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“LINGUAGENS VISUAIS SOBRE O INIMIGO”: QUANDO A PROPAGANDA PUBLICITÁRIA IRRADIA UMA IDEOLOGIA REPRESSIVA Adriana Picheco Rolim Universidade do Vale do Rio dos Sinos- UNISINOS Resumo: O combate ao inimigo interno se deu por variadas práticas, dentre as quais a irradiação de propagandas relacionadas a ideologia da subversãoe do terrorismo, durante o período da ditadura civil- militar no Brasil, entre 1969 e 1975. A ideologia do inimigo, cuja existência deveria ser erradicada do meio social, perpassou a questão policial e foi difundida pela mídia de então, pela exposição de indivíduos considerados “terroristas”. Concomitantemente os periódicos adentraram os lares brasileiros com anúncios que se relacionaram com esta ideologia. Este trabalho busca analisar as conexões entre duas propagandas publicitárias para o consumo e, que se utilizaram de uma linguagem simbólica e reprodutora da ideologia do regime em questão, difundidas pela Folha de S. Paulo e pela revista Veja, através de imagens e de slogans apresentados pelos anúncios em suas páginas, estabelecendo uma ligação entre estes e o conteúdo léxico e imagético das campanhas contra o “terrorismo”. Palavras-chave: mídia impressa- ditadura -terrorismo-repressão Ao longo da implementação das práticas repressivas no Brasil, a partir dos anos sessenta, encontramos uma estruturada rede de ações e metodologias que, entre outras normativas, aproveitou-se de uma produção iconográfica e léxica, como material de divulgação das ações de elementos considerados “terroristas”, dentro de normativas definidas pela ideologia de segurança nacional. Além destas ações, campanhas foram veiculadas na mídia referentes as questões de elevação do espirito cívico e patriótico, contemplando “um nítido padrão pedagógico, portanto, criador de uma pauta de preocupações cívicas, e que pretendia estabelecer um tipo de cidadania decorativa” (FICO, 1997, p. 93). A sociedade “assistiu”, apesar de um apoio deliberado, aos eventos que se seguiram após a tomada de poder pelos militares em 1964 que, ao longo dos anos mostrou-se oscilante entre conter o comunismo de modo violento, cerceando as liberdades políticas e individuais, desenvolver economicamente o país, educar a população segundo a sua cartilha e manter uma certa legitimidade. A fim de convencer e cooptar esta mesma sociedade, os órgãos imbuídos na segurança nacional, promoveram a construção da imagem do inimigo interno, uma personificação do elemento que deveria ser combatido. Ao cidadão comum, foi destinado o conhecimento e reconhecimento daquele indivíduo chamado de “terrorista e subversivo”. A face do “terrorismo” foi

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“LINGUAGENS VISUAIS SOBRE O INIMIGO”: QUANDO A PROPAGANDA

PUBLICITÁRIA IRRADIA UMA IDEOLOGIA REPRESSIVA

Adriana Picheco Rolim

Universidade do Vale do Rio dos Sinos- UNISINOS

Resumo: O combate ao inimigo interno se deu por variadas práticas, dentre as quais a irradiação de

propagandas relacionadas a ideologia da “subversão” e do “terrorismo”, durante o período da ditadura civil-

militar no Brasil, entre 1969 e 1975. A ideologia do inimigo, cuja existência deveria ser erradicada do meio

social, perpassou a questão policial e foi difundida pela mídia de então, pela exposição de indivíduos

considerados “terroristas”. Concomitantemente os periódicos adentraram os lares brasileiros com anúncios

que se relacionaram com esta ideologia. Este trabalho busca analisar as conexões entre duas propagandas

publicitárias para o consumo e, que se utilizaram de uma linguagem simbólica e reprodutora da ideologia

do regime em questão, difundidas pela Folha de S. Paulo e pela revista Veja, através de imagens e de

slogans apresentados pelos anúncios em suas páginas, estabelecendo uma ligação entre estes e o conteúdo

léxico e imagético das campanhas contra o “terrorismo”.

Palavras-chave: mídia impressa- ditadura -terrorismo-repressão

Ao longo da implementação das práticas repressivas no Brasil, a partir dos anos

sessenta, encontramos uma estruturada rede de ações e metodologias que, entre outras

normativas, aproveitou-se de uma produção iconográfica e léxica, como material de

divulgação das ações de elementos considerados “terroristas”, dentro de normativas

definidas pela ideologia de segurança nacional. Além destas ações, campanhas foram

veiculadas na mídia referentes as questões de elevação do espirito cívico e patriótico,

contemplando “um nítido padrão pedagógico, portanto, criador de uma pauta de

preocupações cívicas, e que pretendia estabelecer um tipo de cidadania decorativa”

(FICO, 1997, p. 93).

A sociedade “assistiu”, apesar de um apoio deliberado, aos eventos que se

seguiram após a tomada de poder pelos militares em 1964 que, ao longo dos anos

mostrou-se oscilante entre conter o comunismo de modo violento, cerceando as

liberdades políticas e individuais, desenvolver economicamente o país, educar a

população segundo a sua cartilha e manter uma certa legitimidade. A fim de convencer

e cooptar esta mesma sociedade, os órgãos imbuídos na segurança nacional, promoveram

a construção da imagem do inimigo interno, uma personificação do elemento que deveria

ser combatido. Ao cidadão comum, foi destinado o conhecimento e reconhecimento

daquele indivíduo chamado de “terrorista e subversivo”. A face do “terrorismo” foi

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proposto por uma série de efemérides irradiadas pela imprensa e pela produção e

distribuição de séries de cartazes de elementos procurados por subversão. Os cartazes

exibiam fotografias, nomes e codinomes, siglas de organizações clandestinas e slogans

de aviso, de colaboração e de alerta, cuja finalidade consistia em uma adesão às premissas

do regime.

Dentre as ferramentas midiáticas, nos deparamos com simples propaganda

publicitária. Nela é possível apresentar um produto, uma imagem, uma ideologia, um

partido político, enfim há uma exposição de algo que se quer “vender”. A propaganda

pode se utilizar de slogans publicitários, políticos e ideológicos, seguindo diferentes

inspirações. Pelo prisma ideológico e, em um contexto ditatorial autoritário em 1969, está

a questão do inimigo interno e o seguimento da Doutrina de Segurança Nacional que, se

impuseram de uma certa maneira, em vários setores relacionados à vida cotidiana do

cidadão, assim como, se apropriaram de práticas censuradoras e reguladoras dos meios

de comunicação.

As efemérides, nos periódicos, se mostravam herméticas e repetitivas quando

tratavam do inimigo interno, todavia, slogans publicitários adentraram os lares brasileiros

se utilizando de uma mesma terminologia ideológica, utilizada com fins de adesão e

cooperação com os órgãos repressivos, através de anúncios não relacionados com o

combate à subversão, mas que relembraram com seus slogans e imagens, ações que na

prática se mostraram corriqueiras. Segundo Iasbeck:

A conjunção imagem/texto na publicidade ganha novo contorno quando

entendemos, ainda, que o texto escrito não é só capaz de veicular imagem por

metáforas ou descrições (como diz Mitchell), mas também possui a

competência de deflagar imagens mentais, imagens estas que podem ser

correspondidas ou não, em diversos graus de intensidade e identidade, por

aquelas que nos são sugeridas. Nessa gradação de afinidade e diferenças, a

leitura pode proporcionar satisfação ou ansiedade, acomodação ou

instigamento; pode confirmar nossas expectativas (confirmação esta que será

estendida ao produto anunciado) ou frustrá-las (frustração que poderá ser

amenizada pela adesão do produto) gerando surpresa e novidade. Também aí

verificamos a interdependência, a interação produtiva da relação texto/imagem

aos propósitos da publicidade.

Este trabalho busca analisar duas fontes midiáticas, cujo conteúdo léxico se

relaciona às práticas de campanhas repressivas destinadas ao combate do inimigo interno.

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A partir daí, vamos analisar o primeiro anúncio publicitário referente a um aparelho de

televisão produzido pela empresa Philips, onde é possível averiguar o uso do termo

“tortura”, em seu slogan título. O segundo anúncio, é de um curso preparatório para a

aprovação no concurso vestibular, o CPV (Curso de Preparação Vestibular), onde é

possível verificar o uso do termo “Procure”, bastante utilizado nos cartazes de “terroristas

procurados”. Entretanto, não somente o léxico é compatível, a composição imagética

complementa esta similaridade. Ambos foram irradiadas pelos periódicos Veja e Folha

de S. Paulo, nos anos de 1969 e de 1972, respectivamente.

A revista Veja lançou em novembro de 1969, uma campanha usufruindo de uma

composição de imagem e de texto. Na sua edição de nº 63, do dia 19, no respectivo mês

e ano, nos deparamos com esta campanha publicitária referente a um aparelho de televisão

fabricado pela empresa Philips, cuja chamada principal, ou slogan título, fora construído

da seguinte forma: “Na câmara de torturas o TV Philips 550 resistiu a tudo” (VEJA, 1969,

p. 20-21). O anúncio ocupa duas páginas inteiras da revista, sendo que a imagem do

aparelho de televisão encontra-se no lado direito do anúncio, ocupando só ela, uma

página. No lado esquerdo, no chão azul no qual o aparelho descansa, encontramos a

imagem de um tipo de “chicote”, cujo tamanho em termos reais, é proporcional ao

aparelho e, acima deste “chicote”, está o slogan e o texto referente à campanha. A escolha

deste objeto, comumente utilizado para infringir um castigo, ou, para adestrar animais, se

relaciona com o produto que está em destaque para o consumo, exatamente por definir

que este fora castigado. As cores das letras no slogan, são o verde e o branco, sendo o

fundo escuro, um tom de preto noite. Abaixo dele podemos aferir o texto da campanha,

apresentando uma série de itens numerados de um a oito, que estabelecem as etapas dos

testes, ao qual o aparelho foi submetido e que, por fim, passadas por todas estas etapas

acabou por demonstrar total resistência.

Abaixo a imagem da campanha do aparelho de televisão Philips.

Figura 1

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Fonte: Revista Veja. Edição 63

O conteúdo do texto, sobre as etapas do teste de resistência, é bastante longo. Ele

inicia, discorrendo sobre as qualidades do produto e das vantagens do consumidor em

adquiri-lo. No decorrer são especificadas as oito etapas pelas quais o televisor passou,

sendo elas: teste tropical, de temperatura; teste de vida, qualidade; teste de vida,

funcionamento por longas horas; teste de vibração, prova de resistência; teste de queda,

queda livre e golpes repetidos; teste de impacto, golpes repetidos; teste de rotação, giros

contínuos no seletor de canais; teste de implosão, impacto de uma esfera de aço no tubo

de imagem para testar a segurança contra estilhaçamento. Portanto podemos entender que

o aparelho de televisão em questão, foi bastante “torturado”, até provar a sua resistência.

Atentamos ao ano da divulgação desta campanha e a situação em que o país se

encontrava, assim podemos visibilizar, a olhos críticos, se a ironia deste anúncio se propôs

a confirmar as denúncias de tortura que vinham se concretizando de outras maneiras e,

assim driblar a censura, ou, por outro viés, advertia aqueles simpatizantes dos contra o

regime, sobre os métodos empregados pela repressão. Para tanto precisamos compreender

o nascimento deste periódico.

Veja, fundada poucos meses antes do AI-5, sob o comando do diretor de

redação Mino Carta (considerado um jornalista extremamente crítico), adotou

de início uma postura confrontante com o regime, mais especificamente na

questão dos direitos humanos, o que levou ao aumento da censura. A revista

era uma pedra no sapato dos militares. Além da censura, entre os métodos de

coerção da imprensa estava a pressão sobre as empresas para demitir os

jornalistas non gratae, acusados de serem comunistas e subversivos. Mino

Carta fico na mira dos militares que pediam sua cabeça aos Civita. Carta

resistiu até o começo de 1976, quando se desentendeu com os donos da Abril.

O jornalista relata artimanhas que Victor e Roberto Civita teriam usado para

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afastá-lo da direção de Veja, atendendo aos pedidos do ministro da justiça

Armando Falcão, um representante da “linha dura” no governo (PÁDUA, 2013

p. 5).

Assim sendo, percebemos que a revista, quando é lançada, tem um

posicionamento contrário ao regime autoritário e ditatorial, pelo menos no confere ao

início do seu lançamento, posto que, censurada e sofrendo certa pressão, esta acabou por

ceder e adequar-se às premissas do regime “linha-dura”1. A campanha para a “TV

Philips”, que não possui a assinatura de uma agência de publicidade, algo que não era

incomum naquela época. Ela foi veiculada em fins de 1969, mais precisamente em

novembro, quinze dias após a morte do líder da Ação Libertadora Nacional, a ALN,

Carlos Marighella e, sete dias após a Veja dedicar a ele, a capa e uma extensa reportagem

sobre o episódio.

Outra questão é o decreto do Ato Institucional de nº 5, em fins de 1969, onde as

últimas centelhas de liberdades individuais e de expressão se obscureceram. Os meios de

comunicação, além da presença de um censor, um funcionário a serviço do regime com

função de censurar o conteúdo a ser veiculado dentro das instituições midiáticas, haviam

aqueles colaboradores e seguidores da ideologia do regime, dispostos a pressionar e

delatar profissionais que demonstrassem inclinações ou aptidões “comunistas”. Assim

sendo, é possível que a campanha publicitária supracitada, possa ser uma maneira irônica

de denúncia das práticas violentas utilizadas pela repressão, no caso a tortura. Bem como,

pode querer demonstrar uma tímida resistência quanto a imposição do que podia ou não

ser publicado. Portanto, a ideia é a seguinte, se somos coibidos, censurados e torturados,

vamos resistir sem esmorecer.

A questão pode não estar ligada somente a uma apologia sobre tortura, mas antes

a uma postura de denúncia ou de escárnio, através do irônico. Se por ventura, nem todos

os que não concordavam com a implementação de um regime autoritário pegaram em

armas para, de certa forma, para combater a ditadura, isto não os destitui por outras formas

de resistência, inspiradas por outras ideias. Quando nos referimos ao período, percebemos

uma ligação de luta ao retorno do Estado democrático, mas sabemos que grupos das

1 Linha militar radical que defendam o endurecimento do regime.

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organizações de esquerda revolucionárias, não pretendiam consolidar a democracia nos

moldes a que entendemos e, sim, implementar um sistema próprio, com conexões

socialistas de diversas vertentes. Necessariamente resistir ou denunciar não se restringia

somente, a grupos clandestinos ou proscritos, outras formas de se lutar contra o sistema

imposto eram articuladas, mesmo que não fossem compatíveis, cada qual a sua maneira.

Quanto ao outro anúncio, na Folha de S. Paulo, este periódico tem uma outra

história, mais longa que a revista Veja, cujas origens remontam aos idos de 1921 e que,

ao longo dos anos, sofreu diversas mudanças de nome, de editores e de posicionamentos.

O início da década de 1960 assistiu a profundas mudanças nas folhas. Uma

delas, de ordem mais formal, foi a mudança de nome para Folha de S.

Paulo. Outra foi a greve de jornalistas em 1961 e, finalmente, a mudança da

direção da empresa em 13 de agosto de 1962. Nessa data Nabantino Ramos foi

substituído por Otávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, que

assumiram a direção da empresa. O cargo de diretor de redação foi ocupado

por José Reis, que aí permaneceria até 1967.A linha editorial a partir de então

tornou-se francamente antijanguista e pró-mobilização para o movimento que

culminou com os acontecimentos de 1964. Mas a grande mudança ocorreu,

exatamente, em nível empresarial. Com uma conduta empresarialmente

agressiva, a Folha de S. Paulo ampliou substancialmente seu público leitor a

partir de mudanças no sistema de distribuição. A aquisição de frota própria

possibilitou que ela conquistasse definitivamente o público leitor interiorano,

por lá chegar muito mais cedo do que seus concorrentes. Uma revolução

tecnológica na área da impressão consolidou de vez o empreendimento. Assim

é que, um ano após a posse de Frias e Caldeira Filho, a Folha de S. Paulo se

transformou no jornal de maior circulação paga no Brasil, conforme dados por

ele apresentados na edição de 4 de agosto de 1963 (FUNDAÇÃO GETÚLIO

VARGAS).

Assim percebemos a trajetória deste periódico que adentrou os anos setenta

estruturado de forma diversa à sua proposta inicial. Porém, apesar de tudo, ambos os

periódicos atuavam como reprodutores do discurso oficial advindo dos órgãos de

segurança e informação a serviço do regime.

A Folha de S. Paulo se encontrava à pleno vapor em 1972 e, publicou uma

campanha referente a um curso preparatório para o vestibular, cujo slogan título era:

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“Procure esses caras. Daqui a 4 anos êles vão estar em ponto de bala”. O conteúdo léxico

ocupa um espaço pequeno no anúncio em relação ao conjunto imagético. Este se constitui

basicamente de várias reproduções fotográficas de indivíduos do tipo 3X4, aparentemente

aleatórias, fotografias utilizadas em documentos para identificação, como carteiras de

trabalho ou de identidade. Ao todo a imagem reproduz um quadro, composto de cento e

dez imagens de pessoas de ambos os sexos, feminino e masculino, distribuídas em onze

linhas e dez colunas, ocupando estrategicamente todo o espaço do anúncio.

Pensando em anúncios com finalidade de consumo, este no caso não chama a

atenção de início para o produto. O slogan título e o texto contendo a mensagem estão

alocados no canto direito do anúncio, em uma proporção que os destitui de uma leitura

imediata. Se o slogan “objetiva o incitamento de um grande número de pessoas,

compelindo-as a um comportamento ativo, não necessariamente autodeliberado, mas

sempre favorável ao consumo” (IASBECK, 2008, p.107), aqui esta proposição não

confere, visto que, o conjunto de imagens chama a atenção do receptor de imediato, em

detrimento de uma leitura inicial do conteúdo léxico. Não há uma explicação de início,

sobre a que vem o anúncio, a imagem chama a atenção do olhar que, consequentemente

vai buscar no texto o seu significado. Só então, após a leitura, o receptor estará inteirado

do tipo de produto que está à venda. Este anúncio, em sua totalidade, ocupa um pouco

mais de meia página e, é um tanto rudimentar, pois se utiliza de reproduções de imagens

sem tratamento adequado e de um conteúdo léxico bastante explicativo, onde é possível

conferir palavras abreviadas, como por exemplo: “V.”, para “você”.

Estamos nos referindo a uma tipologia publicitária dos anos 1960 e 1970, muito

diferente da produzida na atualidade. Mesmo assim, segundo Iasbeck (2009, p. 124):

O discurso publicitário é um espaço privilegiado através do qual grupos sociais

se enunciam. Em seus diversos textos, o que está em jogo é muito menos o

produto anunciado do que a organização de uma cultura em torno de valores

que lhe são caros e no repúdio a outros tantos que constituem ameaça à

sustentação de seu corpo ideológico. Os signos de uma cultura traduzem suas

expectativas e ansiedades, seus temores e suas convicções.

O que ocorre com este anúncio é sua composição imagética e léxica, que se

assemelha aos cartazes de “terroristas e procurados”, produzidos no final dos anos

sessenta e início dos setenta, cujo objetivo era a afixação em locais de grande movimento

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de público a fim de fomentar a delação. A campanha da Folha foi veiculada no ano de

1972, quando os cartazes já estavam em circulação, portanto havia a probabilidade de

uma grande parcela da população ter conhecimento dos mesmos. O meio social já se

acostumara com os cartazes e com a difusão de notícias envolvendo os inimigos

“terroristas”.

Os periódicos à época, divulgaram a procura e a eliminação destes elementos,

além de irradiar um panorama referente à situação das organizações clandestinas e dos

seus membros. Esta exposição proporcionou o conhecimento da ameaça real do inimigo

interno, proporcionando ao leitor acompanhar o desenrolar das ações em relação a ele,

como as suas mortes em confrontos com forças de segurança, os famosos “tiroteios”, além

das suas prisões e do estouro dos seus “aparelhos”2.

Abaixo podemos conferir um exemplar de um cartaz e o anúncio em questão.

Figura 2

Fonte: Gilson Sampaio

Figura 3

2 Termo utilizado por grupos clandestinos, referente ao local em que seus integrantes se escondiam.

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Fonte: Folha de S. Paulo

No anúncio acima, o texto que segue logo abaixo do slogan, principia com um

aviso: “entrar na Getúlio não é moleza”. Ele segue afirmando que, somente duzentas

matriculas puderam ser feitas e parabeniza aqueles que conseguiram. Mas a frase que nos

chama a atenção é: “êles vão ser os grandes procurados daqui a 4 anos” (FOLHA DE S.

PAULO, 1972, p. 9). No ano de 1972 os indivíduos que eram procurados eram aqueles

que se enquadravam nos crimes de “subversão”.

A palavra “procurado” ou “procura-se” estampava a maioria dos cartazes de

“terroristas” espalhados pelo país, buscando por informações sobre o paradeiro de

indivíduos não considerados como o futuro da nação. A contrapelo, o anúncio do CPV

demonstra que os procurados são aqueles que terão um futuro, vão crescer, estudar,

constituir família, enfim irão produzir para este futuro. Os procurados dos cartazes não

terão o mesmo destino, pois são bandidos prontos a atentar contra a vida da população. O

interessante é perceber que a linguagem escrita apresenta palavras que se desdobram em

algo considerado pejorativo para algo positivo.

Cada modalidade de slogan tem sua validade e sua eficiência. O que vai

determinar a forma ideal de veiculação é a análise do ponto de cruzamento dos

interesses do anunciante, das possibilidades de linguagem da mídia eleita para

veiculação, dos recursos tecnológicos disponíveis aos produtores e, sobretudo,

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da pertinência das associações propostas pelo sintagma em relação ao objetivo

preestabelecido para o anúncio (IASBECK, 2009, p. 177).

Os indivíduos envolvidos com o “terrorismo” provavelmente não teriam a

oportunidade de estar nos melhores cargos administrativos do país, mesmo porque,

muitos foram expulsos de seus cursos universitários ou impedidos de trabalhar. Eles não

estavam em “ponto de bala”, eram o alvo da bala. Portanto percebemos duas situações

adversas, convivendo em um mesmo momento e divulgadas a um mesmo tempo. O

período de veiculação do anúncio condiz com as provas do concurso vestibular e, além

do CPV, outros cursos preparatórios, os chamados “cursinhos”, igualmente tem espaço

no periódico supracitado. A Folha seguidamente exibia notícias referentes aos elementos

ditos “terroristas”, porém no dia seis de janeiro de 1972, data da veiculação do anúncio

do CPV, não encontramos notícia relativa ao eles, nem no dia que antecede e nem no que

precede o anúncio.

Os anúncios elencados aqui, da Folha e da Veja, não fazem referência

especificadamente ao terrorismo, mas aos métodos empregados para combate-lo, pois, os

seus conteúdos léxico e imagético, nos remetem diretamente a eles. Falar em tortura no

ano de 1969, seria um tanto arriscado, principalmente pela imprensa, visto que já haviam

denúncias relacionadas a esta prática e o regime não iria querer evocá-la em um meio

midiático. No final do referido ano podemos dizer que, as liberdades de expressão e

pessoais se encontravam enfraquecidas e, o que seria considerado o mais truculento dos

anos ditatoriais, apenas se iniciava. Em 1972, reconhecer pessoas em imagens de

fotografias do tipo identificação era algo que havia sido proposto nos cartazes de

“terroristas”, determinadas pessoas escolhidas pela repressão.

Ao longo da ditadura civil-militar as práticas atribuídas ao aparato repressivo são

muitas. Entre elas a imprensa serviu como reprodutora de um discurso bastante excessivo

sobre o combate e eliminação dos militantes da esquerda revolucionária, os “comunistas”.

Muitos deles, em retratos 3X4, estamparam as páginas dos jornais como elementos

procurados por “terrorismo”. Contudo, além da procura, foram utilizados também, para

ilustrar a sua própria morte, quase sempre ocorridas nos famosos “tiroteios”. Os

periódicos da época, além da própria Folha de S. Paulo, reproduziram a ideologia do

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combate à subversão, irradiando através das suas páginas uma miríade de ações

criminosas feitas por estes indivíduos, expostos em fichas pessoais e chamados de

bandidos.

Se os “tiroteios” eram confrontos armados com forças da segurança, portanto estes

“terroristas” morriam em decorrência do uso de armas de fogo por parte de agentes da

polícia, ou seja, eram atingidos por balas de revólver. Este fato, nos remete novamente ao

anúncio da Folha, pois os candidatos à vaga nas universidades que cursarem o CPV, “vão

estar em ponto de bala”, uma expressão coloquial que quer dizer pronto, preparado para

a ação3, além de prometer, em outra frase ao final do texto do anúncio, que: “em julho V.

também estará no listão dos procurados”. Podemos caracterizar estas frases no referido

anúncio, como pequenos slogans que, podem ser chamados de “pedagógicos”, segundo

Reboul (1975, p. 108):

Os slogans pedagógicos são portanto ideológicos, no sentido de que são

espontâneos, duráveis e que justificam uma prática coletiva. São slogans,

porque a verdade que enunciam é sumária, tão dogmática quanto ambígua e

porque são autodissimuladores: não são tomados como slogans, mas como

evidências.

Se o anúncio supracitado quer “educar” os jovens para o caminho da universidade

e formar futuros profissionais, este está mandando um aviso àqueles que não se

adequarem à esta orientação. A mensagem, ao mesmo tempo em que apresenta as

vantagens em se preparar bem para passar no concurso vestibular, também demonstra que

sem isto, o candidato não constará na lista dos procurados, ao menos não nesta, talvez em

outra lista, a dos procurados por subversão. A normativa em fomentar o estudo para se

obter um cargo importante no meio corporativo, afinal o anúncio faz menção aos “cargos

administrativos mais invejados do país”, tem inspirações positivistas: “o progresso, a

ciência, a indústria” (COMBLIN, 1977, p.153).

Quanto às imagens, sob a ótica de uma cultura visual, uma fotografia destitui

leituras mais elaboradas, em que “os objetos visuais, os objetos investidos de um valor de

figurabilidade, desenvolvem toda a sua eficácia em lançar pontes múltiplas entre ordens

3 Disponível em: https://www.dicionarioinformal.com.br/em+ponto+de+bala/. Acesso em 21 jun. 2018.

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de realidades” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 46), sobretudo quando da complementação

de slogans que elevaram o teor a mensagem a um nível mais compreensivo. A possível

conexão entre um anúncio publicitário de um produto para consumo e a campanha de

caça e eliminação do inimigo interno, propõe uma miríade de possibilidades com

variantes que, podem estabelecer uma amplitude sobre a relação dos periódicos com as

redes e metodologias repressivas e o seu enlace ao tecido social.

A escolha por certas imagens inspira múltiplas observações, Didi-Huberman

(2010, p. 11) ressalta que, “a marca histórica das imagens [...] não indica apenas que elas

pertencem a uma época determinada, indica sobretudo que elas só chegam à legibilidade

[...] numa época determinada”. Os resultados destas escolhas nos sugerem que a difusão

de determinadas imagens no âmbito público, possibilitam irradiar ideologias que

imponham uma certa sistemática de ações e modificam as estruturas do meio social,

transpondo as barreiras da normalidade, se aproveitando da “coesão forçada da

sociedade" (PADRÓS, 2014, p. 21).

Este estudo se propôs analisar as relações que envolveram duas mídias

publicitárias, cujo intuito foi perceber o contexto das suas produções. Se tiveram ou não

a intenção de fomentar a repressão, de resistir ou de denunciá-las, o importante é atribuir

a elas as conexões necessárias para inseri-las no contexto de uma violência extremada,

utilizada pelo regime autoritário no Brasil. Isto nos é dado pela forma como foram

concebidos os anúncios, cujo período entre 1969 e 1972 era, no mínimo, delicado em

relação à expressão de ideias. É possível inferir que, sendo uma propaganda relacionada

à venda de determinados produtos, cada qual ao seu modo, esta tenha passado

desapercebida pela censura, ou simplesmente, ela enxergou neste fator, uma forma de

repassar uma mensagem, um alerta em relação a falta de adesão a ideologia vigente.

REFERÊNCAS:

COMBLIN, Pe. Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: o poder militar na

América Latina. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1977.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem. São Paulo: Editora 34, 2013.

________________O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.

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FICO, Carlos. Reinventando o Otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no

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