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Represso e Memria Poltica no Contexto Ibero-Brasileiro
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Represso e Memria Poltica no Contexto Ibero-BrasileiroEstudos sobre Brasil, Guatemala, Moambique, Peru e Portugal
REALIZAO
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GOVERNO FEDERALMINISTRIO DA JUSTIACOMISSO DE ANISTIA
Presidente da Repblica LUIZ INCIO LULA DA SILVA
Ministro da JustiaLUIZ PAULO BARRETO
Secretrio-ExecutivoRAFAEL THOMAZ FAVETTI
Presidente da Comisso de AnistiaPAULO ABRO
Vice-presidentes da Comissso de AnistiaEGMAR JOS DE OLIVEIRA SUELI APARECIDA BELLATO
Secretria-Executiva da Comisso de AnistiaROBERTA VIEIRA ALVARENGA
Coordenador de Cooperao Internacional da Comisso de AnistiaMARCELO D. TORELLY
REPRESSO E MEMRIA POLTICA NO CONTEXTO IBERO-BRASILEIROEstudos sobre Brasil, Guatemala, Moambique, Peru e Portugal
Realizao:COMISSO DE ANISTIA DO MINISTRIO DA JUSTIACENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRAPROGRAMA DAS NAES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO
Organizadores:BOAVENTURA DE SOUSA SANTOSPAULO ABROCECLIA MACDOWELL DOS SANTOSMARCELO D. TORELLY
R425rm
Represso e Memria Poltica no Contexto Ibero-Brasileiro : estudos sobre Brasil, Guatemala, Moambique, Peru e Portugal. -- Braslia : Ministrio da Justia, Comisso de Anistia ; Portugal : Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010. 284 p.
ISBN 978-85-85820-04-6
1. Anistia, anlise comparativa. 2.Justia. 3. Autoritarismo, aspectos polticos. 4. Autoritarismo, aspectos psicolgicos. 5. Direitos humanos. I. Brasil. Ministrio da Justia (MJ). II. Ttulo. CDD 341.5462
Ficha catalogr ca elaborada pela Biblioteca do Ministrio da Justia
Os textos contidos nesta obra so produtos do Seminrio Internacional Represso e Memria Poltica no Contexto Luso-Brasileiro, realizado nos dias 20 e 21 de abril de 2009 no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal), no bojo do programa de cooperao internacional da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia da Repblica Federativa do Brasil com o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Os autores atualizaram seus textos com novas informaes e dados antes da edio nal da obra, em maio de 2010. As opinies, dados e informaes contidos nos textos desta publicao so de responsabilidade de seus autores, no caracterizando posies o ciais do Ministrio da Justia, salvo quando expresso em contrrio.
Projeto Gr coRIBAMAR FONSECA
CapaLUISA VIEIRA
RevisoKELEN MEREGALI MODEL FERREIRAMARCELO D. TORELLY
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OrganizadoresBOAVENTURA DE SOUSA SANTOSPAULO ABROCECLIA MACDOWELL SANTOSMARCELO D. TORELLY
AutoresCECLIA MACDOWELL SANTOS DANIELA FRANTZFLVIA CARLETJOS CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHOKELEN MEREGALI MODEL FERREIRAMARCELO D. TORELLYMARIA NATRCIA COIMBRAMARIA PAULA MENESESPAULO ABRO ROBERTA CAMINEIRO BAGGIOSLVIA RODRIGUEZ MAESOTARSO GENROTATIANA TANNUS GRAMAVANDA DAVI FERNANDES DE OLIVEIRA
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Sumrio
ApresentaoLUIZ PAULO BARRETO Ministro de Estado da Justia 10
Prefcio: Os caminhos das democracias e as memrias polticasBOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, PAULO ABRO, CECLIA MACDOWELL SANTOS E MARCELO D. TORELLY 12
Memria Histrica, Justia de Transio e Democracia sem FimTARSO GENRO, PAULO ABRO 16
Justia de Transio no Brasil: a dimenso da reparaoPAULO ABRO, MARCELO D. TORELLY 26
Educao e Anistia Poltica: idias e prticas emancipatrias para a construo da memria, da reparao e da verdade no BrasilPAULO ABRO, FLVIA CARLET, DANIELA FRANTZ, KELEN MEREGALI MODEL FERREIRA, VANDA DAVI FERNANDES DE OLIVEIRA 60
O dever de no esquecer como dever de preservar o legado histricoMARIA NATRCIA COIMBRA 88
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Justia Transicional, Memria Social e Senso Comum Democrtico:notas conceituais e contextualizao do caso brasileiroMARCELO D. TORELLY 104
Questes de Justia de Transio: a mobilizao dos direitos humanos e a memria da ditadura no BrasilCECLIA MACDOWELL SANTOS 124
O Passado no Morre: a permanncia dos espritos na histria de MoambiqueMARIA PAULA MENESES 152
Dever de Memria e a Construo da Histria Viva: a atuao da Comisso de Anistia do Brasil na concretizao do direito memria e verdadeJOS CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO 186
Poltica del testimonio y reconocimiento en las comisiones de la verdad guatemalteca y peruanaSILVIA RODRGUEZ MAESO 228
Justia de Transio como Reconhecimento: limites e possibilidades do processo brasileiroROBERTA CAMINEIRO BAGGIO 260
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ApresentaoLUIZ PAULO BARRETOMinistro de Estado da Justia
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A presente obra, um dos produtos do termo de cooperao estabelecido entre o Minist-
rio da Justia do Brasil e a Universidade de Coimbra (Portugal) em 21 de abril de 2009,
insere-se na poltica de ampliao dos parceiros internacionais da Comisso de Anistia,
em gesto conjunta com a Agncia Brasileira de Cooperao do Ministrio das Relaes
Exteriores do Brasil e o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento.
A Comisso de Anistia do Ministrio da Justia vm empreendendo importantes iniciati-
vas para o cumprimento do dever constitucional de reparao aos perseguidos polticos
brasileiros e desenvolveu, nos ltimos trs anos, polticas educativas inovadoras como as
Caravanas da Anistia e diversas publicaes visando difuso do conhecimento em ma-
tria de anistia poltica, bem como polticas pblicas de memria, tais como o projeto do
Memorial da Anistia Poltica e as Audincias Pblicas de homenagens individuais e cole-
tivas e de debates sobre temas relevantes para a justia de transio no Brasil.
Esta publicao constitui-se, portanto, em mais um passo para a internacionalizao dos
debates sobre justia, reparao e memria, que vm permitindo tanto um significativo
incremento de qualidade nas polticas empreendidas pelo Ministrio da Justia brasileiro,
quanto das possibilidades do Brasil em cooperar para o desenvolvimento de polticas
orientadas para a consolidao da democracia em outros pases do mundo. Com a inicia-
tiva da publicao desta obra, avana-se nesta construo coletiva em mbito interna-
cional.
Braslia, maio de 2010.
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Prefcio
Os caminhos das democracias e as memrias polticasBOAVENTURA DE SOUSA SANTOSPAULO ABROCECLIA MACDOWELL SANTOSMARCELO D. TORELLY
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Nos dias 20 e 21 de abril de 2009, o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,
em parceria com a Comisso de Anistia do Ministrio da Justia da Repblica Federativa do
Brasil e com o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento, realizou o Seminrio
Internacional Represso e Memria Poltica no Contexto Luso-Brasileiro, com o objeti-
vo de intercambiar conhecimentos e experincias que vinham-se acumulando no Brasil e
em Portugal sobre a temtica. Na mesma oportunidade, o Magnfico Reitor da Universida-
de de Coimbra e o Excelentssimo Ministro de Estado da Justia do Brasil firmaram um
acordo de cooperao, para permitir a continuidade da parceria entre as duas instituies,
numa ao integrada que busca valorizar prticas e reflexes, fundindo-as em conheci-
mentos aplicveis, da qual esta publicao apresenta-se como um primeiro resultado.
Os dois dias de seminrio permitiram a realizao de diversas mesas temticas, que
debateram estudos e iniciativas sociais e governamentais sobre represso e memria
poltica no Brasil, Guatemala, Moambique, Peru e Portugal. O intercmbio de experi-
ncias resta agora relatado nesta obra coletiva, que traduz parte da riqueza das discus-
ses tidas em Coimbra, permitindo a um pblico mais ampliado delas apropriar-se e
comparar as diferentes perspectivas de anlise sobre variados contextos polticos e
sociais. Nos doze textos aqui contidos encontram-se aproximaes teorticas e emp-
ricas, partindo de diversos locais de fala que se cruzam em uma problemtica comum
a todos os pases que viveram experincias autoritrias e/ou coloniais: como lidar com
o passado e, mais que tudo, como realizar um trabalho pedaggico de memrias-
justias sobre um passado traumtico, tendo como base a construo e o fortale-
cimento da democracia presente.
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Os estudos que integram esta obra assentam na ideia de que a democracia e a memria
poltica no so resultado de um processo histrico linear, singular e acabado, com incio,
meio e fim, mas sim uma construo social e poltica sem fim, a ser constantemente
aprimorada, que envolve mltiplos atores polticos e sociais. Nesta perspectiva, falamos
em democracias e memrias polticas, no plural, para destacar os diversos sujeitos
sociais e polticos de memria e justia, as diferentes histrias de cada pas ou comuni-
dade, os mltiplos caminhos e mecanismos possveis para a superao dos legados auto-
ritrios e coloniais. A vivncia comum da no-democracia , portanto, apenas o pontap
inicial que conecta as experincias que so objeto de reflexo e que permitem-nos ver
como cada povo soube, de modo mais ou menos completo, trabalhar o seu passado.
A presente obra ganha especial relevo em um momento em que tanto a Amrica Lati-
na quanto a pennsula Ibrica vem ressurgir, do seio da sociedade representada em
instituies e movimentos civis organizados, lutas por justia histrica, memria e contra
o esquecimento, com o claro objetivo de no permitir que o olvido apague do espao
pblico as marcas da represso, de modo a usar a memria como sinal de alerta perma-
nente sobre os horrores do autoritarismo e do colonialismo. Num perodo histrico m-
par, onde o Brasil, entre outros pases, discute a criao de uma Comisso da Verdade, e
onde Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Espanha, dentre outros, trabalham para a
ampliao da memria social, em longos processos de identificao e abertura de arqui-
vos, retirada de smbolos autoritrios dos espaos pblicos e promoo das memrias de
luta contra ditaduras, esta obra visa contribuir para permitir o dilogo entre as experin-
cias e a verificao dos caminhos possveis, objetivando sempre ampliar o espao de
acesso e atuao da sociedade, fortalecendo iniciativas e garantindo o constante apri-
moramento de iniciativas para a no repetio.
Esta obra insere-se, portanto, na linhagem daquelas que querem olhar para o passado
para construir um melhor futuro no presente.
Braslia e Coimbra, maio de 2010.
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Memria Histrica, Justia de Transio e Democracia sem FimTARSO GENROMinistro do Conselho de Desenvolvimento Econmico e Social (2003-2004), da Educao (2004-2005), das Relaes Institucionais (2006-2007) e da Justia (2007-2010), Brasil
PAULO ABROProfessor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade Catlica de BrasliaPresidente da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia, Brasil
Conferncia de Abertura do Seminrio Luso-Brasileiro sobre Represso e Memria Poltica proferida pelo Ministro da Justia do Brasil em 20 de abril de 2009 no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
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Erich Auerbach, no seu Ensaios de Literatura Ocidental1, no captulo dedicado a Vico
e o historicismo esttico, surpreende-se que um homem no comeo do sculo XVIII
possa ter criado uma histria do mundo baseada no carter mgico da civilizao pri-
mitiva, dizendo que h poucos exemplos semelhantes na histria do pensamento hu-
mano de uma criao to isolada; devida a uma mente to peculiar. Ele combinava uma
f quase mstica, prossegue Auerbach, na ordem eterna da histria humana com um
tremendo poder de imaginao produtiva na interpretao do mito da poesia antiga e
do direito.
Para Vico os homens primitivos eram originalmente nmades solitrios, vivendo em
promiscuidade desordenada em meio ao caos de uma natureza misteriosa e, por isso
mesmo horrvel. Eram seres sem faculdade de raciocnio; tinham apenas sensaes in-
tensas e um poder de imaginao to grande que os homens civilizados teriam dificul-
dades em conceb-lo.
1 AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura Ocidental. In: 2 Cidades. Ed. 34, 2004. p. 347-348.
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Em Depois de Babel2, conta-nos Joaquim Herrera Flores, o grande mestre George Stei-
ner afirmava o seguinte: em quase todas as lnguas e ciclos lendrios encontramos um
mito do enfrentamento de rivais; duelo, luta corpo a corpo, confronto de enigmas, cujo
prmio a vida do perdedor.
Temos nmades solitrios, seres sem faculdade do raciocnio, diz Vico, e luta onde o
prmio a vida do perdedor, diz George Steiner. Assim, o que separa a formulao de
Vico da teoria do mestre Steiner o contrato. Na primeira hiptese, os nmades solit-
rios somente sentem o caos de uma natureza misteriosa. Na segunda hiptese, a luta
revela um premio, em um pacto onde o limite a eliminao consciente do outro.
Se tomarmos os dois exemplos como lapidares de dois perodos histricos da humanidade,
poderamos concluir que um mximo de conscincia e racionalidade, que separa qualitati-
vamente o homem primitivo do homem moderno (em termos eminentemente antropol-
gicos), o fato de que o segundo promoveu uma compensao para a sua separao da
naturalidade, que foi precisamente aquela o que conscientizou da violncia. E depois orga-
nizou-a, para pactuar sucessivos nveis de convvio que, em nenhuma poca da histria,
suprimiram a compulso da morte do seu semelhante, reconhecendo-o, portanto, como
indiferente a si mesmo ou diferente de si mesmo, por isso eliminvel.
A sucesso de regimes repressivos e autoritrios, ditatoriais e/ou totalitrios que avassa-
laram a Amrica Latina, entre meados dos anos 60 e 80, ainda no foi tratada de forma
sistemtica por nenhum regime democrtico em processo de afirmao do continente.
Isso se justifica, de uma parte porque todas as transies polticas para a democracia
foram feitas sob compromisso. De outra porque a democracia expandiu-se mais como
forma do que como substncia. Na verdade, nenhum dos regimes de fato foi derrota-
do ou derrubado por movimentos revolucionrios de carter popular; logo, os valores
que sustentaram as ditaduras ainda so aceitos como razoveis para a poca da guerra
fria, e tambm face s barbries tambm cometidas pelos resistentes de esquerda.
Ao lado destas condies histricas concretas, h todo um manto ideolgico promovido
por uma parte da academia e tambm por intelectuais que tem acesso privilegiado aos
grandes meios de comunicao que, sob certos aspectos, ao defender o caminho nico
do neoliberalismo recentemente falido, ocupou-se tambm em promover um trabalho
2 STEINER, George. Lecturas, obsesiones y otros ensayos. Madrid: Alianza, 1990. p. 543. apud HERRERA FLORES, Joaquim. A (re) inveno dos direitos humanos. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2009. p. 54.
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persistente de desmoralizao dos ideais da esquerda, com a flagrante anulao inclusive
do valor humano e poltico daqueles que resistiram e, por isso, foram perseguidos, mortos
ou torturados.
No Brasil, o tratamento dado recentemente ao caso de Cesare Battisti, um militante das
brigadas vermelhas, que combateu na luta armada na Itlia e que hoje se encontra preso
no Brasil aguardando a posio do Supremo Tribunal Federal exemplar. O questiona-
mento da concesso de refgio poltico que o governo brasileiro lhe concedeu, emble-
mtico: no estamos tratando de um militante esquerdista radical, que lutou contra um
regime democrtico em crise, mas de um assassino, julgado corretamente por um Estado
de Direito; mais: no se trata de um criminoso poltico, mas sim de um assassino co-
mum; e, ainda, sua luta armada era a luta do mal, representado pelos proletarios arma-
dos pelo comunismo contra o bem, representado pelo Estado de Direito que mal acolhe
a todos. exatamente o mesmo mecanismo que operou no Brasil, na transio da dita-
dura para a democracia poltica, quando o Congresso aprovou a anistia restrita, retirando
dela os que cometeram crimes de sangue.
Esta ideologizao direitista da memria, na verdade, impede um pacto de conciliao,
porque o impe a partir dos valores que so aceitos exclusivamente pelos que eram
beneficirios do autoritarismo e das ditaduras.
Considerada a concepo de Giambatista Vico, os controladores das anistias e da histria
evoluiram apenas de um Estado de seres sem faculdades de raciocnio para um estgio
de uma racionalidade burocrtica perversa, de uma memria cristalizada nos valores da
dominao autoritria do Estado de Exceo.
Isso ocorre especialmente na medida em que se propala tambm uma narrativa especfica
que propala uma justificativa do Golpe Militar de 1964, como simples reao ao um
suposto estado de caos e desgoverno poltico vigente, ameaador da propriedade
privada, das liberdades pblicas, dos valores da famlia, sintetizando tudo no combate a
ameaa comunista em andamento.
Nesses termos, a represso atroz e os crimes produzidos na ditadura foram atos no de-
sejados mas necessrios, repartindo, assim, a culpa pelo regime autoritrio entre os dois
lados combatentes: a represso e a resistncia. O centro do discurso est na idia de que
esta histria no pode ser contada, seno exclusivamente desta maneira: a de que o re-
gime ditatorial foi uma etapa de paz civil e avanos econmicos onde se localiza as bases
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da ordem e da democracia atual. Em virtude disso, em nome da governabilidade, tenta
fixar-se um pacto de silncio, onde no se deve olhar mais para o passado, sob pena de
abrir-se as suas feridas. Nestes termos, contata-se um uso poltico da memria para
coincidi-la com a hermenutica dos dominadores de ento, e isto em verdade, constitui-
se em uma no-memria.
A recuperao da memria no se faz, portanto, sem o confronto de valores. Trata-se,
menos de punir os torturadores do que exp-los ao cenrio da histria, tal qual os
perdedores, em regimes ditatoriais, foram expostos e, neste cenrio, contrapor os valores
que nos guiaram e os valores que erigiram a fundao de regimes repressivos, que so-
mente foram passveis de serem implementados pela violncia armada.
No se trata, tambm, de constituir a falcia maniquesta de que linearmente de um lado
estava o bem e de outro estava o mal. Ou seja, que era uma disputa de homens de
bem contra homens do mal; mas, sim, de identificar nas entranhas do Estado o tipo de
ordem jurdica e poltica capaz de instrumentalizar os homens para transform-los em
mquinas de destruio dos seus semelhantes, fazendos-os retroceder ao estgio de uma
sociedade sem contrato e de transformao de um legtimo monoplio do uso da fora
pela Estado (conquista da modernidade democrtica) em um monoplio da destruio
de direitos, de regulao burocrtica para a represso instrumental e para a dominao
pela coero.
O grande salto humanstico da modernidade no foi simplesmente a constituio de
Estado Moderno nem a prpria idia de nao. Foi o Estado de Direito, vinculado aos
fundamentos do princpio da igualdade jurdica e no principio da inviolabilidade dos
direitos, inclusive quando a pretenso de violao vem do prprio Estado, como polti-
ca estatal ou de agente pblico especfico investido de diferenciados poderes que a lei
lhe confere.
O processo de formulao de uma nova Constituio democrtica para a Repblica bra-
sileira resultou-nos em texto consagrador desta frmula garantidora de direitos funda-
mentais, como marcos fundantes da sociedade ps-autoritria. Apesar de no se tratar
de nada original at porque o nosso pensamento poltico apenas refletia o que nos
vinha de fora, numa espcie de fatalismo intelectual que subjuga as culturas nascentes
mesmo assim, foi um grande estatuto poltico, uma lei fundamental que logrou absor-
ver e superar as tenses entre o absolutismo e o liberalismo, marcantes no seu nascimen-
to, para se constituir, afinal, no texto fundador da nacionalidade e no ponto de partida
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para a nossa maioridade constitucional.3 Ou, como disse Paulo Bonavides, a carta de
1988 valeu por este aspecto: um salvo-conduto para o Pas sair do arbtrio e caminhar
rumo legitimidade do futuro.4
Como se sabe e como bem define GARCIA AMADO, a eficcia de uma Constituio
depende, sobretudo, da crena na sua legitimidade e na convico generalizada da
justia dos seus contedos. A prpria luta poltica sobre a sua interpretao embora
busque nela contedos contraditrios um elemento de convico na justia dos seus
contedos e na legitimidade do consenso que ela revela. Por isso, na verdade, se converteu
a histria no campo preferencial para as disputas sobre a legitimidade constitucional e,
por isso mesmo, a pluralidade de sensibilidades nacionais leva a uma luta de histrias
ou prpria fragmentao da histria em histrias diversas. 5
Na verdade, mais do que uma luta ou conflito de memrias a sustentarem verses oficiais
antagnicas e competitivas da histria, o que temos em um cenrio ps-autoritrio e
traumtico para uma sociedade poltica a necessidade de exercitamos a memria.
A histria que se apresenta como vencedora, j dizia Walter Benjamin6, fecha-se em uma
lgica linear que pisoteia as vtimas, que as ignora sob o cortejo triunfante do progresso.
Trata-se de romper esse continuum e abrir a brecha da qual nascer a ao poltica, e na
qual poder emergir a dor e as injustias esquecidas. A experincia traumtica s se su-
pera a partir de um exerccio do luto, que como lembra Paul Ricoeur7, o mesmo exerc-
cio da memria: paciente, afetivo, destemido e perigoso, pois revela que nossa sociedade
hoje se estrutura sobre os cadveres das vtimas esquecidas.
s no trabalho de rememorao que podemos construir uma identidade que tenha
lugar na histria e no que possa ser fabricada por qualquer instante ou ser escolhida a
esmo a partir de impulsos superficiais. Trata-se, de fato, de um dever de memria, um
3 COELHO, Inocncio Mrtires. A experincia constitucional brasileira: da corte imperial de 1924 Constitui-o Democrtica de 1988, Arquivos do Ministrio da Justia, Braslia, ano 51, n. 190, jul-dez, 2006, pp. 69/70.
4 BONAVIDES, Paulo & ANDRADE, Paes de. Historia constitucional do Brasil. Braslia: OAB editora, 2004, 5.ed. p. 493.
5 Cf. GARCIA AMADO, Juan Antonio. Usos de la historia y legitimidad constitucional. In: MARTIN PALLIN, Jose Antonio & ESCUDERO ALDAY, Rafael. Derecho y memoria historica. Madrid: Trotta, 2008. p. 52.
6 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da histria. In: Magia e tcnica, arte e poltica ensaios sobre literatura e histria da cultura Obras escolhidas I. 7.ed. So Paulo: Brasiliense, 1994.
7 RICOEUR, Paul. Histria, memria e esquecimento. Campinas: Unicamp, 2008.
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dever que exige disposio e vontade: uma vontade poltica. O exerccio deste dever
condio imprescindvel para que haja verdadeiramente o apaziguamento social, caso
contrrio a sociedade repetir obsessivamente o uso arbitrrio da violncia, pois ela no
ser reconhecida como tal. A memria aqui no importante s para que no se repita
jamais, mas tambm por uma questo de justia s vtimas que caram pelo caminho8.
A recuperao da memria, porm, o Estado somente a far, alterando a sua lgica ori-
ginria de reproduo burocrtica do prprio poder e se a sociedade exigir, pois, confor-
me elucida Bobbio9, todas as grandes correntes polticas do sculo passado inverteram
a rota, contrapondo a sociedade ao Estado, descobrindo na sociedade, e no no Estado,
as foras que se movem em direo libertao e ao progresso histrico. Eis que aqui,
mais uma vez, o papel da sociedade civil e dos movimento sociais democrticos, deter-
minante para a disputa das leituras produzidas e construdas sobre a histria, afinal,
deve-se compreender fundamentalmente que, em primeiro lugar, a histria um dos
elementos de legitimao constitucional (para uma efetiva justia de seus contedos) e,
em segundo lugar, deve-se convencer de que na interpretao do passado joga-se o fu-
turo dos Estados democrticos. Disso extramos a idia de legitimidade da nossa Consti-
tuio como pacto que nos obriga, hoje e sempre, a uma disputa dos fundamentos de
legitimao da mesma Constituio.
Em sntese, a partir destas reflexes que se pode afirmar que a relevncia e os objetivos
do resgate e da promoo da Memria Histrica, passam pelo menos por 3 eixos funda-
mentais:
a) pelo campo de uma reconciliao nacional onde se trava o processo de legitimao
constitucional voltada para um autntico objetivo poltico humanista;
b) um processo de afirmao de valores contra a pulso da eliminao consciente do
outro (Steiner) e;
c) na criao e identificao da nao, pois, no caso brasileiro, temos uma promoo
incompleta da identidade nacional, pois a modernidade tardia brasileira excluiu os mo-
vimentos de resistncia e seus valores como forjadores das bases da democracia atual.
8 MATE, Reyes. Memrias de Auschwitz atualidade e poltica. So Leopoldo: Nova Harmonia, 2005.
9 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Poltica a Filoso a Poltica e as lies dos clssicos. In: BOVERO, Michelangelo (org.). Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 225.
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Para o atingimento destes objetivos, um instrumento privilegiado que tem sido utilizado
por diversas naes so as polticas denominadas de Justia de Transio.
Justia transicional uma resposta concreta s violaes sistemticas ou generalizadas
aos direitos humanos. Seu objetivo o reconhecimento das vtimas e a promoo de
possibilidades de reconciliao e consolidao democrtica. A justia transicional no
uma forma especial de justia, mas uma justia de carter restaurativo, na qual as socie-
dades transformam a si mesmas depois de um perodo de violao generalizada dos di-
reitos humanos.
Os governos, em especial na America Latina e na Europa Oriental, adotaram muitos en-
foques distintos para a justia transicional. Entre elas figuram as seguintes iniciativas:
a) aplicao do sistema de justia na apurao dos crimes ocorridos nas ditaduras, em
especial, aqueles considerados como crimes de lesa-humanidade;
b) criao de Comisses de Verdade e Reparao, que so os principias instrumentos de
investigao e informao sobre os abusos chave de periodos do passado recente;
c) programas de reparao com iniciativas patrocinadas pelo Estado que ajudam na re-
parao material e moral dos danos causados por abusos do passado. Em geral envolvem
no somente indenizaes econmicas mas tambm gestos simblicos s vitimas como
pedidos de desculpas oficiais;
d) reformas dos sistemas de segurana com esforos que buscam transformar as foras
armadas, a polcia, o poder judicirio e as relacionadas com outras instituies estatais
de represso e corrupo em instrumentos de servio pblico e integridade;
e) polticas de memria vinculadas a uma interveno educativa voltada desde e para
os direitos humanos, bem como prticas institucionais que implementem memoriais e
outros espaos pblicos capazes de ressignificar a histria do pas e aumentar a cons-
cincia moral sobre o abuso do passado, com o fim de construir e invocar a idia da
no-repetio.
Entendemos que a democracia, como institucionalizao da liberdade e regime poltico
da maioria associados aos direitos das minorias, no se constitui em valor natural ou um
imperativo categrico metafsico do fenmeno da Poltica. Trata-se de um fenmeno
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social, histrico, temporal e mutante. Da que a disseminao dos valores democrticos
tarefa que deve transcender e constar nas polticas pblicas de todos os governos.
Se certo que o processo de Reforma do Estado brasileiro, tem permitido melhor e maior
apoderamento social dos espaos e bens pblicos (e isto tem consumido a pauta poltica
desde a redemocratizao); por outro lado, uma pauta essencialmente voltada para a
importncia da democracia como um valor por si, a ser permanentemente semeado e
disseminado nas relaes scio-polticas cotidianas, no pode ser secundarizada na
agenda da nao, como se a questo democrtica no exigisse olhares permanentemen-
te atentos diante de qualquer sinal de retrocesso.
preciso promover e aceitar a luta cotidiana para aperfeioar e radicalizar a democracia
realmente existente. Uma luta conscientemente orientada para, primeiro, a construo
de uma nova hegemonia experimentada e legitimada no ritual democrtico republicano;
segundo, para a expanso de um novo contrato social e terceiro, para promover uma
nova esfera pblica democrtica e novas relaes entre Estado e sociedade.10
O que se est a considerar, em ltima anlise, que todas estas questes conectam-se
quilo que o professor Boaventura de Sousa Santos tem inspiradamente denominado de
democracia sem fim. Como Boaventura ensina, o horizonte continua sendo a democra-
cia e o socialismo, mas um socialismo novo; e seu novo nome democracia sem fim.11
Segundo o professor, para alarmos uma democracia de alta densidade, no possvel
mudar o mundo sem tomar o poder, mas tambm no se pode mudar algo com o poder
que existe hoje. Por isso devemos mudar as lgicas do poder e, para isso, as lutas demo-
crticas so cruciais e so radicais, por estarem fora das lgicas tradicionais da democra-
cia. Diante disso, deve-se aprofundar a democracia em todas as dimenses da vida.
Para termos fora para impor esta renovada razo, difundida pelo professor Boaventura,
no se pode ter dvidas de que as polticas de resgate da memria histrica e os dife-
rentes mecanismos e dimenses da Justia de Transio, constituem-se em estratgias
elementares, fundamentais e privilegiadas para a expanso humanista da Democracia
sem fim.
10 Sobre estas questes vide GENRO, Tarso. possvel combinar democracia e socialismo? In: GENRO, Tarso et alli. O mundo real: socialismo na era ps-neoliberal. Porto Alegre: LP&M, 2008.
11 SANTOS, Boaventura de Sousa. Contra-ofensiva neoliberal. 27 de Julho de 2009.
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Justia de Transio no Brasil: a dimenso da reparaoPAULO ABROProfessor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade Catlica de BrasliaPresidente da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia, Brasil
MARCELO D. TORELLYCoordenador de Cooperao Internacional da Comisso de Anistia do Ministrio da JustiaMestrando em Direito pela Universidade de Braslia, Brasil
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Neste texto, promove-se uma contextualizao sobre as polticas de reparao no Brasil,
buscando explicitar suas dimenses materiais e morais dentro do conjunto de medidas
empreendidas pelo Estado brasileiro para a superao do legado do autoritarismo, com
especial nfase aos resultados do trabalho da Comisso de Anistia do Ministrio da Jus-
tia na efetivao do direito constitucional reparao. Para tanto, dialoga-se com as
quatro grandes dimenses polticas da Justia de Transio: promoo da reparao s
vtimas; fornecimento da verdade e construo da memria; regularizao das funes
da justia e re-estabelecimento da igualdade perante lei e, por fim; reforma das insti-
tuies perpetradoras de violaes contra os direitos humanos; de modo a verificar como
tais dimenses constituem-se em verdadeiras obrigaes jurdicas no sistema de direitos
ptrio.
Metodologicamente, ser promovido um panorama sobre a justia de transio no Brasil
na tentativa de atualizar e promover um diagnstico que enfrente as incongruncias de
anlises de senso comum desconectadas do cenrio concreto, ou defasadas no tempo
histrico e poltico, seja por basearem-se em leituras equivocadas ou a conceitos acad-
micos estanques, desconectados da realidade histrica e poltica nacional, seja por serem
produto da ao poltica de setores conservadores que no aceitam a anistia e a repara-
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o como institutos legtimos, por ainda viverem sob marcada influncia do contexto da
Guerra Fria.
Em seguida, ser apresentada uma leitura do diagnstico promovido pela Comisso de
Anistia do Ministrio da Justia para promover o planejar suas aes para o perodo
2007-2010, baseando-se tanto em um resgate histrico do conceito brasileiro de anistia
(que resultado de reivindicaes sociais, diferentemente de outros processos de anistia
latino americanos), quanto numa extensa leitura sobre o contexto poltico onde medidas
transicionais so adotadas e as limitaes que tal contexto impe.
As partes finais do texto apresentam as novas aes empreendidas, classificando-as
como reparaes individuais com efeitos coletivos e reparaes coletivas com efeitos
individuais, apontando para a importncia da memria e da justia enquanto mecanis-
mos ltimos de reparao de danos rumo no repetio, numa viso que integra as
dimenses polticas e obrigaes jurdicas que balizam a justia de transio no Brasil em
um todo harmnico, e que sustentam a necessidade de avanar naquilo que permanece
inconcluso: a criao de uma Comisso da Verdade e a apurao dos crimes de Estado.
1. UM PANORAMA SOBRE A JUSTIA DE TRANSIO E AS POLTICAS
DE REPARAO NO BRASIL
A relevncia da promoo de processos de justia que garantam a retomada do Imprio
do Direito e, ainda, a confiana da populao no sistema jurdico, encontra acento na
diretiva da Organizao das Naes Unidas, que ao avaliar sua experincia em mais de
cem processos de democratizao ao redor de todo o mundo, assevera que:
Nossas experincia na ltima dcada demonstram claramente que a consolidao
da paz no perodo ps-conflito, assim como a manuteno da paz no longo prazo,
no pode ser atingida a menos que a populao esteja confiante que a reparao
das injustias pode ser obtida atravs de legtimas estruturas para a soluo pac-
fica de disputas e a correta administrao da justia.1
O processo de redemocratizao aps experincias autoritrias compe-se de pelo me-
nos quatro dimenses fundamentais: (i) a reparao, (ii) o fornecimento da verdade e
1 ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS. Conselho de Segurana. O Estado de Direito e a justia de transio em sociedades em con ito ou ps-con ito. In: Revista Anistia Poltica e Justia de Transio, no1, Braslia: Ministrio da Justia, jan/jun 2009, p.323.
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construo da memria, (iii) a regularizao da justia e re-estabelecimento da igualda-
de perante lei e (iv) a reforma das instituies perpetradoras de violaes contra os
direitos humanos2.
A ausncia de estudos tericos e empricos aprofundados sobre a justia de transio no
Brasil faz prevalecerem anlises primrias que apenas repercutem um senso comum ba-
seado em dois diagnsticos: o primeiro, de que o processo de acerto de contas (accoun-
tability) do estado brasileiro com o passado priorizou apenas o dever de reparar, valen-
do-se de um parmetro reparatrio baseado em critrios de eminente natureza
trabalhista que seria impertinente e, um segundo, de que a idia de anistia que, em
sentido etimolgico significa esquecimento, deturparia as medidas justransicionais do
Estado brasileiro pois em ltima anlise faria o pas viver um processo transicional que
procura esquecer o passado, e no super-lo.
No sentido de superar essas leituras superficiais, entendemos que a complexidade dos
processos transicionais, que mobilizam tanto esforos jurdicos quanto polticos, torna as
divises disciplinares tpicas dos arqutipos acadmicos pouco hbeis para lidar com fa-
tores que, em situaes usuais, seriam tratveis de modo isolado. Numa das mais slidas
teorizaes j empreendidas sobre Justia Transicional, Jon Elster classificou a existncia
de pelo menos trs tipos de justia num processo dessa natureza: a justia legal, a justia
poltica e a justia administrativa, cada uma delas podendo ser aplicada de modo indivi-
dual ou combinado, com melhores ou piores resultados para a efetivao da democracia
e do estado de direito3. A prpria natureza da separao de poderes no Brasil remete-nos,
quase que de pronto, a uma visualizao de que seria mais tpico ao Judicirio a promo-
o da justia legal, mais notadamente a responsabilizao de agentes criminosos do
regime, dentro dos limites de um Estado de Direito; ao Legislativo a promoo da justia
poltica, com a criao de leis que retirassem empecilhos a feitura de justia como leis
de auto-anistia e a instituio de diplomas especficos para a reparao de vtimas; e
ao Executivo a aplicao das leis e a implementao de polticas pblicas. Cada uma
dessas dimenses da justia transicional s possvel de ser plenamente desenvolvida se
o ambiente poltico a elas for favorvel.
2 CF.: BICKFORD, Louis. Transitional Justice. In: The Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity. Nova Iorque: MacMillan, pp.1045-1047. TEITEL, Ruti. Transitional Justice. Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 2000; bem como GENRO, Tarso. Teoria da Democracia e Justia de Transio. Belo Horizonte: EdUFMG, 2009.
3 ELSTER, Jon. Rendicin de Cuentas la justicia transicional em perspectiva histrica. Buenos Aires: Katz, 2006.
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absolutamente evidente que a implementao de qualquer das quatro dimenses da
Justia Transicional depende, necessariamente, da incluso das mesmas em um conceito
mais abrangente de justia. desta maneira que, para fundamentar a idia de reparao
aos perseguidos polticos, necessria a soma de pelo menos dois fatores no cenrio
jurdico-poltico de um pas: (i) o reconhecimento de que os fatos ocorridos foram injus-
tificadamente danosos e de responsabilidade estatal e (ii) o reconhecimento da obriga-
o do Estado de indenizar danos injustos por ele causados. A mesma lgica se aplica a
qualquer das demais dimenses, uma vez que apenas com (i) o reconhecimento de que
ocorreram crimes (e no, por exemplo, combate ao terrorismo) que se pode chegar ao
reconhecimento da (ii) obrigao de responsabilizar juridicamente aos agentes que co-
meteram tais crimes.
Desta feita, no dinmico cenrio de uma transio, as quatro dimenses polticas da
Justia Transicional adquirem status de obrigaes jurdicas ao passarem a compor o
acordo poltico constitucional que d integridade a um sistema de direitos fundado nos
valores da democracia e dos direitos humanos4, articulando, inclusive, o direito interno e
o direito internacional5.
Essa distino torna-se importante para que se possam diferenciar argumentos jurdico-
polticos utilizados nos debates em planos nacionais e internacionais, de modo a refinar
a anlise e torn-la mais coerente com a realidade, permitindo diagnsticos mais eficien-
tes na orientao da ao funo primeira da reflexo, seja em nvel acadmico, seja
em nvel governamental. Assim, se numa eventual condenao pela Corte Interamerica-
na de Direitos Humanos, por descumprimento de obrigaes referentes justia transi-
cional assumidas internacionalmente pelo Brasil, fato que se condena o Estado, por
sua vez, ao discutir a gesto das polticas pblicas no plano interno deve-se fazer a dis-
4 A respeito da integridade, Ronald Dworkin basilar: Insistimos na integridade porque acreditamos que as conciliaes internas negariam o que freqentemente chamado de igualdade perante a lei e, s vezes, de igualda-de formal. [...] Os processos judiciais nos quais se discutiu a igual proteo mostram a importncia de que se reveste a igualdade formal quando se compreende que ela exige a integridade, bem como uma coerncia lgica elementar, quando requer delidade no apenas s regras, mas s teorias de equidade e justia que essas regras pressupem como forma de justi cativa. DWORKIN, Ronald. O Imprio do Direito. So Paulo: Martins Fontes, 2007, p.255.
5 Por desta forma entender que a Comisso de Anistia do Ministrio da Justia promoveu a Audincia Pblica Limites e Possibilidades para a Responsabilizao Jurdica dos Agentes Violadores de Direitos Humanos durante o Estado de Exceo no Brasil ocorrida em 31 de julho de 2008 com uma exposio inicial composta por dois juristas com vises contraditrias sobre o assunto, seguida das manifestaes de amplos setores da sociedade civil. Tratou-se da primeira atividade o cial do Estado brasileiro sobre o tema aps quase 30 anos da lei de anistia. A Comisso de Anistia tem sustentado a responsabilizao dos agentes que praticaram crimes de tortura sistemtica em nome do regime: o sistema de direitos do Brasil, para que seja ntegro e coerente, necessita condenar de modo peremptrio o uso de tortura em qualquer circunstncia.
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secao da natureza das obrigaes polticas dos mltiplos agentes envolvidos na conso-
lidao democrtica (seguindo com a argumentao acima posta, exemplificativamente,
os trs poderes em suas atribuies singulares), sob pena de criar-se uma cegueira epis-
tmica que impede aos estudiosos do tema de perceber que, no Brasil, em funo da
baixa amplitude das demandas por justia transicional por muitos anos, boa parte das
iniciativas atualmente existentes partiram do poder executivo, sendo a participao do
legislativo hoje, geralmente, a reboque desde poder, e a do judicirio historicamente
quase nula (so parcas as iniciativas judiciais das prprias vtimas) no fosse a prota-
gonista atuao do Ministrio Pblico Federal instituio independente do Poder
Judicirio, com autonomia funcional e administrativa6.
6 No mbito da atuao social no Brasil, diante do um nmero relativamente menor de vtimas fatais em comparao aos regimes vizinhos, a luta pelos direitos das vtimas e pela memria acabou se reduzindo a crculos restritos, no obstante sua atuao intensa. A difuso dos fatos repressivos focalizados nas vtimas fatais pode ter inviabilizado a formao de novos grandes movimentos sociais em torno da temtica, diferentemente do que ocorreu em outros pases, como Argentina e Chile, e, ainda, permitiu a criao de classi caes infelizes, como a dictablanda de Guilhermo ODonnell e Philippe Schmitter, originalmente cunhada para de nir autocracias liberais e, posteriormente, apropriada de forma equivoca em veculos de comunicao brasileiros, como a Folha de S. Paulo que, para minimizar o horror de uma ditadura como a brasileira e posicionar contrariamente ao debate acerca da abrangn-cia da lei de anistia, denominou-a ditabranda em editorial no dia 17.02.2009. (Sobre as diferenas entre os regimes, consulte-se: PEREIRA, Anthony. Political (In)Justice Authoritarianism and the Rule of Law in Brazil, Chile, and Argentina. Pittsburgh: Pittsburgh University Press, 2005. Sobre os primeiros usos de ditabranda, con ra-se o uxograma da pgina 13 de: ODONNELL, Guilhermo; SCHMITTER, Philippe. Transitions from authoritarian rule tentative conclusions about uncertain democracies. Baltimore & Londres: John Hopkins, 1986). O acerto de contas com o passado restou, por muito tempo, circunscrito ao tema da reparao aos familiares de mortos e desa-parecidos e na localizao dos restos mortais e o esclarecimento das circunstncias dos assassinados nos termos da lei n. 9.140/95. De tal forma que, em um primeiro momento, se perdesse de vista uma ampla conscientizao social sobre os efeitos danosos das formas persecutrias mais amplas empreendidas pela ditadura: nos ambientes de trabalho, nas universidades, nas comunidades religiosas, nos exlios, na clandestinidade, nas regies no-centrais do pas e em seu interior, gerando uma falsa avaliao de que a ditadura brasileira no abrangeu amplos setores sociais, e sim apenas o restrito grupo daqueles mais cruelmente prejudicados: as famlias dos mortos e desaparecidos. Este cenrio de baixa amplitude de demandas por justia transicional comea a se alterar somente aps 2001, com a aprovao da Lei n. 10.559/2002 prevendo a responsabilidade do Estado por todos os demais atos de exceo, na plena abrangncia do termo. A partir da, para alm da atuao intensa e histrica do movimento de familiares mortos e desaparecidos e dos Grupos Tortura Nunca Mais, especialmente do Rio de Janeiro e de So Paulo, e do Movimento de Justia e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (em especial nos fatos do Cone Sul e Operao Condor), emergem da sociedade novas frentes de mobilizao segundo pautas mais ampliadas da Justia de Transio. neste perodo, por exemplo, que surgem novos movimentos que passam a atuar em torno do exerccio do direito reparao, podendo-se exempli ca-tivamente referir: a Associao 64/68 do Estado do Cear, Associaes dos Anistiados do Estado de Gois, Paraba, Rio Grande do Norte, Pernambuco, o Frum dos Ex-presos Polticos do Estado de So Paulo, a ABAP (Associao Brasileira de Anistiados Polticos), a ADNAM (Associao Democrtica Nacionalista de Militares), a CONAP (Coordenao Na-cional de Anistiados Polticos) e dezenas de outras entidades vinculadas aos sindicatos de trabalhadores perseguidos politicamente. Progressivamente foram sendo constitudos socialmente pautas como a defesa da responsabilizao dos agentes torturadores, a defesa da instituio de uma Comisso da Verdade para apurar os crimes da represso, a defesa da preservao do direito memria e do direito reparao integral, com a participao de agentes polticos renovados, como os Grupos Tortura Nunca Mais da Bahia, Paran e Gois, e de novas organizaes e grupos sociais, tais como os Amigos de 68, os Inquietos, o Comit Contra a Anistia dos Torturadores ou a Associao dos Tortura-dos na Guerrilha do Araguaia e de movimentos culturais como o Tempo de Resistncia. Ainda, neste ltimo perodo, em que se amplia o debate sobre a Justia de Transio no Brasil e que ganham grande destaque os trabalhos de grupos que buscam levar a histria da ditadura, da represso e da resistncia aos jovens, como o Ncleo de Memria Poltica do Frum dos Ex-Presos Polticos de So Paulo, que vem desenvolvendo muitas iniciativas no o ciais de preservao da memria e de busca da verdade como seminrios, exposies, publicaes, homenagens pblicas, atividades cultu-rais e reunies de mobilizao em torno da justia de transio.
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O contexto histrico e as caractersticas prprias da redemocratizao devem ser detida-
mente apreendidos pelo diagnstico a ser levado a cabo para anlise aprofundada das
polticas justransicionais no Brasil para a superao das anlises primrias de senso co-
mum referidas anteriormente.
Dois aspectos merecem ateno
O primeiro relaciona-se com a questo da anistia percebida como uma reivindicao
popular. Novamente exemplificando: enquanto em pases como a Argentina e Chile a
anistia foi uma imposio do regime contra a sociedade, ou seja, uma explcita auto-
anistia do regime; no Brasil a anistia foi amplamente reivindicada socialmente, pois se
referia originalmente aos presos polticos, tendo sido objeto de manifestaes histricas
que at hoje so lembradas7. preciso ressaltar que a deturpao da lei de anistia de
1979 para abranger a tortura perpetrada pelos agentes de Estado jamais fez parte dos
horizontes de possibilidades da sociedade civil atuante poca, at mesmo porque a
tortura no era uma prtica reconhecida oficialmente e seu cometimento no era visvel
publicamente em razo da censura aos meios de comunicao. Porm, o que importa
ressaltar aqui que a luta pela anistia foi tamanha que, mesmo sem a aprovao do
projeto demandado pela sociedade civil, por uma anistia ampla, geral e irrestrita para os
perseguidos polticos8, a cidadania brasileira reivindica legitimamente essa conquista
para si e, at a atualidade, reverbera a memria de seu vitorioso processo de conquista
da anistia nas ruas, aps amplos e infatigveis trabalhos realizados pelos Comits Brasi-
leiros pela Anistia, fortemente apoiados por setores da comunidade internacional9.
A segunda questo envolve o papel da classe trabalhadora na resistncia ao regime mi-
litar. certo que o papel da organizao dos trabalhadores nas reivindicaes corporati-
vas, em plena vigncia da lei anti-greve, imprimiu nuances significativas resistncia ao
regime militar. Na campanha pela anistia a resistncia tradicional uniu-se ao movimento
dos operrios que passou a incorporar em sua pauta reivindicatria bandeiras de enfren-
tamento ao regime poltico militar que originalmente no lhe eram caras. Ainda antes de
7 Cf.: BRASIL. 30 anos de luta pela anistia no Brasil: greve de fome de 1979. Braslia: Comisso de Anistia/MJ, 2010.
8 Em 22 de agosto de 1979, o Congresso Nacional, ainda sob a gide do regime militar e composto parcial-mente por senadores binicos (um tero), rejeitou o projeto de lei de anistia que propunha uma anistia ampla, geral e irrestrita aos perseguidos polticos e aprovou uma anistia restrita que excluiu de seus benefcios aqueles perseguidos polticos presos acusados de crimes de sangue.
9 Sobre a mobilizao internacional nos Estados Unidos, cf.: GREEN, James. Apesar de vocs. So Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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1979 e, mais especialmente aps a aprovao da lei de anistia, as greves dos trabalhado-
res intensificaram-se, inclusive dentro dos domnios de reas consideradas como reas
de segurana nacional. Estas greves foram reprimidas com a truculncia das polcias ci-
vis, militares e at mesmo com a participao das Foras Armadas, criando-se um am-
biente de perseguies aos lderes sindicais (alguns foram presos e enquadrados na Lei de
Segurana Nacional) e de demisses em massa aos trabalhadores grevistas pertencentes
aos quadros de empresas estatais e privadas.10 Da que, obviamente, ao se elaborar a le-
gislao para contemplar o dever do Estado de reparar, um dos parmetros de fixao de
indenizaes foi necessariamente vinculado aos critrios de indenizao trabalhistas em
razo das demisses arbitrrias, reestabelecendo direitos laborais e previdencirios lesa-
dos ao longo do tempo. nesse sentido que a lei previu a fixao de um direito uma
prestao mensal, permanente e continuada em valor correspondente ou ao padro re-
muneratrio que a pessoa ocuparia, se na ativa estivesse, ou a outro valor arbitrado
compatvel, com base em pesquisa de mercado, gerando um critrio assimtrico mas
coerente com sua prpria gnese e que deve ser contextualizado historicamente11.
10 Foram milhares as demisses arbitrrias de trabalhadores em diferentes regies do Brasil e em dife-rentes categorias e setores, os quais podem-se citar algumas: comunicaes (Correios), siderurgia (Belgo-mineira, CSN Companhia Siderrgica Nacional, Usiminas, Cosipa, Aominas), metalurgia (regio de Osasco e ABC Paulista, GM, Volkswagen), energia (Eletrobrs, Petrobrs, Petromisa, Plo Petroqumico de Camaari/BA), trabalhadores do mar (Lloyd, estaleiros), setores militares (Arsenal de Marinha), bancrios (Banco do Brasil, Banespa), areo (aeronautas e aerovirios da VARIG, VASP e trabalhadores da Embraer) e professores (escolas e universidades).
11 Os outros critrios xados para as demais formas de perseguies para aqueles que no perderam seus vnculos laborais o da indenizao em prestao nica em at 30 salrios mnimos por ano de perseguio poltica reconhecida com um teto legal de R$ 100.000 (segundo a lei 10559/2002), e o de uma prestao nica que atingiu um mximo de R$ 152.000,00 para os familiares de mortos e desaparecidos (segundo a lei 9.140/1995). Resultou da que pessoas submetidas tortura ou desaparecimento ou morte e que no tiveram em sua histria de represso a perda de vnculos laborais acabarem sendo indenizadas em valores menores que as pessoas que tiveram em seu histrico a perda de um emprego. Uma concluso super cial daria a entender que o direito ao projeto de vida interrompido foi mais valorizado que o direito a integridade fsica, o direito liberdade ou o direito vida. Esta concluso deve ser relativizada pelo dado objetivo de que a legislao prev que os familiares dos mortos e desaparecidos podem pleitear um dupla indenizao (na Comisso de Anistia e na Comisso de Mortos e Desaparecidos) no que se refere a perda de vnculos laborais ocorridos previamente s suas mortes e desaparecimentos (no caso da prestao mensal) ou a anos de perseguies em vida (no caso da prestao nica). Alm disso, a maioria dos presos e torturados que sobreviveram concomitantemente tambm perderam seus empregos ou foram compelidos ao afastamento de suas atividades pro ssionais formais (de forma imediata ou no) em virtude das prises ou de terem que se entregar ao exlio ou clandestinidade. Estes casos de duplicidade de situaes persecutrias so a maioria na Comisso de Anistia e, para eles, no cabe sustentar tese de subvalorizao dos direitos da pessoa humana frente aos direitos trabalhistas em termos de efetivos. Em outro campo, a situao agrantemente injusta para um rol espec co de perseguidos polticos: aqueles que no chegaram a sequer inserir-se no mercado de trabalho em razo das perseguies, como o caso clssico de estudantes expulsos que tiveram que se exilar ou entrar na clandestinidade e o das crianas que foram presas e torturadas com os pais o familiares. Para estes casos, a legislao efetivamente no oferece uma alternativa reparatria razovela despeito dos esforos da Comisso de Anistia. Para re exes espec cas sobre as assimetrias das reparaes econmicas no Brasil e o critrio indenizatrio especial, destacado da clssica diviso entre dano material e dano moral do cdigo civil brasileiro, con ra-se: ABRO, Paulo et alli. Justia de Transio no Brasil: o papel da Co-misso de Anistia do Ministrio da Justia. In: Revista Anistia Poltica e Justia de Transio. Braslia: Ministrio da Justia, n. 01, jan/jun 2009, pp. 12-21.
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Qualquer leitura do acerto de contas brasileiro que ignore estes dois aspectos histrico-
jurdicos fundamentais no mais far que repercutir um senso comum equivocado e
particularmente defasado. evidente que j de muito foi superada a idia de que anis-
tia significa esquecimento, tanto na sociedade civil, que consigna no movimento de
luta pela anistia o incio do processo de redemocratizao brasileira, quanto nos debates
legislativos e aes do Executivo, que passaram a tratar a anistia brasileira ou como ato
de reconciliao (legislativo)12 ou de pedido de desculpas oficiais do Estado pelos erros
que cometeu (executivo)13. A anistia como esquecimento resta afirmada apenas no poder
judicirio que, por natureza, o poder mais conservador da Repblica, e por setores da
academia com dificuldades em dialogar com a realidade concreta, fixando-se a conceitos
estanques e, claro, finalmente, por aqueles setores mais reacionrios da sociedade politi-
zada, que simplesmente no aceitam a anistia enquanto conquista democrtica e ideo-
logicamente no admitem o dever de reparao aos perseguidos polticos ou o conside-
ram indevido, por ainda dialogarem com uma idia pouco democrtica de espao
pblico que confunde resistncia com terrorismo.
A leitura equivocada do processo transicional e seus limites seja causa do equvoco
do mal-entendido semntico daqueles que se fixam a percepo estanque dos concei-
tos em detrimento da realidade ou que ignoram aspectos histricos e/ou jurdicos, seja
causa da m-f daqueles que querem desconstruir o processo da anistia precisou ser
afastada para permitir a virada hermenutica tomada pela Comisso de Anistia para
ressignificar o processo transicional brasileiro nas tarefas que lhe cabem, afinal, a fuso
de leituras equivocadas, acadmicas e polticas, vinham servindo para criticar de modo
genrico o processo de reparao no Brasil tanto quanto promovido pela CEMP, quan-
to pela Comisso de Anistia provocando, intencionalmente ou no, um enfraqueci-
mento da capacidade de mobilizao de recursos polticos para a sustentao da conti-
nuidade do prprio processo transicional.
Na avaliao empreendida pela Comisso de Anistia para reorganizar suas aes estrat-
gicas para o perodo 2007-2010, foram considerados, portanto, os seguintes elementos:
(i) a sociedade civil brasileira mais ampla desarticulou-se do tema da anistia, que passou
a ser desenvolvido por setores isolados uns dos outros, com grande sobreposio de es-
12 A referncia ao princpio da reconciliao nacional est literalmente inserta no art. 2 da lei 9.140 de 1995 que instituiu a CEMP. Artigo 2 - A aplicao das disposies desta Lei e todos os seus efeitos orientar-se-o pelo prin-cpio de reconciliao e de paci cao nacional, expresso na Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979 Lei de Anistia.
13 Vide item 2 deste texto.
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foros e desperdcio de energias, devendo o eixo prioritrio de ao ser a promoo de
atividades de rearticulao de uma causa esparsa, mas nunca esquecida; (ii) entre os
poderes de Estado, o Executivo , desde sempre, o principal artfice das medidas transi-
cionais no Brasil, sendo ou seu executor direto, ou o promotor do debate pblico que
pressiona aos demais poderes14, (iii) o processo de justia transicional brasileiro no se
resume s aes das duas comisses de reparao, e tal diagnstico nocivo, pois soma-
do ao ataque reacionrio contra o processo de reparao, obstaculiza o avano da con-
solidao democrtica brasileira.
certo que o senso comum, como primeira suposta compreenso do mundo e fruto da
espontaneidade de aes relacionadas aos limites do conhecimento em dado contexto,
contribui para se estabelecer as condies para super-lo15. Por isso prope-se um apro-
fundamento do diagnstico visando a uma investigao detalhada de cada um dos ele-
mentos que compem justia de transio no Brasil, tomando-se os conjuntos de me-
didas atinentes a cada uma das dimenses de modo mais detido para que seja
visualizvel, de forma panormica, o contexto de medidas transicionais como um todo e
em suas inter-relaes sem desconsiderar a proeminncia do processo reparatrio que,
por ser o objeto central desde estudo, ser abordadas aps a introduo das demais di-
menses.
Quanto dimenso das reformas institucionais, mister afirmar que tem sido uma tare-
fa constante o aperfeioamento das instituies no Brasil, promovido por meio de diver-
sos conjuntos de reformas, algumas delas realizadas ainda antes da existncia do sistema
de reparao aos perseguidos polticos, implantadas, portanto, em mais de 25 anos de
governos democrticos: a extino do SNI (Servio Nacional de Informaes); a criao
do Ministrio da Defesa submetendo os comandos militares ao poder civil; a criao do
14 Veja-se como exemplo a proposio das leis de reparao (1995 e 2002), ambas com gnese no poder executivo mesmo no caso da lei n. 10.559/2002 que regulamente o artigo 8 da Constituio, onde uma Medida Pro-visria foi usada para pressionar o Congresso Nacional a movimentar-se e aprovar matria de sua competncia mais direta: regulamentar a constituio. Tal situao segue sendo atual, com o Executivo e a Sociedade Civil chamando a criao de uma Comisso da Verdade, atacada por setores conservadores.
15 Para contribuir na superao do senso comum mister enraizar nas instituies acadmicas brasileiras estudos multi/transdisciplinares sobre justia transicional. Da que a Comisso de Anistia do Ministrio da Justia inicialmente criou a Revista Anistia Poltica e Justia de Transio, o primeiro peridico em lngua portuguesa dedicado ao tema, para difundir conhecimentos e pesquisas nacionais e estrangeiras e tambm assinou um termo de coopera-o com o Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de So Paulo para criar o IDEJUST Grupo de Estudos sobre a Internacionalizao do Direito e a Justia de Transio. O Grupo j rene uma rede aberta de pesquisadores e acadmicos, de diferentes campos do conhecimento, incluindo membros de instituies tais como a USP, UFMG, UFSC, UnB, UFGRS, UFU, UFRJ, UFPR, PUCRS, PUCMG, PUC-Rio, PUCPR, UNISINOS, CESUSC e UCB, que esto debatendo e iniciando produes cient cas no tema em ampla articulao com atores da sociedade civil e instituies de ensino e pesquisa de diversos pases.
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Ministrio Pblico com misso constitucional que envolve a proteo do regime demo-
crtico, da ordem jurdica e dos interesses sociais e individuais indisponveis (como o
prprio direito verdade); a criao da Defensoria Pblica da Unio; a criao de progra-
mas de educao em direitos humanos para as corporaes de polcia promovidos pelo
Ministrio da Educao; a extino dos DOI-CODI e DOPS; a revogao da lei de impren-
sa criada na ditadura; a extino dos DSI (Divises de Segurana Institucional), ligados
aos rgos da administrao pblica direta e indireta; a criao da Secretaria Especial de
Direitos Humanos; as mais variadas e amplas reformas no arcabouo legislativo advindo
do regime ditatorial; a criao dos tribunais eleitorais independentes com autonomia
funcional e administrativa.
Enfim, neste seara, verifica-se um processo ininterrupto de adequao e aperfeioamen-
to das instituies do Estado de Direito visando a no repetio. Todas essas medidas,
concentradas em apenas uma das dimenses essenciais da justia de transio, j de si
desmontam a tese de que o Brasil priorizou apenas o dever da reparao econmica.
Quanto dimenso da regularizao da justia e restabelecimento da igualdade perante
a lei, que se constitui na obrigao de investigar, processar e punir os crimes do regime,
mais especialmente aqueles cujas obrigaes assumidas pelo Brasil em compromissos
internacionais e as diretrizes constitucionais revestem de especial proteo (leses aos
direitos humanos), tem-se atualmente um quadro de intensa mobilizao social.
O principal obstculo consecuo da regularizao das funes da justia ps-autori-
tarismo produto da persistncia histrica de uma interpretao dada pela prpria dita-
dura lei de anistia de 1979, pretensamente vista como uma anistia bilateral que ca-
mufla uma auto-anistia, e pela omisso judicial em promover sua adequada, ntegra e
coerente interpretao, sob a luz dos princpios constitucionais democrticos e dos tra-
tados e convenes internacionais em matria de direitos humanos. Nesse sentido veio a
realizao da Audincia Pblica Os limites e possibilidades para a responsabilizao
jurdica de agentes pblicos que cometeram crimes contra a humanidade durante
perodos de exceo promovida pela Comisso de Anistia do Ministrio da Justia em
31 de julho de 2008, que exps oficialmente a controvrsia jurdica relevante acerca
desta auto-anistia aos atos cometidos pelos agentes de Estado envolvidos na prtica
sistemtica de tortura e desaparecimento forado como meios de investigao e repres-
so. Essa audincia pblica gerou um movimento para a construo de uma nova cultu-
ra poltico-jurdica no pas. Logo aps, o seu pice foi a propositura da Argio de
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Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) 16 pela Ordem dos Advogados
Brasil (OAB) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), com o objetivo de interpretar a lei
brasileira de anistia de modo compatvel com a Carta Magna e o direito internacional.
Pela primeira vez, o Governo brasileiro tratou formal e oficialmente do tema.
A audincia pblica promovida pelo Poder Executivo teve o condo de unir foras que se
manifestavam de modo disperso, articulando as iniciativas da Ordem dos Advogados do
Brasil, do Ministrio Pblico Federal de So Paulo, das diversas entidades civis, como a
Associao dos Juzes para a Democracia (AJD), a Associao Brasileira de Anistiados
Polticos (ABAP), a Associao Democrtica Nacionalista de Militares (ADNAM) e o Cen-
tro pela Justia e o Direito Internacional (CEJIL)17, e, ainda, fomentando a re-articulao
de iniciativas nacionais pr-anistia. Ressalte-se que a controvrsia jurdica debatida pelo
Ministrio da Justia e levada ao STF pela OAB advinha, inclusive, do trabalho exemplar
do Ministrio Pblico Federal de So Paulo ao ajuizar aes civis pblicas em favor da
responsabilizao jurdica dos agentes torturadores do DOI-CODI, alm das iniciativas
judiciais interpostas por familiares de mortos e desaparecidos, a exemplo do pioneirismo
da famlia do jornalista Vladimir Herzog que, ainda em 1978, saiu vitoriosa de uma ao
judicial que declarou a responsabilidade do Estado por sua morte18. A propsito, certo
que a Audincia Pblica e a ADPF 153 no reabriram o debate jurdico sobre o alcance
da lei de anistia aos agentes torturadores ou aos crimes de qualquer natureza, pois ele
sempre esteve presente19, mas o retiraram de um local de excluso perante opinio
pblica e o debate nacional.
16 Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) a denominao dada no Direito brasileiro uma ao de controle de constitucionalidade visando evitar ou reparar leso a preceito fundamental resultante de ato do Poder Pblico (Unio, estados, Distrito Federal e municpios), includos atos anteriores promulgao da Consti-tuio. No Brasil, a ADPF foi instituda em 1998 pelo pargrafo 1 do artigo 102 da Constituio Federal, posteriormen-te regulamentado pela lei n 9.882/99. Julgada nos dias 24 e 25 de abril de 2010, a ADPF foi declarada improcedente pelo STF que validou a interpretao de que a lei de anistia brasileira bilateral e declarou perdoados os crimes de tortura e lesa-humanidade cometidos pela represso brasileira.
17 A Associao dos Juzes para a Democracia (AJD), a Associao Brasileira de Anistiados Polticos (ABAP), a Associao Democrtica Nacionalista de Militares (ADNAM) e o Centro pela Justia e o Direito Internacional (CEJIL) ingressaram com Amicus Curie na ADPF 153.
18 Para maiores informaes sobre o caso, con ra: FVERO, Eugnia Augusta Gonzaga. Crimes da Ditadura: iniciativas do Ministrio Pblico Federal em So Paulo. In: SOARES, Ins Virgnia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada. Memria e Verdade A Justia de Transio no Estado Democrtico Brasileiro. Belo Horizonte: Editora Frum, 2009, pp. 213-234 e tambm WEICHERT, Marlon Alberto. Responsabilidade internacional do Estado brasileiro na promoo da justia transicional. In: SOARES, Ins Virgnia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada. Memria e Verdade A Justia de Transio no Estado Democrtico Brasileiro. Belo Horizonte: Editora Frum, 2009, pp. 153-168.
19 A esse respeito, con ra-se: DALLARI, Dalmo de Abreu. Crimes sem anistia. Folha de S. Paulo, 18 de dezembro de 1992. p. 3. BICUDO, Helio. Lei de Anistia e crimes conexos. Folha de S. Paulo. 6 de dezembro de 1995. p. 3. JARDIM, Tarciso Dal Maso. O Crime do Desaparecimento Forado de Pessoas. Braslia: Braslia Jurdica, 1999.
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A dimenso do fornecimento da verdade e construo da memria tambm encontrou
avanos. Alm do livro Direito Verdade e a Memria, a Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidncia da Repblica mantm uma exposio fotogrfica denominada
Direito memria e verdade a ditadura no Brasil 1964-1985 e recentemente lan-
ou duas novas publicaes, dedicadas as infncias e as mulheres violadas pela ditadura:
Histria de Meninas e Meninos Marcados pela Ditadura e Lutas pelo Feminino.
O Centro de Referncia das Lutas Polticas no Brasil (1964-1985) - Memrias Reveladas20
foi criado em 13 de maio de 2009 e coordenado pelo Arquivo Nacional, da Casa Civil
da Presidncia da Repblica. Tem por objetivo tornar-se um espao de convergncia,
difuso de documentos e produo de estudos e pesquisas sobre o regime poltico que
vigorou entre 1 de abril de 1964 e 15 de maro de 1985. Congrega instituies pblicas
e privadas, e pessoas fsicas que possuam documentos relativos histria poltica do
Brasil durante os governos militares. O Centro um plo catalisador de informaes
existentes nos acervos documentais dessas Instituies e pessoas. Parte da verdade da
represso que permite uma parte do acesso verdade est registrada em documen-
tos oficiais do regime militar j disponveis no Memrias Reveladas, documentos estes
eivados de uma linguagem ideolgica e, por evidncia, de registros que desconstroem os
fatos e simulam verses justificadoras dos atos de violaes generalizadas aos direitos
humanos.
Vale destacar tambm que, atualmente, alguns dos mais ricos acervos de arquivos da
represso encontram-se sob posse das comisses de reparao, que tem colaborado para
a construo da verdade histrica pelo ponto de vista dos perseguidos polticos. A pro-
psito, no fosse o trabalho das Comisses de Reparao criadas no governo Fernando
Henrique Cardoso, no se teriam muitas das informaes j disponveis sobre a histria
da represso.
No pode restar dvidas de que a iniciativa do governo Luiz Incio Lula da Silva em ins-
tituir uma Comisso Nacional da Verdade constitui-se em uma nova e imprescindvel
etapa do processo de revelao e conhecimento da histria recente do pas em favor de
20 No Banco de Dados Memrias Reveladas encontra-se a descrio do acervo documental custodiado pelas instituies participantes. Em alguns casos, possvel visualizar documentos textuais, cartogr cos e iconogr cos, entre outros. No portal do Centro - http://www.memoriasreveladas.gov.br, tambm podem ser consultadas publicaes em meio eletrnico, exposies virtuais, vdeos e entrevistas.
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uma efetiva memria que colabore para a construo da nossa identidade coletiva21.
Talvez, atravs da Comisso da Verdade seja possvel a efetivao do direito pleno ver-
dade histrica, com a apurao, localizao e abertura dos arquivos especficos dos cen-
tros de investigao e represso ligados diretamente aos centros da estrutura dos coman-
dos militares: o CISA (Centro de Informaes de Segurana da Aeronutica); o CIE (Centro
de Informaes do Exrcito) e; o CENIMAR (Centro de Informaes da Marinha). Para que,
assim, sejam identificadas e tornadas pblicas as estruturas utilizadas para a prtica de
violaes aos direitos humanos, suas ramificaes nos diversos aparelhos de Estado e em
outras instncias da sociedade, e sejam discriminadas as prticas de tortura, morte e desa-
parecimento, para encaminhamento das informaes aos rgos competentes.
Findo este breve balano sobre o contexto das aes nacionais, e antes de adentrar-se
um panorama sobre as medidas implementadas na dimenso reparatria no Brasil, deve-
se inserir no debate mais um argumento: as experincias internacionais tm demonstra-
do que no possvel formular um escalonamento de benefcios estabelecendo uma
ordem sobre quais aes justransicionais devem ser adotadas primeiramente, ou sobre
que modelos, a priori, atendem a realidade de cada pas, existindo variadas experincias
de combinaes exitosas22. Assim que, em processos de justia transicional no podemos
adotar conceitos abstratos que definam, a priori, a metodologia dos trabalhos a serem
tidos e das aes a serem implementadas.
Portanto, para pensar as polticas de justia transicional e, especialmente, as polticas de
reparao no Brasil, deve-se verificar anteriormente as vantagens advindas, por exemplo,
do fato de nosso processo justransicional ter se iniciado pela dimenso da reparao, e
no por outras, de modo a maximizar as vantagens j obtidas e envidar esforos de me-
nor monta na soluo dos dficits ainda existentes. Com tal metodologia evita-se o
academicismo de negar a realidade poltica e social enquanto dado concreto e objetivo
nas transies, que distorce a viso do pesquisador e a torna intil ao operador das pol-
ticas pblicas, que no dispe de meios para sustar os efeitos da realidade e aplicar uma
hiptese em abstrato (como a de que seria melhor termos iniciado nosso processo por
medidas de verdade ou medidas de justia).
21 Cf.: BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III). Braslia: Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, 2009. Decreto n. 7037, de 21 de dezembro de 2009 alterado pelo decreto de 13 de janeiro de 2010 que cria o Grupo de Trabalho para elaborar projeto de lei da Comisso Nacional da verdade. O Grupo de Trabalho foi nomeado pela Portaria da Casa Civil n. 54 de 26 de janeiro de 2010.
22 Cf.: CIURLIZZA, Javier. Para um panorama global sobre a justia de transio: Javier Ciurlizza responde Marcelo Torelly. In: Revista Anistia Poltica e Justia de Transio. Braslia: Ministrio da Justia, n. 01, jan/jun 2009, pp. 22-29.
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Da que o diagnstico de que o processo justransicional brasileiro privilegiou em sua
gnese a dimenso reparatria o que de si no muito preciso, pois, como vimos, al-
gumas medidas relevantes de reformas institucionais visando a no repetio foram
anteriores instituio do sistema reparatrio no deve ser lido como um demrito,
mas sim como apenas um elemento caracterstico fundante do modelo brasileiro para a
aplicao e realizao da justia transicional. Tentar transformar um fato oriundo de um
contexto concreto em um caractere para uma crtica abstrata , em ltima anlise, tentar
fazer a realidade se enquadar teoria, e no a teoria explicar a realidade.
Empreendendo essa metodologia reversa que diverge do senso comum, podemos identifi-
car pelo menos trs vantagens no processo transicional brasileiro: (i) temos como uma
primeira vantagem o fato de que tanto o trabalho da CEMP quanto da Comisso de Anistia
tem impactado positivamente a busca pela verdade, revelando histrias e aprofundando a
conscincia da necessidade de que todas as violaes sejam conhecidas, promovendo e
colaborando, portanto, com o direito verdade; (ii) ainda, os prprios atos oficiais de reco-
nhecimento por parte do Estado de leses graves aos direitos humanos produzidos por
essas Comisses, somados instruo probatria que os sustentam, tem servido de funda-
mento ftico para as iniciativas judiciais cveis no plano interno do Ministrio Pblico Fe-
deral, incentivando, portanto, o direito justia num contexto onde as evidncias da enor-
me maioria dos crimes j foram destrudas; (iii) finalmente, temos que o processo de
reparao est dando uma contribuio significativa na direo de um avano sustentado
nas polticas de memria num pas que tem por tradio esquecer, seja pela edio de obras
basilares, como o livro-relatrio Direito Memria e Verdade, que consolida oficialmente
a assuno dos crimes de Estado, seja por aes como as Caravanas da Anistia e o Memorial
da Anistia, que alm de funcionarem como polticas de reparao individual e coletiva,
possuem uma bem definida dimenso de formao de memria.
um dado que as medidas transicionais no Brasil so tardias em relao as adotadas em
outros pases, como os vizinhos Argentina e Chile, ou mesmo pases distantes, como a
Grcia e a Alemanha do ps-guerra, mas isso no depe contra a relevncia de adotar
tais medidas, como nos ilustra o exemplo da Espanha, que em 2007 editou lei para lidar
com os crimes da Guerra Civil e do regime franquista23. Inobstante ser uma incgnita se
o Brasil vai ou no continuar aprofundando sua transio poltica, em especial no que
23 Vide-se a Lei da Memria Histrica do Reino da Espanha, suja traduo para o portugus foi promovida pela Comisso de Anistia e encontra-se disponvel em: REINO DA ESPANHA. Lei 52/2007. Lei da Memria Histrica. In: Revista Anistia Poltica e Justia de Transio. Braslia: Ministrio da Justia, n. 2, jul/dez 2009, pp. 352-370.
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toca a dimenso do direito justia aps a deciso do STF24, o fato que se devem apro-
veitar todos os espaos j institudos para realizar medidas transicionais. O xito desta
tentativa de justia de transio tardia depende, claro, da sociedade a encampar como
uma demanda prpria, como tem ocorrido de forma crescente desde o ingresso da ADPF
153 e a rearticulao de movimentos sociais de espectro mais amplo entorno do tema,
especialmente num contexto onde a grande mdia manifestou-se de forma ativa contra-
riamente ao acolhimento pelo Supremo Tribunal Federal da ADPF 153 que teria permiti-
do a imediata abertura de processos judiciais de responsabilizao criminal dos agentes
criminosos do regime militar. Hoje, como elemento de justia, est disponvel para a so-
ciedade a abertura das aes declaratrias de responsabilidade civil, que no foram ob-
jeto da lei de 1979.
Finalmente, chegando a dimenso da reparao, temos que o sistema reparatrio para os
atos dos regimes de exceo do Sculo XX no Brasil integrado por duas comisses de
reparao: a Comisso Especial para Mortos e Desaparecidos Polticos (doravante CEMP)
e a Comisso de Anistia.
A CEMP, criada pela Lei n. 9.140/1995, alterada pelas leis 10.536/2002 e 10.875/2004, foi
instalada no Ministrio da Justia e, em 2004, deslocada para a Secretaria Especial de
Direitos Humanos. A legislao instituidora da Comisso j veio acompanhada de um
anexo com um reconhecimento automtico de 136 casos relacionados que deveriam ser
indenizados. O objeto de trabalho da Comisso Especial focou-se primeiro na apreciao
das circunstncias das mortes, para examinar exclusivamente se as pessoas foram ou no
mortas pelos agentes do Estado no perodo de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de
1988 e como isso aconteceu, afastando-se da apreciao dos atos dos envolvidos na
atividade de represso poltica. tambm responsabilidade da Comisso a localizao
dos restos mortais dos desaparecidos. Em 2007, a CEMP publicou o mais importante
documento oficial sobre o perodo ditatorial, o j refeirdo livro-relatrio denominado
Direito Verdade e Memria que detalha pormenorizadamente a promoo de 357
reparaes25. O prazo final para a entrada com requerimentos perante a CEMP foi pror-
rogado duas vezes, tendo sido encerrado em 2004.
24 Aguarda-se o pronunciamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Julia Gomes Lund x Brasil, sobre a Guerrilha do Araguaia onde se questiona, de modo incidental, a bilateralidade da lei de anistia no Brasil.
25 BRASIL. Direito Memria e Verdade. Braslia: Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidn-cia da Repblica, 2007.
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Atualmente, a CEMP prossegue desempenhando sua responsabilidade de Estado: busca
concentrar esforos na localizao dos restos mortais dos desaparecidos e na sistemati-
zao de um acervo de depoimentos de familiares e companheiros dos desaparecidos,
bem como de agentes dos rgos de represso, autores de livros, jornalistas e pesquisa-
dores que tenham informao a fornecer, para auxiliar na busca e na organizao de
diligncias que forem necessrias para a localizao dos restos mortais26. Para tanto,
constituiu um banco de DNA, gerando um legado de grande valia para a continuidade
dos trabalhos de identificao por futuras geraes, uma vez que muitos dos familiares
j ultrapassaram os 80 anos de idade.
Por sua vez, a Comisso de Anistia instalada no Ministrio da Justia, foi criada em 2001
por meio de Medida Provisria do Presidente da Repblica27 posteriormente convertida
na lei n. 10.559/2002, em ateno necessidade de regulamentao do artigo 8 do Ato
das Disposies Constitucionais Transitrias (ADCT) da Constituio da Repblica de
1988. Sua abrangncia temporal compreende o perodo de 1946 a 1988 no qual o Brasil
teve nada mais nada menos do que 20 presidentes da Repblica praticamente uma
mdia de um para cada dois anos tendo apenas seis sido eleitos pelo voto direto, em
razo de oscilaes institucionais de toda ordem. Seu escopo abrange todas as formas de
perseguies polticas e atos de exceo na plena abrangncia do termo, em especial
aquelas cometidas durante os 21 anos de ditadura militar: as prises arbitrrias, as tor-
turas, os monitoramentos das vidas das pessoas, os exlios, as clandestinidades, as demis-
ses arbitrrias de postos de trabalho, os expurgos estudantis e docentes nas universida-
des e escolas, a censura, as cassaes de mandatos polticos, as transferncias arbitrrias
de postos de trabalho, a interrupo de ascenses profissionais nos planos de carreira e
punies disciplinares, punies aos militares dissidentes, compelimento ao exerccio
gratuito de mandato eletivo de vereador, cassaes de aposentadoria ou aposentadorias
compulsrias, impedimento de investidura em concursos pblicos, perseguio e demis-
ses aos sindicalistas e aos trabalhadores grevistas (vigoravam no perodo leis proibindo
greves), tanto do setor pblico quanto no setor privado.
Os familiares dos mortos e desaparecidos tambm podem pleitear junto Comisso de
Anistia pelas perseguies sofridas por seus entes em vida. At dezembro de 2009 a
Comisso recepcionou aproximadamente 65 mil requerimentos, dos quais 58 mil j fo-
26 Sobre a histria da CEMP, vide o captulo 3 do livro-relatrio supra citado.
27 Segundo o artigo 62 da Constituio da Repblica brasileira, em caso de relevncia e urgncia, o Presiden-te da Repblica poder adotar medidas provisrias, com fora de lei, devendo submet-las de imediato ao Congresso Nacional.
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ram apreciados, tendo indeferido integralmente um tero deles, e deferido os outros dois
teros com ou sem cumulao de reparao econmica28. Como a legislao no fixa
data limite para o protocolo de novos requerimentos perante a Comisso de Anistia, o
protocolo do rgo segue permanentemente aberto.
O acervo corrente da Comisso de Anistia composto de gravaes em udio de mais de
700 sesses de julgamento realizadas ao longo de oito anos de atividade, onde encon-
tram-se registrados milhares de depoimentos e testemunhos diretos e indiretos de vti-
mas da ditadura. Ainda, constam mais de 300 relatos de moradores da regio do Ara-
guaia, parte em udio, parte em vdeo, coletados pela Comisso em trs Audincias
Pblicas in loco29; os arquivos de documentos, udio e vdeo de 15 outras Audincias
pblicas temticas relativas aos trabalhadores envolvidos nas grandes greves do perodo
militar e de mais 32 vdeos com as sesses pblicas de oitivas ocorridas nas edies das
Caravanas da Anistia julgamentos pblicos itinerantes que j percorreram todas as
regies do Brasil30. Tudo isso soma-se aos mais de 65 mil dossis individuais de anistia,
onde cada perseguido poltico narra sua experincia com o regime autoritrio e, ainda,
por ao da Comisso ou do prprio perseguido, rene documentao oficial mesmo a
do extinto Servio Nacional de Inteligncia que hoje exista disponvel e tambm docu-
mentos pessoais. Desta forma, o acervo da Comisso de Anistia , atualmente, uma das
mais abrangentes fontes de pesquisa existentes sobre o autoritarismo no Brasil.
Considerando este amplo e complexo cenrio acima descrito, este texto delimitar-se-
doravante apenas aos trabalho