literatura - cartas a um jovem poeta

4
Domingo 08/07/2012 DO PAPEL PARA OS TELEFONEMAS Foram sete anos, dez cartas e um diálogo estabe- lecido. Esta é a conta de Sidney Wanderley, para quem a correspondência evidencia “um diálogo real, não era delirante”. Questio- nado sobre a influência do contato com Drummond na sua formação como poeta, o viçosense afirma que a aproximação foi “determi- nante para que saísse dos poemas panfletários”. Isso porque Sidney, tal- vez influenciado pela pró- pria experiência de Drum- mond (que passou breve- mente pelo Partido Comu- nista), resolveu se politizar e, em 1981, ingressou no PCdoB. “Nessa época, fiz um livro pavoroso que eu ‘sacudi’ no rio Paraíba, atrás da casa que comprei em Viçosa – até hoje tem schistosoma comendo aque- la literatura de péssima qualidade”, graceja. A correspondência pros- segue até fevereiro de 1981, quando Drummond envia a Sidney A Paixão Medida, então seu mais no- vo livro de poemas. “Eu es- tava no auge da militância, então escrevi um artigo (A Paixão mais que Medida) panfletário e duríssimo com o livro, e mandei para ele. Eu era muito dogmáti- co e marxista – e falava isso para um cara que já havia passado por todas as desi- lusões políticas”, observa. “Era um atrevimento meu e Drummond se feriu com isso”, resigna-se Sid- ney, que continua: “Ele me presenteou com um livro e levou um cacete em troca. Isso é muito um jeito meu, que não faço muito conta da política das relações”, reconhece o viçosense cuja empáfia juvenil pôs, ainda que temporariamen- te, um fim na comunicação com o mineiro. “Eu sabia que tinha feito merda”, reconhece Sidney Wanderley, a quem Drum- mond volta a escrever so- mente em 1984, após rece- ber uma carta, digamos, mais emotiva, na qual o vi- çosense compartilha com o poeta mineiro a notícia do falecimento de seu irmão, Sandro. “Nesse ano, mor- reu meu irmão de um AVC. Ele fazia mestrado em Ma- temática no Recife. Aí eu voltei a ler Drummond e escrevi para ele”, conta. PELO TELEFONE Feitas as pazes, tem iní- cio uma nova fase, a dos te- lefonemas. “Uma vez por semestre, fazemos uma li- gação e fico ventilando a ideia de uma viagem para o Rio. Em 1985, passei uma semana lá, fiquei num ho- tel vagabundo ali na Gló- ria, e não tive coragem de dizer a Drummond que estava na cidade”, rememo- ra Sidney. A correspondência entre os dois se estende até 1987, ano da morte de Drummond, e coincide com um período no qual Sidney programara uma nova ida ao Rio de Janeiro. Já como funcionário do Banco do Brasil, o viçosen- se passou suas férias, no mês de agosto, viajando por diferentes cidades do sul do país. A ideia era fa- zer uma parada na capital fluminense antes de voltar a Maceió, e quem sabe co- nhecer pessoalmente o in- terlocutor epistolar. “Cerca de uns dois ou três meses antes de viajar eu tinha falado com Drum- mond, mas já sabia que a coisa não estava boa. A fi- lha dele, que foi o grande amor de sua vida, estava com um câncer terrível. E Drummond andava muito para baixo. No meio da via- gem, eu estava em Porto Alegre, passei por Foz de Iguaçu, e li que morria a fi- lha de Drummond. Na mes- ma hora eu pensei: ‘Morreu Drummond’”, diz Sidney. De fato, a passagem de Drummond não tardou. Dono de um coração fraco e doente, os registros médi- cos apontam que o poeta teria parado de tomar os remédios que controlavam a doença cardíaca. Doze di- as após a morte da filha, não resistira e partira tam- bém. “Foi um choque”, re- corda Sidney Wanderley, que decreta: “De Drum- mond para cá o mun- do está cada vez mais difícil da gen- te ler”. CC Continua nas págs. B2, B5 e B10 JOVEM POETA CARTAS A UM MARCEL GATHEUROT/REPRODUÇÃO Drummond era conhecido pela disposição em responder por carta a quem quer que fosse: dos amigos escritores aos desconhecidos CARLA CASTELLOTTI REPÓRTER Rio de Janeiro, 14 de abril de 1980. Eis o local e a data da primeira carta que Sidney Wanderley recebeu de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Aos 21 anos, o jovem nascido em Viçosa, a 85 quilômetros de Maceió, traba- lhava como professor de Biolo- gia no Colégio Marista – e não imaginava o que havia no en- velope trazido pelo carteiro. No remetente, o endereço que jamais esqueceria: Conse- lheiro Lafayette, 60, aparta- mento 701. Foi assim, sem avi- so e por iniciativa do próprio Drummond, que teve início a correspondência entre um então iniciante poeta e seu ídolo maior. A ‘descoberta’ do autor, con- tudo, havia se dado muito an- tes, em 1973, quando Sidney cursava o 1º ano científico e cruzou com o célebre poema Mãos Dadas numa prova de Li- teratura. “Eu caminhava a lar- gos passos para inteirar os meus 15 anos. Adorei nesse poema os versos ‘não nos afas- temos/ não nos afastemos muito’, a revelar companhei- rismo e solidariedade, mas sem abrir mão da individuali- dade e da diferença”, recorda ele ao falar dos versos conti- dos no livro Sentimento do Mundo, de 1940. A partir daí, tornaria-se um “leitor manía- co” da obra do poeta mineiro. “Li Drummond de forma re- corrente em minha adolescên- cia, ao lado de Fernando Pes- soa e João Cabral de Melo Ne- to. Uma paixão dos diabos”, conta Sidney Wanderley, ao anotar outro momento fla- grante de identificação: “Me deparei com dois outros ver- sos, estes do poema Explica- ção, do livro Alguma Poesia: ‘No elevador penso na roça,/ na roça penso no elevador’. Is- so era eu: em Viçosa penso em Maceió, em Maceió penso em Viçosa, em mim mesmo penso em algum outro, etc”. Terminado o colégio e cur- sando o primeiro ano de Medi- cina, o autor do recém-lança- do Dias de Sim, então com 17 anos, era um estudante ente- diado – “Fazia o curso sem vo- cação alguma”. Foi nessa épo- ca e sob nítida influência da poesia de Drummond que co- meteu seus “primeiros desati- nos poéticos”. Nesse tempo, ele conta, tudo era um bom motivo para, diante da máqui- na de escrever, registrar o que desse na telha. O ímpeto de escrever era ta- manho que, numa sentada só, Sidney redigiu Poesia, Canção Suicida, artigo no qual analisa- va a ideia do suicídio nos pri- meiros dez títulos da obra poé- tica de Drummond, que com- punham o volume Reunião. Dedicado ao amigo Paulo (“que numa noite de março de 1980 abreviou sua vida e ante- cipou seu repouso com um discreto balaço no ouvido es- querdo”), o material, conta o viçosense, foi inscrito num concurso da Academia Alagoa- na de Letras (AAL) que aca- bou por premiar textos sobre a produção de Graciliano Ra- mos e Raul Pompéia, além do próprio Drummond. ACASO E se não está claro o que essa histó- ria tem a ver com as cartas envi- adas a Sidney por Drummond, vale no- tar que a correspon- dência estabelecida en- tre o alagoano e o minei- ro só foi iniciada após Poe- sia, Canção Suicida chegar às mãos do autor de A Rosa do Povo. Na era pré-internet, po- rém, o caminho percorrido pe- lo artigo foi (bem) mais longo, e contou com a ajuda do acaso. Era 1980 quando Sidney Wanderley, recém-casado e já desistente do curso de Medici- na, recebia em sua casa o es- critor e sociólogo alagoano Fernando Batinga, amigo pró- ximo de Drummond que de- pois de anos exilado na França estava de volta ao Brasil. “O Fernando disse que queria ver meus poemas. E aí passei para ele uns poemas e uns contos – nessa época eu era metido a contista também – e, no meio desse material, foi junto o en- saio sobre o Drummond, que nem lembrava de ter coloca- do”, conta ele. “Seguramente, o Fernando não gostou dos poemas nem dos contos. Mas nessa brinca- deira, o cara disse: ‘Gostei muito do ensaio sobre o Drummond. Posso levar para ele?’. Ao que eu respondi: ‘Cla- ro!’”, lembra Sidney, ao afir- mar não ter nutrido expectati- vas em relação a uma resposta do poeta-maior. Passados três meses da con- versa, o carteiro entregava a Sidney a primeira de uma sé- rie de cartas enviadas pelo ita- birano. “Nesse dia, eu estava no Marista quando abri a cor- respondência e vi uma carta de Drummond falando que minha análise [sobre o suicí- dio em sua obra] estava corre- tíssima. Meu pseudônimo [no artigo] era Viçosense Inculto, e ele me mandou uma carta escrita ao ‘Viçosense (in)culto e perspicaz’”, rememora Sid- ney, com orgulho. Conhecido pela disposição de responder a todos, dos ami- gos aos desconhecidos, Drum- mond estabeleceu uma corres- pondência de fôlego com mui- tos interlocutores. Para se ter uma ideia, somente na Funda- ção Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, há o registro de 1.812 correspondentes do autor de Sentimento do Mun- do . Neste domingo em que chega ao fim a 10ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que homena- geia Drummond, a Gazeta apresenta aos leitores as men- sagens trocadas entre ele e Sidney Wanderley. MEMÓRIA. Sidney Wanderley envia e-mails para deus e o mundo. Cartas, porém, para mais ninguém. Bancário aposentado e ex-professor de Biologia, durante sete anos o revisor que renega a função e prefere ser chamado ‘apenas’ de poeta se correspondeu com Carlos Drummond de Andrade. Com exclusividade, a Gazeta teve acesso às cartas trocadas por Sidney com o poeta-maior, que tomou a iniciativa de escrever ao jovem viçosense após ler um artigo no qual ele analisava o suicídio em sua obra. Num momento em que todas as atenções estão voltadas para o autor de Sentimento do Mundo – Drummond é o homenageado do maior evento literário do país, a Flip, que termina hoje –, nada melhor do que revisitá-lo. É o que os leitores poderão fazer nesta edição

Upload: carla-castellotti

Post on 06-Mar-2016

246 views

Category:

Documents


14 download

DESCRIPTION

Por sete anos, o poeta Sidney Wanderley manteve uma correspondência com Carlos Drummond de Andrade. Aqui, você confere as cartas e a relação epistolar que o mineiro manteve com o jovem poeta

TRANSCRIPT

Page 1: Literatura - Cartas a um jovem poeta

Domingo 08/07/2012

DO PAPEL PARA OS TELEFONEMAS

Foram sete anos, dez cartas e um diálogo estabe-lecido. Esta é a conta de Sidney Wanderley, para quem a correspondência evidencia “um diálogo real, não era delirante”. Questio-nado sobre a influência do contato com Drummond na sua formação como poeta, o viçosense afirma que a aproximação foi “determi-nante para que saísse dos poemas panfletários”.

Isso porque Sidney, tal-vez influenciado pela pró-pria experiência de Drum-mond (que passou breve-mente pelo Partido Comu-nista), resolveu se politizar e, em 1981, ingressou no PCdoB. “Nessa época, fiz um livro pavoroso que eu ‘sacudi’ no rio Paraíba, atrás da casa que comprei em Viçosa – até hoje tem schistosoma comendo aque-la literatura de péssima qualidade”, graceja.

A correspondência pros-segue até fevereiro de 1981, quando Drummond envia a Sidney A Paixão Medida, então seu mais no-vo livro de poemas. “Eu es-tava no auge da militância, então escrevi um artigo (A Paixão mais que Medida) panfletário e duríssimo com o livro, e mandei para ele. Eu era muito dogmáti-co e marxista – e falava isso para um cara que já havia passado por todas as desi-lusões políticas”, observa.

“Era um atrevimento meu e Drummond se feriu com isso”, resigna-se Sid-

ney, que continua: “Ele me presenteou com um livro e levou um cacete em troca. Isso é muito um jeito meu, que não faço muito conta da política das relações”, reconhece o viçosense cuja empáfia juvenil pôs, ainda que temporariamen-te, um fim na comunicação com o mineiro.

“Eu sabia que tinha feito merda”, reconhece Sidney Wanderley, a quem Drum-mond volta a escrever so-mente em 1984, após rece-ber uma carta, digamos, mais emotiva, na qual o vi-çosense compartilha com o poeta mineiro a notícia do falecimento de seu irmão, Sandro. “Nesse ano, mor-reu meu irmão de um AVC. Ele fazia mestrado em Ma-temática no Recife. Aí eu voltei a ler Drummond e escrevi para ele”, conta.

PELO TELEFONE Feitas as pazes, tem iní-

cio uma nova fase, a dos te-lefonemas. “Uma vez por semestre, fazemos uma li-gação e fico ventilando a ideia de uma viagem para o Rio. Em 1985, passei uma semana lá, fiquei num ho-tel vagabundo ali na Gló-ria, e não tive coragem de dizer a Drummond que estava na cidade”, rememo-ra Sidney.

A correspondência entre os dois se estende até 1987, ano da morte de Drummond, e coincide com um período no qual Sidney programara uma

nova ida ao Rio de Janeiro. Já como funcionário do Banco do Brasil, o viçosen-se passou suas férias, no mês de agosto, viajando por diferentes cidades do sul do país. A ideia era fa-zer uma parada na capital fluminense antes de voltar a Maceió, e quem sabe co-nhecer pessoalmente o in-terlocutor epistolar.

“Cerca de uns dois ou três meses antes de viajar eu tinha falado com Drum-mond, mas já sabia que a coisa não estava boa. A fi-lha dele, que foi o grande amor de sua vida, estava com um câncer terrível. E Drummond andava muito para baixo. No meio da via-gem, eu estava em Porto Alegre, passei por Foz de Iguaçu, e li que morria a fi-lha de Drummond. Na mes-ma hora eu pensei: ‘Morreu Drummond’”, diz Sidney.

De fato, a passagem de Drummond não tardou. Dono de um coração fraco e doente, os registros médi-cos apontam que o poeta teria parado de tomar os remédios que controlavam a doença cardíaca. Doze di-as após a morte da filha, não resistira e partira tam-bém. “Foi um choque”, re-corda Sidney Wanderley, que decreta: “De Drum-mond para cá o mun-do es tá cada vez mais difícil da gen-te ler”. CC Continua nas págs. B2, B5 e B10

JOVEM POETA CARTAS A UM

MAR

CEL

GATH

EURO

T/RE

PROD

UÇÃ

O

Drummond era conhecido pela disposição em responder por carta a quem quer que fosse: dos amigos escritores aos desconhecidos

CARLA CASTELLOTTI REPÓRTER

Rio de Janeiro, 14 de abril de 1980. Eis o local e a data da primeira carta que Sidney Wanderley recebeu de Carlos D r u m m o n d d e A n d r a d e (1902-1987). Aos 21 anos, o jovem nascido em Viçosa, a 85 quilômetros de Maceió, traba-lhava como professor de Biolo-gia no Colégio Marista – e não imaginava o que havia no en-velope trazido pelo carteiro. No remetente, o endereço que jamais esqueceria: Conse-lheiro Lafayette, 60, aparta-mento 701. Foi assim, sem avi-so e por iniciativa do próprio Drummond, que teve início a correspondência entre um então iniciante poeta e seu ídolo maior.

A ‘descoberta’ do autor, con-tudo, havia se dado muito an-tes, em 1973, quando Sidney cursava o 1º ano científico e cruzou com o célebre poema Mãos Dadas numa prova de Li-teratura. “Eu caminhava a lar-gos passos para inteirar os meus 15 anos. Adorei nesse poema os versos ‘não nos afas-temos/ não nos afastemos muito’, a revelar companhei-rismo e solidariedade, mas sem abrir mão da individuali-dade e da diferença”, recorda ele ao falar dos versos conti-dos no livro Sentimento do Mundo, de 1940. A partir daí, tornaria-se um “leitor manía-co” da obra do poeta mineiro.

“Li Drummond de forma re-corrente em minha adolescên-cia, ao lado de Fernando Pes-soa e João Cabral de Melo Ne-to. Uma paixão dos diabos”, conta Sidney Wanderley, ao anotar outro momento fla-grante de identificação: “Me deparei com dois outros ver-sos, estes do poema Explica-ção, do livro Alguma Poesia: ‘No elevador penso na roça,/ na roça penso no elevador’. Is-so era eu: em Viçosa penso em Maceió, em Maceió penso em Viçosa, em mim mesmo penso em algum outro, etc”.

Terminado o colégio e cur-sando o primeiro ano de Medi-cina, o autor do recém-lança-do Dias de Sim, então com 17 anos, era um estudante ente-diado – “Fazia o curso sem vo-cação alguma”. Foi nessa épo-ca e sob nítida influência da poesia de Drummond que co-meteu seus “primeiros desati-nos poéticos”. Nesse tempo, ele conta, tudo era um bom motivo para, diante da máqui-na de escrever, registrar o que desse na telha.

O ímpeto de escrever era ta-manho que, numa sentada só, Sidney redigiu Poesia, Canção Suicida, artigo no qual analisa-va a ideia do suicídio nos pri-meiros dez títulos da obra poé-tica de Drummond, que com-punham o volume Reunião. Dedicado ao amigo Paulo (“que numa noite de março de 1980 abreviou sua vida e ante-cipou seu repouso com um discreto balaço no ouvido es-querdo”), o material, conta o

viçosense, foi inscrito num concurso da Academia Alagoa-na de Letras (AAL) que aca-bou por premiar textos sobre a produção de Graciliano Ra-mos e Raul Pompéia, além do próprio Drummond.

ACASO E se não

está claro o que essa histó-r i a t e m a v e r com as cartas envi-adas a Sidney por Drummond, vale no-tar que a correspon-dência estabelecida en-tre o alagoano e o minei-ro só foi iniciada após Poe-sia, Canção Suicida chegar às mãos do autor de A Rosa do Povo. Na era pré-internet, po-rém, o caminho percorrido pe-lo artigo foi (bem) mais longo, e contou com a ajuda do acaso.

Era 1980 quando Sidney Wanderley, recém-casado e já desistente do curso de Medici-na, recebia em sua casa o es-critor e sociólogo alagoano Fernando Batinga, amigo pró-ximo de Drummond que de-pois de anos exilado na França estava de volta ao Brasil. “O Fernando disse que queria ver meus poemas. E aí passei para ele uns poemas e uns contos – nessa época eu era metido a contista também – e, no meio desse material, foi junto o en-saio sobre o Drummond, que nem lembrava de ter coloca-do”, conta ele.

“Seguramente, o Fernando não gostou dos poemas nem dos contos. Mas nessa brinca-deira, o cara disse: ‘Gostei mui to do ensa io sobre o Drummond. Posso levar para ele?’. Ao que eu respondi: ‘Cla-ro!’”, lembra Sidney, ao afir-mar não ter nutrido expectati-vas em relação a uma resposta do poeta-maior.

Passados três meses da con-versa, o carteiro entregava a Sidney a primeira de uma sé-rie de cartas enviadas pelo ita-birano. “Nesse dia, eu estava no Marista quando abri a cor-respondência e vi uma carta de Drummond falando que minha análise [sobre o suicí-dio em sua obra] estava corre-tíssima. Meu pseudônimo [no artigo] era Viçosense Inculto, e ele me mandou uma carta escrita ao ‘Viçosense (in)culto e perspicaz’”, rememora Sid-ney, com orgulho.

Conhecido pela disposição de responder a todos, dos ami-gos aos desconhecidos, Drum-mond estabeleceu uma corres-pondência de fôlego com mui-tos interlocutores. Para se ter uma ideia, somente na Funda-ção Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, há o registro de 1.812 correspondentes do autor de Sentimento do Mun-do. Neste domingo em que chega ao fim a 10ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que homena-geia Drummond, a Gazetaapresenta aos leitores as men-sagens trocadas entre ele e Sidney Wanderley.

MEMÓRIA. Sidney Wanderley envia e-mails para deus e o mundo. Cartas, porém, para mais ninguém. Bancário aposentado e ex-professor de Biologia, durante sete

anos o revisor que renega a função e prefere ser chamado ‘apenas’ de poeta se correspondeu com

Carlos Drummond de Andrade. Com exclusividade, a Gazeta teve acesso às cartas trocadas por Sidney com

o poeta-maior, que tomou a iniciativa de escrever ao jovem viçosense após ler um artigo no qual ele analisava

o suicídio em sua obra. Num momento em que todas as atenções estão voltadas para o autor de Sentimento do

Mundo – Drummond é o homenageado do maior evento literário do país, a Flip, que termina hoje –, nada melhor do que revisitá-lo.

É o que os leitores poderão fazer nesta edição

Page 2: Literatura - Cartas a um jovem poeta

GAZETA DE ALAGOAS, 08 de julho de 2012, Domingo 2 Caderno BB

“DESABAFOS, ANTES DE TUDO” CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Sidney Wanderley abriu o baú. Nesta edição, ele apresenta aos leitores da Gazeta as dez

cartas que Drummond lhe enviou. Na correspondência, conselhos de um poeta no fim da vida a um escritor em formação

CARLA CASTELLOTTI REPÓRTER

Autor reservado que não falava a respeito de sua vida pessoal, Carlos Drummond de Andrade costumava dizer que tudo que precisava ser dito po-dia ser encontrado em seus poemas. “Desabafos, antes de tudo”. É assim que o poeta itabirano des-creve sua obra para Sid-ney Wanderley, numa car-ta de abril de 1984.

Embora tido como um autor cioso e exigente a ponto de ser capaz de cui-dar de sua própria antolo-gia, o poeta mineiro que passou a maior parte da vida no Rio de Janeiro afirmava não se orgulhar do que escreveu. “Tudo re-sultado de um impulso in-terior, e não de um projeto deliberado de criação lite-rária”, escreveu, modesto.

Concedida ao jornalista Geneton Moraes Neto, em sua úl t ima entrevis ta Drummond reafirma suas considerações ao obser-var: “Fiz da minha poesia um sofá de analista. É esta a minha definição do meu fazer poético”.

Em um dos raros momentos

de abertura, o mineiro confessa que não possuía

um projeto literário

Considerado o maior poeta brasileiro (título que renegava), além de uma extensa produção – foram mais de 80 livros de poesi-as, contos e crônicas – Drummond deixou uma vasta correspondência. As cartas trocadas com escri-tores como os amigos Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Má-rio de Andrade são verda-deiros documentos, mas a relação epistolar que o po-eta estabeleceu com des-conhecidos também mere-ce atenção.

E m 2 9 d e m a i o d e 2010, o jornal Folha de S.Paulo trouxe uma maté-ria na qual pedia a leitores que tivessem (ou soubes-sem de quem tinha) cartas t r o cada s com Ca r l o s Drummond que as envias-sem à redação. Responde-ram ao chamado 12 pesso-as, entre elas Sidney Wan-derley, que enviou ao ma-tutino paulista uma das missivas recebidas de Drummond. Nesta edição, o leitor da Gazeta confere com exclusividade a ínte-gra dessa correspondência.

‡ 1ª CARTA

14 DE ABRIL DE 1980 “Caro Viçosense (In)culto e perspicaz: grata, muito grata surpresa, a leitura do seu trabalho, tão dis-cretamente enviado, e a revelar a existência de um amigo distante, cheio de simpatia compreensi-va para com a minha ver-

‡ 4ª CARTA

19 DE MAIO DE 1981 “Prezado Sidney: achei divertido o caso do jovem Abud, que você me conta. Sempre con-siderei o plágio uma prova de admiração, que de certo modo li-sonjeia o autor plagia-do. Mas... não convém que o rapaz conti-nue cultivando essa forma de admiração, não acha? Cordial-mente, abraça-o o Carlos Drummond.”

SIDNEY COMENTA: “Promovi um concur-so de poesia no Colé-gio Marista, onde en-sinava Biologia. Como os poemas inscritos apresentaram baixíssi-mo nível, premiei um aluno afoito que teve a cara de pau de copi-ar o poema Confissão, do livro As Impurezas do Branco, do Drum-mond. Remeti-o para o Drummond, que o de-volveu corrigido.”

‡ 3ª CARTA

08 DE FEVEREIRO DE 1981 “Poeta e amigo Sid-ney: de forma pausa-da e bem, li A Vida Assim se Passando, e apreciei o toque de individualidade visível em tantos poemas do livro. Individualidade e não individualismo. Sua poesia é comu-nicante, exprimindo embora um jeito muito pessoal de ser e de reagir diante da vida. Você se afir-ma, se define, e ao mesmo tempo dá a dimensão geral do homem, na complexi-dade do ser pensan-te e sentinte. E com-põe um verso forte, provocador, que não deixa o leitor indife-rente. São qualidades a registrar, pelo que valem e significam. Sou grato a você pelo oferecimento dos ori-ginais e pelas pala-vras amigas de sua carta. O abraço do Carlos Drummond de Andrade” /// “P.S. − Segue pelo correio A Paixão Medida − C.D.A.”

SIDNEY COMENTA: “A Vida Assim se Passan-do, dez anos depois, se converteria no meu primeiro livro, Po-emas post-húmus.”

‡ 2ª CARTA

27 DE NOVEMBRO DE 1980 “Caro Sidney Wanderley: num abraço, vai meu agra-decimento pela remessa de seus poemas, de ní-tida personalidade. Claro que terei prazer em abra-çá-lo, por ocasião de sua projetada viagem ao Rio. E, finalmente: perdoe-me não ter acusado o re-cebimento da versão de-

finitiva de seu trabalho, que muito apreciei. Este ano um herpes danado inutilizou boa parte de meu tempo, atrasando ou anulando a comunicação com os amigos. Abraço cordial e grato do Carlos Drummond de Andrade.”

SIDNEY COMENTA: “O tra-balho a que Drummond se refere é o ensaio Poesia, Canção Suicida, devidamente revisado.”

salhada, a remota e a de agora. Achei realmente in-teressante o ângulo sob o qual você considerou os meus livros. O aspecto ana-lisado, que me lembre, não fora ainda objeto de exame. Seu trabalho, pondo de lado a inclinação benévola que o inspirou, me parece correto. A propósito, e para confir-má-lo, mando-lhe xerox de

um poema que nunca apro-veitei em livro. Saiu na re-vista Verde, de Cataguases, e a dedicatória fez sofrer o meu amigo Mário de Andra-de (foi, de fato, uma ideia infeliz de minha parte). Obrigado, amigo Sidney. O abraço cordial e todo o apreço do seu grato Carlos Drummond de Andrade.”

SIDNEY COMENTA: “Em res-posta ao ensaio Poesia, Can-ção Suicida, escrito no iní-cio de 1978 e remetido dois anos depois ao mineiro pelas mãos do sociólogo e escritor Fernando Batinga – que retornara do exílio, por motivos políticos, na Fran-ça, e era amigo do Drum-mond. ‘Viçosense inculto’ foi o pseudônimo que utilizei no malfadado concurso da AAL. Acompanha o poema Convi-te ao Suicídio, dedicado a Mário de Andrade.”

Page 3: Literatura - Cartas a um jovem poeta

Domingo, 08 de julho de 2012, GAZETA DE ALAGOAS Caderno B 5 B

CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Sidney Wanderley abriu o baú. Nesta edição, ele apresenta aos leitores da Gazeta as dez cartas que Drummond lhe enviou. Na correspondência, conselhos de um poeta no fim da vida a um escritor em formação

‡ 5ª CARTA

27 DE MAIO DE 1981 “Prezado Sidney: muito bom o texto sobre poesia no con-texto de miséria e opressão. Os con-selhos aos jovens são sábios, mas, se quisermos liberdade é preciso deixar-lhes a escolha de seus próprios caminhos, sem muitos preceitos e regras, incluindo as do bem-fazer. “Recebi, sim, Com os Pés no Chão, poesia certeira e comunicati-va, mas, na vida que levo, sem secretário e sem tempo para dar conta das minhas obrigações, cadê folga para escrever, agrade-cer, comentar? Releve o silêncio, não omis-so, mas cordial, do

seu, com um abraço amigo, Drummond.”

SIDNEY COMENTA: “Esta carta se refere a um texto panfletá-rio que escrevi, intitula-do Poesia no Contexto de Miséria e Opres-são, para uma pales-tra a estudantes se-cundaristas. Na época – e isso foi de março a dezembro de 1981 –, eu era um militan-te dogmático e raivoso do PCdoB. Durou nove meses essa cachaça. Já Com os Pés no Chão era um agrupa-mento de poemas pan-fletários que o editor Ênio Silveira, da Civili-zação Brasileira, teve o bom senso de se recusar a publicá-los e a franqueza de me recomendar rasgá-los imediatamente.”

‡ 10ª CARTA

16 DE ABRIL DE 1987 “Prezado Sidney: acho que você exagera, e muito, nos termos ge-nerosos de sua carta de fevereiro, a que uma doença rebelde só agora me permi-te responder. Confes-so-lhe que não sou dos maiores admirado-res de mim mesmo, e tenho frequentemente a sensação de que os louvores a mim dirigi-dos se referem antes a uma pessoa ima-ginária. De qualquer

modo, o agradecimen-to é grande e como-vido. O abraço cor-dial e penhorado do Carlos Drummond de Andrade.”

SIDNEY COMENTA: “Após a morte do Drummond, em 17 de agosto de 1987, dois meses antes de completar 85 anos, o homem pegou a mania de não mais responder às minhas cartas. Pouco impor-ta. Carta mole em lápide dura, tanto bate até que...”

‡ 6ª CARTA

03 DE JUNHO DE 1981 “Prezado Sidney: obri-gado por A Líquida Lembrança − aproxi-mação e articulação engenhosa de elemen-tos, que minha poe-sia lhe ficou devendo. Abraço do Drummond.”

SIDNEY COMENTA: “A Líquida Lembrança é o título de um breve en-saio que escrevi em maio de 1981. Em

julho desse ano escrevi outro artigo intitulado A Paixão mais que Me-dida, sentando o pau no livro A Paixão Me-dida, que Drummond havia me presenteado em fevereiro. Ficamos quase três anos sem ‘cartinha vai, cartinha vem’. E, convém ob-servar, nas duas próxi-mas cartas Drummond suprimiu o ‘Prezado’ e me tratou apenas por ‘Sidney’. Raiva de mineiro é fogo!”

‡ 7ª CARTA

02 DE ABRIL DE 1984 “Sidney: sua carta é fruto de ultragenerosa avaliação dos versos que andei fazen-do pela vida afora e a pro-pósito dos quais costumo interrogar-me, duvidoso de que eles signifiquem mais do que um desabafo pesso-al. Obrigado! e o abraço cor-dial do Carlos Drummond de Andrade” “P.S. – O comovido agradecimento, embora

com atraso, do CDA.”

SIDNEY COMENTA: “Esse tar-dio ‘agradecimento comovi-do’ refere-se ao poema Nos Oitenta Anos do Poeta Drum-mond, com o qual, em ou-tubro de 1982, ganhei algu-mas moedas ao vencer um concurso literário em Brasí-lia. Como já explicitei, está-vamos então no período da Guerra Fria, graças àquela atrevida sova que apliquei no livro A Paixão Medida.”

‡ 8ª E 9ª CARTAS

22 DE ABRIL DE 1984 “Sidney, só hoje posso responder sua carta, submergido, como andei, no preparo de originais para a minha nova editora (a Re-cord). Não preciso dizer quanto suas pala-vras me tocaram: foi a reação natural de qual-quer pessoa sensível, nem por isso, entre-tanto, deixo de avaliar o que há de pura ge-nerosidade intelectual (e emocional) no juízo altamente honroso de minha poesia. Meus versos são o que são, como produto espontâ-neo de uma insatisfa-ção de ver as coisas como elas se apresen-tam diante de mim. Desabafos, antes de tudo. A parte artísti-ca é discutível e su-jeita a modismos – sou o primeiro a reco-nhecer, sem humilda-de falsa. Também não me orgulho do que escrevi. Tudo resulta-do de um impulso in-terior, e não de um projeto deliberado de criação literária. Nem dou importância supe-rior à literatura, como uma das artes da vida.

Para mim, ela tem sido um processo de ex-pressão de ideias e sentimentos não pro-priamente literários. Uma terapia verbal... “Obrigado por tudo de bom que há na sua carta. O abraço cordial do Carlos Drummond.”

SIDNEY COMENTA: “Estas duas últimas cartas, Drummond es-creveu-as em respos-ta a uma carta que lhe enviei logo após a morte, por AVC, do meu irmão Sandro, aos 23 anos, no Recife, onde concluía o mes-trado em Matemática.” “De 1984 a 87, uma vez a cada seis meses, mais ou menos, eu li-gava para o itabirano. Quando o homem es-tava no apê da rua Conselheiro Lafayette, conversávamos por breves minutos, e eu desfrutava daquele fio de voz rouquíssima e prestes a sumir. Quan-do o homem não esta-va em casa − andava em alguma livraria ou nos braços da aman-te Lygia Fernandes −, dona Dolores, a legíti-ma, sugeria-me ligar mais tarde ou em outro dia.”

Page 4: Literatura - Cartas a um jovem poeta

GAZETA DE ALAGOAS, 08 de julho de 2012, Domingo10 Caderno BB

CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Jornalista que coleciona reportagens lendárias, Geneton Moraes Neto conta à Gazeta como um pingue-pongue ‘telefônico’ com Carlos Drummond de Andrade acabou por se transformar em livro

LIVROS & IDEIAS ARREDORES VIDA BOA

L U I S F E R N A N D O V E R I S S I M O

TOM E KATIE

“Daqui a 200 anos ninguém mais vai saber quem eram Tom Cruise, Katie Holmes e Armani.

A Igreja da Cientologia não existirá mais”

Tom Cruise e Katie Holmes estão se separando. Me lem-brei do que escrevi quando eles se casaram, pelos rituais da Igreja da Cientologia. Armani fez não só a roupa do noivo e da noiva para o casamento como a da filhinha de meses do casal – e eu fiquei com a vaga impressão de ter feito um resumo da nossa civilização numa frase. Se me pedissem uma frase para colocar em alguma cápsula do tempo, para ser aberta daqui a 200 anos, eu submeteria o que escrevi. Daqui a 200 anos ninguém mais vai saber quem eram Tom Cruise, Katie Holmes e Armani, embora a filha deles talvez tenha alcançado alguma forma de eternização cien-tífica e ainda viva, ela também dentro de uma cápsula. A Igreja da Cientologia não existirá mais – ou será a princi-pal igreja do mundo, tendo crescido muito depois que 100 islamitas disfarçados de cardeais explodiram-se ao mesmo tempo dentro da catedral de São Pedro, arrasando o Vaticano. Mecca foi arrasada em represália, e o público

perdeu um pouco do entusiasmo pelas religiões maiores. O casamento de Tom e Katie, vestindo Armanis, se deu

numa pequena cidade à beira de um lago, perto de Roma, escolhida pela sua paisagem romântica, e foi assistido só por convidados. Tom e Katie e a filhinha não apareceram para o público e é provável que nem tenham visto a paisa-gem, já que não chegaram perto de nenhuma janela. Na nossa civilização era assim, as celebridades escolhiam cui-dadosamente e anunciavam os lugares em que não queri-am ser vistas, e não eram vistas. Em outros tempos isto se-ria considerado, no mínimo, um desperdício de Armanis. No nosso tempo as celebridades tinham se tornado uma es-pécie de abstração. Eram apenas projeções de si mesmas, o que garantia a exposição controlada sem o risco de esbar-rão ou perguntas cretinas sobre a criança, por exemplo. Mas nem mais em pequenas cidades italianas era inco-mum a noiva casar de barriguinha, ou com o filho já nasci-

do e vestido. Para que daqui a 200 anos não pensassem mal de nós lendo sobre o casamento ostensivamente fecha-do de Tom e Katie, eu incluiria na cápsula o recorte de ou-tra notícia que li mais ou menos na mesma época.

Num hotel de Las Vegas uma sucursal do Museu de Cera da Madame Tussauds tinha planejado fazer o casamento de Angelina Jolie e Brad Pitt, ou de reproduções em cera e tamanho natural dos dois, numa cerimônia que não só o público poderia ver de perto como seria assistida por convi-dados especiais como John Wayne, Elvis Presley, Liberace, Ronald Reagan e outros, além de, provavelmente, Tom Cruise e Katie Holmes, todos feitos de cera. Alguém achou que seria de mau gosto e a ideia foi abandonada. Pena. O casamento real de Angelina e Brad também foi num lugar conspicuamente à prova da nossa curiosidade, mas no fu-turo saberiam que pelo menos tentamos trazê-lo para a re-alidade. Ou coisa parecida.

minha estante

AMOR LÍQUIDO ∫

Autor: Zygmunt Bauman

∫ Editora: Zahar

∫ Preço: R$ 42 (192 págs.)

TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA ∫

Autor: Voltaire

∫ Editora: L&PM

∫ Preço: R$ 15 (128 págs.)

NINHO DE COBRAS ∫

Autor: Lêdo Ivo

∫ Editora: Topbooks

∫ Preço: R$ 23 (184 págs.)

NUNCA LHE APARECI DE BRANCO ∫

Autor(a): Judith Farr

∫ Editora: Rocco

∫ Preço: R$ 24,90 (257 págs.)

“Nunca lhe Apareci de Branco, de Judith Farr, um romance construído a partir de cartas fictícias de/para a poeta Emily Dickinson, muito criati-vo e intrigante; Tratado sobre a Tolerância, do Voltaire, que é quase tão chato quanto uma dissertação de mestrado, mas Voltaire é sempre ge-nial; Amor Líquido, de Zygmunt Bauman, que é o meu mais novo livro fa-vorito; e estou relendo Ninho de Cobras, de Lêdo Ivo, que é um romance eletrizante, com texto superafiado e questionamentos de arrepiar – prin-cipalmente para os ‘viventes das Alagoas’”. Lael Correa, dramaturgo

RICA

RDO

LÊD

O/AR

QUIV

O GA

CARLA CASTELLOTTI REPÓRTER

“A condição de repórter em Geneton é imbatível”. É assim que o correspon-dente de guerra Joel Sil-veira (1918-2007) descre-ve o autor de Dossiê Drum-mond. O elogio não é me-ra retórica. Profissional para quem a “reportagem é o melhor passatempo do mundo”, no livro Geneton apresenta a íntegra da en-trevista que fez com o poe-ta e reúne relatos de 45 personalidades acerca do mineiro de Itabira.

O jornalista pernambu-cano lembra que tudo aconteceu após ele ser de-safiado pelo silêncio de décadas do poeta-maior. Mesmo sabendo que na-quele 1987 Drummond enfrentava dois problemas

sérios (o coração doente e Julieta, sua única filha, presa a uma cama de hos-pital), o repórter cujo cur-rículo arquiva entrevistas lendárias estava, como de costume, munido de sua implacável curiosidade. Assim, seguiu adiante.

Como pretexto para o pingue-pongue, ele se uti-lizou da passagem dos 70 anos do poema No Meio do Caminho. Sabendo que se-ria mais fácil conseguir a entrevista por telefone, já que Drummond era tido como um sujeito “eminen-temente telefônico”, Gene-ton preparou um questio-nário com 70 perguntas e arriscou o pedido. “Deu certo”, conta o repórter, que contabiliza: “Transcri-to, o telefonema rendeu nada menos que duas mil linhas datilografadas”.

O que Geneton não po-dia prever é que aquela se-ria a última vez que Drum-mond, o autoproclamado urso polar, homem que fu-gia dos repórteres, falaria a um jornalista. Dezessete dias após a conversa, o po-eta morreria. A seguir, o jornalista fala sobre a ela-boração de Dossiê Drum-mond. Confira.

Gazeta. Qual o primeiro ‘estalo’ que o fez querer entrevistar Drummond? Geneton Moraes Neto. Du-rante décadas, o “silêncio” do maior poeta brasileiro serviu como desafio para os repórteres. Drummond repetia que tudo o que ti-nha a dizer poderia ser en-contrado em seus poemas e crônicas, o que não dei-xa de ser verdade. Mas é claro que todo repórter cu-

íntegra foi publicada no Dossiê Drummond. Digo que uma das funções do jornalismo é “produzir memória”. Neste caso, o repórter produziu “algu-ma memória” sobre o au-tor de Alguma Poesia. Dei por cumprida a tarefa.

Você é fã de Drummond, não é? Sua admiração o motivou a escrever o livro? O projeto não era exata-mente escrever um livro, mas entrevistar o poeta. Quando o procurei, disse que estava pensando em publicar um livro sobre os setenta anos do célebre poema No Meio do Cami-nho. Era um pretexto para abordá-lo. Sou admirador do Drummond – que era melhor como poeta do que cronista. Produziu al-gumas poesias descartá-veis, coisas de ocasião. Mas é autor de uma exten-sa coleção de poemas defi-nitivos, como Consolo na Praia ou A Máquina do Mundo – um poema que, sem exagero, é uma obra-prima, um momento altís-simo da poesia.

Você já disse que a regra número zero do jornalista é sempre duvidar. Acredita que é importante enfrentar todo entrevistado? Não é questão de “enfren-tar”: a dúvida é uma quali-dade que todo repórter de-ve cultivar. Porque duvidar é a melhor maneira de descobrir.

Você enfrentou Drummond em algum momento? Qual? Não houve um enfrenta-mento, mas um “interro-gatório” de um poeta que sempre se resguardou. Só depois dos 70 anos é que ele começou a abrir “bre-chas” para os repórteres. Uma declaração revelado-ra que ele deu é aquela em que diz que fez poesia pa-ra tentar resolver um sen-timento de inadaptação ao mundo. Em suma: a poe-sia de Drummond funcio-nou, para ele, como uma espécie de psicanálise.

Foram mais de 70 pergun-tas dirigidas ao poeta. Fal-tou alguma coisa?

Creio que, em duas roda-das de perguntas, fiz as perguntas que gostaria de ter feito. Preparei, com an-tecedência, um extenso questionário. Quando li-guei, já tinha diante de mim a lista de perguntas. Não foi improvisado. De-pois, voltei a ligar, para ti-rar dúvidas. Nesta segun-da abordagem, ele me dis-se algo que posso tomar tanto como elogio quanto como queixa: Drummond disse que eu era “implacá-vel”. Por via das dúvidas, tomei como “elogio”, mas sei que ele estava consta-tando, também, a insistên-cia do repórter. É a vida.

A busca por nomes que pu-dessem falar sobre Drum-mond se deu após a morte do poeta. Você estabele-ceu algum critério para a seleção? Se sim, por quê? Obtida a entrevista, caí em campo para ouvir gente que – de uma maneira ou de outra – era ligada ao poeta. Ao todo, foram 45 entrevistas. Num certo momento, tive de parar, porque, senão, terminaria escrevendo uma Enciclopé-dia Drummond . Mas o Dossiê Drummond, creio, é um retrato interessante do maior poeta brasileiro, uma maneira de tentar en-tender o homem e o poe-ta. Aos que não conhecem a obra de Drummond, po-de ser uma boa maneira de começar a descobri-lo.

Serviço DOSSIÊ DRUMMONDAutor: Geneton Moraes Neto Editora: Globo Livros Preço: R$ 37 (472 págs.)

A ENTREVISTA QUE VIROU

TESTAMENTO

rioso teria uma lista de perguntas a fazer a ele. Eu tinha. Preparei cerca de 70 perguntas. Como sabia que ele gostava de falar por telefone, mas fugia do contato pessoal, tentei uma investida telefônica. Deu certo. Ao todo, foram 76 perguntas e respostas, devidamente gravadas. Transcrito, o telefonema rendeu nada menos que duas mil linhas datilogra-fadas. Dezessete dias de-pois, o poeta estava mor-to. A entrevista terminou se transformando numa espécie de testamento. A

TOM CABRAL/DIVULGAÇÃO

Para Geneton, uma das funções do jornalismo é produzir memória: “Neste caso, dei por cumprida a tarefa”