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1 Linha Cruzada 1ª Edição / 2013 Fabiana Escobar Editora Perse

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Linha Cruzada

1ª Edição / 2013

Fabiana Escobar

Editora Perse

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Em uma daquelas tardes ensolaradas, crianças brincam de

bola de gude, mulheres conversam nos caminhos, outras

lavam roupas na mina d’água, pessoas sobem, pessoas

descem. Alguns ficam nas tendinhas bebendo umas e

outras, mas muitas pessoas sobem o morro com o cansaço

estampado em seus rostos envelhecidos de tanto trabalhar

e com o coração amargurado por não verem a “luz no fim

do túnel”. Assim o cotidiano do morro vai seguindo. Toda

a pobreza fica estampada ali, na cara de quem quiser ver,

valas de esgoto, casas de alvenaria ou barracos, mas

sempre construído de maneira perigosa.

Michel, ainda moleque de 14 anos, solta pipa na ponta de

uma laje. Nina uma menina de 8 anos, olha enfeitiçada

para Michel.

Nina viaja olhando pra Michel e chega a não escutar

Micaela a chamar.

__Nina! Nina! Nina! Vem brincar! Vai ficar aí olhando

pro meu irmão é?

__Já vou! Já vou!

Michel olha pra Nina e fala com ela:

__ Que foi? O que você ta olhando? Quer soltar pipa?

Nina sorri envergonhada e sai correndo.

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Michel sorri também e continua soltando pipa. No morro é

assim, as pessoas passam muitas dificuldades, mas os

pobres veem nas coisas mais simples da vida uma das

maiores alegrias, como a pipa, a cervejinha do final de

semana, o pagodinho, a feijoada...

Michel adora soltar pipa. Na verdade ele se sente assim

como a pipa, livre, porem, preso por um fio.

Mas como todo mundo sabe, alegria de pobre dura pouco

e logo esse seu lazer é interrompido por uma voz alta e

grossa.

__ Ôh, moleque deixa essa porra aí e rapa fora, que a

chapa tá quente! Anda logo! Rala daqui!

Quando Michel se vira logo bate os olhos no fuzil do

policial, que parece estar pronto pra matar alguém à

dentada.

Logo ele larga a pipa e sai correndo. Michel corre

pensando da maneira mais discreta possível, por que

acredita que polícia é o diabo, adivinha até pensamento.

__ Puta que pariu! Esses filhos da puta vêm pra cá

perturbar a nossa paz! Viados...

No mesmo momento em que Michel, Nina, Micaela e todo

o morro correm pra dentro de casa, em outro canto da

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cidade, mas dessa vez um canto mais bonito, cheiroso,

chique e confortável, duas meninas brincam.

__Melissa! Melissa! Duvido você me pegar! – Grita

Andressa.

__Duvida? Eu vou te pegar!

Melissa corre atrás de Andressa. As duas correm no

jardim enfeitado e brincam livres de qualquer sofrimento.

Ricas, gracinhas... O que mais pedir a Deus? Elas estão no

jardim, por sinal um belo jardim, todo enfeitado de acordo

com o tema da festa.

Carmelita, mãe de Melissa, caminha para o jardim e

chama as meninas:

__Meninas! Está na hora de cantar parabéns! Melissa,

Andressa!

Melissa e Andressa curtem muito a festa. Muito

refrigerante, doces, salgados, brinquedos, animação, tudo

que uma criança sonha. Ali parece existir só alegria.

Criança jamais perde tempo se preocupando com coisas de

adulto, nunca!

Assim a noite cai... Melissa e Andressa seguem com suas

famílias para suas respectivas casas e lá adormecem com

os anjos.

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Já Nina não dorme a noite toda com medo do tiroteio.

Cada tiro é um pulo! Nina consegue ouvir sua mãe

rezando baixinho...

__ Pai nosso que estais no céu...

Michel se meche na cama a cada barulho que ouve. Parece

o inferno! Gritos, tiros, passos, um horror! No morro é

assim sempre tem tiroteios. Alguns acabam acostumando,

mas outros não...

Logo que amanhece, Michel e Micaela, passam na casa de

Nina para dali irem pra escola. Logo que começam a

descer o morro se deparam com um corpo estirado no

chão e muito sangue escorrendo pelas escadinhas tortas,

cercado de mulheres que choram em voz alta.

__Meu filho! Um filho! Fala comigo! Ah meu Deus, por

que?

As pessoas pobres são assim gritam muito, tanto na alegria

quanto na tristeza. Enterro de rico você não vê essas

coisas. Nunca! Mas pobre solta a garganta... Também não

tem nada de valor... Só são donos de si e de seus filhos,

só... E quando um deles morre... Parece que o mundo está

acabando...

Nina e Micaela olham assustadas para aquela cena. Apesar

de ser uma coisa constante no morro, as crianças não

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gostam de ver cenas assim, principalmente se a mãe

estiver chorando junto ao corpo esfacelado pelos tiros.

Michel olha com um olhar diferente. Não é somente um

olhar de tristeza, parece conter um pouco de revolta,

ódio... Mas logo ele sai e chama as meninas:

__ Vamos logo! Vamos!

No outro lado da cidade, Melissa chega em seu colégio e

antes mesmo de descer do carro de luxo já avista

Andressa.

__Andressa! Me espera!

A empregada – baba segura a mão de Andressa, mas logo

que vê a prima gritando, se solta e juntas entram na escola.

Assim passam-se dez anos... Ricos continuam ricos e

pobres continuam pobres. Agora as crianças cresceram e

suas vidas estão por um fio de se cruzarem. O destino é

assim, prega cada peça...

Logo no amanhecer, Joelma que é empregada doméstica

precisa sair. Joelma mãe de Nina, Natanael e Noel e

trabalha na casa de Andressa. Ao acordar Joelma faz café

e olha os filhos ainda estão dormindo. Assim se arruma e

sai para mais um dia de luta. Quando começa a descer o

morro já encontra jovens que estão saindo do baile funk

que acontece próximo a sua casa.

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Bandidos armados não é novidade, mas Joelma, percebe

uma certa inquietação da parte deles. Eles passam por ela

descendo em passos largos e em seguida sobem quase

correndo. Mas Joelma continua a sua caminhada.

Ao chegar no “pé do morro” ela vê que a polícia se

prepara pra mais uma operação sangrenta no morro. Isso a

deixa muito preocupada, mas enfim... Ela precisa

trabalhar.

Ao chegar no trabalho ela logo comenta com a outra

empregada da casa:

__Ôh meu pai, eu to tão preocupada com os meus filhos!

A polícia está lá no morro... Mas se Deus quiser não vai

acontecer nada.

__ Fica tranquila... Deus protege seus filhos.

__Eu rezo por isso todos os dias... – Joelma responde um

pouco apreensiva.

Em casa Nina e seus irmãos Natanael e Noel escutam os

tiros e Nina se mostra muito nervosa a cada tiro.

__ Ai, meu Deus! Esse tiroteio não para.

Noel logo se irrita com Nina:

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__ Fica quieta, que daqui a pouco para. Você ainda não

acostumou?

__Você acha que eu vou me acostumar com isso, nunca.

Nina sai andando com raiva e se tranca no banheiro.

Natanael acalma Noel:

__Liga não! Ela ta nervosinha por que o amorzinho dela

deve estar no caminho.

Noel faz cara de interrogação e fala:

__Ué, mas a Nina ainda gosta desse cara? Se a mamãe

souber... E bom ela esquecer...

Perto dali Michel bate na porta da casa da sua mãe. Mas

ninguém abre e ele insiste muito:

__ Mãe abre a porta! Por favor! Sou eu, Michel! Abre

mãe, por favor! Os canas estão aqui fora!

Luísa, mãe de Michel é muito dura e não aceita as atitudes

do filho, mas Micaela, irmã de Michel sempre tenta

defendê-lo.

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__Abre mãe, por favor! A policia esta lá fora! E se

pegarem ele? E se matarem ele? Mãe por favor! – Micaela

pede a mãe com lágrimas nos olhos.

__Ta bom, mas eu não vou abrir mais se ele continuar

nessa vida! Você me entendeu bem dona Micaela?

Luísa abre a porta e Michel praticamente cai lá dentro.

__ Pô coroa, por que demorou tanto! Ta querendo que eu

morra?! – Esbraveja Michel.

Luísa que já estava indo pro quarto para não se aborrecer,

não consegue se calar diante das palavras de Michel e

volta com sete pedras nas mãos.

__Eu é que quero que você morra? Você mesmo vai se

matar seu cachorro! Você mesmo... E vamos acabar com

esse assunto aqui! Eu não sei por que você faz isso! Você

não precisa! Você vai se matar e vai acabar com as nossas

vidas! Eu trabalho pra dar tudo que eu posso pra vocês e

olha o que eu recebo em troca esse castigo. As pessoas me

olham como a mãe do dono do morro! Agora me responda

Você e dono de que? Em Michel, me fala! Você está

acabando com a sua mãe! Você está acabando com a sua

família! Agora cala essa sua boca e fica quieto se não eu

mesma vou te jogar lá fora, me escutou bem?

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Todos ficam em silêncio e Luísa vai pro quarto. Micaela

abraça o irmão que irritado pega o fuzil encostado na

parede e as pistolas em cima da mesa e volta pra rua.

Na casa de Melissa, todos tomam café e conversam

quando Melissa chega.

__Bom dia para todos. – Melissa

__Bom dia minha filha. Você vai sair? – Carmelita

__Vou à casa de minha tia. Por que algum problema? –

Melissa

Chega Otávio, pai de Melissa. Um empresário super, bem

sucedido. É sócio de uma dessas grandes empresas de

ônibus.

__Problema algum minha filha. A sua mãe só se preocupa

com Você. – Fala Otávio.

__ É querida... Eu só quero o seu bem. Ta ok? Quando

você chegar na sua tia, peça para ela me ligar.

__Ta bom. Eu dou o seu recado.

Ao chegar na casa de sua Tia Mirtes encontra com

Andressa.

Andressa a leva pra cozinha para tomar um café e lá as

duas ficam conversando.

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__O que houve? A Luisa não veio hoje? Pergunta Melissa

__Não... Hoje isso aqui vai virar uma bagunça.

Mirtes, mãe de Andressa entra na cozinha e pergunta

espantada:

__ Não tem café hoje? Cadê a Luisa?

__ Não apareceu até agora.

__ Meu Deus, será que aconteceu alguma coisa? Ela

nunca faltou.

__Ela tem telefone? – Andressa

__Não. Mas eu tenho o endereço dela. É melhor esperar

ela entrar em contato...

Melissa lembra do recado da mãe e fala pra tia:

__Ah, Minha mãe pedia pra senhora ligar pra ela.

__Vou ligar agora. Beijinho meninas...

Melissa dá mais uma golada no café e olha pra Andressa,

que parece estar pensando algo proibido.

Andressa olha as coisas de Luisa e acha o endereço dela.

Melissa vê a atitude estranha da prima, mas não entende o

que ela pretende.

__ O que você vai fazer com esse endereço? Pergunta

Melissa, já adivinhando o que a prima está planejando.

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__ Nós vamos lá, ué!

__Você ta maluca! Fazer o que lá?

__ Procurar a Luísa... E se aconteceu alguma coisa com a

coitada e ela precisa de ajuda? E também eu não vejo

problema nenhum em ir ao morro. Tantos amigos nossos

vão comprar droga e voltam inteiros. E afinal de contas

nós nunca fomos a um morro. Que oportunidade melhor

que essa? - Argumenta Andressa

__ Você é doida, mas parece ter razão. Vamos então...

Mais tarde, as duas resolvem ir ao morro. Chegando lá

elas se perdem, pois não estão acostumadas com o

ambiente aglomerado e cheio de caminhos apertados.

Muita gente pra lá e pra cá e isso as deixou tontas. As

pessoas olham pra elas, mas não falam nada por que logo

pensam que são patricinhas viciadas...

Enquanto elas caminham, escutam fogos e mais que

derrepente todos que estavam ali, somem. As mulheres, as

crianças, os velhos, todos... Parece mágica!

Em seguida tiros começam a serem disparados e elas

começam a correr desesperadas. Tudo parece cinza,

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coração disparado, boca seca, pensamento confuso, mas as

pernas não param de correr...

__ Ai, meu Deus! Ai, meu Deus do céu!

Ahhhhhhhhhhhhh...

__ Eu não quero morrer! O que eu vim fazer aqui, meu

Deus! – Melissa grita e chora ao mesmo tempo.

No meio daquela gritaria de rajadas que vem do “pé do

morro” elas continuam correndo. Logo que viram uma

viela dão de cara com Michel, que corre também, com o

coração na mão, pois sabia que se os “home” pegasse ele...

Já era! Mas algo estava incomodando Michel... Logo ele

descobriu... Eram os gritos de Melissa e Manoela.

__Para de gritar, porra! Para de gritar! – Michel esbraveja.

Nesse momento eles passam a correr juntos. Sempre

subindo o morro, por que a polícia está na parte baixa. No

meio daquela adrenalina Michel fala com elas:

__Entra aqui! Anda, anda. Pô, o que vocês estão querendo

aqui? Ficam ai gritando igual umas malucas.

__Maluco e Você! – Andressa responde quase sem voz.

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Nesse momento todos ficam em silêncio... Logo os tiros

cessam. Parece ser mais um daqueles alarmes falsos. A

polícia não subiu o morro, só ficou dando tiro lá de baixo.

__Será que acabou? Já podemos sair? Melissa pergunta

com a voz tremula.

Michel pega o rádio transmissor e se comunica com seu

bando...

__ O que houve irmão? Que foi isso aí baixo?

Uma voz rouca e engasgada responde...

__ Ta tranquilo patrão! Os cachorros só latiram, por que

morder é difícil! Aqui a chapa é quente! Quem sabe é nós!

__Valeu irmão! Atividade aí valeu! – Michel responde

aliviado.

Melissa fica paralisada olhando para Michel. No meio

dela, ninguém fala assim... Dessa forma... Ela olha cada

detalhe de Michel, as roupas, o cabelo, os cordões

“grossérrimos” de ouro e principalmente a sua postura,

muito marrento! Naquele segundo ela se sentiu protegida

por ele... E sentiu um calor que vinha lá de baixo. Sabe

aquele lugar lá em baixo?

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Logo ele se arrumou atravessou o fuzil e olhou pra melissa

com aquele olhar de quem está comendo a pessoa.

__Pode ir! Já ta tranqüilo!

Andressa mais que rapidamente segura a mão de Melissa e

sai puxando ela.

Logo elas encontram a casa de Luzia, logicamente que

com a ajuda de algumas crianças que estavam ali.

Andressa bate na porta com um certo desespero.

__ Luisa, abre a porta, por favor!

__ Minhas filhas, o que vocês estão fazendo aqui? – Luisa

abre a porta e fica sem entender nada.

__ A minha mãe estava muito preocupada então eu resolvi

te procurar.

__Mais minha filha Você não sabe andar no morro. Vocês

chegaram agora? E esses tiros? Como vocês chegaram

aqui?

__ Quem salvou a gente foi um bandido que estava

correndo da policia.

__ Vixe nossa senhora, a sua mãe vai me matar! Se ela

souber que você está aqui no meio de um tiroteio... Mas de

qualquer maneira vamos sentar que a casa e de pobre, mas

cabe todos que são amigos.