livro memoria institucional ufrj_2

Upload: mauricio-maia

Post on 09-Jul-2015

466 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Universidade e lugares de memria

Reitor Alosio Teixeira Vice-Reitora Sylvia da Silveira de Mello Vargas Pr-Reitora de Graduao Belkis Valdman Pr-Reitora de Ps-Graduao e Pesquisa ngela Uller Pr-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento Carlos Antnio Levi da Conceio Pr-Reitor de Pessoal Luiz Afonso Henrique Mariz Pr-Reitora de Extenso Laura Tavares Prefeito da Cidade Universitria Hlio de Mattos Alves Coordenadora do Frum de Cincia e Cultura Beatriz Resende Coordenadora do Sistema de Bibliotecas e Informao Paula Maria Abrantes Cotta de Mello

Srie Memria, documentao e pesquisa, 2

Universidade e lugares de memriaOrganizao Antonio Jos Barbosa de Oliveira

UFRJ / FCC / SiBI

Sistema de Bibliotecas e Informao (SiBI/UFRJ)

Copyright FCC-SIBI/UFRJ, 2008Impresso Walprint Grfica e Editora Capa e Diagramao Guilherme Tomaz Organizao Antonio Jos Barbosa de Oliveira Reviso Antonio Jos Barbosa de Oliveira Nilce Nunes Lima Reviso de Referncias Elaine Baptista de Matos Paula Eneida de OliveiraOs conceitos emitidos neste livro so de inteira responsabilidade dos autoresFicha catalogrfica elaborada pela Diviso de Processamento Tcnico SiBI/UFRJ

U58

Universidade e lugares de memria / organizado por Antonio Jos Barbosa de Oliveira. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Frum de Cincia e Cultura, Sistema de Bibliotecas e Informao, 2008. 320 p. : il. ; 21cm. -- (Memria, documentao e pesquisa) ISBN: 978-85-7108-328-8 1. Universidade-histria. 2.Memria coletiva Congressos. 3. Memria coletiva - Universidade. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Frum de Cincia e Cultura. Sistema de Bibliotecas e Informao. II. Srie. CDD: 378.10981

Aos autores

SumrioApresentao Alosio Teixeira Histria, Memria e Patrimnio Manoel Luiz Salgado Guimares Histria, memria e instituies: algumas reflexes terico-metodolgicas para os trabalhos do Projeto Memria SiBI / UFRJ Antonio Jos Barbosa de Oliveira Memria, Discursos e Instituies Diana de Souza Pinto Memria, preservao e uso das edificaes histricas da UFRJ Maria ngela Dias Museu da Escola Politcnica: o espao de construo da memria da Escola Politcnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro Heloi Jos Fernandes Moreira e Luiz Antonio Salgado Neto Museu da Qumica Professor Athos da Silveira Ramos: a memria da Qumica no Rio de Janeiro Jlio Carlos Afonso Quando um museu d samba: a popularizao do Museu Nacional da UFRJ no carnaval carioca Regina Dantas O Museu D. Joo VI da Escola de Belas Artes da UFRJ: memria institucional Angela Ancora da Luz Arquitetura e acervos x Acervo de arquitetura Elizabete R. de Campos Martins , Joo Cludio Parucher e Cludio M. Viana Memria do trabalho, memria sindical, memria poltica: o Arquivo de Memria Operria do Rio de Janeiro Elina G. da Fonte Pessanha e Marcos Aurlio Santana Rodrigues O Centro de Documentao da Escola de Enfermagem Anna Nery Maria da Luz Barbosa Gomes e Sandra Cristina Demetrio de Moraes A Escola de Msica da UFRJ e suas colees especiais Andr Cardoso O PROEDES Programa de Estudos e Documentao Educao e Sociedade: origens e desenvolvimento Maria de Lourdes de Albuquerque Fvero

13 17 41 63 81 95 115 127 145 157 171 191 203 221

Perfis e trajetrias dos professores universitrios do curso de Histria no Rio de Janeiro Marieta de Moraes Ferreira A preservao da memria atravs das colees pessoais depositadas na UFRJ: o caso da Coleo Afonso Carlos Marques dos Santos Jos Tavares da Silva Filho, Rosane Cristina de Oliveira e Andra Crtes Torres O Acervo INEP na UFRJ : 30 anos... e muita histria pra contar Maria Cristina Rangel Jardim Arquivos de Cultura Contempornea: uma experincia de pesquisa e documentao Cristina Barros Barreto O SINTUFRJ e a memria dos servidores tcnico-administrativos em Educao Ana Maria Ribeiro Os Autores

235 269 279 291 303 315

Apresentao

No poderia haver local mais apropriado para a realizao da abertura do II Seminrio Memria, Documentao e Pesquisa A Universidade e os seus lugares de Memria promovido pelo SiBI do que o Salo Dourado deste histrico prdio da Praia Vermelha. Aqui, protegido pela esttua de D.Pedro II imberbe, e encarando a esttua de Jos Clemente Pereira (tambm conhecido como Jos Pequeno) provedor da Santa Casa de Misericrdia, que foi quem doou este terreno ao imperador para que aqui fosse construdo um hospital, um asilo de loucos, o Hospital de Alienados de Pedro II. Estas esttuas j estavam aqui quando o Reitor Pedro Calmon assegurou a posse deste espao para a Universidade do Brasil no final dos anos 40 do sculo passado, tendo sido preservadas. E esto aqui at hoje como smbolo da continuidade histrica desse espao que um importante lugar da memria de nossa Universidade. O local escolhido tem um significado simblico muito grande, porque vivemos hoje, na universidade pblica federal brasileira, e em particular em nossa Universidade Federal do Rio de Janeiro, um momento nico de nossa histria. E a possibilidade de realizarmos um seminrio como esse, em que voltamos nosso olhar para a memria, para o passado portanto, exige de ns que olhemos tambm para o futuro. Passado e futuro so referncias muito fortes na vida dos homens e das mulheres. Mas passado e futuro se ligam por aquilo que mais fugidio, aquilo a que chamamos de presente. O presente alguma coisa que se esvai continuamente. Amanh o hoje ser ontem e, portanto, j ser passado. E, se o presente importante quando olhamos para o passado, tambm o quando pensamos no futuro. O presente pode ser uma concluso renovadora da trajetria anterior ou pode ser uma simples continuidade

13

de alguma coisa da qual temos pouca conscincia e pouca capacidade de intervir. Ao mesmo tempo o presente o momento em que tomamos decises que influenciaro significativamente na construo dos dias que viro. Pensar o passado certamente pensar a histria e pensar a histria no pensar o passado somente como coisa vivida, mas sobretudo como coisa pensada. Quando olhamos a histria da nossa universidade, reverenciando os lugares de sua memria, nos defrontaremos com uma histria de xitos e de fracassos, uma histria de conquistas e carncias. Certamente, se cada um de ns, nos pequenos espaos que ocupamos em nossa universidade, pensarmos o passado, seremos capazes de lembrar de um sem fim de micro-histrias de xito. Na trajetria histrica dos quase noventa anos de nossa Universidade, alcanamos inmeros xitos nestes microespaos. Mas, ao olharmos para a universidade como instituio que tem uma macro-histria e no apenas um somatrio de micro-histrias, observaremos que essa imensa coleo de microxitos no redundou num macroxito. No h dvida de que somos uma das universidades mais importantes do pas. Uma grande universidade que se destaca pela qualidade de seu ensino de graduao e de ps-graduao, bem como pela pesquisa e por suas iniciativas no campo da extenso. Mas, ainda assim, quando medimos o que fazemos pelo critrio da eficcia social da nossa ao, deveremos reconhecer que estamos ainda muito longe de uma histria verdadeiramente exitosa. A universidade que temos hoje, qualquer que seja a composio do seu corpo discente, ainda uma instituio de elite num pas carente de educao, carente de iniciativas inovadoras, carente de uma universidade que seja capaz de abrigar no seu interior, no uns poucos jovens, mas muito mais jovens do que os que hoje tm acesso a ela. Olhar a histria por este duplo olhar, o olhar da micro-historia dos xitos individuais dos pequenos grupos e o olhar apurado da macro-histria, da eficcia social de nossa ao, nos faz ter a certeza

14

de que preciso aproveitar esse momento nico, este presente fugidio que se esvai a cada minuto, para construirmos alguma coisa nova na UFRJ. Ns estamos aqui reverenciando a memria e os espaos de memria, mas, ao mesmo tempo, temos que olhar para o amanh, definindo se este amanh ser apenas uma reproduo do passado, de um passado permeado de micro-histrias de xitos, ou se ser o amanh de uma universidade nova, aberta, democrtica, crtica, humanista, capaz de se defrontar e resolver os problemas da integrao dos conhecimentos e da universalizao do ensino superior. Entre este passado com suas glrias, conquistas, vitrias, fracassos e carncias e esse amanh que est em aberto, encontra-se o hoje, o presente e os nossos desafios. E neste hoje que precisamos tomar as nossas decises. Reproduziremos o passado ou construiremos uma universidade nova, diferente da que temos? Espero que este seminrio, ao aprofundar o conhecimento que temos da nossa instituio, dos seus espaos e da sua memria, possa contribuir no s para uma maior conscincia do que fomos, mas, sobretudo, para criar uma nova conscincia daquilo que temos que ser.

Alosio TeixeiraDiscurso de abertura do II Seminrio Memria, documentao e pesquisa. A universidade e os seus lugares de Memria. SIBI/UFRJ 15 de abril de 2008 Frum de Cincia e Cultura

15

Histria , Memria e PatrimnioManoel Luiz Salgado Guimares

1. O problemaEm recente e instigante livro publicado acerca dos desafios contemporneos para a escrita da Histria, o historiador francs Christophe Prochasson1 argumenta que estaramos sob um novo regime de escrita, segundo o qual, ao historiador de ofcio seria exigido cada vez mais uma escrita submetida aos ditames dos afetos, sejam eles derivados de engajamentos polticos especficos, de crenas particulares ou mesmo derivados de um convite individualidade do historiador. Este seria instado a mostrar-se atravs do seu texto, postura bastante diversa daquela que o obrigava a esconder-se por trs da pesquisa cientfica. Esse novo regime emocional, segundo as palavras do historiador francs, supe determinados constrangimentos s narrativas do passado assim como fazem um apelo dimenso cada vez mais autoral do texto historiogrfico. Como parte dessas mutaes prprias ao campo de atuao do historiador, a biografia ganharia novo espao e significado para a pesquisa histrica, assim como um lugar que perdera como gnero legtimo da escrita histrica. Igualmente a ego-histria encontrou espao nesse novo campo de atuao para o historiador de ofcio. O que, no entanto, o trabalho de Christophe Prochasson nos ajuda a refletir sobre os usos e demandas contemporneas do passado, definindo uma variedade de narrativas acerca de eventos pretritos consumidos pelas sociedades contemporneas vidas de lembranas e memrias de um tempo muitas das vezes idealizado como sendo de certezas e segurana. como parte dessas demandas que devemos1 PROCHASSON, Christophe. Lempire des motions. Les historiens dans la mle. Paris: ditions Demopolis, 2008.

17

Manoel Luiz Salgado Guimares

encarar o interesse contemporneo acerca do patrimnio e das tarefas de patrimonializao do passado. Com isso queremos deixar claro que o estudo acerca do patrimnio s pode ser compreendido a partir de sua vinculao com as problemticas atuais que definem interesses especficos com relao ao passado. Portanto, refletir sobre o patrimnio pode e deve ser uma das preocupaes do campo historiogrfico, submetendo-o a uma investigao que sublinhe a dimenso histrica de sua inveno.

2. Alguns pressupostos para a abordagem do temaO meu interesse nesta rea de reflexo decorre de minhas preocupaes referentes ao tema da escrita da histria em suas diversas modalidades e possibilidades. Pretendo, portanto, sugerir que uma reflexo em torno do patrimnio pode ser compreendida, e acredito mesmo que deva ser feita, em suas estreitas vinculaes com o trabalho de produzir narrativas sobre o passado, ofcio a que certamente os historiadores, mas no somente e tambm no exclusivamente, se dedicam. Assim, o patrimnio tambm uma escrita do passado, submetida evidentemente a uma gramtica e uma sintaxe especficas. Se esta hoje parece ser uma afirmao de certa forma evidente, nem sempre as questes relacionadas ao tema do patrimnio no Brasil foram compreendidas como integrando o rol de problemticas de natureza historiogrfica. A gerao dos fundadores do patrimnio integrada basicamente por arquitetos de formao, imprimiu uma marca peculiar ao campo, cujos traos ainda hoje se fazem presentes. Certamente a considerao dessa especificidade importante para compreendermos os rumos e diretrizes assumidas pela questo patrimonial em nosso pas. Longe de ser uma natureza sua vinculao ao campo da arquitetura, deriva de uma histria peculiar da constituio desse campo entre ns e por isso, no parece ser estranho um relativo distanciamento do universo de interrogaes propriamente historiogrficas. No entanto, no

18

Histria , Memria e Patrimnio

apenas entre ns, mas no panorama das discusses internacionais acerca do patrimnio, tem-se observado uma aproximao entre diversos campos de atuao profissional, tornando o tema do patrimnio um lugar privilegiado para um dilogo entre historiadores, arquitetos, antroplogos, historiadores da arte, para ficarmos com apenas alguns desses campos que tm contribudo de forma decisiva para uma complexificao das discusses e abordagens acerca do patrimnio, da sua conservao e relao com as sociedades contemporneas. A semntica do termo j nos sugere uma relao com um tempo que nos antecede, e com o qual estabelecemos relaes mediadas atravs de objetos que acreditamos pertencer a uma herana coletiva. Assim, esses objetos que acreditamos pertencer a um patrimnio de uma coletividade, e hoje at mesmo da humanidade, estabelecem nexos de pertencimento, metaforizam relaes imaginadas e que parecem adquirir materialidade a partir da presena desse conjunto de monumentos. O termo patrimnio supe, portanto, uma relao com o tempo e com o seu transcurso. Em outras palavras, refletir sobre o patrimnio significa igualmente pensar nas formas sociais de culturalizao do tempo, prprias a toda e qualquer sociedade humana. atravs deste trabalho de produzir sentido para a passagem do tempo que as sociedades humanas constroem suas noes de passado, presente e futuro, como formas histricas e sociais de dar sentido para o transcurso do tempo. Como no vermos nesse trabalho uma relao com os problemas que afetam diretamente o ofcio do historiador, uma vez que o tempo matria prima por excelncia de seu trabalho e elemento central sobre o qual engendram-se formas de narr-lo, como condio de torn-lo significativo para as coletividades humanas? E o tempo da Histria, aquele que marcar definitivamente a experincia da modernidade, tomando a medida das aes humanas como aquela a escandir a marcao da prpria passagem do tempo. O tempo da Histria torna-se assim,

19

Manoel Luiz Salgado Guimares

com a Modernidade, o tempo hegemnico e o nascimento da disciplina no sculo XIX deve ser visto como parte desse trabalho de narrar o tempo a partir da histria das aes humanas. No mesmo cenrio de emergncia da histria em sua forma disciplinar, assiste-se ao nascimento das preocupaes de natureza patrimonial, tomando logo sua forma tambm disciplinar.2 No se trata de mera coincidncia temporal, mas de solos de emergncia similares que tornaram tanto as preocupaes disciplinares com a Histria quanto aquelas relativas ao patrimnio parte de uma cultura histrica que investe de maneira sistemtica em diferentes possibilidades de narrar o tempo passado. Stephen Bann qualificou esse interesse pela Histria como parte de uma paixo das sociedades oitocentistas pelo passado, paixo decorrente da experimentao de uma irremedivel perda frente s profundas transformaes que caracterizaram o sculo XIX. O argumento que procuro defender o de que uma reflexo em torno do patrimnio, definitivamente parte das agendas polticas contemporneas, deve aproximar-se de uma investigao acerca da escrita da Histria, na medida em que podemos caracterizar o investimento patrimonial como uma escrita peculiar empenhada em narrar, segundo procedimentos tambm particulares, o tempo passado. Perceber as articulaes possveis com a escrita da histria pode, segundo meu juizo, enriquecer nosso debate e nossa compreenso acerca do patrimnio, qualificando as necessrias e importantes polticas pblicas de produo patrimonial. Da mesma forma que uma escrita acerca do passado demanda uma operao que transforme uma massa documental em fonte para a construo desse passado, tambm uma operao, uma escolha e um ato valorativo aquele que produz objetos do passado em patrimnio cultural de uma coletividade humana. igualmente a partir de tra2 Consultar a esse respeito: POULT, Dominique. Muse, nation, patrimoine. 1789-1815. Paris: Gallimard, 1997. Do mesmo autor: Une histoire du patrimoine en Occident. Paris: Presses Universitaires de France, 2006. Ver ainda: BABELON, J.-P. & CHASTEL, A. La notion de patrimoine. Paris: dition Liana Levi, 1994.

20

Histria , Memria e Patrimnio

os do passado que o patrimnio pode empreender sua tentativa de reconstruo de uma cadeia temporal e hereditria, vinculando as geraes presentes quelas que as precederam, estabelecendo por este meio, importantes laos sociais, necessrios vida das coletividades humanas. E aqui as relaes entre patrimnio e memria so estreitas. A simples sobrevivncia ao tempo no assegura por si s a condio de transformar em patrimnio histrico um objeto, um vestgio material ou um acervo arquitetnico. E nem mesmo todo o conjunto de restos que sobreviveram passagem do tempo vieram a se constituir em patrimnio histrico de uma coletividade. O patrimnio , portanto, resultado de uma produo marcada historicamente. ao fim de um trabalho de transformar objetos, retirando-lhes seu sentido original, que acedemos possibilidade de transformar algo em patrimnio. Adjetivar um conjunto de traos do passado como patrimnio histrico mais do que lhes dar uma qualidade; produzi-los como algo distinto daquilo para o qual um dia foram produzidos e criados. Da mesma forma que um conjunto de documentos s poder se transformar em fonte histrica pelo trabalho do historiador, igualmente os objetos que aprendemos a ver como patrimnio histrico s ganharam essa qualidade a partir de uma operao envolvendo diferentes esferas de produo de saberes e poderes.

3. A atualidade da discusso. Por que refletirmos sobre o patrimnio?Afirmar que aqueles que esquecem o passado provavelmente esto condenados a repeti-lo no equivale a dizer que aqueles que o recordam no o faro. (Adam Phillips. Caderno Mais. Folha de So Paulo, 20 de novembro de 2005, p. 10) As coisas que recordamos e os caminhos pelos quais a memria nos conduz so imprevisveis.(Adam Phillips. Caderno Mais. Folha de So Paulo, 20 de novembro de 2005, p. 10) 21

Manoel Luiz Salgado Guimares

O retorno do passado nem sempre um momento libertador da lembrana, mas um advento, uma captura do presente. (Beatriz Sarlo. Tiempo pasado. Cultura da memoria y giro subjetivo. Una discusin) As trs citaes acima guardam algo em comum: tematizam o problema da memria e da recordao, bem como de suas implicaes para as sociedades humanas. Falam-nos acerca dos usos sociais da lembrana e seu papel para organizarmos nossa vida em sociedade. Lembrar e recordar so atos fundamentais para assegurar a constituio de laos sociais e dificilmente poderamos imaginar sociedades humanas que no produzissem suas formas e maneiras de lembrar. Igualmente o recurso s citaes pode nos ajudar a estabelecer os laos entre lembrar e os usos possveis que so feitos desse ato. O trabalho da lembrana nos remete necessariamente a duas temporalidades, entrelaando-as: a do presente em que algo ou algum lembrado, e o passado (como momento anterior) em que os personagens ou objetos da lembrana viveram ou estiveram presentes. Portanto, o recordar impe uma reflexo acerca do presente que transforma determinados objetos em alvo desse trabalho de lembrana, operando seletivamente aquilo que ser lembrado e aquilo que dever ser esquecido. H uma demanda por recordao que deve ser investigada como forma de compreendermos essa complexa relao entre lembrar e esquecer. Vivemos um tempo de intenso investimento em relao ao passado; esta parece ser a constatao recorrente entre diferentes autores que tm se ocupado com os estudos em torno da memria e da Histria em nossas sociedades contemporneas.3 Quando falamos desses investimentos preciso que fique claro que estamos supondo que eles podem se manifestar por meio de diferentes atitudes: o trabalho da memria com a sucessiva produo dos3 Ver a respeito Andras Huysen. Seduzidos pela memria. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. Ver tambm Beatriz Sarlo.Tiempo pasado. Cultura de la memria y giro subjetivo. Uma discusin. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2005.

22

Histria , Memria e Patrimnio

seus lugares de memria e suas exigncias relativas ao dever de memria; o crescimento da produo acadmica em histria com significativa procura pelos cursos de histria nos vestibulares das universidades pblicas; a midiatizao do passado atravs dos meios de comunicao de massa disponibilizando a um pblico consumidor de imagens, vido por cenas do passado, a pretensa realidade do mundo que existiu e que agora encontra-se disponvel ao olhar que parece assegurar sua efetiva e inquestionvel existncia. E evidentemente a patrimonializao a que as sociedades contemporneas, marcadas pela experincia de uma globalizao acelerada, tm experimentado. Esse interesse pelo patrimnio e pelas prticas preservacionistas que integram agendas de organismos estatais, assim como da prpria UNESCO, deve, portanto, ser visto em sua articulao com uma cultura histrica - a de nosso tempo - em que um forte trao memorialstico parece ser sua marca mais significativa. Uma cultura da memria associada a um novo regime emocional parecem conduzir o interesse pelas narrativas contemporneas acerca do passado. Este ano, especialmente, estamos assistindo a uma avassaladora produo de lembranas acerca dos 200 anos da chegada da corte portuguesa s terras americanas. Um investimento nas tarefas da memria que reconfiguram o evento de 1808 segundo as demandas prprias dessa nossa contemporaneidade. Uma breve comparao com os atos comemorativos por ocasio do primeiro centenrio em 1908 fornece-nos um rico material de reflexo em torno desse trabalho de reconfigurao do evento [1808] a partir de outras expectativas e demandas prprias s primeiras dcadas republicanas no Brasil. O evento em si assume diferentes sentidos segundo as formas e o tempo em que se torna objeto da recordao. Por que e para que lembrar-se? Seria possvel traarmos uma histria da prpria lembrana, supondo que ela articula-se vida de uma comunidade social num tempo determinado? Lembrana que

23

Manoel Luiz Salgado Guimares

implica necessariamente no seu contraponto: o esquecimento. At quando lembrar-se tambm no poderia significar uma forma de esquecer? Escrever como forma de fixao de uma memria implica na igual capacidade de esquecer: se estiver escrito no tenho mais necessidade de lembrar. Estranho paradoxo este que constitui a relao entre memria e esquecimento, largamente tematizado ao longo da cultura ocidental, num movimento pendular em que ora o esquecer, visto de forma negativa, deve ser enfrentado pela narrativa dos feitos grandiosos a serem memorizados, ora o esquecer condio positiva para a ao no mundo, atitude salutar para os que pretendem investir na vida. Kant, ao comentar a assertiva platnica de que a arte de escrever liquidou com a memria, acrescenta: Nessa frase h algo de verdade. Ele prprio quando necessitara esquecer-se de seu criado Martin Lampe, escrevera em um bilhete: Tenho de esquecer completamente o nome Lampe.4 Retornando ao tema da patrimonializao, assistimos a uma febre de preservao dos bens materiais, numa corrida contra o tempo que parece ter adquirido uma acelerao comprometedora, em ltima instncia, das prprias condies de continuarmos nos lembrando. Ao risco de uma amnsia contra-atacamos com uma inflao de memria. Tudo pode e deve ser arquivado como condio para a produo de uma super memria, talvez aquela semelhante do personagem do conto de Borges, Funes, o Memorioso, que dotado de uma sofisticada capacidade de registrar os dados passados e vividos tornou-se invlido para a vida a ser vivida. Uma hiper memria pesaria de tal forma sobre as coletividades humanas, tornando-as incapazes para a ao no seu prprio tempo, produzindo aquilo que Nietzsche denominara os riscos de uma histria monumental. Mas se tudo pode e deve ser arquivado, levando-nos compulso pelo arquivo, tendemos a reific-los como suportes da memria, garantidores do no esquecimento,4 Consultar a respeito o instigante trabalho de Harald Weinrich. Lete. Arte e crtica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001.

24

Histria , Memria e Patrimnio

deixando de v-los [os arquivos] como uma escrita, por isso mesmo submetido tambm ao jogo da lembrana e do esquecimento. Aos historiadores contemporneos e de uma forma mais ampla queles que se ocupariam de refletir acerca das produes contemporneas de narrativas acerca do passado parece que a maior quantidade de traos e vestgios dos tempos pretritos seria condio para um melhor conhecimento acerca desse mesmo tempo. Segundo Christophe Prochasson5, a estes profissionais faltaria o sentido da falta, da ausncia, que afinal torna significativa e necessria a reflexo histrica. Segundo ele, a economia da raridade funda os valores em histria.6 Curioso paradoxo que parece fundar as condies do prprio conhecimento histrico: por no estar presente [o passado] que se torna fundamental enquanto objeto de problematizao e investigao como forma de torn-lo de alguma forma novamente presente. Dados recentes da UNESCO, para o ano de 2007, indicam um claro esforo no sentido de assegurar um nmero cada mais vez mais significativo de bens tombados e inscritos como Patrimnio da Humanidade: atualmente dos 185 Estados que ratificaram a Conveno do Patrimnio Cultural, 141 deles possuem 878 bens tombados (entre bens naturais, culturais e mistos), considerados de valor excepcional. Em julho de 2005 na 29a. Sesso do Comit do Patrimnio Mundial em Durban, na frica do Sul, eram 812 os bens preservados em 137 pases. Esse crescimento em apenas dois anos, que marca o interregno entre as duas reunies, aponta para um interesse cada vez mais significativo pelas tarefas de preservao, agora compreendidas em seu sentido globalizado. De bens patrimoniais para uma determinada comunidade nacional, parece existir um conjunto de bens que transcendem essa dimenso e por isso so objetos de uma poltica especfica da UNESCO. Vale,5 PROCHASSON, Christophe. LEmpire des motions. Les historiens dans la mle. Paris: ditions Dmopolis, 2008. 6 2008, pg.28.

25

Manoel Luiz Salgado Guimares

contudo, observar que o crescimento de bens considerados Patrimnio da Humanidade parece apontar na direo de uma mudana na relao com a passagem do tempo que marcaria as sociedades contemporneas. uma percepo cada vez mais acelerada do tempo, potencializada em larga medida pelo avano das mdias eletrnicas que oferecem a possibilidade do tempo real, busca-se a preservao de um conjunto de determinados bens como forma de proteg-los dessa mesma acelerao que parece tudo condenar ao desaparecimento. Os investimentos patrimoniais forneceriam assim o contraponto a esse movimento devastador prprio temporalidade contempornea, garantindo uma segurana para sociedades atemorizadas pela velocidade das transformaes que colocariam em risco o sentido de continuidade e estabilidade. No caso brasileiro, as tarefas do Patrimnio, a cargo de uma instituio como o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - IPHAN, indicam a importncia destas questes formuladas e tratadas segundo um modelo de poltica de Estado. Igualmente, os esforos de patrimonializao do passado empreendidos por esta agncia do Estado brasileiro, apontam na direo de uma acelerao do tempo e na conseqente necessidade de tornar objeto do patrimnio objetos de um passado cada vez mais recente. O exemplo talvez mais emblemtico desse esforo de patrimonializao o recente tombamento da casa de Chico Mendes, subtraindo-lhe seu sentido original e resignificando-o como objeto a ser lembrado como herana de uma determinada coletividade. Uma nova ordem do tempo combina-se, no exemplo acima, com usos polticos do passado segundo um determinado presente.

4. Ordem do tempo, regimes de historicidade e patrimonializao do passadoTomemos mais uma vez como mote as citaes acima apresentadas: a primeira delas aponta para um regime de historicidade,

26

Histria , Memria e Patrimnio

entendido segundo a formulao de Franois Hartog7, como uma forma especfica das sociedades de conceber e relacionar-se com o tempo e seu devir, muito peculiar: a histria como mestra da vida, promessa implcita na proposta de conhecer o passado. A sua utilidade para o presente, assim como sua perspectiva iluminadora do futuro eram a justificativa maior de sua necessidade e finalidade. Na verdade, formulada no mbito da tradio retrica, a promessa implcita nesta afirmao, periodicamente reatualizada em diferentes contextos, seria a de que os ensinamentos da Histria tornariam os homens melhores na medida em que, aprendendo com o passado, estariam isentos de repetir os erros cometidos em outros tempos. Quando reatualizada na Modernidade, no quadro da cultura iluminista do setecentos, oferecia um sentido e uma finalidade para o estudo da Histria, conferindo-lhe, desta maneira, uma dignidade que a tornou objeto de uma reflexo filosfica. Voltar-se em direo ao passado era uma demanda por significao para um futuro inseguro, uma vez que as transformaes em curso punham em xeque qualquer garantia de um futuro como repetio do passado e afirmao de uma tradio. A promessa implcita na crena da histria como mestra da vida parecia iluminar o futuro tornando-o menos ameaador e mais desejvel. Este no guardaria mais segredos, uma vez que bem instrudos pela histria, os homens saberiam enfrentar os desafios desse futuro. No entanto, segundo Otavio Paz em O Labirinto da Solido ningum conhece a forma do futuro: um segredo que no est nos livros. A segunda citao, ainda da mesma autoria de Adam Phillips, j nos aponta em direo s incertezas que esto ligadas ao trabalho com o passado; multiplicidade de interpretaes que o passado pode sugerir para as sociedades que se debruam sobre ele. As incertezas que envolvem obrigatoriamente nosso ofcio sobre um tempo e um conjunto de experincias que j no so mais e, portan7 HARTOG, Franois. Regimes dhistoricit. Prsentisme et exprience du temps. Paris: Seuil, 2003.

27

Manoel Luiz Salgado Guimares

to, com as quais s podemos estabelecer uma relao de vicariato e de mediatizao, possvel de ser estabelecida por conta da existncia de traos e vestgios desse outro tempo. Finalmente, a citao de Beatriz Sarlo, extrada de seu recente estudo acerca da fora dos discursos testemunhais como forma de narrar o passado em nossa contemporaneidade, ajuda-nos a compreender o trabalho de rememorao no como um transbordamento da memria que fluiria do passado em direo ao presente, mas exatamente como uma captura, um ato de escolha de um determinado presente que organiza o conjunto de lembranas segundo uma gramtica especfica. Em conjunto, as trs citaes so boas para pensarmos a relao com o passado como um ato de criao a partir de determinadas demandas de um presente. Neste sentido, a insistncia proposital, uma reflexo sobre o patrimnio integra-se a esse ato criativo de um determinado presente interrogando certo conjunto de vestgios do passado e produzindo-os como patrimnio histrico. Refletir sobre o patrimnio parte deste esforo das sociedades contemporneas em narrar o passado e, segundo entendo, obriga-nos a uma reflexo em torno de uma forma especfica das sociedades modernas e contemporneas lidarem com a experincia do transcurso do tempo e seu resultado para o conjunto das realizaes humanas. Significa tambm operar a partir de um duplo incontornvel: a ausncia e o sentimento que ela provoca apenas significveis atravs dos traos, dos restos e dos indcios que nos chegam. O passado somente atravs destes sinais pode ser interrogado e por este caminho ganhar sentido para as sociedades num determinado presente. Traos que podero assim, ajudar na resignificao das construes materiais das sociedades passadas fazendo com que seus objetos possam ser vistos como algo diferente daquilo que eram quando foram criados. Trata-se, por conseguinte de uma nova forma de produo de visibilidade, capaz de transformar estes objetos do passado em algo diferente daquilo que um dia fo-

28

Histria , Memria e Patrimnio

ram.8 Opera-se claramente por este caminho uma transformao, que nos obriga a interrogar esse processo de produo de uma nova realidade para estes objetos: smbolos de algo para alm de sua materialidade dada ao olhar. Essa nova realidade seria aquilo que daria propriamente a condio de histrico a um conjunto monumental e que nas palavras da UNESCO se traduz por objetos dotados de valor excepcional. Vale ressaltar que me refiro condio de histrico e no natureza de um dado objeto do patrimnio. Com isso, pretendo sublinhar o carter de operao que torna possvel um determinado conjunto de objetos do passado serem alados condio de patrimnio histrico. O que os faz aceder a esta categoria no , portanto, a natureza do objeto em si, mas a operao que permite que sejam vistos como integrantes de um patrimnio histrico e assim ganhem uma nova visibilidade. Sabemos que nem todos os restos e traos de uma determinada poca adquirem o estatuto de patrimnio histrico, mas somente aqueles selecionados e produzidos como tal podero integrar-se a um projeto de recordao, prprio da poltica de patrimonializao. Tomando as sugestes de Franoise Choay em seu clssico trabalho intitulado A Alegoria do patrimnio, a monumentalizao do passado, atravs de um trabalho de patrimonializao de seus restos, uma forma de elaborao coletiva da perda deste passado e, sobretudo uma maneira de conjurar a experincia da inexorabilidade do tempo e de seus efeitos destruidores sobre o homem.9 Esse olhar que proponho para a investigao do patrimnio, fortemente marcado pela historicizao do conceito e de sua compreenso, a partir de um esforo que mais abrangente como estratgia social de lidar com o passado, implica igualmente em perceb-lo como uma forma peculiar de dar visibilidade ao passado. Isto significa dizer, tornar visvel um invisvel, presentificando8 Ver a respeito HARTOG, Franois. Regimes dhistoricit. Prsentisme et expriences du temps. Paris: Seuil, 2003. 9 CHOAY, Franoise. A alegoria do patrimnio. So Paulo: Editora da Unesp, 2006.

29

Manoel Luiz Salgado Guimares

uma ausncia absoluta pela via de sua representao. Esta cultura visual que nos permite decodificar certos objetos do passado como parte integrante de um patrimnio possui historicidade, o que significa dizer que nem sempre nosso olhar interpretou esses traos materiais do passado como parte de um patrimnio cuja preservao viria a se tornar uma poltica pblica. Antes de serem considerados como patrimnio histrico de uma Nao ou mesmo da Humanidade, muitos destes monumentos do passado foram lidos segundo outras regras e como parte de uma outra cultura visual. Dominique Poulot em importante trabalho acerca da inveno do patrimnio na Frana ps-revolucionria, nos indica os complexos caminhos percorridos para que objetos tradicionalmente vinculados monarquia pudessem se transformar em patrimnio da nova coletividade nacional em constituio.10 Desse modo perderam sua condio primeira para assumir uma segunda e radicalmente distinta daquela, a de herana comum da comunidade nacional francesa em processo de constituio, em propriedade coletiva desse novo sujeito poltico moderno: a Nao. De colees privadas propriedade coletiva da Nao, uma nova operao posta em marcha resignificou os antigos objetos, conferindo-lhes o estatuto de patrimnio histrico.

5. As estratgias de abordar o passado produzindo-o como visibilidadeProcuraremos, ainda que de maneira bastante breve, apresentar algumas dessas formas de produo de visibilidade; a fim de deixar mais claro nosso argumento: o de que a produo de objetos como integrantes de um patrimnio coletivo possui uma historicidade, contrapondo-se, por esta perspectiva de anlise, ao suposto de que seria a prpria natureza dos objetos patrimonializveis10 Consultar a respeito: POULOT, Dominique. Une histoire du patrimoine em Occident. Paris: Presses Universitaires de France, 2006.

30

Histria , Memria e Patrimnio

a responsvel por sua condio de legado e herana comum a ser preservada e transmitida de gerao em gerao.

a) A cultura antiquria.Os objetos que modernamente aprendemos a olhar como integrantes de um patrimnio histrico e que supostamente derivariam essa sua condio das marcas do tempo inscritas em suas formas, foram em muitos casos apreendidos e vistos segundo outros procedimentos de deciframento. Desempenharam papis distintos para aqueles que deles se ocupavam e respondiam a demandas diferentes com relao necessidade de sua preservao, conservao e exibio ao olhar do outro. Estabeleciam, igualmente, uma forma distinta de mediao entre o tempo presente, o tempo dos colecionadores e de suas colees, e o tempo pretrito, aquele dos objetos meticulosamente procurados e organizados segundo princpios bastante diversos daqueles que o tornaro, num outro quadro referencial e de significao, herana coletiva de uma comunidade ou prova material da existncia do passado. Essas no eram as preocupaes e os interesses que dirigiam esses colecionadores da poca moderna em sua busca por restos materiais do passado. A coleo presentificava o tempo passado, tornava-o novamente vivo aos olhos de seus proprietrios, uma relao inviabilizada pelo moderno conceito de Histria que ao se afirmar no horizonte intelectual das sociedades europias da segunda metade do sculo XVIII, tornara o passado definitivamente um outro tempo distinto e radicalmente diverso do presente. E exatamente pelo olhar construdo a partir do moderno conceito de histria que aprendemos a ver no trabalho do antiqurio um colecionismo desprovido de sentido e finalidade, como se os objetos reunidos por estes eruditos e letrados do comeo da poca Moderna no obedecessem a nenhum critrio de seleo e escolha.

31

Manoel Luiz Salgado Guimares

tambm partilhando o sentido moderno do conceito de Histria que educamos nosso olhar para ver as colees de peas antigas, de vestgios do passado, como um trabalho diletante e por isso irreconcilivel com as tarefas modernas que se esperava do trabalho com a histria e com os restos do passado. Fortemente marcada pelos valores do pragmatismo, a cultura das Luzes estabelece uma separao radical com o sistema colecionista de objetos, formulando novas demandas para a tarefa de reunir os vestgios e restos do passado. Contudo, preciso que tenhamos claro que a prtica antiquria ao ser vista pelo olhar da Histria e do historiador pode e deve ganhar um outro sentido, libertando-a da viso da qual ficou prisioneira e tributria e que resultou da leitura das Luzes. Com isso queremos retomar nosso argumento de que antes de serem vistos como patrimnio histrico, muitos objetos foram vistos e interpretados de forma distinta, sendo o exemplo da coleo antiquria apenas uma dessas possveis existncias para tais objetos. Refora-se assim nossa interpretao de que olhar o patrimnio importa em perceb-lo em sua historicidade e no em sua natureza.

b) O regime da histria como mestra da vida.Eu o fiz percorrer muito rapidamente, diz Corinne a lorde Nelvil, alguns restos da histria antiga; mas o senhor compreender o prazer que se pode tirar destas pesquisas, ao mesmo tempo eruditas e poticas, que falam tanto imaginao quanto razo. H em Roma um bom nmero de homens distintos, cuja nica ocupao a de descobrir uma nova relao entre a histria e as runas. Lorde Nelvil responde: este gnero de erudio muito mais interessante do que aquele que se adquire pelos livros: pode-se dizer que faz-se reviver aquilo que descobrimos, e que o passado reaparece sob a poeira que o encobria. (Corine de Mme. De Stael)

32

Histria , Memria e Patrimnio

Ao entrar na cidade de Roma, Corinne, personagem ttulo do livro de Madame de Stal, conduz o seu amado Oswald, lord Nelvil, pelas runas da cidade emblema do passado e de sua grandeza, itinerrio obrigatrio para a boa formao do letrado europeu das Luzes e cidade tambm visitada pela autora do romance. A tenso dramtica tem como cenrio a prpria histria, presena visvel atravs de seus restos materiais e constante indispensvel para a cultura letrada do oitocentos, ela mesma se definindo como uma cultura histrica por excelncia. Triunfo da Histria na sua capacidade de significar a vida dos homens, dando-lhes um sentido de continuidade para alm do tempo presente de suas experincias finitas. A Histria como parte central da cultura do oitocentos aparece agora, pelas palavras da personagem ttulo do romance, no apenas como um conhecimento que pode evocar o prazer esttico, da mesma ordem que a poesia, mas com seu conhecimento pode advir um conhecimento savante11, que ao mesmo tempo satisfaa imaginao como ao pensamento. Um conhecimento combinando assim o prazer esttico e a demarche racional exigida pelos cnones da cultura iluminista. O passado deve agora poder ser racionalmente apropriado e para isso o trabalho de pesquisa se faz necessrio e indispensvel, o que segundo ainda a personagem do romance tem estimulado o trabalho de um novo homem cultivado: aquele justamente que se ocupa de estabelecer as relaes entre os restos visveis na cidade de Roma e o seu passado. Estes traos e marcas do passado no se prestam apenas ao gosto do amante erudito do passado, cioso da sua conservao, mas sobretudo ao olhar que, ao pousar sobre estas runas, busca estabelecer relaes que transformem a experincia do passado em explicao para o presente das sociedades humanas. E segundo o seu interlocutor, o nobre ingls Nelvil, esta seria uma profisso a que se dedicaria com prazer - ao invs da car11 Saber erudito (corresponde ao verbo savoir, na lngua francesa).

33

Manoel Luiz Salgado Guimares

reira das armas a que sua condio de nobre o obrigava - visto que a v como uma forma de erudio superior que se adquire pelos livros no sossgo de sua biblioteca. Mas o que seria exatamente novo nesta forma de erudio? O conhecimento que se adquire pela pesquisa das coisas do passado, significando desta forma que pode haver o que se conhecer deste passado, superando uma perspectiva, segundo a qual a erudio no alteraria substantivamente o conhecimento existente acerca do passado das sociedades humanas. Vitria definitiva dos modernos, que ao derrotarem a erudio, transformam definitivmente o passado em Histria. Derrota igualmente de um regime de visualidade prpria ao sistema colecionista e instaurao de uma nova ordem visual, em que os objetos do objeto, seus traos, restos e vestgios deveriam cumprir uma funo diferenciada para as demandas em vias de formulao pela cultura ilustrada do setecentos. Prosseguindo seu percurso pela cidade de Roma e pela visita de seus monumentos histricos, um outro sentido central da cultura histrica das Luzes delineia-se com clareza para os homens do presente: ao defrontarem-se com a histria dos homens do passado poderiam aprender pelo exemplo, readquirindo assim, a Histria, o seu papel magistral. A contemplao de Roma e de seu passado, visvel atravs dos restos disponveis contemplao do olhar, poderia estar a servio de outro importante componente da cultura histrica das Luzes europia: desde os etruscos, agora j integrados histria de Roma, at o presente, o estudioso do passado poderia acompanhar a evoluo do esprito humano atravs de suas realizaes materializadas naquela cidade. Portanto, contemplar o passado adquire um sentido preciso. O de poder constatar e mesmo provar esta evoluo, que para alm de marcar as particularidades da sociedade romana, seria o sentido mesmo dos homens estarem no mundo, cabendo assim Histria o papel de fundamentar este sentido.

34

Histria , Memria e Patrimnio

Nas palavras da personagem principal, Roma como cidade no apenas uma aglomerao de habitaes, mas sobretudo lhistoire du monde, figure par divers emblmes, et reprsente sous diverses formes.12 Visitar Roma era, para os cnones desta cultura iluminista, muito mais do que visitar uma cidade ; era a prpria possibilidade de acesso histria dos homens, materializada de forma privilegiada no espao da cidade. A viso do passado, mais do que a prpria leitura dos textos, confere um novo poder de convencimento e persuaso para esta cultura iluminista, contribuindo para que o estudo deste passado adquira um novo valor e significado. Estes vestgios e traos parecem definitivamente libertos do diletantismo prprio ao colecionismo, segundo a avaliao dessa nova cultura histrica em emergncia. E nessa sua reapario que o passado pode ensinar alguma coisa!

c) O moderno regime de historicidade. O futuro como projeto.O sculo XIX afirmou-se definitivamente como o sculo da histria, dada a fora que as imagens do passado adquirem para as sociedades ocidentais. O lugar central que estas imagens assumem para estas sociedades foi analisado em trabalhos clssicos do historiador ingls Stephen Bann13, que procurou apresentar um leque variado de investimentos sociais em narrar o passado pelas sociedades europias do dezenove. Da pintura histrica, passando pelos museus de histria e at a afirmao do campo disciplinar no sculo XIX, o interesse central pelo passado marcou profundamente as sociedades ocidentais quela altura. A histria participava de um trabalho de luto pela conscincia da perda definitiva do passado como referncia e modelo para as sociedades do presente. A tra12 Madame de Stal. Corinne ou lItalie. Paris: Gallimard, 1985. p. 136. 13 Consultar entre outros trabalhos: Stephen Bann. Romanticism and the rise of History. New York: Twayne Publishers, 1995. As invenes da Histria. Ensaios sobre a representao do passado. So Paulo: Unesp, 1994.

35

Manoel Luiz Salgado Guimares

dio, que at ento parecia pautar as condutas e fornecer os modelos para ao, v-se questionada e subtrada desse seu poder. O passado agora deveria cumprir funes diversas daquelas que at ento haviam sido formuladas como demandas pelas coletividades humanas. O passado, transformado definitivamente em Histria, ser objeto de um conhecimento regrado por procedimentos controlados por uma comunidade de especialistas que assumem o papel de intrpretes desse tempo pretrito. Na formulao clssica do historiador alemo Reinhard Koselleck14, espao de experincia e horizonte de expectativa afastam-se de maneira radical, produzindo a impossibilidade do espao de experincia significar um sentido claro de orientao para as sociedades humanas no futuro, tendo em vista a velocidade das transformaes do presente. A Modernidade, com sua experincia peculiar do tempo, inviabiliza por completo a possibilidade de que o horizonte de expectativas possa ser formulado tendo como base esse espao de experincia. O futuro, segundo essa nova experincia temporal, pode comportar um leque variado e amplo de possibilidades, no necessariamente dadas em um determinado espao de experincia. A cultura histrica que ento se afirma, torna o passado objeto de uma cincia especfica, finalmente integrada aos quadros das disciplinas acadmicas e universitrias. Do mesmo modo esta cultura histrica elabora estratgias de visualizao do passado que se traduzem pela inveno do patrimnio e das antiguidades nacionais. O conceito de patrimnio vincula-se, definitivamente, noo de herana e legado para o futuro, agora no mais a partir de seu sentido original de herana familiar, mas de herana de uma coletividade, forma de congregar no presente e projetar para o futuro. Permanece, contudo, seu apelo afetivo prprio dos investimentos na memria, que convoca as sociedades tarefa da recordao no14 KOSELLECK, Reinhard. Futuro Passado. Contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

36

Histria , Memria e Patrimnio

seu sentido de recordare (com o corao). Os monumentos (de monere; advertir, lembrar) operam como interrogadores da memria, como sinalizadores de uma pergunta que deve ser formulada no apenas aos vivos no presente, mas para aqueles que vivero no futuro, operando os laos de continuidade entre estes dois tempos. O patrimnio inscreve-se, portanto, neste esforo oitocentista de produzir o passado como Histria de uma comunidade - a Nao moderna - cuja inveno recente deve ser combatida pela sua projeo imaginada em direo a um passado remoto, capaz de assegurar sua legitimidade poltica no presente.

d) O presentismo e a patrimonializao recente.Voltando ao nosso ponto de partida, afirmvamos que nossa contemporaneidade parece conferir especial ateno ao trabalho de patrimonializao dos bens considerados histricos como forma de proteg-los da inexorvel passagem do tempo e dos seus efeitos sobre os restos e vestgios do passado. Uma sensibilidade aguada em relao a esses vestgios parece conferir-lhes um valor peculiar que efetivamente em muito transcende seu valor como objetos em si. O que vem mudando em nossa relao com esses objetos, a que um autor denomina de portas de entrada privilegiada para o passado? 15 Por que as sociedades contemporneas parecem mais afetadas pelo desaparecimento desses bens colocados sob a proteo de uma poltica estatal? Retomo aqui as instigantes sugestes de Franois Hartog16 em seu recente livro sobre os Regimes de historicidade, em que diagnostica esta sensibilidade aguada em relao ao patrimnio como parte de alteraes ainda em curso em nossa relao com o tempo. A percepo cada vez mais acelerada do tempo pelas socie15 BALLART, Josep. El 1. patrimonio histrico y arqueolgico: valor y uso. Barcelona: Ariel, 2002. 16 HARTOG, Franois. Op. Cit. Consultar especialmente o captulo 5 intitulado Patrimnio e Presente.

37

Manoel Luiz Salgado Guimares

dades contemporneas, vem alterando nossa relao com o futuro e tambm com o passado. Ou melhor, essa nova percepo tem contribudo para novos investimentos afetivos em relao a essas temporalidades. O futuro, que estava no foco da Modernidade como o tempo das realizaes e afirmao do progresso, parece ceder aos poucos lugar a um tempo que guardaria maiores possibilidades de certeza e segurana; o passado. As profundas transformaes que tem alterado de maneira radical a relao dos homens com a Natureza na contemporaneidade, provocaram um desinvestimento com relao ao futuro, que no lugar de realizar o progresso acena-nos com crises as mais diferenciadas: desemprego, crise energtica e alimentar, crises ecolgicas. Assim, o futuro parece incerto e inseguro diferentemente daquilo que fora para a cultura histrica oitocentista. A esse tempo de incertezas e dvidas investe-se no presente, que parece teimar em no passar, e, portanto, em transformar-se em histria. A confiana no futuro substituda pela necessidade de preservao no presente como forma de salvaguardar-nos das incertezas desse tempo nossa frente. A exploso recente das narrativas memorialsticas, dos discursos testemunhais e de uma febre patrimonial, articulam-se a esse processo de mudanas com relao nossa percepo da passagem do tempo e de seus efeitos. So novas formas do presente capturar o passado e produzir sentido para as sociedades contemporneas. Aqui cabe uma observao importante. preciso, contudo, ter clareza que a esse crescimento vertiginoso do trabalho social da lembrana, no corresponde necessariamente uma relao mais crtica em relao ao passado. Se a defesa de uma poltica preservacionista integrou-se definitivamente s agendas polticas contemporneas - o que certamente positivo -, permitindo dessa forma que restos do passado permaneam visveis aos olhares de geraes futuras, a preservao no nos assegura por ela mesma uma relao mais crtica com o passado. Em nossa contemporaneidade so inmeros os interesses que se entrecruzam na tarefa de preservar o patrimnio histrico, inte38

Histria , Memria e Patrimnio

resses muitas das vezes conflitantes e que devem ser equacionados na discusso acerca de uma poltica patrimonial. Do patrimnio como mercadoria ao patrimnio como forma de construo da cidadania so inmeras as possibilidades de sua leitura e interpretao por parte daqueles que se engajam em favor da preservao. Alis, desde o momento em que se constitui como um saber regrado no sculo XIX, os inmeros debates em torno de como e do que preservar, j indicavam a inexistncia de um campo consensual no tratamento das questes relativas ao patrimnio histrico. Basta aqui a referncia a dois modelos distintos e contrapostos relativos preservao - o de Viollet-le-Duc e o de Ruskin -, para constatarmos como a disputa pelo passado e sua representao esteve tambm presente nos debates acerca da preservao de seus monumentos.17 Christophe Prochasson no livro a que fizemos referncia LEmpire des motions18, diagnostica esse tempo como sendo o de uma certa confuso entre histria e memria, quando os apelos da emoo parecem mais adequados para o enfrentamento do passado do que as armas da crtica histrica. Segundo ele, o historiador contemporneo deve, sobretudo, emocionar mais do que convidar reflexo crtica, ela mesma menos confortadora e apaziguadora. Para o historiador francs, os historiadores contemporneos estariam submetidos a um novo regime emocional. O retorno do drama faustiano, que marcou a experincia da modernidade, parece novamente presente apontando para os paradoxos do ser moderno: a necessidade de preencher com certezas - e com lembranas - aquilo que incerto por sua prpria condio. Como afirmava Adam Phillips, so tortuosos os caminhos pelos quais no conduz a memria e a recordao.

17 Ver a respeito: CHOAY, Franoise. A alegoria do patrimnio. So Paulo: Unesp, 2006. Especialmente o captulo IV. 18 PROCHASSON,Christophe. Op. Cit.

39

Manoel Luiz Salgado Guimares

RefernciasBALLART, Josep. El 1. patrimonio histrico y arqueolgico: valor y uso. Barcelona: Ariel, 2002. CHOAY, Franoise. A alegoria do patrimnio. So Paulo: Unesp, 2006. HARTOG, Franois. Regimes dhistoricit: prsentisme et expriences du temps. Paris: Seuil, 2003. KOSELLECK, Reinhard. Futuro Passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. Madame de Stal. Corinne ou lItalie. Pris: Gallimard, 1985 PROCHASSON, Christophe. LEmpire des motions: les historiens dans la mle. Paris: ditions Dmopolis, 2008.

40

Histria, memria e instituies: algumas reflexes terico-metodolgicas para os trabalhos do Projeto Memria - SiBI/UFRJAntonio Jos Barbosa de Oliveira

Os labirintos da memria e da histriaPara os antigos gregos, a memria estava ligada ao sobrenatural. A deusa Mnemosine, ou Mnmesis nasceu dos amores do Cu, a eternidade (Cronos) e da Terra (Gea), sendo a rainha de Eleutera, a terra da liberdade completa . Desta forma, era a deusa protetora da justia e da vingana, j que une o presente e o passado, realizando tambm a ligao entre o mundo do real de Gea e o mundo da representao de Cronos. Mnemosine ligou-se a Zeus, senhor do Olimpo, rei de todos os deuses gregos e administrador da justia, nascendo da, Clo, a Histria. Sendo filha da memria e de Zeus, senhor do poder do Olimpo, Clio tem seu bero no cume do poder terrestre e na representao do passado (GIRON, 2000, p.24). Desta forma, a memria seria a me de todas as artes, tendo ligao direta com o sobrenatural. Era a deusa que possibilitava aos poetas a lembrana do passado e a sua transmisso oral aos mortais.1 Assim, a memria tem estreita ligao com a imaginao. Por isso, lembrar e inventar tm relaes profundas. A ligao entre Mnemosine e Clio, muito prxima, mas nem sempre coincidente, nem sempre pacfica, sendo por vezes at conflituosa. Pierre Nora, em seu clssico texto Entre memria e histria a problemtica dos lugares j nos sinalizou para as especificidades1 Para os gregos o registro escrito empobrecia a memria, que estaria assim transferida para algo externo ao sujeito. Por isso, deram especial ateno ao ensino da arte retrica, destinada a convencer e emocionar os ouvintes por meio do uso da linguagem. Os romanos tambm consideravam a memria como elemento fundamental arte retrica.

41

Antonio Jos Barbosa de Oliveira

entre histria e memria: a primeira, uma reconstruo sempre problemtica e incompleta do que no existe mais e, porque operao intelectual e laicizante, demanda anlise e discurso crtico [...] s se liga s continuidades temporais, s evolues e s relaes das coisas (NORA, 1993, p 11); uma representao do passado, a desligitimao do passado vivido (1993, p.11) j que seu criticismo seria destrutor da memria espontnea. A memria, por sua vez, se configura como um fenmeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela est em permanente evoluo, aberta dialtica da lembrana e do esquecimento, inconsciente de suas deformaes sucessivas, vulnervel a todos os usos e manipulaes, suceptvel de longas latncias e de repentinas revitalizaes. [...] A memria um fennemo sempre atual, um elo vivido no eterno presente. [...] (NORA, 1993, p. 9) Neste sentido, segundo o historiador, a necessidade pelos lugares de memria indicador de que no h mais memria e sim uma necessidade de histria: Se habitssemos ainda nossa memria, no teramos necessidade de lhe consagrar lugares. No haveria lugares porque no haveria memria transportada pela histria. [...] Desde que haja rastro, distncia, mediao, no estamos mais dentro da verdadeira memria, mas dentro da histria. (1993, p. 8-9) Entre passado e presente, cus e terra, similaridades e diferenas, representaes e materialidades, transitam os que atuam no mbito da histria e memria de instituies. Campo permeado pelas disputas de poderes, na dimenso dos embates que definiro o que ser lembrado, como ser lembrado, e tambm com aquilo que, no sendo lembrado, ser esquecido: no somos s o que lembramos, somos tambm o que esquecemos.

42

Histria, memria e instituies: algumas reflexes terico-metodolgicas para os trabalhos do Projeto Memria - SiBI/UFRJ

Memria e Histria : tempos, lugares e relaesA memria sempre uma construo feita no presente, a partir de vivncias e experincias ocorridas num passado sobre o qual se deseja refletir e entender. Enquanto construo, a memria est tambm sujeita s questes da subjetividade, seletividade e, sobretudo, s instncias de poderes. Mesmo que (re)constituda a partir de indivduos, a memria sempre nos remete a uma dimenso coletiva e social e, por extenso, institucional. Outro aspecto importante em nossas consideraes a percepo de que sempre no contexto de relaes que construmos nossas lembranas, mesmo que aparentemente individualizadas (HALBWACHS, 2006). A memria tambm tem a funo de produo ou percepo de sentimentos de pertinncia a passados comuns, o que, por sua vez, constitui-se aspecto imprescindvel ao estabelecimento de identidades calcadas em experincias compartilhadas, no somente no campo histrico ou material, como tambm (e sobretudo) no campo simblico. Devemos ainda considerar as relaes que se estabelecem entre a memria e as questes que envolvem os lugares, tempos e poderes. As memrias, individual e coletiva, sempre se fazem em algum lugar que lhes imprime uma referncia e as mudanas empreendidas nestes lugares sempre acarretam mudanas na percepo da realidade e de vidas que ficaro registradas. Certeau (2002, p.77) nos lembra que os lugares permitem e interditam as produes da histria, tornando possveis certas pesquisas em funo de conjunturas e problemticas comuns e, por outro lado, impossibilitando outras. Por sua vez, os grupos, classes e indivduos tambm esto em constante disputa pelo poder. As relaes entre poderes, muitas vezes, definem o que ser lembrado e o que dever ser esquecido. no mbito de esferas hegemnicas que se define o que ficar registrado em livros e programas escolares, tornando-se memria histrica, ou a histria oficial. Desta forma, a memria est diretamente ligada aos mecanismos de controle e dominao de alguns grupos sobre outros. 43

Antonio Jos Barbosa de Oliveira

A evocao da memria est vinculada a um tempo presente. Mesmo remetendo a uma lembrana do passado, a necessidade presente que norteia a evocao memorialstica. Neste sentido sempre pertinente a conscincia dos interesses presentes que definem os trabalhos no campo da memria. Bordieu (2001, p.37) j nos alertou para o perigo de nos tornarmos objetos dos problemas que tomamos para objeto. Ademais, concebemos que as formas de concepo do passado tambm so formas de ao, j que, conceber o passado no apenas sel-lo sob determinado significado, construir para ele uma interpretao; conceber o passado tambm negociar e disputar significados e desencadear aes (ALBERTI, 2004, p.33, grifo nosso). Sendo assim, a memria tambm encontra-se diretamente ligada aos sistemas de poderes, porque tambm definidora de possibilidades de saberes. Foucault (1989) j nos sinalizou para o fato de que o poder luta, afrontamento, relao de fora, situao e estratgia. No um lugar, que se ocupa, nem um objeto, que se possui. Ele se exerce, se disputa, no sendo uma relao unvoca, unilateral: nessa disputa ou se ganha ou se perde. Desta forma, as lembranas e os esquecimentos que constroem nossas instituies so constantemente permeados por relaes de poderes que se estabelecem entre os seus diversos grupos. Se considerarmos que o poder tambm produtor de individualidades, poderemos inferir que ele est ligado aos que detm o saber. Os indivduos e as instituies so produes de constantes interaes entre poderes e saberes. Considerando a natureza da instituio de onde e sobre a qual falamos - a UFRJ - no podemos esquecer que todo conhecimento s pode existir a partir de condies polticas que so as condies para que se formem, tanto o sujeito quanto os domnios de saber. No h saber neutro, j que todo saber poltico. Memria e identidade so conceitos intrinsecamente ligados, constituindo-se, mutuamente, num processo no qual a primeira d substrato segunda. Atravs de uma constante seletividade de

44

Histria, memria e instituies: algumas reflexes terico-metodolgicas para os trabalhos do Projeto Memria - SiBI/UFRJ

elementos, a memria busca a legitimao do que deve prevalecer na lembrana e por isso tambm objeto de constante disputa de poderes. Isso tambm vale para a memria institucional. Se verdade que uma instituio constituda de uma complexa rede de relaes estabelecidas, no somente nos papis e registros oficiais, mas (e sobretudo) atravs das prticas habituais, fundamentadas em valores e normas adotadas pelos sujeitos que as constituem e nela atuam, tambm sabido que a identidade compartilhada um poderoso fator de coeso de grupos. Nas instituies, o discurso oficial produz determinados significados relacionados com a construo identitria da instituio em foco (OLIVEIRA, 2002, p.38) e atravs dele podemos perceber a atuao dos diversos grupos implicados neste processo, bem como a relao destes com os diversos tipos de memrias que se perpetuam ou se apagam. O discurso a que nos referimos extrapola a noo de textos, documentos e falas. Refere-se relao que os sujeitos estabelecem com o meio social e o processo histrico em curso. Discurso permeado pela ideologia, que se oculta muitas vezes nas retricas das autoridades e no contedo dos documentos institucionais.

Memria, discurso e instituioOs trabalhos no campo da memria institucional devem considerar que somos sempre marcados pelo lugar que nos forma e de onde falamos. Ao falarmos da universidade, na universidade, estamos sujeitos a toda srie deinterfernciasesubjetividadese at mesmo reproduo de verdades perpetuadas pelo senso-comum acadmico (sim, ele existe!) que podem incorrer numa dificuldade do distanciamentodesejado a todo trabalho de pesquisa. Assim, preciso, por vezes, tornar estranho o que nos habitual e desnaturalizar o que j est naturalizado a nossos olhos. Sabemos, luz de Bordieu (2001, p.34) que construir um objeto cientfico romper com o senso comum, ou seja,

45

Antonio Jos Barbosa de Oliveira

com representaes partilhadas por todos, quer se trate dos simples lugares-comuns da existncia vulgar, quer se trate das representaes oficiais, frequentemente inscritas nas instituies, logo, ao mesmo tempo na objetividade das organizaes sociais e nos crebros. As idias pr-construdas esto em toda a parte e o homo academicus gosta do acabado; como os pintores acadmicos, ele faz desaparecer dos seus trabalhos os vestgios da pincelada, os toques e os retoques. Sabemos no ser fcil o rompimento com o senso comum ou com verdades que so, na verdade, aparncias de uma pretensa lgica, revestidas de iseno ou cientificidade, j que o processo de institucionalizao leva consolidao de aparelhos que necessitam ser constantemente reproduzidos, e desta forma, dilui e disfara os antagonismos e diferenas. Foucault (2007, p. 8-9) tambm j nos sinalizou para a importncia de considerao do lugar do trabalho que fazemos, j que em toda a sociedade a produo do discurso simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuda por um certo nmero de procedimentos que tm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatrio, disfarar a sua pesada, temvel materialidade. Enquanto instituio, a universidade tambm cria mecanismos de controle para a afirmao de sua identidade, conferindo percepes e padres de conduta a seus membros. Ao exercer mecanismos de controle sobre a memria de seus membros, leva ao esquecimento as experincias incompatveis com a imagem de unidade e uniformidade que ela pretende ter de si mesma. Diversos atores-sujeitos (indivduos interpelados pela ideologia) esto envolvidos nas questes que perpassam a histria da nossa instituio, definindo, inclusive diversas formas especficas de memrias. Formam o que chamaremos de grupos. Nas reflexes

46

Histria, memria e instituies: algumas reflexes terico-metodolgicas para os trabalhos do Projeto Memria - SiBI/UFRJ

que estabelece sobre a formao de grupos, Oliveira (2002, p.33) nos esclarece que atingir um objetivo especfico, , por exemplo, um fator de coeso que determina tambm a organizao e os procedimentos do grupo. Sendo assim, o grupo no necessariamente todo e qualquer agrupamento constitudo eventualmente ou de forma legal: os pressupostos legais no atribuem vezes emocionais ao grupo que se associa. Somente pelo fato de ser legalmente constitudo no se pode dizer que um grupo comporta-se e muito menos que ele pensa ou sinta. Sendo assim, entenderemos um grupo como conseqncia de uma coeso promovida por interesses comuns, mesmo que momentnea; cuja existncia e permanncia dependem, muitas vezes, do estmulo e da incitao e no necessariamente do consenso entre os membros. Sabemos que o processo de associao de indivduos em grupos (como por exemplo, as diversas comisses que freqentemente se instituem na universidade) no aleatrio e determinado por uma srie de fatores que regulam o processo.

A pesquisa histrica nos lugares de memria: ampliando a noo de documentoa histria faz-se com documentos escritos, sem dvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos quando no existem. (...) Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presena e a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem. Lucien Fevre apud Le Goff Documento / Monumento A construo de uma pesquisa histrica se faz mediante a ampliao do conceito de documentos, j que estes tambm so

47

Antonio Jos Barbosa de Oliveira

monumentos (LE GOFF, 2006) e desta forma, so suscetveis a subjetividades e intencionalidades no expressas em sua produo, conservao, perpetuao e divulgao, sobretudo quando se trata de documentos oficiais das instituies. Sabemos que os discursos institucionais nem sempre explicitam as divergncias e contradies em confronto e evocam (quando no perpetuam) a memria de determinados grupos num contexto scio-histrico especfico. Nesta problemtica, no somente o existente ou materializado, como tambm o no dito de que nos fala Michel de Certeau (2002, p.67) ou as formas do silncio de que nos fala Orlandi (2007) devem ser considerados como fontes, pistas ou indcios no desenvolvimento dos trabalhos. Indo alm das consideraes restritas materialidade documental nos estudos da histria e memria da nossa instituio, percebemos que a no-comunicao tambm uma funo da linguagem e sendo assim, pode-se entender os silncios (que significam) a partir da anlise e do entendimento do que dito, registrado. Ao concebermos o discurso como palavra em movimento que significa, acreditamos, que no h neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos (ORLANDI, 1999, p.9). Ao tomarmos o discurso como evento ou acontecimento, somos tambm levados s consideraes sobre os sujeitos envolvidos, o contexto no qual se inscrevem as formaes ideolgicas que lhe do ordem e os elementos discursivos que so agenciados para veicular os sentidos propostos. (OLIVEIRA ; ORRICO, 2005, p.80, grifo nosso). Sendo assim, os documentos textuais (atas, ofcios, memorandos, matrias jornalsticas, relatrios, regimentos etc), os depoimentos orais e os registros iconogrficos (todos concebidos aqui como materialidades discursivas) com os quais trabalhamos devem ser compreendidos, no somente na tica do que significam, mas do como significam. Como materialidades de um discurso institucional, devem ser abordados como prticas socialmente inseridas em contextos especficos. (OLIVEIRA, 2002, p.20)

48

Histria, memria e instituies: algumas reflexes terico-metodolgicas para os trabalhos do Projeto Memria - SiBI/UFRJ

Toda palavra carregada de um contedo e de um sentido ideolgico, liga-se diretamente s experincias de vida de indivduos ou grupos e todo discurso tem a finalidade de expressar e produzir sentidos e, mais do que somente expressar um puro pensamento, configura-se como conseqncia de relaes ideolgicas. Por isso deve-se perceber, em toda pesquisa histrica, quem so os sujeitos envolvidos e o contexto no qual se inscrevem as formaes discursivas. Ao nos interessarmos por personagens de um discurso somos levados noo de estratgias discursivas, que devem ser entendidas como a maneira como o sujeito falante tenta se apoderar do papel que lhe convm e atribuir aos seus interlocutores os papis que escolheu para eles. (PROST, 1996, p.321). Atravs da anlise dos discursos, deve-se conferir aos textos (ou quaisquer registros documentais) novas perguntas, j que as maneiras de falar no so inocentes e para alm de sua aparente neutralidade, revelam estruturas mentais, maneiras de perceber e organizar a realidade, denominando-a. (1996, p.321) No atual momento de nossos trabalhos, nos interessam mais as reflexes dos discursos institucionais a partir de suas materialidades textuais e imagticas, como livros, atas, memorandos, ofcios, correspondncias, e-mails, fotografias. Tal como Oliveira (2002, p.25), entendemos que o discurso estrutura-se a partir de um determinado contexto (no caso, uma instituio de Ensino Superior), onde se d a relao entre sujeitos e grupos (atores) e no qual se forja uma srie de prticas, valores e normas, que contribuem para a formao de uma identidade. FOCAULT (2007) tambm j nos alertou para o fato de que o discurso sempre controlado pelas instituies, que trabalham no sentido de dissimular suas prprias estratgias, selecionando o surgimento de determinadas formaes e apagando outras. Dentre os diversos suportes documentais disponveis para o trabalho da memria institucional, os acervos fotogrficos tm sido cada vez mais utilizados, sobretudo a partir das novas tecnologias

49

Antonio Jos Barbosa de Oliveira

de digitalizao de imagens e dos espaos virtuais que se destinam difuso destas memrias. Quase todas as instituies tm, em seus sites, bancos de imagens, no intuito de dar ao visitante, uma viso de sua trajetria histrica, o que, por sua vez, tambm objetiva referendar sua importncia enquanto instituio. Entretanto, no devemos nos iludir com a facilidade destes recursos, ou com a quantidade destes registros, j que uma imagem, longe da objetividade que por vezes lhe atribuda, encobre muitas nuances que lhe do, freqentemente, um carter de monumentalidade ou intencionalidade. Imagens fotogrficas no se esgotam em si prprias; devem ser consideradas o ponto de partida, a pista para tentarmos desvendar o passado (KOSSOY, 1993, p.14) e, por vezes, torna-se complexa a questo de interpretao destas imagens, a apreenso de seus mltiplos significados: fotografias no so espelhos fiis de uma realidade objetiva. Como todo documento, as fotografias guardam em si uma srie de ambigidades, significados no explicitados, quando no omisses, j que nem tudo registrado numa imagem. Ao nos depararmos com acervos fotogrficos de instituies os cuidados devem ser redobrados. Ao cobrirem determinados fatos ou eventos da rotina da instituio ou de suas personalidades e autoridades, quando divulgadas, representaro sempre a tica da instituio ou daqueles que momentaneamente estejam investidos de funes diretivas. Raramente poderemos verificar nestes materiais as divergncias no declaradas entre os protagonistas de um dado processo, os embates ideolgicos, os excludos das instncias de poderes. Por vezes autoridades sorrindo para a cmera, encobrindo processos de crises polticas ou institucionais relacionadas a tal evento. Podemos considerar que tais registros referem-se a imagens da ordem. Neste sentido, a fotografia tambm uma materialidade discursiva, j que impregnada de carga ideolgica. Se durante muito tempo a fotografia foi negligenciada pelos historiadores, servindo quando muito, mera ilustrao do texto,

50

Histria, memria e instituies: algumas reflexes terico-metodolgicas para os trabalhos do Projeto Memria - SiBI/UFRJ

agora cada vez mais se fazem presentes trabalhos que tm como metodologia a anlise dos contedos das imagens registradas. Pode-se dizer, sem exagero, que vivemos em tempos de um certo fetiche pela imagem. Esta anlise foi at ento desprezada pela falsa premissa de que tudo o que a fotografia registrou, de fato ocorreu, como se atravs da cmera, pudssemos congelar um momento da realidade objetiva, e assim, sobre a imagem revelada no caberiam maiores indagaes. Entretanto, enquanto signo visual, toda fotografia fruto de um processo de produo, circulao e consumo. Isto quer dizer que ela foi investida de significaes determinadas pela relao entre fotgrafo, clientes e receptores (MIGUEL, 1993, p.126). Desta forma, h, na imagem fotografada, uma intertextualidade que assume papel instrumental importante na interpretao das fotografias, pois permite detectar alguns dos mecanismos ideolgicos em ao na produo e que deixaram na imagem suas marcas (1993, p.126). Ou seja, a fotografia uma obra em aberto (ou documento / monumento em aberto), j que sua potencialidade informacional varia de acordo com a viso que se tenha de seu valor enquanto fonte de informao e fonte histrica. (LACERDA, 1993, p.52) Vejamos, atravs de alguns exemplos, como tais reflexes contribuem para os trabalhos de investigao histrica: a figura 1 refere-se inaugurao do Instituto de Puericultura e Pediatria, na Cidade Universitria da Universidade do Brasil. A cerimnia, realizada em 1 de outubro de 1953, era presidida pelo prprio Presidente da Repblica, Getlio Vargas, no momento em que discursava. Prximos ao presidente, o diretor do Instituto, Martago Gesteira e o reitor Pedro Calmon.

51

Antonio Jos Barbosa de Oliveira

Figura 1 Acervo IPPMG/UFRJ

Figura 2 Acervo ETU / UFRJ

52

Histria, memria e instituies: algumas reflexes terico-metodolgicas para os trabalhos do Projeto Memria - SiBI/UFRJ

A figura 2 nos fornece um plano geral da Ilha Universitria, destacando sua grandiosidade e monumentalidade, bem como dos seus primeiros prdios que eram levantados simultaneamente construo da prpria ilha, a partir de aterramentos. No h, pelas imagens, indcios de maiores problemas ou dificuldades no grande empreendimento de construo da cidade universitria da ento Universidade do Brasil. Se considerarmos suas condies de produo (ORLANDI, 1999, p.30) em sentido estrito, - a inaugurao do primeiro Instituto da UB na cidade universitria e grandiosidade do empreendimento -, temos as circunstncias de enunciao, o contexto imediato. Entretanto, se as considerarmos em sentido mais amplo, acrescentando s condies de produo especfica o contexto sciohistrico, ideolgico, institucional e valendo-nos de outras fontes documentais somadas s imagens fotogrficas, como por exemplo, documentos textuais, somos levados a maiores reflexes, ao aprofundamento dos significados. Ainda valendo-nos dos significados e intencionalidades expressas nas imagens anteriores, somemos a elas outras fontes documentais. Primeiramente, trechos do discurso proferido pelo presidente: [...] Foi a oito anos passados que o meu governo tomou as providncias iniciais para levantar aqui o mais importante centro educacional do pas. Compreendeu a necessidade de reunir e sistematizar, num conjunto de instalaes apropriadas, os diversos institutos de ensino superior que constituem a Universidade do Brasil, ampliando-os nos seus currculos e objetivos. [...] Obra de grande vulto e longo alcance, muitos descreram de suas possibilidades. Agora, entretanto, j podemos ver que as nossas esperanas no foram frustradas. Se muito ainda resta a fazer, no foi pouco, decerto, o que j fizemos. [...] Devemos esperar que obras como essa avivem na alma dos moos a f no Brasil e a confiana nos seus governantes. Pois o pas trabalha e o seu governo se empenha na

53

Antonio Jos Barbosa de Oliveira

causa do progresso nacional, a despeito das campanhas insidiosas dos que nada constroem e apenas procuram difundir a descrena amarga e o pessimismo dissolvente. (OLIVEIRA, 2005, p.117-118) Aqui, a contextualizao e o conhecimento das condies de produo deste discurso atribuem a ele significados mais amplos. Primeiramente, o longo perodo mencionado pelo presidente (oito anos) toma como referncia o Decreto-lei no 7.563, de 21 de maio de 1945, que estabeleceu a localizao para a construo da cidade universitria naquele local. Mas, se considerarmos que a primeira Comisso de professores encarregada de definir tal localizao data de 1935 e que durante uma dcada diversos embates foram travados entre as comisses de professores e engenheiros e arquitetos, facilmente compreenderemos que o processo foi conflituoso, no havendo, at ento, um consenso na universidade sobre a acertividade da escolha final. Grandes resistncias internas e externas se fizeram quanto transferncia de unidades da universidade para a Ilha Universitria (campanhas insidiosas dos que nada constroem). Verificamos tambm tratar-se de um projeto de Estado (e no somente da UB), o que nos sinaliza para as relaes conflituosas que historicamente se estabeleceram entre a universidade e o Estado ao longo de diversos perodos. Ademais, as novas instalaes na Cidade Universitria pressupunham, no somente uma nova espacialidade, como tambm reformas dos contedos e currculos, algo que se chocava com as instncias de poderes de poderosos grupos de professores catedrticos da universidade. Vejamos um outro exemplo, tambm relacionado s problemticas espacial e discursiva de nossa universidade. Em 1946, j findo o Estado Novo, o ento Ministro da Educao Ernesto de Souza Campos, empreendeu uma tentativa de revogao do Decreto n 7.563 que, como vimos, estabelecia a localizao da cidade universitria na atual Ilha do Fundo. Encaminhando Exposio de Motivos ao ento presidente Dutra, argumentava que

54

Histria, memria e instituies: algumas reflexes terico-metodolgicas para os trabalhos do Projeto Memria - SiBI/UFRJ

a localizao da Cidade universitria em ilhas da Guanabara [...] havia sido considerada imprpria por expressa resoluo do Conselho Universitrio da Universidade do Brasil, que entendeu mais conveniente a escolha dos terrenos da Praia Vermelha, para uma instalao mais modesta e de menores propores (OLIVEIRA, 2005, p.107). Aps novos encaminhamentos, o Presidente da Repblica, diante de contra-exposies apresentadas por engenheiros e tcnicos do DASP, manteve a localizao no arquiplagos.2 A partir de ento, temos na histria de nossa universidade, a introduo de um novo espao: o prdio do antigo Hospcio de Alienados, no bairro da Urca, que deu origem ao atual campus da Praia Vermelha. O hospcio havia sido desativado em 1942 e cedido, em 1945, Universidade do Brasil que arcou, atravs de recursos prprios e o apoio da Seo de Engenharia do Ministrio da Educao, com os custos da restaurao, transformando o prdio , de hospcio a Palcio Universitrio. Vejamos como o reitor Pedro Calmon refere-se ao episdio: Extinto o hospcio, surgiu o problema de aproveitamento do edifcio, que poderia ser demolido, para em seu lugar serem construdos modernos prdios, ou restaurado, tendo-se em vista o que valia e representava para a cultura nacional. Prevaleceu este sentimento. E andou bem avisado o governo da Repblica cedendo-o para as instalaes da Universidade do Brasil. [...] A reitoria da universidade assim interpretou as responsabilidades que assumiu com esta doao: e em menos de um ano (entre fevereiro e dezembro de 1949), com as verbas prprias e o auxlio do Ministrio da Educao e Sade, as obras a cargo da sua seo de engenharia, obedecendo s2 Para maiores informaes sobre esta problemtica, sugerimos a consulta de nossa dissertao de Mestrado Das ilhas cidade a universidade visvel, defendida no Programa de Ps-Graduao em Histria Comparada do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da UFRJ (PPGHC/IFCS/UFRJ)

55

Antonio Jos Barbosa de Oliveira

linhas clssicas da construo, para lhe preservar a autenticidade sem prejuzo das adaptaes requeridas pelos novos servios, pde inaugurar nesse Palcio Universitrio a sua sede. (CALMON, 2002, p.89) No h, neste discurso, evidncias de impasses, controvrsias ou mesmo referncias sobre a instalao da universidade em sua Cidade Universitria, na Ilha do Fundo, j definida anteriormente (1945). Mais do que atender a interesses da universidade, a incorporao do antigo prdio constitua-se como um ato de valor patritico, j que se fazia em prol da defesa de um patrimnio da cultura nacional que estaria destinado destruio. Menciona, inclusive, a eficincia e rapidez com que a universidade cuidou do empreendimento: em menos de um ano. Tal argumentao est sedimentada em nossa memria institucional, remetendo-nos ao que Pollak (1992) chama de enquadramento da memria (POLLAK, 1992, p. 200-212). Entretanto, j nos referimos anteriormente s especificidades e contrapontos entre histria e memria. E nosso ofcio de historiador nos leva a constantes interrogaes, a partir da incorporao de fontes diversas para a construo de nossas narrativas. E neste trabalho, a observncia aos fatos e suas cronologias no virtude do historiador, mas obrigao a ser considerada em suas pesquisas. A simultaneidade temporal dos fatos acima mencionados , no mnimo, intrigante; deve, certamente, despertar a curiosidade dos estudiosos no assunto. Sobretudo se considerarmos outros documentos na composio deste contexto, como por exemplo, o ofcio n 829, encaminhado pelo diretor do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (SPHAN), Rodrigo Mello Franco de Andrade, em 23 de julho de 1942, ao Ministro da Educao e Sade Pblica, Gustavo Capanema: A fim de dar cumprimento determinao de Vossa Excelncia no sentido dste [sic] Servio elaborar o projeto de adaptao do edifcio do Hospcio Nacional de Alienados 56

Histria, memria e instituies: algumas reflexes terico-metodolgicas para os trabalhos do Projeto Memria - SiBI/UFRJ

finalidade de Externato do Colgio Pedro II, solicito as providncias necessrias para o feito de ser transmitido a esta repartio o programa de instalao desejado para o referido estabelecimento de ensino. (CAETANO, 1993, s/p, tomo 2). Em ofcio de 7 de janeiro de 1944, o diretor de obras do Ministrio da Educao e Sade, Ruy Moreira Reis, se dirigia ao diretor do Colgio Pedro II: No processo 39.967/43, foram aprovadas pelo Sr. Presidente da Repblica as obras de restaurao do Hospital Psiquitrico, para nele ser instalado o Colgio Pedro II. Encaminhando o processo a esta Diviso, transmitiu o Sr. Diretor Geral do Departamento de Administrao recomendao verbal do Sr. Ministro para que as obras se iniciem a 20 do corrente. Tratando-se de Edifcio histrico, aconselhou-me o Sr. Diretor Geral, que entre em entendimento imediato com esse Servio, afim de que sejam combinadas as providncias cabveis, para dar andamento s obras em questo, no prazo fixado pelo Sr. Ministro. (1993, s/p). Ainda a 7 de janeiro de 1944, o Ministro Gustavo Capanema enviava a seguinte mensagem ao Diretor do SPHAN: Agradeo o interesse, a diligncia e o esmro com que o Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional estudou e projetou esta remodelao, ao mesmo tempo que lhe peo que empregue o mximo de esfro [sic] afim de que as obras se faam com urgncia, visto como meu desejo que o Colgio Pedro II possa funcionar na nova sede no ano de 1945. Apresento-lhe os meus protestos de elevada estima e alta considerao. (1993, s/p) Documentos referentes execuo das obras, entre os anos de 1942 a 1944, levam-nos a considerar a preocupao com a adequao do prdio para receber as novas instalaes do col-

57

Antonio Jos Barbosa de Oliveira

gio. Entretanto, aps um hiato documental entre os anos de 1944 e 1945, somos surpreendidos pelo ofcio do reitor da Universidade do Brasil, Igncio M. Azevedo do Amaral, ao diretor do SPHAN, Rodrigo de Mello Franco de Almeida, expedido em 6 de dezembro de 1945: Tenho a honra de apresentar a V.Excia. o Sr. Professr arquiteto Archimedes Memria, da Faculdade Nacional de Arquitetura, com quem V. Excia. poder entender-se sobre todas as informaes necessrias s obras de instalao da Reitoria da Universidade, da Faculdade Nacional de Arquitetura e da Escola Nacional de Educao Fsica e Desportos. Aproveito o ensejo para apresentar a V. Excia. meus protestos de elevada estima e distinta considerao [sic]. (1993, s/p). Ainda no temos concluses sobre as questes apresentadas e no pretendemos reduzir a problemtica a uma mera conspirao e reao conservadora de grupos determinao governamental de construo da cidade universitria, que deveria, inclusive, receber a totalidade das unidades da universidade. Mas fato que merece estudos mais aprofundados a quase simultaneidade das obras na Ilha do Fundo e na Praia Vermelha. Como tambm gera estranheza o argumento, to utilizado nos discursos da universidade, de que a incorporao do prdio do antigo Hospcio universidade se deu em funo da necessidade de impedir sua destruio. Certamente, no o seria. Os documentos apresentados nos do evidncias de que, ao ser destinado ao Colgio Pedro II, com obras sob a superviso do SPHAN, no somente seria preservado, como seriam tambm consideradas as suas caractersticas arquitetnicas de prdio histrico.

Finalizando e no concluindoOs nossos arquivos e centros de documentao, como lugares de memria que so, devem ser considerados como instncias fundamentais no aprofundamento da compreenso sobre eventos

58

Histria, memria e instituies: algumas reflexes terico-metodolgicas para os trabalhos do Projeto Memria - SiBI/UFRJ

pretritos, j que possibilitam a existncia de uma diversificao das reservas documentais nas suas diversas colees, que precisam ser analisadas em conjunto, nas suas especificidades, no que apresentam em comum, nas suas contradies, no que se guardou para fazer-nos lembrar e tambm no que foi descartado, levando-nos ao esquecimento ou desconhecimento. Se todo arquivo indcio de uma falta, como j nos alertou Henry Rousso (1996), preciso tambm considerarmos que ele encontra sua unidade em quem o produziu como conjunto, ou seja, em quem acumula os documentos no exerccio de suas atividades. O agrupamento dos documentos, sua seleo dentre todos os passveis de serem guardados proporciona o sentido dos mesmos. (VIANA, 1986 apud LACERDA, 1993, p. 50). Os exemplos, aqui rapidamente mencionados, demonstram o quanto a incorporao de novas fontes atribui novos significados a uma realidade pretensamente conhecida. So nestes labirintos da histria e memria que um pesquisador transita. Novas pistas levam-no a outros caminhos, quando no a mudanas de trajetrias. Saindo da tranqilidade dos conceitos e verdades que se perpetuam ao longo dos anos e solidificados nas narrativas institucionais, para zonas nebulosas, incertas, permeadas por silncios e vazios que tambm significam. Trabalho instigante, constante desafio de nosso fazer dirio...

59

Antonio Jos Barbosa de Oliveira

RefernciasALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em histria oral. Rio de Janeiro: CPDOC, FGV, 2004. BORDIEU, Pierre. O Poder simblico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. CERTEAU, Michel de. A escrita da histria. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2002. CAETANO, Lucina Oliveira. O Palcio da Universidade do Brasil, ex-hospcio de Pedro II: imagens e mentalidades. 1993. Dissertao (Mestrado Escola de Belas Artes), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1993. CALMON, Pedro. O Palcio da Praia Vermelha. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. DODEBEI, Vera ; GONDAR, J (org). O que memria social? Rio de Janeiro: Contra Capa, 2005. DOUGLAS, Mary. Como as instituies pensam. So Paulo: Edusp, 1999. FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989. ______. A ordem do discurso. So Paulo: Loyola, 2007. GIRON, Loraine Slomp. Da memria nasce a histria. In: LENSKIJ, Tatiana; HELFER, Nadir Emma (Org.). A memria e o ensino de histria. So Leopoldo: Edunisc, 2000, p. 23-38. KOSSOY, Bori