línguas e educação: construir e partilhar a formação (ptdc

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línguas e educação: construir e partilhar a formação (PTDC/CED/68813/2006 / FCOMP-01-0124-FEDER-007106) 2007 > 2010 Que promoção da compreensão na leitura esperar do manual de Língua Portuguesa? Maria da Esperança Martins ([email protected]) Cristina Manuela Sá ([email protected]) Universidade de Aveiro (CIDTFF e LEIP) Palavras-chave: transversalidade da língua portuguesa, compreensão na leitura, manuais escolares, Ensino Básico Resumo A investigação recente em Didáctica tem revelado um crescente interesse pelos processos de elaboração, adopção e utilização do manual escolar, bem expresso no número e na profundidade dos estudos realizados sublinhando a importância deste recurso nas práticas educativas. Esta problemática redobra de interesse num momento em que se perspectiva a aplicação de novos programas de Português para o Ensino Básico. Cabe neste contexto a reflexão sobre o papel que deverá ser atribuído aos manuais de Língua Portuguesa na promoção da abordagem transversal do ensino/aprendizagem da língua materna. Gostaríamos de associar esta perspectiva à aquisição e desenvolvimento de competências em compreensão na leitura, de importância central neste domínio. Temos como base um estudo em curso desde 2006, no âmbito de um projecto de doutoramento, centrado na análise de manuais escolares de Língua Portuguesa para o Ensino Básico, com recurso a uma grelha incluindo categorias associadas à aquisição e desenvolvimento de competências em compreensão na leitura. Tendo presentes as questões de natureza educativa que são essenciais para a discussão do papel do manual escolar na promoção da literacia, este texto pretende (i) analisar os aspectos positivos e negativos do contributo do manual de Língua Portuguesa, encarado como instrumento de apoio do processo de ensino/aprendizagem da leitura, e (ii) indicar outros

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línguas e educação: construir e partilhar a formação

(PTDC/CED/68813/2006 / FCOMP-01-0124-FEDER-007106)

2007 > 2010

Que promoção da compreensão na leitura esperar do manual de Língua

Portuguesa?

Maria da Esperança Martins ([email protected])

Cristina Manuela Sá ([email protected])

Universidade de Aveiro (CIDTFF e LEIP)

Palavras-chave: transversalidade da língua portuguesa, compreensão na leitura, manuais

escolares, Ensino Básico

Resumo

A investigação recente em Didáctica tem revelado um crescente interesse pelos processos de

elaboração, adopção e utilização do manual escolar, bem expresso no número e na

profundidade dos estudos realizados sublinhando a importância deste recurso nas práticas

educativas.

Esta problemática redobra de interesse num momento em que se perspectiva a aplicação de

novos programas de Português para o Ensino Básico.

Cabe neste contexto a reflexão sobre o papel que deverá ser atribuído aos manuais de Língua

Portuguesa na promoção da abordagem transversal do ensino/aprendizagem da língua

materna. Gostaríamos de associar esta perspectiva à aquisição e desenvolvimento de

competências em compreensão na leitura, de importância central neste domínio.

Temos como base um estudo em curso desde 2006, no âmbito de um projecto de

doutoramento, centrado na análise de manuais escolares de Língua Portuguesa para o Ensino

Básico, com recurso a uma grelha incluindo categorias associadas à aquisição e

desenvolvimento de competências em compreensão na leitura.

Tendo presentes as questões de natureza educativa que são essenciais para a discussão do

papel do manual escolar na promoção da literacia, este texto pretende (i) analisar os aspectos

positivos e negativos do contributo do manual de Língua Portuguesa, encarado como

instrumento de apoio do processo de ensino/aprendizagem da leitura, e (ii) indicar outros

contributos esperados, tendo em conta a promoção do sucesso escolar e a inserção numa

sociedade de informação como a nossa.

1. Introdução

No actual contexto educativo nacional e internacional, a procura da qualidade no ensino tem

como principal objectivo a construção da cidadania. Por conseguinte, a formação do indivíduo

deve estar orientada para o conhecimento e para a avaliação crítica das questões sociais,

cívicas, políticas e humanas e é função da Escola preparar o aluno para se tornar um cidadão

consciente, que participe, de forma activa e crítica, na construção da sociedade.

Uma formação com estas características requer uma abordagem transversal do processo de

ensino/aprendizagem, pressuposta pelo Currículo Nacional do Ensino Básico (Ministério da

Educação, 2001).

No contexto desta formação transversal, “o domínio da Língua Portuguesa é decisivo no

desenvolvimento individual, no acesso ao conhecimento, no sucesso escolar e profissional e

no exercício pleno da cidadania.” (Ministério da Educação, 2001: 31).

O ensino-aprendizagem da língua portuguesa pressupõe o desenvolvimento de competências

em quatro domínios: Ouvir/Falar, Ler, Escrever e Funcionamento da língua.

Conscientes da importância do contributo da leitura para o sucesso educativo e para a

formação pessoal e social, decidimos centrar o nosso estudo no desenvolvimento de

competências em compreensão na leitura e identificar e caracterizar a forma como o acto de

ler é perspectivado nos manuais de Língua Portuguesa do Ensino Básico.

Nele procuraremos algumas respostas para uma questão central: Que promoção da

compreensão na leitura esperar dos manuais de Língua Portuguesa?

Trata-se de determinar se os manuais actualmente existentes cumprem a função de contribuir

para a formação de leitores competentes e, caso tal não aconteça, de formular directrizes que

permitam elaborar e seleccionar outros mais adequados.

2. Compreensão na leitura e ensino/aprendizagem da língua portuguesa

Desde há muito que se reconhece o papel de relevo que a língua portuguesa desempenha na

aquisição e desenvolvimento de múltiplos saberes, o que se tem traduzido no reforço da

consciência da sua transversalidade ao nível do currículo.

A língua portuguesa é decisiva no desenvolvimento individual e na integração social. Deste

modo, desempenha um papel fundamental na aquisição e desenvolvimento das competências

essenciais, definidas pelo Ministério da Educação (2001), que se situam nos domínios da

relação interpessoal, do desenvolvimento da autonomia e organização pessoal e da capacidade

de resolução de problemas, sendo também consideradas como transversais, porque são

primordiais para o sucesso educativo e na vida quotidiana.

A realização deste propósito passa, entre outros aspectos, pelo desenvolvimento de

competências no domínio da compreensão na leitura, sobre as quais incide o nosso estudo,

como foi acima referido.

Neste âmbito, muitas são as mais valias a adquirir pelos alunos. No nosso estudo, destacamos

algumas dessas mais valias.

No contexto social, é importante ser capaz de seleccionar fontes de informação, o que implica

a sua avaliação.

É também fundamental ter competências de processamento da informação, que pressupõem o

domínio de estratégias de leitura e promovem o controlo consciente de cada tarefa de leitura.

Igualmente importantes são a aquisição e desenvolvimento de conhecimento linguístico e

comunicativo que permita reconhecer modelos organizacionais da informação, geradores de

diferentes tipos de textos. A finalidade é tornar possível a leitura e compreensão de uma

panóplia de tipos de textos e desenvolver a capacidade de actuar em função da informação

obtida.

Neste contexto, pode-se perceber que o acto de ler ultrapassa os limites da sala de aula e que,

por essa razão, a Escola precisa de estar pronta para estabelecer práticas de leitura válidas em

contexto escolar e extra-escolar. Por conseguinte, é preciso organizar o trabalho escolar em

torno da leitura de tal modo que os alunos possam vivenciar situações diferenciadas, que

contemplem diversos objectivos possíveis do acto de ler.

Paralelamente, é fundamental cultivar a leitura como fruição do texto, feita pelo simples prazer

de ler, nem sempre muito valorizada pela nossa sociedade. Afinal, a motivação para a leitura

conduz à criação e reforço de hábitos de leitura que também permitem desenvolver

competências em compreensão na leitura.

É, ainda, preciso superar algumas concepções tradicionais sobre o ensino/aprendizagem da

leitura. A principal é a de que ler se resume à descodificação, isto é, a converter letras em

sons, sendo a compreensão consequência natural dessa acção. Por conta desta concepção

errada, a escola tem produzido bons “descodificadores” de texto, mas “leitores” com muita

dificuldade em compreender os textos com que se confrontam no seu dia-a-dia.

Assim, o processo de leitura requer uma aprendizagem mais ampla, que se inicia nos

primeiros anos de escolaridade e deve continuar ao longo da vida, em contexto formal e

informal, proporcionando o contacto com uma diversidade, tão grande quanto possível, de

textos e situações de leitura.

A leitura deve ser encarada como um processo complexo, que depende não só do ensino

eficiente da decifração, mas também do ensino explícito de estratégias.

A decifração implica a aquisição e desenvolvimento da consciência fonológica e das

correspondências fonema/grafema.

A compreensão na leitura depende da aquisição e mobilização de determinadas estratégias de

leitura: é preciso que os leitores criem expectativas em relação ao texto, formulando hipóteses

que serão confirmadas (ou não) através da sua compreensão; que façam inferências a partir do

contexto ou do conhecimento prévio que possuem; que identifiquem as ideias principais do

texto; que se mostrem capazes de identificar a forma como a informação foi organizada no

seu interior, de acordo com estruturas textuais, mais ou menos formais.

Os recursos didácticos têm um lugar importante neste contexto e, de entre eles, o manual

assume papel de destaque.

No nosso estudo, centramo-nos nos manuais escolares de Língua Portuguesa e no perfil de

leitor que estes contemplam. Dadas as suas fragilidades e limitações a este nível, que fomos

constatando através da análise de manuais em curso, procuraremos definir um conjunto de

pressupostos para a sua melhoria, no sentido de passarem a dar resposta às exigências da

actual Sociedade da Informação.

3. Contributo do manual escolar de Língua Portuguesa para a promoção da

compreensão na leitura

Na actualidade, os recursos didácticos que se usam no desenvolvimento do currículo são

objecto de análise e reflexão, com parte de um esforço orientado para resolver problemas de

qualidade do ensino e para responder às novas exigências de formação dos contextos sociais

em que a aprendizagem ganha sentido.

No caso específico da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa, o manual escolar é

uma importante ferramenta, que deve possibilitar a aquisição e o desenvolvimento de

competências no domínio da comunicação. Pode, de igual forma, ajudar a desenvolver

metodologias de estudo e estratégias de raciocínio verbal importantes para a resolução de

problemas do dia-a-dia do cidadão comum. Poderá, igualmente, permitir o acesso ao

património escrito que constitui um arquivo vivo da experiência cultural, científica e

tecnológica da Humanidade.

É no âmbito destas potencialidades que questionamos a forma como o manual escolar de

Língua Portuguesa condiciona especificamente o processo de aquisição e desenvolvimento de

competências em compreensão na leitura.

3.1. Contributo esperado

No caso específico da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa, o manual escolar tem

como uma das suas finalidades essenciais ajudar a formar leitores competentes, nos termos

acima referidos (Morais, 2006).

Dada a importância dos manuais escolares de Língua Portuguesa, a sua elaboração, adopção e

utilização dentro e fora da escola devem assentar na consciência da transversalidade da língua

portuguesa e do contributo das competências adquiridas através do seu ensino/aprendizagem

para o sucesso do aluno a nível escolar e social e na necessidade de promover um

ensino/aprendizagem da língua materna que conduza efectivamente ao desenvolvimento de

competências transversais em compreensão na leitura.

As competências de leitura que se espera desenvolver através da consecução de determinados

objectivos de leitura não devem ser específicas da disciplina. Antes devem ter um carácter

integrador, transversal. Não se pretende a formação de um aluno para ser bem sucedido nos

momentos de avaliação da disciplina de Língua Portuguesa, mas incapaz de processar a

informação que o cerca e de agir em função dela para corresponder às exigências literácitas

no contexto das outras disciplinas ou fora da escola.

Enquanto instrumento pedagógico e cultural, o manual escolar circunscreve um corpo de

saberes que, não constituindo, só por si, os saberes que são transmitidos e/ou adquiridos na

escola, é um factor decisivo de estruturação do universo de referência da comunicação

pedagógica.

Assim, no que respeita à proveniência dos conteúdos, o manual deve ser aberto e pautar-se

pela flexibilidade e diversidade de informação que disponibiliza. As fontes que refere devem

ser diversificadas e referidas de forma explícita, para que o aluno/leitor possa alargar os seus

horizontes, se assim o entender.

A selecção de conteúdos que contempla não deve estar exclusivamente associada aos saberes

disciplinares. Deve também contemplar aspectos culturais de carácter transversal e relevantes

na sociedade em questão, nomeadamente os que podemos relacionar com a educação para a

cidadania, que atravessa todo o currículo.

Para além de se adequar ao nível dos alunos, a apresentação dos conteúdos deve organizar-se

de forma espiralada, complexificando progressivamente as mensagens culturais.

As actividades que o manual propõe, a fim de concretizar estratégias didácticas relevantes,

devem permitir desenvolver o aluno como leitor competente. Assim deverão sugerir

caminhos para a abordagem da leitura como um acto sociocultural, princípio esse que implica

a capacidade de adaptar as suas estratégias de leitura aos contornos específicos de cada

situação desta natureza.

Devem ser diversificadas e apresentar níveis de complexidade distintos. Deverão ser

desenvolvidas, ora em grupo, ora individualmente, com recurso à consulta do próprio

manual, mas também a outras fontes de informação relevantes para a formação do aluno.

As actividades destinadas a favorecer a aquisição e desenvolvimento de competências em

compreensão na leitura devem visar a resolução de problemas e mobilizar a experiência dos

alunos a que se destinam e os seus interesses.

Igualmente importante é possibilitar que os alunos se envolvam em actividades que

impliquem a aquisição de conhecimento e o desenvolvimento de atitudes, hábitos, normas e

valores que possibilitem a realização individual e a integração social. Desta forma, para além

da obtenção de conhecimento, possibilita-se a aquisição e desenvolvimento de competências

e valores que fazem com que o aluno vá mais além da resolução técnica de actividades

académicas.

As actividades devem dirigir-se essencialmente à compreensão e à análise em detrimento da

identificação, repetição e memorização de informação. Neste contexto e tendo presente as

potencialidade de uma abordagem transversal do ensino/aprendizagem da língua portuguesa,

o domínio da leitura deve ser trabalhado em interacção com os restantes domínios previstos

nas directrizes do Ministério da Educação, em especial com a oralidade e a escrita.

O manual deve ainda estimular o diálogo com as experiências de aprendizagem concretizadas

fora da escola.

Os recursos didácticos disponibilizados e outros sugeridos devem ser diversificados e

permitir a adaptação ao nível, possibilidades e interesses dos alunos a que se destina.

Por tudo isto somos de opinião de que o manual precisa de enfatizar uma visão integradora

competências em compreensão na leitura, objectivos a ela associados, conteúdos relevantes

para a formação de leitores competentes, estratégias didácticas e actividades de leitura e

recursos didácticos, para ser um instrumento de promoção da compreensão leitora. Dada a

sua multiplicidade, o manual deve apresentar um formato flexível e permitir a adaptação,

complemento e melhoria. Os alunos e professores a quem se destina são muito heterogéneos

e as exigências ao nível da competência leitora reflectem também essa heterogeneidade.

Para que se trabalhe efectivamente a transversalidade da língua portuguesa e tendo presente a

função social da Escola, os manuais da área curricular disciplinar de Língua Portuguesa

devem incutir no aluno compromissos, crenças e interesses, isto é, suscitar uma função

transformadora em detrimento de uma função reprodutora. Devem também perseguir as

grandes finalidades educativas e ir além dos objectivos da área curricular.

É ainda importante que os manuais se mobilizem para ajudar a escola a despertar no aluno o

gosto pela leitura e a desenvolver nele hábitos a ela associados.

3.2.Contributo efectivo

Estes pressupostos levaram-nos à concepção de um projecto intitulado Os manuais e a

transversalidade da língua portuguesa na compreensão na leitura. Um estudo no Ensino

Básico. 1 Orientaram-nos três objectivos.

O primeiro deles consiste na caracterização do perfil de leitor a desenvolver, tendo em conta

as actuais necessidades em termos de sucesso escolar e de integração social. Para a sua

consecução, é necessário determinar as linhas gerais de um ensino da língua portuguesa que

favoreça o desenvolvimento de competências transversais em compreensão na leitura, tendo

por base a literatura da especialidade, e relacionar essas linhas gerais com as directrizes

propostas pela política educativa portuguesa para este domínio.

O segundo objectivo implica analisar a adequação dos manuais de Língua Portuguesa para o

Ensino Básico ao desenvolvimento de competências transversais associadas à compreensão

na leitura. Deste modo, torna-se necessário caracterizar a forma como a esta é abordada nos

manuais de Língua Portuguesa dos vários ciclos do Ensino Básico e comparar o perfil traçado

com os princípios definidos pela literatura da especialidade e as directrizes propostas pela

política educativa portuguesa para este domínio.

O terceiro objectivo consiste em contribuir para a definição de princípios que promovam a

elaboração de manuais mais adequados ao desenvolvimento de competências transversais

associadas à compreensão na leitura.

Procuramos resposta para questões como: Estarão os manuais escolares de Língua Portuguesa

ao serviço de uma crescente consciencialização da importância do desenvolvimento de

competências de compreensão na leitura? Será que facilitam o desenvolvimento de

competências neste domínio associado à operacionalização da transversalidade da língua

portuguesa? Quais os seus contributos para uma educação escolar de sucesso?

1 Com o financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

O nosso corpus, composto por nove manuais de Língua Portuguesa, foi constituído tendo em

conta critérios de selecção como: ligação aos três ciclos do Ensino Básico (incidindo nos anos

terminais), amplitude da sua influência (relacionada com o número de escolas em que foram

adoptados) e a sua representatividade em termos de tendências editoriais (implicando a

selecção de manuais de várias editoras e pressupondo projectos editoriais diferentes).

Para proceder à análise dos manuais, elaborámos uma grelha tendo em conta os princípios

definidos pela literatura da especialidade e as directrizes propostas pela política educativa

portuguesa para este domínio, que deverá tornar possível a recolha de dados significativos e a

sua análise e interpretação, em função dos objectivos formulados.

Na maioria dos manuais de Língua Portuguesa para o Ensino Básico analisados, a

leitura apresenta características pouco compatíveis com os objectivos que este domínio visa

no Currículo Nacional para o Ensino Básico (Ministério da Educação, 2001).

A partir de uma leitura atenta da literatura da especialidade e da análise de manuais que está

em curso, podemos afirmar que o manual de Língua Portuguesa continua a não privilegiar

práticas de compreensão na leitura capazes de formar cidadãos-leitores: não conduzem a

leituras plurais dos textos propostos, nem à participação activa do leitor na construção dos

sentidos desses mesmos textos.

Partimos do pressuposto de que a leitura deve escrever-se sempre no plural, tal é a diversidade

de usos e contextos a que ela se encontra ligada.

Assim, o que com frequência chega aos professores e aos alunos, sob a forma de manuais, são

imagens simplificadas resultantes de interpretações subjectivas dos princípios e das opções

curriculares e didácticas determinantes do processo de ensino e de aprendizagem, feitas por

professores isolados ou pequenos grupos de professores.

O trabalho de análise já realizado permitiu-nos construir algumas ideias importantes sobre

fragilidades de manuais de Língua Portuguesa ao nível do ensino-aprendizagem da leitura e

da aquisição e desenvolvimento de competências neste domínio.

Enquanto instrumento de promoção da leitura e do desenvolvimento de competências de

compreensão escrita, o manual de Língua Portuguesa deve referir claramente as competências

a adquirir e desenvolver no domínio da leitura e os objectivos que é esperado que o aluno

atinja.

Relativamente às competências, verificamos que os manuais analisados privilegiam as

competências específicas em detrimento das competências gerais e transversais. Esta

observação evidencia a não valorização de uma abordagem transversal do

ensino/aprendizagem da língua portuguesa, refugiando-se numa visão disciplinar da sua

gestão curricular.

No que diz respeito aos objectivos que permitem a aquisição e desenvolvimento das

competências, ou não são especificados de forma clara, ou nem sequer chegam a ser referidos,

sendo este último caso mais frequente.

Tendo em conta a preparação dos alunos para a vivência em sociedade e o exercício da

cidadania, a relação que se estabelece nos manuais entre as competências, os objectivos e os

conteúdos deve ser estreita. No entanto, a centralidade dos conteúdos disciplinares e a não

identificação de estratégias de leitura que os alunos devem pôr em prática, de forma a tornar a

leitura uma actividade motivadora e eficaz, constituem um dos principais problemas na

formação de leitores competentes.

Os conteúdos que o manual geralmente apresenta têm um carácter predominantemente

disciplinar, apesar de, numa sociedade de informação como a nossa, se justificar a selecção de

conteúdos mais abertos, que não concebam o conhecimento como uma construção acabada. O

carácter disciplinar e fechado dos conteúdos abordados não permite contemplar dimensões

transdisciplinares, que promovam a transversalidade da língua portuguesa, particularmente ao

nível da compreensão na leitura. Além disso, não potencia a formulação de opiniões diferentes

dos sentidos implícitos veiculados pelos autores de manuais, não estimulando a reflexão

crítica e a pluridade de leituras de uma mesma realidade.

Temos também de superar a abordagem centrada na mera transmissão de conteúdos ainda

prevalecente nos manuais e nas práticas pedagógicas, focalizando o processo de

ensino/aprendizagem no desenvolvimento de competências.

O não cumprimento destes requisitos pelo manual conduz frequentemente a metodologias

desajustadas e pode ser uma das causas dos maus resultados que os portugueses têm obtido

nos estudos de literacia nacionais e internacionais.

Apesar de se aconselhar uma organização dos conteúdos em espiral, aumentando de forma

progressiva a sua complexidade, o que se verifica com frequência nos manuais é a sua

organização linear. Enfatizam-se as componentes informativas e a memorização, em

detrimento das componentes processuais que poderiam contribuir para a consolidação de

competências importantes para o sucesso escolar e extra-escolar.

Relativamente às estratégias didácticas e às actividades a elas associadas, constatamos que a

leitura apresenta um carácter instrumental e está ao serviço de outros fins. É necessário que o

manual assente numa concepção da leitura como processo de construção de conhecimento e

crie na escola tempo e espaço para ler através da realização de actividades motivadoras. Só

assim será possível criar e reforçar hábitos de leitura nos alunos.

Urge igualmente combater as concepções de leitura e leitor formatados, possibilitando um

diálogo do aluno/leitor e dos seus conhecimentos com a informação contida nos textos. Só

desta forma se poderá falar das actividades de leitura como práticas de compreensão dos

textos conducentes a leituras plurais. Na realidade, o manual reduz o acto de ler à

identificação e reprodução da leitura dos seus autores, porque só esta última é considerada

válida.

Neste contexto, em vez de estarmos perante verdadeiros textos, estamos perante “textos

transparentes” que claramente evidenciam os sentidos que o leitor deles deve extrair,

exercendo assim um forte controlo sobre a actividade interpretativa do aluno, que vê

desvalorizado o seu papel como leitor. Desta forma, anula-se a autonomia do leitor no acto

interpretativo e compromete-se o desenvolvimento da competência leitora fulcral para uma

integração efectiva na sociedade.

Um leitor experiente vai além dos significados das palavras e das frases, revela o que está

encoberto no texto e constrói o seu significado. No entanto, os manuais contribuem muito

pouco para a formação deste leitor. Ao proporem actividades de leitura que se situam

essencialmente no nível da descodificação, marcadas pelas recorrência de operações de

identificação e confirmação, centram o processamento fundamentalmente nos níveis

superficiais ou microestruturais do texto. É de esperar que reconheçam o devido valor à

leitura-compreensão que requer operações de integração semântica mais globais e complexas

como a reorganização da informação dos textos, a inferência, a avaliação, a apreciação, a

mobilização de conhecimentos, a justificação de interpretações, entre outras, porque

reconhecem ao aluno um papel activo e permitem o diálogo entre os seus conhecimentos

prévios e os textos que lê (Vieira, 2005).

Somos de opinião de que faltam nos manuais mais actividades que impliquem a apreensão da

mensagem dos textos propostos para leitura e a compreensão profunda dos seus significados,

atingindo os níveis da macroestrutura e da super-estrutura. Para isso, é necessário que os

processos de inferência, generalização, construção e integração mediante o recurso ao

conhecimento prévio sejam trabalhados recorrentemente.

A compreensão na leitura implica ainda actividades que colocam o sujeito em relação

dialógica com os textos que lê, o que faz dele um co-construtor activo de sentidos. Impende

sobre o manual a função de apoiar o professor na escolha ou criação de estratégias que

orientem o aluno na utilização dos diferentes modelos de compreensão, a fim de o preparar

para a mobilização dos seus conhecimentos prévios importantes para a aquisição de novas

informações, função esta da qual o manual frequentemente se demite.

Os manuais analisados não asseguram o desenvolvimento de habilidades de leitura dos

diferentes textos, porque propõe para todos eles abordagens muito semelhantes sem terem em

conta diferentes objectivos e situações de leitura. É necessário que passem a contemplar

também a diversidade das práticas de leitura. A questão a este nível vai para além da

necessidade de contemplar a diversidade dos textos do domínio social e implica que se

contemplem diferentes modos de ler os diferentes textos.

Relativamente aos recursos didácticos, um aspecto de primordial importância diz respeito à

diversidade textual que o manual apresenta. Nos manuais analisados, constatámos a

predominância dos textos literários, em detrimento dos textos não literários que, pelas suas

características, são também importantes para o envolvimento do aluno/leitor no

conhecimento e no processo de interrogação do mundo.

As fontes de informação são referidas de forma explícita, para que o aluno/leitor possa

alargar os seus horizontes, se assim o entender. Apesar disso, seria de esperar maior

diversidade de fontes e um maior esforço no sentido de estimular os alunos a recorrerem a

outras fontes externas ao próprio manual para a realização das actividades propostas.

A aula de Língua Portuguesa não é meramente uma aula de ensino/aprendizagem da língua.

Trata-se antes de um cruzamento ao qual afluem competências, objectivos e conteúdos de

diferentes áreas, que devem ser trabalhados de forma integradora, a fim de possibilitar a

aquisição e desenvolvimento de competências essenciais que possibilitem a interacção com o

património cultural de uma comunidade, centralmente das comunidades local e nacional, sem

descurar o património cultural global e a integração nessas comunidades.

O manual de Língua Portuguesa enquanto portador de grande potencialidade cultural,

pedagógica e didáctica, não se deve divorciar das suas funções neste contexto como muitas

vezes o tem feito.

Algumas ideias para terminar…

A compreensão leitora é um processo complexo que requer do leitor um processamento

cognitivo de distintos níveis - lexical, gramatical, semântico, representativo - da superfície

textual, a fim de construir uma base de texto.

Deste modo, as operações cognitivas que ocorrem durante a leitura incluem: i) o processo de

descodificação, que permite o acesso ao significado das palavras; ii) a representação das

relações entre as proposições que formam o textol; iii) a identificação da estrutura de relações

entre as ideias do texto; iv) por meio dela, o reconhecimento da informação mais importante,

mediante a activação de conhecimentos prévios e a realização de inferências predizendo e

preenchendo lacunas no texto ou elaborando ideias a partir do contexto; v) a identificação da

estrutura de organização do texto; vi) a formação de um modelo ou representação situacional

evocado pelo texto que inclui o reconhecimento da intenção do autor.

No nosso estudo, procuramos saber que concepções de leitura e perfil de leitor os manuais

escolares de Língua Portuguesa veiculam e qual é o seu contributo efectivo para o

desenvolvimento de competências no domínio da compreensão leitora em alunos de todos os

anos de escolaridade e, particularmente, nos que frequentam o Ensino Básico, que

corresponde ainda à escolaridade obrigatória.

Pretendemos que esta comunicação despolete reflexões sobre o papel dos manuais escolares

de Língua Portuguesa do Ensino Básico na aquisição e desenvolvimento da compreensão

leitora, para que a formação do aluno/leitor faça frente aos constantes desafios que a

participação activa na sociedade requer.

Bibliografia

Cabral, M. (2005) Como analisar manuais escolares. Lisboa: Texto Editores.

Ministério da Educação (2001) Currículo Nacional do Ensino Básico. Competências

essenciais. Lisboa: Departamento da Educação Básica.

Morais, E. F. (2006). Como ensinar a compreensão leitora no Primeiro Ciclo do Ensino

Básico. Dissertação de Mestrado não publicada. Aveiro: Universidade de Aveiro.

Vieira, Amélia Sofia da Silva (2005) O desenvolvimento da competência de leitura em

manuais escolares de língua portuguesa. Dissertação de mestrado não publicada. Braga:

Universidade do Minho.