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línguas e educação: construir e partilhar a formação
(PTDC/CED/68813/2006 / FCOMP-01-0124-FEDER-007106)
2007 > 2010
Que promoção da compreensão na leitura esperar do manual de Língua
Portuguesa?
Maria da Esperança Martins ([email protected])
Cristina Manuela Sá ([email protected])
Universidade de Aveiro (CIDTFF e LEIP)
Palavras-chave: transversalidade da língua portuguesa, compreensão na leitura, manuais
escolares, Ensino Básico
Resumo
A investigação recente em Didáctica tem revelado um crescente interesse pelos processos de
elaboração, adopção e utilização do manual escolar, bem expresso no número e na
profundidade dos estudos realizados sublinhando a importância deste recurso nas práticas
educativas.
Esta problemática redobra de interesse num momento em que se perspectiva a aplicação de
novos programas de Português para o Ensino Básico.
Cabe neste contexto a reflexão sobre o papel que deverá ser atribuído aos manuais de Língua
Portuguesa na promoção da abordagem transversal do ensino/aprendizagem da língua
materna. Gostaríamos de associar esta perspectiva à aquisição e desenvolvimento de
competências em compreensão na leitura, de importância central neste domínio.
Temos como base um estudo em curso desde 2006, no âmbito de um projecto de
doutoramento, centrado na análise de manuais escolares de Língua Portuguesa para o Ensino
Básico, com recurso a uma grelha incluindo categorias associadas à aquisição e
desenvolvimento de competências em compreensão na leitura.
Tendo presentes as questões de natureza educativa que são essenciais para a discussão do
papel do manual escolar na promoção da literacia, este texto pretende (i) analisar os aspectos
positivos e negativos do contributo do manual de Língua Portuguesa, encarado como
instrumento de apoio do processo de ensino/aprendizagem da leitura, e (ii) indicar outros
contributos esperados, tendo em conta a promoção do sucesso escolar e a inserção numa
sociedade de informação como a nossa.
1. Introdução
No actual contexto educativo nacional e internacional, a procura da qualidade no ensino tem
como principal objectivo a construção da cidadania. Por conseguinte, a formação do indivíduo
deve estar orientada para o conhecimento e para a avaliação crítica das questões sociais,
cívicas, políticas e humanas e é função da Escola preparar o aluno para se tornar um cidadão
consciente, que participe, de forma activa e crítica, na construção da sociedade.
Uma formação com estas características requer uma abordagem transversal do processo de
ensino/aprendizagem, pressuposta pelo Currículo Nacional do Ensino Básico (Ministério da
Educação, 2001).
No contexto desta formação transversal, “o domínio da Língua Portuguesa é decisivo no
desenvolvimento individual, no acesso ao conhecimento, no sucesso escolar e profissional e
no exercício pleno da cidadania.” (Ministério da Educação, 2001: 31).
O ensino-aprendizagem da língua portuguesa pressupõe o desenvolvimento de competências
em quatro domínios: Ouvir/Falar, Ler, Escrever e Funcionamento da língua.
Conscientes da importância do contributo da leitura para o sucesso educativo e para a
formação pessoal e social, decidimos centrar o nosso estudo no desenvolvimento de
competências em compreensão na leitura e identificar e caracterizar a forma como o acto de
ler é perspectivado nos manuais de Língua Portuguesa do Ensino Básico.
Nele procuraremos algumas respostas para uma questão central: Que promoção da
compreensão na leitura esperar dos manuais de Língua Portuguesa?
Trata-se de determinar se os manuais actualmente existentes cumprem a função de contribuir
para a formação de leitores competentes e, caso tal não aconteça, de formular directrizes que
permitam elaborar e seleccionar outros mais adequados.
2. Compreensão na leitura e ensino/aprendizagem da língua portuguesa
Desde há muito que se reconhece o papel de relevo que a língua portuguesa desempenha na
aquisição e desenvolvimento de múltiplos saberes, o que se tem traduzido no reforço da
consciência da sua transversalidade ao nível do currículo.
A língua portuguesa é decisiva no desenvolvimento individual e na integração social. Deste
modo, desempenha um papel fundamental na aquisição e desenvolvimento das competências
essenciais, definidas pelo Ministério da Educação (2001), que se situam nos domínios da
relação interpessoal, do desenvolvimento da autonomia e organização pessoal e da capacidade
de resolução de problemas, sendo também consideradas como transversais, porque são
primordiais para o sucesso educativo e na vida quotidiana.
A realização deste propósito passa, entre outros aspectos, pelo desenvolvimento de
competências no domínio da compreensão na leitura, sobre as quais incide o nosso estudo,
como foi acima referido.
Neste âmbito, muitas são as mais valias a adquirir pelos alunos. No nosso estudo, destacamos
algumas dessas mais valias.
No contexto social, é importante ser capaz de seleccionar fontes de informação, o que implica
a sua avaliação.
É também fundamental ter competências de processamento da informação, que pressupõem o
domínio de estratégias de leitura e promovem o controlo consciente de cada tarefa de leitura.
Igualmente importantes são a aquisição e desenvolvimento de conhecimento linguístico e
comunicativo que permita reconhecer modelos organizacionais da informação, geradores de
diferentes tipos de textos. A finalidade é tornar possível a leitura e compreensão de uma
panóplia de tipos de textos e desenvolver a capacidade de actuar em função da informação
obtida.
Neste contexto, pode-se perceber que o acto de ler ultrapassa os limites da sala de aula e que,
por essa razão, a Escola precisa de estar pronta para estabelecer práticas de leitura válidas em
contexto escolar e extra-escolar. Por conseguinte, é preciso organizar o trabalho escolar em
torno da leitura de tal modo que os alunos possam vivenciar situações diferenciadas, que
contemplem diversos objectivos possíveis do acto de ler.
Paralelamente, é fundamental cultivar a leitura como fruição do texto, feita pelo simples prazer
de ler, nem sempre muito valorizada pela nossa sociedade. Afinal, a motivação para a leitura
conduz à criação e reforço de hábitos de leitura que também permitem desenvolver
competências em compreensão na leitura.
É, ainda, preciso superar algumas concepções tradicionais sobre o ensino/aprendizagem da
leitura. A principal é a de que ler se resume à descodificação, isto é, a converter letras em
sons, sendo a compreensão consequência natural dessa acção. Por conta desta concepção
errada, a escola tem produzido bons “descodificadores” de texto, mas “leitores” com muita
dificuldade em compreender os textos com que se confrontam no seu dia-a-dia.
Assim, o processo de leitura requer uma aprendizagem mais ampla, que se inicia nos
primeiros anos de escolaridade e deve continuar ao longo da vida, em contexto formal e
informal, proporcionando o contacto com uma diversidade, tão grande quanto possível, de
textos e situações de leitura.
A leitura deve ser encarada como um processo complexo, que depende não só do ensino
eficiente da decifração, mas também do ensino explícito de estratégias.
A decifração implica a aquisição e desenvolvimento da consciência fonológica e das
correspondências fonema/grafema.
A compreensão na leitura depende da aquisição e mobilização de determinadas estratégias de
leitura: é preciso que os leitores criem expectativas em relação ao texto, formulando hipóteses
que serão confirmadas (ou não) através da sua compreensão; que façam inferências a partir do
contexto ou do conhecimento prévio que possuem; que identifiquem as ideias principais do
texto; que se mostrem capazes de identificar a forma como a informação foi organizada no
seu interior, de acordo com estruturas textuais, mais ou menos formais.
Os recursos didácticos têm um lugar importante neste contexto e, de entre eles, o manual
assume papel de destaque.
No nosso estudo, centramo-nos nos manuais escolares de Língua Portuguesa e no perfil de
leitor que estes contemplam. Dadas as suas fragilidades e limitações a este nível, que fomos
constatando através da análise de manuais em curso, procuraremos definir um conjunto de
pressupostos para a sua melhoria, no sentido de passarem a dar resposta às exigências da
actual Sociedade da Informação.
3. Contributo do manual escolar de Língua Portuguesa para a promoção da
compreensão na leitura
Na actualidade, os recursos didácticos que se usam no desenvolvimento do currículo são
objecto de análise e reflexão, com parte de um esforço orientado para resolver problemas de
qualidade do ensino e para responder às novas exigências de formação dos contextos sociais
em que a aprendizagem ganha sentido.
No caso específico da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa, o manual escolar é
uma importante ferramenta, que deve possibilitar a aquisição e o desenvolvimento de
competências no domínio da comunicação. Pode, de igual forma, ajudar a desenvolver
metodologias de estudo e estratégias de raciocínio verbal importantes para a resolução de
problemas do dia-a-dia do cidadão comum. Poderá, igualmente, permitir o acesso ao
património escrito que constitui um arquivo vivo da experiência cultural, científica e
tecnológica da Humanidade.
É no âmbito destas potencialidades que questionamos a forma como o manual escolar de
Língua Portuguesa condiciona especificamente o processo de aquisição e desenvolvimento de
competências em compreensão na leitura.
3.1. Contributo esperado
No caso específico da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa, o manual escolar tem
como uma das suas finalidades essenciais ajudar a formar leitores competentes, nos termos
acima referidos (Morais, 2006).
Dada a importância dos manuais escolares de Língua Portuguesa, a sua elaboração, adopção e
utilização dentro e fora da escola devem assentar na consciência da transversalidade da língua
portuguesa e do contributo das competências adquiridas através do seu ensino/aprendizagem
para o sucesso do aluno a nível escolar e social e na necessidade de promover um
ensino/aprendizagem da língua materna que conduza efectivamente ao desenvolvimento de
competências transversais em compreensão na leitura.
As competências de leitura que se espera desenvolver através da consecução de determinados
objectivos de leitura não devem ser específicas da disciplina. Antes devem ter um carácter
integrador, transversal. Não se pretende a formação de um aluno para ser bem sucedido nos
momentos de avaliação da disciplina de Língua Portuguesa, mas incapaz de processar a
informação que o cerca e de agir em função dela para corresponder às exigências literácitas
no contexto das outras disciplinas ou fora da escola.
Enquanto instrumento pedagógico e cultural, o manual escolar circunscreve um corpo de
saberes que, não constituindo, só por si, os saberes que são transmitidos e/ou adquiridos na
escola, é um factor decisivo de estruturação do universo de referência da comunicação
pedagógica.
Assim, no que respeita à proveniência dos conteúdos, o manual deve ser aberto e pautar-se
pela flexibilidade e diversidade de informação que disponibiliza. As fontes que refere devem
ser diversificadas e referidas de forma explícita, para que o aluno/leitor possa alargar os seus
horizontes, se assim o entender.
A selecção de conteúdos que contempla não deve estar exclusivamente associada aos saberes
disciplinares. Deve também contemplar aspectos culturais de carácter transversal e relevantes
na sociedade em questão, nomeadamente os que podemos relacionar com a educação para a
cidadania, que atravessa todo o currículo.
Para além de se adequar ao nível dos alunos, a apresentação dos conteúdos deve organizar-se
de forma espiralada, complexificando progressivamente as mensagens culturais.
As actividades que o manual propõe, a fim de concretizar estratégias didácticas relevantes,
devem permitir desenvolver o aluno como leitor competente. Assim deverão sugerir
caminhos para a abordagem da leitura como um acto sociocultural, princípio esse que implica
a capacidade de adaptar as suas estratégias de leitura aos contornos específicos de cada
situação desta natureza.
Devem ser diversificadas e apresentar níveis de complexidade distintos. Deverão ser
desenvolvidas, ora em grupo, ora individualmente, com recurso à consulta do próprio
manual, mas também a outras fontes de informação relevantes para a formação do aluno.
As actividades destinadas a favorecer a aquisição e desenvolvimento de competências em
compreensão na leitura devem visar a resolução de problemas e mobilizar a experiência dos
alunos a que se destinam e os seus interesses.
Igualmente importante é possibilitar que os alunos se envolvam em actividades que
impliquem a aquisição de conhecimento e o desenvolvimento de atitudes, hábitos, normas e
valores que possibilitem a realização individual e a integração social. Desta forma, para além
da obtenção de conhecimento, possibilita-se a aquisição e desenvolvimento de competências
e valores que fazem com que o aluno vá mais além da resolução técnica de actividades
académicas.
As actividades devem dirigir-se essencialmente à compreensão e à análise em detrimento da
identificação, repetição e memorização de informação. Neste contexto e tendo presente as
potencialidade de uma abordagem transversal do ensino/aprendizagem da língua portuguesa,
o domínio da leitura deve ser trabalhado em interacção com os restantes domínios previstos
nas directrizes do Ministério da Educação, em especial com a oralidade e a escrita.
O manual deve ainda estimular o diálogo com as experiências de aprendizagem concretizadas
fora da escola.
Os recursos didácticos disponibilizados e outros sugeridos devem ser diversificados e
permitir a adaptação ao nível, possibilidades e interesses dos alunos a que se destina.
Por tudo isto somos de opinião de que o manual precisa de enfatizar uma visão integradora
competências em compreensão na leitura, objectivos a ela associados, conteúdos relevantes
para a formação de leitores competentes, estratégias didácticas e actividades de leitura e
recursos didácticos, para ser um instrumento de promoção da compreensão leitora. Dada a
sua multiplicidade, o manual deve apresentar um formato flexível e permitir a adaptação,
complemento e melhoria. Os alunos e professores a quem se destina são muito heterogéneos
e as exigências ao nível da competência leitora reflectem também essa heterogeneidade.
Para que se trabalhe efectivamente a transversalidade da língua portuguesa e tendo presente a
função social da Escola, os manuais da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa
devem incutir no aluno compromissos, crenças e interesses, isto é, suscitar uma função
transformadora em detrimento de uma função reprodutora. Devem também perseguir as
grandes finalidades educativas e ir além dos objectivos da área curricular.
É ainda importante que os manuais se mobilizem para ajudar a escola a despertar no aluno o
gosto pela leitura e a desenvolver nele hábitos a ela associados.
3.2.Contributo efectivo
Estes pressupostos levaram-nos à concepção de um projecto intitulado Os manuais e a
transversalidade da língua portuguesa na compreensão na leitura. Um estudo no Ensino
Básico. 1 Orientaram-nos três objectivos.
O primeiro deles consiste na caracterização do perfil de leitor a desenvolver, tendo em conta
as actuais necessidades em termos de sucesso escolar e de integração social. Para a sua
consecução, é necessário determinar as linhas gerais de um ensino da língua portuguesa que
favoreça o desenvolvimento de competências transversais em compreensão na leitura, tendo
por base a literatura da especialidade, e relacionar essas linhas gerais com as directrizes
propostas pela política educativa portuguesa para este domínio.
O segundo objectivo implica analisar a adequação dos manuais de Língua Portuguesa para o
Ensino Básico ao desenvolvimento de competências transversais associadas à compreensão
na leitura. Deste modo, torna-se necessário caracterizar a forma como a esta é abordada nos
manuais de Língua Portuguesa dos vários ciclos do Ensino Básico e comparar o perfil traçado
com os princípios definidos pela literatura da especialidade e as directrizes propostas pela
política educativa portuguesa para este domínio.
O terceiro objectivo consiste em contribuir para a definição de princípios que promovam a
elaboração de manuais mais adequados ao desenvolvimento de competências transversais
associadas à compreensão na leitura.
Procuramos resposta para questões como: Estarão os manuais escolares de Língua Portuguesa
ao serviço de uma crescente consciencialização da importância do desenvolvimento de
competências de compreensão na leitura? Será que facilitam o desenvolvimento de
competências neste domínio associado à operacionalização da transversalidade da língua
portuguesa? Quais os seus contributos para uma educação escolar de sucesso?
1 Com o financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
O nosso corpus, composto por nove manuais de Língua Portuguesa, foi constituído tendo em
conta critérios de selecção como: ligação aos três ciclos do Ensino Básico (incidindo nos anos
terminais), amplitude da sua influência (relacionada com o número de escolas em que foram
adoptados) e a sua representatividade em termos de tendências editoriais (implicando a
selecção de manuais de várias editoras e pressupondo projectos editoriais diferentes).
Para proceder à análise dos manuais, elaborámos uma grelha tendo em conta os princípios
definidos pela literatura da especialidade e as directrizes propostas pela política educativa
portuguesa para este domínio, que deverá tornar possível a recolha de dados significativos e a
sua análise e interpretação, em função dos objectivos formulados.
Na maioria dos manuais de Língua Portuguesa para o Ensino Básico analisados, a
leitura apresenta características pouco compatíveis com os objectivos que este domínio visa
no Currículo Nacional para o Ensino Básico (Ministério da Educação, 2001).
A partir de uma leitura atenta da literatura da especialidade e da análise de manuais que está
em curso, podemos afirmar que o manual de Língua Portuguesa continua a não privilegiar
práticas de compreensão na leitura capazes de formar cidadãos-leitores: não conduzem a
leituras plurais dos textos propostos, nem à participação activa do leitor na construção dos
sentidos desses mesmos textos.
Partimos do pressuposto de que a leitura deve escrever-se sempre no plural, tal é a diversidade
de usos e contextos a que ela se encontra ligada.
Assim, o que com frequência chega aos professores e aos alunos, sob a forma de manuais, são
imagens simplificadas resultantes de interpretações subjectivas dos princípios e das opções
curriculares e didácticas determinantes do processo de ensino e de aprendizagem, feitas por
professores isolados ou pequenos grupos de professores.
O trabalho de análise já realizado permitiu-nos construir algumas ideias importantes sobre
fragilidades de manuais de Língua Portuguesa ao nível do ensino-aprendizagem da leitura e
da aquisição e desenvolvimento de competências neste domínio.
Enquanto instrumento de promoção da leitura e do desenvolvimento de competências de
compreensão escrita, o manual de Língua Portuguesa deve referir claramente as competências
a adquirir e desenvolver no domínio da leitura e os objectivos que é esperado que o aluno
atinja.
Relativamente às competências, verificamos que os manuais analisados privilegiam as
competências específicas em detrimento das competências gerais e transversais. Esta
observação evidencia a não valorização de uma abordagem transversal do
ensino/aprendizagem da língua portuguesa, refugiando-se numa visão disciplinar da sua
gestão curricular.
No que diz respeito aos objectivos que permitem a aquisição e desenvolvimento das
competências, ou não são especificados de forma clara, ou nem sequer chegam a ser referidos,
sendo este último caso mais frequente.
Tendo em conta a preparação dos alunos para a vivência em sociedade e o exercício da
cidadania, a relação que se estabelece nos manuais entre as competências, os objectivos e os
conteúdos deve ser estreita. No entanto, a centralidade dos conteúdos disciplinares e a não
identificação de estratégias de leitura que os alunos devem pôr em prática, de forma a tornar a
leitura uma actividade motivadora e eficaz, constituem um dos principais problemas na
formação de leitores competentes.
Os conteúdos que o manual geralmente apresenta têm um carácter predominantemente
disciplinar, apesar de, numa sociedade de informação como a nossa, se justificar a selecção de
conteúdos mais abertos, que não concebam o conhecimento como uma construção acabada. O
carácter disciplinar e fechado dos conteúdos abordados não permite contemplar dimensões
transdisciplinares, que promovam a transversalidade da língua portuguesa, particularmente ao
nível da compreensão na leitura. Além disso, não potencia a formulação de opiniões diferentes
dos sentidos implícitos veiculados pelos autores de manuais, não estimulando a reflexão
crítica e a pluridade de leituras de uma mesma realidade.
Temos também de superar a abordagem centrada na mera transmissão de conteúdos ainda
prevalecente nos manuais e nas práticas pedagógicas, focalizando o processo de
ensino/aprendizagem no desenvolvimento de competências.
O não cumprimento destes requisitos pelo manual conduz frequentemente a metodologias
desajustadas e pode ser uma das causas dos maus resultados que os portugueses têm obtido
nos estudos de literacia nacionais e internacionais.
Apesar de se aconselhar uma organização dos conteúdos em espiral, aumentando de forma
progressiva a sua complexidade, o que se verifica com frequência nos manuais é a sua
organização linear. Enfatizam-se as componentes informativas e a memorização, em
detrimento das componentes processuais que poderiam contribuir para a consolidação de
competências importantes para o sucesso escolar e extra-escolar.
Relativamente às estratégias didácticas e às actividades a elas associadas, constatamos que a
leitura apresenta um carácter instrumental e está ao serviço de outros fins. É necessário que o
manual assente numa concepção da leitura como processo de construção de conhecimento e
crie na escola tempo e espaço para ler através da realização de actividades motivadoras. Só
assim será possível criar e reforçar hábitos de leitura nos alunos.
Urge igualmente combater as concepções de leitura e leitor formatados, possibilitando um
diálogo do aluno/leitor e dos seus conhecimentos com a informação contida nos textos. Só
desta forma se poderá falar das actividades de leitura como práticas de compreensão dos
textos conducentes a leituras plurais. Na realidade, o manual reduz o acto de ler à
identificação e reprodução da leitura dos seus autores, porque só esta última é considerada
válida.
Neste contexto, em vez de estarmos perante verdadeiros textos, estamos perante “textos
transparentes” que claramente evidenciam os sentidos que o leitor deles deve extrair,
exercendo assim um forte controlo sobre a actividade interpretativa do aluno, que vê
desvalorizado o seu papel como leitor. Desta forma, anula-se a autonomia do leitor no acto
interpretativo e compromete-se o desenvolvimento da competência leitora fulcral para uma
integração efectiva na sociedade.
Um leitor experiente vai além dos significados das palavras e das frases, revela o que está
encoberto no texto e constrói o seu significado. No entanto, os manuais contribuem muito
pouco para a formação deste leitor. Ao proporem actividades de leitura que se situam
essencialmente no nível da descodificação, marcadas pelas recorrência de operações de
identificação e confirmação, centram o processamento fundamentalmente nos níveis
superficiais ou microestruturais do texto. É de esperar que reconheçam o devido valor à
leitura-compreensão que requer operações de integração semântica mais globais e complexas
como a reorganização da informação dos textos, a inferência, a avaliação, a apreciação, a
mobilização de conhecimentos, a justificação de interpretações, entre outras, porque
reconhecem ao aluno um papel activo e permitem o diálogo entre os seus conhecimentos
prévios e os textos que lê (Vieira, 2005).
Somos de opinião de que faltam nos manuais mais actividades que impliquem a apreensão da
mensagem dos textos propostos para leitura e a compreensão profunda dos seus significados,
atingindo os níveis da macroestrutura e da super-estrutura. Para isso, é necessário que os
processos de inferência, generalização, construção e integração mediante o recurso ao
conhecimento prévio sejam trabalhados recorrentemente.
A compreensão na leitura implica ainda actividades que colocam o sujeito em relação
dialógica com os textos que lê, o que faz dele um co-construtor activo de sentidos. Impende
sobre o manual a função de apoiar o professor na escolha ou criação de estratégias que
orientem o aluno na utilização dos diferentes modelos de compreensão, a fim de o preparar
para a mobilização dos seus conhecimentos prévios importantes para a aquisição de novas
informações, função esta da qual o manual frequentemente se demite.
Os manuais analisados não asseguram o desenvolvimento de habilidades de leitura dos
diferentes textos, porque propõe para todos eles abordagens muito semelhantes sem terem em
conta diferentes objectivos e situações de leitura. É necessário que passem a contemplar
também a diversidade das práticas de leitura. A questão a este nível vai para além da
necessidade de contemplar a diversidade dos textos do domínio social e implica que se
contemplem diferentes modos de ler os diferentes textos.
Relativamente aos recursos didácticos, um aspecto de primordial importância diz respeito à
diversidade textual que o manual apresenta. Nos manuais analisados, constatámos a
predominância dos textos literários, em detrimento dos textos não literários que, pelas suas
características, são também importantes para o envolvimento do aluno/leitor no
conhecimento e no processo de interrogação do mundo.
As fontes de informação são referidas de forma explícita, para que o aluno/leitor possa
alargar os seus horizontes, se assim o entender. Apesar disso, seria de esperar maior
diversidade de fontes e um maior esforço no sentido de estimular os alunos a recorrerem a
outras fontes externas ao próprio manual para a realização das actividades propostas.
A aula de Língua Portuguesa não é meramente uma aula de ensino/aprendizagem da língua.
Trata-se antes de um cruzamento ao qual afluem competências, objectivos e conteúdos de
diferentes áreas, que devem ser trabalhados de forma integradora, a fim de possibilitar a
aquisição e desenvolvimento de competências essenciais que possibilitem a interacção com o
património cultural de uma comunidade, centralmente das comunidades local e nacional, sem
descurar o património cultural global e a integração nessas comunidades.
O manual de Língua Portuguesa enquanto portador de grande potencialidade cultural,
pedagógica e didáctica, não se deve divorciar das suas funções neste contexto como muitas
vezes o tem feito.
Algumas ideias para terminar…
A compreensão leitora é um processo complexo que requer do leitor um processamento
cognitivo de distintos níveis - lexical, gramatical, semântico, representativo - da superfície
textual, a fim de construir uma base de texto.
Deste modo, as operações cognitivas que ocorrem durante a leitura incluem: i) o processo de
descodificação, que permite o acesso ao significado das palavras; ii) a representação das
relações entre as proposições que formam o textol; iii) a identificação da estrutura de relações
entre as ideias do texto; iv) por meio dela, o reconhecimento da informação mais importante,
mediante a activação de conhecimentos prévios e a realização de inferências predizendo e
preenchendo lacunas no texto ou elaborando ideias a partir do contexto; v) a identificação da
estrutura de organização do texto; vi) a formação de um modelo ou representação situacional
evocado pelo texto que inclui o reconhecimento da intenção do autor.
No nosso estudo, procuramos saber que concepções de leitura e perfil de leitor os manuais
escolares de Língua Portuguesa veiculam e qual é o seu contributo efectivo para o
desenvolvimento de competências no domínio da compreensão leitora em alunos de todos os
anos de escolaridade e, particularmente, nos que frequentam o Ensino Básico, que
corresponde ainda à escolaridade obrigatória.
Pretendemos que esta comunicação despolete reflexões sobre o papel dos manuais escolares
de Língua Portuguesa do Ensino Básico na aquisição e desenvolvimento da compreensão
leitora, para que a formação do aluno/leitor faça frente aos constantes desafios que a
participação activa na sociedade requer.
Bibliografia
Cabral, M. (2005) Como analisar manuais escolares. Lisboa: Texto Editores.
Ministério da Educação (2001) Currículo Nacional do Ensino Básico. Competências
essenciais. Lisboa: Departamento da Educação Básica.
Morais, E. F. (2006). Como ensinar a compreensão leitora no Primeiro Ciclo do Ensino
Básico. Dissertação de Mestrado não publicada. Aveiro: Universidade de Aveiro.
Vieira, Amélia Sofia da Silva (2005) O desenvolvimento da competência de leitura em
manuais escolares de língua portuguesa. Dissertação de mestrado não publicada. Braga:
Universidade do Minho.