lojas de brinquedos: espaÇos alinhados À lÓgica … · consumo, nesse período histórico, ......

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LOJAS DE BRINQUEDOS: ESPAÇOS ALINHADOS À LÓGICA DA CULTURA DE CONSUMO Michelle Chagas de Farias 1 Universidade Luterana do Brasil Unidade Canoas Primeiramente, destaco que este artigo faz parte dos estudos que venho desenvolvendo no Programa de Pós-Graduação em Educação da Ulbra, unidade de Canoas, para minha dissertação de mestrado. Tenho aqui, como objetivo, analisar espaços internos de lojas de brinquedos da cidade de Porto Alegre e Canoas, como mecanismos que captam sujeitos para o consumo. Para isso, parto do pressuposto de que os espaços internos das lojas de brinquedos não são unicamente destinados ao armazenamento de produtos a serem vendidos e à circulação de consumidores. Mais do que isso, esses espaços estão alinhados à lógica da cultura do consumo e, portanto, podem ser analisados como mecanismos componentes do dispositivo de consumo. Os principais autores através dos quais problematizo essas questões são Michel Foucault, Gilles Deleuze e Zygmunt Bauman. Esse artigo está organizado em duas seções. Na primeira, são expostos brevemente os referenciais teóricos que embasam as análises, a partir do modo como Foucault e Deleuze relacionam espaço e poder, e também sobre os conceitos de dispositivo e de cultura do consumo por Bauman. Na segunda seção, serão realizadas as análises, para tanto, o material empírico será composto por fotografias tiradas nos espaços das lojas de brinquedos, assim como de registros de um diário de bordo, elaborados no momento das visitas. Serão 3 os eixos de análise: disposição do mobiliário; espaços exclusivos das marcas e espaços interativos. ESPAÇO E PODER Iniciarei esta seção demonstrando como podem ser estabelecidas relações entre a materialidade dos espaços e o poder. Para isso, buscarei, em Michel Foucault e Gilles Deleuze, os argumentos. Nas reflexões que desenvolve no texto O Panoptismo, Foucault nos mostra como o espaço se torna útil para o regimento do poder. Expõe a forma como a configuração arquitetônica do Panóptico, construção em formato de anel toda dividida em celas, com uma 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade Luterana do Brasil (PPGEDU/ULBRA), Canoas/RS, Brasil. Bolsista Capes/Prosup. E-mail: [email protected].

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Page 1: LOJAS DE BRINQUEDOS: ESPAÇOS ALINHADOS À LÓGICA … · consumo, nesse período histórico, ... prazer está na tentativa de se alcançar a felicidade através de uma nova aquisição,

LOJAS DE BRINQUEDOS:

ESPAÇOS ALINHADOS À LÓGICA DA CULTURA DE CONSUMO

Michelle Chagas de Farias1

Universidade Luterana do Brasil – Unidade Canoas

Primeiramente, destaco que este artigo faz parte dos estudos que venho desenvolvendo

no Programa de Pós-Graduação em Educação da Ulbra, unidade de Canoas, para minha

dissertação de mestrado. Tenho aqui, como objetivo, analisar espaços internos de lojas de

brinquedos da cidade de Porto Alegre e Canoas, como mecanismos que captam sujeitos para o

consumo. Para isso, parto do pressuposto de que os espaços internos das lojas de brinquedos

não são unicamente destinados ao armazenamento de produtos a serem vendidos e à circulação

de consumidores. Mais do que isso, esses espaços estão alinhados à lógica da cultura do

consumo e, portanto, podem ser analisados como mecanismos componentes do dispositivo de

consumo. Os principais autores através dos quais problematizo essas questões são Michel

Foucault, Gilles Deleuze e Zygmunt Bauman. Esse artigo está organizado em duas seções. Na

primeira, são expostos brevemente os referenciais teóricos que embasam as análises, a partir do

modo como Foucault e Deleuze relacionam espaço e poder, e também sobre os conceitos de

dispositivo e de cultura do consumo por Bauman. Na segunda seção, serão realizadas as

análises, para tanto, o material empírico será composto por fotografias tiradas nos espaços das

lojas de brinquedos, assim como de registros de um diário de bordo, elaborados no momento

das visitas. Serão 3 os eixos de análise: disposição do mobiliário; espaços exclusivos das marcas

e espaços interativos.

ESPAÇO E PODER

Iniciarei esta seção demonstrando como podem ser estabelecidas relações entre a

materialidade dos espaços e o poder. Para isso, buscarei, em Michel Foucault e Gilles Deleuze,

os argumentos.

Nas reflexões que desenvolve no texto O Panoptismo, Foucault nos mostra como o

espaço se torna útil para o regimento do poder. Expõe a forma como a configuração

arquitetônica do Panóptico, construção em formato de anel toda dividida em celas, com uma

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade Luterana do Brasil (PPGEDU/ULBRA), Canoas/RS,

Brasil. Bolsista Capes/Prosup. E-mail: [email protected].

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torre ao centro, impõe certos comportamentos e “assegura o funcionamento automático do

poder” (2014, p. 195). Os indivíduos alojados na região periférica são vistos/vigiados pelo

indivíduo no centro, em contrapartida, este não pode ser visto pelos demais. Esses indivíduos,

citados por Foucault, têm, portanto, sua conduta moldada pela materialidade arquitetônica do

Panóptico, porque esta impede a visualização permanente da pessoa que os vigia. Nesse sentido,

ressaltamos a forma como o espaço pode se configurar como uma maquinaria/tecnologia de

poder, que age sobre os corpos, a partir de sua conformação arquitetônica, conforme teorizações

do autor também sobre espaços como os manicômios, escolas e prisões.

Para o propósito deste texto, tomo como diretriz o que diz o autor sobre o Panóptico

dever ser “compreendido como um modelo generalizável de funcionamento; uma maneira de

definir as relações do poder com a vida cotidiana dos homens” (2014, p. 198). Foucault indica

que o Panóptico seria um “esquema” possível de funcionar em outras configurações espaciais,

presentes em nossas vidas, ou seja, que os demais espaços, assim como o Panóptico, poderiam

sugerir determinados comportamentos.

A organização do espaço produz assim, efeitos de poder, poder de modificar o

comportamento. Para uma compreensão das relações entre espaço e poder, é preciso buscar

também em Foucault (2000 apud Marcello 2004, p. 200) o conceito de dispositivo:

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,

organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,

enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito

e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer

entre estes elementos.

Conforme o autor, dispositivo é um conjunto de mecanismos ou estratégias que operam

com um mesmo propósito. O dispositivo, desse modo, seria maior e composto por vários feixes

de mecanismos e tecnologias. Para o contexto desta pesquisa, o espaço das lojas de brinquedos

seria um mecanismo ou tecnologia que estaria operando em favor do dispositivo de consumo,

sendo esse dispositivo composto por diversos outros mecanismos, como a publicidade na

televisão, na internet, nas ruas, a mídia impressa, etc.

Compreendo, dessa forma, que os espaços das lojas de brinquedos seriam assim como

o Panóptico, um mecanismo através do qual os comportamentos são governados, dirigidos para

o consumo, se constituindo, portanto, numa fração do dispositivo do consumo. Nesse ponto,

para esta análise, se faz necessária uma contextualização histórica, considerando o contexto

social concebido por Foucault, chamado sociedade disciplinar, e o contexto proposto por Gilles

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Deleuze e nomeado por ele, de sociedade de controle, pois, embora o espaço seja um

mecanismo de poder em ambos, este opera de diferentes formas nesses contextos.

Foucault mostra, em Vigiar e Punir, uma sociedade disciplinar, em que "as disciplinas

são técnicas para assegurar a ordenação das multiplicidades humanas" (2014, p. 210), através

da submissão das forças e dos corpos em espaços fechados, para uma adequação à emergência

do sistema capitalista, tornando os corpos mais úteis a essa nova configuração social. Os corpos

eram "enquadrados", fixados, classificados, hierarquizados, esquadrinhados nos espaços das

fábricas, prisões, escolas. A delimitação dos espaços nesses lugares operava, sobretudo, como

um mecanismo de controle sobre os corpos, automatizando e desindividualizando o poder

(Foucault, 2014, p. 196). Esses mecanismos agem em favor do poder, não concentrados num

determinado indivíduo, mas sim em mecanismos internos, como na configuração dos espaços,

os quais causam, no caso dos indivíduos do Panóptico, a consciência de estarem sendo

observados, e com isso produzindo efeitos de poder sobre esses corpos. Para Foucault, portanto,

o espaço cumpria a função de disciplinar os corpos.

Para citar outro exemplo, considerando o disciplinamento produzido pelos espaços,

podemos tomar as salas de aula. Nesses locais, geralmente até os dias atuais, a área tida como

principal é o espaço reservado ao professor, e que fica, geralmente à frente. O objetivo desse

projeto é, entre outros, o de demonstrar o lugar que cada um deve ocupar, e que a atenção deve

estar direcionada ao professor, pois todos os assentos ali existentes são voltados para ele. Nas

palavras de Foucault, o espaço escolar seria uma "máquina de ensinar, mas também de vigiar,

de hierarquizar, de recompensar" (2014, p. 144), em suma, de disciplinar.

Gilles Deleuze (1972-1992, p. 1) propõe uma nova configuração social a partir da

Segunda Guerra Mundial. Atenta para a "crise generalizada de todos os meios de confinamento,

prisão, hospital, fábrica, escola, família", anunciando a sociedade de controle, ou seja, o

surgimento de um novo "regime de dominação" (1972-1992, p. 4). O autor apresenta a formação

de uma nova lógica, em que os confinamentos são moldes, e não mais fixos, em que os

indivíduos não mais compõem a massa, mas são em sua essência individuais. O poder de

controle é exercido ao "ar livre" sem a necessidade de confinamento, operando entre outros

fatores, pela sedução.

Acredito que posso me valer tanto das teorizações de Foucault, como das de Deleuze,

para a temática aqui em tela, pois os espaços das lojas de brinquedos operam como mecanismos

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do dispositivo de consumo, a partir de suas configurações, contudo, não podemos atribuir a eles

um poder unicamente disciplinar, mas principalmente, podemos lhes atribuir o poder de

sedução, conforme será mostrado na seção das análises.

CULTURA DO CONSUMO

Outra importante referência para a composição dessa seção são as reflexões de Zygmunt

Bauman acerca do consumo. Trazer para este trabalho as contribuições desse autor nos conduz

a uma possibilidade de compreensão das relações existentes entre a sociedade e os processos

que envolvem o consumo.

Inicio pontuando as distinções entre consumo e consumismo. Para o autor, o consumo

é uma condição inerente da sobrevivência biológica dos seres humanos, “uma característica e

uma ocupação dos seres humanos como indivíduos” (2008, p. 41). Praticamos o ato de consumir

desde a existência da humanidade, sendo essa prática atrelada às nossas vidas, já que precisamos

nos alimentar, nos vestir, nos locomover, entre outras muitas necessidades que ainda nem

existem, mas passarão a existir. Afinal, precisamos consumir para viver.

O consumo foi um atributo da sociedade sólido-moderna, assim nominada por Bauman,

um tempo em que “a satisfação parecia de fato residir, acima de tudo, na promessa de segurança

a longo prazo, não no desfrute imediato de prazeres.” (2008, p. 43). O autor nos mostra como

a prática do consumo visava uma “estocagem” que garantiria a estabilidade e também a

demonstração da solidez da riqueza, portanto, consumi-la de imediato seria um risco fatal. O

consumo, nesse período histórico, cumpria a função de garantir as reservas para que um futuro

pudesse ser planejado, portanto, os bens não eram desfrutados, mas reservados para uma

necessidade futura.

É preciso salientar que, atualmente, o consumo é cada vez mais intensamente praticado,

afinal, possuímos muitas necessidades, das quais depende não apenas a nossa sobrevivência,

mas, também, de nossas relações sociais atuais. No entanto, começa a entrar em cena uma nova

configuração social, o consumismo. Atualmente, vivemos a era do consumismo, que se instaura

em uma sociedade não mais sólida, mas líquido-moderna. O consumo cedeu espaço a um novo

“arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros”

(2008, p. 41). As práticas de consumo agora excedem as necessidades de sobrevivência, de

garantias de segurança, fixando seus valores na satisfação de desejos que nunca cessam. O

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prazer está na tentativa de se alcançar a felicidade através de uma nova aquisição, mas se trata

de uma “economia do engano” (2008, p. 65), porque a satisfação dura até o ponto de se desejar

novamente, e isso não finda, porque a promessa de felicidade, trazida pelas potentes campanhas

de marketing, logo é frustrada, mas, muito rapidamente refeita, levando a um novo desejo e a

uma nova aquisição.

A sociedade de consumidores busca a felicidade, e esta seria uma boa justificativa para

os incessantes atos de consumo. As promessas de felicidade justificam o consumismo, no

entanto, a felicidade perdura até o breve momento em que os bens oferecidos pelo mercado são

considerados obsoletos, em suma, “A sociedade de consumo prospera enquanto consegue tornar

perpétua a não satisfação de seus membros” (2008, p. 64). Do consumo ao consumismo, da

estocagem ao descarte, nada mais se acumula, tudo se substitui. Para os “cidadãos da era

consumista o motivo da pressa é, em parte, o impulso de adquirir e juntar. Mas o motivo mais

premente que torna a pressa de fato imperativa é a necessidade de descartar e substituir” (2008,

p. 50).

E é neste cenário de relações líquidas, promessas de felicidade e consumismo que está

inscrita esta pesquisa, sendo através das lentes dos Estudos Culturais que buscaremos propor

uma possibilidade de perspectiva para as relações de consumo que se estabelecem nas lojas de

brinquedos.

ANÁLISES

Para esta seção, considerando o referencial teórico exposto, serão três os eixos de

análise: o primeiro tratará da disposição do mobiliário nas lojas de brinquedos; o segundo dos

espaços exclusivos ocupados nessas lojas, estrategicamente pelas marcas mais famosas; e o

último, abordará o tópico sobre a criação de espaços interativos no interior dessas lojas.

Para realizar este estudo, primeiramente precisei definir que perfil de loja iria investigar,

considerando que brinquedos são comercializados em uma certa variedade de estabelecimentos

comerciais, como mercados, lojas de utilidades domésticas, de móveis, de eletroeletrônicos.

Optei por investigar as lojas que se detêm unicamente na venda de brinquedos. Essa escolha se

apoia no fato de que essas lojas se direcionam a um público-alvo específico, recorrendo a

estratégias de publicidade e de vendas também específicas para esse segmento de mercado. A

partir dessa escolha, coletei registros escritos e de imagens de 6 lojas de brinquedos de

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shoppings centers da cidade de Porto Alegre e de 2 lojas da cidade de Canoas, sendo uma de

shopping e outra não, ambas cidades situadas no Rio Grande do Sul.

DISPOSIÇÃO DO MOBILIÁRIO

Para este tópico, utilizarei a análise do Panóptico, desenvolvida por Foucault (2014),

que nos mostra como a organização dos espaços são escolhas que, intencionais ou não,

produzem efeitos no interior de sua relação com os seres humanos.

As lojas de brinquedos que visitei, na cidade de Porto Alegre e Canoas, em sua maioria,

pertencem a redes de franquias, situadas em shopping centers. A partir das visitas, pude elencar

alguns aspectos recorrentes e alguns peculiares. Inicialmente, o aspecto mais marcante foi a

aparência, em termos de layout de loja, muito semelhante à organização dos espaços de

supermercados, tamanha a quantidade de prateleiras (semelhantes às gôndolas dos

supermercados) e de produtos expostos. A diferença fica por conta da altura dessas prateleiras,

que é menor, em função da baixa estatura do público alvo, que são as crianças, e da disposição

desses móveis no espaço da loja, que algumas vezes não segue uma organização em linhas

paralelas, mas uma distribuição de maneira mais informal e lúdica.

Esse estilo de layout, com a disposição de prateleiras, paralelas ou não, possibilita a

acomodação de uma grande quantidade de produtos, promovendo, portanto, uma relação de

superexposição com o consumidor, sendo este estimulado a consumir além do que talvez

pretendesse, assim como recorrentemente acontece em redes supermercadistas. Entre outras,

uma razão para a escolha desse layout é, sem dúvida, a possibilidade de expor uma enorme

quantidade de produtos.

O ritmo de circulação dos consumidores entre as prateleiras/gôndolas de uma loja impõe

um ritmo de consumo, o mesmo que se vê em um supermercado. Raras vezes, um consumidor

mediano sai de um estabelecimento como esse com menos de meia dúzia de itens, mesmo que

desnecessários no momento e, nesse sentido, parece que a organização semelhante do espaço

de uma loja de brinquedos se propõe a essa mesma finalidade. Aproximando essa descrição,

das reflexões de Foucault, em O Panoptismo, podemos perceber o quanto o espaço se torna útil

para o regimento do poder, pois, programar, através do layout dos espaços, as reações e

comportamentos dos consumidores, é, certamente, uma prática de poder. Nesse caso, um poder

que atua no sentido de contribuir com o dispositivo de consumo, afinal, não devem faltar opções

nas prateleiras para que se possa saciar seu mais recente desejo.

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A materialidade desses espaços, com layouts que permitem uma farta exposição de

produtos, juntamente com outras estratégias, como a organização da exposição das mercadorias

em pontos específicos, o colorido do ambiente, a iluminação, tudo isso não nos deixa passar

imunes, conduzindo não somente nossos corpos, mas também nossa maneira de pensar e agir.

Figura 1: Saturação dos espaços em loja de brinquedos no Shopping Canoas

Em uma das lojas fotografadas (Fig. 1), as gôndolas posicionadas de maneira transversal

à parede da esquerda são tantas, que se fundem no registro fotográfico. Visivelmente, a altura

não ultrapassa 1,4 m, o que permite uma ótima visualização e acesso aos brinquedos, pelas

crianças. Como se pode perceber, a quantidade de itens expostos é muito grande.

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Figura 2: Corredores e gôndolas em loja de brinquedos no Shopping Iguatemi

Nesta imagem (Fig. 2), podemos observar um corredor formado por

prateleiras/gôndolas, assim como os que encontramos nas redes de supermercados. Percebe-se

também, nesta loja, a baixa altura das prateleiras, o que facilita o acesso aos brinquedos, por

parte das crianças.

Além da disposição das gôndolas nessas lojas, se observa também uma estratégia de

vendas já consolidada e muito praticada em outros estabelecimentos, como supermercados ou

lojas de departamentos, que são os mobiliários, que ficam logo ao lado dos caixas. Geralmente

são dispostos em fileira de modo a formar um corredor que define o sentido da fila que se forma

próximo aos caixas. Essa estratégia é muito eficaz para o incremento das vendas e se insere na

classificação de vendas por impulso. Segundo Mendes

A venda por impulso tem o objetivo de fisgar o cliente quando ele pensa que já

terminou suas compras naquela loja. É justamente nesse percurso até os caixas que os

equipamentos, conhecidos como check-stands ou basket opportunity, são

posicionados estrategicamente, recheados de produtos atrativos e de baixo custo,

assim o cliente acaba comprando sem muita reflexão, simplesmente porque estão ali

ao alcance de suas mãos e parecem uma boa oportunidade. (2015)

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Figura 3: Check-stands em loja de brinquedos no Shopping Bourbon Country

As prateleiras com as laterais arredondadas que aparecem em outra loja fotografada

(Fig. 3) estão posicionadas paralelamente ao balcão do caixa, de forma que a fila se organiza

de um lado e do outro delas. Os itens expostos geralmente são pequenos e de baixo valor

unitário, e estão bem ao alcance das mãos, o que também contribui para a venda por impulso.

Em relação à disposição do mobiliário nas lojas de brinquedos, podemos afirmar que o

espaço se torna, dentro dessas lojas, mais um mecanismo do dispositivo de consumo, pois

conduz, de maneira muito sutil, o consumidor ao ato de compra. A respeito dessa sutileza,

Foucault declara sobre a importância do dispositivo do Panóptico ser um mecanismo de

controle dos corpos, que automatiza e desindividualiza o poder (1987, p. 167), isso indica o

quão poderoso pode se tornar um mecanismo de poder, quando age com sutileza.

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ESPAÇOS EXCLUSIVOS DAS MARCAS

Neste eixo de análise, buscarei demonstrar como os espaços organizados de maneira a

evidenciar uma determinada marca se constituem em poderosos mecanismos de sedução a favor

do dispositivo de consumo.

A proliferação de produtos disponíveis para compra, impulsionada pela intensificação

do intercâmbio comercial que vivemos a partir dos anos 1990, juntamente com o

desenvolvimento da indústria, resultou em um cenário de concorrência acirrada no mercado.

Desde então, são introduzidas cada vez mais estratégias a fim de manter ou elevar as vendas.

Atualmente, o consumo de qualquer produto está fortemente ligado aos valores

simbólicos a ele agregados. Canclini (2007, p. 40) descreve quatro tipos de valores: valor de

uso e valor de troca, que referem-se principalmente à materialidade do objeto, e valor signo e

valor símbolo, que se referem aos processos de significação. Valor de uso tem a ver com a

dimensão funcional do objeto, e valor de troca com o preço do item no mercado. Para esta

análise, serão úteis as considerações acerca dos valores relacionados aos processos de

significação, que são o valor signo, que decorre das conotações simbólicas associadas ao objeto,

e o valor símbolo que está associado aos rituais ou atos sociais particulares ou à afetividade.

É importante ressaltar que os produtos não são consumidos somente em sua

materialidade, mas também, ou principalmente, em suas significações. Canclini (2007, p. 41)

explica: “a sociedade está estruturada com dois tipos de relações: as de força, correspondentes

ao valor de uso e ao de troca; e, dentro delas, entrelaçadas com estas relações de força, há

relações de sentido, que organizam a vida social, as relações de significação”.

Dessa maneira, é compreensível que cada vez mais se busque evidenciar esses símbolos

nos espaços das lojas, como uma estratégia de sedução para o consumo. Símbolos, que são

construídos muito eficazmente em campanhas de marketing e de branding2.

2 Branding ou Brand management (do inglês, em português também Gestão de Marcas). Brand é uma coleção de

imagens e ideias que ilustram um produtor econômico; para ser mais específico, refere-se aos atributos descritivos

verbais e símbolos concretos, como o nome, logo, slogan e identidade visual que representam a essência de uma

empresa, produto ou serviço. Branding pode ser definido como o ato de administrar a marca de uma empresa.

Ele também pode ser considerado como o trabalho de construção e gerenciamento de uma marca junto ao mercado.

A construção de uma marca forte para um produto, uma linha de produtos ou serviços é consequência de um

relacionamento satisfatório com o mercado-alvo. Quando esta identificação positiva se torna forte o bastante, a

marca passa a valer mais do que o próprio produto oferecido. Branding é o conjunto de práticas e técnicas que

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Podemos visualizar uma demarcação do espaço interno das lojas de brinquedos, através

do posicionamento de displays expositores, produzidos especialmente para produtos de

determinadas marcas. Sendo um expositor ou mostruário, o display não é utilizado somente

para expor determinados produtos, mas principalmente para que fiquem em destaque no ponto

de venda. Geralmente, esses móveis são prateleiras em formatos diversos que não chegam a um

metro de largura. Mas, em uma das lojas de brinquedos recém inaugurada, observei que os

pequenos displays foram quase totalmente substituídos por espaços exclusivos com displays

bem maiores, que concentram praticamente toda a linha de produtos da marca, atribuindo assim,

uma maior visibilidade para a imagem da marca.

Além desses móveis personalizados, há também outras formas de demarcação de

espaços, como arcos, tapetes ou banners, pendurados ou fixados nas paredes. É muito evidente

a superexposição das marcas nesses espaços. Essa organização, além de demarcar espaço,

garante que a marca ou o produto seja lembrado, pela beleza e criatividade ali empregados.

Figura 4: Display da marca Baby Alive em loja de brinquedos no Shopping Iguatemi

visam a construção e o fortalecimento de uma marca. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Branding>.

Acessado em: 3 jan. 2017.

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Figura 5: Display em formato de arco da marca Lego em loja de brinquedos no Shopping Iguatemi

Figura 6: Banners e gôndolas personalizadas da marca Barbie em loja de brinquedos no Shopping Iguatemi

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Figura 7: Espaço da marca Disney em loja de brinquedos no Shopping Iguatemi

O que se vê é uma espécie de setorização, em que determinadas marcas reclamam para

si um espaço exclusivo e único. É evidente que a ampla área da loja permite essa setorização,

pois as gôndolas e os enormes displays demandam muito espaço, além de precisarem de um

certo distanciamento das demais marcas. Observando esses espaços através das Figuras 4, 5, 6

e 7, e tomando uma visão panorâmica da loja, essa estratégia, além de promover a visibilidade,

favorece também sua valorização, pois cada espaço é muito bem elaborado, de forma criativa e

com materiais diferenciados e que produzem um distinto efeito visual. Todos esses elementos

contribuem para a fixação do valor signo da marca, conforme Canclini (2007), funcionando

como um forte recurso de sedução, que impulsiona e leva ao consumo, tornando os produtos

altamente desejáveis.

ESPAÇOS INTERATIVOS

Outra recorrência em três lojas de brinquedos recém-inauguradas é a inserção de

espaços destinados à atividades e experimentação, ou seja, locais, no interior dessas lojas, em

que as crianças podem realizar atividades ou brincadeiras, de forma orientada ou não. Dessa

forma, pretendo mostrar como o alto investimento nessa nova configuração de loja é ao final

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mais uma estratégia direcionada ao consumo, um aprimoramento das táticas de vendas que

acaba por transformar esses espaços em “templos do consumo”.

Uma das lojas, situada em um shopping na cidade de Porto Alegre, construiu uma

passarela, cheia de bifurcações, próxima ao teto (Fig. 8), havendo em sua extensão várias

possibilidades de atividades, como uma piscina de bolinhas (Fig. 9), uma grande televisão em

frente à uma pequena arquibancada, banquinhos e uma mesa com peças de montar, uma

sequência de pequenos cômodos, com telas de jogos interativos e ainda um foguete, que vai da

passarela suspensa até o chão do térreo da loja.

Figura 8: Escada e passarela em loja de brinquedos no Shopping Iguatemi

Por questões de segurança, toda a passarela, inclusive a escada, são prolongadas no

sentido da altura com telas de nylon. Percebe-se um cuidado também com o projeto visual. O

espaço é todo colorido e iluminado e o teto preto realça as cores utilizadas e a iluminação,

tornando o espaço muito convidativo. Essa estratégia, certamente, também tem como objetivo,

aumentar o tempo de permanência dos clientes na loja. Uma evidência disso são alguns bancos

colocados próximos à escada que conduz à passarela, assim, os pais das crianças que lá sobem

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para brincar podem esperá-las confortavelmente. É sabido, nesse meio, que, para determinados

segmentos de lojas, o maior tempo de permanência dos clientes nesses espaços pode também

aumentar as possibilidades de consumo, portanto, novamente, identificamos o espaço como um

mecanismo do dispositivo de consumo, já que é capaz de governar nosso comportamento.

Figura 9: Piscina de bolinhas em loja de brinquedos no Shopping Iguatemi

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Figura 10: Espaço para experimentação em loja de brinquedos no Shopping Iguatemi

Outra loja inaugurada em agosto do ano 2016, na cidade de Canoas, apresenta também

dois espaços que oportunizam atividades dentro da loja: um tapete no chão destinado à

experimentação dos brinquedos e um escorregador em formato de foguete. Toda a loja foi

cuidadosamente projetada com elementos muito coloridos e que exploram os sentidos,

conformando um grande apelo visual. Essa estratégia de espaços com atividades, certamente

tem como objetivo atrair as crianças para o interior da loja, como também aumentar o tempo de

permanência dos clientes ali, afinal o brincar dentro da loja pode suscitar novos desejos.

Aparentemente, a oferta de espaços como esses apresentam grande aceitação por parte

das crianças e até pelos adultos, pois, somada à estratégia das brincadeiras, se tem no interior

dessas lojas, um banquete visual que mexe com nossos sentidos. Certamente, somos seduzidos

e levados a comportamentos condizentes com a sociedade do consumo, já que a “felicidade” de

nossos filhos está em jogo.

Uma loja de brinquedos repleta de crianças brincando e se divertindo, talvez seja a

imagem que nos venha à mente, quando pensamos nesse segmento de mercado. Essa imagem

romantizada e construída, provavelmente, é o resultado de inúmeras campanhas de marketing

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e filmes que, mesmo não intencionalmente, desfocam a atenção do objetivo primeiro das lojas,

que é o consumo. Nesse sentido, essa estratégia de novos espaços com oferta de atividades,

além de funcionar como um atrativo, pode também desviar a atenção da frieza do ato de

consumo, que é afinal o objetivo central desses estabelecimentos.

Creio portanto, que todas essas estratégias acabam mesmo por desviar o foco do ato de

consumo e nos levam a consumir, sem muito julgamento sobre o que estamos fazendo.

Trazendo as reflexões de Bauman (2008) sobre o consumo, conseguimos compreender as

razões para tamanho esforço desse mercado em promover o consumo, e mais do que isso, o

nosso consentimento sobre essa nova forma de vida pautada na necessidade incansável de

satisfazer desejos que nunca cessam.

REFERÊNCIAS

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2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.

DELEUZE, Gilles. “Post-Scriptum sobre as sociedades de controle”. Conversações 1972-1990.

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,

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MARCELLO, Fabiana de Amorim. O conceito de dispositivo em Foucault: mídia e produção

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MENDES, Cristiane. Venda mais, venda por impulso. Disponível em:

<http://www.mmdamoda.com.br/venda-mais-venda-por-impulso/>. Acessado em 18 dez.

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