linguagens: prÁticas, discursos e mediaÇÕes

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Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Departamento de Ciências Humanas – DCH I Universidade do Estado da Bahia – UNEB LINGUAGENS: PRÁTICAS, DISCURSOS E MEDIAÇÕES junho/2008

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Page 1: LINGUAGENS: PRÁTICAS, DISCURSOS E MEDIAÇÕES

Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Departamento de Ciências Humanas – DCH I

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

LINGUAGENS: PRÁTICAS, DISCURSOS E

MEDIAÇÕES

junho/2008

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

REITOR Lourisvaldo Valentim da Silva VICE-REITORA Amélia Tereza Santa Rosa Maraux PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO – PROGRAD Mônica Moreira Oliveira Torres PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO – PPG Wilson Roberto de Mattos PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO – PROEX Adriana Santos Marmori Lima PRÓ-REITORIA DE ADMINISTRAÇÃO – PROAD Mirian de Almeida Costa

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS – PPGEL

Profa. Dra. Márcia Rios da Silva Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Prof. Dr. João Antônio de Santana Neto Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Profa. Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro Coordenadora da Linha de Pesquisa Leitura Literatura e Identidades Profa. Dra. Jaciara Ornélia Nogueira de Oliveira Coordenadora da Linha Pesquisa Linguagens, Discurso e Sociedade

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REVISTA TABULEIRO DE LETRAS Editor-Chefe: Prof. Luciano Rodrigues Lima COMISSÃO EXECUTIVA Profa. Dra. Lígia Pellon de Lima Bulhões Prof. Dr. Luciano Rodrigues Lima Profa. Dra. Norma da Silva Lopes Prof. Dr. Sílvio Roberto dos Santos Oliveira Profa. Dra.Verbena Maria Rocha Cordeiro Prof. Marcos Antonio Maia Vilela (Mestrando PPGEL – UNEB) CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Alan Norman Baxter (UMAC - Universidade de Macau) Profa. Dra. Elza Miné (USP) Profa. Dra. Elizabeth Ramos (UFBA) Profa. Dra. Emília Helena Portella M. de Souza (UFBA) Profa. Dra. Esther Gomes de Oliveira (UEL) Profa. Dra. Ceila Ferreira Martins (UFF) Prof. Dr. César Nardelli Cambraia (UFMG) Profa Dra. Denise Barata (UFRJ) Prof. Dr. Diógenes Cândido de Lima (UESB) Prof. Dr. José Augusto Costa Avancini (UFRGS) Profa. Dra. Vera Teixeira de Aguiar (PUC - RS) Prof. Dr. Leopoldo Comitti (UFOP) Profa. Dra. Maria Célia Lima-Hernandes (USP) Profa. Dra. Maria da Conceição Fonseca da Silva (UESB) Profa. Dra. Maria de Lourdes Crispim (UNL - Universidade Nova de Lisboa) Profa. Dra. Maria Teresa Gonçalves (UFRJ) Prof. Dr. Sebastião Carlos Leite Gonçalves (UNESP) Profa. Dra. Tânia Maria Alckimim (UNICAMP)

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APRESENTAÇÃO

Prezados leitores

No ar, a revista eletrônica TABULEIRO DE LETRAS, criada pelo Programa de Pós-

Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia.

Com seus tabuleiros, as “baianas do acarajé”, vendedoras de quitutes da culinária

afrobaiana, encontram-se espalhadas pela cidade do Salvador. Essas iguarias, preparadas em

segredo, ficam expostas no tabuleiro, como um mosaico, cujas peças serão compostas por

seus apreciadores.

Como um mosaico, a revista TABULEIRO DE LETRAS abriga textos de autores,

com filiações teóricas distintas, que concebem a linguagem em sua heterogeneidade: de

sujeitos, práticas e valores.

As peças desse TABULEIRO devem montar um jogo do conhecimento que

desestabilize as fronteiras rígidas dos campos disciplinares, pelo entendimento de que os

saberes estão em movimento constante.

TABULEIRO DE LETRAS: signos, dobras da cultura em espaços de troca e

negociação.

Márcia Rios da Silva

Coordenadora do PPGEL

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LINGUAGENS: PRÁTICAS, DISCURSOS E MEDIAÇÕES

Editor-Chefe: Prof. Luciano Rodrigues Lima

SUMÁRIO

VOLUME 01 – junho/2008

I - O NUMERAL COMO FATOR DE PERSUASÃO NO DISCURSO DA PUBLICIDADE Esther Gomes de Oliveira - Universidade Estadual de Londrina (UEL) Suzete Silva Nascimento - Universidade Estadual de Londrina (UEL)

II - A LEITURA, O LEITOR E A ILUSÃO Elizabeth Gonzaga de Lima – Universidade Federal da Bahia (UFBA)

III - A PRESENÇA VIVA DA CULTURA AFRO NO SEMI-ÁRIDO BAIANO: RELIGIOSIDADE, CRENÇAS E TRADIÇÕES Lúcia Parcero – Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

IV - O VÍDEO POEMA COMO PERFORMANCE: MOVIMENTO E CORPOREIDADE VIRTUAL DA PALAVRA Luciano Rodrigues Lima - Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Universidade Federal da Bahia (UFBA)

V - ENTRE TRUTAS E PERIQUITOS:UM DIÁLOGO ENTRE SEAN O’FAOLAIN E GRACILIANO RAMOS Elizabeth Ramos - Universidade Federal da Bahia (UFBA)

VI - SOBRE A NECESSIDADE DA CAPACITAÇÃO DE PROFESSORES DE PORTUGUÊS Luciano Amaral Oliveira - Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

VII - O ONDE E SEUS CORRELATOS EM CORPUS DO SÉCULO XVII E XVIII Emília Helena Portella Monteiro de Souza - Universidade Federal da Bahia (UFBA)

VIII - MV BILL – O INTELECTUAL NEGRO NAS ESFERAS DA INSURGÊNCIA Sayonara Amaral – Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Departamento de Ciências Humanas – DCH I

O numeral como fator de persuasão no discurso da publicidade

Esther Gomes de Oliveira1

Suzete Silva Nascimento2

“Tudo é número”

(Pitágoras)

RESUMO: Neste trabalho, buscamos disseminar o projeto de pesquisa intitulado “Aspectos Gramaticais na Argumentação Publicitária”, fundamentado nas linhas teóricas da Semântica Argumentativa e da Lingüística Textual, em andamento no Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina. A publicidade é altamente argumentativa e utiliza as mais diversas técnicas para persuadir o interlocutor e garantir sua adesão ao jogo do discurso. Cada anunciante tenta ressaltar os aspectos positivos de seu produto, apelando para o uso de variados recursos lingüísticos e visuais. Hoje em dia é impossível imaginarmos um mundo sem publicidade, ela nos rodeia e já faz parte da nossa vida, desempenhando, muitas vezes, um papel decisivo em nossas opções e decisões do cotidiano. Acreditamos que, se o leitor compreender os mecanismos que subjazem na mensagem do anúncio, terá mais elementos para fazer uma leitura crítica e se deixar persuadir ou não. Neste artigo, objetivamos mostrar como o numeral, de modo geral, aceito como um dado informativo, preciso e de credibilidade, na propaganda, figura não só como importantíssima voz de autoridade, como também demarca o lugar de quantidade. Assim, os numerais, aparentemente objetivos, criam, no contexto discursivo, determinados efeitos de sentido que, de forma implícita, demonstram uma poderosa força argumentativa. Palavras-chave: Numeral; Lugar de quantidade; Argumentação; Publicidade. ABSTRACT: In this work, it is our goal to disseminate the research project entitled “Grammar Aspects in the Advertising Argumentation”, within the theoretical field of Argumentative Semantics and Textual Linguistics, which is being developed in the Department of Vernacular and Classic Letters of the State University of Londrina. The advertising discourse is highly argumentative and uses several argumentative techniques to persuade the interlocutor in order to guarantee his adhesion to the discoursive game. The announcer tries to point out the positive aspects of his product, and he appeals to the use of very persuasive visual and linguistic sources. Nowadays, it is quite impossible for us to think about living in a world without advertisement, it is surrounding us and it is part of our lives, realizing, a number of times, a decisive role in our options and daily decisions. We accept as true that, if the reader to be aware of these sources underneath the message of the announcement, he will have more elements to make a critical reading and he will permit himself to be persuaded or not. In this article, we objective to show how the number, generally accepted as an informative asset, accurate and trustworthy, in the advertisement, it figures not only as a very important voice of authority, but also, it

1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem e do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina, e-mail: [email protected] 2 Professora do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina, e-mail: [email protected]

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designates, in the discoursive context, the place of quantity. For this reason, the numbers, apparently objective, are able to create some sense effects that, in an implicit way, hold a subjective outstanding power. Key-words: Number; Place of quantity; Argumentation; Advertising.

1. INTRODUÇÃO

1.1.O texto publicitário

Os primeiros anúncios nasceram nas praças das antigas cidades. Nos ambientes

populosos dos mercados, nas praças onde o povo se reunia para comprar, vender e saber das

últimas novidades, começaram a circular os pregões dos vendedores de produtos artesanais ou

de safras agrícolas. E o modo, muitas vezes, exagerado dos vendedores, deu origem à

moderna publicidade. A bordo das revoluções tecnológicas, os reclames que atravessaram os

séculos, aprimoraram suas técnicas e seus veículos, tornando-se nos dias de hoje, universais,

dando origem a, praticamente, um único mercado mundial, onde as maiores corporações

globais demonstram compreender o planeta como uma única praça para seus produtos.

Para Japiassu (2007), os publicitários desenvolvem no acirrado mercado, atualmente, a

chamada “mídia criativa”, para nós, sinônimo de “marketing ferrenho”, atirado, astuto, que

tem de ser eficiente em todos os setores. É cada vez mais necessária a habilidade em

identificar novas tendências de consumo, apresentando ao mercado produtos certos, no

momento certo, no lugar certo. A propaganda3, portanto, torna-se um elemento crucial no

investimento das marcas que têm interesse em ampliar e manter suas participações em um

mercado extremamente concorrido. Mídia criativa subentende anúncios criativos que não

apenas propaguem o produto, mas chamem a atenção com recursos diferentes, capazes de

criar o desejo de consumo do produto ou serviço. Leymore (1982, p.381) refere-se a este

assunto da seguinte forma: 3 Há uma distinção entre os termos publicidade e propaganda. Neste artigo, usaremos ambos os termos indistintamente, com respaldo em Carvalho (2002 p. 10) que também os considera sinônimos: “o papel da publicidade, vista aqui como sinônimo de propaganda, é tão importante na sociedade atual, ocidentalizada e industrializada, que ela pode ser considerada a mola mestra das mudanças verificadas nas diversas esferas do comportamento e da mentalidade dos usuários/receptores”. [grifo nosso]

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The usual process of successful advertising begins with the lucky identification of consumer needs, on the basis of which the advertising campaign is built. The surface manifestations then project the claims, which correspond to the identified needs, e.g. is it fresh breath, is it the ring of confidence, mouth hygiene, anti-plaque or white teeth, which attract the consumer to different brands to toothpaste? The essence of persuasive advertising lies in the successful communication of such claims with the object of creating, maintaining or expanding the consumer markets in which it is utilized. Since the identification of the right claims are the basic building blocks of any good campaign, the research function tends to be well developed in the sophisticated advertising agencies.4

Nicolau (2005) afirma que, desta forma, quando lemos um anúncio, percebemos

apenas “a ponta do iceberg que está fora da água para ser visto. O que moveu sua criação,

seus objetivos e artifícios, forma a parte maior que está submersa”. A criação, em publicidade,

abrange toda uma trajetória que vai desde a necessidade do anunciante (lançar produto, vencer

concorrência, atrair pela promoção, manter estabilidade das vendas etc.), até a satisfação do

consumidor ao usufruir os benefícios anunciados. A principal virtude da publicidade,

atualmente, não está apenas em nos fazer perceber, de forma singular, o que o produto é ou

tem, mas em nos fazer sentir as qualidades do produto. Verificamos que o texto publicitário

moderno vende sonhos. Por esta razão, em nossa pesquisa, encontramos textos que pretendem

mexer com nossos operadores mentais, que brincam com nossa percepção, por meio de

sofisticados recursos lingüísticos.

Constatamos, também, o quanto os numerais estão presentes neste jogo com a nossa

mente. São numerosos os textos que oferecem dados numéricos, cuja apresentação sempre

pode levar às mais variadas conclusões, direcionando-nos para uma leitura em que o número

apresentado confere credibilidade ao que realmente intenciona: persuadir o consumidor de

que determinado produto pode “resolver” seus problemas, quaisquer que sejam eles.

4 “O processo normal de campanhas de sucesso começa com a feliz identificação das necessidades do consumidor, baseada na campanha em que o anúncio é construído. As manifestações aparentes, então, projetam as afirmações, que correspondem às necessidades identificadas, por exemplo, é o hálito fresco, o toque de confiança, a higiene bucal,a anti-placa ou os dentes brancos que atraem o consumidor para as diferentes marcas de creme dental? A essência da publicidade persuasiva está na comunicação de sucesso de tais afirmações com o objeto da criação, mantendo ou expandindo os mercados de consumo onde ela é utilizada. Desde que a identificação das afirmações corretas consistem nos fundamentos básicos de qualquer boa campanha, a função de pesquisa tende a ser bem desenvolvida em sofisticadas agências de publicidade”.[tradução nossa]

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Desta forma, pretendemos, neste artigo, examinar tal questão, partindo da premissa de

que os numerais, comumente aceitos como portadores de funções informativas, precisas e de

credibilidade, no contexto discursivo da propaganda comunicam outros efeitos de sentido,

pois um número que, à primeira vista, mostra-se objetivo, demonstra, de maneira implícita,

uma grande força argumentativa. Para tanto, inicialmente, buscamos compreender o que são

os números, de onde surgiram e quais são suas pretensas funções na sociedade.

1.2.Os numerais

Ifrah (1996), com esta reflexão inicia seu livro Os números: história de uma grande

invenção: “o uso dos algarismos 1,2,3,4,5,6,7,8,9,0 nos parece em geral tão evidente que

chegamos quase a considerá-lo como aptidão inata do ser humano, como algo que lhe

aconteceria do mesmo modo que andar ou falar”. Entretanto, como demonstra o autor ao

longo da obra, as origens dos números e da matemática quase se perdem nas névoas da

antigüidade pré-histórica (datam do começo da idade da pedra, o paleolítico),

conseqüentemente, são mais antigos que as mais antigas civilizações.

O homem difere de outros animais pela sua linguagem, cujo desenvolvimento foi

essencial para que surgisse o pensamento matemático abstrato. Contudo, para Boyer (1974,

p.03), palavras que exprimem idéias numéricas apareceram lentamente. Sinais para números,

provavelmente, precederam as palavras para números, isto é, houve uma tendência da

linguagem de se desenvolver do concreto para o abstrato. Muitas medidas de comprimento

ainda em uso atualmente, exemplificam esta noção – a altura de um cavalo é medida em

“palmos” e a palavra “pé” também deriva de uma parte do corpo.

Os milhares de anos que foram necessários para que o homem fizesse a distinção entre

os conceitos abstratos e as repetidas situações concretas mostram as dificuldades para se

estabelecer uma base, ainda muito primitiva, para a matemática. Durante as centenas de

milhares de anos, quando os homens ainda viviam em cavernas, em condições pouco

diferentes das dos animais, suas principais energias estavam voltadas para o processo

rudimentar de adquirir alimentos onde fosse possível coletá-los. Depois, com o início de uma

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considerável atividade comercial entre as diversas povoações, promovendo também a

formação da linguagem, houve um estímulo para a cristalização do conceito dos números, que

passaram a ser ordenados e agrupados em unidades cada vez maiores.

A matemática, no sentido moderno da palavra, nasceu na atmosfera das novas cidades

localizadas na costa oeste da Ásia Menor. Dentre os famosos matemáticos, a um deles, o

grego Tales de Mileto, considerado um dos “sete sábios” da Antigüidade, credita-se a

grandeza de ter sido o primeiro personagem conhecido a quem se associam descobertas

matemáticas, na primeira metade do século VI a.C. (EVES, 1995, p.94). Ele é considerado o

Pai da Geometria. Há, de igual modo, outro personagem célebre, Pitágoras de Samos, nascido

por volta de 572 a.C.e, provavelmente, discípulo de Tales.

A filosofia pitagórica baseava-se na suposição de que a causa última das várias

características do homem e da matéria são os números inteiros. Isso levava a uma exaltação

da aritmética (no sentido de teoria dos números) que, concomitantemente, à geometria, à

música e à astronomia, formavam as artes liberais básicas do programa de estudos

pitagóricos. Esse grupo de matérias tornou-se conhecido na Idade Média como quadrivium,

ao qual se acrescentava o trivium, formado pela gramática, lógica e retórica. Essas sete artes

liberais vieram a ser consideradas como bagagem cultural essencial de uma pessoa educada.

(op.cit., p. 97)

De acordo com Santos (1990, p.63), são famosas as frases que se acreditam ter sido

cunhadas por Pitágoras, hoje, considerado o Pai da Matemática:

Arithmou dé te pant’ epeoiken

(Tudo está arranjado (arrumado, construído) segundo (pelo) número – Frase atribuída a

Pitágoras, segundo Aristóxeno de Tarento).

Pythagóras panta ta prágmata apeikathôs tois arithmois

(Para Pitágoras todas as coisas copiam (são modeladas, copiadas por) o número – Frase de

Pitágoras, citada por Platão).

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Panta ta gignoskómena árithmòn exonti

(Todas as coisas se tornam conhecidas pelos números – Frag. 4 de Filolau)

A palavra “número” vem do grego némô, significando dividir, de onde o latim:

numerus e o italiano numero. E, para a nossa civilização, tecnicista e científica tornou-se

hábito considerar os “números gregos”, abstrações intelectuais, que são usados como

instrumentos convencionais de cálculo, medida ou organização e, se presentificam, na maior

parte das atividades de nossa vida cotidiana. A criação e o acúmulo, em quantidades cada vez

maiores, de bens de consumo, também contribuem para dar ao número uma imagem de

onipotência e onipresença.

É possível, ainda, afirmar que a ciência, sobre o qual todo o pilar da tecnologia

(portanto, da indústria) está contido, seria praticamente nula sem a presença do número. Sob o

ponto de vista da utilidade dos números, eles são intocáveis, absolutamente imutáveis. Até

mesmo Honoré de Balzac (apud CHABOCHE, 1979, p.14), considerado um dos maiores

escritores franceses de todos os tempos, afirmou sobre os números em Luis Lambert, sua obra

autobiográfica: “Tudo existe exclusivamente pelo movimento e pelo número; o movimento é,

de qualquer forma, o número atuando”.

A prova disto está nas inúmeras aplicações dos numerais na vida dos seres humanos.

Vamos exemplificar alguns deles:

●Era sentada num banquinho de três pernas chamado trípode, que a pitonisa, sacerdotisa do

templo de Apolo, na Grécia Antiga, o maior oráculo da Antigüidade, recebia as mensagens do

deus. Temos a Santíssima Trindade, as Três Graças (que os gregos chamavam Cárites), os

Três Poderes, Os Três Reis Magos. Depois que Jesus foi preso, o apóstolo Pedro negou três

vezes que o conhecia, Ele foi crucificado aos 33 anos, em uma das três cruzes dispostas no

monte Gólgota, em Jerusalém e ressuscitou no terceiro dia.A bandeira da França possui o

lema Liberté (Liberdade) Égalité (Igualdade), Fraternité (Fraternidade).Vivemos os tempos

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presente, passado e futuro, temos a Terra, a Lua, o Sol.O ser humano possui corpo, mente e

espírito, o corpo (cabeça, tronco e membros). Temos as Três Caravelas, os Três Segredos de

Fátima, as alinhadas estrelas “Três Marias”, o tridente, Os Três Mosqueteiros, Os Três

Patetas, Os Três Porquinhos. Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, eram também três.

Temos os 3 irmãos Metralha, os 3 sobrinhos do Tio Patinhas, o Triângulo das Bermudas. O

leiloeiro ao bater o martelo diz: "Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três". Nas brincadeiras

de esconde-esconde, uma criança sempre tapa o rosto para não ver onde as outras se

escondem e, quando sai em busca dos escondidos, diz para que todos ouçam: "Um, dois, três,

lá vou eu". Temos as reticências, também conhecidas como três pontinhos. Na véspera do

Ano-Novo, milhares pulam as três ondas (ou sete, para alguns) e acreditam que este ato traz

boa sorte e felicidade. Quando se perde algum objeto, alguns dão três pulos e invocam a ajuda

de São Longuinho, há, ainda, o bater 3 vezes na madeira... Em toda novela há um triângulo

amoroso, e há, também, o Ménage à Trois...

●Temos, os 5 sentidos (tato, paladar, olfato, visão, audição), 5 funções orgânicas (respiração,

digestão, circulação, excreção), nosso organismo dispõe de 5 vísceras (rins, pulmões, baço,

fígado, coração), os cinco elementos da terra (terra, água, fogo, ar, espírito), a Bíblia inicia

com o Pentateuco (Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) atribuídos a Moisés,

com 5 pães Jesus saciou a fome de milhares de pessoas.Temos a estrela de 5 pontas (de Davi),

no Evangelho (Mt 25,1) lemos: “O reino dos céus é semelhante a dez virgens, cinco das quais

eram loucas e cinco prudentes”, a configuração das 5 estrelas mais brilhantes da Constelação

do Cruzeiro do Sul que tremula em bandeiras de vários países...

● Temos os 7 mandamentos, os 7 pecados capitais, os 7 mares, as 7 cores do arco-íris, gatos

têm 7 vidas, 7 são as notas musicais, 7 são os dias da criação do mundo, as 7 maravilhas do

mundo, os 7 sábios da Antigüidade, os 7 anões, a energia dos 7 chakras. No conto de Charles

Perrault, o Barba-Azul tinha 7 mulheres. O cinema passou a ser considerada a sétima arte, ao

juntar-se a outras seis que são formadas, tradicionalmente, pela arquitetura, literatura, pintura,

música, dança e escultura. Temos o famoso agente secreto britânico 007, o filme a “A casa

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das sete mulheres”. Nas profecias bíblicas, numa revelação que João teve, Jesus é visto por

João entre sete candelabros de ouro, com sete estrelas na mão...

Números atraem. Fazem parte da matemática. Fazem parte da linguagem da

precisão. Mesmo agora, quando já vivemos no século XXI, poucas são as pessoas que

questionam as informações numéricas, principalmente aquelas apresentadas pela mídia. A

matemática está presente em nosso contexto social e, dentre todas as outras razões que

apresentaremos para tal, ao longo deste artigo, ressaltaremos, inicialmente, o motivo

postulado pelo matemático britânico Hardy (2000 p.81):

Seria difícil encontrar um homem instruído que fosse totalmente insensível aos atrativos estéticos da matemática. Pode ser muito difícil definir a beleza matemática, mas isso vale igualmente para a beleza de qualquer tipo – podemos não saber muito bem o que é um belo poema, mas isso não nos impede de reconhecer um quando o lemos.

1.3.Argumentação e persuasão

O autor de um anúncio utiliza as mais variadas técnicas argumentativas ao tentar

influenciar o comportamento do público-alvo. E, dentre as habilidades discursivas de narrar,

descrever e argumentar, seja por escrito ou oralmente, esta última é a mais complexa e a mais

abstrata das três, pois o argumentar fica entre a necessidade de persuadir e o compromisso

com o raciocínio lógico, o que exige operações mentais altamente sofisticadas.

Conforme Oliveira e Mello (1993, p.432), “a argumentação baseia-se em um

repertório de investimentos lingüísticos utilizados pelo enunciador com a finalidade

primordial de persuadir o seu interlocutor”. E, persuadir não é a mesma coisa que convencer

ou manipular. A grande diferença reside na intenção do locutor. No caso da persuasão,

compreendemos que o objetivo é apenas provocar a adesão, apelando para fatores racionais e

emocionais. Já, convencer, é construir algo no campo das idéias. Quando convencemos

alguém, esse alguém passa a pensar como nós.

Em consonância com esta idéia, observamos que

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saber persuadir e convencer , significa ter a capacidade para utilizar, com propriedade, os elementos lingüísticos que a língua oferece. Esses recursos são os mais variados, por esta razão é preciso selecionar os mais convenientes e adequados para exprimir idéias, nas situações comunicativas, a fim de que o efeito de sentido desejado seja produzido. (NASCIMENTO, 2002, p.14)

Desta forma, no texto publicitário, temos:

● CONVENCER = FAZER CRER

● PERSUADIR = FAZER FAZER

Quanto à manipulação, podemos dizer que nela existe uma intenção deliberada de

desvalorizar os fatores racionais, com forte apelo a uma adesão emocional. O próprio discurso

é baseado em falácias, há uma vasta encenação, é patente a intenção de confundir o

auditório. O ditador Adolfo Hitler, por exemplo, utilizava a manipulação em gigantescos

espetáculos de propaganda, produzindo um poderoso efeito hipnótico sobre os auditórios.

Voltemos à persuasão, valendo-nos agora das considerações de Abreu (2004). Para o

autor, argumentar é, juntar o convencimento e a persuasão: “argumentar é a arte de convencer

e persuadir”. Para ele,

CONVENCER é saber gerenciar informação, é falar à razão do outro, demonstrando, provando. Etimologicamente, significa VENCER JUNTO COM O OUTRO (com + vencer) e não CONTRA o outro. PERSUADIR é saber gerenciar relação, é falar à emoção do outro. A origem dessa palavra está ligada à preposição PER, “por meio de” e a SUADA, deusa romana da persuasão. Significava “fazer algo por meio do auxílio divino”. (p.24)

Depois desta exposição, Abreu ainda acrescenta que há convencimento quando

construímos algo no “campo das idéias”, fazendo com que alguém pense como nós. E,

persuadimos, quando construímos algo no “campo das emoções”, sensibilizando o outro para

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agir. Paralelamente a esta abordagem, Biondo e Alonso (2005) exemplificam que, em

determinada cidade, quatro escritórios de contabilidade, todos brilhantes, com uma carteira de

clientes fantástica e com satisfatória experiência no mercado, apresentaram-se diante de

alguém que desconhecia os meandros da contabilidade.

Dos quatro, apenas um falou com o interessado numa linguagem simples e lhe

garantiu que, “como sabia que ele dividia seu tempo entre Paris e São Paulo e estava

preocupado com seus filhos às vésperas de prestarem vestibular, poderia encarregar-se

também de sua contabilidade pessoal”. Os outros lhe propuseram, como bônus, instalar um

sistema simples que lhe permitiria levar sua contabilidade pessoalmente. Todos falaram de si

mesmos, da qualidade de seus serviços, da tecnologia de que dispunham para a realização do

serviço, mas apenas um entendeu que o executivo não gostava de números, pois o fazia se

sentir inseguro. Foi esse que ganhou a conta.

No caso dos numerais, a crença na objetividade científica dos dados numéricos

(matemática, estatística) é que lhes confere alto poder de persuasão. E esta persuasão é

diferente do exemplo citado por Biondo e Alonso. Baseada nos estudos retóricos, Araújo

(1997, p.19) afirma que o ato de persuadir pode ocorrer em três situações:

1) persuadir convencendo: neste caso, o lado racional do receptor é trabalhado, as

provas são fundamentais, pois ele é persuadido através da mente. Essas provas

são fatos (tudo o que se refere a uma realidade objetiva), verdades

(relacionadas às teorias científicas ou de concepções filosóficas ou religiosas),

exemplos (a respeito do que está sendo afirmado), argumentos de autoridade

(utilização de atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como

meio de prova em favor de uma tese), entre outras;

2) persuadir comovendo: o receptor é comovido através do coração, a afetividade

é trabalhada para que ele seja motivado até aderir ao ponto de vista em

questão;

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3) persuadir agradando: dessa forma o receptor é seduzido, encantado, através da

apreciação do estilo com que o discurso é trabalhado. O “agradar” está ligado

ao modo como o discurso é produzido, suas características de correção

gramatical, clareza na transmissão de idéias, adequação do estilo ao conteúdo e

elegância ao utilizar a linguagem através de ornamentos, como as figuras de

estilo.

Assim, o caso apresentado por Biondo e Alonso enquadra-se no segundo tipo, o de

convencer comovendo. Os números, relacionados a fatos e verdades, constituindo “realidades

objetivas”, estão inseridos no primeiro tipo, o de persuadir convencendo, quando é preciso,

ipso facto, ser suficientemente lógico/racional para o outro a ponto de influenciar sua forma

de pensar ou de agir. Dentro desta abordagem, entendemos que os números têm sua força

persuasiva em decorrência, principalmente, de sua utilização como argumento de autoridade,

no contexto de uso. Abordaremos este assunto no próximo item.

1.4. Os números na publicidade: os lugares de quantidade e a voz de autoridade

Os numerais exprimem quantidade, posição em uma série, multiplicação ou divisão,

daí a sua classificação em cardinais, ordinais, multiplicativos ou fracionários. Nas peças

publicitárias, também é possível observar a utilização dos numerais nas quatro categorias

como:

a) Numeral cardinal:

“A questão não são os 20 perfumes que você tem. São as 2 gotinhas que você usa”.

(Sapatos Vizzano – Caras – 06/03/98)

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b) Numeral ordinal:

“Kaiser. A 2a cerveja mais consumida em Curitiba”.(Cerveja Kaiser – Veja – 20/09/95)

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c) Numeral multiplicativo:

“Cabelos 5x mais lisos. Declarações 40x mais românticas. Você 1000 vezes mais bonita”.

(Shampoo Seda Lissage – Contigo – 25/11/04)

d) Numeral fracionário:

“Você é pura água”

2/3 de você.

1/3 é mixado

De farra e xaveco

1/3 que é trance

que é samba ou é funk

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1/3 é balada

É madrugada

Pra voltar cedo

Sol nascendo

1/3 euzinha

O resto é água

2/3 de pura água (Água Mineral Schincariol – Marie Claire – jul/06)

Com a finalidade de garantir sua adesão ao jogo argumentativo do discurso, o locutor

do texto publicitário recorre às premissas de ordem geral, denominadas lugares, examinadas

por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p.95). Tomando por base os estudos de Aristóteles,

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eles afirmam que “[...] só chamaremos de lugares e premissas de ordem geral que permitem

fundar valores e hierarquias e que Aristóteles estuda entre os lugares do acidente. Esses

lugares constituem as premissas mais gerais, aliás amiúde subentendidas, que intervêm para

justificar a maior parte das nossas escolhas”.

Para explicá-los, os autores agruparam os lugares comuns em seis tipos: lugares da

quantidade, da qualidade, da ordem, do existente, da essência e da pessoa. Nesta análise,

interessa-nos os lugares de quantidade, entendido pelos estudiosos “como os lugares-comuns

que afirmam que alguma coisa é melhor do que outra por razões quantitativas”. (op.cit.p.97)

Portanto, um dos traços mais característicos do lugar de quantidade é a utilização de

números, ou seja, a utilização de dados para basear a argumentação com números precisos e

que servem para impressionar e, ao mesmo tempo, persuadir, conquistando a adesão do

interlocutor.

Vejamos, a este respeito, o seguinte:

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“Esse é o seu tempo. Aprenda inglês em 18 meses”. (Escola de Idiomas Wise Up – Revista

Exame, 27/09/06).

Este texto publicitário apóia-se, sobretudo, no lugar de quantidade. Uma escola de

idiomas que promete, em apenas 18 meses, ensinar uma outra língua, está, seguramente,

avaliando a competitividade de outras escolas do ramo que também ensinam, porém,

necessitando de meses ou anos a mais. Então, a quantidade menor de dias produz resultado

mais eficaz em um público que tem pressa em aprender. Aqui, o verbo, que aparece no

imperativo, também tem valor na argumentação, pois pretende dirimir a dúvida que pode

surgir quanto à qualidade de um ensino tão rápido. A escola garante o aprendizado, em vez de

dizer “você pode aprender inglês em 18 meses”, “que tal tentar aprender uma língua em 18

meses?”, o verbo utilizado “aprenda inglês em 18 meses” produz um maior efeito e parece

garantir a possibilidade de bons resultados com pouco esforço/tempo.

Os lugares de quantidade, trazidos para o interior do discurso, reforçam a voz da

autoridade ou o “argumento de prestígio”, pois tal recurso, “utiliza atos ou juízos de uma

pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de prova ou a favor de uma tese”

(PERELMAN e OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p.348). E a matemática serve perfeitamente

como voz de autoridade em nosso contexto social. Poucas discutem matemática. Números,

cifras, estatísticas, parecem estar revestidos de cientificidade e, portanto, sempre são

considerados como verdades absolutas.

Por exemplo, quando um torcedor diz que o seu time tem uma chance 10 a 1 de

ganhar de outro time, poderíamos traduzir isto para “o meu time tem uma probabilidade de

ganhar de 91% (10/11)”, ou seja, “em 11 jogos, o meu time ganharia 10 jogos”. Ou, quando

alguém diz que tal produto está caro, deixa implícita a comparação de um conjunto de

produtos (com seus preços e quantidades). A aparência de isenção e neutralidade no

argumento numérico por autoridade é essencial para a sua aceitação.

Entretanto, observemos a propaganda a seguir:

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(Classificados do Jornal Estadão – Playboy – abril/92)

O gráfico apresenta os milhares de exemplares vendidos no 4º trimestre/91, na grande

São Paulo: 2729 cópias para o Estado de S.Paulo, 1330 para a Folha de S.Paulo, 929 para o

diário Popular, 900 para o Primeiramão e 939 para os outros jornais. Apesar de citar como

fonte o XXXIII Estudos Marplan, à realidade construída com os numerais demonstrados com

números exatos, com base nos lugares de quantidade e na voz de autoridade, não podemos

conferir total credibilidade, já que ao leitor não é possível conferir nenhum tipo de distorção

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ou manipulação nos dados apresentados, uma vez que, dificilmente, alguém teria a disposição

para contestar ou conferir os dados, mesmo a título de curiosidade.

Dados estatísticos devem sempre ser acolhidos com reserva. É muito difícil atingir

exatidão nos dados computados, sempre passíveis de erros. Para Besson (1995, p.29), o erro

em estatística é “normal”, até mesmo “inevitável”, porém, “nunca admitido”. O autor segue

dizendo: “O estatístico não tem o direito de errar. [...] No que lhes diz respeito, os estatísticos

dão prova de uma discrição excessiva em matéria de erro”.

Outro motivo para se ter atenção com os dados estatísticos, provém dos dados das

informações que são, quase sempre, obtidas com base em amostras e, nem sempre estas

amostras são, efetivamente, representativas da população. Vieira e Wada (1987, p.13)

alertam: “é preciso conhecimento de estatística e muito senso crítico para extrapolar, para o

todo, informações obtidas com base em parte do todo”. Caso contrário, selecionar um dado

em detrimento de outro, pode gerar a chamada amostragem tendenciosa.

“Portanto”, dizem os autores, “da próxima vez que você ouvir informação do tipo a

mulher brasileira usou estampas florais no último verão, leia nas entrelinhas. Afinal, por

mulher brasileira, nesse contexto, entendem-se apenas consumidores da moda, parcela muito

pequena na população. Então, a informação não se aplica à mulher brasileira, em termos

estatísticos”.

O título deste artigo também alude à suposta “objetividade” inconteste dos numerais:

“Nova Linha Palmolive Naturals. Cabelos 5 vezes mais fortes e 3 vezes mais macios”.

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(Shampoo e Condicionador Palmolive – Caras – 16/07/04)

Encontramos, neste anúncio, dois dados numéricos:

“cabelos 5 vezes mais fortes + cabelos 3 vezes mais macios”

↓ ↓

Argumento 1 Argumento 2

Constatamos que estes dados numéricos pretendem persuadir a leitora/leitor apenas

pela credibilidade do argumento científico, haja vista não ser possível comprovar a eficiência

do produto ou comprovar a sua validade. Os dados são implicitamente perceptivos, e não

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objetivamente quantificadores - já que esses dados dificilmente poderão ser medidos.

Analisemos apenas o primeiro argumento: como é realmente saber o que é um cabelo 5 x

mais forte? Mais forte em relação a outro tipo de cabelo mais seco, quebradiço, oleoso? Mais

fortes até para suportar serem puxados, arrancados ou apenas esticados? Essas comparações

que “não comparam” são muito corriqueiras em anúncios.

Vieira e Wada (1987, p.65) apontam uma outra questão, também capciosa, e muito

comum em mensagens publicitárias. Os autores dizem que os resultados do uso de alguns

cosméticos são revelados de forma exagerada na propaganda. “Eu era assim”, “fiquei assim”,

“depois de usar o maravilhoso xampu X”, diz o anúncio. A diferença entre o “antes” e o

“depois” é tão notória que qualquer pessoa se entusiasma, Mas, devemos olhar com atenção e

perguntar: quanto da diferença em ter “antes” e “depois” se deve creditar ao maquiador, ao

cabeleireiro, ao costureiro, ao iluminador, ao fotógrafo, além – é claro – do xampu?

Já foi dito por um humorista que “quando convenientemente tratados, os resfriados

saram em uma semana. Se deixados sem tratamento, podem perdurar toda a semana”,

lembram Vieira e Wada. Esquecidos desta verdade simples, muitas vezes, compramos

comprimidos, pastilhas, e o que mais houver, que prometem curar o resfriado. Muitos desses

remédios são, na verdade, antitérmicos e analgésicos que apenas fazem desaparecer alguns

sintomas, mas “não curam” o resfriado. Então, dizem os autores, devemos ter cuidado com

estatísticas do tipo “90% das pessoas ficaram completamente curadas do resfriado, após

tomarem o maravilhoso...”. Essas pessoas ficariam curadas, sim, com ou sem medicamento.

Nossa intenção aqui é demonstrar como estes tipos de argumentos podem ser

imprecisos, sendo, portanto, impossível em tipos de anúncios como estes não descartar a

possibilidade de manipulação. O lugar de quantidade neste contexto é meramente suasória,

mas nem por isso perderá seu status de cientificidade perante um leitor desavisado. Muitas

peças publicitárias apresentam argumentos seguindo esta mesma linha argumentativa, com

dados numéricos, no mínimo, obscuros.

Ressaltamos que não pretendemos retirar a credibilidade dos autores destas campanhas

publicitárias, porém, o ato de avaliar as práticas lingüísticas nelas inseridas, não nos permite

uma postura totalmente isenta. Todas as mensagens que apresentaremos no próximo bloco

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também são passíveis de avaliação. Dentre os muitos textos selecionados para este trabalho,

apresentaremos alguns, obedecendo ao critério de apresentação pelas ocorrências nas quais

foram aparecendo.

2. Desenvolvimento

É evidente, nesta amostra, a força da “mídia criativa”.Todos os textos possuem uma

poderosa força persuasiva, cujo apelo aos numerais, assim classificamos:

2.1.Numerais que indicam porcentagem:

“Nosso planeta é 70% água, 30% terra e 100% caminho”. (Sapatos Timberland – Veja –

23/10/020).

“55% de tártaro a menos significa mais saúde”. (Creme dental Colgate Total 12 – Claudia

–jun/06)

“Experimente Nescau light. Muito sabor com 25% menos calorias”. (Bebida Láctea

Nescau – Maire Claire – jan/06)

“O Golf tem 96% de proprietários totalmente satisfeitos”. (Automóvel Golf – Veja –

set/98)

“Nova Linha Dove Controle de Queda, com silicone reparador. Fios mais fortes da raiz

às pontas e 77% menos queda”. (Shampoo e Condicionador Dove – Manchete – fev/07)

“Chegou a linha Bebezinhozzz Racco. A única com ativos 100% naturais. Seu anjinho

vai se sentir nas nuvens”. (Água de Colônia Bebezinhozzzzzz Racco – Claudia – jun/06)

2.2.Numerais que indicam tempo transcorrido:

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“Em 40 anos, investimos mais de 120 milhões de dólares em infra-instrutura urbana e

projetos sociais. Convenhamos: ninguém gasta uma fortuna como essa só pra fazer

papel de bom-moço”. (Aracruz Celulose – Veja – 23/08/07)

“Desde 1919. Azeite Gallo. O sabor da nossa história”. (Azeite Gallo Portugal – Veja –

06/12/06)

“100 anos de Ford no mundo. 100 anos de inovações na sua garagem”. (Automóveis Ford

– Veja – 18/06/03)

“Há mais de 100 anos, Aspirina® é um analgésico, antiinflamatório e antitérmico [...] Há

mais de 100 anos, a Bayer vem pesquisando novas descobertas para Aspirina®”.

(Aspirina® Bayer – Caras – 24/04/07)

“Sky 10 anos digital. Porque você sabe que na vida imagem é tudo. E som também”.

(Claudia – out/06)

2.3.Numerais que indicam datas:

“Escolha o melhor para você. E tenha um 2006 cheio de realizações”. (Banco do Brasil –

Maire Claire – jan/06)

“1825: o homem separa o titânio dos demais elementos.

2003: o titânio separa o homem dos demais elementos”. ( Telefone Celular de Titânio

Nokia – Veja – 03/12/03)

“Pensando na Copa de 2006, a 51 já está exportando para a Alemanha”. (Cachaça

adoçada 51 – Veja – 01/09/04)

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“2001: mais um recorde em águas profundas”. (Petrobrás - Veja – 17/09/03)

2.4.Numerais indicando tempo (duração):

“Tudo sobre as Olimpíadas, diariamente em boletins de 2 minutos, 30 segundos e zero

centésimo. Ligue de qualquer telefone para ouvir o Boletim diário das Olimpíadas”.

(Operadora de Telefonia OI e Editora Abril - Veja Especial – ago/04)

“Em 8 décimos de segundo uma xícara escorrega da sua mesa. Pelo mesmo tempo, você

limpa todo o café que tinha na xícara”. (Novo Veja Paninhos de Limpeza Multi-uso – Nova

– fev/01)

“09”67 Porque a vida é agora.

09”68 agora.

09”69 agora.

09”70 agora. VISA” (Cartões de Crédito Visa –Patrocinadora Mundial das Olimpíadas –

Athens 2004 – Veja Especial – ago/04)

“Quer parecer mais jovem em apenas 14 dias? Novo Age Defying com Botafirm™ -

reduz as linhas de expressão em até 50% em apenas duas semanas”. (Produtos

Dermatológicos Revlon – Marie Claire – maio/06)

2.5.Numerais que não indicam quantidade específica e funcionam como intensificadores do

argumento principal:

“Resultado do censo: o Brasil tem 2 milhões de mulheres a mais do que homens. Se eu

fosse você, só usava Valisère”. (Lingerie Valisère Coleção Diva – Claudia – abril/92)

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“Carrefour e você contra o câncer de mama. Faça como milhões de brasileiros: participe

desta campanha. Compre e ajude”. (Carrefour – Revista 7Dias – 21/09/06)

“Tecnologia, facilidade, segurança, qualidade, variedade de serviços. Nós temos mais de

2,5 milhões de motivos para você usar o Bradesco Internet Banking”. (Banco Bradesco –

Veja – 09/05/01)

2.6.Numerais que indicam ordem:

“Que tal se um banco acreditasse em você desde o primeiro dia?” (Banco Real – Veja –

18/05/05)

“Fiat. Líder de vendas pela 5º vez, com 55.644 carros de vantagem sobre a 2º colocada”.

(Automóveis Fiat – Veja – 31/01/07)

“éh orgânico, o primeiro shampoo com ativos 100% orgânicos”. (Shampoo e

Condicionador antioxidante éh – Revista Corpo – fev/07)

2.7.Numerais que indicam preço:

“Nunca vá a uma festa com um vestido de menos de 32 milhões de dólares”. – (Parque

Industrial dos Linhos Teba – Claudia – jun/96)

“Você gastaria uma fortuna para proteger a sua família, não é mesmo? Na Caixa você

protege a partir de R$ 6,50 por mês”. (Caixa Seguros – 01/06/05)

“Promoção Era tudo o que eu queria. 40 mil por mês durante um ano para você usar

como quiser”. (Cartões de Crédito Credicard - Veja – 17/09/03)

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2.8.Numerais que recebem reforço de outros recursos retóricos como o parêntese:

“7 em cada 10 homens adoram mulheres de Pulligan. (Os outros 3 não gostam de

mulher)” (Meia-Calça Pulligan – Elle – maio/98)

“1.000.000 de passageiros em apenas 7 meses. (Não é só na terra que a população está

aumentando)” (Linhas Aéreas Gol – Isto é – 15/08/07)

“Em 1999 você pediu. O Ponto Frio (ufa!) fez. Feliz 2000. É por você que a gente faz

melhor. E ponto”. ( Veja – 12/01/00)

2.9.Numerais com quantificadores na ordem da unidade, dezena, centena e milhar ou vice-

versa:

“Tenha em casa 2 volumes com 768 páginas da sua história”. (Brasil 500 Anos –

Publicação da Editora Abril – Veja - -0/06/99)

“170 milhões de corações batendo mais forte. 11 guerreiros em campo. 5 títulos

conquistados. 1 combustível”. (Gel energético PowerBar – Veja Especial – jul/2002)

2.10.Numerais que indicam a especificação do produto:

“A correria do dia-a-dia pede a versatilidade do Walita Mix 2 em 1, que é um Mix e um

Mini-processador ao mesmo tempo”. (Maire Claire – maio/06)

“Chamamos por número porque é difícil descrever com palavras. Novo Nokia 7370.

Viva intensamente”. (Claudia – out/06)

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2.11.Numerais que fazem referências intertextuais (é necessário conhecimento prévio para a

compreensão da mensagem):

“Depois do chá das 5, a moda em Londres é a Cachaça das 7” (Cachaça adoçada 51 – Veja

– 11/09/04)

“As grandes maravilhas do mundo só são sete, porque, naquele tempo, o meio de

locomoção dos jurados era outro”. (Automóveis Mitsubishi Motors – Veja – 13/06/01)

2.12.Numerais que indicam sugestões de ações em seqüência:

“5 maneiras de fazer os homens acharem você mais interessante:

1) Vista um tubinho preto e vá à Praça da República por volta das duas da

manhã.

2) Pare o com seu caro num mecânico de beira de estrada.

3) Use uma camiseta alguns números menor.

4) Não use camiseta.

5) É melhor você começar a ler o Estadão”. (Jornal Estadão – Desfile –nov/96)

Depois de analisar milhões de pés, fizemos duas coisas:

1 – criamos um modelo de tênis para cada tipo.

2 – lavamos as mãos”. (Caras – 21/12/01)

2.13.Numerais indicando idade:

“Dizer que você vai ter a vida de um cara de 25 anos é mentira. Aos 25 a gente só

trabalha”. (Plano de Aposentadoria Flexprev Itaú – Exame – dez/01)

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“Aos 5 anos a maior conquista da sua vida pode estar em um simples detalhe: andar sem

as rodinhas. Parece só um detalhe, mas faz toda a diferença” (Margarina Doriana - Marie

Claire - ago/05)

2.14. Numerais indicando tempo futuro:

“Vamos conversar sobre a maquiagem que se preocupa com a sua aparência daqui a 10

anos” – (Maquiagem Avon – Claudia - jun/02)

2.15.Numerais que participam de jogos de palavras (neste texto selecionado, há a utilização

de homônimos homófonos):

“Quer saber como funciona nosso sexto sentido ou prefere continuar esperando o cesto

de roupa suja encher?” – (Máquinas de lavar Brastemp 6º Sense - sente e calcula o nível de

água de acordo com a quantidade de roupa - Claudia – maio/05)

3. Conclusão

O presente estudo teve como foco a análise das campanhas publicitárias em revistas de

grande circulação nacional que trazem numerais em seu discurso. Neste estudo, foram

mencionados assuntos pertinentes às características da linguagem publicitária, à história dos

números e seu emprego em anúncios, bem como questões referentes à arte da

argumentação.Com esta pesquisa, concluímos que a propaganda utiliza, no nível discursivo, a

persuasão como recurso argumentativo para levar as pessoas a comprarem determinados

produtos. Como bem escreveu Leymore (1982, p. 377), “advertising is a highly competitive

system of communication, which draws heavily on mechanisms of persuasion”.5

5 “A publicidade é um sistema altamente competitivo de comunicação que investe pesadamente em mecanismos de persuasão”. [tradução nossa]

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Buscamos evidenciar que a propaganda tem o importante papel de transmitir a

mensagem de forma clara, mas isto não é sinônimo de objetividade. Os números, mesmo

relacionados com a linguagem matemática, inseridos no contexto discursivo também

assumem o caráter de subjetividade da linguagem, isto é, eles ficam sujeitos à ambigüidade, o

que permite serem usados como influentes instrumentos de persuasão. Como bem afirmaram

Denis, Langley e Rouleau (2006, p. 372): “Numbers systems are more likely to become

powerful in pluralistic contexts if the actors using them have tacit understanding of the

potential meanings and consequences of the informations available”.6

Portanto, torna-se fundamental compreender em quais circunstâncias certos dados

numéricos são apresentados, de que modo podemos interpretá-los, identificando, criticamente,

em quais momentos eles são veiculados de forma apenas a garantir a persuasão (nestes casos,

com parcial ou total perda de objetividade).

Em suma, concluímos que as propagandas são próprias da sociedade de consumo e,

por conseguinte, fazem parte do nosso contexto, acarretando aos estudiosos da língua a

imprescindível e laboriosa tarefa de leitura crítica deste tipo tão especial de comunicação.

Esperamos que o tema abordado tenha contribuído como mais uma oportunidade de reflexão

sobre as “astúcias” da linguagem da propaganda que vêm sempre revestidas de “roupagens

que camuflam as intenções do texto” (CARVALHO, 2002, p.45), pois conforme Bouacha e

Portine (1981, p.03), “argumenter c’est chercher non ceulement à convaincre ou à persuader

mais aussi à construire un certain mode de représentation visant à agir sur auditoire”.7

Referências

ABREU, Antônio Suárez. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. 7a ed. Cotia:

Ateliê Editorial, 2004.

6 “Sistemas numéricos são prováveis de se tornarem mais poderosos em contextos plurais, se os atores que os utilizarem, tacitamente compreenderem o potencial dos significados e as conseqüências das informações disponíveis”.[tradução nossa] 7 “Argumentar é buscar não somente convencer ou persuadir, mas também construir um certo modo de representação visando intervir sobre o auditório” [tradução nossa]

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Departamento de Ciências Humanas – DCH I

A leitura, o leitor e a ilusão

Elizabeth Gonzaga de Lima1

RESUMO: O propósito deste artigo é examinar os efeitos que a imersão na leitura, de forma acrítica e alienada, produz no leitor. Busco contrapor um leitor de fins do século XIX e suas práticas de leitura, na figura do personagem Policarpo Quaresma, do romance Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, com os novos leitores da cibercultura, os denominados navegadores ou internautas.

Palavras-chave: Lima Barreto; Leitor; Leitura; Cibercultura

ABSTRACT: The purpose of this article is to analyse the effects that the immersion in the reading, in a no critic and alienated way, produces in the reader. I attempt to oppose a reader from the end of the 19th century and their reading practices, in the figure of the character Policarpo Quaresma, from the novel Triste fim de Policarpo Quaresma, by Lima Barreto, with the new readers of the cyberculture.

Key-words: Lima Barreto; Reader; Reading; Cyberculture

Crise da leitura, fim do livro, estas são as últimas profecias anunciadas pela revolução

digital que mergulhamos nas últimas décadas. Assistimos ao crescimento, em larga escala,

dos chamados internautas, cada vez mais plugados às telas de computadores em suas

residências ou em lan houses, mergulhados em blogs, orkuts, enredados nas teias do

hipertexto.

Os filhos da sociedade tecnológica vivem a maior parte de seu tempo num mundo

virtual e assumindo diversos papéis em jogos e mundos paralelos. Tal circunstância coloca

uma questão: para participar do universo criado pelos programas do computador não é

necessário um leitor atento e concentrado? Pois para manejar as ferramentas, entrar nos sites,

o internauta necessita um mínimo de proficiência de leitura.

1 Professora Doutora de Literatura Portuguesa do Departamento de Vernáculas do Instituto de Letras da UFBA. [email protected]

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A crise da leitura alardeada, na verdade, é uma reconfiguração nas formas e nos modos

de ler e escrever, assim como ocorreu com o surgimento da televisão, quando alguns arautos

do apocalipse vaticinaram o fim do rádio e do cinema, previsões que nunca vingaram, ao

contrário, esses meios de comunicação chegaram ao século XXI com muita vitalidade.

A cena contemporânea nos revela um homem cada vez mais dependente do

computador. O ritmo da vida de algumas pessoas tem sido determinado pela navegação e

interatividade em comunidades, listas e fóruns de discussão, chats. Além disso, desde a

educação às compras, são feitas na rede, romances e amizades são iniciados na tela, podendo

ou não se concretizar na realidade. Hoje, curiosamente, assistimos ao fenômeno da leitura

virtual, em alguns casos, não só preceder a leitura do mundo, mas em última instância a

substituir, criando um simulacro, uma espécie de vivência ilusória.

Diante das exigências dessas novas formas de conhecimento fomentadas pela era

digital, é necessário reconhecer, infelizmente, que os números do analfabetismo funcional no

Brasil são alarmantes. Uma parte da população sabe ler, mas não consegue interpretar e,

muito menos, compreender os textos veiculados nas mídias. Nessa direção precisamos levar

em consideração que antes de se tornarem bons navegadores na rede, esses internautas

necessitam ser bons leitores, a fim de desenvolverem a capacidade crítica de desvendar o

sentido de imagens e textos, de conseguir mergulhar no mundo virtual dominando e

compreendendo sua navegação e não ser dominado por ela, transformando-se num navegador-

leitor que substitui a vida concreta pela ilusão de vida que a rede proporciona aos internautas

destituídos da leitura crítica do mundo, do texto e da tela. Não há como negar essa forma

acrítica de navegar, é uma das formas contemporâneas da alienação. É o homem

abandonando-se à sedução da máquina, do ciberespaço ao adquirir e praticar sem

questionamentos os novos hábitos construídos pela cibercultura.

Os novos tempos e as novas relações entre escritor e texto, texto e leitor, tela e texto,

leitor e tela, instiga nossa imaginação de voltarmos no tempo e pensarmos quais seriam os

efeitos em fins do século XIX, na vida de um leitor que mergulhou nos livros a ponto de ler o

mundo a partir deles, e viver numa espécie de ilusão livresca? Pretendo examinar de que

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maneira um leitor sem criticidade pode ser enredado nas malhas do texto e, vivenciar em

função disso um auto-engano, demonstrando assim como tal circunstância pode tornar-se

símbolo da vivência do navegador-leitor despreparado para desvendar a avalanche de

informações, de hipertextos, janelas e links que a tela do computador proporciona.

A criação ficcional de Lima Barreto, Policarpo Quaresma, segundo alguns críticos,

possui um perfil quixotesco, em função de sua ingenuidade em correr atrás de utopias,

movido pela crença cega nas letras, e no seu caso em relatos do passado. Lima Barreto era

um leitor voraz, e sem dúvida sua ficção dialogou com narrativas da tradição literária como a

obra Dom Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes, e a trajetória de Policarpo

demonstra isso ao longo do romance Triste fim de Policarpo Quaresma.

No primeiro capítulo de Dom Quixote, os leitores são informados sobre a vida do

fidalgo espanhol, suas ocupações e sua “mania” de leitura. Essa se tornou uma espécie de

devoração interior, que o levou a desconhecer até a passagem do tempo, a ponto de ficar

insano: “tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites em claro e os dias de

escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, e se lhe secou o cérebro, de

maneira que chegou a perder o juízo” (SAAVEDRA, 1978).

Em Triste fim de Policarpo Quaresma, o narrador não traz a informação sobre a

possível loucura do major. O percurso da personagem é dividido em três momentos, e neles o

texto não revela, via enunciação, esse estado. O veredicto da perda de juízo é dado por outras

personagens e o diagnóstico é urdido por meio da narração de fatos que envolviam a parelha

leitura/ação. Contrariamente à crueza do narrador de Cervantes, que de saída aponta o

problema do fidalgo decadente, em Triste fim, o leitor é apresentado a um homem metódico,

recatado. Sempre cumpria o mesmo ritual de chegar da rua, lavar-se e ir para a sua biblioteca,

onde possuía um acervo considerável para um morador do subúrbio: “Estava num aposento

vasto com janelas para uma rua lateral, e todo ele era forrado de estantes de ferro. Havia perto

de dez, com quatro prateleiras, fora as pequenas com os livros de maior tomo” (BARRETO,

1956).

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O fato de um funcionário público, suburbano desenvolver o hábito de leitura de

maneira tão obsessiva, causava um misto de inveja e implicância de seus vizinhos, como o Dr.

Segadas, clínico afamado de São Cristóvão que se recusava a aceitar a condição do major

possuir tantos livros: “Se não era formado, para quê? Pedantismo!” (BARRETO, 1956). Na

declaração do doutor emerge o preconceito e também o mito de que o manuseio constante de

livros pertence à esfera dos “iniciados”, ou seja, de estudiosos. Tal aversão aos leitores,

segundo assinala Alberto Manguel, em Uma história da leitura, é mais comum do que se

imagina:

Preguiçoso, débil, pretensioso, pedante, elitista – estes são alguns epítetos que acabaram associados ao intelectual distraído, ao leitor míope, ao rato de biblioteca, ao nerd. Enterrado nos livros, isolado do mundo dos fatos do mundo de carne e osso, sentindo-se superior aos não familiarizados com as palavras preservadas entre capas poeirentas, o leitor de óculos que pretendia saber o que Deus, em sua sabedoria havia escondido, era considerado um louco (...) (MANGUEL, 1997).

Possuir uma biblioteca pode ser considerado como uma metáfora do desejo e, ao

mesmo tempo, pretensão do homem em condensar num mesmo espaço todo o conhecimento

humano. Emerson, o pensador americano, concebia a biblioteca como uma câmara mágica.

Essa reunião de tantas vozes transforma o recinto, onde se abrigam os livros, em um local de

mistérios. A biblioteca sagrada localizada no mausoléu do faraó Ramsés, possui uma

enigmática inscrição em seus portais: Local de cura da alma.

Ao examinar a biblioteca do leitor Quaresma, pode-se perceber como seu mergulho

alienado na leitura teceu em seu espírito impressionável uma série de crenças inabaláveis

acerca da pátria brasileira, a ponto de deixar a posição confortável de leitor e tentar encontrar

o país construído nas páginas de relatos históricos e ficcionais.

A biblioteca de Quaresma era envolvida por um clima diferente como observa o

narrador: “Quem examinasse vagarosamente aquela grande coleção de livros havia de

espantar-se ao perceber o espírito que presidia a reunião” (BARRETO, 1956). Nesse local o

major reuniu todo um acervo que pudesse lhe fornecer um conhecimento pleno e genuíno a

respeito do Brasil. A ficção era representada por autores nacionais, destacando a obra

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completa de José de Alencar e Gonçalves Dias. Escritores que representaram o romantismo,

considerados fundadores do discurso literário da nacionalidade brasileira. Na História do

Brasil destacavam-se os cronistas, os viajantes e os relatos de exploração, além de dicionários,

manuais, enciclopédias, obras escolhidas de acordo com o caráter nacionalista.

O espírito patriota do major andava na contramão de seu tempo, o fim-de-século XIX

no Brasil. Naquele momento, conforme os relatos do jornalista Luiz Edmundo, assistia-se a

negação do próprio país: “O que temos não presta: a natureza, o céu, o clima, o amor, o café.

Bom, só o que vem de fora. E ótimo, só o que vem de França” (EDMUNDO, 1938). Enquanto

o país vivia esse clima, a vida de Policarpo era guiada pelo amor à pátria, que para ele “tinha

todos os climas, todos os frutos, todos os minerais e animais úteis” (BARRETO, 1956). O

esforço do major era obter um conhecimento completo do Brasil por meio das leituras e de

seus estudos incansáveis. A crença de Policarpo nas riquezas naturais do Brasil era tão

profunda, a ponto de defender a decantada grandeza do Rio Amazonas sobre todos os rios do

mundo, chegando mesmo ao “crime de amputar alguns quilômetros ao Nilo e era com este

rival do ‘seu’ rio que ele mais implicava” (BARRETO, 1956).

À medida que o major aprofundava suas leituras, as ações tornavam-se cada vez mais

ousadas. Com o aprendizado do tupi-guarani convenceu-se de que esta era a língua genuína e

deveria ser proclamada como nacional. A partir desta convicção envia ao congresso um

requerimento solicitando que se decretasse o tupi-guarani como língua oficial do Brasil. No

entanto, o que surpreende no ofício de Quaresma são os argumentos lógicos que moviam seus

objetivos: “O suplicante (...) pede vênia para lembrar que a língua é a mais alta manifestação

da inteligência de um povo, é a sua criação mais viva e original; e, portanto, a emancipação

política do país requer como complemento e conseqüência a sua emancipação

idiomática”(BARRETO, 1956).

A intenção patriótica de Policarpo, em adotar uma língua “genuinamente nacional”

transformou-se rapidamente em chacota na cidade. Os jornais publicavam sua caricatura.

Considerado louco, em seguida, foi enviado ao hospício. Os conhecidos encontravam como

resposta para seu internamento, a vida devotada à leitura. Reunidos numa conversa em torno

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do acontecimento, Dr Florêncio lamentava: “-Aqueles livros, aquela mania de leitura...”.

Genelício, reafirmando o mito do leitor ilustrado sentenciava: “- Ele não era formado, para

que meter-se em livros?”. Sigismundo concordava: “- Isto de livros é bom para os sábios, para

os doutores”. Genelício cheio de convicção arrematava: “- Devia até ser proibido a quem não

possuísse um título acadêmico ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças. Não acham?”

(BARRETO, 1956).

Pelas declarações pode-se perceber que o preconceito em relação ao leitor destituído

de um título acadêmico era a mentalidade corrente no período, como se o livro fosse algo

sagrado, privilégio de uma minoria.

Alberto Manguel observou que os leitores possuem uma reputação ambígua, como se

a relação estabelecida entre o leitor e o livro reconhecida como sábia e frutífera, é também

vista de maneira desdenhosa. A figura do leitor na solidão de sua leitura é envolta por uma

espécie de mistério, produzindo um medo popular do que poderia estar fazendo esse leitor

entre as páginas. Cena que evoca também as temerosas figuras de bruxas e alquimistas com

seus segredos indevassáveis. O estudioso comenta que para o poeta latino Virgílio, o marfim

era o material básico de que se constituía o “Portal dos Sonhos falsos” e, segundo Sainte-

Beuve, também era a matéria-prima da torre do leitor” (MANGUEL, 1997).

Se o leitor habita o mundo dos sonhos, a realidade passa a ser algo distante, e até certo

ponto, desconhecida. O livro torna-se o manual de vida para os leitores mais impressionáveis,

como por exemplo, o major Quaresma. Ele viveu trinta anos acreditando em seu mundo de

papel, resumido em letras, daí desenvolver uma sensibilidade aguda de habitante de um

universo onírico: “vivia imerso no seu sonho, incubado e mantido vivo pelo calor dos seus

livros. Fora deles, ele não conhecia ninguém...” (BARRETO, 1956). A biblioteca era seu

elemento natural, local onde os sonhos possuíam a dimensão da certeza absoluta.

O primeiro acervo da biblioteca que o narrador nos apresenta constituía-se de obras

que descreviam e reafirmavam as belezas naturais do Brasil, as tradições e os costumes do

povo. Nela Policarpo obteve a certeza de ter encontrado algumas representações

genuinamente nacionais: a modinha como expressão poético-musical, característica da alma

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nacional, a língua tupi-guarani, os costumes indígenas e o folclore. No entanto, a obsessão

pela originalidade cultural, muitas vezes converteu-se em decepções. Ao fim de suas

pesquisas descobriu que a modinha tinha suas raízes em Portugal, algumas tradições eram

originárias de outras culturas. Mesmo passando de uma decepção à outra até chegar ao

hospício, Quaresma não desanimou de seus projetos.

A experiência do manicômio o entristeceu profundamente: “Saiu o major mais triste

ainda do que vivera toda a vida. De todas as coisas tristes de ver, no mundo, a mais triste é a

loucura; é a mais depressora e pungente” (BARRETO, 1956). Com a saída do hospício,

Quaresma decide morar num sítio, impelido “pelos azares de leituras” das ciências naturais.

As primeiras providências foram: inventariar os animais que povoavam as terras e depois

organizar uma biblioteca agrícola. Para isso, encomendou livros nacionais e estrangeiros para

entender melhor a respeito de terras e assim poder agir. A irmã de Quaresma, D. Adelaide,

mesmo não compartilhando de seu entusiasmo pelo campo, o acompanhava, mas não

conseguia entendê-lo e refletia: “Por que não seguira ele o caminho dos outros? Não se

formara e se fizera deputado? Era tão bonito... Andar com livros, anos e anos, para não ser

nada, que doidera!” (BARRETO, 1956). O general Albernaz era outro que também não

compreendia o amigo pela escolha de vida: “Aquele Quaresma podia estar bem, mas foi

meter-se com livros... É isto! Eu, há bem quarenta anos, que não pego em livro...”

(BARRETO, 1956).

Mesmo incompreendido, Policarpo continuava crendo nos antigos relatos que

elogiavam as riquezas e opulências do Brasil. Todavia, a fé na fertilidade da terra que os

livros proclamavam, a partir de alguns contratempos ocorridos no sítio, começa a esvanecer.

Primeiro a invasão das formigas, em seguida a esperança malograda da chuva que refletia ao

mesmo tempo a imprecisão dos instrumentos científicos para a previsão do tempo, ironizada

também na fala do negro Felizardo diante da parafernália de higrômetros e barômetros

ineficazes: “-‘Quá’ Patrão! Isso de chuva vem quando Deus ‘qué’” (BARRETO, 1956).

Outros revezes mais sérios estavam por vir, como a peste que devastou o galinheiro, a

improdutividade da terra, a consciência da miséria do povo do local. Circunstâncias que

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abateram seu entusiasmo e abriram uma reflexão angustiante acerca de suas ações:

“Quaresma veio recordar-se do seu tupi, do seu folk-lore, das modinhas, das tentativas

agrícolas – tudo isso lhe pareceu insignificante, pueril, infantil” (BARRETO, 1956).

Entretanto, a consciência desses fracassos convence-o de que existia algo maior a ser

realizado em prol de “sua Pátria”. A notícia da insurreição dos navios contra o presidente

animou Policarpo a um novo projeto: “Os seus olhos brilharam de esperança. Chegou ao

telégrafo e escreveu: ‘Marechal Floriano, Rio. Peço energia. Sigo já – Quaresma”

(BARRETO, 1956).

Os livros de Botânica, Veterinária, nesta nova etapa que se iniciava, cederam lugar aos

livros de Artilharia. A biblioteca bélica de Quaresma conformava-se ao seu novo objetivo –

lutar em prol da República – por isso o novo intento de penetrar nos meandros da matemática,

a ciência preferida dos positivistas republicanos:

como sua instrução é insuficiente, da Artilharia via à Balística, da Balística à Mecânica, da Mecânica ao Cálcuclo e à Geometria Analítica; desce mais a escada, vai à trigonometria, à Geometria Analítica e à Álgebra e à Aritmética. Ele percorre essa cadeia de ciências entrelaçadas com uma fé de inventor (BARRRETO, 1956).

Novamente, todo empenho e ardor produzidos pelo mundo dos livros do major

Quaresma chocam-se com o mundo real. Com o passar dos dias a revolta começava a cair na

banalidade, assistia-se a uma onda de mortes e carnificina, e estas como uma forma de

afirmação da vitória republicana. Além do mais, Policarpo havia sido aprisionado por não

concordar com os rumos tomados pela revolta. Situações que produziam em seu espírito

imensa amargura: “Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de

sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la

muito, de contribuir para sua felicidade e prosperidade” (BARRETO, 1956). Emerge no

major, subitamente, a consciência da insanidade de crer simplesmente nas letras. Era o ápice

da desilusão interior criada pelo choque entre a pátria imaginada, tecida pelos discursos

romântico e histórico em oposição à concreta e possível.

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Este mergulho no universo livresco de forma desmedida remete-nos à obra A nau dos

loucos, de Sebastian Brant. A publicação de 1494 era um pequeno volume de versos a

respeito das loucuras e pecados da sociedade de seu tempo. Uma das ilustrações apresentadas

é a loucura do intelectual, cuja insanidade residia em se enterrar nos livros e crer que eles

eram mais preciosos que o ouro. Na esteira dessa idéia, o humanista Geiler Von Kayseberg,

em 1509, elaborou uma série de sermões baseados no elenco dos loucos de Brant, entretanto,

fixando-se na figura do louco dos livros. O humanista dividiu seu maluco livresco em sete

tipos, cada um reconhecível pelo tilintar dos sinos do bufão. Primeiro sino: o louco que

coleciona livros por ostentação. O segundo: o idiota que deseja ser sábio consumindo livros

em demasia. O terceiro: o idiota que coleciona livros sem realmente lê-los, apenas para

satisfazer sua curiosidade ociosa. O quarto: o louco que ama livros pelas imagens suntuosas

que apresenta. O quinto: o idiota que encaderna seus livros suntuosamente e tira seu prazer de

encadernações e rótulos. O sexto: o maluco que escreve e produz livros mal escritos, sem ter

lido os clássicos. Finalmente, o sétimo: o louco que despreza completamente os livros e

escarnece do conhecimento que pode obter deles (Cf. MANGUEL, 1997).

Considerando a lista de Geiler, percebemos que a proclamada loucura do major

Quaresma devido sua relação com os livros, não se encaixava em nenhum desses tipos.

Contrariamente àqueles perfis, Policarpo era extremamente sincero para com seus ideais,

levava a sério suas leituras, pautando nelas suas ações, no entanto, sem o mínimo de

criticidade. Na verdade, o que permeava suas ações e a relação com seus livros era uma certa

ingenuidade, uma fé incondicional na escritura, demonstrando um comportamento alienado.

Contudo, o romance nos apresenta uma personagem que se assemelha a mais de um dos tipos

de louco apresentados por Geiler, no caso, o Dr Armando Borges, marido de Olga, afilhada de

Quaresma. Armando ostentava o título de “doutor”, ou seja, estava qualificado, segundo os

padrões daquela sociedade para ser o leitor ideal.

O doutor Borges não passava um dia em que não comprasse livros em francês, inglês e

italiano. Gostava de exibir-se lendo diante da janela, vestido de branco, mas logo era abatido

pelo sono, especialmente quando lia Padre Vieira. Esse leitor “especial”, segundo os padrões

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do período, via os grandes romances franceses como passatempos e falatórios. Pseudo-adepto

dos grandes clássicos, tentava iludir a si, à mulher e aos vizinhos encomendando folhetins do

francês Paulo de Kock, em lombadas com títulos trocados. Com isso, forjava a imagem do

sábio, do doutor laborioso nos estudos. Muitas de suas leituras tornaram-se artigos, adaptadas

para uma escrita, definida por ele como “clássica”, porém tratava-se de alterações grosseiras

no texto original: “O processo era simples: escrevia de modo comum, com as palavras e o

jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o período com vírgulas e substituía

incomodar por molestar, ao redor, por derredor (...)” (BARRETO, 1956). Tal comportamento

de Armando Borges apenas estampava sua inépcia intelectual num contexto onde a tônica era

a erudição de fachada.

O humanista Geiler, ao pensar nas loucuras dos leitores insanos, ironizava a

competição intelectual, vazia e amadorística que permeava a sociedade de seu período.

Entretanto, esta característica pode ser totalmente aplicável à sociedade brasileira, palco do

romance, em particular, se tomarmos como exemplo a figura patética do doutor Armando

Borges – o verdadeiro louco dos livros em Triste fim. Enquanto o protagonista, aproxima-se

mais do perfil de um leitor mais acrítico e trágico do que louco.

Se pensarmos na trajetória desse leitor trágico e alienado, que vai erguendo bibliotecas

baseadas em utopias patrióticas, percebemos que o motivo da biblioteca é imprescindível para

que o autor, através de seu narrador, enrede, de forma irônica, o leitor e a personagem na

quimera, fadada a uma amarga desilusão.

O narrador por meio do percurso de leitura de Policarpo desmascara os jogos de poder

que a sociedade burguesa lança mão para imobilizar os críticos de seu sistema. Pois, na

medida em que Quaresma, lúcido, conscientiza-se da distância intransponível entre a pátria

livresca e a real, caminha em direção a sua derrocada social.

Policarpo Quaresma, inconscientemente, encarna a figura do intelectual de gabinete

imerso nos livros, alienado da realidade e por isso acreditando nos discursos construídos pelo

sistema. É provável que em função disso, o autor leva-o a atravessar o Portal dos sonhos

falsos, e ao mesmo tempo, tenta desmistificar as campanhas ufanistas do governo, a

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superioridade intelectual do “doutor” e a crença no “genuinamente nacional”, ou seja, malhas

tecidas no universo de papel.

No século XXI ainda encontramos Policarpos, mergulhados no caleidoscópio do

hipertexto, na avalanche de informações e sites, sem conseguir desvendar esse mundo novo,

comprovando o estranho paradoxo da modernidade tecnológica – quanto mais informado,

menos informado e mais alienado. Nessa direção, é necessário recordar que a internet surgiu

sob a utopia de incorporar todo o conhecimento humano, uma espécie de hiper biblioteca, que

forneceria ao leitor virtual a possibilidade de navegar e interagir com o todo o conhecimento

produzido pelo homem do passado e do presente. No entanto, a prática revelou que a internet

se assemelha mais a uma grande enciclopédia, reunindo um significativo repertório cultural,

mas abrigando indiscriminadamente o trash, ou seja, o lixo cultural que invade a web,

tornando-a território livre e sem controle. É nesse ponto que o navegador necessita ser antes

de tudo um leitor atento e crítico do universo da cibercultura, conhecendo suas demandas

próprias e suas ciladas.

É justamente nesse ponto que o incentivo à leitura crítica e investigativa poderá

minimizar os impactos dos novos modos de ler da cultura digital, pois um dos grandes

problemas da internet é o excesso de informação que dificulta a compreensão do navegador-

leitor no mundo novo da era digital, como assinala Mark Stefik:

o que transparece de fato para todos nós é a dificuldade cada vez maior de atribuir sentido ao fluxo de notícias, dados, informes e imagens que nos chega. O problema, no fundo, não é tanto haver mais informações, mas sim conseguir descobrir quais seriam relevantes para nossos interesses, já que somos massacrados constantemente com informações inúteis ou irrelevantes (STEFIK, 1999).

A análise que Paulo Freire desenvolve sobre “a importância do ato de ler” bem antes

da era digital, continua viva e atual: “De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e

dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa

forma de ‘escrevê-lo’ ou de reescrevê-lo, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática

consciente” (FREIRE, 1992). Para que a era do conhecimento alcance sua plenitude, a

sociedade tecnológica precisa preparar seus leitores para que não sejam meros operadores de

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ferramentas, mas leitores-navegadores críticos, que conseguem realizar o trânsito da leitura do

mundo, para a leitura da palavra e dela para a leitura virtual.

Nesse sentido, as políticas educacionais e os educadores não podem ignorar o poder da

cibercultura, das novas práticas de leitura frente ao computador e do poder que esse momento

da história do homem exerce sobre a sua existência. Que Policarpo Quaresma seja apenas um

exemplo, um símbolo de como não devemos viver e praticar a leitura de forma alienada, para

não cair na armadilha da ilusão de ver e viver o mundo exclusivamente no papel ou na tela.

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ANO 01 - NÚMERO 01

Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens Universidade do Estado da Bahia – UNEB

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A presença viva da cultura afro no semi-árido baiano: Religiosidade, crenças e tradições

Lúcia Parcero1

Resumo:

Propõe-se, através deste artigo, o estudo da religiosidade como fornecedora de categorias de explicação de fatos e situações em suas manifestações em uma comunidade afrodescendente, situada no município baiano de Conceição de Coité, para apreender a visão do contexto religioso, sua linguagem e suas crenças associadas às expressões culturais. Tendo em vista que em questões dessa natureza, predominam, geralmente, os sentidos consolidados, defendidos através da relação que se estabelece entre a igreja e a sociedade, pergunta-se: de que forma o saber religioso se manifesta naquela comunidade? Como ocorre o diálogo entre o saber constituído da Igreja e as crenças populares? Que ideologia está implícita nas categorias fornecidas pela religiosidade? Na tentativa de responder tais questionamentos, analisam-se três fragmentos de entrevistas realizadas na comunidade, a partir da ideologia do cotidiano, proposta por Bakhtin (1929), tomando-se a ambivalência como categoria de análise. Para o autor o estudo da linguagem se estende à elucidação de valores, crenças, expectativas que revelam a visão de mundo historicamente constituída.

Abstract: The present paper propose conceiving religiosity as providing comprehensive categories for facts and situations as they are performed in an African-Brazilian community, situated in the Bahia’s municipality of Conceição do Coité, so as to approach the religious context view, its language, and its beliefs, which are associated with cultural expressions. Considering that in such questions, the meaning which are both consolidated and claimed through the relation between church and society predominate, it might be asked the following: How is the religious knowledge performed in that community? How is the dialogue between the knowledge constituted in the Church and folk beliefs established? Which ideology is implied in the religious categories? In the attempt to answer such questions, three interview excerpts are analyzed. Such analysis is based on the category. According to Bakhtin, the study of language encompasses the elucidation of values, beliefs, expectations that reveal the historically established world view.

No semi-árido baiano é comum encontrar, em seus diversos municípios, comunidades

afrodescendentes semi-isoladas, das quais ainda pouco se sabe sobre a formação sócio-

histórica. Este estudo é desenvolvido na Fazenda Maracujá, uma dessas comunidades,

localizada em Conceição do Coité, município que foi ponto de comércio de escravos2. Fatos

da escravidão estão presentes, ainda hoje, na memória dos mais velhos, o que talvez esteja no

cerne do auto-isolamento dos habitantes daquela comunidade.

1 Professora da Universidade do Estado da Bahia - UNEB 2 O que pode ser atestado pela documentação de compra e venda de escravos, assim como, de cartas de alforria arquivadas no cartório local.

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Apesar das condições desumanas nas quais os africanos foram trazidos para cá, em sua

situação de cativeiro, das perseguições políticas e discriminações durante séculos, pode-se

verificar toda a força com que suas tradições religiosas e culturais resistiram ao tempo e às

adversidades que lhes foram impostas, permanecendo vivas nas expressões artísticas e

culturais, na língua e, principalmente, nas expressões religiosas do povo brasileiro.

Compatível com a noção de táticas de Certeau (2004), os escravos resistiram

silenciosamente à concepção religiosa dominante – a católica – e desenvolveram, através do

sincretismo3 com os santos católicos, mecanismos de apropriação, recriando significado e

práticas religiosas. Na concepção do autor ‘estratégia’ e ‘tática’ podem ser definidas como

O cálculo (ou manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que o sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolada [...] denomino, ao contrário, ‘tática’ um cálculo que não pode contar com um próprio nem, portanto, com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o outro (CERTEAU, 2004, p. 46).

Neste sentido as ‘táticas podem ser consideradas “maneiras de fazer”, isto é, são

exatamente as atitudes de resistência, de resignificações cujo poder de transformação se dá em

espaços silenciosos do cotidiano. Em relação ao imposto, os indivíduos vão se desviando das

estratégias orientadas por ideologias rígidas e por programas institucionais inflexíveis.

À semelhança dessas ‘maneiras de fazer’, os escravos resistiram à concepção religiosa

dominante e, do ‘lugar do outro’, do ‘poder’, desenvolveram, através do sincretismo com os

santos católicos, mecanismos de apropriação, recriando significados e praticas religiosas. De

acordo com Povoas (1999, p. 215)

3 O sincretismo afrobrasileiro foi um modo de sobrevivência e de adaptação do qual os escravos africanos se utilizaram. Nas senzalas e nos quilombos predominavam a reinvenção e a mistura de valores e instituições. É óbvio que os escravos foram forçados a mudar muitas coisas que não mudariam se não tivessem sido submetidos à pressão escravocrata e colonial, mas foram deles muitas mudanças, pois não permitiram transformar-se naquilo que o senhor desejava. O sincretismo está muito presente na religiosidade popular, nas procissões, nas comemorações dos santos, nas diversas formas de pagamento de promessas (REIS, 1996, p. 19-20).

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[...] enquanto se resguardava à perseguição, o fiel do candomblé vivia outra realidade cultural, um outro modo de interpretar o universo e a vida (...) Oriundo da mistura de uma massa de escravos oprimidos, alijados do pátrio poder, o escravo conservou uma visão de mundo gestada no continente africano, completamente diferente do modelo judaico-cristão e não permitiu que o sistema oficial o expropriasse de seu próprio conhecimento.

Essa’ outra realidade cultural’ a que Povoas se refere pode ser interpretada como

uma ‘tática desviacionista’, ou seja, a forma que os adeptos do candomblé encontraram

para preservarem sua visão de mundo e exercerem suas crenças associando as

qualidades e ou os atributos de suas divindades — orixás ou inquices — às dos santos

católicos e, do mesmo lugar, onde atuavam as estratégias institucionais, os adeptos do

candomblé reelaboravam elementos advindos de seus ancestrais e resistiam ao que lhes

era imposto pelo sistema constituído da Igreja.

Dessa forma, durante o período da escravidão, nos centros urbanos, alguns escravos

das mesmas nações (jeje, nagô, haussas, congo, angola, moçambicano, entre outros), aos

poucos, foram se organizando em terreiros de candomblé, outros criaram irmandades

religiosas junto à igreja católica, como estratégias para preservarem suas tradições,

desenvolvendo uma consciência racial4. Atualmente, continuam se organizando não apenas

em irmandades5, mas também através da música, de expressões artísticas e, principalmente,

do candomblé, que tem influenciado favoravelmente intelectuais, artistas, empresários e

políticos. Em algumas regiões do país, a cultura afro vem conquistando espaço, contribuindo,

dessa forma, para mudar o quadro de discriminação étnica ainda muito presente em nossos

dias.

Embora até recentemente a prática do candomblé fosse perseguida, movimentos dessa

natureza têm contribuído para mudança de atitude da sociedade em relação às suas

4 Vale precisar que se entende consciência racial como uma construção histórica e não como um dado da biologia, assim, não é na cor da pele nem nos demais traços fenótipos de um grupo que reside a sua identidade, mas são, antes, as interpretações social e cultural dadas a essas características biológicas que criam, simbolicamente, a identidade do grupo (PEREIRA, 2002:65). 5 Atualmente, algumas dessas irmandades sobrevivem reunindo e prestando serviços à população afrodescendente, a exemplo da Irmandade de Nossa Senhora dos Pretos localizada no Pelourinho em Salvador e a de Nossa Senhora da Boa Morte na cidade de Cachoeira.

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manifestações religiosas e, nos últimos anos, iniciados do candomblé já não hesitam em

divulgar para o mundo exterior certos conhecimentos, contos ou mitos relacionados ao divino.

Essas atitudes têm levado os afrodescendentes a buscarem ações afirmativas junto à

sociedade, em diferentes áreas sociais para mudança das desigualdades ainda verificadas.

A zona rural, entretanto, não parece estar passando pelo mesmo processo de

desenvolvimento da consciência racial. Pouco ainda se sabe sobre suas tradições religiosas e

culturais. As atividades exercidas no candomblé não são assumidas fora de seus pares, talvez

porque ainda sejam muito estigmatizadas pela sociedade local.

Na zona rural, os escravos trazidos para o Brasil, no período da conquista e do

desbravamento da colônia, foram distribuídos em pequenos grupos em fazendas distantes uma

das outras, numa época em que as comunicações com os centros urbanos eram difíceis.

Apesar do isolamento, muitos traços culturais resistiram e foram preservados, principalmente,

em relação à expressão religiosa.

Dadas às características peculiares das comunidades afrodescendentes na zona rural na

Região Sisaleira, no semi-árido baiano e, dada à carência de pesquisa sobre essas minorias

étnicas na região, decidiu-se realizar este estudo na Fazenda Maracujá, um desses locais

isolados, onde os indivíduos conservam características de cultura africana no modo de vida,

na linguagem e sobretudo no aspecto religioso.

Busca-se, então, refletir sobre a religião como elemento chave no papel que desempenha

no fortalecimento de valores culturais, no contexto social global de uma comunidade com

suas marcas históricas e culturais próprias Alkmim (2001, p.38). É possível observar, nos

grupos sociais, que o anseio religioso aparentemente inerente à espécie humana pode se

manifestar de forma culturalmente diversa e atuar também como marcadoras de identidade

dos grupos, como mostram as pistas fornecidas pela linguagem dos informantes. Segundo

Bakhtin (1929), a religião é uma esfera ideológica da atividade de comunicação humana que

se realiza por meio de atividades sociodiscursivas e culturais que, por sua vez, são esferas da

atividade da comunicação verbal no interior de um grupo.

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Pretende-se, por conseguinte, estudar a religiosidade como fornecedora de categorias de

explicação, de fatos e de situações na comunidade. Assim, a partir do pressuposto de que o

saber institucionalizado da Igreja se sustenta, muitas vezes, no medo e na fé, pergunta-se:

como ocorre a interação entre o saber constituído da Igreja e as crenças religiosas populares?

Quais as categorias de explicação fornecidas pela religiosidade para fatos e situações? Que

ideologia está implícita em tais categorias? A partir desses questionamentos, pretende-se fazer

uma reflexão sobre a linguagem de alguns trechos das entrevistas que constituem o corpus da

pesquisa, considerando-se que

um caminho a percorrer é precisamente aquele que nos apontam as relações atentas com a alteridade, porque elas nos permitem também, como a arte, escutar o estranhamento. As ações do outro, os dizeres do outro, prenhes de sua cultura, quando confrontados com objetos e fenômenos que nos escondem as valorações que nós mesmos lhes atribuímos, mostram-nos o que não mais conseguimos enxergar (GERALDI, 2003, p. .6) 6

Desse modo, quando se analisam entrevistas, não se pode perder de vista que é o

sujeito que se expressa, mas sua voz carrega o tom de outras vozes, refletindo a oralidade de

seu grupo, gênero, etnia, classe, momento histórico (FREITAS 2002).

As reflexões apresentadas neste texto têm como eixo teórico o conceito bakhtiniano

de ‘ideologia do cotidiano’ articulado a outras concepções afins que permitem uma estreita

ligação entre a expressão lingüística materializada e os sistemas ideológicos constituídos.

Nesse sentido, a ideologia não é individual, pois sua natureza não se define, necessariamente,

por uma relação de classes, mas se refere, sobretudo, por um caráter semiótico e, portanto,

social, uma vez que todo sistema de signos é relativo a um grupo organizado em sociedade

(BAKHTIN 1929).

O conjunto de signos de um determinado grupo social forma o que Bakhtin chama de

‘universo de signos’. E todo signo, além da dupla materialidade — sentido físico material e o

sentido sócio-histórico — ainda recebe um ‘ponto de vista’, pois representa a realidade

através de um lugar valorativo, revelando-a como verdadeira ou falsa, boa ou má, positiva ou

6 Alteridades: espaços e tempos de instabilidade. 2003 (mimeo).

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negativa, o que faz o signo coincidir com o domínio ideológico. Não se trata, portanto, de

análise através da subjetividade humana, mas de considerar as condições culturais em que as

comunicações sociais se estabelecem para encontrar o sentido dos signos que penetram a

consciência humana. Dessa forma, a visão do mundo, o lugar valorativo e a situação são

sempre determinados sócio-historicamente, assim como o sentido real da mensagem só pode

ser compreendido pela análise do conteúdo ideológico contido no texto ou nas expressões

(MIOTELLO 2005, PONZIO 1998).

Interpretando Bakhtin, Ponzio (1998, p. 113) considera o ‘signo’ verbal como uma

enunciação completa, que pode ser representada por apenas uma palavra que não pode estar

separada do contexto social e do terreno ideológico a que pertence. Além do mais, é uma

comunicação que responde a um diálogo, parte constitutiva de uma interação social.

Tomando-se como exemplo o fragmento “todo mundo reza”7, pode-se afirmar que o mesmo

só pode ser entendido e interpretado dentro do contexto em que foi produzido, já que faz parte

de uma interação sócio-cultural nele situada.

Nessa concepção, são também partes integrantes da constituição dos sentidos o emissor,

o receptor e o contexto situacional no qual se realiza a interação. Ponzio (1998, p.121)

complementa ainda que não se pode avaliar o caráter sócio-ideológico da estrutura sintática se

“se estuda apenas a expressão monológica separada de seu contexto verbal e situacional, se se

estudam fragmentos do discurso que não têm a ver com a expressão completa, mas com seus

elementos constitutivos (fonética, fonologia, semântica, sintaxe)”.

Enquanto os signos, de uma forma geral, representam formas ideológicas específicas e

representativas dos domínios nos quais foram gerados, a palavra possui uma neutralidade

inicial e pode, por isso, servir a todos os domínios como nenhum outro material o consegue,

tornando-se signo ideológico a serviço da ciência, da moral, da religião e de qualquer outro

campo particular. O signo, bem como os símbolos específicos de cada campo, possui uma

7 Confira enunciado na p. 15.

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função ideológica a qual lhe confere sentido. Além do mais, o signo se caracteriza por sua

natureza viva, plurivalente. A este respeito, Ponzio (1998, p. 114) afirma que

o signo é o campo da indeterminação, da ambivalência, do desvio, da relatividade; é o campo no qual tudo se decide socialmente e se determina por circunstâncias, por relações por práticas sociais, que se especificam em cada ocasião. Essa característica de signidade se revela, sobretudo, na linguagem verbal, dada suas circunstâncias.

Dessa perspectiva, pode-se afirmar que a atividade humana está repleta de

representações e de índices de valor que, embora sejam absorvidos pela consciência

individual, são socialmente produzidos.

Os índices de valor com características ideológicas, ainda que realizados pela voz dos indivíduos (por exemplo, na palavra) ou, de modo mais geral, por um organismo individual, constituem índices de valor, com pretensões ao consenso social, e apenas em nome deste consenso é que eles se exteriorizam no material ideológico (BAKHTIN 2005, p. 45).

Esse caráter coletivo (social) da produção das idéias pode ser o que o autor

denomina ‘formas estereotipadas’, ou seja, formas de vida comum relativamente

regularizadas, reforçadas pelo uso e pelas circunstâncias, que refletem o tipo, a estrutura,

os objetivos e a composição social do grupo.

A identidade do homem, por conseguinte, não é só formada por características

individuais, mas também e, principalmente, pelo meio sócio cultural no qual está inserido.

Bakhtin aponta para as relações interativas que ocorrem no cotidiano das pessoas como

espaço importante da comunicação social e onde as coisas acontecem de modo sensível.

Dessa forma, diferentemente da ideologia oficial que tenta implantar uma

concepção única de produção de mundo, a ideologia do cotidiano se constitui no espaço

onde prevalecem as contradições, a pluralidade de idéias e de concepção de mundo. Se os

discursos hegemônicos tentam apagar o real como quer os sistemas constituídos, pode-se

encontrar as diferenças, as contradições bem como a diversidade de idéias nas contra-

palavras que evidenciam o real.

É, portanto, com base nos pressupostos apresentados, tomando-se a ambivalência

como categoria de análise, que se pretende combinar os dados da pesquisa à análise

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detalhada de comportamentos e seus significados. Pretende-se, ademais, relacionar os

resultados da pesquisa a um contexto social maior em que os comportamentos estão

inseridos.

Os trechos para análise, a seguir, fazem parte do corpus de um projeto intitulado

Língua e Cultura da Região Sisaleira – LCRS8 e foram selecionados das entrevistas

realizadas com a informante AMS, com 56 anos de idade, líder religiosa da comunidade.

No fragmento 1, a interlocução ocorreu na roça, em junho de 2000, entre a DOC que

desejava conhecer as atividades da comunidade e observar como as crenças e as

particularidades se expressam na linguagem de uma das moradoras, detentora do

conhecimento sobre as práticas da lavoura e sobre as relações do dia-a-dia entre os

moradores da localidade.

Fragmento 1

Inf. Nóis vai tê mio cum base de dois mês, fejão também é cum dois mês que ele ta maduro. Esse daqui chega dá gosto. Nóis tem tudo aqui. Se Deus num mandá o contraro, tá maduro. Esse aqui chega dá gosto. E, se o só num entrá e acabá tudo. O ano que .. que passou tava tudo desse jeito, cabou mio, cabou fejão, num deu nada, no ano passado, uns chorava, ôtos ficava tris .... ‘Minha gente vamo se consolá que Deus é nosso pai’. Eu sô uma pessoa tão conformada em Deus que na maió aflição ele me socorre. Eu disse: ‘Gente Deus é nosso pai ele [inint] nóis perdeu quem sabe, quem sabe por causa dos castigo, porque uns faz bom ôtos faz rúim, então quem sabe quem sabe se tivesse aqui aquele mantimento todo o que um fazia com o ôto’? Então deixa passá que é pra se compreendê. ‘Num vamo chorá por isso não porque o que ele perdeu cum ele, ele [inint] drobado, pra nos dá, n’certo?

Gente se desesperava pá trabaiá e nun ganhá, num sei o que [inint]. Eu digo a bom, vocês vão se desesperá cum Deus’? Porque quem dá é ele e quando nóis perde, nóis vai xingá ele? Tem como xingá? Tem muita gente que se desespera. Não senhora, num tá aqui ói, [a plantação] a senhora tá veno tudo nas mão de meu pai se meu pai me dé eu recebo. Se ele dizê: ‘minha fia tu trabaiô, mas tu não vai tê a mesma coisa a consegui a Deus, ta certo?

Doc. Hum, hum

Inf. Muitos num diz que a gente tem que passá pá crente, que a lei de crente num sei quê. Não [inint] eu [inint] de Deus num falo mau da vida dos ôto, num sô farsa a ninguém, faço a caridade, se eu vê um cum fome eu vô ajudá como, se eu vê um nu, tivé duas rôpa eu vô dá uma, então o que vale é nóis segui a Deus, mulé, tá certo?

8 Trata-se de uma pesquisa desenvolvida no Campus XIV da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, sob a coordenação da Profa. Lúcia Maria de J. Parcero. Vale esclarecer que nas entrevistas foram utilizadas as seguintes convenções INF (informante); DOC (documentador); ... (hesitação) [inint] (para palavras ou expressões ininteligíveis). Além disso, para se referir aos informantes utilizam-se GR1-5 (grupo 1, informante 5); GR2-1 (grupo 2, informante 1.)

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Diante das incertezas que a vida oferece, ao plantar, o lavrador da região tem apenas

uma certeza: os resultados da colheita são duvidosos. Ele sabe que poderá ter uma safra boa

ou ruim, ou ainda que está sujeito a perder tudo o que plantou como ocasionalmente ocorre

por conta do fenômeno da seca que atinge o Nordeste.

Apesar desse conhecimento adquirido pela experiência e como não sabe explicar o

fenômeno, a INF expressa uma atitude de resignação aos desígnios de Deus, na crença de um

Deus ambivalente que dá e que castiga, ela culpa alguns moradores — por causa dos castigo,

porque uns faz bom e ôtos faz rúim — pelas perdas ocasionadas pela seca, cujos efeitos

podem ser amenizados pela ação humana, já que se trata de um fenômeno previsível.

Ao longo da História, a instituição religiosa utilizou-se da alienação humana, através

de promessas para alcançar o paraíso pós-morte. A vida e as idéias da Idade Média estavam

voltadas para a elevação espiritual e para a formação moral de religiosos e leigos, “a

santidade identifica-se com um tipo de vida e com um modelo de comportamento que se

baseavam na pobreza e na renúncia” (LE GOFF, 1989, p. 224). Viver à semelhança de Cristo

era o ideal da Igreja.

Nos dias atuais, o sertão nordestino, de maneira similar ao que acontecia na Idade

Média, se vale da concepção religiosa fundamentada na cultura do medo, sendo a fé

manipulada em nome da salvação, a fim de manter os desfavorecidos pelas circunstâncias de

nascimento, de modo a suportarem o meio hostil em que vivem.

Se se considerar que todo enunciado remete a outros dizeres, ou mesmo como afirma

Bakhtin (1929, p. 291) que “cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros

enunciados”, verifica-se, então o ‘fenômeno da polifonia’. Conceito que foi retomado e

desenvolvido por outros autores entre eles Ducrot em ‘teoria polifônica de enunciação’ e

Authier-Revuz (1982 e 1990) no construto teórico conhecido como ‘heterogeneidade

discursiva’. Nessa concepção a heterogeneidade é um traço constitutivo do discurso, de sua

organização.

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Assim dos enunciados ‘Ele [Deus dá] drobado pra nóis’ e Nóis perdeu quem sabe por

causa do castigo’ pode-se depreender ‘outras vozes — a da Igreja Católica — em uma

mistura de valores antagônicos, ou seja, a crença em um Deus ambivalente que dá, que prover

o alimento sob determinadas condições, mas que castiga a todos pela falta de fé ou pela

desobediência de alguns.

Depreende-se, ademais, da resposta de uma ‘católica’ em ‘Muitos num diz que a gente

tem que passá pra crente ... num sei que’, o discurso de convencimento dos evangélicos que

circula na comunidade, como parte constitutiva necessária ao sentido como um todo.

Observa-se, ainda no fragmento, que a expressão ‘ser bom’, na definição dada por

AMS, para além dos aspectos morais, consiste em fazer caridade, dividir o pouco que se tem

com outros, ainda menos favorecidos, visão compatível, portanto, com a filosofia da Igreja na

comunidade.

O fragmento 2 a seguir foi extraído da mesma entrevista do fragmento 1, quando na

roça AMS mostrava as suas plantações.

Fragmento 2

DOC – Tá bonito. E essa planta aqui, fale de novo sobre ela. Fale de novo sobre essa planta. Como é o nome da planta?

INF. Essa planta chama pára-raio. Ela chama pára-raio, ela é uma planta que se tivé ela na porta num cai curisco, num cai raio na porta, num cai, tá entendeno? Ela chama assim é boa demais essa planta. Agora a gente planta ela, a gente [inint] e ela é planta rendeira. A gente planta um pé, planta dois, a semente cai ói, o terreiro todo tem ela.

DOC – E tem algum caso aqui de queda de raio?

INF. De queda tem. Aqui pela região? Tem. Agora graças a Deus pá nós não, mas de vez em quando cai na braúna, cai no licurizero. A senhora vê o licurizero morto. Que ele cai e mata. Ni Alma [localidade próxima], ni Alma com poucos tempo agora ni Alma, ali mermo base de um ano mais o meno, caiu den’de casa de um home, tá entendeno? Den’de casa, o home ficô pateto [inint] no chão, levaro ele pro médico. Aqui ni Cansanção. Dessa chuva que deu agora cum base duns ... duns... daquela trovoada que deu em janeiro, a senhora lembra né?

DOC – Hum, hum,

INF – Aqui ni Cansanção chama Luiz de Gago, o fio dele chama José. Tava de rádio ligado num sei ... o som, eu sei caiu minha senhora em cima da peça quand’ estorô no chão, o curisco entô den’de casa afundô assim a peça e entô de chão a dento. Ficô o ôco den’de casa. Aqui ói, aí ni Cansanção pra cá de Juazero. Aqui tem contecido, agora graças a Deus pá nós não, graças a Deus.

DOC – E quando tem trovoada, é ... as pessoas deixam o rádio ligado?

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INF – Não. Eu num dexo. Deus me live ni minha casa, ói ni minha casa eu cubro o rádio, eu cubro o espeio de estante, num fica nada. Eu cubro tudo. Deus me livre esse povo que num credita, descreditavo, aí tem que vê mermo. Tem que vê os estrago porque a gente tem que confiá em Deus, sabê que Deus tá mandano castigo num é certo? E muita gente num credita.

A partir da crença do poder de uma planta de evitar raios, conhecida na região como

pára-raio9, a conversa evoluiu para o fenômeno do relâmpago. Para além do conhecimento da

população sobre os poderes das plantas na cura de várias doenças, o fragmento evidencia

outros saberes adquiridos pela vivência. Observe-se em ‘mas de vez em quando cai na

brauna, cai no licurizero. A senhora vê o licurizero morto que ele cai mata’, implícito, o

‘Efeito das Pontas10’ em relação a descarga atmosférica (raio). Ao contrário desse princípio, a

planta pára-raio tem poderes contra forças sobrenaturais — evitar acidente provocado por raio

no local. É possível que algum saber se esconda nessa crença, entretanto, talvez por não saber

explicitá-lo, a INF atribui à planta uma força divina. Desligar objetos como rádio, cobrir

espelho, guardar tesouras, facas entre outros que podem atrair raios, não é uma atitude

exclusiva da comunidade, é muito comum, por exemplo, nas pequenas cidades do Nordeste,

nas palavras da INF. ‘Eu num dexo [o rádio ligado]. Deus me livre, ni minha casa ói, ni

minha casa eu cubro o rádio o espéio da estante, num fica nada’. Apesar da falta de

familiaridade com a tecnologia, há aí um conhecimento da prática sobre a energia do rádio

como campo magnético de atração, portanto, desligar o rádio é desligar um campo de poder

magnético. Além disso, como no fragmento 1, reaparece a imagem de um Deus que castiga,

como diz AMS ‘Deus me livre esse povo que num acredita, descreditavo, aí tem que vê

mermo, tem que vê o castigo porque a gente tem que confiá em Deus, sabê que Deus tá

mandando castigo (...) e muita gente num credita. Assim, os fenômenos naturais tais como

chuva, relâmpago, estiagem (seca) são explicados como forma de castigo por desobediência a

Deus.

9 Refere-se a uma planta de pequeno porte, com folhas arredondadas e altura entre um a dois metros. 10 De modo simplificado, o fenômeno do ‘Efeito das pontas’ corresponde a um princípio da Física, utilizado na tecnologia dos pára-raios. Uma vez que em um condutor eletrizado, a carga tende a acumular maior concentração nas pontas mais altas e pontiagudas, ao procurar um caminho para sua descarga, o raio atinge pontos como topo de morros, árvores isoladas, entre outros.

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O fragmento 3 foi extraído da entrevista realizada em outubro de 2004, também com a

informante AMS, com o objetivo de verificar como se articula na comunidade, a

manifestação do catolicismo com o candomblé, sob a orientação de uma mesma liderança.

Fragmento 3

Inf. Mora perto de A [MSM]. Ela eu arcancei rezando que ela é mais véia do que eu e aí arcancei

rezano e hoje eu rezo mais ela. Nóis duas é a rezadeira daqui de dento. Pá toda parada aqui é eu e ela

rezando. Somo rezadera porque o povo vai à reza, qualquer reza. TBS já é de Nossa Senhora

Aparecida do Nor ... de Santa Luzia, que ele tinha as vista doente a mãe fez uma promessa pá ele

caminhá de joelho do Valinho até den’de casa, quande ele era sortero que ele tinha as vista quase

cega.

Doc. Ele ficou bom?

Inf. Ficou. Ele ficou bom. Ele caminhô de joelho, caminhô de joelho com a D. Luzia na mão, que a

mãe dele fez essa promessa ficou, não ficou cego das vista ficou bom. Agora ficou continuano aquela

promessa todo ano rezar pra Santa Luzia, ta veno? Ele reza 27 de dezembo. Agora quem reza é eu

mais cumade MSM, aí tem lelão.

Doc. Aí depois da reza tem leilão, depois tem a festa.

Inf. Tem samba, tem o lelão depois do lelão o samba. É se tiver batuque de candrombé tem, se não

tivé [lá num tem] é samba de brasieliro. É só tem o canto que a gente tira ao lado, assim de Cosme, o

que vai dá caruru, tá entendeno, né? Mas essa reza como a dele que é de Nossa Senhora Aparecida

[Santa Luzia] que todo mundo reza. Um de santa Luzia como ele reza, outos santos como

sant’Antônio , como muita gente reza aí, aí só tem samba brasileiro. Entende o brasilero cumo é?

Doc. Sei.

Inf. Apôs, só tem o brasileiro.

Doc. O brasileiro eu já vi aqui, num é? Já vi aqui.

Inf. Já viu, pois é o brasileiro. Como no prédio a gente num cantemo ele no prédio?

Doc. Ali é o samba brasileiro.

Inf. Aquele é o brasileiro.

Doc. E o outro, como é que chama?

Inf. Samba de candrombé.

Envolvido de forma direta com os elementos da natureza, com o poder curativo das

plantas, o homem do campo se dirige à divindade, muitas vezes sem a mediação da Igreja

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oficial. Assim, verifica-se que na comunidade, embora haja uma representante da igreja,

GVN11, encarregada da catequese e de outras orientações da igreja católica, seu papel é

secundário, já que na prática, em momentos de dificuldades, de doenças, de dor ou mesmo

nos momentos de alegria, de celebração, os moradores recorrem à palavra, ao conselho, à

oração de membros da comunidade — as rezadeiras — que dispõem de um saber religioso

reconhecido pelo grupo como eficaz para essas circunstâncias.

Vale ressaltar que nas representações da comunidade, AMS exerce o papel de

rezadeira, o que inclui ministrar as atividades de rezas aos santos católicos de devoção dos

moradores: Santa Luzia, Santo Antônio, Bom Jesus da Lapa, bem como ministrar as

cerimônias do caruru (candomblé) para aqueles que cultivam essa prática cujos rituais são

oferecidos aos Orixás Iansã (Santa Bárbara) e aos Erês (sincretizados com os santos gêmeos

São Cosme e São Damião).

Como curandeira, a representante possui também a arte de curar através das

tradicionais rezas para murfina, olho grosso (inveja), reza do vento e outras. Desse modo,

juntamente com MSM, outra moradora, AMS assume o papel de rezadeira, em suas palavras

‘somo rezadera daqui de dento. Pá toda parada é eu e ela rezano!. Somo rezadera porque o

povo vai à reza. Acrescente-se, ainda, que a INF conhece o poder curativo das plantas e seu

papel inclui receitar chás e banhos de folha para doenças físicas e para males do espírito.

Há, portanto, na expressão religiosa12 da comunidade uma divisão entre reza que

corresponde às manifestações religiosas oferecidas a um santo católico e caruru que

corresponde às manifestações do candomblé, na prática, entretanto, esses rituais se misturam.

Como na ‘arte de fazer’ de Certeau, a noção de ‘tática desviacionistas’ diante dos

sistemas dominantes, como mencionado na introdução desse trabalho, pode ser aplicaao ao

sincretismo religioso. A partir dos modelos hegemônicos, os receptores das mensagens

11 GVN, nascida na comunidade, tem 36 anos, cursa atualmente o 2º grau na sede do município, é a agente de saúde e a representante da Igreja Católica no local. 12 Além do catolicismo e do candomblé, a comunidade conta com três famílias evangélicas da Igreja assembléia de Deus. Essas famílias demonstram intolerância às práticas religiosas da comunidade e não participam das mesmas.

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oficiais não são passivos e, do imposto, desenvolvem mecanismos recriando significados e

práticas.

Assim, diante da religião dominante — a católica — os escravos exerciam suas

crenças e resguardavam suas concepções religiosas. As ‘táticas desviacionistas’ não

obedecem à lei do lugar e, desse modo, sem sair do lugar no qual tem que viver o que lhe

impõe a lei, o indivíduo instaura aí a pluralidade e a criatividade (CERTEAU, 2004, p. 92).

Na Fazenda Maracujá, ainda hoje táticas semelhantes são usadas, em sincretismo com

os santos da igreja, atrás das rezas e comemorações se esconde o candomblé, religião

dominante do local.

O fragmento 3 é parte da entrevista realizada na casa da informante em outubro de

2004, cujo foco principal é o milagre da cura de TBS, de 63 anos, morador da comunidade.

Longe do acesso aos cuidados médicos e aos avanços da medicina, em situações de doença,

os moradores buscam sua cura pela magia, isto é, procuram um curandeiro ou o milagre

concedido pelos santos através de promessa, uma espécie de negociação com o divino, com os

santos.

A promessa é feita ao santo de devoção ou, dependendo do domínio de atuação de

cada santo, o solicitante pode recorrer àquele que melhor atende a sua necessidade específica

e, como retribuição à graça concedida, ele assume a dívida a ser paga, ao santo ou à entidade

sobrenatural, em forma de reza ou de oferendas. Assim, uma promessa é, ao mesmo tempo,

um apelo aos santos diante de uma dificuldade que está fora do alcance do mortal e um

contrato dialógico entre o mortal e o imortal o santo, a força sobrenatural, e requer uma

atitude responsiva do Santo como ‘condição de sucesso’ para que se pague a promessa. Há,

portanto, um duplo comprometimento. “As promessas religiosas são realizações especiais do

ato de prometer13, e como tal devem ser analisadas, pois envolvem crenças, valores culturais

específicos e não apenas uma relação social entre indivíduos” (REZENDE, 2000, p. 144).

13 Promessas são expressões performativas, um ato de fala ilocucional, formal e bem articulado consistindo no comprometimento por parte do locutor. Além disso, a promessa requer um tipo de ocasião ou situação que a exija. (Searle, 1981)

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Outro aspecto da promessa é que o indivíduo assume o compromisso que se

materializa na reza ou na oferenda, temendo um castigo pelo seu não cumprimento, em

respeito ao contrato firmado por ele próprio ou por algum antepassado.

Neste caso, a promessa foi feita à Santa Luzia, protetora da visão, pela mãe de TBS,

como afirma a INF.

Inf. – (...) ele tinha as vista doente a mãe fez uma promessa pra ele caminha de joelho, pra ele caminha de joelho do valinho até den’de casa, quando ele era sortero que ele tinha as vista quase cega.

Doc. ele ficou bom.

Inf. Ele ficou bom. Ele caminho de joelho, caminhou com D. Luzia na mão, que a mãe dele fez essa promessa ficou, não ficou cego das vistas ficou bom. Agora ficou continuando aquela promessa todo ano reza pra Santa Luzia, ta veno? Ele reza 27 de dezembro. Agora quem reza é eu e cumade AMS, aí tem lelão.

Como retribuição pela graça alcançada, TBS assumiu o compromisso feito por sua

mãe de agradecer à santa com orações durante toda a sua vida, o que ocorre, anualmente, em

27 de dezembro, em sua residência.

A partir da concepção bakhtiniana, a forma de conceber o mundo, bem como as

tradições culturais dos indivíduos estão refletidas na linguagem. Na passagem a seguir, pode-

se depreender aspectos culturais nas práticas religiosas peculiares do grupo.

Doc. – Aí depois da reza tem leilão, depois festa.

Inf. Tem samba, tem lelão depois do lelão tem samba. É se tivé batuque de candrombé tem, se num tivé [lá num tem] é samba brasilero. É só tem o canto que a gente tira ao lado, assim de Cosme, o que vai dá caruru, ta entendendo, né? Mas essa reza como a dele que é de Nossa Senhora Aparecida [Santa Luzia] que todo mundo reza. Um de Santa Luzia como ele reza aí, aí só tem samba brasileiro. Entende o brasileiro como é?

Doc. Sei.

(...)

Doc. E o outro, como é que chama?

Inf. Samba de candrombé.

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Dessa forma, como ensina Bakhtin (1929, p. 70), analisar o fenômeno da linguagem

implica em “situar o locutor e o receptor, bem como o próprio discurso no meio social”. A

exemplo, na expressão ‘todo mundo reza’ está implícito que no candomblé, diferente das

rezas, nem todos participam.

Além do mais, as palavras carregam valores historicamente constituídos. “A palavra

está sempre carregada de um conteúdo ou de um sendido ideológico ou vivencial. É assim

que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós

ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida” (BAKHTIN, 1929, p.:95). Assim, samba

vem, etmologicamente, do banto das línguas Quicongo e Quimbundo, nas quais, além de

significar cerimônia pública de macumba, a palavra significa também rezar, orar (PESSOA

DE CASTRO, 2001, p. 333), portanto, ela manteve o seu significado africano nas

manifestações religiosas da comunidade. Observe-se então, que no trecho há samba e samba,

ou seja, há o samba acompanhado do atabaque e de cânticos que possuem toda uma

simbologia dentro do candomblé e o samba que segue as rezas acompanhado pelos

sambadores que tocam os sambas conhecidos na região. Vale ressaltar que o adjetivo

‘brasileiro’ e a expressão adjetiva ‘de candrombé’ foram colocados para explicitar os

diferentes valores da palavra no local a um interlocutor estranho ao mesmo — a pesquisadora

— , pois na comunidade a palavra ganha sentido na situação de comunicação, isto é, de onde

ocorre o evento e de quem o oferece. Dispensa, portanto, a adjetivação.

Após as cerimônias religiosas, seja reza ou caruru, se realiza um leilão. Essa prática

faz parte das festividades religiosas de qualquer natureza, consiste em animadamante se

colocar para arremate, como nos conta AMS14, ‘latas de doce, sabonete, frasco de perfume,

tudo bota no lelão, bota tudo no remate aí sai por um real. E então prossegue o samba.

Nas representações do local existe também o papel do ‘sambador’. Os sambadores,

geralmente, são homens que tocam instrumentos e cantam os sambas conhecidos na região,

acompanhados dos presentes, que cantam e batem palmas. Eles também são chamados para

14 O trecho faz parte da entrevista realizada com a informante em junho de 2000 e não consta dos fragmentos aqui apresentados.

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exercerem seu papel nas localidades próximas. Assim, a região conta com um grupo de

sambadores, os quais, com uma viola e com instrumentos simples tipo enxada15, pandeiro ou

chocalho, sustentam o samba até o dia amanhecer, quando é oferecido um café pelo dono da

casa.

Vale ressaltar, além disso, que, na região, fora da comunidade, e até mesmo entre

alguns jovens da mesma, a prática do candomblé é muito estigmatizada. Para ilustrar esse

fato, tomam-se aqui fragmentos da entrevista realizada com TLS16, informante moradora da

sede do município, referindo-se a sua mãe que se diz católica ‘minha mãe dança, só que se eu

tivé no caruru, aonde eu tivé ela não dança, porque ela sabe que eu não gosto, ela tem

vergonha. E outro dia eu soube que a minha irmã mais velha invocava sempre’. No trecho

para denominar o processo de transe, a informante usa expressões do tipo ‘invocar’, ‘dançar’.

Em decorrência, ela evita o termo ‘dar santo’, como é popularmente conhecido no

candomblé. Ademais, o enunciado ‘ela tem vergonha’ expressa com precisão o sentimento

dos adeptos do candomblé em relação às pessoas de fora desses cultos. Esses fatos podem

remeter ao valor negativo que as palavras e expressões associadas ao candomblé carregam.

Observe-se ainda nas palavras de TLS ‘Eu num entendo essas coisas que os mais

velho num gostam de falá dessas coisas. Às vezes eu pergunto a minha tia M ‘minha tia

porque a siora se envolveu nisso? Ah! a gente adoeceu e precisou’. Assuntos sobre os quais

não se falam são também significativos e, neste caso, podem reforçar a idéia dos valores

negativos atribuídos às práticas do candomblé.

O samba faz parte das principais atividades religiosas sociodiscursivas e culturais, nas

quais as manifestações da fé se materializam, intimamente relacionadas ao sincretismo e se

constituem parte importante da religião. O samba ao toque do atabaque é um ritmo a partir do

qual as pessoas se entregam ao êxtase do transe produzido por danças, músicas agitadas, na

alegria contagiante das celebrações religiosas. É o espaço onde se neutralizam as diferenças

15 A enxada sem cabo também serve como instrumento musical, com o auxílio de uma colher produz o som 16 A informante, de 26 anos, apesar de ter nascido na comunidade, foi criada por uma família católica da sede do município, sem conhecer os seus pais biológicos, com os quais só veio a ter contato após os dezenove anos.

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que separam as duas crenças religiosas predominantes na comunidade, já que o Orixá pode se

manifestar tanto no samba que segue a reza, quanto no que segue o batuque do candomblé. A

diferença, entretanto, consiste no fato de que no samba de candomblé há o toque do atabaque

como forma de invocação para a entrada do Orixá, ou seja, a entidade é convidada a se

manifestar; já no samba das rezas aos Santos católicos, a manifestação do Orixá é espontânea

as duas crenças se misturam de tal forma que, nos cultos aos santos, há manifestações de

entidades do candomblé, nos rituais do candomblé não se dispensam velas, imagens de santos,

novenas e ladainha.

Do convívio com a comunidade e com base nos trechos das entrevistas analisados,

depreende-se que diante de fatos ou de situações que não conseguem explicar, entender ou

justificar, os informantes buscam as explicações entre a magia, a devoção e a fé.

Longe, portanto, de um discurso homogêneo, prevalece a ambivalência, assim, o Deus que

concede a graça, o milagre de cura das doenças é o mesmo que castiga com a seca que assola

a região, com os acidentes naturais, a exemplo da ‘queda de raio’. Desta forma, pode-se dizer

que a principal característica dos eventos religiosos é sua heterogeneidade materializada na

linguagem que carrega crenças e valores sócio-historicamente constituídos no interior da

cultura da comunidade.

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LE GOFF, J. O homem medieval. Lisboa: Presença, 1989, p. 211-230.

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O vídeo-poema como performance: Movimento e corporeidade virtual da palavra

Luciano Rodrigues Lima1

RESUMO: Este trabalho discute a natureza “performática” e inter-semiótica do vídeo-poema, ligada à noção de arte como performance, isto é como um processo contínuo e não como um produto acabado, uma característica da contemporaneidade. Aspectos como virtualidade, criatividade, interatividade e imprevisibilidade na construção e recepção do vídeo-poema são discutidos aqui. Como exemplificação, serão descritos e indicados vídeo-poemas disponíveis na internet. Por último, são sugeridos alguns recursos técnicos de fácil acesso contidos no programa PowerPoint, relativos a efeitos sonoros e visuais, tanto fechados (acessáveis a partir de um repertório limitado dentro do próprio software) quanto abertos (inseridos a partir de qualquer música, filme ou vídeo já gravados), para a construção de vídeo-poemas. Palavras-chave : Vídeo-poema – performance - interatividade – criatividade ABSTRACT: This work discusses "the performatic" nature and Inter-semiotics of the video-poem, related to the notion of art as performance, that is, as a continuous process and not as a finished product, a characteristic of the contemporarity. Aspects such as potentiality, creativity, interactivity and unpredictability in the construction and reception of the video-poem are argued here. As examplification, described and available video-poems in the Internet will be indicated. Finally, some of easy access technical resources are suggested, contained in the PowerPoint software program, related to the sound and visual effects, both internal (you access it inside a limited repertoire of the proper software) and external (inserted from any music, film or video material already recorded), for the video-poem construction. Key words: video-poem – performance – interactivity – creativity

AVISO AO LEITOR

A recepção deste artigo seria mais proveitosa se feita através da leitura em tela do computador

conectado à internet. A razão disto é que a exemplificação se dá através dos sites de vídeo-

poema, cujos endereços encontram-se no texto. Desse modo, clicando nos endereços, o leitor

acessará facilmente os vídeo-poemas indicados, os quais não se prestam a outro tipo de

1 Professor da Universidade do Estado da Bahia e da Universidade Federal da Bahia

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demonstração, a não ser através da sua própria performance em tela, onde se encontram os

recursos multimídia que dão vida a esse tipo de arte digital.

ASPECTOS POLÍTICOS E ESTÉTICOS DOS CORPOS E ESPAÇOS VIRTUAIS

Stephen Wilson, no seu livro Information Arts: Intersections of Art, Science, and

Technology (Artes da informação: interseções da arte, ciência e tecnologia, tradução nossa),

um tratado de 945 páginas, ainda não traduzido para o português, dedica uma parte do livro à

natureza da experiência virtual. Seus interlocutores, aí, são pensadores e críticos da tecnologia

virtual como Marcos Novak, N. Katherine Hayles, Francis Dyson, Simon Penny, Hakim Bey

(autor de The Information War, A guerra da informação), Arthur e Marilouise Kroker

(autores de Code Warriors, Guerreiros do código), dentre outros.

Para Wilson, a ênfase na descorporificação e no ciberespaço podem ser vistas como

manifestações de narrativas políticas. (Wilson, 2002, p.635) Isto pode significar a emergência

de uma nova “classe virtual” (termo usado por Arthur e Marilouise Kroker, em Code

Warriors) de pessoas, as quais usam a fascinação do mundo cibernético para desacreditar a

experiência sensorial independente e facilitar o caminho para a dominação. Este processo dar-

se-ia através do privilégio à informação e do extermínio do significado. Como resultado desse

processo alienante, o espaço físico das cidades também se torna uma prisão. As cidades

podem ser vistas, então, como espaços fechados reservados à comunicação de dados.

Alguns, como Hakim Bey, citado por Wilson, vêem ainda a mídia digital como a serviço das

religiões, isto é, enquanto instituições interessadas na desmaterialização da informação, no

sentido de associar e redefinir o “espírito” como esse tipo imaterial de informação.

Cito como exemplo dessa fascinação pela imagem cibernética, no Brasil, os comerciais de

grandes corporações, como o Banco do Brasil, Petrobras e a Caixa Econômica. Mesmo sendo

instituições de capital majoritariamente estatal, isto é, pertencentes aos cidadãos brasileiros,

essas instituições investem maciçamente em comerciais altamente tecnológicos e

massificantes, os quais soam como uma forma de intimidação e demonstração ostensiva de

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poder. Essas instituições, embora de caráter jurídico estatal (um conceito ligado ao caráter de

instituição pública) atuam totalmente dentro da lógica competitiva de mercado, no mundo

capitalista globalizado. Recentemente, um comercial dos combustíveis Petrobras (ano 2007,

exibido nos canais de TV por assinatura) mostrava uma pessoa distraída atravessando uma

pista de testes e sendo surpreendida e eliminada (por um truque digital) pelo carro de corridas

em velocidade vertiginosa. A morte e o apagamento da imagem da pessoa que atravessava a

pista em um ritmo humano distraído não mostra sangue, gemidos ou agonia. É uma morte

limpa, rapidíssima. A figura humana é simplesmente “deletada” da tela pelo carro de corrida.

A cena do comercial pode fazer o espectador pensar: “Então é isto que acontece a quem não

se enquadrar nesse novo mundo tecnológico avançado” (Algo como Seu Ribeiro, personagem

de Graciliano Ramos, um típico auto-didata de cidades pequenas do interior, o sábio do lugar,

que teve suas pernas simbolicamente esmagadas pelas rodas do progresso). Seria um processo

semelhante (embora sem as mesmas conseqüências imediatas) aos soldados americanos

atirando e eliminando civis e suspeitos no Iraque, a partir de uma tela digital, com mira a

laser e infravermelho, dentro de seus tanques e aviões fechados e com ar condicionado,

enquanto ouvem rock pesado a toda altura.

(como na cena do documentário Farenheigt 9/11, de Michael Moore) Talvez a tecnologia

digital já esteja sendo utilizada como uma nova forma de poder político (com suas

implicações militares, econômicas, ideológicas, etc) mais cruel, fria e avassaladora do que

qualquer outra invenção humana anterior.

Arthur e Marilouise Kroker ressaltam ainda as relações políticas da realidade virtual, que ela

denomina de utopia virtual, com as categorias de gênero e classe social, no contexto do

capitalismo internacional, com o apoio de visionários digitais. Denunciam as atrocidades que

estão sendo cometidas contra o espírito humano, em nome da evolução das mediações

digitais, que eles definem como:

…a virtual war strategy where knowledge is reduced to data storage dumps,

friendship is dissolved into floating cyber interactions, and communication means the

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end of meaning. Virtualization in the cyber hands of the new technological class is all

about our being dumbed down. (Kroker and Kroker, 1997, p. 56)

(...uma guerra virtual estratégica onde o conhecimento é reduzido à

estocagem de dados sem critérios, a amizade é dissolvida em interações cibernéticas

flutuantes e a comunicação significa o fim do significado. A virtualização nas mãos

cibernéticas da nova classe tecnológica tem tudo a ver com a nossa imbecilização.)

(tradução nossa)

A libertação do corpo e espaço pelo virtual, entretanto, pode ser vista, por outros, de

modo menos pessimista. Para esses, como Florian Rotzer e Catherine Richards, através do

virtual pode-se: desafiar a gravidade e o tempo, explorar as fantasias de forma impossível no

plano biológico e material, libertar as mentes da prisão cartesiana, encontrar pessoas de modo

sem precedentes, transformar identidades de modos diversos, remover as tradicionais

fronteiras do ego, através de uma nova experiência imaginativa. Para Catherine Richards,

observadora ligada à perspectiva feminista, a realidade virtual pode ajudar a redefinir o

dualismo modernista típico mente/corpo, ao inventar novas imagens do corpo e proporcionar

novos campos de intensidades, o que ajudaria na reconstrução da subjetividade feminina.

Entretanto, tanto os críticos pessimistas quanto os otimistas concordam em um ponto:

a realidade virtual não é uma réplica da realidade material, mas uma possibilidade de

problematizarmos e repensarmos todas as nossas relações com o reino do simbólico e com

aqueles tradicionais conceitos binários como mente/corpo, sujeito/objeto, material/imaterial.

Ninguém, contudo, poderá esquecer os riscos de uma adesão alienada à realidade virtual, (tão

poderosa e arriscada, ou mais, do que a realidade material) esquecendo-se dos jogos de poder

e dos processos inescrupulosos na manipulação dessas novas linguagens e tecnologias.

POESIA E PERFORMANCE

Fazer poesia, hoje, pode significar muito mais do que escrever poemas em folhas de

papel. O poeta-rapper, no hip-hop, recitará o seu texto em uma performance integrada por

música, dança, efeitos especiais, em um palco de qualquer natureza (Esta condição do poeta

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não é nova: os trovadores, na idade média, e os cantadores nordestinos já praticavam uma

poesia performática). O videopoeta recriará seu texto com os recursos digitais do computador

e será seu próprio editor e distribuidor (desempenhando os papeis de editora e

distribuidora/livraria) pois lançará o seu trabalho na rede, o qual será exposto em uma grande

livraria/vitrine eletrônica. O rapper interage com a sua platéia e o videopoeta com os seus

leitores virtuais, através da comunicação eletrônica. Ambos os poetas agregarão ao seu

trabalho elementos do espetáculo, do show, da performance, isto é, elementos da

corporeidade.

A ARTE DO TEMPO DAS REALIDADES MÚLTIPLAS

Diana Domingues é uma artista contemporânea, a qual possui um site de videoarte, ou

videopoema, onde exibe suas obras radicais, como instalações virtuais baseadas em

radiografias e imagens de outros tipos de scanners de uso médico. Ali, a artista põe texto

sobre essa viagem ao interior do corpo, em uma proposta que busca unir poesia e ciência. O

endereço do site é: http://www.arte.unb.br/netlung/diana/diana2.htm .(Essas técnicas

construtivas que misturam tecnologia e poesia são recorrentes, na atualidade. O poeta pós-

moderno norte-americano Charles Bernstein construiu o seu poema “I and the” (Eu e o)

simplesmente a partir de uma lista de palavras compiladas por um pesquisador em ordem

decrescente de freqüência de uso, de um banco de dados digitalizado contendo transcrições de

225 sessões reais de psicanálise.)

Diana também é pesquisadora e publicou, como organizadora, dois importantes

volumes sobre arte virtual e suas diversas implicações: A arte no século XXI: a humanização

das tecnologias, pela Editora da UNESP- Universidade do Estado de São Paulo, em 1997.

Em 2003, Diana Domingues volta a assinar, como organizadora, ainda pela Editora UNESP,

outra importante publicação sobre temática semelhante, sob o título de Arte e vida no século

XXI:tecnologia, ciência e criatividade. Em ambos os trabalhos comparecem autores

nacionais e estrangeiros, traduzidos por Flávia Gisele Sarreta e Gilse Boscato Muratore. Os

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dois volumes constituem-se em valiosa fonte de pesquisa sobre arte contemporânea,

principalmente em relação às propostas artísticas associadas às novas tecnologias.

Em Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade, Louise Poissant

assina um interessante artigo intitulado “Ser e fazer sobre a tela”, traduzido por Gilse Boscato

Muratore e Diana Domingues. Nesse artigo Poissant discorre sobre as artes da mídia e a

posição do artista midiático:

No contexto tecnológico, contudo, somos ao mesmo tempo ator, ou melhor, ator-autor e espectador. A aparição torna-se um modo ser com seus atributos de ubiqüidade e de teletransporte que permitem agir, atar laços, experimentar papéis e, mais recentemente, assumir identidades em novos territórios com outras maneiras de existir. (Poissant, 2003, p. 120-1)

Fala, também, sobre a lógica da net:

A lógica da net, assim como a lógica da muitimídiaoperam um deslocamento dos nomes para os verbos, como assinala Kevin Kelly (1995, p. 27), o que é bastante revelador das questões e modalidades das redes e da multimídia em geral. Para existir numa vila e numa cidade é preciso instalar-se aí, ter uma casa, bens. Na rede, é preciso intervir. È preciso manifestar-se, criar laços, ligar e ligar-se novamente. Daí a importância das interfaces que vão determinar em grande parte as modalidades de conexão, o lugar concedido às diversas faculdades e aos sentidos, o tratamento do espaço e as novas formas de temporalidade (tempo real, tempo abstrato, ucronia etc). No registro do aparecimento, um novo espaço-tempo torna-se um presente-universal ou um não-lugar presente, como o diz tão bem Mário Costa (1988). (Poissant, 2003, p. 120)

Louise Poissant diz que a arte midiática faz o ser humano livrar-se do biocentrismo,

assim como, no passado, livramo-nos do geocentrismo através do telescópio e do

antropocentrismo através do microscópio. Finalmente, admitimos não haver fronteiras entre o

natural e o artificial, entre o homem e a máquina. Sobre isto Felix Guattarri, em Caosmose,

traz o conceito de “subjetividades maquínicas”. O que distingue o pensamento de Guattari do

de Poissant é o nível de otimismo com respeito às relações homem-tecnologia, alto nesta

última e baixíssimo no primeiro.

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Citanto Roy Ascott, que define a arte midiática como arte do aparecimento, em

oposição à arte tradicional que seria a arte da aparência, Poissant comenta especificamente

as características performáticas da artes midiáticas:

As performances telemáticas convidam mais ao manifestar-se, ao estar presente, trazendo a contribuição a um projeto coletivo. A arte das redes favorece o aparecimento e a disponibilidade de participar em um projeto com várias cabeças pensantes mais do que se voltar novamente a problemas ligados à tradição da aparência das formas na qual as representações são postas em circulação. E, se ainda houver representações, principalmente pelo recorte de avatares ou de cenários servindo de ambientes virtuais, essas representações testemunham o savoir faire do interesse de seu autor, sendo que o participante remete um pouco ao que se fazia no auto-retrato na época em que os pintores se serviam dele como portfólio junto a um mecenas. (Poissant, 2003, p. 120)

O VIDEOPOEMA E A ARTE COMO PERFORMANCE

Como toda produção veiculada pela internet, os videopoemas não são produzidos,

necessariamente, por poetas sofisticados e intelectuais. A internet, não se pode esquecer, é o

lugar do cidadão comum, mediano. Assim, os videopoemas, além de possuírem características

técnicas diferentes, também abrangem desde a arte abstrata até a expressão singela e ingênua

com palavras, sons e imagens das pessoas comuns (teoricamente não-poetas). O vídeopoema

possui muito da ludicidade do poema tradicional com as palavras e do movimento icônico do

videoclip musical. Classificar uma performance virtual como um videopoema é, antes de

tudo, uma operação arriscada, pois não existe o videopoema padrão. Penso que o olhar

externo do leitor é que poderá definir um vídeo como videopoema, ou não.

Comecemos com um videopoema (?), ou um vídeo-animação, denominado “Rubik's

Cube Solve”, onde a palavra escrita é elemento secundário. O vídeo foi produzido e colocado

no You Tube por um internauta identificado como Ron Y U, em janeiro de 2007, e construído

através de um software chamado Gabbasoft, O autor não oculta a barra de ferramentas do

software que utilizou e isto soa como metalinguagem, na performance digital. A canção de

fundo, de cunho infantil é "Tomorrow Hill". O vídeo é uma exibição por imagem de

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computador de uma sessão de tentativas com um cubo mágico, com algumas frases dirigidas

ao espectador. No final, o cubo explode, após uma contagem regressiva, e aparecem os

créditos do trabalho. O próprio autor admite, no seu comentário na página do You Tube, que

o seu vídeo é “nerd” (algo entre imbecil e debilóide). O vídeo está disponível em

http://www.youtube.com/watch?v=3il4Ap4KVwE&feature=related . Percebe-se que o autor

não possui, aparentemente, grandes pretensões artísticas com o seu vídeo, mas chama a

atenção a harmonia entre a canção de fundo e as imagens do cubo, as cores e os movimentos,

semelhantes a um desenho animado. Ainda assim, o vídeo é performático, pois o cubo exibe-

se no centro da tela, capturando a atenção das retinas do espectador e ilustra, de modo livre, as

palavras da canção de fundo. E a canção de fundo, por sua vez, tem a ver com o cubo colorido

que tenta se auto-completar inutilmente, até explodir-se em pedaços.

Ainda no You Tube, encontramos o videopoema (neste caso mais verbal e, portanto,

mais poemático) Overtype, (Superdigitado) de Nico Vassilakis, produzido em 2007. Nico

Vassilakis disponibilizou diversos outros videopoemas no You Tube, quase todos construídos

a partir de uma imagem abstrata e sons desconcertantes e dissonantes, em que não se

reconhece facilmente as fontes que os produziram, a exemplo de Texture e Textorn e Flight of

the Apostrophe. O vídeo é uma projeção em preto e branco, de cerca de 15 segundos, com

uma visualização simbólica e abstrata, sugerindo o negativo de uma foto ou uma imagem

radiográfica, onde textos e letras borradas vão sendo superpostas. O fundo musical é um som

contínuo de timbre metálico, lembrando a passagem de uma sinfonia moderna, ouvindo-se

ruídos ao fundo. É um videopoema curto, uma espécie de hai-kai digital. Neste caso, a

palavra, no seu sentido tradicional é obliterada, mas o poema, ainda assim, é um tanto verbal,

pois parecem surgir sombras de letras. A abstração do som se integra à abstração da imagem.

O poema não se revela como texto nem como imagem de fácil reconhecimento. É uma

criação subjetiva, uma percepção visual criativa. Como todo videopoema, Overtype é um

breve espetáculo para os olhos e ouvidos. Possui uma duração e uma forma de apresentação

fílmicas, isto é, constitui-se em uma seqüência de imagens e sons. Possui, portanto,

características textuais, embora não se possa decodificar nenhum texto escrito.O trabalho

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mostra-se como linguagem e, por isso, possui a sua própria sintaxe. O videopoema está

disponível em http://www.youtube.com/watch?v=5i3ctHyl_UE&feature=related . Como todo

vídeo do You Tube, este possui características hipertextuais interativas, pois o internauta pode

deixar seus comentários na própria página, o qual influirá na recepção de outros internautas.

Algumas instituições renomadas como a BBC (British Broadcast Company) já

investem na divulgação de videopoesia, como o site em conexão com o About.com. já

tradicional na divulgação de textos literários online, cujo endereço é:

http://poetry.about.com/gi/dynamic/offsite.htm?zi=1/XJ/Ya&sdn=poetry&cdn=education&tm

=27&gps=314_211_1020_622&f=00&tt=14&bt=0&bts=1&zu=http%3A//www.bbc.co.uk/art

s/poetry/ondisplay/ . O nome do site é Poetry on display (Poesia à mostra).

Sendo um portal, o Poetry on display possui links para outros sites de videopoemas.

Um interessante videopoema deste site é Flight Comes Easily (O vôo chega

facilmente), com texto de Khan Wong e design de Torisu Koshiro. A tela preta, com uma

figura humana em vermelho e preto, representada de modo desrealizado, ao fundo. O texto

rola com letras brancas, com um ruído de vento na caverna. Embora o vídeo não traga

grandes inovações tecnológicas, pois percebe-se que poderia ter sido construído com simples

recursos quase que inteiramente do Microsoft PowerPoint (o que não representa nenhum

demérito), existe uma ligação entre texto e figura e dinamismo na performance.

O endereço para acessar o videopoema é:

http://www.bbc.co.uk/arts/poetry/ondisplay/flight/flight.html.

Na avaliação de um videopoema, diversas variáveis que não fazem parte da leitura

crítica do poema tradicional passam a interessar, como: o design da página, a interação texto-

imagem-som (se houver), os efeitos especiais, a combinação de cores e tons, o nível de

interatividade, etc. A construção da poesia digital implica no conhecimento das ferramentas

(softwares) que trabalham com imagem, texto, som e efeitos. Se o poeta conhece essas

ferramentas e sabe manejá-las, o poema já nasce como um projeto integrado entre o texto

poético e os recursos multimídia (aqui em um sentido muito mais amplo do que uma coluna

de versos sobre uma folha de papel), com muito mais possibilidades de funcionar bem no

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meio eletrônico. A linguagem computadorizada e os efeitos utilizados já estarão influindo na

concepção do texto verbal, desde o início. Caso o poeta não esteja familiarizado com essas

técnicas, o texto poético tradicional poderá ser transformado em videopoema, pelo próprio

autor, com uma consultoria sob sua orientação, ou por outrem. Neste último caso, o

videopoema terá uma dupla autoria: do autor do texto e do criador do design em tela.

CRIANDO UM VIDEOPOEMA SIMPLES

Diversos programas podem ser usados para a construção de um vídeo-poema. Dentre

eles, o mais acessível é o PowerPoint, da Microsoft. Como exemplificação, descrevo a feitura

do vídeo-poema “O pássaro em si”, de minha autoria.

Aberto o PowerPoint, procede-se como na construção de uma apresentação comum.

Cola-se o texto do poema dentro de um slide, insere-se uma foto temática como fundo e um

fundo musical previamente escolhido é adicionado. Escolha a cor e os efeitos de animação

visual e adicione à apresentação. Defina a velocidade e a forma de transição de slides, a qual,

no vídeo-poema em apreço, foi transição automática após 5 segundos. O vídeo-poema “O

pássaro em si” foi construído em três slides. Em seguida, com a ajuda do consultor em

informática Vagner Fonseca, o trabalho foi transformado em uma animação do programa

Adobe Flash Player, com adição de música.

Para assistir o videopoema (sim, “assistir” é mais apropriado do que “ler” um vídeo-

poema) “O pássaro em si”, acesse o site www.uneb.br/lucianolima, e clique em vídeo-poema,

“O pássaro em si”. Certamente, assistir a um vídeo-poema é uma forma de aprendizado mais

eficiente do que ler uma exposição teórica e uma descrição detalhada sobre o mesmo. Boa

recepção.

Referências bibliográficas

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DOMINGUES, Diana. Org. A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São

Paulo: Editora UNESP, 2007.

DOMINGUES, Diana. Org. Arte e vida no século XXI: Tecnologia, ciência e criatividade.

São Paulo: Edifora UNESP, 2003.

KROKER, Marilouise and KROKER, Arthur. Hacking the future: Stories for the Flesh-

Eating 90s. Montreal: New World Perspectives, 1996.

LIMA, Luciano R. “Teoria e prática do hipertexto literário: análise da semiose do

videopoema”. In: LIMA, Luciano R. Literatura, Crítica, teorias. Disponível em:

www.uneb.br/lucianolima. Acessado em fevereiro de 2008.

WILSON, Stephen. Information Arts: Intersections of Art, Science, and Technology.

London: The MIT Press, 2002.

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Entre trutas e periquitos: Um diálogo entre Sean O’Faolain e Graciliano Ramos

Elizabeth Ramos1 RESUMO A partir dos contos A Truta, do escritor irlandês Sean O’Faolain, e Minsk, do autor brasileiro Graciliano Ramos, este artigo analisa aspectos da reconfiguração da esperança de liberdade construída através do imaginário infantil e metaforizada pela relação criança-animal. Palavras-chave: Sean O’Faolain, Graciliano Ramos, metáfora. ABSTRACT Taking from the short stories The Trout, by the Irish writer Sean O’Faolain, and Minsk by the Brazilian author Graciliano Ramos, this article analyzes aspects of the reconfiguration of hope for freedom built through the child imaginary, and the metaphor child-animal. Key words: Sean O’Faolain, Graciliano Ramos, metaphor.

Da Irlanda emergiram, ao longo do tempo, literatura e autores bastante conhecidos

entre nós. Jonathan Swift vem embalando, desde a alvorada do romance em língua inglesa, no

século XVIII, a imaginação de jovens e as reflexões de adultos com o seu Gulliver’s Travels,

narrado com o mordaz senso satírico irlandês. James Joyce inaugurou a nova estética do texto

literário em língua inglesa, nos anos 20, do século passado, inserindo o fluxo da consciência

nos conhecidos Ulysses e Finnegans Wake. Ganhadores do Prêmio Nobel de Literatura –

Yeats, Bernard Shaw, Beckett e Seamus Heaney – mostraram ao mundo, através dos seus

romances e textos dramáticos, as agruras da vida rural e das diferentes formas em que a

injustiça social se manifesta.

Embora uma das mais antigas literaturas européias tenha traços bastante particulares,

quando comparada às demais produções literárias e dramáticas em língua inglesa, o olhar que

lança sobre o sujeito pode aproximá-la de textos produzidos em outros lugares de um mundo

nem sempre tão antigo, como o Brasil.

1 Doutora em Letras e Lingüística pela Universidade Federal da Bahia, UFBA. Professora do Departamento de Línguas Germânicas e do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFBA.

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Nesse sentido, um bom começo para tal tipo de abordagem é lembrarmos que entre as

diferentes explicações para a origem do nome do nosso país, existe uma, pouco conhecida

entre nós. Nos idos do século XIV, a Ilha Brasil era uma das que rodeavam o mundo então

conhecido, e os mapas medievais a localizavam a oeste da Irlanda. Tal configuração é

repetida e pode ser observada em diversos planisférios depois dessa época2.

2 Pedro Paulo A. Funari. In: A origem do nome Brasil, 14.08.2004. http://www.ultratextos.com.br/ ler.asp?id=1170

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Mas a relação Irlanda-Brasil não acaba aí. O historiador Pedro Paulo Funari informa

que as mais antigas grafias do nome do nosso país aparecem como Ho Brasile (O Brasil), que

em celta seria ‘terra dos bem-afortunados’, ‘ilha da felicidade’ ou ‘terra prometida’, derivando

de ‘bres’, que, em irlandês, quer dizer ‘nobre, feliz, encantado, aquele que tem sorte’. Em

outras palavras, o imaginário medieval criava, então, em celta, a ilha imaginária da fantasia,

situada a oeste da Irlanda: Ho Brasile ou Hi-Brazil.

Detail from the Catalan map of 1350 showing the location of Hi-Brazil.

(Image from Donald Johnson's Phantom Islands of the Atlantic) http://www.museumofhoaxes.com/hibrazil.html

O imaginário da fantasia, traço provavelmente herdado da tradição oral, pode ser

nitidamente observado em representações literárias de crianças e animais não apenas na

produção literária da Irlanda, mas também em obras produzidas em mundos tão distantes e

aparentemente tão diversos, como o Brasil. Assim, ao se deter sobre dois contos – A truta de

Sean O’Faolain e Minsk de Graciliano Ramos – o leitor contempla reconfigurações do

universo da liberdade sob a perspectiva do imaginário fantasioso infantil.

Em 1900, nascia em Cork, na Irlanda, John Francis Whelan (1900-1991), que mais

tarde trocaria seu nome pela forma gaélico-irlandesa Sean O'Faolain [shon' o fa'lin], como

forma de restabelecer sua língua-materna, o irlandês ou gaélico-irlandês, que o governo

britânico havia tentado reprimir no passado. Na condição de participante ativo do movimento

republicano, O’Faolain mudou seu nome, para demonstrar apoio ao movimento de

independência política e cultural de seu país, na revolução republicana, que conduziu a

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Irlanda, controlada pela Grã-Bretanha durante séculos, ao status de república independente,

em 1949.

Seu envolvimento na luta pela liberdade e sua capacidade de recriar imagens do país

natal permitiram que O’Faolain, ao longo dos anos, produzisse romances, livros de viagens,

biografias de irlandeses ilustres, embora se tenha tornado mais conhecido através dos contos

de marcado lirismo em torno da classe média irlandesa e dos menos favorecidos na sua nação.

Seus textos são trabalhados com habilidade, recriando inquietações universais, num lócus

ficcional irlandês. Na literatura de O'Faolain estão sempre presentes a Irlanda, a vida dos

irlandeses e as demandas com as quais o povo se defronta diariamente no que se refere ao

nacionalismo, à sociedade e à religião.

Depois do sucesso de seus dois primeiros livros – a coletânea de contos Midsummer

Night Madness, publicada em 1932, com título alusivo à famosa peça de Shakespeare, e do

romance A Nest of Simple Folk (1933) – O’Faolin passou a se dedicar inteiramente à

literatura. Apesar de ter estudado e escrito em irlandês, suas obras mais conhecidas, como

Bird Alone (1936), A Life of Daniel O'Connell (1938) e o autobiográfico Vive moi! (1964),

são em inglês.

Atravessando o Atlântico – a oeste da Irlanda, como mencionado acima – não em

direção à “ilha da felicidade” ou do Ho Brasile, mas para o nordeste do Brasil, deparamo-nos

com o escritor Graciliano Ramos (1892-1953). Tal como Sean O’Faolain, o autor brasileiro

também é conhecido por sua capacidade de recriar imagens do país natal, com a preocupação

de reconstruir aspectos da vida do sertão alagoano, trazendo à tona a injustiça social, a

violência, a iniqüidade que permeiam o cotidiano do sertanejo. Seu estilo conciso e árido de

escrita reflete o ambiente onde vive o sujeito por ele recriado.

Graciliano produziu grande parte de sua obra literária, durante a ditadura do Estado

Novo, de 1937 a 1945, mas, ao contrário de O’Faolain não se envolveu diretamente na luta

contra a repressão. Seu apoio à liberdade e o desejo ardente de ver a desgraça do capitalismo

eram depositados em seus personagens, muitos dos quais pichavam muros, distribuíam

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folhetos incendiários e simpatizavam com a “idéia de fuzilar um proprietário por ser

proprietário”. Desejos e idéias que o autor concretizou apenas na literatura.

Talvez, por essa razão, encontremos em Memórias do Cárcere o seguinte diálogo

entre o preso político Graciliano Ramos e o advogado Sobral Pinto, constituído para defendê-

lo:

- Porque é que o senhor está preso? - Sei lá! Nunca me disseram nada. - São uns idiotas. Dê graças a Deus. Se eu fosse chefe de polícia, o senhor estaria aqui regularmente, com processo. - Muito bem. Onde é que o senhor ia achar material para isso, doutor? - Nos seus romances, homem. Com as leis que fizeram por aí, os seus romances dariam para condená-lo. […] - Está bem. Não tinha pensado nisso. (M.C. p.300)

O autor que só se atrevia “a expor a coisa observada e sentida”, transformava-se,

conseqüentemente, num revolucionário teórico aos olhos das forças da repressão.

Temos, portanto, em dois lugares bastante distintos do mundo – o sertão alagoano e

a República da Irlanda – dois escritores comprometidos com a liberdade dos seus

concidadãos, compromisso esse refletido através da temática de suas obras, seus

personagens, sua linguagem. A partir dos dois contos já mencionados – A Truta, e Minsk –

analisaremos de que forma os dois autores reconstroem a esperança de liberdade

metaforizada através de uma criança e um animal.

A grande quantidade de chuva na Irlanda, fez com que essa ilha, em grande parte rural,

ficasse conhecida como Ilha Esmeralda. Os habitantes das grandes cidades costumam ir para

o campo, durante as férias, e é um desses lugares muito verdes e pitorescos que configuram o

lócus ficcional do conto A Truta (The Trout), escrito por O’Faolain e traduzido para o

português por Munira Mutran. O conto integra a antologia de contos irlandeses – O mundo e

suas criaturas – organizada pela própria tradutora.

Logo na abertura do conto, o leitor depara-se com a informação de que a personagem

Júlia e a família, mais uma vez chegavam a um desses lugares agradáveis no campo. O nome

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do lugar não importa. É identificado simplesmente como ‘G’. O que realmente interessa é que

lá existia um tal ‘Caminho Sombrio’,

[...] uma alameda de loureiros muito antiga, quase toda tomada pela vegetação selvagem, um imponente túnel da meia-noite de galhos fortes e lustrosos. No chão, as rijas folhas marrons não estalam porque nunca estão suficientemente secas: há sempre um quê de umidade fria.

A escuridão do túnel de vegetação envolvia Júlia, e seu grande prazer era atravessá-lo

e encontrar a luz, no fim da alameda. Nesta temporada específica, a menina, já com doze

anos, tinha uma satisfação a mais: apresentar o túnel ao irmão mais novo, que, evidentemente,

morria de medo da aléia sombria. Ao contrário do menino, Júlia já entrara na fase das

desconfianças: estórias de Papai Noel e Cegonha, por exemplo, não passavam de grande

bobagem. Por isso mesmo, não deu ouvidos, quando lhe disseram que havia um poço no

Caminho Sombrio. Acreditou que era mais uma grande tolice.

No entanto, como a curiosidade fosse maior do que a desconfiança, Júlia, fingindo

indiferença, partiu para investigar a veracidade da informação. Encontrou um buraco

escavado na rocha, escondido por samambaias, onde ofegava uma truta em cerca de dois litros

d’água. Impossível entender como o peixe havia chegado àquela pequeníssima prisão. Como

as explicações dos adultos não fossem convincentes, Júlia passou a ter a truta aprisionada

como centro de suas preocupações, até que, enquanto todos da casa dormiam, levantou-se,

pulou a janela e saiu correndo pelo Caminho Sombrio, levando às mãos uma jarra d’água,

com a qual tirou a truta da “minúscula prisão”, desceu a margem íngreme do rio e lançou-a à

água, fazendo do resto de suas férias um imenso fluir de alegria.

É possível construir, através da leitura do conto de Sean O’Faolain, a associação da

liberdade da truta, à libertação da República da Irlanda. O peixe, ao ser lançado no rio,

voltava a exercer o direito de viver no espaço que lhe pertence. A imagem é construída por

meio de um dos recursos estilísticos mais utilizados na literatura: a metáfora. No caso,

podemos utilizar o que George Lakoff (1980) chama de metáfora de conteúdo, envolvendo

um espaço com limites definidos e elementos externos relacionados à ruptura de vínculos. As

metáforas de conteúdo, associadas a um espaço visual, ainda que não demarcado por

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fronteiras físicas visíveis, podem ser compreendidas como ingredientes de sustentação de

representações afetivas. No caso do conto A truta, a representação afetiva, construída através

da metáfora, mapeia o sentimento do autor em relação à sua nação: a luta do povo irlandês

pela conquista do seu espaço de liberdade. Afinal, como nos lembra Lakoff, “poucos instintos

humanos são mais básicos do que a territorialidade” 3. A imaginação do leitor demarca, então,

territórios ficcionais, definindo o que ‘deve’ estar dentro das linhas limítrofes. O lugar da truta

não pode ser outro a não ser o rio, lembrando que, metaforicamente, a vida é fluida, e que “a

intensidade de vida corresponde à quantidade de fluido do recipiente”4.

Passemos agora ao conto Minsk de Graciliano Ramos.

O conto, para um leitor mais precipitado, é de início, uma surpresa, uma pausa para o

deleite. O escritor sisudo, comedido e de poucas palavras, que traz em sua literatura

representações das grandes tensões sociais e psicológicas, aparece com um conto em torno de

uma criança e um periquito. Na verdade, o texto ficcionaliza uma história verdadeira, que lhe

foi contada, durante a lua-de-mel, por sua mulher Heloísa, protagonista da narrativa.

Minsk faz parte do livro Insônia, coletânea de contos de Graciliano publicada em

1947. O texto veio a público, pela primeira vez, no Suplemento Literário do jornal carioca A

Manhã, em 5 de outubro de 1941, em pleno correr da Segunda Grande Guerra (1939-1945).

O leitor, logo ao início da narrativa, depara-se com a menina Luciana, que acaba de ser

presenteada com um “periquito grande, com manchas amarelas”, que andava torto e era

inchado. Assim como no conto A truta, o nome do lugar não importa. O que realmente

interessa é que o presente gerou na garota um misto de admiração e triunfo, sentimentos que

logo deram lugar a grande contentamento. Como a hospitalidade implica uma identidade

nominável, Luciana estava ciente de que precisava batizar o periquito. Sem conseguir

encontrar um nome sonoro, a menina abriu um Atlas, deixando que o bicho se movimentasse

desajeitado pelo nosso planeta, de norte a sul, de leste a oeste. Finalmente, a ave se deteve

3 LAKOFF, 1980, p.29. Minha tradução de: “There are few human instincts more basic than territoriality” 4 LAKOFF, 1989, p.19. Minha tradução de: “The intensity of life corresponds to the amount of fluid in the container”.

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sobre a cidade de Minsk, na então União Soviética, o que foi motivo para que a nova dona lhe

desse esse nome.

Uma vez nomeado, Luciana passou a se dedicar integralmente ao bicho: mostrou-lhe a

casa, advertiu-o sobre o perigo que eram os gatos, deixou de receber as amigas invisíveis, que

antes sempre a visitavam, deixou de pintar a boca e as unhas, com ares de moça, deixou de

andar nas pontas dos pés, esqueceu as fugas e aventuras na carroça do seu Adão. Limitava-se

a esconder-se pelos cantos, tendo Minsk, empoleirado no ombro, de onde só saía para ser

acariciado pela menina ou para realizar seus ímpetos de aventura e liberdade.

Agitavam-no caprichos, confusas recordações do mato, e batia as asas, alcançava a copa da mangueira, voava daí, passava algumas horas vadiando pela vizinhança. Satisfeitos esses ímpetos de selvagem, regressava, pulava dos galhos, pezunhava no chão, doméstico e trôpego.

Mas Luciana, desajeitada que era, tinha o hábito terrível de andar de costas, com os

olhos fechados. E foi numa dessas experiências que pisou num objeto mole. Perplexa, sacudiu

a cabeça, querendo ignorar o fato de que matara Minsk, transformado numa “trouxa de penas

ensangüentadas”.

Tal como no conto de O’Faolain, a metáfora de conteúdo associada ao espaço visual

pode também ser aplicada ao conto Minsk, podendo igualmente ser compreendida como

ingrediente de sustentação de representações afetivas. A diferença, no entanto, é que, se no

primeiro conto a truta retorna ao seu universo, recuperando a liberdade, no segundo, são

eliminadas quaisquer possibilidades de largos vôos, com a morte do periquito. Se o contato

com animais pode ser uma forma de conduzir a criança ao aprendizado e ao exercício do

afeto, do cuidado, do respeito e da dedicação, na medida em que descobre que outros seres

vivos precisam desses elementos para sobreviver, o conto de Graciliano nos traz um corte

abrupto dessas possibilidades.

O mundo sob o impacto de uma guerra mundial, não oferecia grandes possibilidades

para cochilos e “sonhos doces”. O autor introspectivo, que só expunha o que observava e

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sentia não podia transferir para o papel nada além do pessimismo: “[...] o Eu, prisioneiro

agonístico em face da liberdade de um Outro não-humano [...]”.5

Ao contrário da liberdade da truta, a morte de Minsk configura a desesperança, a

impossibilidade do amor, da inocência, da liberdade, ainda que fugidia. Ho Brasile não passa

de um ponto imaginário a oeste da Irlanda, a Ilha Brasil é ‘ilha da felicidade’ apenas para os

celtas medievais, e ‘bres’ só configura ‘encantamento’ em irlandês. O imaginário medieval

precisaria recriar uma outra ilha da fantasia, situada a oeste da Irlanda, que pudesse encantar a

visão de mundo de Graciliano Ramos e fazer o periquito voar numa ‘terra de bem-

afortunados’.

Referências Bibliográficas

FUNARI, Pedro Paulo A. Funari. In: A origem do nome Brasil, 14.08.2004.

http://www.ultratextos.com.br/ ler.asp?id=1170

LAKOFF, George, JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. Chicago and London: The

University of Chicago Press, 1980.

LAKOFF, George, TURNER, Mark. More than cool reason: a field guide to poetic metaphor.

Chicago and London: The University of Chicago Press, 1989.

MALARD, Letícia. Prefácio. Insônia. 29ª. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

MUTRAN. Munira H. O mundo e suas criaturas: uma antologia do conto irlandês. São

Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.

5 MALARD, Letícia. Prefácio. Insônia. 29ª. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2003, p.151.

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O’FAOLAIN, Sean. A truta. Trad.: Munira Mutran. In: MUTRAN. Munira H. O mundo e

suas criaturas: uma antologia do conto irlandês. São Paulo: Associação Editorial Humanitas,

2006.

RAMOS, Graciliano. Angústia. 61ª.ed.Rio de Janeiro: Record, 2005.

______ . Insônia. 29ª.ed. ______ Rio de Janeiro: Record, 2003.

______. Memórias do Cárcere. Vol.II. 27ª.ed. Rio de Janeiro: Record, 1994.

______ . Minsk. In: Insônia. 29ª.ed. ______ Rio de Janeiro: Record, 2003.

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Sobre a necessidade da capacitação de professores de português

Luciano Amaral Oliveira1

Resumo: Este artigo faz reflexões sobre a necessidade da capacitação de professores de português. Elas resultam da minha experiência como mediador de oficinas de aperfeiçoamento promovidas pela Secretaria de Educação da Bahia e do projeto de pesquisa que coordeno na Universidade Estadual de Feira de Santana. Algumas atividades de livros didáticos são analisadas sob a perspectiva pragmática, servindo de motivo para considerações acerca dos elementos de textualidade e dos conhecimentos prévios necessários para os processos de leitura e de escrita. Defende-se aqui a capacitação dos professores de português sob a luz da visão interacional da língua. Palavras-chave: leitura; escrita; ensino de português; pragmática; capacitação. Abstract: This article reflects upon the need for Portuguese teachers’ professional training. They result from my experience as an instructor in teacher development workshops sponsored by the Secretariat of Education of Bahia and from the research project I coordinate at the State University of Feira de Santana. Some activities from textbooks are analyzed from a pragmatic standpoint. This analysis is the reason for tackling textuality elements and previous knowledge needed for the process of reading and writing. Portuguese teacher professional training is defended here under the light of the interactional view of language. Key-words: reading; writing; Portuguese teaching; pragmatics; professional training.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em 2005, ao final de uma palestra realizada em Salvador sobre a situação do turismo

internacional, Caio Luiz de Carvalho, ex-Ministro do Esporte e Turismo do Governo

Fernando Henrique Cardoso, ouviu a seguinte pergunta de uma estudante: “Professor, qual a

principal característica que um turismólogo deve ter para ser bem sucedido como consultor na

área de turismo?”. Respondeu o ex-Ministro: “Saber redigir em português”.

1 Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana

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A resposta de Caio de Carvalho, além de ter causado surpresa a muitas pessoas na

platéia, as quais esperavam alguma característica profissional mais específica, é bastante

provocadora. Ela revela a importância de se dominar o uso da língua portuguesa para a

produção textual, que está estreitamente vinculada à competência de leitura. Percebe-se aí a

precedência do conhecimento lingüístico e da habilidade de se usar esse conhecimento em

relação a outras competências na área de consultoria turística. Indo mais além, pode-se

intuitivamente afirmar que o domínio da leitura e o domínio da escrita são competências

essenciais para a maioria das atividades profissionais no mundo contemporâneo. Em suma, a

resposta do ex-Ministro revela a importância funcional do ensino de língua portuguesa para a

sociedade brasileira contemporânea, marcada por fenômenos que não deixam ninguém

escapar das marcas do letramento: outdoors, pôsteres, panfletos, programas e comerciais de

TV e de rádio, a Internet, faixas, cartazes.

Não por acaso, o ensino de português tem sido o alvo de reflexões, debates e de

críticas ao longo das últimas quatro décadas. Desde os anos 1960, tem-se discutido a prática

docente e o fracasso, ou o pouco sucesso, dos estudantes brasileiros no que diz respeito à

produção de textos. Fatores diferentes já foram apontados como os responsáveis, ou co-

responsáveis, por tal situação: o suposto déficit cultural das minorias e das camadas pobres da

população, a falta de estrutura adequada nas escolas, o despreparo teórico dos professores.

A teoria do déficit cultural é preconceituosa e reducionista. De acordo com essa teoria,

a aprendizagem por parte dos estudantes pode ser dificultada ou até mesmo impossibilitada

por causa da sua etnia, do seu dialeto ou da sua cultura. Vivian Moody (2008) lembra que a

teoria do déficit cultural “enfoca a cultura da pobreza e, estabelecendo como norma a cultura

da classe média branca, sustenta que a cultura da pobreza é deficiente no sentido de prover as

atitudes, experiências e valores necessários para ser bem sucedido na escola”. 2

Ora, um professor que acredita na teoria do déficit cultural tem uma grande

probabilidade de levar estudantes pobres e estudantes pertencentes a grupos minoritários,

2 Cf. trecho original: The cultural deficit theory focuses on the culture of poverty and, holding middle-class White culture as the norm, denotes that the culture of poverty is deficient in providing the experiences, attitudes, and values needed to succeed in school.

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como os índios, por exemplo, a terem um desempenho insatisfatório na escola exatamente por

acreditarem a priori que eles terão dificuldades de aprendizagem. Obviamente, não há como

se comparar culturas distintas ou etnias distintas com o objetivo de determinar qual é a

superior, a não ser que se adote uma postura etnocêntrica, o que é extremamente prejudicial

para o processo de ensino e aprendizagem. Não há, em suma, como se defender seriamente a

teoria do déficit cultural como sendo a causa do fracasso escolar.

O segundo fator, a falta de estrutura das escolas, é muito sério e deve ser levado em

consideração na discussão sobre o fracasso dos estudantes frente à construção da sua

competência de leitura e de escrita. Se pensarmos nas escolas públicas, não há como não

considerar a estrutura um fator determinante no desempenho dos estudantes. Afinal, como um

professor pode ajudar os estudantes no seu processo de aprendizagem se eles não têm acesso a

recursos como fotocópias, papel, retroprojetor e, principalmente, livros? Há casos, não raros,

de escolas em que não há carteiras suficientes para acomodar os alunos, tendo alguns deles de

ficar em pé durante as aulas.

A falta de estrutura das escolas públicas revela, de imediato, o descaso por parte do

governo, nos níveis municipal, estadual e federal, para com a educação. É esse mesmo

descaso que leva o governo a pagar baixos salários, atraindo professores pouco qualificados e

forçando esses docentes a trabalharem horas excessivas na sala de aula, muitas vezes em

escolas diferentes, o que os deixa sem tempo para preparar aulas e contribui para lhes manter

reféns dos livros didáticos.

Entretanto, se pensarmos nas escolas particulares, surge uma questão bastante

interessante: se elas possuem toda a estrutura necessária e se seus professores tendem a ter

uma melhor qualificação em comparação com os professores das escolas públicas, por que

seus alunos também não atingem níveis significativamente mais elevados de competência

leitora e redacional? É verdade que esses alunos conseguem ser aprovados nos exames

vestibulares das grandes universidades públicas, pois são melhor treinados para isso. Contudo,

sua competência de leitura e de escrita é motivo de reclamação por parte de muitos

professores universitários que lecionam em turmas de calouros, independentemente do curso.

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Em artigo com o instigante título “O Brasil lê mal”, Cláudio Moura de Castro (2002)

faz o seguinte comentário sobre o fato de os brasileiros não terem uma boa competência de

leitura, com base nos resultados de uma pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de Estudos

e Pesquisas Educacionais: “A proporção de brasileiros de elite capazes de compreensão

perfeita dos textos escritos é muito pequena, comparada com a taxa de outros países (1%, em

vez dos 6% da Coréia e dos 13% dos EUA)”. E Castro conclui: “[...] nossa incapacidade de

decifrar um texto escrito não se deve à pobreza, mas a um erro sistêmico. Estamos ensinando

sistematicamente errado.”

Parece, então, que a resposta à questão acerca do insucesso dos estudantes brasileiros

em termos de leitura e de escrita reside, mesmo que não exclusivamente, no despreparo

teórico dos professores e no descaso do poder público em relação à educação. Neste trabalho,

não será abordada aqui a questão dos baixos salários, da falta de estrutura nas escolas e do

descaso governamental. Essa questão não se insere no escopo do que se propõe neste artigo,

que é exatamente analisar as implicações de concepções teóricas na prática do professor para

que se possa sugerir um curso de ação que contribua para a melhoria do ensino de português.

Essa análise se justifica a partir da constatação da existência de uma grande distância

entre as pesquisas realizadas nas universidades e os professores de português do Ensino

Fundamental e Médio. Contribuindo para encurtar essa distância, os cursos de capacitação

promovidos pelas Secretarias de Educação estaduais e municipais se constituem em

ferramentas importantes para que os professores tenham acesso a conhecimentos construídos

pela lingüística que possam servir de norte para as suas aulas.

Ora, um princípio básico da função docente é o vínculo entre prática e teoria. A falta

de consciência acerca das teorias subjacentes a essa prática pode tornar o professor um mero

usuário de livros didáticos, um simples cumpridor de tarefas com um enfoque conteudista.

Quando isso acontece, o professor, ao invés de usar o livro didático, é usado por ele. É isso

que permite a veiculação de um anúncio publicitário com as seguintes palavras: “O material

didático Dom Bosco faz o seu professor ainda melhor” 3. O interessante é que o texto do

3 Cf. SUPERINTERESSANTE, São Paulo, fev. 2008, p. 11.

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anúncio continua, mesmo após essas palavras, afirmando a autonomia do professor: “O

Sistema de Ensino Dom Bosco valoriza a autonomia do professor e a criatividade dos alunos.

Mais de 15 mil professores recebem acompanhamento permanente da consultoria

educacional”.

Há ainda um problema interessante, que é a incapacidade dos professores de distinguir

o que procede e o que não procede nas gramáticas normativas tradicionalmente consultadas

por eles. Essa incapacidade, aliás, precisa ser transmutada em capacidade Devido às

incongruências e equívocos apresentados pelas diversas gramáticas normativas à disposição

do professor, como aponta Amini Boainain Hauy (1987):

Na verdade nossa gramáticas normativas atestam tal diversidade de conceituação dos fatos gramaticais e conseqüente multiplicidade de análise, que, estudadas em confronto, levam não ao conhecimento profundo e objetivo da estrutura e funcionamento da língua, mas a uma tendência ao partidarismo fanático e pernicioso por esse ou por aquele autor, a um posicionamento multifacetado de opiniões que só tem colaborado para o seu descrédito.

A formação de docentes é algo que precisa ser pensado com cuidado. Nesse sentido,

aborda-se aqui um elemento fundamental para a formação do professor de português do

Ensino Médio: a capacitação profissional. Este artigo é resultado de reflexões oriundas de

duas experiências. Uma foi a minha participação, como mediador, em oficinas de

aperfeiçoamento promovidas pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia, através do

Instituto Anísio Teixeira e das Faculdades Jorge Amado, para professores de escolas públicas

estaduais. A outra experiência é a pesquisa que realizo na Universidade Estadual de Feira de

Santana, intitulada “O ensino pragmático da gramática”.

Para atingir esse objetivo, o artigo está estruturado de uma forma bem simples.

Inicialmente, na seção Capacitação de Professores de Português: uma Experiência na Bahia,

faz-se um relato da experiência vivida naquelas oficinas. O enfoque do relato é dado aos

aspectos que evidenciam o despreparo teórico da grande maioria dos professores

participantes, que serão chamados a partir daqui de cursistas. Depois, na seção intitulada A

teoria na prática, problematizam-se duas concepções teóricas de língua e suas implicações

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para a prática pedagógica. O que motiva esta seção é a necessidade de se conscientizar os

professores da importância de saberem claramente que crenças teóricas norteiam sua prática.

Finalmente, tecem-se as últimas considerações acerca da importância da capacitação

profissional de professores de português sob a perspectiva pragmática. Defende-se aqui a

adoção do arcabouço teórico interacional para o ensino de português, visando ao

desenvolvimento da cidadania daqueles a quem o ensino deve beneficiar, i.e. os estudantes.

CAPACITAÇÃO DE PROFESSORES DE PORTUGUÊS: UMA EXPERIÊNCIA NA

BAHIA

Uma das questões discutidas por nós foi a existência, em muitas escolas, da separação

entre as disciplinas Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Fiz a seguinte provocação aos

cursistas: por que separar língua, literatura e escrita? Discutimos essa questão e chegamos a

algumas conclusões a respeito da lógica que sustenta a independência entre essas três

disciplinas.

Em primeiro lugar, concluímos que Língua Portuguesa é vista como uma disciplina

que diz respeito apenas ao ensino da gramática normativa e da interpretação de textos. Algo

curioso que surge daí é a idéia de que textos literários não fazem parte do objeto de uma

disciplina que lida com interpretação textual, a eles sendo reservado o espaço de uma

disciplina específica, i.e. Literatura.

Por essa razão, ainda hoje, há professores que levam poemas e contos para a sala de

aula para servirem de material para exercícios de análise sintática, contribuindo para que os

alunos se tornem resistentes à leitura de textos literários. É essa mesma lógica que também

leva autores de livros didáticos a incluírem, em suas obras, atividades em que poemas são

objetos de análise sintática. Por exemplo, o livro Português: linguagens, 5ª série, de William

Cereja e Thereza Magalhães (2006, p. 123-124), traz o poema Estação Café, de Sérgio

Caparelli, sobre o qual eles fazem perguntas ao aluno e o qual transcrevo a seguir:

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Pastéis Santa Clara, Bem-casados com ambrosia, Caramelados com nozes E bombas de baunilha Senhora dona doceira Me tira dessa agonia! Mil-folhas e broinhas, Com geléias e pavê, Fios de ovos, apfelstrudel, Maçãs flambadas, não vê? Qual é o doce mais doce? O doce mais doce? Você! Pães de queijo, ovos moles, Olho-de-sogra, doce de abóbora Pingos de chuva, algodão doce, Doce, oh doce, senhora! Senhora dona doceira, Doce aqui e agora, E agora, bem no fim, Eu recuso maria-mole, Mas nós dois, bem juntim, Agarradim, rocambole.

São feitas dez perguntas sobre o poema, as quais transcrevo a seguir (ibid.):

1. Em todo o poema, há diversos nomes de doces. A que classe gramatical pertencem as palavras usadas para nomeá-los? 2. Na segunda estrofe, o eu lírico pede à doceira que o tire da agonia. Por que ele está agoniado? 3. No final da terceira estrofe, o eu lírico parece perder o interesse pelos doces. O que o faz mudar de idéia? 4. No verso “O doce mais doce? Você!”, a palavra doce aparece repetida. Em uma e outra ocorrência ela pertence a classes gramaticais diferentes. Quais são essas classes? 5. O plural das palavras noz e maçã é formado da mesma maneira? Explique. 6. Qual é o singular da palavra pastéis? Quais outras palavras que você conhece têm o plural formado da mesma maneira?

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7. Identifique no poema um substantivo que quando pluralizado sofre variação na pronúncia semelhante à que ocorre no caso de jogo (ô) e jogos (ó)? 8. O plural do substantivo composto pé-de-moleque é pés-de-moleque. Comparando esse substantivo com o substantivo olho-de-sogra, responda: Qual é o plural de olho-de-sogra? 9. O poeta empregou nas palavras juntim e agarradim uma forma de diminutivo própria do modo coloquial de falar. Como é o diminutivo dessas palavras na variedade padrão? 10. No final do poema, o eu lírico escolhe um doce, porém diferente dos demais: rocambole. Por que esse doce é diferente dos outros?

Observe-se que, das dez perguntas feitas, sete são perguntas sobre classes gramaticais

ou morfologia. O exercício já começa com uma pergunta sobre substantivos. E isso em um

livro voltado para crianças com idade em torno 11 anos! O poema não passa de um pretexto

para que seja feita uma análise gramatical. Não é preciso tecer maiores comentários para

entender o porquê de os jovens, após concluírem o Ensino Médio, não terem qualquer

interesse pela leitura de poemas ou por literatura. Quem há de culpá-los por isso?

Quanto à disciplina Literatura, por sua vez, percebemos que ela diz respeito à história

dos movimentos literários: os alunos têm de conhecer os nomes dos autores e as

características mais salientes da sua escrita, os movimentos literários e os textos mais

representativos de tais movimentos. Essa disciplina acaba sendo uma disciplina mais

vinculada a questões de História do que de Língua. Não seria melhor chamá-la de História da

Literatura? Dessa forma, os estudantes teriam uma idéia exata do que estudariam na

disciplina.

Não por acaso, o ensino de literatura voltado para o vestibular tem causado muitas

discussões. Veja-se, por exemplo, o comentário de Marisa Lajolo (2008):

[...] a literatura presente no vestibular (e portanto endossada pela universidade que nela se fia para selecionar seus alunos) se confunde com o reconhecimento (ou atribuição, no caso de perguntas que prevêem respostas expositivas) mecânico de características de estilo reduzidas a rótulos: dar o título de uma obra a partir de alguns personagens ou excertos; identificar um autor a partir de excertos, títulos, problemática predominante ou personagens.

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Lajolo provoca a necessidade de uma discussão em torno do papel dos cursos de

Letras enquanto formadores de professores de português. Afinal, será que esses cursos estão

formando profissionais capazes de lidar com o ensino de literatura? Será que os professores

universitários de literatura querem formar apenas críticos literários e teóricos da literatura, ou

estão também preocupados com a prática docente? Será que, como pergunta Lajolo (ibid.), há

duas literaturas? Uma voltada para os estudantes do Ensino Médio e uma voltada para os

estudantes de Letras? Essas são questões importantes, que podem gerar um debate saudável

dentro dos muros da academia, o qual não cabe no escopo deste artigo, mas que aponta para

problemas sérios no tocante ao ensino da literatura na escola e à formação de professores de

português.

Finalmente, durante as discussões sobre a questão levantada a respeito da divisão

tripartite das disciplinas, ficou claro para os cursistas que conceber Redação como uma

disciplina distinta de Língua Portuguesa transmite a idéia de que aprender a produzir textos é

algo distinto do aprendizado da língua. Ora, essa é uma visão, no mínimo, estranha, já que os

atos lingüísticos só se realizam por meio de textos, escritos ou falados. Como lembra, muito

apropriadamente, Luiz Carlos Travaglia (2003, p. 44): “é preciso questionar a dicotomia posta

quando se diz ‘aspectos gramaticais e textuais da fala/escrita’, pois dizer assim faz pensar que

o que é textual não é gramatical e o que é gramatical não é textual”.

A discussão em torno da separação dessas três disciplinas – Língua Portuguesa,

Literatura e Redação – levou os cursistas a se conscientizarem da existência de crenças

teóricas equivocadas que permeiam os currículos escolares e livros didáticos. Diante dessa

tomada de consciência, eles perceberam a importância de se esclarecer o conceito de língua e

a concepção de aprendizagem subjacentes não apenas aos currículos e livros didáticos mas

também e principalmente à sua prática docente. Afinal, sendo professores de língua

portuguesa, eles têm que ser capazes de explicitar a concepção de língua que eles adotam nas

suas aulas e a maneira como concebem o binômio ensino-aprendizagem.

Aproveitei esse momento de reflexão para perguntar aos cursistas qual a sua

concepção de língua. A maioria afirmou ser a língua um instrumento de comunicação e de

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interação social. Foi interessante ouvir aquelas respostas, afirmando uma concepção

pragmática, interacionista de língua, para, no decorrer das oficinas, testemunhar a maioria dos

cursistas revelar, inconscientemente, por meio dos seus discursos, que a visão estruturalista da

língua é o que permeava a sua prática docente.

Esse fato se revelou, de forma mais clara, em dois momentos da oficina. No primeiro,

provoquei os cursistas questionando-os acerca de dois pontos gramaticais freqüentemente

abordados nos livros didáticos e nas salas de aula: a voz passiva e os tempos verbais.

Perguntei-lhes quando a voz passiva é usada, iniciando uma discussão sobre essa estrutura

gramatical a partir da perspectiva pragmática, i.e. do uso. A única resposta que surgiu foi a

desgastada e limitada explicação: “para enfatizar o elemento que sofre uma ação”. Nenhum

deles soube dizer quais os contextos de interação social que favorecem a ocorrência da voz

passiva, embora soubessem explicitar o aspecto formal desse ponto gramatical, desde a

nomenclatura até as regras da transformação artificial e inútil de sentenças ativas em

sentenças passivas e vice-versa.

Conversarmos sobre os usos da voz passiva e sobre os contextos e gêneros textuais

que favorecem a sua ocorrência. Ficou esclarecido que a voz passiva não é um mero reflexo

opcional da voz ativa, apesar do uso estilístico dado a ela, embora tenha correspondência com

uma construção verbal distinta e independente que é a voz ativa. Eles perceberam que,

conforme escrevi em outro texto, a “falta de conhecimento acerca do uso da voz passiva

aponta para problemas na maneira como a voz passiva é abordada nas salas de aula e nas

gramáticas normativas, fonte de estudo que guia a prática de muitos professores de português

no Brasil” (OLIVEIRA, p. 50).

Em seguida, pedi-lhes para realizar um exercício simples: dizer que tempo verbal é

usado para expressar uma determinada idéia e exemplificar esse uso. Por exemplo, que tempo

verbal é usado para expressar uma situação atemporal? Muitos cursistas tiveram dificuldades

para responder essa e outras perguntas do exercício, que foram discutidas posteriormente para

que as dúvidas fossem dirimidas. O problema é que eles estavam fazendo uma

correspondência um-por-um entre tempo verbal e tempo abstrato. Eles admitiram nunca terem

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pensado nos usos que nós fazemos dos tempos verbais nas nossas realizações lingüísticas.

Discutimos os problemas terminológicos que envolvem a apresentação dos tempos verbais

nas gramáticas normativas e nos livros didáticos, o que ajudou muitos deles a despertarem

para essas questões.

As discussões sobre a voz passiva e sobre os tempos verbais levaram os cursistas a

perceberem a importância de ajudar os alunos a se conscientizarem dos usos que se fazem das

estruturas gramaticais, não limitando suas aulas à explicação dos aspectos formais dessas

estruturas. Tal limitação é reflexo da concepção estruturalista de língua, que veio à tona, mais

uma vez, em um segundo momento: a nossa discussão acerca da avaliação de textos

produzidos pelos estudantes.

Todos os cursistas usavam intercambiavelmente os termos avaliação e correção, o que

revela uma questão importante. Afinal, corrigir significa consertar o que está errado. Em

outras palavras, quando os professores corrigem as redações dos estudantes, eles geralmente

procuram os trechos que estão errados, de acordo com a gramática tradicional para corrigi-los.

E, para eles, avaliar era sinônimo de corrigir, significava dividir as produções lingüísticas dos

seus alunos em certo e errado. Sírio Possenti (2002, p. 328) não nos deixa esquecer que “essa

divisão tem um valor social, que a escola considerará de forma extremamente relevante. Daí

por que ‘corrigir’ é uma das atividades fundamentais”.

Propus, então, que eles avaliassem uma redação feita por um estudante do terceiro ano

do Ensino Médio e explicitei as condições para a avaliação: eles não deveriam levar em

consideração problemas de concordância no interior do sintagma nominal, de concordância

verbo-nominal, de pontuação, de acentuação e de ortografia. Dito isso, fez-se um silêncio

durante alguns longos segundos, nas três turmas, quebrado pela mesma pergunta: “o que é que

a gente vai avaliar, então”?

Essa reação, interessante e previsível, revelou a visão estruturalista que subjazia à

prática de avaliação dos cursistas. Ao procurarem erros nas redações e corrigi-los, eles

deixavam transparecer que viam o texto apenas como um conjunto de estruturas gramaticais,

as quais passavam a ser o alvo das possíveis e esperadas correções. Constatada a visão de

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língua compartilhada pelos cursistas, passamos a discutir duas concepções teóricas com

implicações importantes para a prática do professor de português, as quais serão abordadas no

próximo capítulo.

Participar das oficinas como mediador foi uma experiência interessante, pois me

ajudou a ter uma melhor idéia acerca das inquietações de professores de escolas públicas de

cidades variadas da Bahia e da realidade que limita a sua prática pedagógica. Para muitos

deles, participar das oficinas foi, ao mesmo tempo, gratificante e frustrante. Gratificante pelo

fato de eles estarem participando de discussões e atividades que lhes ajudaram a perceber

questões das quais eles não estavam conscientes. Frustrantes porque as condições de trabalho,

a pressão dos prazos letivos e a relação complicada com diretores que não entendem a

importância de se repensar o ensino de português acabam por limitar as possibilidades de

mudanças nas suas aulas. Mesmo assim, reconheceram que, aos poucos, podem ir mudando

algumas coisas, como, por exemplo, a forma como vêem a avaliação de textos e o ensino de

leitura.

Em 1985, Rodolfo Ilari (2001) perguntava: “pode a Lingüística contribuir para o

aperfeiçoamento do ensino da língua materna?” Acredito ser afirmativa a resposta para essa

pergunta, do contrário não existiria lingüística aplicada. A ponte entre teoria e prática deve ser

construída em um trabalho conjunto entre universidade e professores do Ensino Fundamental

e Médio. Entretanto, para isso acontecer, são necessárias duas coisas: (1) que os professores

percebam a importância da reflexão teórica para que possam entender e modificar ou manter

sua prática pedagógica; e (2) que os professores universitários dos cursos de licenciatura em

Letras entendam que estão, antes de mais nada, formando professores, elementos essenciais

para o processo de educação do Brasil.

Essa reação revelou a visão estruturalista que subjazia à prática de avaliação dos

cursistas. Ao procurarem erros nas redações e corrigi-los, eles revelavam que vêem o texto

apenas como um conjunto de estruturas gramaticais, as quais passam a ser o alvo da correção.

Constatada a visão de língua compartilhada pelos cursistas, passamos a discutir duas

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concepções teóricas com implicações importantes para a prática do professor de português, as

quais serão abordadas a seguir.

A TEORIA NA PRÁTICA

A prática de qualquer professor de português está sustentada em uma teoria de língua e

uma teoria de aprendizagem, quer esteja ele consciente disso ou não. Se o professor segue

rigorosamente o livro didático, ele está seguindo as teorias adotadas pelo autor do livro.

Quando o professor adapta o livro didático às realidades dos seus alunos ou às suas crenças

pedagógicas, ele também está seguindo alguma teoria.

Os cursistas participantes das oficinas relatadas no capítulo anterior compreenderam a

necessidade de o professor ter consciência das crenças teóricas que subjazem a sua prática.

Entretanto, muitos professores não têm o hábito de ler textos teóricos, especialmente se os

textos não apresentam uma relação explícita com as atividades práticas da sala de aula.

Todos os profissionais, como professores, médicos, engenheiros e cozinheiros,

precisam reciclar seus conhecimentos por meio de leitura ou de cursos de capacitação. Se não

fizerem essa reciclagem, eles não terão contato com os novos conhecimentos produzidos no

seu campo de atuação e deixarão de desenvolver sua competência profissional. Por essa razão,

é necessário que conceitos teóricos importantes sejam revisitados em oficinas de capacitação

e em livros especificamente direcionados para professores de português.

Atualmente, duas teorias de língua polarizam as discussões acerca do ensino de

português: a concepção estruturalista e a concepção interacionista. Abordaremos agora cada

uma dessas teorias e suas implicações práticas para a sala de aula. Para os propósitos deste

artigo, ficaram de fora alguns estruturalistas importantes, como Ronald Langacker, George

Lakoff e Roman Jakobson, por exemplo.

A concepção estruturalista da língua surgiu no século XX, resultado das reflexões do

lingüista suíço Ferdinand de Saussure e dos lingüistas americanos Noam Chomsky e Leonard

Bloomfield. Foi este último quem influenciou professores de língua na adoção da teoria

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estruturalista, que concebe a língua como um sistema formado por estruturas gramaticais

inter-relacionadas. Essa visão, por si só, não causaria nenhum problema ao ensino de línguas

se não fosse por um princípio teórico específico: ela exclui da sua análise o uso lingüístico e,

consequentemente, o sujeito usuário da língua e as variações lingüísticas.

É essa exclusão que tem sérias implicações para a sala de aula. Afinal, como podemos

vislumbrar um ensino de línguas que desconsidera o sujeito, o uso e as variações lingüísticas?

Isso parece inconcebível, mas é exatamente dessa forma que o ensino tradicional de português

acontece: ensina-se gramática tradicional esquecendo-se de que os estudantes, os professores

e todos os outros brasileiros não falam português usando essa gramática no seu dia a dia.

E o fato de eles não a usarem não é por acaso. Aquilo que passou a ser conhecido

como gramática tradicional é um conjunto de regras prescritivas que têm o objetivo de

supostamente levar os estudantes a aprenderem o bem falar e o bem escrever, todas elas

baseadas em uma linguagem escrita que, por sua vez, tem por base os clássicos da literatura

portuguesa e brasileira. Ora, ninguém fala de acordo com a escrita. A fala e a escrita, embora,

obviamente, compartilhem semelhanças, são distintas uma da outra. Entretanto, ocorre, como

aponta Luiz Percival Britto (2002, p. 82), “uma inversão radical na natureza da linguagem,

fazendo com que a escrita – que originalmente constitui-se como simbolismo da oralidade –

passe a ser vista como sua origem e modelo”.

Ensinar a língua portuguesa seguindo a concepção estruturalista significa ensinar

estruturas gramaticais sem nenhuma preocupação com os usos que se fazem delas. A

implicação disso para a sala de aula é séria. Os estudantes são expostos ao estudo da

nomenclatura gramatical e de formas gramaticais que não fazem parte do falar do qual eles se

apropriaram junto aos seus familiares e amigos. Essas formas gramaticais são apresentadas

como as únicas formas corretas do português. A conseqüência disso é o desrespeito para com

os falares dos estudantes e a transmissão da idéia de que eles não sabem português.

Nos últimos dois anos, tenho lecionado Lingüística para turmas de calouros no curso

de Letras com Espanhol na Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia. Na primeira

aula, faço a seguinte pergunta: vocês sabem português? Invariavelmente, um ou dois

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estudantes afirmam que sabem, alguns dizem que sabem um pouco e os outros garantem que

não sabem português. Em verdade, inconscientemente eles consideram iguais duas coisas que

são distintas: saber a língua portuguesa e dominar a gramática normativa. João Wanderley

Geraldi (2002, p. 30) deixa isso bem claro:

Saber falar significa saber uma língua. Saber uma língua significa saber uma gramática. [...] Saber uma gramática não significa saber de cor algumas regras que se aprendem na escola, ou saber fazer algumas análises morfológicas e sintáticas. Mais profundo do que esse conhecimento é o conhecimento (intuitivo ou inconsciente) necessário para falar efetivamente a língua.

O professor de português que vê a língua segundo a concepção estruturalista pouco

ajuda os estudantes na tarefa de desenvolver seus recursos lingüísticos para interagir nas mais

variadas situações. Ele apenas contribui para reforçar o mito de que há uma única forma

correta do português, reproduzindo um preconceito lingüístico que estigmatiza milhões de

brasileiros. Por essa razão, Geraldi (2002, p. 71) afirma: “O ensino tradicional da língua

portuguesa investiu, erroneamente, no conhecimento da descrição da língua supondo que a

partir desse conhecimento cada um de nós melhoraria seu desempenho no uso da língua”.

Passemos, agora, à visão interacionista de língua, também chamada

sociointeracionista. O nome já deixa clara a razão de ser de tal teoria: a interação social.

Interação pressupõe a presença de alguns elementos: o sujeito que fala ou escreve, o sujeito

que ouve ou lê, o contexto da produção e da recepção dos textos que se falam ou se escrevem.

Foram esses os elementos excluídos pela teoria estruturalista. O retorno deles à cena

lingüística se consolida em meados dos anos 1960 no processo que ficou conhecido como

virada pragmática.

Um dos principais responsáveis por esse processo foi o lingüista norte-americano Dell

Hymes (1991), que lembrou a lingüistas e professores de línguas que há regras de uso sem as

quais as regras gramaticais não funcionam. Em outras palavras, aprender apenas as regras

gramaticais não é condição suficiente para que um indivíduo seja capaz de usar a língua,

como evidencia a atividade sobre voz passiva realizada pelos cursistas, mencionada na seção

anterior. Nesse sentido, Hymes elaborou o conceito de competência comunicativa, segundo

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o qual o falante-ouvinte deve ter conhecimento das regras gramaticais e ter a habilidade de

usar essas regras, adequando-as às situações sociais em que se encontra no momento em que

usa a língua.

Outras vozes uniram-se à de Hymes, consolidando a inclusão do uso lingüístico, do

falante-ouvinte e das variações nas pesquisas em lingüística teórica e lingüística aplicada.

Vozes como a de William Labov, que estabeleceu o espaço da sociolingüística na academia,

que também dava as boas vindas aos pensamentos de John Austin e John Searle sobre os atos

de fala. E também as vozes de Robert-Alain de Beaugrande e Wolfgang Dressler, lingüistas

textuais que deram uma contribuição extremamente importante para o entendimento do texto

e, assim, para o ensino da leitura e da escrita como atividades de interação social.

Não havia dúvida: os excluídos pelo estruturalismo estavam de volta. Entretanto, essa

mudança tem se mantido nos muros da academia, chegando muito lentamente ao

conhecimento dos professores de português. Por essa razão, o ensino de português ainda se

mantém, em muitas escolas brasileiras, no nível das sentenças isoladas, descontextualizadas,

sem se levar em conta os usos que os brasileiros fazem da língua.

Vale notar que, nas duas últimas décadas, vários livros têm sido publicados a respeito

do ensino de português tratando de questões levantadas pela sociolingüística e pela lingüística

textual influenciada pelo ponto de vista pragmático. Exemplos disso são os livros Ensino de

língua portuguesa: uma abordagem pragmática (SUASSUNA, [1995] 2004), Educação em

língua materna: a sociologia na sala de aula (BORTONI-RICARDO, 2004) e Aula de

português: encontro e interação (ANTUNES, 2003). Observe-se que os títulos trazem a

marca daquela virada pragmática por meio dos termos pragmática, sociologia e interação,

respectivamente.

O professor que adota a concepção interacionista ou pragmática está mais apto a

ajudar seus alunos a desenvolverem sua competência comunicativa. Afinal, ele passa a ver a

língua não apenas como um conjunto de estruturas gramaticais, mas sim um conjunto de

estruturas gramaticais à disposição dos alunos para se expressarem oralmente e por escrito em

situações sociais diversas. Além disso, o professor passa a ver o texto como um elemento de

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interação sócio-comunicativa em que estão presentes elementos que não podem ser

desconsiderados: o falante/escritor, o ouvinte/leitor, a mensagem e o contexto.

Contudo, as reflexões a respeito do ensino de línguas resultantes da virada pragmática,

e das conseqüentes pesquisas dela decorrentes, chegam lentamente (quando chegam) à sala de

aula. E por que isso acontece? Exatamente porque essas reflexões circulam em livros ou em

artigos publicados em revistas acadêmicas especializadas. O problema dos livros é que muitos

professores lêem pouco por falta de acesso aos livros, por causa do preço dos livros e porque

suas escolas não têm bibliotecas bem municiadas em termos de títulos. Note-se ainda o fato

de as revistas especializadas terem pouco alcance em termos de número e tipo de leitores por

serem geralmente lidas por membros da academia.

O que fazer então? Como fazer chegar aos professores os resultados das pesquisas

empreendidas pelos sociolingüistas e pelos lingüistas textuais, por exemplo? Afinal, se os

professores refletissem mais sobre a língua e seu ensino sob a luz da concepção interacionista,

eles perceberiam a necessidade de mudarem sua prática e suas crenças teóricas. Isso teria um

impacto significativo na atitude dos estudantes em relação ao estudo de português,

aumentando nossas esperanças quanto a resultados mais positivos do binômio ensino-

aprendizagem.

Parece que a forma de fazer chegar aos professores de português essas informações é

por meio de oficinas de capacitação profissional. Entretanto, a realização dessas oficinas não

deve ser de responsabilidade exclusiva dos governos estaduais, mas também das

administrações municipais e das escolas particulares. O Governo Federal pode e deve

participar desse processo oferecendo apoio às instituições que capacitam professores das

escolas públicas estaduais e municipais e das escolas técnicas federais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do exposto até aqui, dois pontos ficam claro. O primeiro é a importância da

preparação teórica dos professores, a qual tem impactos significativos na sua prática docente.

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Isso aponta para a necessidade de se investir mais tempo e recursos financeiros em programas

de capacitação de professores, seja por parte das escolas particulares ou das secretarias

estaduais e municipais de educação ou ainda do Ministério da Educação.

A formação dos professores não acaba na graduação, mas também não tem que

continuar necessariamente em programas de pós-graduação. Cursos de especialização, de

mestrado e de doutorado, geralmente, oferecem uma grade curricular por demais abrangente

para atender as especificidades do ensino de português. Por isso, oficinas de capacitação como

aquelas em que participei no Instituto Anísio Teixeira e nas Faculdades Jorge Amado, na

Bahia, podem contribuir decisivamente para o processo de melhoria do ensino de português

no Brasil. Essas oficinas são uma ponte importante entre as pesquisas realizadas na academia

e a prática pedagógica dos professores do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.

Entretanto, não podemos nos esquecer de que há outros fatores que interferem nesse

processo. Um deles é a postura dos diretores de escolas públicas. Eles também precisam

participar de oficinas de capacitação para entenderem melhor a razão de ser desses eventos,

pois há diretores que dificultam a participação de seus professores nas oficinas, como ocorreu

com alguns dos cursistas que participaram das oficinas em que fui mediador.

Além disso, as universidades precisam adequar as provas do vestibular a fim de

facilitar a institucionalização das mudanças na prática docente. É sabido que muitos

professores alegam que não podem deixar de ensinar nomenclatura gramatical e enfatizar o

ensino de estruturas gramaticais porque elas são cobradas nos exames do vestibular. Portanto,

as universidades não podem deixar de participar do processo de reflexão acerca do ensino da

língua portuguesa.

O segundo ponto que se torna claro a partir do que foi exposto nas seções anteriores é

a necessidade da adoção, por parte dos professores de português, da concepção interacionista

(ou pragmática) de língua. A partir do momento em que o professor entende que a língua é

um meio de interação social, um lugar de encontro entres indivíduos, as suas aulas mudam,

suas prioridades em sala de aula mudam. Ao invés de enfatizar a nomenclatura e as estruturas

gramaticais, o professor passa a enfatizar o desenvolvimento dos recursos lingüísticos dos

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estudantes que os possibilitem a falarem, lerem e escreverem em contextos de interação social

distintos.

O desenvolvimento dos recursos lingüísticos que estão à sua disposição e o

desenvolvimento da sua competência comunicativa é que vão tornar os estudantes capazes de

se apropriarem de sua língua para aumentarem seu grau de cidadania. Entretanto, para que

isso ocorra, os professores precisam estar capacitados para ajudar seus alunos não só a

desenvolverem sua competência comunicativa mas também a perceberem que a língua padrão

é apenas um dos tantos dialetos falados no Brasil e que a língua que nós falamos é parte da

nossa identidade.

É a visão interacionista da língua que vai proporcionar aos professores a sensibilidade

e o respeito para com os dialetos que os estudantes trazem para a escola. Do contrário, o

preconceito lingüístico se estabelecerá, levando o professor a insistir em uma prática

pedagógica discriminatória e ineficiente. Por isso, é necessário que todos os professores de

português reflitam sobre aquilo que a professora Rosa Virgínia Mattos e Silva (1995, p. 35)

considera uma questão central: “qual a atitude da escola no Brasil, em relação à língua

materna da massa brasileira, ou seja, o português a ser ensinado na sala de aula?”. E para

realizarem essa reflexão, a capacitação é um processo fundamental.

Referências Bibliográficas

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola, 2003.

BORTONI-RICARDO, Stella. Educação em língua materna: a sociologia na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.

BRITTO, Luiz Percival. A sombra do caos: ensino de língua vs. tradição gramatical. Campinas: Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil, 2002.

CASTRO, Cláudio de Moura. O Brasil lê mal. Veja, São Paulo, 6 mar., 2002, p. 20.

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CEREJA, William; MAGALHÃES, Thereza. Português: linguagens, 5ª série. 3. ed. São Paulo: Atual, 2006. p. 123-124.

GERALDI, João Wanderley. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. 4. reimp. Campinas; São Paulo: Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil, 2002.

HAUY, Amini Boainain. Da necessidade de uma gramática-padrão da língua portuguesa. 3. ed. São Paulo: Ática, 1987.

HYMES, Dell. On communicative competence. In: BRUMFIT, Christopher; JOHNSON, Keith. (org.) The communicative approach to language teaching. 7. imp. Hong Kong: Oxford University Press, 1991. p. 3-26.

ILARI, Rodolfo. A lingüística e o ensino da língua materna. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

LAJOLO, Marisa. O vestibular e o ensino de literatura. Disponível na Internet via: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/vestibular.htm>. Acesso em: 31 jan. 2008.

OLIVEIRA, Luciano Amaral. O ensino pragmático da voz passiva. Calidoscópio – Revista de Lingüística Aplicada, São Leopoldo, v. 2, n. 1, p. 49-54, jan./jun., 2004.

POSSENTI, Sírio. Um programa mínimo. IN: BAGNO, Marcos (org.). Lingüística da norma. São Paulo: Loyola, 2002.

SILVA, Rosa Virgínia Mattos e Silva. Contradições no ensino de português: a língua que se fala X a língua que se ensina. São Paulo, Salvador: Contexto, EDUFBA, 1995.

SUASSUNA, LÍVIA. Ensino de língua portuguesa: uma abordagem pragmática. 7. ed. Campinas: Papirus, [1995] 2004.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática: ensino plural. São Paulo: Cortez, 2003. p. 44.

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O onde e seus correlatos em corpus do século XVII e XVIII

Emília Helena Portella Monteiro de Souza1

RESUMO: Nesta pesquisa, são feitas observações sobre a realização do ONDE e de seus correlatos (aonde, de onde, por onde). O corpus escolhido abrange as Cartas da Bahia de Antônio Vieira, século XVII e as Cartas Baianas Setecentistas, do século XVIII, organizadas por Lobo (2001). Os dados apresentados são de quarenta cartas selecionadas de cada obra. Esta pesquisa integra um estudo maior, não só envolvendo a obra de Vieira, mas também estudos do ONDE em outras sincronias. O objetivo desta pesquisa foi verificar os processos de variação e de mudança por que passa o ONDE, buscando confirmar hipóteses de que uma vez fazendo parte da língua, os itens se conformam às situações comunicativas e cognitivas dos falantes em cada época histórica, e que a cada recorrência novos usos podem se apresentar, numa relação de estabilidade, variação e mudança. Os resultados da pesquisa apontam que, em termos da mudança, o que se verifica é que o conjunto de usos do ONDE das sincronias sob enfoque se encontra em estágios anteriores da língua e também posteriores. Quanto ao ONDE e seus correlatos, estudos têm demonstrado que novos usos vão surgindo de formas já existentes, indicando a polissemia desses itens; algumas dessas formas se mantêm em uso, outras permanecem latentes, podendo reaparecer em um dado momento histórico.

PALAVRAS-CHAVE: o ONDE – correlatos – variação – mudança - polissemia

ABSTRACT: In this research, comments on the realizations are made of WHERE and of its correlates (where, from, by where). The chosen corpus encloses the Letters of Bahia by Antonio Vieira, from the XVII Century and the Bahian Letters Setecentistas, from the XVIII Century, organized by Wolf (2001). The presented data come from forty selected letters of each work. This research integrates a bigger study, not only involving the works of Vieira, but also studies of WHERE in other synchronies. The objective of this research was to verify the variation and change processes by which the WHERE passes, searching to confirm the hypotheses that once being part of the language, itens according to the communicative and cognitive situations of the speakers at each historical time, and that to each recurrence new uses can be presented, in a relation of stability, variation and shift. The results of the research point out that, in terms of the shift, what is verified is that the set of uses of WHERE of the synchronies under approach is found both in previous and also posterior stages of the language. Concerning the WHERE and its correlates, studies have demonstrated that new usages go on appearing out of already existing forms, indicating the polysemy of these itens; some of these forms are kept in use, others remain latent, being able to reappear in certain historical moments.

KEY WORDS: the WHERE – correlates – variations – shift – polysemy Este trabalho é o resultado de observações feitas sobre a realização do ONDE e de seus

correlatos (aonde, de onde, por onde) em Cartas da Bahia de Antônio Vieira, século XVII e

em Cartas Baianas Setecentistas, século XVIII, organizadas por Lobo (2001). Os dados

1 Professora da Universidade Federal da Bahia

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apresentados são de quarenta cartas selecionadas de cada obra. Esta pesquisa faz parte de um

estudo maior, não só envolvendo a obra de Vieira, mas estudos do ONDE em outras

sincronias. O que se objetiva é verificar os processos de variação e de mudança por que passa

o ONDE, buscando confirmar hipóteses de que uma vez fazendo parte da língua, os itens se

conformam às situações comunicativas e cognitivas dos falantes em cada época histórica, e

que a cada recorrência novos usos podem se apresentar, numa relação de estabilidade,

variação e mudança.

Ao se observarem ocorrências do ONDE em outras sincronias, a partir do século XIV e

comparando-se com ocorrências desse item no português atual, verifica-se que o ONDE

apresenta um sentido estável, o seu sentido fonte de referenciador de espaço físico, ao lado de

outros sentidos que concorrem com esse mais básico, evidenciando um processo de

abstratização. Embora a tradição gramatical preveja as situações de uso consideradas padrão,

essas nem sempre se confirmam, mesmo em se tratando de textos, em que a expectativa seja a

mais alta, por apresentarem uso de linguagem formal, como é o caso das Cartas de Vieira.

O ONDE é considerado um localizador universal, pois, além de indicar proveniência,

assumiu, entre os séculos XIV e XV, as acepções do HU, que caiu em desuso, e indicava

permanência e direção. Com a progressiva adoção de preposições, essas passaram a ser usadas

precedendo o ONDE, atendendo às várias acepções indicadoras de lugar, marcando oposições

semânticas. As observações feitas sobre o uso do ONDE e seus correlatos, nas Cartas de

Vieira e nas Cartas Baianas Setecentistas, demonstram não só usos do ONDE em variação

com o AONDE, evidenciada desde o século XIV, conforme estudos de Cambraia (2002), mas

outras formas e usos.

As Cartas de Vieira foram escritas entre 1682 e 1697. São cartas pessoais, em estilo

formal, dirigidas a pessoas do clero e da aristocracia, principalmente, mas também a pessoas

sem título de nobreza, exercendo cargos de governo.

As Cartas Baianas Setecentistas são cartas oficiais, todas da segunda metade do século

XVIII, de 1763 a 1799. Os seus remetentes são desembargadores-ouvidores ou juízes

ordinários. Esses não eram obrigatoriamente letrados e eram conhecidos como juízes da terra

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por serem moradores da localidade. Os juízes de instâncias superiores - corregedores,

ouvidores e desembargadores eram obrigatoriamente formados em leis, eram, em princípio,

portugueses. As Cartas vêm do Recôncavo Baiano ou da Comarca dos Ilhéus2. Na Comarca

dos Ilhéus tinha um desembargador-ouvidor, que circulava por toda a sua comarca. Quanto à

autoria, esses documentos são classificados em autógrafos, quando de punho do autor

intelectual, e em apógrafos, quando escritos por outros para o autor intelectual e cópias, de

relação mais distante com o autor intelectual (LOBO, 2001). Segue o levantamento dos dados

e posterior análise, primeiramente das Cartas da Bahia de Vieira, depois das Cartas baianas

setecentistas.

Levantamento e análise dos dados

Nas Cartas da Bahia de Antonio Vieira, existem ocorrências do ONDE, do AONDE e do

De ONDE. O ONDE apresenta um total de 18 ocorrências; o AONDE 02 e o De ONDE 04.

Observe-se a distribuição do ONDE e de seus correlatos, no quadro a seguir.

Quadro 1. Distribuição do ONDE e de seus correlatos nas Cartas da Bahia de A. Vieira

Lugar em que Lugar a que Lugar de que

Lugar Concreto 15 - - Tempo - - - ONDE

Lugar Abstrato Noção 3 - -

Lugar Concreto 1 1 - Tempo - - - AONDE

Lugar Abstrato Noção - - -

DE Lugar Concreto - - 3

2 Ilhéus passou à comarca, separada da Bahia, oficialmente em 1761, por ordem do el-Rei de Portugal, D. José I. Sendo o terceiro ouvidor, o Desembargador Francisco Nunes da Costa, que assumiu o cargo em 1780, o exercendo por dezessete anos. Esse Desembargador é o referido nas Cartas. Pertenciam à Comarca dos Ilhéus as vilas, São Jorge de Ilhéus, N. Senhora do Rosário de Cairu, N. Senhora da Assunção do Camamu, S. Sebastião de Maraú, Santo Antônio da Boipeba, S. José da Barra do Rio de Contas, dentre outras. Era na vila de Cairu a residência dos Ouvidores da comarca. Só em 1881 Ilhéus passou à cidade. (SILVA CAMPOS, 1981, p. 155; VILHENA, 1969, p.489-514).

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Tempo - - - Lugar Abstrato

Noção - - 1

Pelos dados observa-se que o ONDE tem o maior número de ocorrências, confirmando a

predominância de uso do seu valor mais básico, o mais canônico, que é o de espaço físico. O

uso do ONDE de valor lugar abstrato, nocional, também é significativo, dentro do total de

ocorrências, considerado o uso metafórico desse item, presente em textos desde o português

arcaico e tão freqüente no português contemporâneo.

Exemplos:

ONDE – lugar concreto (lugar em que – indicando permanência)

(1) [...] fica festejando e festejará em todo o tempo o estabelecimento e felicidade de

um tão amado Reino, posto que para mim tão ingrato; e, deste deserto onde vivo,

empregarei todas as minhas orações [...] (p. 463)

(2) [...] porque o observou em Pernambuco um padre alemão, grande matemático,

onde foi também visto de todos os padres daquele Colégio. (p. 521)

ONDE – lugar abstrato (nocional – lugar em que)

(3) Deus o tenha da sua mão; porque onde o merecimento não tem prêmio, e às

culpas tarda tanto o castigo, bem se lhe pode temer o do céu. (p. 485)

(4) [...] o governador e os que governavam [principalmente João de Góis, inimigo

capital da Companhia e de meu irmão, e a mão com que António de Sousa

escrevia], para me fazerem réu onde devera ser autor, com seus costumados

falsos testemunhos [...] (p. 515)

O AONDE possui duas ocorrências, uma indicando direção, a outra permanência,

evidenciando a variação existente entre essa forma e o ONDE. Seguem os exemplos.

AONDE – lugar concreto (indicando para onde)

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(5) E por isso diz que se tem provado que Gonçalo Ravasco acompanhou a António

de Brito no homicídio, estando ele no mesmo tempo no Colégio, aonde havia

muitos dias se tinha retirado, [...] (p.494)

AONDE – lugar concreto (lugar em que)

(6) Visitando um dia destes a meu irmão no convento, aonde já pudera ter professado

duas vezes, me leu uma carta que escreve a V.M.cê, em que diz tudo que se pode fiar

em papel. (p.537)

O DE ONDE indicando procedência apresenta três usos com valor de lugar físico;

também, como o ONDE, apresenta o valor nocional, de espaço estendido. Seguem exemplos.

DE ONDE – lugar concreto (lugar de que)

(7) [...] foi particular reserva da Providência Divina, para que em tempos tão calamitosos,

em que tanto reina o engano, tivesse S. M. um oráculo certo, de onde pudesse ouvir a

verdade pura e sem lisonja [...] (p.495)

(8) [...] de se não esquecer deste seu humilde criado em todas as frotas só são as que me

asseguram de que em Portugal, de onde tenho perdida toda a esperança, ainda há fé e

caridade. (p. 534)

DE ONDE – lugar abstrato – nocional (lugar de que)

(9) [...] não posso deixar de representar a V. Exa., a causa principal de onde todos estes

danos procedem, que, verdadeira e cristãmente considerada, é aquela em que os

discursos políticos pouco reparam, [...] (p.531)

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Ao se compararem os usos do ONDE e de seus correlatos, na amostra analisada, com os

existentes nas Cartas do Maranhão, nessas últimas, além dos valores apresentados nas

Cartas da Bahia, encontram-se o ONDE e o DE ONDE com valor de nexo, uso conclusivo.

As Cartas Baianas Setecentistas, que são cartas oficiais, escritas por oficiais de Sua

Majestade, o Rei de Portugal, apresentam um certo nível de formalidade, não só na

linguagem, mas na estrutura. Essas cartas constituem relatos de ocorrências policiais, como

roubos, casos de homicídio, questões da terra, em que se solicitam providências, ou permissão

para a tomada de decisões; também há solicitação para expedição de ordens, para atendimento

a requerimentos, etc. Nessas, a variação encontrada no uso do ONDE e de seus correlatos é

maior. Vai-se considerar, como dados da análise, a característica dos remetentes das cartas.

Segue o levantamento realizado.

Quadro 2. Distribuição do ONDE e seus correlatos nas Cartas Baianas Setecentistas

Lugar em

que Lugar a que

Lugar de

que

Lugar por

que

Lugar Concreto 3 2 - - Tempo - - - - ONDE Lugar

Abstrato Noção - - - -

Lugar Concreto 3 - - - Tempo - - - - AONDE Lugar

Abstrato Noção - - - -

Lugar Concreto 1 - - - Tempo - - - - DONDE Lugar

Abstrato Noção - - - -

Lugar Concreto 3 - 1 Tempo - - - - ADONDE Lugar

Abstrato Noção - - - -

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Lugar Concreto - - - - Tempo - - - -

POR

ONDE Lugar

Abstrato Noção - - - 1

O sistema apresentado nas Cartas Baianas Setecentistas fica, portanto, assim constituído:

o ONDE, o AONDE, o DONDE, o ADONDE e o Por ONDE. O ONDE apresenta cinco

ocorrências das quais três com sentido de permanência, e duas com o sentido de direção, em

variação com o AONDE. Tem a maior quantidade de usos em relação às outras formas.

Seguem os exemplos e os remetentes das cartas.

ONDE - lugar concreto (lugar em que)

Carta do Juiz ordinário, procurador José Albino Gomes Pereira - (Jaguaripe, 1799).

(10) [...] epor Seachar naterra/ oDoutor Ouvidor daComarca Logo lhefomos comunicar

oqueVossa Excelência/ determinava, e elle, que também teve outra igual

Recomendaçam deVossa Excelência, deliberou hir para aPovoação de Nazareth, on-

/de Seacha [...] (p.48)3

Carta – documento apógrafo; leva a assinatura do Juiz ordinário Luiz Pereira de Lacerda

(outra letra). (Santo Amaro, 1775)

(11) Remeto os Termos deSequestro que fis/ eo Alferes Manoel Francisco de Almeida

se/ occulta, em Razão da mulher do dito não dar parte certa don/de se acha [...] (p.67)

Neste caso, a preposição de pertence à lexia dar parte de e que se aglutina ao onde.

3 Com referência à natureza da edição, foram traçadas, pelos autores, as normas para a transcrição dos documentos, que vão aqui sintetizadas: a transcrição dos documentos é conservadora; respeito à grafia do manuscrito; não há fronteiras de palavras que venham escritas juntas, nem há introdução de hífen ou apóstrofo onde não houver; pontuação do original rigorosamente mantida; respeito ao emprego de maiúsculas e minúsculas como se apresentam no original; divisão das linhas do documento original será preservada, ao longo do texto, na edição, pela marca de uma barra vertical: / entre as linhas. A mudança de fólio receberá a marcação com o respectivo número na seqüência de duas barras verticais: // 1v. //2r. // 3r. (LOBO, 2001)

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Carta – documento apógrafo; leva a assinatura de Luiz Manoel da Silva Mendes, Juiz

ordinário (outra letra). (Santo Amaro, 1798).

(12) Erequerendo oSuplicante que Marchante/ que não/ tenho Lembrança donde allegou

oera e assim odeixarem Livre/mente Levar oseo gado, [...] (p.75)

Neste caso, a preposição de é complemento de lembrança, estando aí aglutinada ao onde.

ONDE – lugar concreto (lugar a que) – Documento apógrafo; leva a assinatura de Luis

Manoel da Silva Mendes, Juiz ordinário (outra letra). (Santo Amaro, 1798).

(13) Vai odito prezo que o tivera já Re=/metido a Vossa Excelência ainda sem as guias,

[...] se as occcupasoens do meo Cargo me não chamarem huns/ poucos dias fora desta

Villa onde chego agora. (p.77)

Carta do Dezembargador Ouvidor da Comarca dos Ilheos, Francisco Nunes da Costa.

(14) [...] La Sumáca, que está a carga, há de sahir do Porto Livre-/ mente para

Pernambuco, onde se destina [...] (p.65)

Todas as ocorrências do AONDE, em número de três, são referentes a espaço físico,

indicando permanência, em variação com o ONDE. Seguem exemplos.

AONDE – lugar concreto (lugar em que).

Carta do Juiz ordinário José Elói Ferreira Cardim (Jaguaripe, 1786).

(15) [...] eporultima Valen/dose do nome deVossaExcelencia o Recolheo aCadeya desta

Villa aonde esteve dous dias depois dos quais o mandei soltar [...] (p.42)

Carta do Desembargador Francisco Nunes da Costa – (Cairu, 1781).

(16) [...] e rogo a Vossa Excelência mande pa-/sar as percizas ordens, para, que torne

com apocivel brevidade ao referido por to aonde fição sincoenta, esinco paõs [...]

(p.87)

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Carta do Desembargador Francisco Nunes da Costa (Cairu, 1782).

(17) [...] rogando eu a Vossa Exce-/lencia, que lhe faca prohibir e tornar ao/ termo d’esta

Villa, aonde teve procedimentos muito indignos./ (p.89)

Há um uso de DONDE com o valor de ONDE - lugar concreto (lugar em que).

Juiz ordinário – Antonio Álvares de Souza (Salvador, 1767).

(18) A Vossa Magestade faço sciente, quenoano passado de 1766,/derão ámorte ahú

homem do Tuyuyû termo desta villa/ [...] decuja morte não tira-/rão o(s) Juízes

ordinarios Devassa, por não puderem [h]ir a[o] Lugar / donde s[eco]meteo o

deLito emrazão das Secas [...] (p.49)

Há quatro usos de ADONDE, três indicando lugar em que, um indicando lugar de que.

Seguem os exemplos.

Juiz ordinário – Antonio Álvares de Souza (Salvador, 1767). Ata, anexa, de autor não

identificado. Exemplos encontrados na Ata .

ADONDE – lugar concreto (lugar em que)

(19) [...] em que notticía que tendos ahido JozêGomes daSilva/ comhuma cavalaria da

parte de Jagoari/be, seaggregaraõ algumaspessoas que [ilegível]/ vamente o mataraõ

na travessia doRiacho/ da Brizida adonde osepultaraõ [...] (p.49)

ADONDE – lugar concreto (lugar de que), um uso; e lugar concreto (lugar em que) dois

usos.

(20)[...] eque após- [ilegível] matadores da dita cavalaria emas/bens do morto seguiraõ

para o Rio de São/ Francisco adonde se transportarão com os mes/mosbens roubados

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para o termo dadita Villa de Ita/picurû adonde o mesmo Cappitam-mor [...] fizera

prender e remete/ra para a Cadeia destacidade [...] (p.49)

(21)[...]que em grande/ parte difficultava a grande distancia e[ode]zêrto//2v dezêrto

adonde se cometteraõ os reffe-/ridos attentad os [...] (p.49)

Há um uso de POR ONDE, abstrato, nocional, indicando lugar por que.

Carta do desembargador Francisco Nunes da Costa (Salvador, 1792).

(23) [...] que ali se achaõ hua grande Su-/máca, e alguas outras embarcaçoens defora à

carga de/farinha, sem que os Mestres mostrem Despacho de Vossa Excelência, por

onde lhe concedesse esta faculdade. (p. 65)

Observam-se, nas Cartas Setecentistas, usos variáveis do ONDE e de seus correlatos. No

sistema apresentado, o ONDE e o AONDE estão em variação plena, tanto o ONDE é usado

como o AONDE, assim como o AONDE, em todas as suas ocorrências, em número de três,

tem a acepção do ONDE, indicando permanência. Há que se destacar que dois desses usos são

do texto do Desembargador Francisco Nunes da Costa, formado em leis. Em relação ao

DONDE, esse também se encontra em variação com o ONDE, como comprova a ocorrência

de número (18), de autoria de um juiz ordinário, em que essa forma é usada na acepção de

permanência. Quanto ao ADONDE, uma forma mais gramaticalizada, com a anexação de

duas preposições, que marcariam processos diferentes, essa forma é usada com as acepções do

ONDE, indicando permanência, e DE ONDE, indicando procedência, conforme exemplos

(19), (20), (21). Essas ocorrências se encontram em Ata de autor não identificado.

A forma ADONDE está registrada no Houaiss (2001, p.89) como:

contr. (sXIX cf. IVPM)

1 ant e infrm. m. q. AONDE <não sabia a. aquele caminho levaria>

2 infrm. m. q. ONDE <gostava do sítio a. morava> interj. Biron. p. us.

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3 usa-se para exprimir incredulidade, negação etc., ante uma afirmação, observação

feita por outrem <confiar em agiota ., companheiro>

ETIM a- (prep.) + donde/ segundo J. M., [é sabido que o adv. lat. unde se usava no

sentido de donde/ no lat. pop., porém passou a empregar-se na mesma acp. de ubi onde/ da[i

juntar-se-lhe a prep. de ou a, conforme as diferentes relações que se queria exprimir/ f. hist. s

XV adomde.

Em Ferreira (1986, p.48), o ADONDE é dado como advérbio antigo e popular, com

acepção de:

1. Aonde: “esse caminho/ Bem sei adonde vai” (Fr. Agostinho da Cruz, obras p. 1918).

Um outro exemplo “- De noite a gente come./ - Adonde?/ - Não sei” (Bariano

Ortêncio, “Vão dos Angicos”, 1969, p. 120). 2. Onde: “Se eu fosse as pedras

morenas / lá da serra adonde estás / As pedras seriam penas, as penas que tu me dás

...(Augusto Gil, “O craveiro da janela”, 1920, p. 14). “- Mas o que é que anda

fazendo? / -Procurando serviço. Será que ocê, que conhece tudo aqui pra Vila, sabe

adonde tem?” (Amadeu de Queirós, João, 1945, p. 15). Interj. 3. Bras. Pop. Qual!,

não é possível!: - Pode-me emprestar algum dinheiro?/ - Adonde, meu amigo!

Tanto o Houaiss (2001), quanto o Ferreira (1986) apresentam usos do ADONDE nas

acepções de AONDE e de ONDE, significando usos com o valor de direção e de

permanência. O Houaiss registra o aparecimento do ADONDE no século XV. De acordo com

estudos realizados sobre esses localizadores (cf. BONFIM, 1993 apud CAMBRAIA, 2002), o

ONDE no curso dos séculos XIII a XV estava passando por um processo de mudança, com a

progressiva perda de seu valor etimológico (“lugar de que”), o qual passou a ser expresso pela

forma donde, e ganhando dois novos valores (“lugar a que” e “lugar em que”). A anexação

das preposições ao ONDE era para marcar oposições semânticas; no caso do AONDE,

segundo Cambraia, a preposição a não marcaria oposição em relação ao ONDE, uma vez que

essas formas expressavam os mesmos valores, “lugar em que” e “lugar a que”, conforme

observado no Livro de Falcoaria, do século XIV, objeto de sua pesquisa. A hipótese

levantada é que o A do AONDE “seria exatamente a de reforçar esses dois valores recém-

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adquiridos, valores estes que a preposição a já expressava”; a oposição estaria entre “lugar em

que”/”lugar a que”, (permanência e direção), e “lugar de que” (procedência). (CAMBRAIA,

2002, p.60, 61).

O registro da forma ADONDE data do século XV, e está presente no século XVIII, nas

Cartas Baianas Setecentistas, na acepção de “lugar em que” e “lugar de que”. Logo as duas

preposições a e de anexadas ao ONDE, dando a forma ADONDE neutralizam a oposição

“lugar em que” e “lugar de que”, constituindo uma nova forma de uso variável, sendo

interpretada apenas no contexto, e em variação com formas mais marcadas, o ONDE, o

localizador universal, e o DONDE.

Considerações finais

Cambraia (2002) defende a polissemia do AONDE desde a sua origem (século XIV).

Essa polissemia se mantém em outros séculos, como se verifica nas Cartas da Bahia de

Vieira, do século XVII, e em Cartas oficiais baianas do século XVIII. Nas Cartas da Bahia, os

dois usos encontrados têm a acepção de permanência, variando com o ONDE. Mas no total de

usos do ONDE e de seus correlatos observa-se, nas quarenta Cartas da Bahia iniciais, uma

maior quantidade de ocorrências previstas pela tradição gramatical, em comparação com a

observada nas Cartas Setecentistas. Nessas últimas, a variação existente entre o ONDE e seus

correlatos é bem maior. O AONDE, o DONDE e o ADONDE têm uma alta freqüência de uso

na acepção de permanência. E o ONDE só apresenta além de seu valor de permanência, o de

direção. Pode-se hipotetizar que, nessas ocorrências, as preposições usadas com o ONDE,

para estabelecer as oposições semânticas, se neutralizam, não contando os seus valores

distintivos. Com referência à variação ONDE /AONDE, vale retomar as observações de

Cambraia (2002), sobre a preposição a que, no português arcaico, possuía os valores de

permanência e direção (cf. Mattos e Silva, 1989, p. 628), concluindo, então, que o A do

ONDE reforça esses valores do ONDE, em oposição ao DE ONDE. Nos dois verbetes

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destacados, do Houaiss (2001) e de Ferreira (1986), o ADONDE tem o valor de permanência,

como o ONDE, e de direção, como o AONDE.

No século XVIII, o ADONDE é usado com valor de permanência e de procedência,

estando acrescido aí mais um valor. O uso do ADONDE nas Cartas Setecentistas é de autor

não identificado, não se podendo afirmar a sua procedência, nem seu grau de escolaridade.

Em termos da mudança, o que se verifica é que o conjunto de usos do ONDE das

sincronias sob enfoque se encontra em estágios anteriores da língua e também posteriores.

Quanto ao ONDE e seus correlatos, estudos têm demonstrado que novos usos vão surgindo de

formas já existentes, indicando a polissemia desses itens; algumas dessas formas se mantêm

em uso, outras permanecem latentes, em stand by, podendo reaparecer em um dado momento

histórico. Como exemplo, o ONDE e o AONDE estão sempre em variação, desde o português

arcaico, e têm uma tradição de uso conforme estão documentados em textos de várias

sincronias. A forma ADONDE tem sua origem datada no século XV, como hipótese pode-se

dizer que não possua uma tradição de uso, como as duas formas citadas, não ocorrendo, por

exemplo, em Vieira, no século XVII, e na sincronia atual, em textos escritos e orais do

português urbano.

Numa visão pancrônica, postula-se a existência de uma regularidade que caracteriza o

conjunto de usos de alguns elementos da língua, em diferentes sincronias. Fatores de ordem

cognitiva, sociocultural e comunicativa proporcionam a emergência de novos usos a partir dos

já existentes. No caso do ONDE, o valor fonte tem se mantido, de espaço físico, ao lado de

outros, mais abstratos. Dados do português atual demonstram usos canônicos do ONDE com

valor de espaço físico coexistindo com usos mais abstratos, ocorrências identificadas desde o

português arcaico, e usos mais abstratos ainda, em novos contextos, constituindo novos tipos

de estrutura (cf. SOUZA, 2003). Pode-se afirmar que a freqüência de uso de formas numa

dada sincronia pode levar a uma legitimação desses usos, ao processo de convencionalização

dentro da comunidade lingüística, segundo Svorou (1993). Alguns desses usos podem vir a se

firmar em mais de uma sincronia, mas são sempre atualizados em cada nova situação

comunicativa, verificando-se aí, a base da criação lingüística.

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Mv Bill – O intelectual negro nas esferas da insurgência1

Sayonara Amaral2

RESUMO: Considerando que o hip-hop nacional tem se configurado em um espaço fecundo para o surgimento de jovens intelectuais da cultura popular negra contemporânea, neste trabalho, discutem-se aspectos da crítica sociocultural ativada nos discursos do rapper MV Bill. Toma-se o conceito de intelectual negro insurgente, cunhado por Cornel West, a fim de interpretar a postura assumida por MV Bill no questionamento aos “regimes de verdade” que insistem em excluir e segregar a população negra no país. A partir de trechos colhidos de sua produção poética e também de depoimentos prestados pelo rapper, enfoca-se o modo pelo qual são aí veiculadas políticas de resistência e de auto-afirmação identitária, construídas na contramão das representações responsáveis por escamotear conflitos etno-sociais. Palavras-chave: Mv Bill; Hip-hop; Intelectuais negros; Crítica social

ABSTRACT: Since the national hip-hop has been configured in a fertile space for the appearance of young intellectuals in the contemporaneous black popular culture, in this work, it is discussed social-cultural aspects activated in the speech of the rapper MV Bill.The concept of appearing black intellectual is taken, coined by Cornel West, in order to interpret MV Bill´s position in the issue of the “regimes of truth” which insist in excluding and segregating the black population in Brazil. Based on extracts of the poetic production and also from the testimony born by the rapper, it is then focused on the way which policies of resistance and self - identification are transmitted, built on the way back of representations responsible for conjuring ethnical – social conflicts. Key words: MV Bill, Black intellectuals; Social critic

Por amor à melanina coloco em minha rima

versos que deram a volta por cima

(Mv Bill – “O Preto em movimento”)3

1 Este artigo é fruto de reflexões empreendidas na disciplina Estudo de Expressões Identitárias, ministrada pela Professora Dra. Florentina da Silva Souza, em 2006, no Curso de Doutorado em Letras da UFBA. 2 Professora de Literatura na Universidade do Estado da Bahia. Doutoranda em Letras pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]. 3 In: MV BILL. Falcão – O Bagulho é doido. Rio de Janeiro: Universal Music, 2006. 1 disco compacto (35.32

min.): digital, estéreo.

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O hip-hop nacional tem se configurado em um espaço fecundo para o surgimento de

jovens intelectuais da cultura “popular” negra. Entendo por cultura popular não um domínio

essencializado, espaço simbólico uniforme, fechado sobre si mesmo e infenso a diálogos e

transformações. Stuart Hall adverte sobre essa questão, quando afirma que tais formações

culturais não são puras, pois, além de englobarem mais de uma tradição cultural, são também

produto de “sincronizações parciais”, de “negociações entre posições dominantes e

subalternas”, de “estratégias subterrâneas de recodificação e transcodificação”.4 Elas ainda se

caracterizam por abarcar desde formas tradicionais a elementos da atual cultura massiva e

práticas contemporâneas de produção e consumo culturais.

Na perspectiva de Hall, o caráter híbrido, multiforme e alargado dessas configurações

não impede, porém, que se identifique no significante negro, inserido na expressão “popular”,

uma marca afirmativa da experiência e da produção negras, agenciadas como diferença

perante o repertório ideológico da cultura dominante – “as contranarrativas negras que

lutamos por expressar”.5 É nesse registro que penso os jovens intelectuais negros do hip-hop

nacional. A relevância de suas atuações está não somente em firmarem saberes e visões de

mundo, configurarem valores e negociá-los, mas sobretudo em construírem políticas de

resistência e de elevação da auto-imagem de suas comunidades e, por que não dizer, de si

mesmos.

Considerando tanto o contexto de enunciação quanto as orientações ideológicas da

chamada cultura hip-hop, distantes estamos daquelas formulações do popular que se definem

pelo cultivo dos hábitos, costumes e tradições de um povo, constituintes de um imaginário

regional ou nacional. Numa trilha diversa, o cenário do hip-hop é a cultura pop

contemporânea, composta pelas novas tecnologias de mídia e amplos mercados de bens

culturais, a partir dos quais se estabelecem vínculos identitários transnacionais. Em sua

emergência, o hip-hop já representa essa formulação transcultural da diáspora negra, ao

4 HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende. (Et al.). Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. P. 343. 5 Id. Op. Cit. P. 344

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nascer da confluência de expressões artístico-culturais das comunidades afro-caribenhas e

afro-americanas, espalhando-se por diversas partes do mundo, onde foi adquirindo conotações

locais.6

Segundo Michael Herschman, no Brasil, inicialmente em São Paulo e depois no Rio

de Janeiro, o hip-hop assim como o funk vêm a reboque da cultura black dos anos 1970, tendo

contado com o apoio do Movimento Negro em muitas de suas manifestações iniciais.7

Constituída pelo break, o grafite e, especialmente, o rap – que se sobressai como uma de suas

maiores forças de expressão na atualidade –, a cultura hip-hop atinge hoje uma ampla

envergadura junto às populações periféricas de todo o país, tendo ganhado recentemente

maior abertura nos espaços da mídia e da indústria cultural brasileira.

Para além de um estilo performático irreverente ou de uma “estética de rua”, como por

vezes é reconhecido e até “estereotipado”, o hip-hop representa um espaço de negociação

simbólica a partir do qual são veiculadas políticas e práticas de transformação sociocultural e

de auto-afirmação da cultura negra, na contemporaneidade. A essa dimensão política, que

atravessa e envolve a dimensão estética, deve-se o investimento de muitos de seus líderes,

especialmente os rappers, cujas poéticas e pronunciamentos ácidos priorizam críticas

contundentes à sociedade e à cultura.

A postura assumida pelas lideranças do rap nacional em muito se aproxima da posição

defendida por Cornel West para o intelectual negro contemporâneo: a insurgência. No seu

texto “O dilema do intelectual negro”, Cornel West fala para (e a partir de) a sociedade norte-

americana, dirigindo-se a intelectuais negros da esfera acadêmica, o que implica em

relativizar a sua aproximação do nosso foco de discussão. Mas acredito que o conceito por ele

6 Ao situar o hip-hop nas conexões da diáspora, Paul Gilroy define-o como sendo o “último produto de exportação da América negra”, cujo sucesso é “construído em estruturas transnacionais de circulação e de troca intercultural há muito estabelecidas.” CF. GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Trad. Cid. Knipel Moreira. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-asiáticos, 2001. P. 182. 7 Segundo o autor, O Tiro inicial – um dos primeiros discos de rap gravados no Rio de Janeiro, em 1993 – contou com o apoio do Centro de Articulação das Populações Marginalizadas. Cf. HERSCHMANN, Michael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000. P. 185.

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agenciado pode ilustrar uma reflexão sobre figuras representativas do hip-hop, a exemplo de

Mv Bill.

O teórico norte-americano pontua determinadas orientações a serem adotadas pelo

intelectual negro insurgente, dentre as quais destacarei aqui duas. A primeira diz respeito à

necessidade de os intelectuais não se desvincularem das comunidades a que pertencem ou a

que devem atender no sentido de lhes prestar a competência de seus conhecimentos. West

toca, lateralmente, no conceito gramsciano de intelectual orgânico, quando evoca os

pregadores, músicos e demais artistas negros norte-americanos.8 Segundo o autor, os novos

intelectuais insurgentes devem tomar como exemplo essas tradições, cujo mérito está não

somente na riqueza de suas realizações artístico-culturais, mas especialmente no fato de

contarem com o suporte da comunidade, a partir do qual a sua força de atuação é ampliada.

No caso de um intelectual do hip-hop, como Mv Bill, não há muitas dificuldades em

identificar os laços que são criados com as suas comunidades e as relações de solidariedade e

apreço que aí se constroem. Nos seus raps, Mv Bill freqüentemente frisa a sigla CDD (Cidade

de Deus) como um grito de guerra. O primeiro CD, Traficando Informação (1999), traz uma

canção que é totalmente construída com nomes de favelas cariocas, proferidos num elenco

ininterrupto de citações. Segundo Ione da Silva Jovino, esse é um procedimento recorrente

para a maioria dos autores de rap, que, ao colocarem em suas letras o nome de seus bairros,

buscam “refúgio na identidade local”, demarcando o território da periferia como um espaço

de pertencimento.9

Na esteira da proposta apresentada por Cornel West, acrescento que a relação entre

Mv Bill e a periferia extrapola a noção de pertencimento situada pela referida autora. Se o

rapper busca refúgio na periferia para marcar a sua identidade local, a periferia, por sua vez,

encontrará nele também o seu refúgio, haja vista a sua atuação efetiva em trabalhos

comunitários, criando rotas alternativas de inserção social para os jovens moradores das

8 Cf. WEST, Cornel. The dillema of the black intelectual. In: The Cornel West: reader. Basic Civitas Books, 1999. P. 306. 9 JOVINO, Ione da Silva. A Juventude e o hip-hop. In: Revista História Viva - Temas Brasileiros. Ed. 03 - Mar/2006.

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favelas e suas famílias. A CUFA – Central Única das Favelas –, Ong que ele idealizou e

dirige juntamente com Celso Athayde, constitui-se num desses trabalhos de participação

social, através do qual se promovem e veiculam publicações de livros, discos, vídeos,

programas de rádio, shows, festivais de música, cinema, oficinas de arte, exposições,

seminários, dentre outros. 10

Incluem-se na sua plataforma de trabalho os vídeos-documentários realizados sobre os

menores no tráfico de drogas, dos quais resultam os livros que fez com parcerias – Cabeça de

Porco (2005) e Falcão: meninos do tráfico (2006). Além dessas produções, Mv Bill também

ministra palestras em associações e escolas de bairros carentes. Reunidas, todas essas

atividades permitem situá-lo como um “trabalhador da cultura” – conceito utilizado por Joel

Rufino dos Santos para definir, na esteira do intelectual orgânico, o intelectual do povo em

potência.11 Na medida em que o apoio das comunidades é fundamental para consolidar o

estatuto dos intelectuais negros insurgentes, Mv Bill já pode incluir-se nesse hall, graças à sua

força de intervenção junto ao público que assiste e ao respaldo que deste tem obtido.

Porém, ainda na abordagem de Cornel West, o diálogo do intelectual negro com as

comunidades não será suficiente para definir a insurgência, já que esta não prescinde de um

exercício crítico singular. Aqui, assinalo a segunda das orientações que destaquei nas

propostas de West e que considero a mais relevante: trata-se de tomar como objetivo o

questionamento aos “regimes de verdade” das sociedades em que vivemos.

Definido por Michel Foucault, o conceito de “regimes de verdade” compreende os

tipos de discursos que uma sociedade “acolhe e faz funcionar como verdadeiros”, produzindo

efeitos regulamentados de poder.12 Ainda que coloque ressalvas ao que define como sendo o

modelo teórico foucaultiano e afirme que este não se constitui em limite para a atividade

10 Dados extraídos de: http://www.cufa.com.br/quem.htm. (última consulta: maio de 2006) 11 Por “trabalhador da cultura” ou “intelectual do povo” Joel Rufino dos Santos entende aquele intelectual que “busca fecundar a sua condição de porta-voz dos pobres com elementos da ordem moderna”. Cf. SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do social: como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. São Paulo: Global, 2004. P.148. 12 Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Org e Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979. P.12.

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crítica do intelectual insurgente, Cornel West destaca a importância desse conceito,

convocando os intelectuais negros, seus conterrâneos, a questionarem os discursos de verdade

e poder euro-americanos, os quais devem ser “desmistificados, desconstruídos e

decompostos”.13 Nesse propósito, segundo o autor, a tarefa central dos intelectuais negros da

atualidade é “estimular, acelerar e habilitar percepções e práticas alternativas para desalojar

discursos e poderes prevalecentes”,14 a fim de deflagrar a insurgência negra.

Tanto nas suas composições quanto nos seus depoimentos junto à mídia, Mv Bill traz

como alvo de crítica social temas variados, a exemplo da violência urbana, da miséria nas

favelas e, especialmente agora, do problema do tráfico de drogas entre menores. Acredito,

porém, que no tocante à projeção da insurgência negra, um dos regimes de verdade que o

rapper procura desmontar se resume na seguinte frase: “Durante séculos a gente se escondeu

atrás de uma democracia racial que não existe.”15

Nessa fala, declarada em uma de suas entrevistas, Mv Bill confirma uma característica

assinalada por George Yúdice acerca da política identitária dos movimentos jovens na

periferia. Segundo o autor, os ativistas do hip-hop promovem a desestabilização da “cultura

do consenso”, que, a fim de atender aos interesses da classe dominante, forjou a idéia de uma

“miscigenação pacífica” em terras brasileiras. Essa opinião é comungada por Julio César

Tavares que, ao descrever Mv Bill como um tipo de “etnógrafo nativo”, dirige-lhe o seguinte

comentário:

A atitude proposicional do rapper torna a sua função ainda mais cruel, ao colaborar com a rede sistemática de desconstrução do sonho do Brasil pacífico, do Brasil cordial, do Brasil homogêneo e harmônico. O Brasil, como uma só nação e um só povo. O relato de Bill, pelo contrário, nos revela os outros Brasis possíveis, O Brasil heterogêneo, permanentemente conflitivo e, ainda, cognitivamente escravocrata e colonial.16

13 Id. Op. Cit. P. 313. 14 Id. Loc. Cit. 15 Cf. www.globalproject.info/1803.html. (Essa fala encontra-se numa entrevista concedida por Mv Bill em outubro de 2003) 16 TAVARES, Julio Cesar. Atitude, crítica social e cultura hip-hop: a face afrodescendente dos intelectuais públicos brasileiros. Disponível em: espacoacademico.com.br/036/36etavares.htm. (última consulta: maio de 2006)

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A heterogeneidade brasileira, as outras pátrias dentro dessa nação que se forjou una e

harmoniosa, encontra-se representada por Mv Bill nos seguintes versos:

Contraste social O povo pobre é que vive mal Eles querem negão dentro da prisão Estouram uma boca de fumo O traficante é preso Para alegria da polícia O traficante é preto. (“Contraste Social”)17

Aqui se reúnem os temas centrais da poética de Mv Bill, extraídos da realidade vivida

nas favelas e que se estende por todo o país: as mazelas sociais, o tráfico de drogas, a

violência do racismo. Tais temas encontram-se mesclados porque apontam para situações

experimentadas em simultâneo no cotidiano, dando conta dos valores hegemônicos de uma

sociedade que exclui, persegue e mata a massa de indivíduos negros e pobres. Nos versos que

frisam a identidade étno-racial do traficante como um dado significativo para a sua

hostilização por parte dos poderes vigentes, fica evidente que o contraste social, aí

tematizado, apresenta certas peculiaridades.

Esse olhar entrecruzado sobre a questão etno-social permite contemplar um aspecto

relevante da postura crítica de Mv Bill, que expõe um contraponto em relação à perspectiva

adotada por muitos de seus pares na cultura hip-hop. Segundo Michael Hershmann, ao

entrevistar diversos grupos de jovens do funk e do hip-hop carioca e indagar-lhes sobre como

concebiam a discriminação racial no seu cotidiano, estes “abordam a questão como sendo um

preconceito de classe, que atinge o segmento social dos pobres e/ou favelados”.18 Em

17 Esse rap é uma faixa do primeiro CD de Mv Bill – Traficando Informação, lançado em 1999. A letra encontra-se disponível no site do autor: www.realhiphop.com.br/mvbill/ - 2k (última consulta: maio de 2006) 18 HERSCHMANN, Michael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000. P. 68.

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entrevista ao Jornal do MNU, também o grupo de rap Racionais Mc’s parece se posicionar de

modo semelhante, confundindo as categorias de classe e raça, ao declarar que “O Racionais

fala do povo negro, do povo pobre, do presidiário, da criança de rua, e aí nós não olhamos a

cor”.19

No dizer de Florentina da Silva Souza, esse tipo de posicionamento expõe uma das

dificuldades para a discussão sobre as desigualdades raciais no Brasil. Quando se trata do

tema da exclusão, na medida em que o viés de classe supera o viés de raça ou nele se

confunde, omite-se o fato de que o número de indivíduos negros e mestiços nas camadas

sociais subalternas é muito maior do que o número de indivíduos identificados como brancos.

Além do mais, a autora alerta para o fato de o mestiço funcionar, no discurso racista, “como

um instrumento de hierarquização da discriminação e exclusão”.20

À diferença dos rappers entrevistados por Hershmann e também dos seus parceiros de

Os Racionais, Mv Bill explicita que o racismo brasileiro está para além da condição de classe.

Em depoimento à revista Caros Amigos, no ano de 2005, ele declara: “Racismo dos mais

cruéis acontece dentro da própria favela, onde as pessoas têm teoricamente o mesmo grau de

instrução, mesmo nível social, econômico (...). Quando saem pro asfalto acaba o mito de

democracia, porque um tem a cor do poder e outro a cor da miséria.”21

Não lhe escapa também o fato de a discriminação racial funcionar pelas vias da

hierarquização ou “gradientes de cor”22, nos termos de Florentina da Silva Souza, que

favorecem o mestiço: “quanto mais escura a sua pele, maior a discriminação em cima de você.

Isso faz com que a pessoa preta de pele mais clara se sinta superior a outra mais escura e

assim vai...”23

A teoria de que a discriminação de classe supera a discriminação de raça funciona de

modo a atravancar as discussões mais agudas e eficazes, que são tecidas para o combate ao

19 Apud. SOUZA, Florentina da Silva. Afrodescendência em Cadernos negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. P. 214. 20 Id. Loc. Cit. 21 CAROS AMIGOS: entrevista explosiva: Mv Bill. São Paulo, jun. 2005, p. 36. 22 Id. Op. Cit. P. 215. 23 Entrevista disponível em: www.globalproject.info/1803.html. (última consulta: maio de 2006)

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racismo. Como recorda Paul Gilroy acerca de um comentário de Stuart Hall, a raça é a

modalidade na qual a classe é vivida.24 Justificar a exclusão racial pela social, ou pior, diluir

completamente a primeira em detrimento da segunda, é contribuir com o mito da democracia

racial brasileira, acobertando os desmandos e injustiças que viemos sofrendo desde a

experiência da escravidão e que perpetuam-se em nossos dias. Acredito que, mesmo não

tratando dessa discussão com mais vagar, Mv Bill demonstra estar atento às suas nuances.

Um outro aspecto relevante da crítica ao racismo empreendida por Bill diz respeito ao

“racismo disfarçado” ou “racismo por denegação”, conforme este é definido por Lélia

Gonzalez. Segundo a autora, nas sociedades de origem latina, as teorias da democracia racial

são providas pela ideologia do branqueamento, da qual resulta uma modalidade “sofisticada”

de racismo. Veiculada pelos meios de comunicação massa ou pelos aparelhos ideológicos

tradicionais, tal ideologia impõe aos povos negros e índios a crença de que os valores do

Ocidente branco são o que há de verdadeiro e universal. Desse modo, “o desejo de

enbranquecer” é “internalizado, com a simultânea negação da própria raça, da própria

cultura”.25 Como emblemas de resistência a essa forma “aprimorada” de dominação, a autora

destaca a força das produções culturais dos povos oprimidos e das vozes que se erguem no

sentido de analisar/denunciar o sistema vigente.

Mv Bill é uma dessas vozes que desmonta o edifício da denegação, e o faz, a

princípio, em suas letras de rap. Nestas, o rapper não somente explora a representação de uma

identidade negra orgulhosa e desafiadora, como também convoca a sua comunidade ou o seu

público a tomarem uma mesma posição, rechaçando aqueles que sucumbem à “ideologia do

branqueamento”:

Ainda tem cara que fica babando o ovo do playbozinho Mesmo sabendo que pelas costas é chamado de neguinho, mulatinho, escurinho, moreninho, macaco Nunca foi aceito, sempre foi tolerado

24 GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Trad. Cid. Knipel Moreira. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-asiáticos, 2001. P. 179 25 GONZALEZ, Lélia. A Categoria político-cultural de amefricanidade. In: Revista Tempo Brasileiro, 92/93, 69/82, jan-jun, 1998. P. 76

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(...) Se liga preto por fora, branco por dentro.

(“Pare de babar”)26 Assumindo uma gramática e uma dicção agressivas, próprias à “atitude” hip-hop, Mv

Bill insurge-se contra a condição de submissão de homens negros, que se rendem ao poder

simbólico de homens “brancos”, privilegiados economicamente (os playboys). Denuncia-se o

tipo de relação estabelecido entre ambos, e que, por parte do indivíduo privilegiado, ocorre

segundo a moeda da falsa tolerância e não da aceitação ou entrega. O racismo, velado, já que

se dá “pelas costas”, reproduz-se desde as nomenclaturas “amenizantes” da cor da pele,

proferidas com ironia, no diminutivo, até o estereótipo depreciativo da animalização.

Ressalta-se, aqui, o contra-apelo à conhecida expressão “preto de alma branca” – espécie de

elogio indecoroso, freqüentemente usado no passado (hoje, talvez menos) para escamotear as

diferenças raciais no Brasil. Uma vez recebida como forma de elogio, essa expressão serviu

muitas vezes de fantasia de compensação para o que Frantz Fanon define por “menos-valia

psicológica”27, oriunda do “sentimento de diminuição” que se desenvolve devido à

internalização da ideologia do branqueamento.

Se na sua produção poética a crítica ao racismo por denegação se faz destacar, é nos

seus depoimentos que esta se torna mais contundente, quando o rapper coloca de forma

precisa a sua intenção em deflagrar a falácia da harmonia racial e em levantar o tema do

racismo:

Às vezes, me consideram neurótico, complexado, que não tem auto-estima, porque eu tento levantar a todo momento a questão racial que, na minha opinião, é uma forma de violência. (...) A gente vive num país que tem um racismo covarde.28

26 O rap também faz parte do Cd Traficando Informação (1999). A letra encontra-se disponível em www.realhiphop.com.br/mvbill/. (última consulta: maio de 2006) 27 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Maria Adriana da Silva Caldas. Rio de Janeiro: Fator, 1983. P. 50. 28 Entrevista disponível em: www.globalproject.info/1803.html (última consulta: maio de 2006)

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Referindo-se à recepção negativa que obtém acerca dos seus interesses pela questão

racial, Mv Bill toca num ponto relevante para se pensar as “sutilizas” do racismo por

denegação. Na medida em que assume e defende a identidade negra em contraponto à

ideologia da harmonia racial, denunciando tal ideologia como um “regime de verdade” que

acoberta a violência do racismo, o intelectual negro se vê confrontado com o argumento não

menos racista de que possui “problemas” de auto-estima. A essa proposição, ele não se faz de

rogado, advertindo e insistindo em um outro depoimento:

As pessoas não esperaram que um preto da favela com segundo grau incompleto venha levantar essas questões. As pessoas estão condicionadas a enxergar um cara preto, favelado fazendo samba, fazendo pagode, funk e em nenhum momento tendo algum tipo de questionamento social e quando isso acontece eu sinto que as pessoas acabam ficando chocadas, ‘não era para esse cara estar falando disso’. 29

Mv Bill identifica no samba, no pagode e mesmo no funk representações da

“cordialidade” nacional. Essa opinião é praticamente compartilhada pela maioria dos

integrantes da cultura hip-hop, que, ao trazerem propostas politizadas e “conscientizadoras”

em seus textos, consideram tais expressões culturais como reprodutoras da imagem de uma

sociedade sem conflitos, devido à ausência de questionamentos críticos por parte de seus

representantes. Quanto ao funk, este, ainda que seja irmanado ao hip-hop, em sua extração,

não recebe acolhida dos rappers, já que trata de temas exteriores à questão etno-social.30

Discordo de que essas representações da cultura popular sejam destituídas de potencial

crítico e de que não tenham exercido ou ainda não exerçam o seu efetivo papel de

“contranarrativas negras”, na expressão cunhada por Hall. Porém, não há como ignorar que

tanto o samba quanto outras representações da tradição cultural afro-brasileira foram incluídos

naquela “cultura do consenso” que, segundo Goerge Yudice, é manipulada pela política, pela

29 Entrevista disponível em: www.globalproject.info/1803.html (última consulta: maio de 2006) 30 Segundo Michael Hershmann, há um clima de hostilidade em relação ao funk, pois os rappers consideram que este “não contribui para a conscientização dos indivíduos quanto a sua condição social ou mesmo racial”. Cf. HERSCHMANN, Michael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000. p. 183.

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mídia e pelo turismo, desde as primeiras décadas do século XX, a fim de encher os cofres da

elite brasileira.31

No sentido de compor o ideário da nação una, homogênea e racialmente democrática,

essas representações foram freqüentemente folclorizadas, extraindo-se delas o seu poder vital

para ressignificá-lo segundo a conveniência da política racial branca. Tal procedimento

reforça as coordenadas do racismo disfarçado, pois fornece visibilidade à cultura negra,

escamoteando-se o fato de que esta se configura em uma “visibilidade segregada”32, ainda nos

termos de Stuart Hall. Nos limites demarcados dessa visibilidade, constrói-se a imagem do

homem folclórico que, segundo Abdias do Nascimento, “reproduz o homem natural, aquele

que não tem história, nem projetos, nem problemas: ele possui de seu apenas sua alienação

como identidade”.33

Cumpre observar que não se trata de entender os representantes ou produtores da

cultura popular tradicional, ontem e hoje, como “alienados”, mas de compreender que a

alienação lhes é imposta de fora, a partir do olhar e da tutela de uma “cultura de identificação

branca”34. Nesse sentido, grifo a expressão usada acima por Mv Bill – “as pessoas estão

condicionadas a enxergar” – como um viés reiterativo da compreensão fornecida por Abdias

do Nascimento acerca da folclorização da cultura negra no país. Partindo desse pressuposto,

pode-se orientar a interpretação da fala de Bill não apenas para o que desabona no pagode, no

funk ou no samba, mas para o modo como entende uma determinação coercitiva dos lugares

impostos à expressão do artista ou intelectual negro da cultura popular, freqüentemente

circunscrito a essas representações culturais.

Na medida em que busca escapar a uma possível visibilidade segregada, Mv Bill

dedica-se a mostrar que possui “história”, “problemas” e “projetos”. Desse modo, não é

31 Cf. YÚDICE, George. A Conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Trad. Marie-Anne Kremer. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. p. 161 32 Stuart Hall define a visibilidade segregada, dentre outros aspectos, como o modo através do qual a “diferença” da cultura negra pode ser cooptada, perdendo-se na espetacularização a sua capacidade cortante de deslocar as disposições de poder. (Cf. HALL, Op. Cit. P. 339). 33 Cf. NASCIMENTO, Abdias. A Bastardização da cultura afro-brasileira. O Brasil na mira do Pan-Africanismo. Salvador: EDUFBA, CEAO, 2002. P. 175 34 Id. Loc. Cit.

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apenas pelos discursos que profere, mas em si mesmo na condição de discurso, signo de

transgressão, que o intelectual do hip-hop irrompe na paisagem contemporânea,

desestabilizando os consensos e convocando à insurgência:

Tem o poder de mudar “rapá” Então passe para o lado de cá, vem cá Outra corrente que nos une A covardia que nos pune A derrota se esconde no irmão que não se assume Desperta sentindo a atmosfera que libera dos porões e te liberta Pode vir que tem Agbara, Ôminara, Português, Favelês ou em Ioruba, Axé (...) E deixar de ser um qualquer

(“O Preto em movimento”)35

Nesses versos, Mv Bill mostra que a sua crítica ao escamoteamento das desigualdades

raciais no Brasil não se estanca na acusação dos estereótipos negativos impostos à

representação do negro ou no ataque ao racismo por denegação. Para além da denúncia,

importa o modo como incita à transformação, propondo a reversão dos signos e papéis de

subalternidade, em favor de uma postura altiva.

Na letra do rap, os signos da corrente e dos porões, emblemas da escravidão, são

ressemantizados em uma clave afirmativa, remetendo agora a uma outra forma de elo, em que

a dor e a humilhação são abolidas para se declarar o orgulho de não ser “um qualquer”. No

intuito de chegar a essa condição singular e positiva, é preciso entender que a punição não

virá do “chicote do senhor”, mas da nossa possível “covardia”, que deve ser combatida a fim

de se atender ao convite, deflagrado na expressão “pode vir que tem”. Nesse chamado, é

oferecida a certeza da libertação, celebrada num dialeto que atravessa e congrega a favela, o

Brasil e a África, retraçando as sempre renovadas rotas da diáspora.

Cornel West afirma que o intelectual negro insurgente deve não apenas questionar os

regimes de verdade vigentes, mas também criar “novos regimes de verdade”36, através de uma

35 In: MV BILL. Falcão – O Bagulho é doido. Rio de Janeiro: Universal Music, 2006. 1 disco compacto (35.32 min.): digital, estéreo.

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prática cultural coletiva e engajada. Acredito que as novas verdades formuladas por Mv Bill,

assim como por diversos intelectuais do hip-hop, passam por essa altivez, que fere e ataca ao

tempo em que semeia e orienta a direção de outros caminhos: “Tem que ser sangue bom com

atitude/ Saber que é a caminhada é diferente pra quem vem da negritude/ Que um dia isso

mude”37

Discutindo a política identitária do hip-hop na cena nacional contemporânea, Nelson

Maca Gonçalves considera o rap como instaurador de um “mal estar” na cultura popular

brasileira, por trazer essas vozes não cordiais, que desconstroem a imagem da pátria integrada

e “sorridente” e colocam a nu as hostilidades de uma sociedade desequilibrada.38

Ao pontuar as propostas de auto-afirmação da consciência negra, agenciadas pelos

rappers, o autor considera que a discussão das questões raciais alcançou um alto nível de

elaboração no Brasil, porém ficou restrita a militantes ou à intelectualidade, enquanto a

maioria da população negra ainda discute ou pratica minimamente a negritude.39 Faço uma

ressalva quanto à noção de “restrição” das discussões à militância ou à intelectualidade, haja

vista a intervenção dessas categorias junto ao restante da população e os excelentes resultados

que têm aí obtido – seja no sentido deflagrar as peculiaridades do racismo brasileiro, seja na

perspectiva da auto-afirmação da negritude e do combate necessário pelos nossos direitos.

Destaco, a esse propósito, a relevância dos Movimentos Negros nacionais, assinalada pelo

próprio Mv Bill, quando declara: “não posso deixar de reconhecer que só tenho o espaço que

tenho hoje devido à luta histórica desses movimentos.”40

36 Id. Loc. Cit. P. 312. 37 O Preto em movimento. In: MV BILL. Falcão – O Bagulho é doido. Rio de Janeiro: Universal Music, 2006. 1 disco compacto (35.32 min.): digital, estéreo. 38 GONÇALVES, Nelson Maca. Preto tipo A e Neguinho: de Mussum a mano Brown. In: A TARDE, Salvador, 8/5/1999, p. 4. – (Caderno Cultural). 39 Id. Op. Cit. P. 3. 40 Entrevista disponível em: revistacult.uol.com.br/site_mvbill.htm. Essa fala nos mostra que, a despeito de ter levantado algumas críticas ao MNU, Mv Bill reconhece-lhe o mérito de ter aberto caminhos para as reflexões sobre negritude no país. Diante disso, acredito que o rapper assim como outros representantes da cultura hip-hop brasileira, de um modo geral, podem situar-se na linhagem dos Movimentos Negros nacionais. A esse propósito, Michael Hersnhmann chama a atenção para o modo como muitos dos jovens do hip-hop, por ele entrevistados, utilizam-se da expressão “movimento” em seus depoimentos. (Cf. HERSHMANN, Op. Cit. P. 185).

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Porém, a partir desse aspecto tocado por Nelson Maca Gonçalves, acredito que o hip-

hop, articulado no seio das camadas populares da sociedade, contribui para alargar e

dinamizar ainda mais a força crítica, oferecendo também novos timbres às discussões. Como

potencial, esses jovens intelectuais representam não somente um contra-ataque eficaz aos

regimes de verdade que ainda insistem em excluir e segregar, por meio do racismo aberto ou

disfarçado, a população negra do país. Eles apresentam também a possibilidade de reverter

essas verdades a partir do seu próprio lugar de enunciação – negro e periférico – constituindo-

se em exemplos de auto-imagem positiva para as comunidades de onde vêm e para as quais se

dirigem com a contundência de suas posturas, discursos e intenções. É importante observar

que o laço estreito com as comunidades não implica em confinamento das forças, já que as

vozes insurgentes do hip-hop se expandem pelo Brasil e pelo restante do mundo, como

atualmente tem sido notório no caso de Mv Bill. Que prossigam na jornada.

REFERÊNCIAS

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