livro - oswaldo cruz o mito - nara britto

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  • 7/23/2019 Livro - Oswaldo Cruz o Mito - Nara Britto

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    SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

    BRITTO, N. Oswaldo Cruz: a construo de um mito na cincia brasileira [online]. Rio de Janeiro:

    Editora FIOCRUZ, 1995. 144 p. ISBN 85-85676-09-4. Available from SciELO Books.

    All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non

    Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

    Todo o contedo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio -Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

    Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, est bajo licencia de la licencia Creative Commons

    Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

    Oswaldo Cruza construo de um mito na cincia brasileira

    Nara Britto

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    Fundao Oswaldo Cruz

    PresidentePaulo Marchiori Buss

    Vice-Presidente de Ensino, Informaoe ComunicaoMaria do Carmo Leal

    Editora Fiocruz

    DiretoraMaria do Carmo Leal

    Editor ExecutivoJoo Carlos Canossa Mendes

    Editores CientficosNsia Trindade Lima

    Ricardo Ventura Santos

    Conselho EditorialCarlos Everaldo lvares Coimbra JuniorGerson Oliveira PennaGilberto Hochman

    Ligia Vieira da SilvaMaria Ceclia de Souza Minayo

    Maria Elizabeth Lopes MoreiraPedro Lagerblad de OliveiraRicardo Loureno de Oliveira

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    N A R A B R I T T O

    1aReimpresso

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    Copyright 1995 Nara BrittoTodos os direitos desta edio reservados

    Fundao Oswaldo Cruz/Fiocruz

    ISBN: 85-85676-09-4

    1aedio: 1995

    1areimpresso: 2006

    1aedio

    Capa e projeto grficoAnglica Mello

    RevisoMarcionlio Cavalcanti de Paiva

    1areimpresso

    Capa, projeto grfico e editorao eletrnicaFernando Vasconcelos

    RevisoIrene Ernest Dias

    DigitaoGislene Monteiro Coimbra Guimares

    Reviso da digitaoWalter Duarte

    2006

    Editora FiocruzAv. Brasil, 4036 1oandar sala 112 Manguinhos

    21040-361 Rio de Janeiro RJTels: (21) 3882-9039 e 3882-9041Fax: (21) 3882-9007e-mail: [email protected]://www.fiocruz.br/editora

    B862o Britto, NaraOswaldo Cruz: a construo de um mito na cinciabrasileira / Nara Britto. Rio de Janeiro : Fiocruz, 1995.144p.Inclui bibliografia

    1. Oswaldo Cruz biografia. 2. Pessoas famosas.

    3. Sade pblica histria. I. Ttulo.CDD 20 ed. 926

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    Sumrio

    Introduo 7

    1.A construo de uma fora social: a organizaodo movimento sanitarista 21

    2. O Brasil de luto pela morte de Oswaldo Cruz 413.Como prosseguir sem Oswaldo Cruz? 55

    4. O culto memria 69

    Comentrios finais 125

    Fontes e bibliografia 131

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    E ste livro trata de Oswaldo Cruz. No uma biografia, porm partede biografias e de uma extensa bibliografia s quais pode-se impu-tar a construo de uma imagem pblica de Oswaldo Cruz. Assim, im-porta menos o homem do que o lugar que ele ocupa no imaginriocoletivo1.

    Esta literatura, a qual intitulei de hagiografia oswaldiana, tem ori-gem no crculo mdico prximo de Oswaldo Cruz. Produzida aps asua morte, em 1917, constitui um conjunto significativo de testemu-nhos que, ao lado de festividades organizadas com o propsito de mar-car a sua presena e eterniz-la, contribuiu para cristalizar determina-das imagens s quais associa-se a figura mitificada de Oswaldo Cruz,conhecida at hoje.

    Oswaldo Cruz um mito porque retratado no apenas como um

    heri da nacionalidade, o bandeirante que fincou os alicerces da Nao,mas em quem vislumbram-se qualidades divinas e sagradas, sendo re-conhecido entre outras metforas como o salvador, o apstolo da cincia.

    A heroificao de que Oswaldo Cruz foi objeto consiste num processoiniciado com a sua morte e imediatamente associado ao movimento

    1Este trabalho foi originalmente apresentado como dissertao de mestrado ao Programa dePs-Graduao em Sociologia do Instituto de Filosofia e Cincia Humanas (IFCS) da Univer-

    sidade Federal do Rio de Janeiro, em maro de 1992. Sua elaborao dependeu fundamental-mente de seu acolhimento por parte de Paulo Gadelha, diretor da Casa de Oswaldo Cruz, eda conduo firme e benevolente de Luiz Antonio Machado, que fez de sua orientao noapenas um meio de troca intelectual, mas um espao para a construo de uma amizadeduradoura.

    Introduo

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    sanitarista representado pela criao da Liga Pr-Saneamento do Brasil

    em 1918, difundindo-se a partir de ento de forma difusa, mas nomenos significativa.De fato, o movimento sanitarista foi um veculo poderoso de que

    no se pode dissociar o mito. Mdicos e higienistas como eram deno-minados os sanitaristas na poca constituem desde ento a base socialde sustentao de um discurso cujo atributo principal o de conferirlegitimidade s suas aes e interesses cientfico-polticos.

    O tema da legitimidade cientfica foi obscurecido pela literatura quetrata as relaes entre medicina e sociedade no Brasil no sculo XIX e

    no incio do XX. Predominou nestes trabalhos uma tendncia a carac-terizar a medicina como poder disciplinar, e os mdicos como formu-ladores de uma estratgia de medicalizao destinada a preparar e orga-nizar as populaes urbanas para as novas relaes sociais decorrentesdo sistema capitalista.

    Esta concepo, apresentada de forma pioneira pelo estudo deRoberto Machado (Machado et al., 1978) sobre o tema, ao lado de ou-tros trabalhos que seguem a mesma abordagem (Luz, 1979; Costa, 1979),instituiu um paradigma que marcou as anlises posteriores a respeitoda medicina social e das polticas de sade no Brasil2.

    Por outro lado, no campo da histria da cincia no Brasil, o tema dalegitimidade aparece como uma questo subjacente s aes da comu-nidade cientfica que, ante as oscilaes do ambiente social nem sem-pre favorvel ao florescimento cientfico caracterstica dos pases sub-desenvolvidos , cumpre um papel essencial no processo de institu-cionalizao de suas atividades3.

    2Pelo menos at meados dos anos 80, predominou esta concepo em diversos trabalhossobre a organizao da sade pblica nas trs primeiras dcadas republicanas. Associa-se algica restritiva da ao estatal sobre certas doenas em detrimento de outras, o modelocampanhista, lgica capitalista de manuteno da fora de trabalho e de expanso dasatividades econmicas (Costa, 1986; Labra, 1985; Campos, 1986). Para uma reviso crticade aspectos desenvolvidos nesta literatura, ver Carvalho & Lima, 1992).

    3Os trabalhos pioneiros de Schwartzman (1979) e Stepan (1976) constituem uma refern-cia importante desse tipo de interpretao e, de certo modo, instituem um paradigma deanlise que predominou na maioria dos estudos sobre a institucionalizao da cincia noBrasil. Nessa perspectiva, a origem e desenvolvimento da chamada medicina experimental isto , a pesquisa de laboratrio na rea biomdica interpretada como uma conseqn-

    cia do ambiente social satisfatrio cincia no incio do sculo. Diz-se que, sob a ameaaconstante de surtos epidmicos que incidiam sobre os principais centros do pas, o Estadoteria tomado iniciativas que vieram beneficiar a atividade cientfica e o desenvolvimentode instituies de pesquisa no pas, como demonstra o caso de institucionalizao bem-sucedida do Instituto Oswaldo Cruz.

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    Prefcio

    Mais prximo da orientao que imprimi a este trabalho, o tema da

    legitimao tratado na reflexo sobre os mitos da cincia desenvolvidapor Schwartzman (1981). Neste trabalho a questo identificada coma ideologia cientificista que proclama a utilidade social da cincia omito do progresso social , a qual representa um ingrediente indispen-svel cultura de todas as sociedades em que a cincia surgiu comoatividade significativa. O mito do progresso social uma crenaconstitutiva da institucionalizao da atividade cientfica, pois geravalores positivos e justificativas necessrias sua aceitao e ao apoioque a cincia exige para implantar-se e desenvolver-se.

    A esta sugesto de tratar a legitimidade como uma ideologia, acres-centou-se a anlise sobre a construo do mito de Oswaldo Cruz naperspectiva introduzida por Pierre Bourdieu ao tratar do campo cient-fico, na qual ela aparece como uma questo prpria dinmica dasrelaes sociais do campo. Conforme o autor, o campo cientfico carac-teriza-se pela luta concorrencial travada entre os pares, a qual visa posse do capital cientfico, isto , a autoridade cientfica sobre umarea de conhecimento ou disciplina. Esta autoridade, outorgada social-mente a um agente determinado, significa simultaneamente capacidadetcnica e poder social, conferindo-lhe a possibilidade de falar e agir legi-timamente (isto , de maneira autorizada e com autoridade) (Cf. Bourdieu,1983:24, 122).

    Trata-se ento de uma luta simblica em que est em jogo a conquis-ta ou a defesa do monoplio do exerccio legtimo de uma atividadecientfica e do poder de conferir ou recusar a legitimidade s atividadesconcorrentes. Ou seja, para Bourdieu a noo de legitimidade cientfi-ca indissociada da luta simblica que envolve grupos de statuscom

    idias e interesses diferentes, e que corresponde a situaes divergentesna hierarquia dos graus de consagrao do campo.Em outras palavras, a legitimidade implica o reconhecimento da

    diferena, num ato de distino que subjacente s relaes entre oscientistas, e que diz respeito identidade cultural de um grupo (Cf.Bourdieu, 1983:168-171).

    Desse modo, possvel relativizar e estabelecer algumas diferenas emrelao s perspectivas acima mencionadas, no que diz respeito, sobre-tudo, viso adotada aqui sobre os mdicos. Primeiro, em vez de defi-

    nir o seu papel social numa relao de exterioridade com suas concep-es, interesses e prticas, consideramos que suas aes e pensamentodevem ser remetidas prioritariamente ao lugar que ocupam na hierar-

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    quia social do campo mdico, sendo considerados, portanto, como agen-

    tes de seus prprios interesses.Embora concorde com a sugesto de Bourdieu, de que os interessesdos cientistas se constituem na luta concorrencial no campo, isto nosignifica imputar a estes interesses um grau de impermeabilidade abso-luto, sendo possvel verificar, no caso que analiso, a confluncia deprojetos dos mdicos e de outros setores sociais, assim como a sua aber-tura aos apelos do mundo da poltica.

    Em segundo lugar, contradizendo a noo difundida pela literaturaa que me referi acima, de que os mdicos formavam um corpo homog-

    neo e orgnico devotado causa normalizadora, considero que a tnicadas relaes internas ao campo era dada por conflitos que inviabilizavama sua organizao corporativa e poltica.

    Assim, analiso a construo do mito de Oswaldo Cruz como umaestratgia de legitimao da prtica mdico-cientfica, identificadainstitucionalmente com o Instituto Oswaldo Cruz, que visava supera-o das dissenes que entrecortavam o campo, dividido entre as dife-rentes prticas representadas pela clnica, higiene e medicina experi-mental. Como veremos adiante, o grau de conflito existente entre osmdicos inviabilizava a organizao de qualquer movimento com pre-tenses de natureza poltica que precisaria obter uma base de apoio amais ampla possvel para realiz-las, representando parte significativa,seno todas as principais instituies cientficas do campo mdico.

    A unificao de certos setores da categoria mdica em torno da idiado saneamento rural e da relevncia cientfica das doenas endmicaspossibilitou a organizao do movimento sanitarista, representado pelacriao da Liga Pr-Saneamento do Brasil em 1918.

    Nesse sentido, surpreendente a amplitude das adeses obtidas poreste movimento fora e dentro do crculo mdico. Como se pode obser-var na ata de fundao da Liga Pr-Saneamento, constam as assinatu-ras de eminentes polticos da poca, como o presidente Venceslau Brs,os senadores Paulo de Frontin, Epitcio Pessoa e Afrnio de Melo Fran-co, e de altas patentes militares como o marechal Rondon e os generaisIsmael da Rocha e Lauro Muller, alm de outras figuras notveis.

    No entanto, o maior nmero de simpatizantes constitudo pormdicos e higienistas, em que figuravam nomes dos mais representati-

    vos da categoria como, por exemplo, o do presidente da AcademiaNacional de Medicina, Miguel Couto, ou o do higienista, escritor eprofessor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Afrnio Peixoto.

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    A lista de nomes ilustres e o escopo das adeses sugere-nos que o

    movimento alcanou um alto ndice de credibilidade entre a categoria,mas tambm um consenso igualmente elevado em torno de suas princi-pais bandeiras: o combate s endemias rurais e a defesa da centraliza-o dos servios de sade.

    Tanto mais notvel o fato quanto verifica-se a heterogeneidade dacomposio do agrupamento formado, seja do ponto de vista dos inte-resses profissionais como dos vnculos institucionais.

    O estudo da Liga Pr-Saneamento revela um outro fato surpreen-dente: a preocupao em construir a histria do movimento.

    Esta preocupao explicitada pelos articulistas da revista Sade, peri-dico da Liga publicado durante 1918 e 1919, resultou no estabelecimentode uma ordenao cronolgica e na concatenao de determinadosfatos e eventos que tornassem legvel a origem e a histria da idia dosaneamento rural no Brasil.

    A narrativa sobre o passado constri uma periodizao que identificao saneamento com a trajetria institucional do Instituto Oswaldo Cruz.Distinguem-se, ento, duas fases: a primeira denominada de cientfica,e a segunda, de patritica. Em relao primeira fase, embora se reco-nhecesse que as endemias rurais no constituam uma prerrogativa daspesquisas do Instituto registrando-se o envolvimento de outros mdi-cos e instituies, como a Fundao Rockefeller, interessada no combate ancilostomose , destacava-se o seu papel. Assinalava-se o conjunto depesquisas desencadeadas pelas viagens cientficas em vrias regiesdo interior do pas transcorridos entre 1911 e 1913, que foram conside-radas os pilares cientficos sobre os quais ergueu-se a campanha dosaneamento.

    Segundo o mdico e higienista Belisrio Pena, presidente da Liga Pr-Saneamento, o retrato do Brasil captado pelos cientistas de Manguinhosteria revelado a verdade dos fatos, traduzvel em dados estatsticosinquestionveis: a populao brasileira, sobretudo a rural, est inutili-zada por doenas endmicas evitveis em 50% do seu total, e seriamenteprejudicada, horrivelmente degradada em 50% (Pena, 1919:218).

    No havia exagero na revelao da realidade e tampouco qualquerpessimismo, na medida em que a cincia poderia solucionar os proble-mas denunciados. De fato, nisso residia a virtude dos que lutavam pela

    poltica sanitria, movidos por desassombrado patriotismo, e tendocomo meta a conscientizao do pas a respeito de seus problemas esolues (Pena, 1919:222).

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    De acordo com a periodizao proposta, a fase patritica corres-

    pondia ao presente, tendo como marco a criao da Liga Pr-Sanea-mento e a estruturao da campanha pelo saneamento rural. Note-se,porm, que um fato anterior enaltecido como um antecedente funda-mental: o pronunciamento de Miguel Pereira, um dos mais notrioscatedrticos da Faculdade de Medicina, durante um jantar de home-nagem ao cientista Carlos Chagas em 1916, quando se referiu de formametafrica s condies de sade do pas: O Brasil um imenso hos-pital. O discurso foi tomado como um sinal de adeso de MiguelPereira causa do saneamento rural e a frase tornou-se emblemtica

    do movimento.Segundo Belisrio Pena, o discurso o sensibilizara para a idia de

    organizar uma campanha pblica pelo saneamento rural, sendo res-ponsvel tambm por sua filiao a vrias entidades nacionalistas dapoca, como a Liga de Defesa Nacional, a Liga contra o Analfabetismoe a Sociedade de Eugenia de So Paulo. Belisrio Pena relata que a partirdaquele momento passa a escrever artigos em jornais e a realizar confe-rncias a fim de divulgar a sua experincia como participante das via-gens cientficas realizadas pelo Instituto Oswaldo Cruz, nas quais ad-quirira conscincia das condies de vida da populao do trabalho(...) apalpando a misria e a doena (Pena, 1919:225)4.

    Saneamento do Brasil, livro em que Belisrio Pena sintetizou as princi-pais concepes e propostas de reforma na sade pblica, foi lanadoem janeiro de 1918, e segundo o autor representava a pedra fundamen-tal da Liga Ps-Saneamento, fundada um ms aps.

    Assim, a narrativa histrica sobre o surgimento do saneamento ruralorganiza uma sucesso de eventos e ressalta a participao de pessoas e

    instituies: inicia-se com o Instituto Oswaldo Cruz, passa pelos mdi-cos da Faculdade de Medicina (em destaque, Miguel Pereira), chegandoa Belisrio Pena. Tudo se passa como se houvesse uma relao necess-ria e inevitvel entre todos estes fatos, que somente reunidos adquiremum sentido e uma finalidade.

    4Belisrio Pena participou em diferentes ocasies das experincias que o Instituto OswaldoCruz realizou: em 1907, com Carlos Chagas ao norte de Minas Gerais na profilaxia damalria junto aos trabalhos de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil; emjulho de 1910 acompanhou Oswaldo Cruz Amaznia a servio da Estrada de FerroMadeira-Mamor para elaborar um plano de profilaxia da malria; e em 1912 acompanhouo cientista Artur Neiva numa das maiores expedies cientficas realizadas pelo Instituto,que percorreu as regies Nordeste e Centro-Oeste do pas.

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    Alis, intencionalidade o que no falta a esta narrativa, que pode

    ser considerada como uma espcie de memria coletiva referida hist-ria vivida5. O cuidado em descrever uma linha de continuidade entrepassado e presente constitui um artifcio engenhoso a fim de justificaras aes atuais.

    Ao caracterizar a trajetria profissional de seus integrantes num des-tino comum e compartilhado, sobressai tambm a inteno de estabe-lecer e sedimentar laos de identidade entre todos aqueles mdicos queadvogavam a causa do saneamento rural6.

    Um dos aspectos mais reveladores dos interesses e dos objetivos que

    motivavam a ao dos integrantes do movimento a surpreendentemanipulao de uma linguagem rica em smbolos e metforas que con-duz a narrativa sua articulao central: o mito de origem do saneamentorural identificado com Oswaldo Cruz e com a criao de seu insti-tuto de pesquisas, visto como o umbral da medicina cientfica no pas.

    Nesse sentido, verificamos uma representao primordial da qualdecorrem todas as demais: Oswaldo Cruz, escolhido patrono da Liga, reconhecido como o fundador da higiene cientfica e o criador de umaescola de onde surgiram mestres abalizados que levam a todos os pon-tos do pas a verdade, destruindo a rotina e o empirismo.

    Oswaldo Cruz objeto de uma profuso de imagens que pem emevidncia tanto a idealizao do cientista como a valorizao de seusherdeiros ou discpulos. Nesse sentido, a cincia constitui, simultanea-mente, um elemento justificador da campanha do saneamento rural ena definio da auto-imagem do grupo.

    Os argumentos que servem justificao das propostas da Liga orga-nizam-se a partir de uma representao da cincia, que a toma como

    uma atividade til sociedade e, mais do que isso, como a alavanca

    5A distino entre histria e memria coletiva segue aqui a orientao dada por MauriceHalbwachs, que diferencia o passado vivido do passado aprendido pela histria, o qual servede suporte quela (Halbwachs, 1990:71).

    6A tendncia atual dos estudos sobre memria coletiva explorar os processos e os atoresque intervm em sua constituio e formalizao. Autores como Michel Pollack e Jacques LeGoff adotam esta perspectiva e enfatizam a existncia de uma multiplicidade de memriasem concorrncia, pondo em evidncia o carter construtivo, oscilante e poltico de umaoperao que sempre coletiva e visa salvaguardar acontecimentos pela reinterpretaoconstante do passado diante dos combates do presente e do futuro. Nesse sentido, o traba-lho de enquadramento da memria traduz-se em tentativas mais ou menos conscientes dedefinir e reforar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre os grupos (Cf.Pollack, 1989:9, Le Goff, 1990:476).

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    primordial de seu futuro desenvolvimento. Esta posio est manifesta

    nas palavras inflamadas do presidente da Liga-Pr-Saneamento:Da a fundao da Liga Pr-Saneamento do Brasil, sob a proteo damemria de Oswaldo Cruz, o clarividente patriota precursor do sanea-mento do Brasil; quem fundou o Instituto de Patologia Experimental,que recebeu o seu nome glorioso e imortal, e onde se construram osslidos alicerces da santa cruzada, e se preparam os obreiros destemidosdesta obra colossal de salvao de um povo, de regenerao de uma raa(Pena, 1919:230).

    Pretendo neste estudo demonstrar que o movimento pelo sanea-

    mento rural organizou o consenso necessrio para a ao poltica, usandopara isso a imagem de Oswaldo Cruz. Este, aps a morte, em fevereiro de1917, tornou-se objeto de um processo de heroificao que visava legi-timar o movimento e, ao mesmo tempo, pacificar as dissenes doInstituto Oswaldo Cruz, agravadas com a perda de sua principal lide-rana e que ameaavam a sua estabilidade. Como poderia o movimentoorganizar-se sem o consenso necessrio para a ao poltica? Comoconquistar apoios sem legitimidade social?

    Do meu ponto de vista, estes foram os principais dilemas enfrenta-dos pelos mdicos e sanitaristas, de dentro e de fora do Instituto OswaldoCruz, cujo projeto poltico e cientfico se viu ameaado com o desapa-recimento de sua mais importante fonte de legitimidade.

    Mdicos e higienistas, a fim de organizarem-se e concorrerem noterreno poltico-ideolgico com outras foras sociais, lanaram mo deum poderoso instrumento simblico: a figura idealizada de OswaldoCruz, que, morto, converteu-se num smbolo capaz de catalisar e agluti-nar o movimento sanitarista.

    A constatao da perenidade do mito de Oswaldo Cruz na atualida-de, a evocao de seu nome em solenidades cvicas ou em movimentospolticos por reformas na sade brasileira constituram um bom motivopara o desenvolvimento deste estudo7.

    Tal importncia social contrasta com um certo descaso acadmicopelo assunto. Salvo engano, no h referncias na literatura especia-lizada sobre a cincia e a sade no Brasil; no mximo, registra-se o fato,e, via de regra, refere-se ao mito como uma decorrncia da realidade

    7 A obra biogrfica de cunho ficcional recentemente escrita pelo romancista e mdico(sanitarista) Moacyr Scliar demonstra a vitalidade do assunto e o interesse que ainda desperta.Ver Scliar, 1992.

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    emprica, isto , identifica-se a heroificao com o reconhecimento so-

    cial obtido por Oswaldo Cruz a partir do sucesso de suas campanhassanitrias na cidade do Rio de Janeiro.Em outras palavras, o mito seria decorrente de um julgamento p-

    blico favorvel s suas aes e a determinados empreendimentos cient-ficos de seu instituto de pesquisas. Desse modo, incorre-se num tipo denaturalizao, como se a biografia consistisse em uma dimenso sufici-ente que contivesse elementos plausveis para a explicao do fenmeno.

    A relao entre histria e mito constitui um desafio reconstruohistrica e anlise sociolgica, pois significa enfrentar um fenmeno

    cuja maior propriedade seja, talvez, a de embaralhar estas dimenses.Muitos estudiosos tm se dedicado ao tema. Entre estes, vali-me dos

    trabalhos de Raoul Girardet (1987) e Jos Murilo de Carvalho (1990)sobre mitos polticos, que ofereceram contribuies valiosas para a in-terpretao que elaborei sobre o mito de Oswaldo Cruz.

    Em primeiro lugar, preciso referir que os autores consideram im-possvel traar uma linha de demarcao precisa entre a fabulaolegendria e o relato de ordem histrica. Porm, ambos assinalam queas construes mitolgicas, quando relativas a pessoas humanas, guar-dam de alguma forma a marca da histria.

    Assim, para Girardet, diferentemente dos grandes heris imagin-rios como dipo, Fausto ou Don Juan figuras desenraizadas de qual-quer contexto, e por isso sujeitas a sucessivas interpretaes , o processode heroificao de um ser de carne e osso, historicamente definvel,no poderia fazer esquecer os traos particulares que so os de umapersonalidade e de um destino (Girardet, 1990:81).

    Nestes casos, o mito no pode deixar de conservar a marca do perso-

    nagem em torno do qual ele se constri, e, tampouco, das circunstn-cias historicamente delimitadas nas quais elaborado, isto porque elepode constituir-se de um ato voluntrio, mas jamais de forma arbitrria.

    Carvalho acentua este aspecto, chamando a ateno para o fato deque a heroificao de uma pessoa real pode falhar se o personagem nose prestar a esta transformao. Nesse sentido, necessrio ocorrer umatransmutao da figura real, a fim de torn-la arqutipo de valores easpiraes coletivas (Carvalho, 1990:14).

    Em outras palavras, embora um smbolo possa se estabelecer a partir

    de um ato de vontade, jamais se impe de forma arbitrria. Sua aceitaoe eficcia poltica depende de uma crena comum enraizada no imaginriopreexistente ou presente em aspiraes e projetos futuros. Se isso no

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    ocorre, a relao de significado no se estabelece e o smbolo cai no

    vazio, se no no ridculo (Carvalho, 1990:13).Os autores assinalam o carter coletivo destas construes simblicas,devendo ser compreendidas como a projeo de ideais e aspiraes dedeterminados grupos sociais, que, por isso, revelam sempre mais sobre asociedade do que sobre o indivduo em questo (Cf. Carvalho, 1990:14).

    Por ser fruto de uma construo coletiva, o mito uma espcie derevelador ideolgico, o reflexo de um sistema de valores ou de um tipode mentalidade (Cf. Girardet, 1987:83).

    As observaes dos autores quanto verso mitificada de persona-

    gens reais sugerem que esta uma complexa operao, que prev a exis-tncia de um delicado equilbrio entre o real e o imaginrio. A narrati-va legendria caracteriza-se por uma certa ambigidade ao demarcartenuemente as fronteiras entre estas dimenses, exigindo, contudo, aadequao entre o heri e as necessidades de uma sociedade em umdado momento histrico.

    Em segundo lugar, ambos chamam a ateno para outro trao signi-ficativo das construes mitolgicas: a presena visvel de certa mani-pulao voluntria, fato que testemunha um desgnio organizado defabricao deste tipo de discurso.

    Quanto a este aspecto, Girardet comenta que apesar da marca deidentificao de um smbolo a um grupo social, possvel que aolongo do tempo ele ganhe uma certa amplitude coletiva, combinan-do vrios sistemas de representaes e imagens e constituindo assimuma espcie de encruzilhada do imaginrio, onde cruzam-se aspira-es e exigncias diversas, que so, por vezes, contraditrias (Cf.Girardet, 1987:72-73).

    Apesar dos autores assinalarem a complexidade envolvida na rela-o entre mito e histria, consideram essencial nesse tipo de fenmenocompreender como se opera a passagem do histrico ao mtico, ou seja,o processo de heroificao de que resulta a modificao do real e emque ocorre sua absoro pelo imaginrio social.

    Esta tambm foi a orientao que imprimi a este trabalho, no qualso visveis as marcas das reflexes dos autores citados, que auxiliarama interpretao que constru para o mito de Oswaldo Cruz8.

    8O trabalho do historiador Peter Burke sobre Lus XIV, publicado em 1994, segue aborda-gem semelhante dos autores mencionados, no tendo sido consultado visto que suaelaborao foi contempornea a este estudo.

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    Assim, ao contrrio da opinio corrente, no acredito que o recurso

    biografia de Oswaldo Cruz constitua evidncia suficiente para explicar a suaelevao condio de personagem emblemtico da cincia brasileira. Emminha opinio, o mito de Oswaldo Cruz fruto da fabricao de um dis-curso cujo atributo essencial o entrelaamento de realidade e idealizao.

    A relao entre estas dimenses marcada pela tenso; a superposiodo real e imaginrio constitui, talvez, o mistrio e o fascnio destesfenmenos sociais que, assim como a lenda, ocultam o quanto de reale de inveno contm. Como possvel uma reconstruo histrica davida e da obra de Oswaldo Cruz que estabelea uma distino entre o

    indivduo histrico e a figura mtica? Como reconhecer Oswaldo Cruzsem as qualificaes que o distinguem como o maior expoente da cin-cia brasileira? possvel distinguir uma figura histrica real no conta-minada pelo discurso mtico?

    Desvendar no discurso mitolgico o quanto de verdade ou de fanta-sia contm parece-me uma tentativa v, posto que qualquer interpreta-o histrica constituda de representaes. Desse modo, no importaaqui contrapor a histria verdadeira narrativa no-verdadeira, OswaldoCruz real em oposio ao idealizado. Mas sim a realidade do mito, ouseja, o processo de uma construo simblica que atuou positivamentesobre a realidade.

    Assim, procurei mostrar como o mito constitui um instrumento po-deroso para a superao dos conflitos que impediam a ao coletiva dacomunidade de mdicos e sanitaristas pertencentes ao Instituto OswaldoCruz e s demais instituies de sade, no perodo que antecede e sucede sua morte em 1917.

    Enquanto um instrumento de luta poltica, a mitificao de Oswaldo

    Cruz viabilizou a ao coletiva em torno de um projeto inovador napoca, de mudanas na sade pblica brasileira que, entre outros objeti-vos, visava combater as doenas endmicas, como a malria e a doenade Chagas. Alm disso, contribuiu para a legitimao do Instituto deManguinhos, projetando-o de forma mpar na histria das cinciasbiomdicas em nosso pas.

    Embora este estudo possa ser remetido s reflexes no campo dahistoriografia sobre memria coletiva, acredito poder contribuir de modoparticular para os debates travados no campo de estudos sociais da

    cincia, assinalando a importncia dos aspectos polticos e das crenas,integrantes da ao e do comportamento dos agentes, no processo deinstitucionalizao da cincia no Brasil.

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    necessrio compreenso dos propsitos deste trabalho esclarecer

    que a periodizao estabelecida toma como marco desta construosimblica a morte de Oswaldo Cruz em 1917, estendendo a anlise dasfontes at 1974, ano em que vieram luz publicaes comemorativasdo centenrio de seu nascimento, em 1972, fato coincidente com osesquicentenrio da Independncia, que ocorreu nesta data.

    Embora tenha privilegiado os textos escritos sobre Oswaldo Cruzentre 1917 e 1922, em que se constroem e se consolidam elementosfundamentais do mito, considerei importante verificar se estes elemen-tos tinham sido atualizados e at quando poderia rastrear a sua presena.

    Uma orientao inicial e que acabou por prevalecer durante a rduatarefa de explorao das fontes foi a de rastrear a literatura produzidaem funo de efemrides nacionais e ligadas a eventos promovidos peloInstituto Oswaldo Cruz.

    De forma alguma pretendi esgotar as referncias sobre Oswaldo Cruz,e tampouco consegui abranger a totalidade da literatura produzida pelosmdicos e sanitaristas, qual foi circunscrita a pesquisa, vez que osconsiderei como os principais construtores do discurso mitolgico.

    No levantamento e na anlise das fontes selecionadas no pretendiconstatar graus crescentes e decrescentes de mitificao ao longo dotempo. Este tipo de questionamento exigiria uma investigao maisampla e aprofundada que permitisse verificar se ocorreu um esvaeci-mento do mito medida que nos distanciamos do perodo inicial desua construo. Observei, no entanto, a perenidade de certas imagensque compem a figura mitificada de Oswaldo Cruz, no raro evocadaat os dias atuais.

    Um histrico sucinto da organizao e das propostas da Liga Pr-

    Saneamento, bem como o processo de reconhecimento de OswaldoCruz durante seu perodo de vida, ser focalizado no primeiro captulo.O processo de reconhecimento que qualifiquei de converso foiresponsvel pela organizao de um certo consenso a respeito da legiti-midade da prtica mdico-cientfica de Manguinhos, pilar sobre o qualo movimento sanitarista assentaria suas pretenses de intervir no debatepoltico da poca.

    No segundo captulo apresento uma breve narrativa acerca da enfer-midade de Oswaldo Cruz e da repercusso de sua morte em fevereiro de1917. O tema do terceiro captulo versa sobre as conseqncias do desa-parecimento do cientista para a sobrevivncia de sua instituio, con-seqncias cuja dramaticidade foi exacerbada pelos conflitos internos

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    que dividiam a instituio e ameaavam a escolha do cientista Carlos

    Chagas para ocupar o cargo de direo.No ltimo captulo abordo a construo do discurso mtico sobreOswaldo Cruz, fenmeno desencadeado aps seu falecimento e vincu-lado, inicialmente, organizao da Liga Pr-Saneamento do Brasil.

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    A construo de umafora social: a organizao domovimento sanitarista

    Sanear o Brasil povo-lo, enriquec-lo, moraliz-lo!Belisrio Pena

    ALiga Pr-Saneamento do Brasil foi fundada em fevereiro de 1918por iniciativa de Belisrio Pena, funcionrio da Diretoria Geral de

    Sade Pblica. Desde 1914 trabalhava ele num posto de atendimentomdico na periferia da cidade do Rio de Janeiro, cujo principal objetivoera a profilaxia e tratamento da malria.

    Durante os anos de 1918 e 1919, o movimento em prol do sanea-mento rural, catalisado pela Liga, congregou diversos intelectuais e pro-fissionais liberais, mdicos, advogados, engenheiros, militares, polti-cos, incluindo o presidente da Repblica, o mineiro Venceslau Brs.

    No decorrer desses anos, a Liga promoveu vrias conferncias em

    associaes privadas, como a Sociedade Nacional de Agricultura(em cuja sede, no Rio de Janeiro, foi criada) e a Associao Crist deMoos, assim como em instituies pblicas escolas, estabelecimentosdo Exrcito e da Marinha etc. De acordo com os relatos de BelisrioPena, a doutrinao em favor do saneamento no se restringia ao espaonobre da capital da Repblica: ele realizou palestras em seus subrbiose em cidades do interior do pas, distribuindo panfletos de carter pe-daggico que alertavam a populao para a importncia dos princpiosbsicos de higiene fundamentais na preservao da sade.

    A Liga estabeleceu delegaes em algumas unidades da federao,visando estimular os governos estaduais e municipais a implementarema construo de habitaes higinicas, a profilaxia de doenas consideradas

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    evitveis, programas de educao higinica, postos rurais e obras de

    saneamento bsico.Durante o perodo de vigncia, a Liga Pr-Saneamento publicou arevista Sade, uma das principais fontes para o estudo da histria domovimento. Apesar de no haver ultrapassado oito nmeros, o peri-dico nos fornece um amplo painel das idias que constituam o reper-trio do saneamento rural. Ao lado de textos doutrinrios, veiculava,sobretudo, no ano de 1919, artigos de carter cientfico sobre as ende-mias rurais e sobre os variados temas que a higiene englobava9.

    No que se refere ao contedo das principais concepes de sanea-

    mento, vale salientar a definio de sade elaborada pelo movimento.Na opinio do presidente da Liga, Belisrio Pena, a sade ao lado daeducao constitua um problema primordial. Ela era a base incon-testvel do vigor fsico, da melhoria da raa, da produo, da alegria,da riqueza e do progresso. A doena no comprometia apenas a sadefsica dos indivduos, mas tambm a higidez moral, acarretando conse-qncias negativas para o corpo social. Portanto, o problema sanit-rio no apenas mdico e higinico, sobretudo social, poltico e eco-nmico (Pena, 1923:297).

    De acordo com esta viso particular, o Brasil vivia mergulhado numasrie de erros, loucuras e crimes deste regime de satrapias infecciosas dosvrus do cinismo, da traio, da hipocrisia e do latrocnio (Pena, 1923:16).Enquanto isso, trinta milhes de habitantes encontram-se abandona-dos ignorncia, s doenas, causas essenciais da desmoralizao damisria, da degradao e da decadncia dos povos (Pena, 1923:16).

    A Liga Pr-Saneamento declarava-se empenhada na luta patriticae definia como seu principal objetivo promover uma propaganda

    ativssima para incutir no esprito de todos os nossos patrcios, sobre-tudo no dos homens pblicos, dos literatos, dos jornalistas e dos inte-lectuais, que o alcoolismo, a doena de Chagas, a malria, e a opilao,que atingem a populao do interior, so as causas do nosso atraso eda vergonhosa retarguarda em que vamos ficando de outros povos(Pena, 1923:297).

    9Para uma anlise mais aprofundada deste peridico, ver Britto & Lima, 1991a. O conselhoredator de

    Sadeera composto por mdicos e higienistas vinculados Diretoria Geral de

    Sade Pblica e ao Instituto Oswaldo Cruz. So eles: Belisrio Pena, Olmpio da Fonseca,Astrogildo Machado, Aristides Marques da Cunha, Joo Barros Barreto, Mrio Magalhes, J. P.Fontenelle, Edgar Roquette-Pinto. Contava ainda com a participao de outros intelectuais,os advogados Plnio Cavalcanti e Olmpio Barreto.

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    Sintetizando este programa, o presidente da Liga proclamava enfati-

    camente: Sanear o Brasil povo-lo, enriquec-lo, moraliz-lo!(Pena, 1923:351).A campanha do saneamento do Brasil e no apenas do interior,

    como ressalva Belisrio Pena constitua um projeto a um s temposocial e moral, pertinente aos indivduos e sociedade. O progresso danao dependia do trabalho e da produo, mas estas duas alavancasse achavam emperradas por efeito da generalizao das endemias queabatiam as energias do homem produtivo.

    Deste breve resumo das idias do presidente da Liga Pr-Saneamento

    sobressaem trs pontos que definem a caracterstica essencial do movi-mento. Em primeiro lugar, a concepo peculiar de sade como fator deprogresso. Em segundo, a elaborao do que se pode chamar uma teoriahigienista do desenvolvimento, que procurava explicar as desigualdadesentre as naes a partir da existncia ou no de uma poltica sanitria.Segundo Pena, todos os pases cultos Inglaterra, Itlia, Frana, Ale-manha, Japo, Estados Unidos etc. deviam seus progressos assombro-sos adoo das orientaes higinicas que decorriam de Louis Pasteure da medicina social do sculo XIX. E para melhor enfatizar seu ponto devista, tinge em cores vivas nosso contraste com estes exemplos: a higienenas sociedades modernas tornara a vida um encanto, um dom verda-deiramente divino; ela era capaz de transformar num den o infernoque atualmente o interior do Brasil (Pena, 1923:152, 167)10.

    Em terceiro lugar, ao atribuir o atraso do pas ausncia de sade eeducao, o pensamento mdico-higienista apresentava uma soluooriginal para o impasse em que se achava o Brasil, recusando odeterminismo de base climtica e tnica que predominava no debate

    10De acordo com George Rosen, a higiene, articulada com a fsica, a qumica e a biologia,definia-se como a cincia que abordava os fatores materiais nocivos ao organismo humano(higiene fsico-biolgica). Tratava, tambm, dos efeitos das condies sociais sobre os agru-pamentos humanos (higiene social), procurando descrever e normatizar hbitos de limpezae cuidados com a sade entre os grupos sociais (Rosen, 1979:118). As pretenses cientficasda higiene enquanto uma disciplina, notadas por Rosen, no devem obscurecer o seuaspecto poltico. As idias de reforma social ou de regenerao, que tinham curso em muitospases desde o final do sculo XIX, vinham acompanhadas do discurso higienista, e vice-versa, como demonstra Bruno Latour em relao Frana (Latour, 1986). Nessa tica, ahigiene constitua um instrumento libertador das naes: alm de consistir um indcio decivilizao dos pases que adotavam uma poltica sanitria, era considerada um instrumentode progresso na medida em que assegurava a sade da populao. Esta era, inclusive, aconcepo dominante entre os mdicos e higienistas brasileiros, que aliavam o discursopreventivista a duas ideologias muito difundidas no Brasil aps a Primeira Guerra Mundial:o cientificismo e o nacionalismo.

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    11 As concepes do movimento sobre raa e degenerao racial so detalhadas no trabalhosobre Sadecitado acima. A degenerao no sentido tanto empregado pela revista comodefinido por Pena refere-se a um processo de debilitamento progressivo motivado pelasprecrias condies de vida e sade. As doenas destruiriam a vitalidade, a energia, e mata-vam lentamente as suas vtimas, permitindo a propagao de uma raa de tarados e degene-rados (Britto & Lima, 1991a:18).

    12A luta ideolgica travada no ps-guerra era encarnada por diferentes correntes de pensa-mento que se organizaram em diversas entidades, como a Liga de Defesa Nacional, a LigaNacionalista de So Paulo, a Sociedade de Eugenia, a Liga contra o Analfabetismo, entreoutras. Diversos temas eram debatidos pelos intelectuais engajados nestes movimentos:desde a relao do Brasil com o conflito europeu e a posio que o pas ocupava no cenriointernacional, passando pela educao pblica at as questes raciais, presentes na discus-so sobre poltica de imigrao. Chamando a ateno para os aspectos poltico-ideolgicosdo movimento sanitarista no ps-Primeira Guerra, Santos (1985) considera a campanha dosaneamento rural como uma ideologia afinada com o nacionalismo da poca, dividido emduas correntes principais: a primeira identificava-se com os valores urbanos e industriais,considerados a base do projeto de modernizao; a outra pregava o sertanismo como ocaminho de construo nacional a partir da recuperao do homem do interior, consideradocomo o depositrio dos verdadeiros valores da nacionalidade, tendo em Euclides da Cunhao precursor dessa vertente, e entre seus defensores encontravam-se intelectuais como AlbertoTorres, Vicente Licnio Cardoso e Monteiro Lobato. De acordo com Santos, a importnciada Liga Pr-Saneamento deveu-se ao fato de que ela forneceu a argumentao cientfica

    segunda vertente do nacionalismo, constituindo um canal para o extravasamento dessemovimento.

    13Sobre a repercusso da Liga nos grandes jornais da poca, sobretudo O Correio da ManheOPas, ver Britto & Lima, 1991b.

    intelectual desde o sculo XIX. O problema vital, como o denomi-

    nou Monteiro Lobato, residia na inutilizao da populao brasileirapara o trabalho, especialmente na rea rural, totalmente desassistida,sem mdicos nem hospitais11.

    O projeto de construo nacional propugnado pela Liga reservavaum lugar de destaque no apenas cincia a higiene cientfica ,mas tambm aos cientistas. Deles dependeria, em grande parte, o resga-te dos sertes e a recuperao do homem rural, considerados os autn-ticos valores nacionais. Na viso dos articulistas da revista Sade, o ser-to jamais alcanaria o progresso por suas prprias foras: esta era a

    misso reservada aos homens do litoral, a de introduzir os elementosde civilizao capazes de transform-lo (Britto & Lima, 1991a:22, 27)12.

    A posio de liderana do projeto de modernizao reivindicadapelos mdicos da Liga foi, de certa forma, reconhecida pelo meio pol-tico e intelectual da poca, que ficou sensibilizado por estas propostas.Como se pode verificar, a imprensa carioca conferiu destaque campa-nha do saneamento rural desde a fundao da Liga, abrindo espaospara a propaganda e divulgao do movimento13.

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    As propostas da Liga conquistaram, tambm, uma parcela das elites

    polticas que, no Congresso Nacional, defendiam a interveno doEstado no campo da sade pblica, encaminhando a principal bandeirado movimento, a centralizao dos servios de sade, a qual se efetiva-ria com a criao de um ministrio da sade pblica.

    A Liga Pr-Saneamento conseguiu sensibilizar o governo de VenceslauBrs para a questo das endemias rurais, tendo como resultado imediatoa criao do Servio de Profilaxia Rural em 1918, cuja direo foi entre-gue a Belisrio Pena. Subordinado, a princpio, Diretoria Geral deSade Pblica e, depois, vinculado diretamente ao ministro da Justia

    (maio de 1919), este Servio tinha por finalidade combater, em nvelnacional, e por meio de convnios entre a Unio e os estados, e entreestes e a Fundao Rockefeller, as endemias consideradas mais impor-tantes a malria, a ancilostomose e a doena de Chagas.

    Deste modo, graas s bem-sucedidas articulaes polticas promovi-das pelo movimento no Congresso Nacional, a sade pblica tornou-se tema central do debate poltico. Como mostra Hochman (1993) noestudo que realizou sobre este assunto, tendo sido derrotado o projetode criao de um ministrio ao fim de acirrada polmica em torno dorespeito ao princpio federalista, no final do ano de 1919 o Congressoaprovou a reforma dos servios de sade, criando o Departamento Na-cional de Sade Pblica, rgo que teria, formalmente, abrangncianacional. Apesar de suas limitaes, ele constituiu a primeira tentativade rompimento com os limites impostos pela Constituio de 1891,que impediam a unio de agir em matria de sade e de educao almdo Distrito Federal, posto que estes setores eram competncia exclusivados governos estaduais14.

    Vale ressaltar que a direo deste Departamento foi entregue pelopresidente da Repblica, Epitcio Pessoa, a um dos membros da LigaPr-Saneamento, o cientista Carlos Chagas, que era tambm diretor doInstituto Oswaldo Cruz. Com a criao deste rgo e a subseqenteincorporao de muitos outros membros do movimento sanitrio a seuquadro funcional, a extino da Liga foi considerada por Belisrio Penaum ato natural, vez que teria conseguido cumprir seu objetivo.

    14 Segundo Santos (1985), as teses de unificao e centralizao dos servios de sadedefendidas pela Liga Pr-Saneamento correspondiam tendncia centralizao estatalverificada no perodo, tendncia que representou uma reao ao poder local, caractersticodo regime federalista.

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    Note-se que para esta trajetria institucional bem-sucedida contri-

    buiu decisivamente a formao de um consenso no campo mdico emtorno destas concepes e propostas relativas sade pblica. Assim,muito antes de ser lanada publicamente, a idia do saneamento ruralj havia ganho coraes e mentes no mbito da esfera acadmica, ou,pelos menos, conquistara uma significativa parcela de agentes insti-tucionais tradicionais do campo mdico.

    Por meio do consenso em torno destas questes, entre as diferentesprticas mdicas que compunham o campo, ascendia ao cenrio cient-fico brasileiro o nome de Oswaldo Cruz e de seu instituto de pesquisas,

    aos quais era atribuda a liderana intelectual destas concepes. daorganizao deste consenso e de suas conseqncias que trato a seguir.

    O Brasil um vasto hospital!

    Esta frase, de autoria de Miguel Pereira, e apropriada pelo saneamentorural como emblema do movimento, foi pronunciada em fins de 1916numa festa no restaurante Assyrius, promovida por mdicos da capitalfederal em homenagem a Carlos Chagas, na qual exaltavam-se as suasqualidades de mdico, bacteriologista e descobridor da tripanossomaseamericana.

    O discurso e especialmente esta frase atraram a ateno dos jornaisdo Rio de Janeiro e de So Paulo, gerando manifestaes diversas einaugurando uma polmica que envolveu as elites polticas e intelectuaisdos dois principais centros urbanos do pas.

    Para o jornal O Pas, o discurso de Miguel Pereira era uma pea deoratria que procurava imitar a verve do conselheiro Rui Barbosa, sen-

    do considerada indevida e grotesca, j que tratava de poltica numafesta de mdicos. Em vez de saudar os mritos de Carlos Chagas,tratara Miguel Pereira, inadequadamente, do relaxamento moral daRepblica, comparando esta com a austeridade dos homens e dasinstituies monrquicas (O Pas, 24/10/196).

    Por outro lado, um grupo de mdicos vinculados Faculdade deMedicina do Rio de Janeiro, ao Instituto Oswaldo Cruz e AcademiaNacional de Medicina imediatamente solidarizaram-se com Miguel Pe-reira, avalizando pela imprensa carioca a veracidade dos fatos mencio-

    nados por aquele mdico. Respondiam s acusaes de alarmista e exa-gerado que lhe haviam sido feitas, evocando tanto o trabalho de pes-quisa de Carlos Chagas na cidade mineira de Lassance quanto as

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    provas sobre o estado de abandono e morbidade da populao

    interiorana colhidas in locoem diferentes regies do pas, na srie deviagens realizadas pelos pesquisadores do Instituto de Manguinhos,sob a coordenao de seu diretor, Oswaldo Cruz.

    De acordo com estes mdicos, Miguel Pereira no cometera uma levi-andade; mais do que mera opinio, a frase equivalia a um verdadeirodiagnstico baseado no acervo documental e de pesquisas reunido peloInstituto, que proporcionava uma viso realista e chocante das condi-es de vida dos brasileiros. As expedies cientficas, como eram cha-madas, haviam revelado uma face at ento insuspeitada do pas, cons-

    tituindo prova irrefutvel do verdadeiro Brasil15.Miguel Pereira contou com a defesa inequvoca do presidente da

    Academia Nacional de Medicina, o notrio mdico Miguel Couto. Re-ferindo-se com humor repercusso do discurso, comentava que sealgum inimigo despejasse das alturas toneladas de dinamite sobre asdamas e os cavalheiros que passeavam em plena Avenida (Rio Branco),o pnico no seria maior. Miguel Pereira dissera alto o que ningumqueria ouvir baixo. E numa referncia irnica doena de Chagas,disse: A civilizao requintada das cidades probe a exibio de chagas edoenas repelentes que obriguem os felizes que as habitam ao desgostode as verem (Couto, 1917:12)16.

    Miguel Couto admite que a frase expressava uma meia-verdade, e oautor a utilizara como um recurso para sensibilizar os surdos que so-mente ouviam gritos, alguns nem isso. O que abalou no discurso de

    15A noo de revelao do Brasil, mais especificamente de desvelamento de uma face oculta,foi sentida pelas elites polticas e intelectuais do perodo como se se tratasse de uma fraturana identidade nacional responsvel pela existncia de dois brasis antagnicos, o ruralatrasado e o urbano civilizado. O dualismo era considerado um obstculo realizao daverdadeira essncia da nacionalidade, impedida de se manifestar na sua integridade. Nessesentido, as viagens cientficas, de uma parte, reforavam o sentimento dualista, por efeitodas provas tidas como incontestveis que demonstravam a verdade dos fatos, ou seja, dasdiferenas existentes no pas entre o litoral e o interior. Afinal, no se tratava de umaimpresso parcial e, tampouco, de um relato ficcional. O Brasil sob a lente do microscpiotransformara-se num gigantesco laboratrio onde se podia alcanar a verdade mais profunda,invisvel aos olhos do senso comum. Por outro lado, o confronto da cincia com a naoapresentava um caminho de sada pra o impasse existente, na medida em que, alm deidentificar o problema, indicava a teraputica necessria. A doena, o grande mal respons-vel pelo atraso e pela degenerao da raa, encontrava, enfim uma soluo trazida pelahigiene e pela medicina experimental. Sobre as expedies cientficas, ver Albuquerque,

    Marli et al., 1991.16Consta que Miguel Pereira pronunciou a polmica frase revidando o otimismo do deputadomineiro Carlos Peixoto, que teria dito que, caso houvesse uma invaso estrangeira, ele iria aossertes e sua terra natal convocar os caboclos para defender o pas (A Noite, 17/10/16).

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    Miguel Pereira foi o diapaso, mas este intencional para alcanar o

    efeito colimado. Feriu fundo de propsito, para doer; agora vai curar aferida na comisso da Academia (Couto, 1917:13)17.Miguel Couto lamentava, ainda, o fato de que o Brasil vivesse emba-

    lado em doces iluses e sonhando cor-de-rosa; no obstante os temposfossem de guerra, permanecia adormecido, reduzido impotncia. Con-vencido de que o exerccio da arte mdica se enobreceria mais se com elaainda melhor servirmos Ptria, conclamava os pares a se engajaremnuma Cruzada da medicina pela ptria: o mdico deveria substituir a au-toridade governamental, ausente na maior parte do territrio, bem como

    influir no comportamento das populaes, persuadindo-as a tomaremmedidas higinicas que impedissem a propagao de doenas evitveisque fazem o nosso descrdito e o nosso atraso (Couto, 1916:13-17).

    A partir daquele momento, a Academia Nacional de Medicina, osmdicos da Diretoria Geral de Sade Pblica e os do Instituto OswaldoCruz lideraram a mobilizao em torno do saneamento rural, idia queaos poucos foi conquistando as simpatias de amplos setores da socie-dade, os quais haveriam de se constituir na base de apoio indispensvelpara a criao da Liga Pr-Saneamento do Brasil, fundada pouco tempodepois, em fevereiro de 1918.

    De fato, a metfora utilizada por Miguel Pereira surtira o efeito deseja-do. Pode-se imaginar a repercusso se levarmos em considerao o prest-gio social e cientfico de que ele gozava no meio mdico e entre as elitespolticas da Repblica. O olhar mdico sobre o Brasil difunde-se e im-pe-se nos debates polticos a partir de ento, extraindo sua fora doconsenso revelado a propsito do episdio envolvendo Miguel Pereira.

    O episdio deixa transparecer uma ao orquestrada, da qual emergia

    esfera pblica o que j pertencia a uma seleta parcela da comunida-de mdica, que a despeito da heterogeneidade que caracterizava osseus interesses profissionais, compartilhava de uma opinio comumacerca da importncia das endemias rurais. Ou seja, antes da Ligaorganizar-se formalmente, a aproximao entre esses grupos j consti-tua uma realidade.

    17Miguel Couto refere-se comisso organizada pela Academia de Medicina em 1917, cujosmembros eram Miguel Pereira, Carlos Chagas, Carlos Seidl, Afrnio Peixoto e Oswaldo Cruz,sendo este ltimo substitudo por Alusio de Castro. A comisso tinha sido incumbida pelogoverno de apresentar-lhe sugestes de mudanas nos servios de sade pblica. Entre aspropostas feitas nesta ocasio, constava a criao de um Ministrio da Sade Pblica, adota-da posteriormente pela Liga Pr-Saneamento (Cf. Couto, 1919:383).

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    18Note-se que, na poca, a formao mdica era predominante, seno a nica opo poss-vel, para os que desejavam perseguir a carreira de pesquisa. Os mdicos vinculados sadepblica eram designados higienistas, no sendo habitual ainda o emprego do termo sanita-rista. Da mesma maneira, cientistas eram comumente denominados de experimentalistas oubacteriologistas.

    Para compreender a formao deste consenso necessrio recuar no

    tempo e remontar s relaes vigentes no campo mdico entre as dife-rentes especialidades que o constituam. Refiro-me, mais especificamente,s relaes entre clnicos, higienistas e experimentalistas, estes ltimosreconhecidos como aqueles que se voltavam para a investigao emlaboratrio18.

    Oswaldo Cruz representa o prestgio do mdico doseu tempo

    Aprofundar a anlise da histria destas relaes, que possivelmentedeita razes no sculo passado, fugiria aos objetivos deste trabalho. Noentanto, algumas consideraes so necessrias para se esboar um qua-dro de referncias que permita contextualizar o surgimento da ideolo-gia sobre Oswaldo Cruz e sobre o seu instituto de pesquisas.

    Como referi na Introduo, o tema da legitimao cientfica tratadode forma parcial pela literatura sobre as relaes entre medicina e socie-dade no Brasil (Stepan, 1976; Schwartzman, 1979; Luz, 1982). OInstituto Oswaldo Cruz citado como um caso exemplar de institucio-nalizao da medicina experimental, tendo representado uma rupturado ponto de vista cientfico e dos padres da carreira mdica, ao insti-tuir um novo campo de trabalho e conferir centralidade pesquisa emlaboratrio.

    Esses estudos limitam-se a descrever a trajetria institucional bem-sucedida do Instituto como o resultado da superao de uma srie deobstculos enfrentados ao longo do tempo, focalizando, sobretudo, as

    dificuldades decorrentes da insensibilidade das elites polticas em rela-o cincia.

    Depreende-se desta interpretao que a conquista da autoridade cien-tfica resulta naturalmente dos fatos institucionais, no se percebendonas relaes sociais do campo mdico uma instncia decisiva de defini-o da questo. Assim, no indaga-se, por exemplo, sobre a receptividade

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    e o impacto que um fato de tamanho alcance pudesse ter exercido so-

    bre as relaes entre os grupos e as instituies que compunham o campo.Passa desapercebida a tenso gerada no campo mdico pelo surgimentodeste grupo cientfico.

    Na perspectiva adotada neste trabalho, a histria das relaes entreas diferentes prticas mdicas constitui uma dimenso fundamentalpara a compreenso da questo da legitimidade cientfica19.

    Nesse sentido, o surgimento da liderana intelectual de OswaldoCruz produziu impacto sobre a configurao tradicional do campo,desalojando antigas posies e desalinhando as relaes existentes. In-

    troduzia-se uma diferenciao profissional a partir da institucionalizaode uma prtica, cuja caracterstica era a conjuno da pesquisa de labo-ratrio com a sade pblica.

    As alteraes produzidas no campo mdico traduziram-se numa s-rie de conflitos, principalmente naqueles que opuseram o InstitutoOswaldo Cruz s principais entidades mdicas da poca, detentoras domonoplio do saber mdico: a Faculdade de Medicina do Rio de Janei-ro e a Academia Nacional de Medicina.

    Apesar de ter conquistado respaldo entre certos setores mdicos paraimplementar as campanhas sanitrias entre 1903 e 1907, que redunda-ram na extino temporria da febre amarela no Rio de Janeiro. OswaldoCruz, pela notoriedade que alcanou e pelas atitudes ousadas que to-mou, tornou-se um plo de discusso no campo mdico, atraindo tantoas simpatias como a averso de inmeros e expressivos representantesda categoria.

    Assim, seu reconhecimento cientfico traduziu-se num longo pro-cesso de luta simblica pela posse da autoridade cientfica segundo

    a definio de Bourdieu , a qual envolveu os ocupantes tradicio-nais do campo, representados por membros da Academia e da Facul-dade de Medicina.

    Para compreender-se este processo necessrio reportarmo-nos a al-guns fatos relatados no estudo de Benchimol (1990) sobre a histriainstitucional de Manguinhos.

    19Abordagem semelhante foi adotada por Jacques Lonard (1986) e Bruno Latour (1986) aoestudar o significado e os efeitos das descobertas de Louis Pasteur para as cincias biomdicas.Estes autores mostram que o surgimento de Pasteur no cenrio cientfico implicou umalinhamento imediato dos higienistas e uma adeso bem mais cautelosa dos clnicos, que,por muito tempo, duvidaram de certos pressupostos da teoria dos micrbios e resistiram sinterferncias desta teoria em sua prtica.

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    Ao que tudo indica, a resistncia dos mdicos datava de 1903, oca-

    sio em que Oswaldo Cruz deslanchara a campanha contra a febreamarela, baseando-se na teoria da transmisso da doena por mosqui-tos, a qual gerou intensos debates cientficos na Academia Nacional deMedicina e na Faculdade de Medicina.

    Alm disso, Manguinhos apresentou-se desde o incio como um ploalternativo s instituies tradicionais, ao inaugurar um curso prticode bacteriologia, compensando as deficincias da faculdade, quepossua laboratrios precrios e oferecia a cadeira em um nico semestre(Benchimol, 1990:22, 80).

    O relativo sucesso de Oswaldo Cruz no combate s epidemias nofora suficiente para superar o clima de animosidade que se formaracontra ele. Mostrando-se desanimado com a ausncia de reconheci-mento social de sua instituio, o cientista comentava que se criara nopas uma situao paradoxal, posto que a cincia produzida emManguinhos era reconhecida no exterior, mas no pelas elites locais,entre as quais era completamente desconhecida. Queixava-se de tama-nho descaso, o qual tambm encontrava-se entre a comunidade mdica,na qual era conhecido apenas por uma pequena parcela: no admirapois o esforo colossal para contrabalanar a indiferena geral e mes-mo a m vontade de certas rodas em relao a uma instituio que, semdvida, est mais prxima do que tantas outras das anlogas dos pasesadiantados (Cruz apudBenchimol, 1990:33)20.

    Benchimol identifica em 1907 o ano crucial para o reconhecimentocientfico e social de Manguinhos, visto que foi quando o CongressoNacional deliberou sobre sua autonomia financeira e administrativaem relao Diretoria Geral de Sade Pblica.

    Naquele ano tramitou no Congresso um projeto de lei que visavatornar a instituio independente da Diretoria Geral de Sade Pblica,vinculando-a diretamente ao Ministrio da Justia e Negcios do Inte-rior. A reforma previa ainda a transformao do Instituto SoroterpicoFederal criado em 1900 em Instituto de Medicina Experimental,com a ampliao de seu pessoal e a criao, pela primeira vez no Brasil,de um quadro de carreira para a pesquisa cientfica.

    20Os comentrios de Oswaldo Cruz em tom de denncia contra a indiferena das elites emrelao cincia constam de um relatrio enviado ao ministro da Justia e Negcios doInterior em 1906, quando ainda exercia o cargo de diretor geral da Sade Pblica.

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    Segundo Benchimol, as dificuldades que o projeto encontrou junto

    aos parlamentares deviam-se, de uma parte, mentalidade prevalecenteentre as oligarquias, que consideravam um desperdcio os investimen-tos em cincia, e a setores mercantis, que no admitiam o controleda fabricao de produtos biolgicos por uma instituio do Estado;de outra parte, a polticos ligados corporao mdica que no viamcom bons olhos o exerccio do ensino numa instituio independenteda Faculdade de Medicina (Benchimol, 1990:34).

    A polmica resolveu-se quando, em setembro de 1907, o Instituto deManguinhos foi premiado com a medalha de ouro no XIV Congresso

    Internacional de Higiene e Demografia, em Berlim, fato que, segundo oautor, teve grande repercusso no Brasil e foi decisivo para a aprovaodo projeto de lei.

    Na opinio de Benchimol, as homenagens prestadas a Oswaldo Cruzquando regressou ao pas, em maro de 1908, representaram um reco-nhecimento passageiro e no passaram de encenao superficial, pr-pria do imaginrio ufanista que caracterizava o ambiente poltico eintelectual da poca, no tendo qualquer conseqncia sobre o dom-nio concreto da sade coletiva. A imagem de sbio imputada a OswaldoCruz na ocasio era somente uma ideologia, pois, segundo o autor, acincia era til burguesia apenas no plano simblico (Cf. Benchimol,1990: 36-37).

    Entre os fatos relatados por Benchimol que retratam a animosidadedo ambiente social em relao cincia, chama a ateno a manifesta-o de um clnico e professor da Faculdade de Medicina, Abreu Fialho.Em meio s polmicas no Congresso Nacional, o mdico escreve numarevista leiga declarando sua posio favorvel ao Instituto e condenan-

    do a atitude de resistncia de membros da Faculdade de Medicina emreconhecer o papel relevante da nova instituio de pesquisa21.

    O artigo de Fialho representa um indcio significativo da divisoexistente na comunidade mdica, explicitada publicamente, no poracaso, no momento em que se deliberava sobre o destino de Mangui-nhos. Esta posio era representativa da opinio de parcela da comuni-dade mdica, que tornou-se adepta e defensora da prtica institucio-nalmente organizada por Manguinhos, a qual aproximava a pesquisabiomdica da sade pblica.

    21O artigo parcialmente reproduzido por Benchimol, 1990:80.

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    Esta atitude, que denominei de converso, parece constituir uma

    evidncia relevante do processo de legitimao cientfica em curso, pormeio do qual Oswaldo Cruz e seu grupo conquistariam no apenas umaopinio favorvel no campo mdico, mas a adeso s concepes decincia e de sade pblica originadas em Manguinhos.

    De acordo com os conversos, a medicina pasteuriana ou microbiologiarepresentava um avano cientfico com efeitos positivos tanto para aprtica clnica influindo, decisivamente, sobre o diagnstico comopara a prtica higienista. Formada a partir de um concurso de discipli-nas, como a bioqumica, a imunologia, a parasitologia, entre outras, a

    microbiologia modificava as relaes entre as prticas mdicas, aproxi-mando-as. Desse modo, no fazia sentido manter antigas polmicas edivergncias, poca em que cada uma destas prticas buscava afirmar asuperioridade de sua ao sobre as demais.

    Referindo-se ao assunto, o mdico baiano Clementino Fraga, queatuou sob as ordens de Oswaldo Cruz na campanha contra a febreamarela e cuja especialidade era a clnica, afirma que, ainda no inciodo sculo, esta se restringia ao hospital, teatro de seus melhores esfor-os, sem contar ainda com os benefcios do laboratrio para descobriras causas das doenas. Era necessrio, contudo,

    estudar a molstia nos pontos ainda indecisos de seus domnios, isto ,estud-la nas suas possibilidades latentes, no seu poder efetivo, retrat-lain anima vili, ferindo-lhe a bossa concreta a sua etiognese, at recomp-la nos seus caracteres com a fisionomia clnica e anatmica da lesohumana (Fraga, 1917:3).

    Alosio de Castro, catedrtico da cadeira de clnica mdica e diretor

    da Faculdade de Medicina a partir de 1916, manifesta ponto de vistaanlogo, ao reconhecer os benefcios da medicina experimental para odiagnstico, que ganhara uma preciso ainda desconhecida, e para ateraputica, que passou a utilizar novas armas a partir do aperfeioa-mento alcanado nas aplicaes dos mtodos de laboratrio aos pro-blemas patognicos e prtica clnica. Segundo Castro,

    Todos os primores da arte que outrora celebrizaram seus eleitos, a intui-o mdica, olho mdico, tino mdico, excelncias de ouvido, argcias

    de raciocnio, pediram o complemento do laboratrio, sem cujo aux-lio, a cada passo se veria em entalas o clnico muitas vezes experimen-tado em prtica larga e consumada (Castro, 1917:372).

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    Por sua vez, o catedrtico da cadeira de Higiene da Faculdade de

    Medicina, Afrnio Peixoto, reiterava, taxativamente, a mesma opinio:Sem laboratrio de anlises, nenhum mdico de agora se presume ca-paz do seu bendito sacerdcio. Para Peixoto, no laboratrio, umareao feliz, gota de cido em tubo de ensaio, gota sobre lmina depreparado, supre experincia clnica de muitos anos. E conclui o higie-nista: Esta a medicina exata de hoje em dia, que supera a arteinfusa e transcendente do diagnstico de outrora (Peixoto, apudSerpa,1937:384).

    Se possvel constatar uma viso relativamente consensual a respei-

    to da importncia da investigao cientfica e das anlises de laborat-rio para o exerccio da clnica, outra controvrsia dividia os mdicos,inclusive os que concordavam sobre a questo anterior. Tratava-se darelao entre a higiene e a clnica. Podemos acompanhar este debatereproduzindo os argumentos que opuseram Afrnio Peixoto a Alosiode Castro.

    Ao passo que o primeiro qualificava os clnicos de crdulos que viviamenganados por uma cincia baseada em venenos da toxicologia tera-putica, Alosio de Castro acusava a higiene de simplificadora, poisprometia o den, assegurando o milagre da imortalidade do corpocom base apenas nas regras preventivas. Enquanto Afrnio Peixotoduvidava da eficcia da medicina clnica para curar doenas orgnicas,Alosio de Castro revidava com a tese de que as doenas no se resu-miam s de carter infeccioso. Alertava ainda para os riscos que a apli-cao das regras higinicas podia acarretar, uma vez que para evitar omal, trazia a morte, morrendo-se no j da doena, nem da cura, masdo preservativo (Castro, 1917:7-8).

    Ante as divergncias que minavam o entendimento no campo m-dico, verifica-se a existncia de uma posio conciliatria, como a queapresenta Carlos Seidl, para quem o papel social dos mdicos consistiaem contribuir para a civilizao, misso que requeria o estabelecimentode laos de solidariedade no mbito da categoria.

    Assim, Seidl condenava o antagonismo entre clnicos e higienistas,vendo nele a reedio contempornea da j superada beligerncia entreo clnico e o pesquisador [que] hoje, vivem em feliz acordo (...) comple-tando-se. Assim, podem prosperar as duas escolas rivais de outrora: a

    clnica e a cientfica. O ideal seria, ento, a simbiose, a unio ntima,a consubstanciao do higienista e do clnico para que pudessem de-sempenhar a nova concepo do papel social do mdico. Todo pro-

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    fissional deveria enfeixar as qualidades de higienista prtico e clnico,

    ressaltando que, quando digo higienista, quero referir-me a ns todosmdicos, sem exceo, clnicos e profissionais de laboratrio (Seidl,1917b:12-13).

    Vale ressaltar a relevncia dessas opinies, vez que estes homens ocu-pavam postos importantes na hierarquia da carreira mdica e possuamprestgio social e poltico inquestionvel. Esta posio pode ser tomadacomo representativa de uma parcela da categoria mdica que conver-teu-se cincia de Manguinhos, legitimando desse modo as ambiescientficas e polticas do Instituto.

    Os conversos estabeleceram uma ponte entre o Instituto de Man-guinhos e as instituies consagradas na hierarquia do mundo acadmico.Procuravam convencer os mais recalcitrantes no mbito da categoriamdica de que Oswaldo Cruz sintetizava o perfil profissional do mdicomoderno, constituindo-se num modelo a ser seguido por todos.

    Em que pese a importncia atribuda versatilidade e polivalnciaexibidas pelo grupo de Manguinhos, que exercia a clnica, a experimen-tao e a higiene, percebe-se que, de fato, estes mdicos estavam promo-vendo um movimento de opinio dentro e fora do campo mdico que visava valorizar a sade pblica, demonstrando, assim, seu prpriointeresse por um espao tradicionalmente disputado em funo das pos-sibilidades de interveno poltica que proporcionava aos mdicos.

    Naquele momento, tratava-se de aproximar e conquistar as prticastradicionais do campo, a clnica e a higiene, que deveriam render-se aolaboratrio, responsvel pela eficcia que a medicina tinha adquirido.Nesse sentido, instrutivo destacar dois fatos que, tudo indica, consti-turam marcos importantes no processo de legitimao da prtica cien-

    tfica de Oswaldo Cruz e de seu grupo.Durante o IV Congresso Mdico Latino-Americano, ocorrido em 1909no Rio de Janeiro, Oswaldo Cruz foi homenageado com uma medalhade ouro, o que constitui, salvo engano, a primeira manifestao pblicade reconhecimento da comunidade mdica.

    Por outro lado, neste mesmo congresso Carlos Chagas tambm foradistinguido por sua recente descoberta cientfica, a qual repercutira in-ternacionalmente e que, ao nosso ver, contribuiu de forma decisivapara a consolidao da atitude dos convertidos em relao ao valor do

    Instituto Oswaldo Cruz no cenrio cientfico brasileiro.Quanto ao Congresso, sua escolha como palco para homenagens a

    Oswaldo Cruz no foi gratuita, vez que revelava a inteno dos mdicos

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    de superdimensionar o gesto, cuja ressonncia seria garantida pela pre-

    sena da comunidade nacional e de diversas personalidades cientficasestrangeiras. Houve, inclusive, a preocupao de ressaltar que a meda-lha de ouro fora cunhada graas a uma subscrio pblica que obtiveraa adeso de mil mdicos de todos os estados do Brasil, conforme publi-cou a prestigiosa revistaBrasil Mdicoem seu nmero de 17 de fevereirode 1917.

    Chama particularmente a ateno a dedicatria inscrita no lbumque acompanhava a medalha. Alm de tecer elogios quele que alcan-ou a glria imortal por ter conseguido abater a temerosa esfinge no

    Rio de Janeiro, por sua f inabalvel na cincia e aplicao sistemticada profilaxia especfica, o aspecto mais interessante abordado pelodocumento refere-se posio dos mdicos em relao a Oswaldo Cruz.Alm de reconhecerem sua fama e fazerem dela um patrimnio detoda classe, da ptria e dos intelectuais de todo o mundo, os mdicosesperavam que em um monumento a ser erigido a Oswaldo Cruz cons-tasse, numa das faces do pedestal, a homenagem prestada ento paratransmitir s geraes futuras o testemunho solene dos contempor-neos que assistiram o milagre operado pela cincia (Brasil Mdico,1917:16).

    Em outras palavras, a legitimao cientfica de Oswaldo Cruz criavalaos de identidade e, ao mesmo tempo, permitia que os mdicos usu-frussem de seu prestgio e partilhassem do mesmo destino.

    A descoberta cientfica de Chagas revestiu-se de significado anlogo.Alguns mdicos referem-se a ela como se fosse no apenas uma vitria dogrupo de Manguinhos, mas a expresso do valor cientfico da medicinabrasileira, de uma tradio mantida por homens notveis que desde o

    sculo passado ter-se-iam destacado na clnica e na experimentao.Na verdade, o discurso ambguo. Se, por um lado, os mdicos posi-

    cionavam Manguinhos numa relao de continuidade com a medicinabrasileira, sedimentando a tradio cientfica existente em vez de rom-per com ela, por outro admitiam que a descoberta de Chagas constituaum feito singular, sem precedentes na histria da medicina: um nicoinvestigador estabelecera a etiologia, a sintomatologia, as formas clni-cas, a anatomia patolgica, o modo de transmisso e a profilaxia deuma doena (Cf. Miguel Couto, 1923:174; Miguel Pereira, 1913:52; Carlos

    Seidl, 1913:51).O gnio de Chagas era produto de uma alquimia que combinava as

    qualidades de clnico s de experimentalista. Nas palavras de Seidl, o

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    Dr. Chagas um bacteriologista dos mais distintos da Escola de

    Manguinhos, mas tambm um clnico dos mais competentes sadosde nossa Faculdade (Seidl, 1913).Mais uma vez os mdicos operavam a partilha do prestgio alheio,

    universalizando-o. este o sentido implcito na exclamao de Seidl:No h mdico brasileiro, no h um s homem culto da nossa terraque se no deva sentir entusiasmado pela descoberta feita pelo Dr. CarlosChagas (Seidl, 1913).

    Nestas homenagens, os mdicos revelaram, de forma inequvoca, asmotivaes subjacentes s posies que assumiram em relao ao Insti-

    tuto Oswaldo Cruz. A melhor expresso do significado simblico con-tido nos gestos de reconhecimento por eles esboados reside, talvez,nas palavras de Carlos Seidl, para quem Oswaldo Cruz representava osmbolo sobretudo do prestgio e do valor social do mdico (Seidl,1917a:322).

    O patrono de Manguinhos encarnava, assim, os ideais profissionaisde poder e prestgio dos mdicos. Em diferentes ocasies, Seidl expressasentimentos ambivalentes em relao a ele, que podemos considerarcomo extensivos grande maioria dos mdicos, os quais, invejando asposies alcanadas por aquele cientista, manifestavam, a um s tempo,admirao e o desejo de reproduzir seu itinerrio.

    preciso ressaltar, porm, que, para o xito deste processo de reco-nhecimento cientfico, concorreram igualmente as aes de OswaldoCruz com vistas a arregimentar o apoio de seus pares. Um episdio queilustra bem isso , ainda, a descoberta da doena de Chagas.

    De acordo com Miguel Couto, logo aps o IV Congresso Latino-Americano fez-se uma reunio na casa de Azevedo Sodr para discutir-

    se a publicao de um livro sobre as patologias brasileiras, consideradaso assunto mais relevante da medicina nacional. Oswaldo Cruz convi-dou, ento, o grupo a acompanh-lo Lassance para conhecer as pes-quisas de Chagas, que ainda constituam um segredo.

    Rememorando o episdio, Miguel Couto revela as impresses quelhe causaram o museu de raridades de Chagas dezenas de doentes detodas as idades, uns idiotas, outros paralticos, outros cardacos, todospapudos; microscpios espalhados sobre mesas exibindo tripanossomosem movimento (...), no biotrio animais infectados. Aqueles mdicos

    de indisputadas autoridades, em que se incluam os mdicos maisrepresentativos dessa poca na medicina de nossa terra, a saber, MiguelPereira (ento presidente da Academia Nacional de Medicina), Fernandes

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    Figueira, Juliano Moreira e Antnio Austregsilo, examinaram todo o

    material e nada tiveram que tirar nem pr na anlise dos sintomas esua interpretao lidas por Chagas em minucioso relatrio (Couto,1923:172-173).

    Nessa visita forjou-se mais um elo da aliana que atendia aos interes-ses de ambos os grupos, os quais, anos mais tarde, se reuniriam nacampanha pelo saneamento rural. A aliana que iria se consumar aolongo de certo tempo traduzia o empenho com que estes mdicos bus-caram legitimidade social, conscientes do quanto era necessria paraque interferissem na vida pblica22.

    A longa convivncia entre estes mdicos acabou por gerar um pensa-mento consensual sobre determinados temas relativos sade pblica,atravs dos quais manifestavam sua viso do presente e do futuro dopas. Os interesses polticos eram parte integrante da trajetria cientficae profissional destes grupos de clnicos, higienistas e experimentalistas, etm a ver, inclusive, com suas diferentes inseres institucionais. Unia-os um conjunto de valores e interesses polticos e cientficos que osdistinguia no campo mdico.

    Nessa perspectiva, o interesse pelas endemias rurais constitui a snte-se da cultura particular por eles engendrada e traduz de maneira singu-lar, no plano cientfico e simblico, a ideologia nacionalista que pre-domina no cenrio intelectual e poltico do pas aps a Primeira GuerraMundial23.

    Elegemos o discurso de Miguel Pereira, em 1916, como marco no sdo extravasamento para o debate pblico sobre a nao daqueles temasque haviam permanecido confinados aos fruns acadmicos, comotambm da aliana constituda a partir da convergncia de interesses

    entre os grupos mdicos que, agora, manifestavam-se em unssono so-bre os temas trazidos a pblico.O consenso expresso na frase de Miguel Pereira, representava a unifi-

    cao em torno de certos pontos relativos sade pblica que pretendia

    22A primeira expresso de seus interesses cientficos e polticos, anterior organizao daLiga Pr-Saneamento do Brasil em 1918, pode ser identificada na conclamao de MiguelCouto, em 1916, adeso dos mdicos Cruzada da Medicina pela Ptria, em meio ao movi-mento nacionalista aps a Primeira Guerra Mundial.

    23O interesse poltico e o nacionalismo que caracterizam as idias deste grupo de mdicosno tm uma origem estranha sua prpria trajetria intelectual. O pensamento naciona-lista do grupo que apoiou a Liga Pr-Saneamento tem sido tratado pela literatura como algoexterno ao campo cientfico, como se se referisse a interesses e idias de outros agrupamentosintelectuais, cujo pensamento teria sido incorporado de fora para dentro do campo mdico.

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    ser e foi representativa, se no da maioria, dos que falavam em

    nome dela.As bases desse consenso, como vimos, haviam sido lanadas h muitotempo, desde que determinados representantes da vertente tradicionaldo campo converteram-se s idias professadas pelo grupo liderado porOswaldo Cruz, principalmente no que se refere importncia da inves-tigao cientfica e de sua utilizao para orientar prticas sanitrias eclnicas. H boas razes para supor que tal converso correspondeu aoreconhecimento da autoridade cientfica de Oswaldo Cruz e de seu gru-po, o que pode ser depreendido de diversas manifestaes pblicas de

    segmentos mdicos.Contudo, imediatamente ao discurso de Pereira, em fevereiro de 1917,

    a morte privou Manguinhos de sua principal liderana, o que trouxeconseqncias contraditrias para o movimento recm-desencadeadopelos mdicos. Por um lado, afetou negativamente uma das principaispeas institucionais do projeto de mudanas que os mdicos desejavamimplementar na sade pblica; por outro lado, propiciou-lhes um im-portante instrumento simblico para catalisar as foras que o movi-mento requeria. Assim, se a Liga Pr-Saneamento nasceu rf de pai,ganhou, com isso, seu mais poderoso elemento de propaganda.

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    O Brasil de luto pela mortede Oswaldo Cruz

    O gigante tomba no leito...Ezequiel Dias

    C

    onforme as notcias estampadas nos jornais da poca, OswaldoCruz fora vtima de um ataque de uremia.

    Sales Guerra, seu amigo e mdico, relata que h muito tempo OswaldoCruz sofria de uma nefrite que acabou por comprometer, inexoravel-mente, sua sade. Dissimulava ele, porm, a gravidade de sua condio,ocultando de todos, e principalmente da famlia, os sintomas da doena.Revelara apenas a Sales Guerra que seu pai morrera em conseqncia domesmo mal.

    Os primeiros sintomas comearam a manifestar-se em 1907, quandoOswaldo Cruz encontrava-se em Berlim. Em meio aos trabalhos de pre-

    parao da mostra brasileira que ia ser exibida no Congresso Internacio-nal de Higiene, em vias de ser inaugurada naquela cidade, OswaldoCruz queixou-se em carta a Sales Guerra de que estava se sentindo meioesquisito, sem saber qual seria o fim da neurastenia que o acometiaconstantemente.

    As perturbaes foram agravando-se progressivamente. De acordocom seu mdico, Oswaldo Cruz sofria de crises de insnia, nostalgia edistrbios digestivos. Preocupado com as conseqncias disso, aindaem Berlim, Sales Guerra deu-lhe alguns conselhos e tentou convenc-lo

    a procurar um especialista da Faculdade de Medicina. Como OswaldoCruz recusasse, props-lhe, ento, um perodo de repouso em um sana-trio, onde poderia submeter-se a uma dieta alimentar benfica sua

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    sade. Conta Sales Guerra que Oswaldo Cruz relutava em submeter-se a

    qualquer tratamento, prometendo-lhe apenas que tomaria certas pre-caues que o amigo lhe indicara. Em carta que lhe escreveu em outu-bro de 1907, quando j se achava instalado em Paris, para onde viajaraaps o Congresso, Oswaldo Cruz tornou a se queixar das perturbaesque o afligiam:

    (...) o isolamento deu bom resultado, durmo perfeitamente. Mas osdesequilbrios vasomotores aumentaram. Passo os dias com as extremi-dades regeladas e, segundo tuas acertadas previses, a dispepsia pareceque est instalando-se, digiro pessimamente, tenho a lngua sempre

    coberta de saburra, com a impresso dos dentes, etc. etc. Enfim, deixe-mos de lado a carcaa, que no merece que se lhe d ateno (Cruz apudGuerra, 1940:391).

    Como se pode verificar na correspondncia mantida por OswaldoCruz com Sales Guerra durante suas constantes viagens ao exterior oupelo Brasil, daquele ano em diante os sintomas no mais o abandona-ram, deteriorando-se, inclusive, seu humor, freqentemente abaladopor crises de depresso24.

    Segundo o cientista Ezequiel Dias, cunhado de Oswaldo Cruz, adoena deixou de ser um segredo para a famlia em novembro de 1908,quando ele teve uma crise aguda de uremia. S ento consentiu emadotar um regime diettico adequado, suprimindo totalmente o sal desua alimentao (Dias, 1922:163). Todos perceberam que sua sade inspi-rava cuidados permanentes e passaram a vigi-lo para que no fugisse sprecaues necessrias. Quando Oswaldo Cruz viajou para a Amaz-nia, por exemplo, Sales Guerra encarregou o mdico Belisrio Pena, queo acompanhava, de controlar sua dieta.

    No incio de 1911, quando Oswaldo Cruz se preparava para viajar Alemanha, onde iria participar da Exposio Internacional de Higiene,em Dresden, seu estado de sade era delicado, como se v no quadroclnico descrito por Sales Guerra:

    Naquela poca, o estado de sade de Oswaldo Cruz se achava em equil-brio instvel: esclertico cardio-renal, hipertenso, albuminrico, fora

    24Na biografia de Oswaldo Cruz escrita por Sales Guerra, este aspecto da personalidade docientista ressaltado: a constante depresso. Relata que encontrou, no quarto de hotelonde ele se hospedava em Paris, um desenho em que o cientista havia esboado a lpidepara o seu tmulo e o local onde gostaria de ser enterrado, junto ao mar, na AvenidaNiemeyer no Rio de Janeiro, em terreno que pertencia a seu sogro.

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    acometido de dois ataques de edema pulmonar, de que ficaram vestgiospermanentes na base dos pulmes: quadro sintomtico de prognstico

    sombrio (Guerra apudFraga, 1972:163).

    Sales Guerra comenta que, em vo, tentou dissuadir o amigo de viajar:Morrerei mais cedo se ficar inativo foi a resposta de Oswaldo Cruz.

    A partir de 1915, as crises de insuficincia renal tornaram-se freqentese, numa delas, o quadro sintomtico se complicou, com soluos, con-traturas dolorosas e perturbaes do ritmo respiratrio. As crises foramagravadas, na opinio de seu mdico, por problemas que ocorriam noInstituto de Manguinhos e que o deixavam extremamente contrariado.

    Surgiu, ento, a idia de afast-lo do Rio de Janeiro, para que pudessegozar de repouso absoluto. O filho primognito, Bento Cruz, cogitou danomeao do pai para a prefeitura de Petrpolis, que acabava de sercriada25. Era uma maneira de mant-lo ocupado com algum tipo de ativi-dade, j que se mostrava contrariado com a idia de deixar o Rio e, princi-palmente, o Instituto. Sales Guerra ops-se, a princpio, mas como nolhe ocorreu outra soluo e, percebendo que ela agradava ao amigo, cedeu.

    Oswaldo Cruz assumiu a prefeitura de Petrpolis em 18 de agosto de

    1916, mas permaneceu pouco tempo no cargo, por causa do agrava-mento do seu estado de sade, sendo obrigado a transferi-lo a LeopoldoBulhes no incio de janeiro de 1917. Sales Guerra relata as agruras porque passou o cientista em seus ltimos meses de vida:

    Veranevamos em Petrpolis, eu e os meus, naquela quadra de tristezas,desde fins de dezembro de 1916. Compungia-me, mas ao mesmo tempome consolava, passar o dia e boa parte da noite ao lado do amigo, sofre-dor estico, que em breve ia perder para sempre. De bom grado o fazia,tanto mais quanto ele no cessava de repetir que minha presena o

    confortava. Naquele transe doloroso, como em todas as fases da vidaintensa que levou, no cessei de admirar a beleza de suas atitudes, aincomparvel resignao no sofrimento... e que sofrimento! dispnia

    25 Vale assinalar que, em nenhum dos relatos biogrficos consultados, foi encontada qualquerexplicao mais detalhada sobre o assunto. Nada se sabe sobre as articulaes polticas queviabilizaram a nomeao de Oswaldo Cruz para o cargo. Um dos intermedirios foi o cientistade Manguinhos Figueiredo de Vasconcelos, que manteve entendimentos com o governadordo estado do Rio, Nilo Peanha. A criao da prefeitura relacionava-se estratgia defortalecimento deste poltico, recm-empossado governador do estado em seu segundomandato. Conforme o estudo coordenado por Marieta Ferreira, a eleio de dezembro de1914 fora tumultuada pela fraude eleitoral que buscara favorecer o candidato governista,Feliciano Sodr. No governo, Nilo Peanha procurou neutralizar o poder dos grupos oligr-quicos adversrios atravs de uma reforma administrativa e financeira, que incluiu a criaoda prefeitura de Petrpolis e de outras seis (Ferreira, 1989:211).

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    constante, com exacerbaes ao menor esforo, que o edema das basespulmonares e o sol