literatura - cartas a um jovem poeta
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Por sete anos, o poeta Sidney Wanderley manteve uma correspondência com Carlos Drummond de Andrade. Aqui, você confere as cartas e a relação epistolar que o mineiro manteve com o jovem poetaTRANSCRIPT
Domingo 08/07/2012
DO PAPEL PARA OS TELEFONEMAS
Foram sete anos, dez cartas e um diálogo estabe-lecido. Esta é a conta de Sidney Wanderley, para quem a correspondência evidencia “um diálogo real, não era delirante”. Questio-nado sobre a influência do contato com Drummond na sua formação como poeta, o viçosense afirma que a aproximação foi “determi-nante para que saísse dos poemas panfletários”.
Isso porque Sidney, tal-vez influenciado pela pró-pria experiência de Drum-mond (que passou breve-mente pelo Partido Comu-nista), resolveu se politizar e, em 1981, ingressou no PCdoB. “Nessa época, fiz um livro pavoroso que eu ‘sacudi’ no rio Paraíba, atrás da casa que comprei em Viçosa – até hoje tem schistosoma comendo aque-la literatura de péssima qualidade”, graceja.
A correspondência pros-segue até fevereiro de 1981, quando Drummond envia a Sidney A Paixão Medida, então seu mais no-vo livro de poemas. “Eu es-tava no auge da militância, então escrevi um artigo (A Paixão mais que Medida) panfletário e duríssimo com o livro, e mandei para ele. Eu era muito dogmáti-co e marxista – e falava isso para um cara que já havia passado por todas as desi-lusões políticas”, observa.
“Era um atrevimento meu e Drummond se feriu com isso”, resigna-se Sid-
ney, que continua: “Ele me presenteou com um livro e levou um cacete em troca. Isso é muito um jeito meu, que não faço muito conta da política das relações”, reconhece o viçosense cuja empáfia juvenil pôs, ainda que temporariamen-te, um fim na comunicação com o mineiro.
“Eu sabia que tinha feito merda”, reconhece Sidney Wanderley, a quem Drum-mond volta a escrever so-mente em 1984, após rece-ber uma carta, digamos, mais emotiva, na qual o vi-çosense compartilha com o poeta mineiro a notícia do falecimento de seu irmão, Sandro. “Nesse ano, mor-reu meu irmão de um AVC. Ele fazia mestrado em Ma-temática no Recife. Aí eu voltei a ler Drummond e escrevi para ele”, conta.
PELO TELEFONE Feitas as pazes, tem iní-
cio uma nova fase, a dos te-lefonemas. “Uma vez por semestre, fazemos uma li-gação e fico ventilando a ideia de uma viagem para o Rio. Em 1985, passei uma semana lá, fiquei num ho-tel vagabundo ali na Gló-ria, e não tive coragem de dizer a Drummond que estava na cidade”, rememo-ra Sidney.
A correspondência entre os dois se estende até 1987, ano da morte de Drummond, e coincide com um período no qual Sidney programara uma
nova ida ao Rio de Janeiro. Já como funcionário do Banco do Brasil, o viçosen-se passou suas férias, no mês de agosto, viajando por diferentes cidades do sul do país. A ideia era fa-zer uma parada na capital fluminense antes de voltar a Maceió, e quem sabe co-nhecer pessoalmente o in-terlocutor epistolar.
“Cerca de uns dois ou três meses antes de viajar eu tinha falado com Drum-mond, mas já sabia que a coisa não estava boa. A fi-lha dele, que foi o grande amor de sua vida, estava com um câncer terrível. E Drummond andava muito para baixo. No meio da via-gem, eu estava em Porto Alegre, passei por Foz de Iguaçu, e li que morria a fi-lha de Drummond. Na mes-ma hora eu pensei: ‘Morreu Drummond’”, diz Sidney.
De fato, a passagem de Drummond não tardou. Dono de um coração fraco e doente, os registros médi-cos apontam que o poeta teria parado de tomar os remédios que controlavam a doença cardíaca. Doze di-as após a morte da filha, não resistira e partira tam-bém. “Foi um choque”, re-corda Sidney Wanderley, que decreta: “De Drum-mond para cá o mun-do es tá cada vez mais difícil da gen-te ler”. CC Continua nas págs. B2, B5 e B10
JOVEM POETA CARTAS A UM
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Drummond era conhecido pela disposição em responder por carta a quem quer que fosse: dos amigos escritores aos desconhecidos
CARLA CASTELLOTTI REPÓRTER
Rio de Janeiro, 14 de abril de 1980. Eis o local e a data da primeira carta que Sidney Wanderley recebeu de Carlos D r u m m o n d d e A n d r a d e (1902-1987). Aos 21 anos, o jovem nascido em Viçosa, a 85 quilômetros de Maceió, traba-lhava como professor de Biolo-gia no Colégio Marista – e não imaginava o que havia no en-velope trazido pelo carteiro. No remetente, o endereço que jamais esqueceria: Conse-lheiro Lafayette, 60, aparta-mento 701. Foi assim, sem avi-so e por iniciativa do próprio Drummond, que teve início a correspondência entre um então iniciante poeta e seu ídolo maior.
A ‘descoberta’ do autor, con-tudo, havia se dado muito an-tes, em 1973, quando Sidney cursava o 1º ano científico e cruzou com o célebre poema Mãos Dadas numa prova de Li-teratura. “Eu caminhava a lar-gos passos para inteirar os meus 15 anos. Adorei nesse poema os versos ‘não nos afas-temos/ não nos afastemos muito’, a revelar companhei-rismo e solidariedade, mas sem abrir mão da individuali-dade e da diferença”, recorda ele ao falar dos versos conti-dos no livro Sentimento do Mundo, de 1940. A partir daí, tornaria-se um “leitor manía-co” da obra do poeta mineiro.
“Li Drummond de forma re-corrente em minha adolescên-cia, ao lado de Fernando Pes-soa e João Cabral de Melo Ne-to. Uma paixão dos diabos”, conta Sidney Wanderley, ao anotar outro momento fla-grante de identificação: “Me deparei com dois outros ver-sos, estes do poema Explica-ção, do livro Alguma Poesia: ‘No elevador penso na roça,/ na roça penso no elevador’. Is-so era eu: em Viçosa penso em Maceió, em Maceió penso em Viçosa, em mim mesmo penso em algum outro, etc”.
Terminado o colégio e cur-sando o primeiro ano de Medi-cina, o autor do recém-lança-do Dias de Sim, então com 17 anos, era um estudante ente-diado – “Fazia o curso sem vo-cação alguma”. Foi nessa épo-ca e sob nítida influência da poesia de Drummond que co-meteu seus “primeiros desati-nos poéticos”. Nesse tempo, ele conta, tudo era um bom motivo para, diante da máqui-na de escrever, registrar o que desse na telha.
O ímpeto de escrever era ta-manho que, numa sentada só, Sidney redigiu Poesia, Canção Suicida, artigo no qual analisa-va a ideia do suicídio nos pri-meiros dez títulos da obra poé-tica de Drummond, que com-punham o volume Reunião. Dedicado ao amigo Paulo (“que numa noite de março de 1980 abreviou sua vida e ante-cipou seu repouso com um discreto balaço no ouvido es-querdo”), o material, conta o
viçosense, foi inscrito num concurso da Academia Alagoa-na de Letras (AAL) que aca-bou por premiar textos sobre a produção de Graciliano Ra-mos e Raul Pompéia, além do próprio Drummond.
ACASO E se não
está claro o que essa histó-r i a t e m a v e r com as cartas envi-adas a Sidney por Drummond, vale no-tar que a correspon-dência estabelecida en-tre o alagoano e o minei-ro só foi iniciada após Poe-sia, Canção Suicida chegar às mãos do autor de A Rosa do Povo. Na era pré-internet, po-rém, o caminho percorrido pe-lo artigo foi (bem) mais longo, e contou com a ajuda do acaso.
Era 1980 quando Sidney Wanderley, recém-casado e já desistente do curso de Medici-na, recebia em sua casa o es-critor e sociólogo alagoano Fernando Batinga, amigo pró-ximo de Drummond que de-pois de anos exilado na França estava de volta ao Brasil. “O Fernando disse que queria ver meus poemas. E aí passei para ele uns poemas e uns contos – nessa época eu era metido a contista também – e, no meio desse material, foi junto o en-saio sobre o Drummond, que nem lembrava de ter coloca-do”, conta ele.
“Seguramente, o Fernando não gostou dos poemas nem dos contos. Mas nessa brinca-deira, o cara disse: ‘Gostei mui to do ensa io sobre o Drummond. Posso levar para ele?’. Ao que eu respondi: ‘Cla-ro!’”, lembra Sidney, ao afir-mar não ter nutrido expectati-vas em relação a uma resposta do poeta-maior.
Passados três meses da con-versa, o carteiro entregava a Sidney a primeira de uma sé-rie de cartas enviadas pelo ita-birano. “Nesse dia, eu estava no Marista quando abri a cor-respondência e vi uma carta de Drummond falando que minha análise [sobre o suicí-dio em sua obra] estava corre-tíssima. Meu pseudônimo [no artigo] era Viçosense Inculto, e ele me mandou uma carta escrita ao ‘Viçosense (in)culto e perspicaz’”, rememora Sid-ney, com orgulho.
Conhecido pela disposição de responder a todos, dos ami-gos aos desconhecidos, Drum-mond estabeleceu uma corres-pondência de fôlego com mui-tos interlocutores. Para se ter uma ideia, somente na Funda-ção Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, há o registro de 1.812 correspondentes do autor de Sentimento do Mun-do. Neste domingo em que chega ao fim a 10ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que homena-geia Drummond, a Gazetaapresenta aos leitores as men-sagens trocadas entre ele e Sidney Wanderley.
MEMÓRIA. Sidney Wanderley envia e-mails para deus e o mundo. Cartas, porém, para mais ninguém. Bancário aposentado e ex-professor de Biologia, durante sete
anos o revisor que renega a função e prefere ser chamado ‘apenas’ de poeta se correspondeu com
Carlos Drummond de Andrade. Com exclusividade, a Gazeta teve acesso às cartas trocadas por Sidney com
o poeta-maior, que tomou a iniciativa de escrever ao jovem viçosense após ler um artigo no qual ele analisava
o suicídio em sua obra. Num momento em que todas as atenções estão voltadas para o autor de Sentimento do
Mundo – Drummond é o homenageado do maior evento literário do país, a Flip, que termina hoje –, nada melhor do que revisitá-lo.
É o que os leitores poderão fazer nesta edição
GAZETA DE ALAGOAS, 08 de julho de 2012, Domingo 2 Caderno BB
“DESABAFOS, ANTES DE TUDO” CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Sidney Wanderley abriu o baú. Nesta edição, ele apresenta aos leitores da Gazeta as dez
cartas que Drummond lhe enviou. Na correspondência, conselhos de um poeta no fim da vida a um escritor em formação
CARLA CASTELLOTTI REPÓRTER
Autor reservado que não falava a respeito de sua vida pessoal, Carlos Drummond de Andrade costumava dizer que tudo que precisava ser dito po-dia ser encontrado em seus poemas. “Desabafos, antes de tudo”. É assim que o poeta itabirano des-creve sua obra para Sid-ney Wanderley, numa car-ta de abril de 1984.
Embora tido como um autor cioso e exigente a ponto de ser capaz de cui-dar de sua própria antolo-gia, o poeta mineiro que passou a maior parte da vida no Rio de Janeiro afirmava não se orgulhar do que escreveu. “Tudo re-sultado de um impulso in-terior, e não de um projeto deliberado de criação lite-rária”, escreveu, modesto.
Concedida ao jornalista Geneton Moraes Neto, em sua úl t ima entrevis ta Drummond reafirma suas considerações ao obser-var: “Fiz da minha poesia um sofá de analista. É esta a minha definição do meu fazer poético”.
Em um dos raros momentos
de abertura, o mineiro confessa que não possuía
um projeto literário
Considerado o maior poeta brasileiro (título que renegava), além de uma extensa produção – foram mais de 80 livros de poesi-as, contos e crônicas – Drummond deixou uma vasta correspondência. As cartas trocadas com escri-tores como os amigos Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Má-rio de Andrade são verda-deiros documentos, mas a relação epistolar que o po-eta estabeleceu com des-conhecidos também mere-ce atenção.
E m 2 9 d e m a i o d e 2010, o jornal Folha de S.Paulo trouxe uma maté-ria na qual pedia a leitores que tivessem (ou soubes-sem de quem tinha) cartas t r o cada s com Ca r l o s Drummond que as envias-sem à redação. Responde-ram ao chamado 12 pesso-as, entre elas Sidney Wan-derley, que enviou ao ma-tutino paulista uma das missivas recebidas de Drummond. Nesta edição, o leitor da Gazeta confere com exclusividade a ínte-gra dessa correspondência.
‡ 1ª CARTA
14 DE ABRIL DE 1980 “Caro Viçosense (In)culto e perspicaz: grata, muito grata surpresa, a leitura do seu trabalho, tão dis-cretamente enviado, e a revelar a existência de um amigo distante, cheio de simpatia compreensi-va para com a minha ver-
‡ 4ª CARTA
19 DE MAIO DE 1981 “Prezado Sidney: achei divertido o caso do jovem Abud, que você me conta. Sempre con-siderei o plágio uma prova de admiração, que de certo modo li-sonjeia o autor plagia-do. Mas... não convém que o rapaz conti-nue cultivando essa forma de admiração, não acha? Cordial-mente, abraça-o o Carlos Drummond.”
SIDNEY COMENTA: “Promovi um concur-so de poesia no Colé-gio Marista, onde en-sinava Biologia. Como os poemas inscritos apresentaram baixíssi-mo nível, premiei um aluno afoito que teve a cara de pau de copi-ar o poema Confissão, do livro As Impurezas do Branco, do Drum-mond. Remeti-o para o Drummond, que o de-volveu corrigido.”
‡ 3ª CARTA
08 DE FEVEREIRO DE 1981 “Poeta e amigo Sid-ney: de forma pausa-da e bem, li A Vida Assim se Passando, e apreciei o toque de individualidade visível em tantos poemas do livro. Individualidade e não individualismo. Sua poesia é comu-nicante, exprimindo embora um jeito muito pessoal de ser e de reagir diante da vida. Você se afir-ma, se define, e ao mesmo tempo dá a dimensão geral do homem, na complexi-dade do ser pensan-te e sentinte. E com-põe um verso forte, provocador, que não deixa o leitor indife-rente. São qualidades a registrar, pelo que valem e significam. Sou grato a você pelo oferecimento dos ori-ginais e pelas pala-vras amigas de sua carta. O abraço do Carlos Drummond de Andrade” /// “P.S. − Segue pelo correio A Paixão Medida − C.D.A.”
SIDNEY COMENTA: “A Vida Assim se Passan-do, dez anos depois, se converteria no meu primeiro livro, Po-emas post-húmus.”
‡ 2ª CARTA
27 DE NOVEMBRO DE 1980 “Caro Sidney Wanderley: num abraço, vai meu agra-decimento pela remessa de seus poemas, de ní-tida personalidade. Claro que terei prazer em abra-çá-lo, por ocasião de sua projetada viagem ao Rio. E, finalmente: perdoe-me não ter acusado o re-cebimento da versão de-
finitiva de seu trabalho, que muito apreciei. Este ano um herpes danado inutilizou boa parte de meu tempo, atrasando ou anulando a comunicação com os amigos. Abraço cordial e grato do Carlos Drummond de Andrade.”
SIDNEY COMENTA: “O tra-balho a que Drummond se refere é o ensaio Poesia, Canção Suicida, devidamente revisado.”
salhada, a remota e a de agora. Achei realmente in-teressante o ângulo sob o qual você considerou os meus livros. O aspecto ana-lisado, que me lembre, não fora ainda objeto de exame. Seu trabalho, pondo de lado a inclinação benévola que o inspirou, me parece correto. A propósito, e para confir-má-lo, mando-lhe xerox de
um poema que nunca apro-veitei em livro. Saiu na re-vista Verde, de Cataguases, e a dedicatória fez sofrer o meu amigo Mário de Andra-de (foi, de fato, uma ideia infeliz de minha parte). Obrigado, amigo Sidney. O abraço cordial e todo o apreço do seu grato Carlos Drummond de Andrade.”
SIDNEY COMENTA: “Em res-posta ao ensaio Poesia, Can-ção Suicida, escrito no iní-cio de 1978 e remetido dois anos depois ao mineiro pelas mãos do sociólogo e escritor Fernando Batinga – que retornara do exílio, por motivos políticos, na Fran-ça, e era amigo do Drum-mond. ‘Viçosense inculto’ foi o pseudônimo que utilizei no malfadado concurso da AAL. Acompanha o poema Convi-te ao Suicídio, dedicado a Mário de Andrade.”
Domingo, 08 de julho de 2012, GAZETA DE ALAGOAS Caderno B 5 B
CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Sidney Wanderley abriu o baú. Nesta edição, ele apresenta aos leitores da Gazeta as dez cartas que Drummond lhe enviou. Na correspondência, conselhos de um poeta no fim da vida a um escritor em formação
‡ 5ª CARTA
27 DE MAIO DE 1981 “Prezado Sidney: muito bom o texto sobre poesia no con-texto de miséria e opressão. Os con-selhos aos jovens são sábios, mas, se quisermos liberdade é preciso deixar-lhes a escolha de seus próprios caminhos, sem muitos preceitos e regras, incluindo as do bem-fazer. “Recebi, sim, Com os Pés no Chão, poesia certeira e comunicati-va, mas, na vida que levo, sem secretário e sem tempo para dar conta das minhas obrigações, cadê folga para escrever, agrade-cer, comentar? Releve o silêncio, não omis-so, mas cordial, do
seu, com um abraço amigo, Drummond.”
SIDNEY COMENTA: “Esta carta se refere a um texto panfletá-rio que escrevi, intitula-do Poesia no Contexto de Miséria e Opres-são, para uma pales-tra a estudantes se-cundaristas. Na época – e isso foi de março a dezembro de 1981 –, eu era um militan-te dogmático e raivoso do PCdoB. Durou nove meses essa cachaça. Já Com os Pés no Chão era um agrupa-mento de poemas pan-fletários que o editor Ênio Silveira, da Civili-zação Brasileira, teve o bom senso de se recusar a publicá-los e a franqueza de me recomendar rasgá-los imediatamente.”
‡ 10ª CARTA
16 DE ABRIL DE 1987 “Prezado Sidney: acho que você exagera, e muito, nos termos ge-nerosos de sua carta de fevereiro, a que uma doença rebelde só agora me permi-te responder. Confes-so-lhe que não sou dos maiores admirado-res de mim mesmo, e tenho frequentemente a sensação de que os louvores a mim dirigi-dos se referem antes a uma pessoa ima-ginária. De qualquer
modo, o agradecimen-to é grande e como-vido. O abraço cor-dial e penhorado do Carlos Drummond de Andrade.”
SIDNEY COMENTA: “Após a morte do Drummond, em 17 de agosto de 1987, dois meses antes de completar 85 anos, o homem pegou a mania de não mais responder às minhas cartas. Pouco impor-ta. Carta mole em lápide dura, tanto bate até que...”
‡ 6ª CARTA
03 DE JUNHO DE 1981 “Prezado Sidney: obri-gado por A Líquida Lembrança − aproxi-mação e articulação engenhosa de elemen-tos, que minha poe-sia lhe ficou devendo. Abraço do Drummond.”
SIDNEY COMENTA: “A Líquida Lembrança é o título de um breve en-saio que escrevi em maio de 1981. Em
julho desse ano escrevi outro artigo intitulado A Paixão mais que Me-dida, sentando o pau no livro A Paixão Me-dida, que Drummond havia me presenteado em fevereiro. Ficamos quase três anos sem ‘cartinha vai, cartinha vem’. E, convém ob-servar, nas duas próxi-mas cartas Drummond suprimiu o ‘Prezado’ e me tratou apenas por ‘Sidney’. Raiva de mineiro é fogo!”
‡ 7ª CARTA
02 DE ABRIL DE 1984 “Sidney: sua carta é fruto de ultragenerosa avaliação dos versos que andei fazen-do pela vida afora e a pro-pósito dos quais costumo interrogar-me, duvidoso de que eles signifiquem mais do que um desabafo pesso-al. Obrigado! e o abraço cor-dial do Carlos Drummond de Andrade” “P.S. – O comovido agradecimento, embora
com atraso, do CDA.”
SIDNEY COMENTA: “Esse tar-dio ‘agradecimento comovi-do’ refere-se ao poema Nos Oitenta Anos do Poeta Drum-mond, com o qual, em ou-tubro de 1982, ganhei algu-mas moedas ao vencer um concurso literário em Brasí-lia. Como já explicitei, está-vamos então no período da Guerra Fria, graças àquela atrevida sova que apliquei no livro A Paixão Medida.”
‡ 8ª E 9ª CARTAS
22 DE ABRIL DE 1984 “Sidney, só hoje posso responder sua carta, submergido, como andei, no preparo de originais para a minha nova editora (a Re-cord). Não preciso dizer quanto suas pala-vras me tocaram: foi a reação natural de qual-quer pessoa sensível, nem por isso, entre-tanto, deixo de avaliar o que há de pura ge-nerosidade intelectual (e emocional) no juízo altamente honroso de minha poesia. Meus versos são o que são, como produto espontâ-neo de uma insatisfa-ção de ver as coisas como elas se apresen-tam diante de mim. Desabafos, antes de tudo. A parte artísti-ca é discutível e su-jeita a modismos – sou o primeiro a reco-nhecer, sem humilda-de falsa. Também não me orgulho do que escrevi. Tudo resulta-do de um impulso in-terior, e não de um projeto deliberado de criação literária. Nem dou importância supe-rior à literatura, como uma das artes da vida.
Para mim, ela tem sido um processo de ex-pressão de ideias e sentimentos não pro-priamente literários. Uma terapia verbal... “Obrigado por tudo de bom que há na sua carta. O abraço cordial do Carlos Drummond.”
SIDNEY COMENTA: “Estas duas últimas cartas, Drummond es-creveu-as em respos-ta a uma carta que lhe enviei logo após a morte, por AVC, do meu irmão Sandro, aos 23 anos, no Recife, onde concluía o mes-trado em Matemática.” “De 1984 a 87, uma vez a cada seis meses, mais ou menos, eu li-gava para o itabirano. Quando o homem es-tava no apê da rua Conselheiro Lafayette, conversávamos por breves minutos, e eu desfrutava daquele fio de voz rouquíssima e prestes a sumir. Quan-do o homem não esta-va em casa − andava em alguma livraria ou nos braços da aman-te Lygia Fernandes −, dona Dolores, a legíti-ma, sugeria-me ligar mais tarde ou em outro dia.”
GAZETA DE ALAGOAS, 08 de julho de 2012, Domingo10 Caderno BB
CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Jornalista que coleciona reportagens lendárias, Geneton Moraes Neto conta à Gazeta como um pingue-pongue ‘telefônico’ com Carlos Drummond de Andrade acabou por se transformar em livro
LIVROS & IDEIAS ARREDORES VIDA BOA
L U I S F E R N A N D O V E R I S S I M O
TOM E KATIE
“Daqui a 200 anos ninguém mais vai saber quem eram Tom Cruise, Katie Holmes e Armani.
A Igreja da Cientologia não existirá mais”
Tom Cruise e Katie Holmes estão se separando. Me lem-brei do que escrevi quando eles se casaram, pelos rituais da Igreja da Cientologia. Armani fez não só a roupa do noivo e da noiva para o casamento como a da filhinha de meses do casal – e eu fiquei com a vaga impressão de ter feito um resumo da nossa civilização numa frase. Se me pedissem uma frase para colocar em alguma cápsula do tempo, para ser aberta daqui a 200 anos, eu submeteria o que escrevi. Daqui a 200 anos ninguém mais vai saber quem eram Tom Cruise, Katie Holmes e Armani, embora a filha deles talvez tenha alcançado alguma forma de eternização cien-tífica e ainda viva, ela também dentro de uma cápsula. A Igreja da Cientologia não existirá mais – ou será a princi-pal igreja do mundo, tendo crescido muito depois que 100 islamitas disfarçados de cardeais explodiram-se ao mesmo tempo dentro da catedral de São Pedro, arrasando o Vaticano. Mecca foi arrasada em represália, e o público
perdeu um pouco do entusiasmo pelas religiões maiores. O casamento de Tom e Katie, vestindo Armanis, se deu
numa pequena cidade à beira de um lago, perto de Roma, escolhida pela sua paisagem romântica, e foi assistido só por convidados. Tom e Katie e a filhinha não apareceram para o público e é provável que nem tenham visto a paisa-gem, já que não chegaram perto de nenhuma janela. Na nossa civilização era assim, as celebridades escolhiam cui-dadosamente e anunciavam os lugares em que não queri-am ser vistas, e não eram vistas. Em outros tempos isto se-ria considerado, no mínimo, um desperdício de Armanis. No nosso tempo as celebridades tinham se tornado uma es-pécie de abstração. Eram apenas projeções de si mesmas, o que garantia a exposição controlada sem o risco de esbar-rão ou perguntas cretinas sobre a criança, por exemplo. Mas nem mais em pequenas cidades italianas era inco-mum a noiva casar de barriguinha, ou com o filho já nasci-
do e vestido. Para que daqui a 200 anos não pensassem mal de nós lendo sobre o casamento ostensivamente fecha-do de Tom e Katie, eu incluiria na cápsula o recorte de ou-tra notícia que li mais ou menos na mesma época.
Num hotel de Las Vegas uma sucursal do Museu de Cera da Madame Tussauds tinha planejado fazer o casamento de Angelina Jolie e Brad Pitt, ou de reproduções em cera e tamanho natural dos dois, numa cerimônia que não só o público poderia ver de perto como seria assistida por convi-dados especiais como John Wayne, Elvis Presley, Liberace, Ronald Reagan e outros, além de, provavelmente, Tom Cruise e Katie Holmes, todos feitos de cera. Alguém achou que seria de mau gosto e a ideia foi abandonada. Pena. O casamento real de Angelina e Brad também foi num lugar conspicuamente à prova da nossa curiosidade, mas no fu-turo saberiam que pelo menos tentamos trazê-lo para a re-alidade. Ou coisa parecida.
minha estante
AMOR LÍQUIDO ∫
Autor: Zygmunt Bauman
∫ Editora: Zahar
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TRATADO SOBRE A TOLERÂNCIA ∫
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NINHO DE COBRAS ∫
Autor: Lêdo Ivo
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NUNCA LHE APARECI DE BRANCO ∫
Autor(a): Judith Farr
∫ Editora: Rocco
∫ Preço: R$ 24,90 (257 págs.)
“Nunca lhe Apareci de Branco, de Judith Farr, um romance construído a partir de cartas fictícias de/para a poeta Emily Dickinson, muito criati-vo e intrigante; Tratado sobre a Tolerância, do Voltaire, que é quase tão chato quanto uma dissertação de mestrado, mas Voltaire é sempre ge-nial; Amor Líquido, de Zygmunt Bauman, que é o meu mais novo livro fa-vorito; e estou relendo Ninho de Cobras, de Lêdo Ivo, que é um romance eletrizante, com texto superafiado e questionamentos de arrepiar – prin-cipalmente para os ‘viventes das Alagoas’”. Lael Correa, dramaturgo
RICA
RDO
LÊD
O/AR
QUIV
O GA
CARLA CASTELLOTTI REPÓRTER
“A condição de repórter em Geneton é imbatível”. É assim que o correspon-dente de guerra Joel Sil-veira (1918-2007) descre-ve o autor de Dossiê Drum-mond. O elogio não é me-ra retórica. Profissional para quem a “reportagem é o melhor passatempo do mundo”, no livro Geneton apresenta a íntegra da en-trevista que fez com o poe-ta e reúne relatos de 45 personalidades acerca do mineiro de Itabira.
O jornalista pernambu-cano lembra que tudo aconteceu após ele ser de-safiado pelo silêncio de décadas do poeta-maior. Mesmo sabendo que na-quele 1987 Drummond enfrentava dois problemas
sérios (o coração doente e Julieta, sua única filha, presa a uma cama de hos-pital), o repórter cujo cur-rículo arquiva entrevistas lendárias estava, como de costume, munido de sua implacável curiosidade. Assim, seguiu adiante.
Como pretexto para o pingue-pongue, ele se uti-lizou da passagem dos 70 anos do poema No Meio do Caminho. Sabendo que se-ria mais fácil conseguir a entrevista por telefone, já que Drummond era tido como um sujeito “eminen-temente telefônico”, Gene-ton preparou um questio-nário com 70 perguntas e arriscou o pedido. “Deu certo”, conta o repórter, que contabiliza: “Transcri-to, o telefonema rendeu nada menos que duas mil linhas datilografadas”.
O que Geneton não po-dia prever é que aquela se-ria a última vez que Drum-mond, o autoproclamado urso polar, homem que fu-gia dos repórteres, falaria a um jornalista. Dezessete dias após a conversa, o po-eta morreria. A seguir, o jornalista fala sobre a ela-boração de Dossiê Drum-mond. Confira.
Gazeta. Qual o primeiro ‘estalo’ que o fez querer entrevistar Drummond? Geneton Moraes Neto. Du-rante décadas, o “silêncio” do maior poeta brasileiro serviu como desafio para os repórteres. Drummond repetia que tudo o que ti-nha a dizer poderia ser en-contrado em seus poemas e crônicas, o que não dei-xa de ser verdade. Mas é claro que todo repórter cu-
íntegra foi publicada no Dossiê Drummond. Digo que uma das funções do jornalismo é “produzir memória”. Neste caso, o repórter produziu “algu-ma memória” sobre o au-tor de Alguma Poesia. Dei por cumprida a tarefa.
Você é fã de Drummond, não é? Sua admiração o motivou a escrever o livro? O projeto não era exata-mente escrever um livro, mas entrevistar o poeta. Quando o procurei, disse que estava pensando em publicar um livro sobre os setenta anos do célebre poema No Meio do Cami-nho. Era um pretexto para abordá-lo. Sou admirador do Drummond – que era melhor como poeta do que cronista. Produziu al-gumas poesias descartá-veis, coisas de ocasião. Mas é autor de uma exten-sa coleção de poemas defi-nitivos, como Consolo na Praia ou A Máquina do Mundo – um poema que, sem exagero, é uma obra-prima, um momento altís-simo da poesia.
Você já disse que a regra número zero do jornalista é sempre duvidar. Acredita que é importante enfrentar todo entrevistado? Não é questão de “enfren-tar”: a dúvida é uma quali-dade que todo repórter de-ve cultivar. Porque duvidar é a melhor maneira de descobrir.
Você enfrentou Drummond em algum momento? Qual? Não houve um enfrenta-mento, mas um “interro-gatório” de um poeta que sempre se resguardou. Só depois dos 70 anos é que ele começou a abrir “bre-chas” para os repórteres. Uma declaração revelado-ra que ele deu é aquela em que diz que fez poesia pa-ra tentar resolver um sen-timento de inadaptação ao mundo. Em suma: a poe-sia de Drummond funcio-nou, para ele, como uma espécie de psicanálise.
Foram mais de 70 pergun-tas dirigidas ao poeta. Fal-tou alguma coisa?
Creio que, em duas roda-das de perguntas, fiz as perguntas que gostaria de ter feito. Preparei, com an-tecedência, um extenso questionário. Quando li-guei, já tinha diante de mim a lista de perguntas. Não foi improvisado. De-pois, voltei a ligar, para ti-rar dúvidas. Nesta segun-da abordagem, ele me dis-se algo que posso tomar tanto como elogio quanto como queixa: Drummond disse que eu era “implacá-vel”. Por via das dúvidas, tomei como “elogio”, mas sei que ele estava consta-tando, também, a insistên-cia do repórter. É a vida.
A busca por nomes que pu-dessem falar sobre Drum-mond se deu após a morte do poeta. Você estabele-ceu algum critério para a seleção? Se sim, por quê? Obtida a entrevista, caí em campo para ouvir gente que – de uma maneira ou de outra – era ligada ao poeta. Ao todo, foram 45 entrevistas. Num certo momento, tive de parar, porque, senão, terminaria escrevendo uma Enciclopé-dia Drummond . Mas o Dossiê Drummond, creio, é um retrato interessante do maior poeta brasileiro, uma maneira de tentar en-tender o homem e o poe-ta. Aos que não conhecem a obra de Drummond, po-de ser uma boa maneira de começar a descobri-lo.
Serviço DOSSIÊ DRUMMONDAutor: Geneton Moraes Neto Editora: Globo Livros Preço: R$ 37 (472 págs.)
A ENTREVISTA QUE VIROU
TESTAMENTO
rioso teria uma lista de perguntas a fazer a ele. Eu tinha. Preparei cerca de 70 perguntas. Como sabia que ele gostava de falar por telefone, mas fugia do contato pessoal, tentei uma investida telefônica. Deu certo. Ao todo, foram 76 perguntas e respostas, devidamente gravadas. Transcrito, o telefonema rendeu nada menos que duas mil linhas datilogra-fadas. Dezessete dias de-pois, o poeta estava mor-to. A entrevista terminou se transformando numa espécie de testamento. A
TOM CABRAL/DIVULGAÇÃO
Para Geneton, uma das funções do jornalismo é produzir memória: “Neste caso, dei por cumprida a tarefa”