgia muito peculiar tambm dos

    reformadores empresariais da educao para difamar o professorado perante a opinio

    pblica, com amparo generoso da mdia. A estratgia tem por finalidade justificar uma

    nova vanguarda pedaggica, tentando minimizar toda a produo e formao do

    mesmo. Por isso, torna-se nada surpreendente se este mesmo magistrio for acusado de

    no pensar nas crianas e, por isso, ser merecidamente recebido bala de borracha e a

  • 19

    cassetetes nas ruas pelas manifestaes em defesa de suas condies de trabalho

    (Freitas, 2015).

    Analisando questes orgnicas dos problemas da educao, a poltica

    educacional prope aes revolucionrias tomando a crise como momento de

    mudana. O que nos remete ao pensamento de Gramsci (2011), que nos diz que nas

    narraes histricas no se explica nada ou quase nada, pois no se faz mais do que

    repetir o fato que se deve explicar. Assim, as propostas de interveno tcnica

    produzidas pela poltica educacional reduzem-se a inovao da forma de ensinar e

    aprender, atravs de reformas das polticas de recrutamento, capacitao e motivao de

    professores, alm da introduo de tecnologias no espao escolar.

    Todavia, a inteno no criar uma esfera de formao de professores, mas sim

    vigiar, punir e treinar para que os mesmos executem com excelncia o perfil criado

    pelas polticas globais e adaptado pelas polticas locais. E que, logo, ser novamente

    modificado, conforme, as necessidades do contexto do capitalismo (Leher e Barreto,

    2014). A esse respeito, Evangelista e Shiroma (apud Leher e Barreto, 2014, p. 40)

    enfatizam que h lineamentos originrios das grandes agncias multilaterais,

    articulados aos interesses dos pases capitalistas hegemnicos que, em vrias regies

    do mundo, buscam produzir um professor com inmeros elementos em comum,

    instrumentalizado, com objetivos assemelhados.

    Responsabiliza-se o magistrio pelas dificuldades de aprendizagem dos alunos,

    como se o professor no fosse produto e vtima de uma histria de descaso por parte da

    poltica estatal. De acordo com Leher e Barreto (2014), a esfera poltica conduz a

    educao pblica de maneira que despreza o trabalho do professor como criao

    humana, tratando-o como objeto de produo. Ou seja, nesse processo no se reconhece

    sua individualidade, capacidade criativa e condio de sujeito intelectual.

    Gramsci (2000a) advertiu, em seus estudos, que a crise do programa e da

    organizao escolar uma complexificao da crise orgnica mais ampla e geral. Ou

    seja, a atual situao vivenciada pela educao fruto de concepes e prticas do

    projeto delineado pelo capitalismo, que apesar de sua crise estrutural, pretende ser

    eterno, da suas constantes reorganizaes. Contudo, o fundamento desse projeto tende a

    ser obscurecido, com a ideia de que se vive uma crise (no sentido de que o que est

    planejado no est sendo executado com competncia pelos profissionais), pois tal

    projeto no pretende garantir as necessidades humanas, mas sim do capital, do lucro.

  • 20

    Dessa forma, a crise, enquanto um fenmeno produzido pela prpria poltica

    educacional, origina muito alm dos problemas de funcionamento e produtividade da

    escola. A ao poltica promove o esvaziamento do sentido pblico da educao escolar,

    instituindo escolas diferenciadas para segmentos diferenciados da populao,

    reproduzindo o ciclo da desigualdade social (Algebaile, 2009).

    Libneo (2012) denomina de perverso o dualismo da escola pblica brasileira,

    que possui duas concepes, dependendo da clientela: uma assentada no conhecimento,

    para os ricos, e outra assentada no acolhimento social, para os pobres. Para o autor, esse

    dualismo, que reproduz e mantm as desigualdades sociais, associado s polticas

    educacionais do Banco Mundial, explicam, de certo modo, o incessante declnio da

    nossa escola nos ltimos trinta anos. Algebaile (2009) tambm nos mostra em seus

    estudos essa diferenciao da escola pblica de acordo com os grupos sociais que

    passam a frequent-la, como por exemplo, os negros e os ndios. Ao historicizar a

    educao pblica, a autora aponta que, ao longo dos anos, a escola pblica acolheu

    ricos, classe mdia e os pobres, a quem so oferecidos uma escola com poucos recursos;

    sendo frgil, precria em suas condies, ou seja, pobre.

    Nessa conjuntura se produz um programa que busca imprimir uma perspectiva

    econmico-utilitarista educao. Nela se valoriza a importncia do capital humano. E,

    portanto, do investimento em educao para a produtividade, de modo a assegurar os

    ganhos do capital. Assim, o esvaziamento do sentido pblico da educao se d pelo

    tipo de ideal que se almeja para a mesma, que a obteno de certas competncias e

    habilidades para a produo capitalista.

    a supremacia da produtividade nos objetivos educacionais, elaboraes de um

    projeto (ideolgico) de educao pblica que no atende as necessidades reais e

    essenciais dos alunos ou dos seus trabalhadores. Com isso, vemos o declnio do sentido

    tico-poltico da educao sendo nomeado por crise, como se a escola tivesse perdido

    a capacidade de realizar-se de acordo com as orientaes institudas (e propagadas como

    democrticas).

    Em seus estudos sobre a educao, o antroplogo Darcy Ribeiro (1986) afirma

    que a crise da educao no Brasil no uma crise, um projeto das elites dominantes,

    que sempre pretenderam a alienao do povo como forma de sobrevivncia dos seus

    prprios interesses. Inclusive, essa estratgia foi fortemente utilizada pelo governo da

    Ditadura Militar, responsvel por defender os interesses das elites.

  • 21

    O projeto de sucateamento da educao, iniciado nessa poca, via os professores

    como uma grande ameaa s pretenses capitalistas por formarem uma classe politizada

    e com forte influncia. Com isso, o governo militar criou um ambiente favorvel para as

    polticas de precarizao do trabalho docente. Polticas mantidas pelos governos

    subsequentes, tanto de direita quanto de esquerda, porm, com variaes no

    enraizamento das mesmas.

    Na perspectiva assinalada por Gramsci (2011), a ideia de crise nos remete a uma

    situao na qual o que est institudo escapa ao planejado, mas no porque perdeu-se a

    capacidade na realizao, como se alguns mecanismos tivessem falhado, e sim porque

    as foras sociais com seus diferentes propsitos esto em permanente confronto. Aqui

    chegamos ao momento de diferenciar os dois sentidos que estamos atribuindo palavra

    crise.

    A nosso ver, h a crise construda e justificada pelas polticas educacionais, ou

    seja, um projeto de educao que vai em direo contrria aos interesses e necessidades

    dos educandos e profissionais, garantindo os interesses do capital. Nessa construo,

    esses interesses e necessidades dos educandos e profissionais no esto sendo atendidos

    por falha na capacidade de execuo das escolas. Da os profissionais da educao so

    responsabilizados por provocar a crise, a diferena entre o que a educao oferece e o

    que realmente precisa, pois o que institudo pelas polticas como se fosse algo

    democrtico e compreendesse as prioridades substanciais de todos os educandos.

    Contudo, mesmo na consolidao da hegemonia burguesa, a contradio

    essencial de nossa sociedade encontra formas de se expressar. Da temos o segundo

    sentido da palavra crise (agora, sem aspas): o que est institudo implicitamente para a

    educao, de fato, no democrtico e nem compreende as prioridades substanciais dos

    educandos e profissionais. A partir dessa contradio, temos os interesses e

    necessidades dos educandos e profissionais vindo tona, emergindo em permanente

    confronto com o que est sendo institudo, explicitando o caos da educao delineada

    pelo capital. Essa a verdadeira crise, so manifestaes de diversos modos que

    conseguem escapar ao planejado pelas polticas, fazendo com que as mesmas se

    reorganizem, fazendo algumas concesses.

    Para Gramsci (2011), o processo de transformismo que o enfraquecimento

    e a paralisao dos antagonistas atravs da absoro de seus dirigentes a condio

    que torna possvel a democracia de cooptao, que cede pouco aos trabalhadores de

    modo a manter assegurado o sistema. Entretanto, essa democracia fajuta (Fernandes,

  • 22

    1975) no garante a consolidao da hegemonia burguesa sem a contradio e a luta de

    classes.

    Iasi (2014) alerta que uma vez que os grupos dirigentes das classes

    trabalhadoras foram absorvidos pelo transformismo, a contradio tende a explodir de

    forma desorganizada, de modo espontneo. E so nesses momentos de crise, que se

    costuma trazer tona determinaes psicolgicas, como insatisfao, revolta no

    dirigida, desconfiana, pnico etc (Iasi, 2014, p.102). Tratam-se de formaes

    ideolgicas que tentam compreender as manifestaes das massas, encobrindo os

    processos polticos, como nos esclarece Gramsci:

    D-se o nome de psicolgicos aos fenmenos elementares de massa,

    no predeterminados, no organizados, no dirigidos de modo

    evidente, os quais assinalam uma fratura na unidade social entre

    governados e governantes. Atravs destas presses psicolgicas, os

    governados exprimem sua desconfiana nos dirigentes e exigem que

    sejam modificadas as pessoas e as diretrizes da atividade financeira e,

    portanto, econmica (Gramsci, apud Iasi, 2014, p. 102).

    A sociedade capitalista vivencia uma plena desigualdade em todas as esferas

    poltica, educacional, econmica etc -, alm da opresso, explorao, desapropriao,

    encarceramento etc. Com isso, a hegemonia um processo de luta constante, precisando

    ser mantida e renovada sempre ao longo do conjunto formado pelo consenso e fora.

    Da temos um sistema capitalista que nunca est dado, mas incessantemente se

    reorganizando, diante das contradies que continuam a se expressar na resistncia dos

    trabalhadores em sua luta. Iasi (2014) diz que a essncia da poltica burguesa buscar a

    harmonia entre os interesses inconciliveis da burguesia e do proletariado. Por isso, no

    momento de crise, ela acaba obedecendo aos anseios da lei e ordem evocando o

    interesse nacional acima das particularidades de classe, o que serve muito bem aos

    propsitos das classes dominantes (Iasi, 2014, p.104).

    Todos esses aspectos apresentados pem sob dvida a ideia de crise da

    educao pblica. Diante da crise como fenmeno poltico, cabe a indagao se de fato

    a escola pblica est em crise. Pois o que percebemos atualmente so os discursos de

    crise da educao, que limita a crtica nos problemas de funcionamento da escola,

    difundindo-se com mais facilidade. E isso no por acaso. Fiorin (1988), ao discutir

    como os fatores sociais determinam as formaes discursivas, afirma que numa

  • 23

    formao social, temos dois nveis de realidade: um de essncia e um de aparncia, ou

    seja, um profundo e um superficial, um no-visvel e um fenomnico.

    O nvel da aparncia percebido imediatamente por ns, apresentando-se como

    a totalidade da realidade, mas tambm a inverso do nvel da essncia. A partir do

    nvel fenomnico da realidade, constroem-se as ideias dominantes numa dada formao

    social, ideias que explicam e justificam a realidade. Aquilo que afirmado no nvel

    fenomnico acaba sendo negado no nvel profundo (Fiorin, 1988). A persistncia do

    sentido de crise como explicativo da situao atual da educao pblica, com base em

    uma concepo de crise que uma iluso, acaba por deslocar nossa ateno de

    processos que deveriam ser entendidos para serem pensados nos projetos de luta pela

    escola pblica.

    No discurso de crise predominante, esta aparenta ser o anncio da mudana,

    no em um sentido amplo de emergir uma nova situao; mas em um sentido restrito,

    no qual a desordem justifica a necessidade de reformas. A situao da educao

    pblica est sendo discutida a partir de como ela se mostra aos nossos olhos, ou seja, no

    nvel da aparncia; no se aprofunda a discusso ao nvel da estrutura maior, ou seja, ao

    nvel da essncia. O que acaba por engessar num mbito restrito o debate sobre a

    emergncia de mudanas significativas, contribuindo para contnuas redues do

    debate. O que nos remete a Gramsci (2000a), que afirma que a crise da hegemonia

    instaura-se num vazio por falta de orientao, no qual o velho morre e o novo no pode

    nascer.

    Algebaile (2009) destaca que a existncia do dissenso, necessrio para

    caracterizar a crise, insuficiente para garantir sua existncia. Para a autora, existem

    diversas formas de discordncias dentro da escola pblica que no convergem para a

    organizao de projetos, [...] expressando-se ora como uma recusa difusa do institudo,

    ora como afirmao de possibilidades de ao de sentido diverso do dominante que, no

    entanto, na falta de uma fora de coeso, podem se dispersar e anular [...] (Algebaile,

    2009, p.53).

    De fato, as foras de resistncia ao projeto dominante de educao pblica tm

    assumido variadas formas, como as contidas na depredao do espao escolar, na

    recusa da autoridade e das regras escolares, no desinteresse pela escola, que podem ser

    uma forma prtica de crtica (Algebaile, 2009, p. 53). Contudo, trata-se de foras de

    resistncia que no chegam a interferir incisivamente na produo da escola. A autora

    aponta que a existncia de crticas organizadas, contraposio de projetos e resistncias

  • 24

    s regras escolares no abalam suficientemente o modo predominante de produo da

    escola.

    Atualmente, a situao em que a educao pblica se encontra uma realidade

    produzida, de modo consciente, pelas polticas educacionais. A educao vivencia um

    projeto de acordo com interesses demarcados pelo mbito scio-econmico mais amplo.

    Certamente, as diversas formas de crtica, resistncia e luta, organizadas ou difusas, tm

    causado impasses, provocado reorganizaes no interior desse projeto hegemnico de

    educao pblica. Porm, no com a intensidade necessria para se atingir o

    rompimento do que est institudo e a instaurao de uma nova situao. A

    desqualificao, o fracasso, a insuficincia e a precariedade da educao pblica

    persistem, e as reaes parecem no atingir suficientemente os processos que os

    produzem (Algebaile, 2009).

    Com frequncia, assistimos as manifestaes crticas sendo abafadas, com seus

    desfechos reorientados a favor dos interesses daqueles que conduzem o Estado. Gramsci

    (2006) ressalta que, por vezes, o Estado responde a massa subalterna com antecipaes

    estratgicas, ou seja, as fraes burguesas que compem o Estado agem se antecipando

    ao passo seguinte da classe trabalhadora. Ou tambm agem depois que a classe operria

    tenha reivindicado, cedendo, ao seu modo, algumas demandas. dessa forma que no

    se consolidam processos crticos capazes de unir foras dispersas e de conquistar

    possibilidades efetivas de mudana de direo nos rumos da escola.

    Algebaile (2009) afirma que a crtica educao pblica praticamente coexiste

    com uma produo inerte de uma escola que no consegue nem mesmo se aproximar de

    alguns dos propsitos mais proclamados. Como se o processo quase inercial tivesse

    mais vigor que a crtica existente. Assim, os processos que poderiam desdobrar-se em

    crises so comumente atenuados, capturados e ressignificados como problema de

    disfuno escolar antes que adensem, adquirindo um sentido poltico mais forte e

    generalizado (Algebaile, 2009, p.54).

    A produo e crtica da escola parecem caminhar de maneira solitria, como

    processos individuais, desligados um do outro. Entre as foras sociais que produzem a

    escola persiste um forte distanciamento. Podemos perceber isto na crtica produzida, por

    exemplo, pela academia, pois so apresentados pontos de vista e interesses divergentes

    sobre a educao pblica. No se agrega a voz daqueles que circulam no cotidiano do

    ambiente escolar e, consequentemente, a crtica acadmica no os alcana de modo

  • 25

    suficiente. Para a autora citada anteriormente, essa conjuntura tambm um feito do

    Estado, de modo a esvaziar qualquer movimento contra-hegemnico.

    Academia, tcnicos da administrao, profissionais da educao e

    segmentos distintos de usurios apresentam, entre si, por vezes, um

    distanciamento e mesmo um alheamento que no condiz com a

    histria das lutas sociais por educao e que, sem dvida, so, em

    parte, expresso de aes do Estado que acabaram por aprofundar,

    como diria Gramsci, a distncia entre intelectuais e povo (Algebaile,

    2009, p.54).

    Gramsci (2006) alerta que toda classe, para se manter unida, precisa formar seus

    intelectuais como possibilidade de defender o seu projeto. Com seus escritos, o filsofo

    marxista deu sentido a uma forma de ao para a classe trabalhadora, uma vez que

    aponta que a conscincia de fazer parte de uma determinada fora hegemnica (isto ,

    a conscincia poltica) a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconscincia,

    na qual teoria e prtica finalmente se unificam (Gramsci, 2006, p.103).

    O distanciamento entre os intelectuais e o povo da educao (alunos,

    profissionais e comunidade) reduz essa transformao que a crtica pode proporcionar,

    acabando por atingir questes secundrias. nesse sentido que a ideia produzida de

    crise da educao pblica se torna uma iluso, medida que ela oculta os reais

    processos que produzem o atual estado da educao e nem pretende produzir o novo,

    desestruturando o que est institudo. Pelo contrrio, o sentido dessa ideia de crise

    tende a tirar o nosso foco da questo central: que refletir como e por que a educao

    pblica, com todas as suas falhas, continua se mantendo estruturada.

    Nesse sentido, a seguir, daremos centralidade situao do professor dentro

    dessa escola pblica. Profissional resgatado pelas polticas governamentais, como modo

    de gerenciamento das desigualdades sociais, mas conduzido com estratgias que tendem

    a contribuir para sua perda do sentimento de identidade profissional (Algebaile, 2009).

    1.3 SER PROFESSOR DA ESCOLA PBLICA: LIMITAES E DESAFIOS

    A Histria da Educao nos mostra que, h mais de dois sculos, o ensino

    escolar tem sido a forma dominante de socializao e de formao nas sociedades

    modernas. Com isso, alm da importncia econmica, o trabalho do professor possui

    um papel central do ponto de vista poltico e cultural (Gatti e Barreto, 2009). Para

    Lessard e Tardif (2005), os professores constituem um dos mais importantes grupos

    ocupacionais e uma das principais peas das economias modernas, devido ao seu

  • 26

    nmero e a funo que desempenham. Ao lado dos profissionais de sade, eles

    representam a principal carga oramentria dos Estados.

    Os registros da narrativa social sobre a docncia destacam que a funo de

    professor sempre esteve mais vinculada figura feminina, que historicamente goza de

    menos prestgio no mercado de trabalho do que a figura masculina. De acordo com Iosif

    (2007), at o sculo XIX, a maioria dos professores que ministrava aula no Brasil era

    oriunda de pases europeus, como Frana e Alemanha, ensinando, exclusivamente, os

    filhos da elite brasileira nas casas destes ou nas poucas escolas de ento.

    Com o processo de expanso do sistema pblico de ensino na dcada de 1930 e

    com sua intensificao na dcada de 1960, a profisso professor sofre uma perda

    gradativa nas suas condies de trabalho, no respeito social e no seu salrio. O sistema

    de ensino agregando os filhos das famlias de baixa renda passa a atrair tambm para a

    profisso pessoas das classes menos privilegiadas, que viam na profisso um meio de

    ascenso social (Iosif, 2007).

    Com isso, ser professor no Brasil j representou sinnimo de grande

    reconhecimento social, pelo menos at as primeiras dcadas do sculo passado. Com o

    avano da escolarizao pblica, atendendo os filhos no mais de famlias abastadas,

    mas sim dos trabalhadores, e tendo por professor no mais os membros de famlias

    ricas, mas sim das famlias sem prestgio social, vemos o professor da escola pblica de

    hoje, em sua grande maioria, sendo pouco respeitado pelos alunos e sociedade,

    adoecido, desmotivado e desvalorizado.

    Algebaile (2009) mostra em seus estudos que o processo de enfrentamento da

    desigualdade social, conduzido pelas polticas governamentais, mantm ntima relao

    com o resgate da escola pblica, o que passa necessariamente pelo resgate do professor

    da Educao Bsica. E com isso, a precarizao das condies de trabalho dos

    professores muito se acentuou nos ltimos tempos. claro que no se trata de um

    processo uniforme, que atinja a todos por igual. Pelo contrrio, existem variaes nesse

    processo de precarizao de acordo com a esfera governamental a qual pertena o

    professor, o tipo de grupo social que frequente determinada escola etc. Porm, estamos

    falando de um processo que atinge, de modo geral, a maioria do magistrio pblico

    brasileiro da Educao Bsica.

    Tal processo se realiza mediante as estratgias de gesto do Estado neoliberal,

    que tende a desunir a classe dos professores. O que leva Iosif (2007) a afirmar que

  • 27

    nesse contexto que se deve fortalecer a organizao e a luta dos trabalhadores da

    educao por melhores condies de trabalho.

    nesse quadro complexo que os trabalhadores em educao precisam

    inserir sua luta por um novo sistema educacional, democrtico,

    pblico, laico e gratuito, e pela valorizao profissional do professor

    da escola pblica. Para tanto, precisam procurar unificar, em primeiro

    lugar, o seu prprio movimento. Superar os particularismos que ainda

    dividem o seu movimento sindical, buscar uma organizao mais

    ampla possvel (Iosif, 2007, p.122).

    Particularmente, as reformas do sistema de ensino pblico, iniciadas na dcada

    de 1990, inauguram um novo momento na educao brasileira. As mudanas nas

    polticas pblicas educacionais, de modo mais especfico, aquelas iniciadas no primeiro

    mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso transformam profundamente a

    educao nos seus objetivos, nas suas funes e na sua organizao (Oliveira, 2004;

    Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011). Nos programas governamentais, os professores

    so considerados os principais responsveis pelo desempenho dos alunos, da escola e do

    sistema.

    Diante das variadas funes que a escola pblica passa a assumir nesse

    momento, o professor tem de responder a exigncias que esto alm de sua formao;

    questes que so ignoradas por gestores, famlias e Estado. No cotidiano da sala de aula,

    o professor identifica e lida com doenas psicolgicas dos alunos, dificuldades graves

    de aprendizagem, dentre outros problemas, ainda que no tenha a formao,

    preparao e apoios institucionais e familiares necessrios (Iosif, 2007). Tais

    exigncias contribuem para a perda do sentimento de identidade profissional, do

    reconhecimento de que ensinar s vezes no o mais importante (Oliveira, 2004). Com

    isso, o trabalho docente sofre modificao tanto na sua natureza como na sua definio:

    O trabalho do professor no definido mais apenas como atividade

    em sala de aula, ele agora compreende a gesto da escola no que se

    refere dedicao dos professores ao planejamento, elaborao de

    projetos, discusso coletiva do currculo e da avaliao. O trabalho

    docente amplia o seu mbito de compreenso e, (...) tende a se

    complexificar (Oliveira, 2004, p. 1132).

    Segundo Oliveira (2004), o trabalho docente, em sntese, foi reestruturado,

    sofrendo transformaes sem as adequaes necessrias, implicando em processos de

    precarizao. E tal discusso apresenta-se na literatura pela vertente da

  • 28

    profissionalizao e da proletarizao/desprofissionalizao que surge no debate

    acadmico brasileiro nas dcadas de 1970 e 1980. De acordo com a autora, esse debate

    se pauta nessas dcadas, possivelmente, em decorrncia dos processos polticos vividos

    no momento.

    Shiroma e Evangelista (2010) destacam que Enguita (1991) introduz essa

    discusso afirmando que a docncia est diante de uma ambiguidade entre o

    profissionalismo e a proletarizao. O autor destaca que a profissionalizao no

    significa capacitao, qualificao, conhecimento, formao, mas sim posio social e

    ocupacional, com a insero em um tipo determinado de relaes sociais de produo e

    de processo de trabalho.

    As reformas em curso tendem a retirar do professor a autonomia, entendida

    como condio de participar da concepo e organizao de seu trabalho (Oliveira,

    2004, p.1132), mediante a submisso dessa categoria s constantes regulaes. De modo

    especial, as reformas trazem consigo novas normas de organizao do ensino,

    padronizando importantes processos, como o livro didtico, as avaliaes externas, as

    propostas curriculares centralizadas dentre outras. Marcam tambm o aumento da

    participao da comunidade nos processos decisrios da escola, uma vez que apelam

    para o comunitarismo e voluntariado, na promoo de uma educao para todos

    (Oliveira, 2004, p.1132).

    A participao da comunidade nas decises do curso das escolas torna-se uma

    exigncia da gesto escolar reformada, conforme nos afirma Oliveira (2004):

    Uma gesto democrtica da educao, que reconhecesse a escola

    como espao de poltica e trabalho, era buscada nos emblemas de

    autonomia administrativa, financeira e pedaggica, na participao da

    comunidade nos desgnios da escola (elaborao de projetos

    pedaggicos e definio dos calendrios) e na criao de instncias

    mais democrticas de gesto (eleio de diretores e constituio dos

    colegiados) (Oliveira, 2004, p.1135).

    Entretanto, esse movimento, ao mesmo tempo, que traz ganhos para a populao

    em geral e os trabalhadores da educao, tambm representa para esses profissionais

    uma ameaa em relao exclusividade de deciso sobre determinados assuntos. Com

    os colegiados escolares opinando e decidindo assuntos at ento exclusivos da

    profisso, como contedos pedaggicos, prticas de avaliao etc, o sentimento de

    desprofissionalizao passa a ser reforado no professorado.

  • 29

    A ideia de que o que se faz na escola no assunto de especialista,

    no exige um conhecimento especfico, e, portanto, pode ser discutido

    por leigos, e as constantes campanhas em defesa da escola pblica que

    apelam para o voluntariado contribuem para um sentimento

    generalizado de que o profissionalismo no o mais importante no

    contexto escolar (Oliveira, 2004, p.1135).

    Aprofundando tal discusso, Rodrigues (2002) recorre Gyarmati (1975)

    quando analisa os pressupostos do modelo de profissionalizao inspirado no paradigma

    funcionalista. E conclui que determinadas profisses possuem um sistema de

    mandarinato que lhes garantem deter o seu monoplio profissional.

    [...] As profisses constituem um sistema de mandarinato, ao

    caracterizarem por autonomia para organizar e regular as respectivas

    actividades; monoplio profissional, ou seja, a faculdade jurdica de

    impedir todos os que no so oficialmente acreditados de oferecer

    servios no domnio definido como exclusivo de uma profisso

    (Rodrigues, 2002, p.41).

    Na opinio da autora, deter o monoplio permite classe profissional a

    possibilidade de manipular e modificar o seu conhecimento da maneira que melhor

    servir aos seus membros. Com a exclusividade, permite-se uma defesa e

    autoperpetuao diante das ameaas de inovao, alm de servir como um instrumento

    nas lutas com outras profisses pelo mesmo espao. Neste sentido, para a autora, o

    magistrio no chegou a constituir-se como uma profisso, uma vez que o resgate

    histrico do seu movimento profissional aponta as tenses entre o domstico e o

    pblico, que at hoje ainda persistem. No se constituindo solidamente como profisso,

    o magistrio no deixa de sofrer processos de desprofissionalizao.

    A discusso poca, na dcada de 1990, reforou a luta (iniciada nas dcadas de

    1970 e 1980) dos professores e demais profissionais da educao pela

    profissionalizao, no sentido de uma autoproteo. A ameaa de proletarizao,

    nomeada pelo Estado como poltica de profissionalizao, caracterizada pela perda

    de controle do trabalhador (professor) do seu processo de trabalho (Oliveira, 2004, p.

    1133), passando a executar apenas uma parte, alienando-se da concepo (idem,

    p.1134). Tal poltica contrapunha-se profissionalizao requerida pelos professores.

    Esta remete a um estatuto profissional como condio de preservar e proteger a classe.

    Segundo a autora citada, o estatuto profissional abrangeria [...] a auto-regulao, a

  • 30

    competncia especfica, rendimentos, licena para atuao, vantagens e benefcios

    prprios, independncia etc (idem, p.1133).

    Assim, a luta dos professores pela profissionalizao reforada nesse

    contexto como defesa aos processos do Estado de perda de autonomia e de

    desqualificao do trabalho docente. A tendncia para a desprofissionalizao se d,

    para Oliveira (2202, p.71), pela [...] perda ou transferncia de conhecimentos e saberes,

    seja para os consumidores, o pblico em geral, os computadores ou os manuais. Aquilo

    que Rodrigues (2002, p.73) define como proletarizao ideolgica, que significa a

    expropriao de valores a partir da perda de controle sobre o produto do trabalho e da

    relao com a comunidade.

    De fato, lidar com uma realidade que tem por noo sociedade da informao

    e sociedade do conhecimento, com tecnologias fetichizadas que estimulam novas

    prticas educativas assim como novas mediaes da aprendizagem, tem feito o

    professor sofrer um processo desqualificador contnuo. Processo instrumentalizado por

    meio das polticas e multiplicado pelas mdias.

    Leher e Barrreto (2014) afirmam que o trabalho docente tem sofrido inmeros

    deslocamentos semnticos, como parte desse processo de esvaziamento da profisso.

    O prprio linguajar empregado nesses discursos j inicia a precarizao, transformando

    o trabalho docente em atividades e tarefas do professor, visto como um mero

    recurso. Nesse sentido, temos a proliferao de programas de educao a distncia

    focada altamente no processo educacional dos profissionais da rea da educao.

    Ofertada de modo precrio, a educao a distncia tende a capacitar o professor de

    modo a adapt-lo s inovaes tecnolgicas, pois o foco no formao, mas sim

    treinamento, como nos aponta Leher e Barreto (2014, p.39):

    Se o investimento em tecnologias e se a estas atribuda a

    responsabilidade por mudanas na educao, o foco deixa de ser a

    formao de professores e passa a estar nas tarefas que este professor

    executar (na operacionalizao das novas tecnologias). Para tal, no

    ser preciso form-lo, mas submet-lo a treinamento, capacitao e

    qualificao, em cursos de educao continuada e a distncia.

    Em tempos de sociedade do conhecimento e sociedade da informao, s

    TICs dado o papel do modo mais adequado de como se transmitir os contedos

    pedaggicos. Ao professor resta organizar e transmitir os contedos das disciplinas,

    como se fosse uma espcie de prestador de servios, um recurso para o aluno ou o

    animador de espetculos audiovisuais (Zuin, 2006, p.947).

  • 31

    Nesse ciclo, o fetiche do determinismo tecnolgico promove a ideia de que a

    aprendizagem dos alunos depende dos materiais pedaggicos, e no mais

    essencialmente do professor, pois o aluno identificado como indivduo autnomo,

    capaz de administrar seus conhecimentos (Unesco, 2014, p.17). A manipulao

    ideolgica da sociedade do conhecimento ou sociedade da informao consiste em

    forjar a ideia de que vivemos uma era onde as geraes vivem intensamente a

    onipresena das tecnologias digitais (idem, p.16). Assim, de acordo com esse fetiche,

    por as tecnologias formarem uma fora autnoma das relaes sociais,

    consequentemente, estaramos vivendo a superao da sociedade de classes (Frigotto,

    2009), uma vez que teramos o uso desse potencial (tecnologias) ao nosso alcance,

    contribuindo para uma sociedade mais justa, democrtica e integrada (Unesco, 2014,

    p.9).

    Na realidade a escola tradicional, transmissiva, autoritria, verticalizada,

    extremamente burocrtica (Oliveira, 2004, p.1140) muito se transformou. Porm, isso

    no significa que tenhamos uma escola democrtica, com iguais condies de

    participao dos sujeitos ou oferecendo uma educao de qualidade. O que

    presenciamos so valores como autonomia, participao e democratizao (idem)

    sendo assimilados e reinterpretados por diferentes administraes pblicas (idem),

    que do corpo a instrumentos normativos. E, paralelamente, reestruturou-se o trabalho

    docente, a partir de determinados mecanismos que tornam cada vez mais grave a

    situao de precariedade do magistrio pblico.

  • 32

    CAPTULO 2: NEOLIBERALISMO E A REFORMA DA EDUCAO

    BRASILEIRA NOS ANOS 1990

    A importncia das polticas pblicas de carter social sade, educao,

    habitao, cultura, previdncia, dentre outras para o Estado capitalista , de modo

    inegvel, estratgica. Por um lado, tais polticas revelam as caractersticas prprias da

    interveno de um Estado submetido aos interesses do capital, alm de contriburem

    para assegurar os mecanismos de cooptao e controle social. Por outro lado, uma vez

    que o Estado se encontra disposio de classes antagnicas para seu uso alternativo,

    no pode se desobrigar dos compromissos com as distintas foras sociais em confronto

    (Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011). Com isso, buscar compreender o sentido que

    uma poltica pblica estabelece para o trabalho em educao significa entender o projeto

    social do Estado como um todo, juntamente com as contradies do momento histrico

    em questo.

    As polticas pblicas, particularmente as de carter social, so estrategicamente

    modificadas de acordo com o percurso dos conflitos sociais. E expressam a capacidade

    dos burocratas em administrar essas presses intrnsecas ordem social capitalista

    vigente. Por isso, para as autoras mencionadas anteriormente, uma anlise das polticas

    sociais obriga-nos a considerar no apenas a dinmica do capital, mas tambm os

    complexos processos sociais que com ele se confrontam.

    O objetivo do presente captulo iniciar a discusso sobre como se d o

    processo de precarizao existente no trabalho em educao, em especial, no trabalho

    docente. Processo esse formalizado a partir de mecanismos elaborados pelas polticas

    educacionais especficas. Para compreender essa relao, o captulo ser dividido em

    duas partes. A primeira iniciar a discusso do papel do Estado enquanto instncia que

    elabora e aplica as polticas pblicas em educao. Polticas estas que, emanadas do

    Estado, revelam a correlao de foras existente no interior do mesmo. De acordo com

    Shiroma, Garcia e Campos (2004), o discurso dos documentos oficiais muito nos

    esclarece sobre os interesses das instituies, o modo como elas buscam explicar a

    realidade e justificar suas aes.

    A segunda parte do captulo tem por inteno destacar os aspectos relevantes da

    reforma educacional promulgada pelo MEC nos anos 1990, que se d numa empreitada

    marcada pela forte influncia de organismos internacionais (BIRD, UNESCO, OCDE,

    BANCO MUNDIAL, dentre outros), que elaboram documentos com o discurso que

    orienta e justifica a necessidade da reforma educacional nos pases perifricos.

  • 33

    Particularmente, essa reforma se mostra importante para nossa discusso medida que

    ajusta os sistemas educativos lgica destrutiva produtivista do neoliberalismo. A

    gesto da educao se realiza por meio de tcnicas de racionalidade empresarial e

    econmica. Com esses critrios, o trabalho na educao literalmente dimensionado:

    seu contorno tido como perfeitamente delimitvel, sua substncia concebida como

    mensurvel e seus resultados entendidos como quantificveis (Alves, 2014, p.40).

    2.1 O PAPEL DO ESTADO NA DEFINIO DAS POLTICAS EDUCACIONAIS

    De modo frequente, nos deparamos com a palavra poltica empregada nos mais

    diversos sentidos: poltica empresarial, poltica sindical, poltica educacional,

    polticas sociais etc. Para alm desses sentidos, o uso corrente de poltica tambm

    prenuncia uma multiplicidade de significados. Em sua significao clssica, deriva de

    politiks e diz respeito quilo que da cidade, da plis (na Grcia Antiga), da

    sociedade, ou seja, que de interesse do homem enquanto cidado. J na Grcia Antiga,

    o filsofo Aristteles foi considerado um dos primeiros a tratar da poltica enquanto

    prtica intrnseca aos homens. Em sua obra A poltica introduz, pela primeira vez, a

    discusso sobre a natureza, as funes e a diviso do Estado e sobre as formas de

    governo (Ribeiro, 2016; Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011).

    Contudo, com um dos maiores politlogos do sculo XX, Norberto Bobbio

    (1909-2004), demarca-se o deslocamento que teria ocorrido no significado do termo:

    do conjunto das relaes qualificadas pelo adjetivo poltico, para a constituio de

    um saber mais ou menos organizado sobre esse mesmo conjunto de relaes (Shiroma,

    Moraes e Evangelista, 2011, p.7). Ou seja, falar em poltica enquanto prtica humana

    passa a significar relao de poder, este estaria ligado ideia de posse de meios para se

    obter vantagem (ou fazer valer a vontade) de um homem sobre outros, a exemplo do

    poder (legitimado) exercido pelo governante sobre os governados. Poltica passa, dessa

    forma, a designar um campo dedicado ao estudo da esfera de atividades humanas

    articulada s coisas do Estado (Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011, p.7).

    Na modernidade, o conceito de poltica encadeou-se, assim, ao do poder do

    Estado moderno capitalista ou sociedade poltica em atuar, proibir, ordenar,

    planejar, legislar, intervir, com efeitos vinculadores a um grupo social definido e ao

    exerccio do domnio exclusivo sobre um territrio [...] (Shiroma, Moraes e

    Evangelista, 2011, p.7). Com os estudos do filsofo Karl Marx (1918-1883), o Estado

    entendido como expresso das contraditrias relaes de produo instaladas na

  • 34

    sociedade civil, tendo nelas sua origem assim como so elas que, historicamente,

    determinam e delimitam suas aes. Para as autoras citadas anteriormente, o Estado,

    impossibilitado de superar as contradies constitutivas da sociedade e dele prprio -,

    tende a administr-las, suprimindo-as no plano formal, mantendo-as sob controle no

    plano real, como um poder que, procedendo da sociedade, coloca-se acima dela,

    estranhando-se cada vez mais em relao a ela (idem, p.8).

    Dessa forma, as polticas pblicas emanadas do Estado no so estticas, mas

    sim atravessadas pela correlao de foras. E nesse confronto, as contradies emergem

    nos fornecendo oportunidades para que as polticas sejam debatidas no processo de sua

    implementao (Shiroma, Garcia e Campos, 2004). De acordo com Ball (apud Shiroma,

    Garcia e Campos, 2004), polticas so, ao mesmo tempo, processos e resultados. Assim,

    em sua opinio, quando analisamos uma poltica no podemos esquecer de outras

    polticas que esto em circulao simultaneamente e que a implementao de uma pode

    inibir ou contrariar a de outra, uma vez que a poltica educacional interage com as

    polticas de outros campos.

    Em seus estudos sobre poltica educacional, Shiroma, Garcia e Campos (2004)

    afirmam que a literatura derivada de pesquisas comparativas aponta uma tendncia

    crescente homogeneizao das polticas educacionais, em nvel mundial; o que

    Jameson (apud Shiroma, Garcia e Campos, 2004) denomina de hegemonia discursiva.

    A construo desta hegemonia discursiva marcada pela forte influncia dos

    organismos multilaterais como BIRD, UNESCO, OCDE, PNUD, entre outros, que por

    meio de documentos e relatrios fornecem as bases para as inmeras reformas dos

    sistemas de ensino implementadas nos pases perifricos, a partir da dcada de 1990.

    Por meio dos discursos de documentos e relatrios, as agncias prescreviam as

    orientaes a serem seguidas, justificavam a necessidade das reformas e exportavam

    tambm as tecnologias para executar as reformas.

    Preparados em outros contextos, os documentos da poltica educacional de

    origem internacional no so aplicveis de modo imediato nos pases destinatrios,

    pois sua implementao perpassa pelo processo de adaptao, de acordo com os

    interesses polticos de cada local (Shiroma, Garcia e Campos, 2004). tal processo de

    ajustamento que, segundo as autoras mencionadas, possibilita ao leitor dos documentos

    conhecer quais os interesses reais (e implcitos) que permeiam as aes das instituies,

    a partir da identificao das contradies que resultam desse processo.

  • 35

    Por os documentos se apresentarem frequentemente de forma contraditria, as

    autoras mencionadas anteriormente afirmam que as intenes pblicas podem conter

    ambiguidades, contradies e omisses (Shiroma, Garcia e Campos, 2004, p.9). E,

    por isso, os documentos devem ser lidos com e contra outros, ou seja, compreendidos

    em sua articulao ou confronto com outros textos (idem, p.9). Para as mesmas, esse

    movimento de articulao com outros textos, coloniza o campo da educao com

    discursos produzidos em outros campos discursivos [...] (idem, p.9).

    A esse respeito, Fairclough (2001, p.128) aprofunda em seus estudos a dimenso

    da intertextualidade presente nos documentos elaborados pelas polticas:

    A mudana deixa traos nos textos na forma de co-ocorrncia de elementos

    contraditrios ou inconscientes mesclas de estilos formais e informais,

    vocabulrios tcnicos e no-tcnicos, marcadores de autoridade e familiaridade,

    formas sintticas mais tipicamente escritas e mais tipicamente faladas, e assim

    por diante. medida que uma tendncia particular de mudana discursiva se

    estabelece e se torna solidificada em uma nova conveno emergente, o que

    percebido pelos intrpretes, num primeiro momento, como textos

    estilisticamente contraditrios perde o efeito de colcha de retalhos, passando a

    ser considerado inteiro. Tal processo de naturalizao essencial para

    estabelecer novas hegemonias na esfera do discurso.

    Para o autor citado, essa propriedade que os discursos das polticas possuem de

    serem compostos de fragmentos de outros discursos, pode ser compreendida tambm

    como processos de luta hegemnica na esfera do discurso. A disputa entre diferentes

    grupos sociais para definir os propsitos da educao tem efeitos tanto sobre a luta

    hegemnica, no sentido mais amplo, como tambm afetada pela mesma. Ou seja, com

    a prtica discursiva, as classes sociais empreendem mudanas sociais.

    Com isso, Shiroma, Garcia e Campos (2004) afirmam que, embora os

    educadores sejam influenciados pelos discursos da poltica, no contexto das prticas

    ocorre o confronto entre o prescrito e a realidade. O que pode conduzir a consequncias

    no previstas pelos burocratas, levando a realizao de prticas diferentes do

    determinado.

    De fato, o processo histrico da educao demonstra o carter de centralidade

    que esta possui na poltica brasileira. E tal evidncia reforada nos estudos de

    Shiroma, Moraes e Evangelista (2011, p.12) que afirmam:

  • 36

    Pelo menos at os anos de 1970, as polticas pblicas para a educao

    sempre foram revestidas de uma forte motivao centralizadora,

    associada a discursos de construo nacional e a propostas de

    fortalecimento do Estado.

    Os discursos em questo sustentavam propostas de reformas na economia e na

    poltica, tendo a educao popular como a base essencial para a consolidao das

    mudanas em processo. Foi o que ocorreu no perodo de 1930 a 1937 e no desenrolar do

    Estado Novo, nos anos de construo do regime militar, entre 1964 e a crise econmica

    que caracterizou o fim do milagre. Tempos em que a construo e/ou o fortalecimento

    do Estado se dava simultaneamente construo e/ou a redefinio da nacionalidade

    educada (Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011).

    As muitas polticas educacionais brasileiras foram implantadas de modo a

    promover reformas no ensino de abrangncia nacional e, por isso, so caracterizadas

    como homogneas, coesas, ambiciosas em alicerar projetos para uma nao forte

    (Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011, p.12). Buscava-se, dentro desse contexto das

    reformas iniciais, preparar e formar a populao para se integrar s relaes sociais

    existentes, de modo especfico, s demandas do mercado de trabalho e aos interesses do

    capital que se consolidava no pas. Nesse sentido, as reformas do ensino empreendidas

    pelos sucessivos governos brasileiros constituram-se como forte instrumento de

    persuaso.

    Se no chegavam a compor um consenso no mbito da sociedade

    civil, no deixava de convencer a audincia bem informada que, com

    elas, estariam asseguradas pelo menos as condies bsicas de uma

    mudana qualitativa na sociedade (Shiroma, Moraes e Evangelista,

    2011, p.13).

    As autoras citadas demonstram que, por exemplo, nos anos 1930 o Estado

    atribuiu educao a funo de formar cidados e de reproduzir as elites. O

    objetivo era criar um ensino mais adequado modernizao que se almejava para o

    pas. No por acaso, os discursos da poltica educacional da poca faziam da escola,

    oficialmente, um lugar da discriminao social.

    Demarcavam-se, enfim, os termos de uma poltica educacional que

    reconhecia o lugar e a finalidade da educao e da escola. Por um

    lado, lugar da ordenao moral e cvica, da obedincia, do

    adestramento, da formao da cidadania e da fora de trabalho

    necessrias modernizao administrada. Por outro lado, finalidade

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    submissa aos desgnios do Estado, organismo poltico, econmico e,

    sobretudo, tico, expresso e forma harmoniosa da nao brasileira

    (Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011, p.22).

    Em outras pocas, como no regime militar, o Estado reivindicou para a educao

    o papel de formar o capital humano2. As reformas elaboradas no perodo foram

    fortemente influenciadas por recomendaes de agncias internacionais e relatrios

    vinculados ao governo norte-americano. Tratava-se, segundo Shiroma, Moraes e

    Evangelista (2011), de cumprir compromissos assumidos pelo governo brasileiro na

    Carta de Punta del Este (1961) e no Plano Decenal de Educao da Aliana para o

    Progresso, sobretudo, os compromissos derivados de acordos entre o MEC e a AID

    (Agency for International Development).

    A legislao educacional do perodo, compreendida por uma srie de leis,

    decretos-leis e pareceres, pretendia garantir o controle poltico e ideolgico sobre a

    educao escolar em todos os nveis e esferas. Visando construir sua ideologia, o regime

    transformou professores e alunos em capital humano. Para isso, a educao foi

    vinculada bandeira do desenvolvimento.

    [...], ou seja, educao para a formao de capital humano, vnculo

    estrito entre educao e mercado de trabalho, modernizao de hbitos

    de consumo, integrao da poltica educacional aos planos gerais de

    desenvolvimento e segurana nacional, defesa do Estado, represso e

    controle poltico-ideolgico da vida intelectual e artstica do pas

    (Shiroma, Moraes e Evangelista, 2011, p.29).

    Assim como nos governos anteriores, reproduziam-se as relaes sociais

    desiguais a partir da educao. A ampliao da oferta do Ensino Fundamental

    assegurava garantir formao e qualificao mnimas para a insero

    _____________________________________________________

    2 Segundo Frigotto (1997, p.92), a noo ou conceito de capital humano expressa um conjunto de

    elementos adquiridos, produzidos e que, uma vez adquiridos, geram a ampliao da capacidade de

    trabalho e, portanto, de maior produtividade. Porm, o que se fixou como componente bsico do capital

    humano foi o investimento em educao, ou seja, nos traos cognitivos e comportamentais.

    da classe trabalhadora no processo produtivo ainda pouco exigente. J para os filhos das

    fraes da burguesia, criava-se um ensino que formava mo de obra qualificada