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LITERATURA E HISTÓRIA ENQUANTO DISCURSOS SOBRE O REAL NO BAIXO MEDIEVO GERMANÓFONO: ALGUMAS PALAVRAS As definições do conceito de realidade pressupõem uma visão pluralista sobre o grau de veracidade do discurso que o procura afirmar. Se enquanto objeto de estudo por parte dos historiadores ou também como possível matéria-prima para os poetas, tem-se na realidade um ponto de chegada sobre vários, senão todos os questionamentos do homem. Tanto a Literatura quanto a História apresentam suas práticas discursivas com vistas à (con)textualização daquilo que é sentido e vivido pelo ser humano. Este trabalho tenciona trazer à luz alguns pontos para reflexão e identificação de decodificação de elementos pertencentes à realidade do baixo medievo no Sacro Império Romano-Germânico em textos literários em alemão, no que as fontes históricas e os textos literários confluem suas visões sobre um dado momento que se faz Histórico e histórico. Palavras-chave Baixa Idade Média Literatura alemã medieval História medieval Medievística Discurso(s) I. INTRODUÇÃO Que a Literatura pode ser um reflexo da sociedade, mas nunca representa a mesma como esta foi, não pode mais ser posto em dúvida por ninguém. Da mesma forma, isto também não pode mais ser questionado pela Germanística com respeito à épica da alta nobreza e do trovadorismo. Questionável, porém, permanece apenas qual importância pode ser atribuída à épica e ao trovadorismo na sociedade. O amor apresentado nos romances e poemas épicos e o endeusamento da mulher eram apenas um jogo, que todos entendiam apenas em um piscar de olhos, mas ninguém levava a sério, porque a realidade possuía uma outra aparência, como todos sabiam, ou havia, contudo, atrás da poesia um ideal pedagógico ou há possivelmente um outro caminho para o entendimento, que poderia unificar as interpretações e fundi-las em uma noção? As opiniões divergem. Enquanto

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LITERATURA E HISTÓRIA ENQUANTO DISCURSOS SOBRE O REAL NO BAIXO

MEDIEVO GERMANÓFONO: ALGUMAS PALAVRAS

As definições do conceito de realidade pressupõem uma visão pluralista sobre o grau

de veracidade do discurso que o procura afirmar. Se enquanto objeto de estudo por parte

dos historiadores ou também como possível matéria-prima para os poetas, tem-se na

realidade um ponto de chegada sobre vários, senão todos os questionamentos do homem.

Tanto a Literatura quanto a História apresentam suas práticas discursivas com vistas à

(con)textualização daquilo que é sentido e vivido pelo ser humano. Este trabalho tenciona

trazer à luz alguns pontos para reflexão e identificação de decodificação de elementos

pertencentes à realidade do baixo medievo no Sacro Império Romano-Germânico em textos

literários em alemão, no que as fontes históricas e os textos literários confluem suas visões

sobre um dado momento que se faz Histórico e histórico.

Palavras-chave

Baixa Idade Média

Literatura alemã medieval

História medieval

Medievística

Discurso(s)

I. INTRODUÇÃO

Que a Literatura pode ser um reflexo da sociedade, mas nunca representa a mesma

como esta foi, não pode mais ser posto em dúvida por ninguém. Da mesma forma, isto

também não pode mais ser questionado pela Germanística com respeito à épica da alta

nobreza e do trovadorismo. Questionável, porém, permanece apenas qual importância pode

ser atribuída à épica e ao trovadorismo na sociedade. O amor apresentado nos romances e

poemas épicos e o endeusamento da mulher eram apenas um jogo, que todos entendiam

apenas em um piscar de olhos, mas ninguém levava a sério, porque a realidade possuía uma

outra aparência, como todos sabiam, ou havia, contudo, atrás da poesia um ideal

pedagógico ou há possivelmente um outro caminho para o entendimento, que poderia

unificar as interpretações e fundi-las em uma noção? As opiniões divergem. Enquanto

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Joachim Bumke (1999), por exemplo, inclina-se para a primeira das teses expressas, Horst

Wenzel (1974) crê por outro lado, que muito provavelmente havia por trás disso um ideal, o

qual também era aspirado como modelo comportamental, embora nunca pudesse ser

alcançado. Reflexões semelhantes podem ser estendidas a outros campos. Como esse ideal

se comporta com os torneios nos esboços poéticos e na realidade, com as virtudes

cavalheirescas, que eram especialmente cobradas dos heróis nos romances épicos, com o

modo de vida real da nobreza no Império Alemão? Os heróis dos romances épicos e seu

comportamento serviam como modelos para a nobreza e seu estilo de vida ou tratava-se

novamente de um mundo artificial, do qual a nobreza tomou conhecimento, mas não

aceitou como modelar para sua vida? Ou os romances épicos e os heróis neles apresentados

serviam como legitimação para a nobreza e sua posição de destaque, como em especial

tenciona demonstrar Horst Wenzel?

Deveria ser tarefa de uma tal verificação, especialmente das opiniões de Wenzel,

encontrar e analisar as fontes que dão a entender uma tal relação. Para isso contribuiu o

próprio Wenzel ao coletar material relativo a tal intento. Todavia, isso não é ainda

suficiente. Sempre que se utilizar fontes literárias para a interpretação e para a exegese de

uma ou outra representação, corre-se o risco de que a argumentação movimente-se em

círculos. Dever-se-ia ter que recorrer também a outros grupos de fontes, como, por

exemplo, fontes jurídicas contemporâneas, como fornece o Sachsenspiegel. Dever-se-ia

remontar aos procedimentos transmitidos por escrito sobre festas e cerimônias, às assim

chamadas ordines, e comparar suas versões com aquelas das representações literárias. Para

tanto serviriam outras fontes, que de quando em quando parecem informar sobre a

realidade, tal como hoje ela se nos apresenta: documentos e fontes narrativas, doações

dentre outras.

A ciência histórica compilou algum material, que permite o testemunho sobre a

realidade da vida da nobreza. Pensa-se nos trabalhos de Gerd Althoff (1997), Arno Borst

(1998), Werner Goez (1997) ou de Maurice Keen (1999) apenas para citar alguns poucos.

O Max-Planck-Institut de História interessou-se do mesmo modo pelo tema e tratou em

dois colóquios dos campos „Torneios“ e „Caça“, confrontando, desta forma, a realidade

com a sobrelevação literária.

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Além disso devemos levar em consideração a influência das Cruzadas sobre a nobreza.

As Cruzadas e com elas implícitas as tentativas da Igreja de domar a classe secular dos

bellatores, para solidificá-la em um modelo de vida organizado de acordo com regras éticas

e pretensões religiosas, sempre têm sido destacadas tanto pela Germanística quanto pela

História. Todavia também frequentemente se afirma, que as tentativas da Igreja nem

sempre foram coroadas de êxito e não eram nem imediatamente nem em todo o lugar bem

acolhidas. Mesmo no caso de as Cruzadas terem desempenhado um papel à margem na

épica da alta nobreza alemã e terem encontrado apenas de forma indireta uma entrada nos

textos poéticos, estes últimos e seus desdobramentos não podem ser desconsiderados. A

isso não apenas aludiu Wenzel em seus trabalhos. Em que medida as cruzadas modificaram

a vida da nobreza ainda apresenta-se para a História como um problema sem solução,

embora a Literatura possa abranger o tema quase ilimitadamente. Destarte, este aspecto

também não pode deixar de ser levado em consideração e contemplado tanto pelo lado da

Germanística quanto pelo da História.

Um tal e bem amplo descortinamento da época do baixo medievo germanófono não

pode ser realizado sem ser bem delimitado, caso contrário excederia em muito a capacidade

de trabalho de um pesquisador ou de uma pequena equipe. Devido à limitação espacial

destas linhas, nossas considerações prender-se-ão ao âmbito do romance épico e a poesia

sentenciosa circulantes no seio da alta nobreza alemã, sendo escolhidos os autores

Hartmann von Aue e Walther von der Vogelweide. À Medievística Germânica, ciência

ainda pouco conhecida entre nós, caberá a tarefa principal da investigação, no que diz

respeito essencialmente à pesquisa do background literário e histórico.1

Tanto o cientista da Literatura quanto o historiador devem tencionar a aproximação da

realidade da Idade Média. A própria – Kulturwissenschaft – em sentido moderno –

conforme Doris Bachmann-Medick a caracteriza, fornece elementos importantes para a

Medievística Germânica e é de grande valor como metodologia pelas suas premissas e

inserção na práxis da análise, pois as informações sobre a mentalidade das pessoas, a

1 Entendemos os termos em alemão Germanistische Mediävistik como a ciência que tem por finalidade estudar uma determinada língua e a literatura compilada nesta língua durante a Idade Média e que as considera não como um fenômeno isolado, mas as contextualiza em uma época com sua cultura e civilização específicas. A Medievística germanística em alemão, como propomos, prende-se aos estudos de Kulturwissenschaft, ou Cultural Studies (apud BRANDT: 1999,15-16; BACHMANN-MEDICK: 1996, 7-64)

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hierarquia social, concepções de mundo e condições de vida reais e idealizadas da Baixa

Idade Média de língua alemã são passíveis de confronto com a realidade histórica. Dados

sobre a vida do ministerial de Aue e do mais célebre Minnesänger serão da mesma forma

arrolados. Contudo devemos ter com clareza o fato de que ficção e realidade, conforme

salientou Joachim Bumke, nem sempre se ajustam uma à outra. Entretanto, nos propomos a

considerar até que ponto a Literatura foi um reflexo da vida efetivamente vivida na Baixa

Idade Média.

II. AUTORES E SOCIEDADE NA HOHES MITTELALTER – ALGUNS TÓPICOS

A Baixa Idade Média, no que tange à boa parte das literaturas européias em

vernáculo, verá surgir a partir do século XII um tipo de produção literária que refletirá em

muito uma classe social privilegiada no ápice do sistema feudal e em cujo centro se verá

representada.

Desde a época dos reis francos e de Carlos Magno já se distinguia o importante papel

de especiais soldados a cavalo, que serviam de sustentáculo militar à nobreza dirigente.

Esses homens, escolhidos por sua perícia no manejo das armas e lealdade ao seu senhor,

comporão paulatinamente o cerne da futura ordo equestris, i.e., da cavalaria medieval.

Dentro do Império Alemão, mais especificamente a partir da dinastia dos

Hohenstaufen (1138-1254) e seguindo o movimento trovadoresco oriundo da Provença,

reúnem-se ao redor das cortes da nobreza cantores, poetas e instrumentistas, para

proclamarem esteticamente o Minnesang, o “canto do amor” endereçado à jovens da corte –

hohe minne – ou a posteriori às moças simples – niedere minne -. Paralelamente a essa

manifestação lírica, sob a crescente importância da cavalaria como mantenedora, dilatadora

e espelho da nobreza e de seus códigos comportamentais, onde a honra, o amor e a

fidelidade são os conceitos norteadores de suas vidas, escrevem-se romances sobre as

aventuras de Rolando, Arthur e de outros exemplares cavaleiros, em alemão Ritter. Em

terras germânicas, Hartmann von Aue (+/-1170 - +/-1210-1220) destacou-se pela qualidade

de sua produção em Minnesang, aproximadamente 60 canções e pelos seus quatro

romances, Erec, Iwein, Gregorius auf dem Steine (Gregório sobre a pedra) e Der arme

Heinrich (O pobre Henrique). Já Walther von der Vogelweide teria nascido

aproximadamente em 1170, possivelmente no Tirol, em território da atual Áustria, apesar

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de não haver uniformidade quanto a sua cidade natal, vindo a falecer por volta de 1230 em

seu feudo localizado nas proximidades da atual Würzburg. O que sabemos de sua vida pode

ser inferido, em grande parte, de seus próprios escritos, já que Walther legou à posteridade

poemas característicos das três grandes subdivisões do lirismo trovadoresco em alemão.

Como representante dos bellatores e posteriormente imbuído de traços de um orator,

se seguimos a conhecida divisão da sociedade feudal proposta por Adalberón de Laon,

cabia ao cavaleiro a defesa e a propagação de todo um sistema de pensar e agir, que no

século XII conformará o modelo estético de preferência por parte daqueles que sentiam

justificadas nas aventuras de cavaleiros heróis sua própria existência.

Os romances de cavalaria em médio-alto-alemão, a partir da segunda metade do

século XII até o terceiro quarto da centúria posterior, veiculam em seus textos o modus

cogitandi e o modus faciendi da alta nobreza feudal germânica. Mais especificamente, a

partir do século XII, em virtude do enriquecimento das cortes a partir das Cruzadas, do

desenvolvimento e afirmação da escolástica como sistema propedêutico das incipientes

universidades de então e do fenômeno do trovadorismo, que teve como conseqüência uma

maior divulgação do ideal cortes, criam-se as condições para aquilo que é definido por

Charles Homer Haskins (1957) como o renascimento do século XII. Assiste-se ao

florescimento em terras germânicas de romances de aventuras cavaleirescas e Der arme

Heinrich, de Hartmann, funde em si os dois pilares básicos do edifício medieval, quais

sejam, as honras na terra granjeadas pelos guerreiros e a benção divina, que reconduz o

homem desviado da Verdade ao seio da sociedade cristã.

Por outro lado, Walther von der Vogelweide, possivelmente descendendo de família

da baixa nobreza, jovem ainda foi levado à Viena, onde foi educado no singen und sagen,

i.e., “cantar e dizer”, tendo como seu mestre Reinmar von Hagenau. Vivia-se a época do

hohe minne, do alto amor, estilizado, artificial, onde a mulher inacessível é a senhora dama,

herrîn frouwe, e o espaço do jogo amoroso normalmente é o castelo. Walther, por outro

lado, conhecedor dos elementos formais do “alto amor”, inova, ao colocar em cena uma

relação mais pessoal entre o eu-lírico e a figura feminina, tornando-a acessível aos

encontros amorosos e permitindo uma sensação de sentimento verídico e recíproco. É a

época do niedere minne, o “baixo amor”, não assinalado por uma pretensa qualidade

inferior de seus poemas, mas, pelo contrário, uma racional reelaboração estética dos ideais

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corteses, que para Walther já se afiguram ultrapassados, pois este centra-se agora em um

plano mais “real”.

Seus Lieder (poemas) denunciam a manutenção das tendências estilísticas do

trovadorismo e simultaneamente inovam com o toque pessoal ao ir de encontro ao

individual numa atitude de abertura ao mundo. (Beutin, 1993, p.64) Tal movimento de

partida para o outro pode ser melhor vislumbrado após sua partida definitiva de Viena em

1198, quando assume o poder o duque Leopoldo VI

Walther passa, então, a procurar serviço em cortes de outros nobres. Procura serviço

em terras do margrave Dietrich von Meissen, do bispo Wolfger von Ellenbrechtskirchen, de

Ludwig von Thüringen, do conde Dieter Katzenellenbogen e do duque Bernhard von

Kärnten. Paralelamente, sua visão política o leva a apoiar nas questões imperiais

primeiramente a Felipe da Suábia, depois a Otto IV e finalmente a Frederico II. O serviço a

diversos senhores é freqüentemente criticado por estudiosos, mas exatamente seu conceito

de Dienst, “serviço” merece esclarecimento. O poeta procura apoiar aqueles soberanos,

cujo plano de governo possa trazer uma paz duradoura para as regiões do Reich, maculado

pelo perigo iminente de desintegração política e moral. O autor relata em seus versos uma

situação histórica a ele contemporânea. Ele compõe poesias sentenciosas,

Spruchdichtungen.

Em suma, ambos os poetas medievais viviam os momentos decisivos do ápice do

modelo estamental feudal, que se refletia nas obras que criaram.

III. CIÊNCIA DA CULTURA – ÁREA DE INTERSEÇÃO ENTRE HISTÓRIA E

LITERATURA

A Literatura enquanto manifestação estética dentro de determinado período histórico

contribui para a apreensão, ou pelo menos tentativa, de uma conjuntura sócio-cultural.

Partindo dessa premissa, a Baixa Idade Média, mais especificamente, o século XII e as

regiões de língua alemã do Sacro Império Romano Germânico, apresentam um conjunto de

influxos culturais, moldados pela arte da palavra, que refletem mudanças e tendências de

então. O romance cavaleiresco, de procedência do norte da França, encontrou em Hartmann

von Aue, poeta e ministerial da corte de um senhor feudal alamânico, um de seus maiores

expoentes. Sua visão de mundo centrada no fazer literário da corte apóia-se, do mesmo

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modo, em uma vertente condizente com o pensamento da Igreja Romana. Colocando o

exemplo do cavaleiro, que preferiu o mundo em detrimento da observância das regras de

sua classe, Hartmann ensina aos homens de armas seu lugar e comportamento ideal dentro

da sociedade feudal. Ao retratar uma jovem serviçal de onze anos como modelo de vida de

mulher, ele a concebe exatamente como requeriam os padrões morais de uma coletividade

de voz eminentemente masculina. A figura de Deus surge, então, como instância decisória,

que concede aos dois na Terra a felicidade de uma vida venturosa, onde o guerreiro e a

dama se completam sobre Sua proteção, configurando uma representação ideal de papéis e

classes sociais.

Por outro lado, o vate oriundo provavelmente do Tirol, insere-se em seu percurso

literário dentro das variações temáticas preferentes nas cortes dos Babenberger e dos outros

membros da alta nobreza, ora cantando o amor às frouwe e herrînnen em versos

influenciados por Reinmar von Hagenau, a posteriori colocando o sentimento de minne –

amor cortes – dentro do próprio liep – amor carnal e, por fim, como um filósofo, a analisar

o mundo que o circundava, suas alegrias, mazelas e estado d’alma.

Der arme Heinrich e os poemas sentenciosos – Spruchgedichte – fazem parte de um

universo cultural, cujo processo de decodificação serve como um dos escopos principais da

Kulturwissenschaft. Imerso em uma dada conjuntura espaço-temporal, o conceito

“realidade” permite diversas formas de entendimento como background para a formulação

de teorias epistemológicas, as quais, no caso dos discursos historiográfico e literário, se

fazem presentes nas obras acima citadas. Para tanto convém algumas palavras sobre

cultura.

Etimologicamente, cultura deriva-se do verbo latino colere, cuja acepção primordial

seria “cultivar”. Portanto, o cultivo de determinada área associa-se metaforicamente ao

cuidado com algum campo do saber, que durante gerações frutifica, na medida em que os

séculos lhe atribuem insumos de variados tipos, configurando-lhe posteriormente um novo

plano de existência, refletor de um determinado período e inserido dentro de uma

conjuntura social. Uma das formas de chegada a esses desdobramentos espaço-temporais é

o texto escrito. Tanto a ciência histórica quanto a Literatura, constituídas enquanto

epistéme, trabalham com textos, embora com objetivos diferentes. A uma modelar tentativa

de se “documentar” o passado e o presente de uma junta-se o labor essencialmente estético

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da outra. De forma resumida, poderíamos dizer que ambas vêem na palavra escrita uma

fonte de criação e de recriação de um dado momento. Nesse estágio, a cultura e a realidade

indissociam-se. Testemunho e documento apresentam pontos de convergência e

divergência em seus procedimentos decodificadores do “real”. O que talvez possa uni-los é

a visão de uma “história cultural”, como a proposta por Chartrier (1987, p.16-17) ao definir

o objeto de estudo desta ciência: identificar o modo como em diferentes lugares e

momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Uma

historicização da obra literária, como afirmam Pereira & Chalhoub (1998, p.7) é pleiteada,

pois pode-se através da mesma, após sua inserção dentro do movimento social, investigar

as suas redes de interlocução social, destrinchar não a sua suposta autonomia em relação

à sociedade, mas sim a forma como constrói ou representa a sua relação com a realidade

social – algo que faz mesmo ao negar fazê-lo. Tal texto serve de pretexto e como possível

patamar para contextualizar microhistoricamente um certo dado cultural. Ao definir as

relações entre cultura e texto literário, Doris Bachmann-Medick (1996, p.10) afirma que

Entender cultura como texto significa delimitar um campo

comum, que somente pode ser trabalhado através de questionamentos transdisciplinares: a cultura é um campo, que – de forma semelhante a um texto – possibilita diversas formas de leitura. A própria atenção direciona-se à condensação de significados interpretativos das formas de representação cultural como, do mesmo modo, às estratégias retóricas na representação das culturas.

O trabalho inter e transdisciplinar entre os discursos histórico e literário, ao se

entrecruzarem, oferecem um campo de visão mais amplo, embora não único, de um

determinado ”sujeito cultural”, coletivo ou não, consciente ou não de seu papel como

agente transmissor de informações sobre sua geração. Destarte, a ficcionalização da

História não é o nosso objetivo, mas sim a ficção literária historicamente tratada como

produto cultural.

IV. O CASO HARTMANN VON AUE – EXEMPLOS EM DER ARME HEINRICH Como afirmado, os romances de cavalaria em médio-alto-alemão, a partir da segunda

metade do século XII até o terceiro quarto da centúria posterior, são portadores de um estilo

de pensar e de viver condizentes com a influência de motivos provençais, no que tange à

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lírica de amor – Minnesang - e do Norte da França, cujos tópicos centrais tratam da

representação da nobreza em aventuras. Nesse corte cronológico e temático insere-se a obra

de Hartmann von Aue, Der arme Heinrich, que reúne em nosso ver os dois pilares básicos

do edifício medieval, quais sejam, as honras na terra granjeadas pelos guerreiros e a benção

divina, que reconduz o homem desviado da Verdade ao seio da sociedade cristã. Tal obra,

cremos, é plenamente significativa no tocante ao fazer estético nas cortes do Sacro Império

Romano-Germânico através da análise interacional entre os dois tipos de discursos que

pautam a visão geral sobre a época estudada: o texto literário e as fontes historiográficas.

O material lexical constante no texto do século XII é, em nosso entender, portador dos

valores culturais da sociedade medieval em terras germânicas. Uma abordagem culturalista,

segundo uma visão de Chartier (1989) e Hunt (2001), permite a tomada da obra de

Hartmann como fonte de conhecimento e pesquisa sobre a ambiência senhorial das cortes e

a representação “ideal” de uma sociedade, cujo estamento intelectual, em mãos da Igreja,

tencionava pautar a vida social consoante sua interpretação das Sagradas Escrituras, onde o

caminho para a salvação humana se encontra nas mãos da onipotência e magnanimidade

divinas. O saber humano reduz-se diante da sabedoria de Deus. Unem-se o cavaleiro

arrependido e a donzela piedosa através da misericórdia divina. Por isso, alcançou-se a

evidência da interrelação entre aquilo que a História, de forma microhistórica, fornece ao

estudioso sobre o modus cogitandi de fundamentação eclesiástica no baixo medievo e como

a Literatura se serve da matéria social para referendar este modelo.

A descrição da vida de Heinrich, com seus hábitos e costumes caval(h)eirescos,

afasta-se gradualmente das atitudes idealizadas de um membro da ordo equestris, cuja

idealização, em um plano literário, deveria retratar a concepção de mundo da nobreza

feudal e os valores imbuídos em sua visão social.

Aos conceitos fundamentais do código dos Ritter, treue (fidelidade), staete

(constância), zuht (disciplina), diu mâze (a devida medida), hôher muot (coração forte e

elevados ideais), milte (generosidade), êre (honra) e principalmente gotes hulde

(misericórdia de Deus) associa-se a minne (amor cortes), porém em Der arme Heinrich a

dama não pertence à nobreza, mas sim ao campesinato, razão pela qual de idealização

artificial – minne – passa-se ao liebe – ao amor verdadeiro, cuja quase martirização da

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personagem feminina e resolução de Heinrich em não aceitá-la poderiam ser interpretadas

como um dos pontos culminantes da obra.

O retrato inicial do protagonista coincide com a visão idealizada do miles christianus,

modelo do cavaleiro perfeito advogado pela Igreja:

Seu coração tinha abjurado toda falsidade e torpeza e também mantinha-se firme no juramento com constância2 até seu fim. Sem nenhuma reprovação eram sua honra e sua vida. A ele foi dada toda a plenitude das honras deste mundo. Ele bem as podia multiplicar Com as mãos da pura virtude. (v.49-58) (...) Ele era o refúgio dos necessitados3, um escudo para seus parentes, uma balança equilibrada da benevolência: A ele era desconhecido qualquer excesso ou escassez4. Ele carregava o cansativo fardo da honra sobre as costas5. Ele era a ponte do conselho e cantava muito bem o canto do amor. Assim ele podia ganhar o louvor e o apreço do mundo: ele era cortesmente educado e também sábio. (v. 63-73)

Entretanto, as honras do mundo o conduziram à escolha entre dois caminhos.

Instaura-se o zwîfel, a dúvida: como got unde werlt gevallen, como agradar a Deus e ao

mundo?

Henrique, ao se afastar de Deus, ou seja, ao quebrar o primeiro dos três pilares de sustentação de sua imagem, a saber: Deus, o Rei e a Mulher (dama), não poderia mais encontrar lugar dentro dessa ordem rígida de leis e códigos comportamentais. Além disso, é acometido por uma grave doença, fator que faz com que ele viva isolado de seus antigos companheiros. (Andrade, 2001, p.5)

Neste momento, o então orgulhoso cavaleiro transforma-se no pobre homem

acometido pela lepra. A entrega aos prazeres terrenos incorre no castigo divino, pois

“Cavaleiro que tem fé e não usa de fé e é contrário àqueles que mantêm a fé é como

entendimento de homem a quem Deus tem dado a razão e usa de desrazão e de ignorância.”

2 staete 3 milte 4 diu mâze 5 êre

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(Llull, 2000, p.23). A desrazão e a stultitia ocasionaram a ruína moral e física do cavaleiro,

abandonado pelo grupo social e que se refugia em uma pequena propriedade, entregando-se

aos cuidados do administrador e sua família. Surge a figura feminina, a filha do serviçal, de

oito anos, porém com atitudes de frouwe:6

Seu comportamento era assim corretamente bondoso. Não queria nunca de seu senhor fugir um só pé. Para o seu bem estar e saudação ela o servia sempre com o seu agradável cuidado. Ela também era tão amável, que, de tão lindo porte, pareceria como filha do imperador. (v. 303-313)

O papel destinado, em linhas gerais, à mulher no mundo medieval ocidental em terras

germanófonas é bem similar àquele presente em outras regiões do sul da Europa. Decantada

em poemas, as mulheres, as de estirpe nobre, na verdade, prestavam-se especialmente a

partir da difusão do casamento regulamentado pela Igreja à progenitura e à educação dos

futuros varões. Tal organização da vida feminina era útil para os eclesiásticos e agradava

aos nobres, que com a leitura e divulgação das histórias heróicas de cavaleiros e suas

façanhas, satisfaziam seu gosto literário pela utilização de seu modus vivendi como ideal

arquetípico a ser imitado e alcançado pelas gerações posteriores.

A menina, passados três anos, dedicava-se totalmente ao seu senhor, dele não se

afastando, como conviria ao ideal feudo-vassálico:

Por seu lado ela corria toda a hora em sua direção e nunca para outro lugar. Ela estava sempre a postos. Ela dirigira seu coração com bondade puramente infantil para seu senhor, de forma que sempre era encontrada aos pés do senhor. Com doce aplicação atendia ao seu senhor. (v. 317-326)

Todavia, a personagem feminina, de ascendência camponesa, através da consciência

de seu lugar dentro da sociedade medieval e de seu ato de quase martírio, transforma-se em

um plano simbólico na dama nobre. Seu enobrecimento deriva de sua resignação moral e

6 termo em médio-alto-alemão que significa “dama”.

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do reconhecimento de seu papel numa sociedade senhorial masculina. Sua beleza física é

justificada pela sua perfeição de caráter.

O modelo para o comportamento feminino associava-se à figura de Maria. Se a mãe

de Deus sacrificaria sua vida pelo Filho, corresponderia à camponesa dar a vida pelo seu

senhor. Ao saber, que Henrique, após uma visita aos médicos de Salerno, fora informado

que apenas o sacrifício de uma donzela poderia devolver-lhe a saúde perdida, a jovem sem

nome resolve que “vivesse ela o dia seguinte, ela explicitamente sua vida gostaria de

entregar pelo seu senhor”. (v. 523-525) Além do mais, como uma intelectual medieval,

procura convencer os pais ao apelar para razões práticas e econômicas:

Vós tendes fama e posses: ou seja, a afeição de meu senhor, pois ele nunca vos magoou e também nunca vos reduziu os bens. A vontade dele dever viver é para o vosso interesse. Mas deixemo-lo morrer e nós nos arruinaremos. Isso eu quero poupar a nós com bela sabedoria, para que nós todos estejamos curados. (v. 614-624)

Nos versos 690 a 735 lemos uma verdadeira profissão de fé a favor da fuga do mundo

e das implicações nefastas em nele viver, como se escrito por Bernardo de Clairvaux ou

outro prócere da cultura eclesiástica. Consoante o modelo para ela delineado, a jovem

prefere seguir a eternidade, pois “Nossa vida e nossa juventude / são um nevoeiro e uma

nuvem de pó; / nossa solidez treme como uma folha. / É um infeliz insensato / aquele que

recolhe fumaça, / seja mulher ou homem, / aquele que não pode bem refletir sobre isso / e

segue o mundo.” (v.728-735) Nessas palavras em voz feminina e construído por um

homem percebem-se claramente as concepções de um discurso de gênero.

Henrique e a jovem partem então para Salerno, a fim de procederem à operação. Em

uma conversa preliminar com a donzela, (v. 1084-1111), o cirurgião lhe diz que retiraria

seu coração para ser transplantado no corpo do cavaleiro. Apesar da absoluta segurança na

resposta afirmativa da moça em cumprir sua decisão, o pobre Henrique, ao ouvir as sérias

advertências do médico e observar a jovem de 11 anos, despida, reflete consigo próprio:

“Tu tens um pensamento tolo, de que tu sem o consentimento deste desejas viver um único dia, contra o que todos são impotentes. Tu também não sabes bem, o que tu fazes,

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já que tu tens certamente que morrer, que tu esta vida vergonhosa, que Deus te deu, não a carregas de boa vontade e também sobre isso tu não sabes, se a morte da criança te salvará. Aquilo que Deus a ti imputou, deixe tudo acontecer. Eu não quero ver a morte da criança.” (v. 1251-1264)

Interrompido o início da cirurgia, desamarrada a donzela e pago o médico, a menina

brada aos céus como uma germana pagã: “ela bateu em seus seios, / ela se puxou e

arrancou-se, / seus brados eram tão plangentes, / que ninguém poderia vê-la / sem que não

ocorresse chorar.” (v.1298-1302) Resignado com o seu destino, Henrique parte de volta à

propriedade. O cavaleiro atuara; a donzela agira. Agora interviria Deus.

Sobre a égide da Teologia assentava-se a base ideal do edifício do medievo. A Igreja

Romana, responsável pelos clerici, cujo sinônimo corrente era litterati, procurava moldar

os padrões de vida desejados conforme sua interpretação dos textos bíblicos. A cultura das

cortes feudais, cujo florescimento podemos datar a partir do século XII, trouxe, porém

elementos novos, que serviram de ponto de partida par a formação de um novo tipo de

representação cultural, palaciana e cavaleiresca, e um novo tipo de “letrado. O próprio

autor, ao iniciar seu romance Der arme Heinrich, nos diz que “um cavaleiro era tão

instruído, / que ele nos livros lia, / tudo aquilo que ele lá encontrava escrito.” (v. 01-03) e

prossegue, incluindo seu propósito enquanto escritor:

Muito ele olhava nos mais diferentes livros, e lá começou a procurar, se encontraria algo, com o que ele pesadas horas pudesse tornar mais leves, e tratava de tais coisas, de forma que servia a honra de Deus, e com isso ele poderia tornar-se agradável aos homens. (v. 06-14)

“Servir a honra de Deus” e “tornar-se agradável aos homens”, eis aqui a junção de

objetivos da obra. Portanto, após os descaminhos que quase o levaram à morte, a

intercessão divina o reconduziria à vida plena de graças e à felicidade terrena:

então o sagrado Cristo mostrou, o quanto lhe são caras a fidelidade e a compaixão, e libertou a ambos de todo o sofrimento e o fez imediatamente

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puro e completamente saudável. (v. 1382-1387)

A fidelidade, triuwe, e a compaixão, bärmde, indicam a fusão de qualidades

comportamentais ideais para o membro da classe dos bellatores: sua vida deveria pautar-se

por códigos de respeito ao seu suserano, à dama por ele escolhida para servir e a Deus. A

recompensa por sua conversão interna foi a salvação de seu corpo e, por extensão, a da sua

alma.

Todavia, como agir com a jovem donzela, que se arriscara a morrer para lhe doar a

vida? A necessidade de decidir o seu destino junto à moça impele-o a convocar um

conselho, rât, comum ao senhor, que precisa da orientação de seus parentes e vassalos:

A vós todos senhores é bem conhecido, que eu através desta bondosa donzela tenho novamente minha saúde, donzela essa que vós aqui vedes estar ao meu lado. Agora ela está livre de nascimento, como eu sou; Então todo meu entendimento me aconselha, que eu a tome por mulher. (v. 1508-1514)

A justificação do casamento passa para o cavaleiro pela observância da linhagem.

Com sua postura madura e consciente, a jovem sem nome adquire a legitimação para poder

ser unida matrimonialmente ao seu senhor. O fato “real” serve de referendum ao enlace de

almas, o que agradaria à sociedade e ao Senhor, como reconhece Henrique: “pois eu honra

e vida / a ela sou devedor. / Pela benevolência de nosso Senhor / Quero a todos vós pedir, /

que vós concordais.” (v. 1519-1523).

A jovem serviçal enobrecera o cavaleiro desviado de sua classe, do mesmo modo que

a filha de um senhor feudal permitia a seu cavaleiro escolhido e futuro marido a ascensão

social desejada, tirando-o de um séqüito e “dotando-o” de prestígio e de terras.

A descrição da vida de Henrique, com seus hábitos e costumes caval(h)eirescos,

afasta-se gradualmente das atitudes idealizadas de um membro da ordo equestris, cuja

elaboração, em um plano literário, deveria retratar a concepção de mundo da nobreza feudal

e os valores imbuídos em sua visão social.

Aos conceitos fundamentais do código dos Ritter, a triuwe (fidelidade), a staete

(constância) e a zuht (disciplina) associa-se à minne (amor cortes), porém em Der arme

Heinrich a dama não pertence à nobreza, mas sim ao campesinato, razão pela qual de

idealização artificial – minne – passa-se ao liebe por gratidão – ao amor verdadeiro, cuja

quase martirização da personagem feminina e resolução de Henrique em não aceitá-la

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poderiam ser interpretadas como um dos pontos culminantes da obra, que centra na

misericórdia divina o sustentáculo para a salvação do protagonista e para o desenlace

conciliador.

A redenção do cavaleiro salvo pelo amor, pela sua própria abnegação e por sua

conversão interior conformariam o tecido por excelência medieval de fundamentação cristã,

referendando por fim uma ordem social, na qual a nobreza feudal, ao reunir para si

atributos oriundos de um passado franco e adaptando-os à mentalidade cristã vigente no

século XII, concretizava e justificava no plano estético seu status no universo da Hohes

Mittelalter. Deste modo, o esquema do mundo caval(h)eiresco em Der arme Heinrich

apresenta, no final do poema, a simbiose entre os valores humanos e divinos, no que estes

últimos funcionam como ápice de sua vida terrena.

V. O PERCURSO LITERÁRIO DE WALTHER VON DER VOGELWEIDE – INSTRUMENTOS PARA A ANÁLISE HISTÓRICA Talvez o poeta mais consciente das manifestações do trovadorismo em solo

germanófono nos séculos XII e XIII, Walther von der Vogelweide parte do modismo das

composições em hohe minne,7

Minne ist ein gemeines wort, O amor cortês é um termo de conhecimento geral, und doch ungemeine mit den werken: dêst also. porém poucos conhecem sua essência: isto é cer- minne ist aller tugende ein hort: to. O amor cortês é a fonte primeira de todas as âne mine wirdet niemer herze rehte frô. virtudes; sem ele nenhum coração se alegra corre- sît ich den gelouben hân, tamente. Já que nisso creio, frouwe Minne, senhora Amor, fröit ouch mir die sinne. meu coração também se regozija. mich müet, sol mîn trôst zergân. Dói-me o malogro de minha esperança. Posteriormente, o poeta inova ao colocar o liep no mesmo patamar cortes que o

minne, onde a dama toma a palavra e passa à ação, não apenas mais frouwe e herrîn, como

também wîp, a mulher fisicamente constituída. Desloca-se o centro da ação do castelo para

o campo, em que a Natureza é cenário e palco do encontro amoroso:

Under der linden Embaixo da tília an der heide, na charneca, dâ unser zweier bette was, lá onde estava o nosso leito, dâ mugt ir vinden lá podeis encontrar schône beide duas belas coisas, gebrochen bluomen unde gras. flores colhidas e grama. vor dem walde in einem tal, Diante da floresta, em um vale,

7 A tradução dos poemas de Walther para o português é nossa.

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tandaradei, tandaradei, schône sanc diu nahtegal. belamente cantava o rouxinol. Ich kam gegangen Eu fui zuo der ouwe: ao prado: dô wart mîn friedel komen ê. lá já chegara antes meu amigo. dâ wart ich enpfangen, Então fui recebida, hêre frouwe, “Formosa dama”, daz ich bin saelic iemer mê. o que me deixa cada vez mais feliz. Kuster mich? Wol tûsentstunt: Ele me beijou? Umas mil horas: tandaradei, tandaradei, seht wie rôt mir ist der munt. vede como está vermelha minha boca. Dô het er gemachet Lá ele fez also rîche um rico von bluomen eine bettestat. leito de flores. des wirt noch gelachet Ri-se disso inneclîche, no íntimo, kumt iemen an daz selbe pfat. quando alguém passa por aquele atalho. bî den rôsen er wol mac, Ele bem pode pelas rosas, tandaradei, tandaradei, merken wâ mirz houbet lac. perceber onde jazia minha cabeça. Daz er bî mir laege, Ele estar deitado ao meu lado, wessez iemen se alguém soubesse, (nu enwelle got!), so schamt ich mich. (Não queira Deus!), eu me envergonharia. was er mit mir pflaege, O que ele fez comigo, niemer niemen nunca ninguém bevinde daz, wan er unt ich, descubra isso, só ele e eu, und ein kleines vogelîn: e um pequeno passarinho: tandaradei, tandaradei, daz mac vol getriuwe sîn. que ele possa ser fiel. Entretanto, devido às mudanças políticas em Viena, com a ascensão de Leopoldo VI,

à segurança do trabalho na corte seguem-se tempos atribulados para o poeta e para o Sacro

Império Romano Germânico. O Heiliges Römisches Reich Deutscher Nation fora instituído

pelo papa João XII com a sagração de Otto I em 02 de fevereiro de 962. A partir desta data,

a casa imperial saxônica da dinastia otoniana coloca em prática a idéia de Carlos Magno em

formar um estado universal, com o beneplácito e proteção da Igreja. Deste modo,

fundamenta-se uma práxis político-religiosa, que acompanhará os fatos decisivos na

história do Império.

À época de Walther, a casa dos Staufen conduzia a política imperial, primeiramente

nas mãos de Frederico Barba-Ruiva (de 1152 a 1190) e posteriormente Henrique VI (de

1190 a 1197). Ao seu redor agrupavam-se nobres denominados gibelinos, nome

proveniente de Waiblingen, castelo e grito de guerra dos Hohenstaufen. As pretensões

territoriais de Barba-Ruiva levaram-no até à Itália e conseqüentemente a um choque com a

esfera política do papado. Os aliados da Santa Sé defendem do mesmo modo os seus

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interesses locais, pois são partidários da família dos Welfen, “guelfos”, cujo principal líder

era Henrique, o Leão. Por ter se negado a apoiar o imperador Frederico I em sua campanha

italiana, foram-lhe confiscados todos os seus feudos à exceção de terras na região de

Brunswick.i Quando do falecimento de Henrique VI em 1197, o Império tornou-se palco da

disputa entre as duas facções, com a sua cisão definitiva ocorrendo na eleição do novo

imperador. Como pano de fundo europeu aparecem ainda os Dictatus papae, de papa

Gregório VII, com seu objetivo de converter toda a cristandade ocidental em simulacro do

reino de Deus sob sua direção, ao mesmo tempo em que as cidades italianas sob jurisdição

imperial lutavam por sua soberania. Erwin Theodor (199, p.132) assim esquematiza um

quadro das tensões existentes então:

Nesta situação é fácil entender por que, após a morte de Henrique

VI, cindiram-se os nobres alemães e enquanto alguns, leais aos gibelinos, procuraram o Duque Filipe da Suábia, o mais novo entre os filhos de Frederico I, oferecendo-lhe a Coroa, preferiram outros o líder guelfo, Duque Otto, segundo filho de Henrique, o Leão.

Neste momento, o Minnesänger coloca-se ao lado do gibelino, pois nele vê o

continuador da política imperial dos Hohenstaufen, que contrabalançava a influência papal.

Es gienc eines Tages als unser herre wart geborn Um dia, quando Nosso Senhor veio à esta terra, von einer maget die er im zemûter hat erkorn de uma virgem, que Ele escolhera como mãe, ze magdebvrg der kûnig phillipes schone a Magdeburg foi o belo rei Felipe, da gieng eins keisers brûder vnd eins keisers kint andou o irmão e filho de um imperador in einer wat swie doch die namen drige sint com um traje, embora haja três nomes er trûc des riches zepter vnd die krone ele levou o cetro e a coroa. er trat vil lise im was niht gach Ele caminhou bem lentamente im sleich ein hoh geborne kûniginne nach e sua rainha de alta linhagem atrás vinha: rose ane dorn ein tvbe svnder gallen ó rosa sem espinhos, ó pomba de especial bílis dû zuht was niener anderswa com boas maneiras e cortesia. die dûringe vnd die sahsen dienten also da Os turíngios e os saxões lhe serviram como nunca, das es den wisen mûste wol gevallen de modo a agradar a todos os sábios. O apoio a Felipe e consorte demonstra o pensamento político do bardo nesta primeira

fase de suas poesias sentenciosas. À descrição do casal imperial, com sua indumentária e

passos distintos somam-se elementos que o definem como escolhido por Cristo,

justificando a mão divina na escolha de Felipe. Aos nobres da Turíngia e da Saxônia coube

o respeito e o serviço, Dienst, como deveria suceder a todo sábio membro da nobreza.

O projeto de Barba-Ruiva da criação de um dominum mundi fora, contudo, quase que

totalmente impedida devido à enérgica ação do papa Inocêncio III, que habilmente se

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tornou tutor do jovem Frederico II, filho de Henrique VI e confirmou Otto como imperador

em 1201. O futuro Otto IV, segundo Erwin Theodor (1997, p.132),

havia renunciado perante o papa aos direitos desfrutados pelos reis alemães desde a Concordata de Worms (1122), reconhecendo mesmo a ampliação arbitrária do Estado Papal, praticada por Inocêncio III. A Igreja Imperial, instituída por Otto, o Grande, deixava de ter existência.

Neste ínterim, desiludido com o comportamento de Felipe, que não lhe havia

granjeado nenhum lucro até aquele momento e percebendo que poderosos príncipes

imperiais apoiaram a causa do Staufer, Walther adverte ao monarca sobre os perigos de

uma administração incorreta, juntando sua percepção da realidade da corte com seus

próprios anseios.

Philippes kûnig die nahe spehenden zihent dich Ó rei Felipe, com muita freqüência ouço de emis- dvn sist niht dankes milte des bedunket mich sários/ que tu não gostar de doar – mas isso se - wie dv da mitte verliesest michels mere ria pouco inteligente/assim muito mais tu perde- du möhtest gerner dankes geben tvsent pfvnt rás/e se tu desses trinta mil schillings mesmo por danne drissec tvsent ane danc dir ist niht kvnt ingratidão/a ti seriam dados com prazer muitos wie man mit gabe erwirbet pris vnd ere milhares mais/ aprenda, pois, a ganhar com ricas dádivas. O momento do fim aparente das hostilidades entre guelfos e gibelinos com a volta à

unidade e soberania do Império é aguardada por Walther. Este tópico, como assevera Celso

Thompson (1995:35) caracteriza uma fortíssima preocupação política do poeta que defende

a luta pelo predomínio do poder imperial, Kaisertum, frente ao papado, Papstum, estimulando a fusão dos conceitos de Reich, Povo e Nação. Isto num universo carente de fronteiras naturais sólidas e oscilando entre uma herança de dispersão e individualismo das antiga tribos germânicas e em contraponto a afirmação de um Império Universal, por mais que a materialização desta última hipótese esbarrasse em obstáculos vários, que limitavam o alcance da idéia imperial aos habitantes da Alemanha, Itália e Borgonha.

Com a subida ao trono de Otto IV, o poeta readquire esperança de melhoria de vida

no plano pessoal e do mesmo modo reacende nele o ideal político do Imperium. Desta

forma, o poeta saúda o soberano no Concílio de Frankfurt em 1212:

Herre keiser ir sit willekomen Senhor imperador, sejais muito bem vindo, des kûniges nam ist û benomen o rei já foi tirado de vós des schinet ûwer krone ob allen kronen e vossa coroa reluz sobre todas as outras. üwer hant ist kreftic gûtes vol Vós tendes a mão repleta de poder e ouro, ir wellent ûbel oder wol que, se quiserdes o bem ou o mal, so mvget ir beidû rehten vnde losen podeis facilmente castigar e ricamente recompensar. dar zû sage ich iv mere Agora, pois, dir-vos-ei a nova: die fûrsten sint iv vndertan os príncipes são vossos vassalos

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vnd habent mit zûhten ûwer kvnft erbeitet e vos esperam respeitosamente. vnd ie der missenere Especialmente o Meissner, der ist iemer ivwer ane wan que sempre foi vosso, com certeza: von gotte wurde ein engel e verleitet antes um anjo enganaria a Deus. Walther recepciona o imperador como arauto-poeta, enumerando seu poder como

senhor absoluto. Não obstante o elogio, informa a Otto IV sobre a posição dúbia de

diversos nobres, dentre eles o margrave Dietrich von Meissen, que durante a ausência do

imperador, teria arquitetado uma revolta. O poeta torna-se arauto, atento às notícias e

protegendo seu senhor. Convergem aqui o texto e a informação de cunho histórico, ambos

microcosmos do início do século XIII.

Todavia, a política do novo imperador ia de encontro às ambições do papado. Já entre

1209 e 1211, Otto IV rompera sua aliança com o papa, com o intuito de estender seu poder

e influência sobre as áreas de domínio papal e, pouco tempo depois, investe também contra

o reino da Sicília. Tais atitudes provocam a reação imediata de Inocêncio III, que o

excomunga. Agora soa a voz de Walther em defesa do imperador e contra o novo inimigo a

tentar desestabilizar a governabilidade do Reich Criticam-se as posturas “monetárias” e as

ambições cesaropapistas e teocráticas da Cúria:

Sagent an her stoc hat ûch der babest har gesendet das er in richet vnd vns tûtschen ermet vnde swendet

swenne im dû volle masse kvmt ze latran so tût er einen argen lift als er e hat getan

er seit vns danne wie das riche ste verwarren vnz in erfûllent aber alle pfarren

ich wenne des silbers wening kvmet zehelfe in gottes lant grossen hort zerteilet selten pfaffen hant

her stoc ir sit vf schaden har gesant das ir vs tûtschen lûten sûchent törinnen vnde narren

Diga, senhor cepo,ii o papa vos mandou aqui para que vós o torneis rico, a nós, alemães, pobres e penhorados. Quando toda essa quantia afluir para Latrão, ele fará uma malandragem como já fez antes. Ele diz, por causa da miséria dos ricos devemos encher todas as caixas das paróquias. Eu temo, que deste ouro pouco irá para a terra de Deus, pois um padre não dá dinheiro de sua mão. Senhor cepo, enviado em nosso detrimento, de modo que os tolos e insensatos alemães aplaquem vossa cobiça. A voz de Walther associa-se às canções dos goliardos e juntas quase que documentam

a gestão eclesiástica dos rendimentos provenientes das esmolas e doações. Visualiza-se

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nesta poesia sentenciosa o sentimento do poeta ao se intitular um tûtschen, “homem do

povo”, habitante da futura Deutschland.

Porém o domingo de Bouvines (27 de julho de 1214) colocaria um termo às

pretensões de Otto IV. Derrotado no campo de batalha, perde a autoridade moral e política

para gerir o Império e seu irmão, o conde Henrique, dá a Frederico II as insígnias imperiais.

Walther conhece o quinto mandatário do Império. Erwin Theodor (1997, p.139) assim

caracteriza o novo imperador:

Todo o seu posicionamento intelectual, sua tolerância religiosa, seu ceticismo perante tradições superadas, seu reconhecimento do primado da razão, sua capacidade de entender a propaganda como meio de realizar políticas eficientes, transformaram-no na memória dos povos num soberano quase moderno.

Último Kaiser a tentar e efetivamente integrar parte da Itália ao Império, Frederico II, além de ser um bom conhecedor de latim, grego e árabe, era hábil político. Na esfera particular, as relações entre o jovem Frederico II e o poeta não foram benéficas para este último, razão que o conduziu a oferecer seus serviços a outros nobres até o ano de 1220, quando finalmente foi recompensado pelos seus préstimos. O que se segue é o desabafo do poeta em estado de júbilo: Ich han min lehen al die werlt ich han min leen Ó mundo, eu tenho meu feudo, eu tenho nv enfûhrte ich niht den hornvng an die zehen meu feudo/Nunca mais temerei o frio em meus vnd wil alle bôse heren dester minre vlehen dedos dos pés/muito menos ter que implorar al- der edel kûnic der milte kûnic hat mich beraten go aos maus senhores/O nobre e bondoso rei das ich den svmer luft vnd in dem winter hitze han deu a mim sustento/de forma que eu posso ter minen nahgeburen dvnke ich verre bas getan a brisa no verão e o calor no inverno/os vizinhos si sehent mich niht mer an in bvtzen wis als si wilent taten me olham com outros olhos/e não observam ich bin ze lange arn gewesen ane minen danc mais em mim como sempre um rosto ame- ich was so volle scheltens das min aten stanc drontado/Por muito tempo fui pobre, sem um a- das hat der kûnic gemachet reine vnd dar zû minen sanc gradecimento/e estava cheio de ira, de tal forma que respiração fedia/ O rei a purificou e por isso meu canto.

Pensamos ver as Spruchdichtungen – poemas sentenciosos – como textos ao mesmo

tempo testemunhais e documentais. Por um lado, direcionando seus versos à obtenção de

seu bem estar, utilizando para isso de sua habilidade enquanto Minnesänger, Walther von

der Vogelweide analisa o mundo que o cerca conforme a sua ideologia própria, na qual

reconhece a dinastia dos Hohenstaufen com suas pretensões expansionistas e em luta direta

contra o papado. Ele é um sujeito consciente de seu tempo, coaduna-se com a política de

seus soberanos e usa a poesia como instrumento de propaganda imperial, ao mesmo tempo

em que luta pelos seus interesses. A valorização da palavra cantada e declamada prende-se

a sua percepção de que aquela é um dos melhores canais para a divulgação de idéias e co-

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formação de opiniões. Em seus versos, portanto, tem-se um quadro bastante nítido das

tensões inerentes à época em que vivia. Ele viveu e utilizou seus textos como forma de

participação social.

VI. PALAVRAS FINAIS

Poesia histórica e/ou realidade literária? A Literatura não é, nem deve ser um espelho

da realidade histórica. Do mesmo modo, o documento histórico significa um modelo de

percepção e entendimento de uma dada realidade. Ambos os caminhos podem ser

englobados lato sensu naquilo que entendemos como cultura, i.e., o complexo dos padrões

de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais e materiais

transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade. (Ferreira, 1995, p.508) Os

Lieder de Walther von der Vogelweide, e em especial as poesias sentenciosas, assim como

a narrativa em tom salvífico de Hartmann von Aue prestam-se muito bem a essa

recomposição factual a partir de uma perspectiva histórica. Se, para a análise do

testemunho histórico, como afirmam Pereira & Chaloub (1998, p.9) deve-se sempre ter em

vista que os sujeitos vivem a história como indeterminação, como incerteza, como

necessidade cotidiana de intervir para tornar real o devir que lhes interessa, os textos dos

trovadores em questão fornecem elementos histórico-literários, que ao reduzir a escala de

observação (Sacro Império - séculos XII-XIII), proporcionam ao estudioso da Idade Média

uma visão privilegiada através da arte da palavra de suas tensões vivas. Seus papéis como

homens de letras os levavam tanto à denúncia social quanto à afirmação da ordem e

mentalidade vigentes conforme suas Welteinstellungen, i.e., suas visões de mundo. Aliando,

em suma, a palavra literária ao seu tempo, Walther e Hartmann configuram seus versos

espaço-temporalmente e demonstram através da versossimilhança a realidade de suas

épocas.

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LITERATURE AND HISTORY WHILE DISCOURSES ON THE REAL IN THE

GERMAN SPEAKING LOW MIDDLE AGES: SOME WORDS

(Álvaro Alfredo BRAGANÇA JÚNIOR – Universidade Federal do Rio de Janeiro)

The definitions of the concept „reality“ pressuposes a pluralistic view on the grade of

veracity from a discourse, that intends to describe it. If, as an object of research for the

historicians or as possible raw material for the poets too, we have a final point in the reality,

which deals with many, if not with all the questions of the mankind. Both History and

Literature present their discoursive practices aiming the (con)textualization of that, which

ist felt and lived by the human being. This paper has the goal of bringing some topics to be

reflected and identified during the decodification of the elements, which belong to the

reality of the germanspeaking Low Middle Ages and are shown in the german literature of

that time, where the historical documents and the literary texts connect their views about a

certain moment, that is at the same time historical and fictional.

Keywords

Low Middle Ages

Medieval german literature

Medieval history

Medievistic

Discourse(s)

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