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Língua e Cultura na construção da Identidade de Timor-Leste Geoffrey Gunn Este estudo procura examinar a inter-rela- ção entre língua e cultura na construção da iden- tidade de Timor-Leste. Analisa, em primeiro lugar, as questões ligadas ao contexto civiliza- cional no início da fase de expansão do poder português e islâmico no arquipélago oriental; descreve, em seguida, a emergência das comu- nidades crioulas criadas pelo contacto com os portugueses, na ilha de Timor e no conjunto do arquipélago; em terceiro lugar, examina os resul- tados da influência portuguesa na longa dura- ção, contrastando com as consequências de vinte e quatro anos de ocupação indonésia na identidade timorense, muito presente ainda na geração mais nova que luta por dar sentido ao seu futuro como parte de um estado-nação inde- pendente. O Contexto Civilizacional A chegada dos comerciantes ibéricos e mis- sionários europeus aos arquipélagos sudeste asiáticos prefigura já, de um ponto de vista civi- lizacional, o confronto de culturas referido pelo professor americano Samuel Huntington no seu famoso ensaio 1 . No caso da conquista de Malaca pelos Portugueses em 1511 e das expedições cas- telhanas contra o Brunei islâmico, os europeus impuseram o seu poder, tanto político como reli- gioso, pela força das armas. Mesmo assim, tal como demonstra Anthony Reid 2 , historiador do Sudeste asiático, num estudo sobre o que ele apelida de «fase crítica» do confronto entre muçulmanos e cristãos no arquipélago, entre 1550 e 1650, as fontes cristãs sublinham que «o Islão era uma força minoritária em Maluku e na área oriental do arquipélago em geral». No caso do arquipélago Solor-Flores-Timor, os primeiros portugueses que aí chegaram nas primeiras décadas do século XVI, não encontra- ram quaisquer influências indianas ou islâmi- cas. Comerciantes de madeira de sândalo vindos

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Língua eCultura na

construção daIdentidade de

Timor-LesteG e o f f r e y G u n n

Este estudo procura examinar a inter-rela-ção entre língua e cultura na construção da iden-tidade de Timor-Leste. Analisa, em primeirolugar, as questões ligadas ao contexto civiliza-cional no início da fase de expansão do poderportuguês e islâmico no arquipélago oriental;descreve, em seguida, a emergência das comu-nidades crioulas criadas pelo contacto com osportugueses, na ilha de Timor e no conjunto doarquipélago; em terceiro lugar, examina os resul-tados da influência portuguesa na longa dura-ção, contrastando com as consequências devinte e quatro anos de ocupação indonésia naidentidade timorense, muito presente ainda nageração mais nova que luta por dar sentido aoseu futuro como parte de um estado-nação inde-pendente.

O Contexto CivilizacionalA chegada dos comerciantes ibéricos e mis-

sionários europeus aos arquipélagos sudesteasiáticos prefigura já, de um ponto de vista civi-lizacional, o confronto de culturas referido peloprofessor americano Samuel Huntington no seufamoso ensaio1. No caso da conquista de Malacapelos Portugueses em 1511 e das expedições cas-telhanas contra o Brunei islâmico, os europeusimpuseram o seu poder, tanto político como reli-gioso, pela força das armas. Mesmo assim, talcomo demonstra Anthony Reid2, historiador doSudeste asiático, num estudo sobre o que eleapelida de «fase crítica» do confronto entremuçulmanos e cristãos no arquipélago, entre1550 e 1650, as fontes cristãs sublinham que «oIslão era uma força minoritária em Maluku e naárea oriental do arquipélago em geral».

No caso do arquipélago Solor-Flores-Timor,os primeiros portugueses que aí chegaram nasprimeiras décadas do século XVI, não encontra-ram quaisquer influências indianas ou islâmi-cas. Comerciantes de madeira de sândalo vindos

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Grupo de músicos de Vinilale, c. 1970. Fotografia deLuís F. R. Thomaz.

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da China ou de ilhas e portos a ocidente, nãotrouxeram influências civilizacionais identificá-veis nas sociedades animistas e profundamentesegmentadas destas ilhas orientais. Na verdade,este facto é algo surpreendente, especialmenteporque Timor esteve, desde cedo, integrada nasredes de comércio regional.

Mas com a conversão de Makassar (Talo eGoa) ao Islão em 1605, as missões dominicanasde Solor e de Larantuca nas Flores, enfrentaramum novo elemento de contestação. Mesmoassim, quando as comunidades islâmicas deSolor foram fundadas, presumivelmente sob ainfluência dos Sultões de Ternate e Makassar, enuma altura em que os dominicanos estavam ainiciar a evangelização da ilha de Timor(Kupang, Mena, etc.), não houve contestaçãopor parte de rivais islâmicos. Makassar tornou-

-se mais agressiva em 1640 com a expulsão dosportugueses, especialmente porque tentavaentrar pela força no comércio de sândalo dasilhas do sul. Larantuca foi atacada, o que levou àtransferência das actividades da missão portu-guesa para Timor.

O único exemplo de um ataque islâmico aTimor nesta época, embora com característicasde pirataria, parece ter sido a acção do SultãoKarrilikio (Camiliquio) de Tolo, em Sulawesi,que, por volta de 1640 invadiu Timor com umaarmada de 150 prauh ou navios e uma força de7000 homens em armas, devastando a costanorte da ilha durante três meses3. Também é ver-dade que mercadores de Makassar visitavam fre-quentemente Timor durante o período docomércio de sândalo, embora não haja registo deuma presença permanente ou de proselitismo

Tecelã de tais, Bobonaro. Fotografia de Luís F. R. Thomaz.

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islâmico na ilha durante a «fase crítica» doencontro de civilizações. Veremos mais adianteque após a ocupação indonésia de Timor Lesteem 1975, novos elementos de contestação civili-zacional testaram os timorenses até ao limite,apesar de, ao aprenderem a linguagem dos inva-sores, os jovens timorenses aprenderam tam-bém a linguagem global dos direitos humanos ea luta pela democracia, tal como esta acabariapor triunfar no seio da própria Indonésia com ocolapso da ditadura de Suharto em 1998.

Mas é, ou pode, Timor-Leste ser concebidocomo parte do mundo Indonésio e Malaio? Éinteressante verificar que Samuel Huntington4

divide a civilização islâmica em três «sub-divi-sões»: Árabe, Turca e Malaia. Neste sentidomuito lato, Malaia abarca todos os povos domundo Indonésio/Malaio que são muçulma-nos. A definição de Malaio como muçulmano naMalásia/Singapura/Brunei (Darussalam) mo-dernas é ainda mais estreita. Não é este o lugarpara discutir o sentido de Malaio, mas, comorecentes investigações demonstraram, mesmo acategoria «Malaio» foi uma invenção colonialbritânica. A condição de Malaio na Malaia e Bru-nei pós-coloniais sofreu um processo de recons-trução em torno de uma nova e correcta defini-ção política (e religiosa). Apesar disso, há inú-meros povos no mundo malaio que não sãomuçulmanos, dos indígenas de Bornéu, Sula-wesi e Papua às ilhas de Lesser Sunda, incluindoTimor. O arquipélago malaio é também a áreageográfica na qual o naturalista britânico AlfredRussel Wallace5, situou Timor no seu clássicoestudo de 1969.

De um ponto de vista antropológico, é a estemundo, ou pelo menos a estas sociedades seg-mentadas e divididas em numerosos clãs doarquipélago oriental, que os timorenses perten-cem, embora também seja verdade que os pri-meiros povos a chegarem a Timor-Leste eramoriginários da Melanésia e de Papua. Do ponto

de vista linguístico, recentes investigações con-firmaram que as línguas indígenas em Timor--Leste pertencem, quer aos grupos linguísticosAustronésios, pré-austronésios ou não-austro-nésios. Esta investigação sugere que há dezas-seis unidades em todo Timor, sendo que trezedessas línguas são faladas em Timor-Leste. Hojeem dia o Tétum é a língua franca mais divulgada,embora não seja corrente no enclave de Oe-cússi ou entre os falantes Fataluku, no leste6.

Mas aqui temos o paradoxo. A antropologiae a cultura relacionam os Timorenses com aregião, tal como os timorenses de leste e de oestetem origem em raízes comuns. Porém foram aexperiência e os contactos coloniais e as influên-cias civilizacionais que dividiram as duas meta-des da ilha e distinguem a sociedade de Timor-Leste de outras sociedades indonésias vizinhas.

Comunidades CrioulasPodemos argumentar que uma das questões

mais importantes para a definição da identidadetimorense foi a criação, ao longo do tempo, decomunidades crioulas, não apenas em Timor,mas por todo o arquipélago. O maior legado civi-lizacional dos Portugueses – e Dominicanos – noarquipélago foi, sem dúvida a criação de nume-rosas comunidades crioulas, especialmente nasFlores, Solor e em Timor. Como seria de esperarestas comunidades são católicas; os nomes eapelidos foram aportuguesados e a língua por-tuguesa pode ter sido falada.

Em algumas definições o conceito decrioulo implica um ascendente europeu. Mas,na generalidade, as comunidades crioulasreflectem uma cultura híbrida que vão da cozi-nha ao vestuário, religião, transferências linguís-ticas e musicais. Por exemplo, mesmo para alémdo nível comunitário, as melodias keroncong deforte influência portuguesa, foram objecto deapropriação pelos indonésios como forma17

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musical nacional. Centenas de comunidadesdeste tipo existem ainda na Indonésia, dasMolucas a Menado, às Flores e até a Jacarta, emtorno do histórico distrito de Tugu. Malaca fazparte desse legado, assim como outras comuni-dades católicas de forte influência cultural por-tuguesa nas modernas Malásia e Singapura.Nestas comunidades, foi-se desenvolvendo, aolongo do tempo, uma forma típica de hibri-dismo entre o Malaio e o Português. Na China,Macau é um caso claramente especial. Mas ireimais longe na minha argumentação, defen-dendo que existem duas nações crioulas na Ásiado Sudeste, as Filipinas e Timor-Leste.

Embora seja provável que as primeirascomunidades de forte influência cultural portu-guesa em Timor, eram igualmente obrigadas aaprender malaio, o idioma mais difundido nocomércio do arquipélago, este idioma tambémperdeu a sua posição, especialmente após amudança da capital de Lifau, em Oé-Cússi, paraDíli, em 1769. Como Governador de Timor,Afonso de Castro7 observou, a meados do séculoXIX, em Díli, que a maioria dos chefes indígenasfalava crioulo. Segundo foi descrito por Raphaeldas Dores (1907)8 e outros lexicógrafos, a mea-dos do século XIX, muitas centenas de palavrasportuguesas entraram no Tétum-Praça, a lín-gua-franca de Díli. O Governador Castro9 expli-cou que as palavras portuguesas eram usadas naausência de termos para objectos inexistentesantes da conquista. Mas Timor também ficou defora em relação às antigas colónias portuguesas,na medida em que os Portugueses apenas puse-ram termo ao domínio restrito sobre o Tétum deforte influência portuguesa e outros dialectos,pelo menos fora dos centros urbanos, onde umacerta crioulização linguística foi desenvolvida.

Recuando no tempo para as primeiras déca-das do último século, uma pessoa reconhecida-mente capaz de fazer comparações civilizacio-nais com facilidade, foi o poeta e juiz Alberto

Osório de Castro, autor de A Ilha Verde e Verme-lha de Timor. Assim escreveu ele sobre a comu-nidade crioula de Bidau, em Díli (bairro subur-bano no extremo ocidental de Díli), que existiuorganicamente, pelo menos até à SegundaGuerra Mundial: «… e habitado pelas famíliasdos soldados e oficiais de segunda linha da Com-panhia de Bidau, é falado um dialecto crioulo--português como língua própria. Será a popula-ção o resto dos cristãos, foragidos da nossa pri-meira e abandonada capital de Lifau, no enclavede Oe-cússi, misto de portugueses, goeses,moluqueses, malaqueses e de conversos deLarantuca»10.

Ao mesmo tempo que pintava o retrato deuma sociedade crioulizada de linguagens híbri-das e influências civilizacionais, Castro tambémobservou nos Olán Timor (filhos de Timor) a dis-tinção ou a rivalidade cultural entre os Firako (amaioria falantes de Fataluku), e os Kaladi (na suamaioria falantes de Mambae), sugerindo umadivisão mais primitiva dos timorenses, fora dascategorias convencionais11.

O que eu sugiro é que o modo como os timo-renses concebiam os seus respectivos mundosnão era, obviamente, coincidente com os desejose os desígnios dos seus administradores coloniais.

A forte influência colonialportuguesa em Timor e a constituição da IdentidadeTimorense

Assim como a identidade malaia é umaconstrução, será edificante recordar como foiconstruída a identidade de Timor através dostempos coloniais, com especial referência à lin-guagem e à cultura.

Escusado será referir que os primeiros etnó-grafos de Timor foram as missões, impondofronteiras e designações. Um dos mais nítidossinais distintivos impostos aos timorenses pelos 18

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etnógrafos das missões, do meu ponto de vista,são os que dizem respeito à linguagem e ao dia-lecto. Assim se pode deduzir após leitura dedicionários e repertórios produzidos a partir de1890. É sem surpresa que se constata que oTétum é posto em evidência, mas os outros dia-lectos são igualmente descritos. (p. ex., o Cate-cismo da Doutrina Cristã, em Tétum, de Sebas-tião da Silva – Macau, 1885; e o seu DicionárioPortuguês-Tétum publicado em Macau em1889; o Dicionário Tétum-Português, de ManuelPatrício Mendes (1935); a gramática de Galoli deManuel da Silva (1900) e o respectivo dicionário

de 1905). Também foram terminados outroslivros de orações e evangelhos traduzidos emTétum, Galoli, Makassai, Midiki e línguas Mam-bai12.

A Coroa, pelo menos o Estado da Índia tam-bém integrou o quadro, especialmente namedida em que foram feitas notáveis aliançascom o reino ou governantes tradicionais. Este ouaquele reino era, ou leal a Portugal ou, ipso factoem revolta ou em conflito com os colonizadoresrivais, nomeadamente os holandeses. Parece-me que o factor étnico ou a afiliação linguísticaa este ou aquele reino era menos importante do19

Futus, sistema de tingir os panos tais. Fotografia deLuís F. R. Thomaz.

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que a sua lealdade. No que diz respeito aos qua-trocentos e tal anos de luta entre a Coroa e oreino, podemos dizer que os portugueses fica-ram a dever a posição conquistada à sua habili-dade para cimentar alianças e para impor umsentido de aliança partilhada entre aliadosinconstantes. As recompensas e a concessão degraus honoríficos contribuíram para criar umaidentidade lusitana imaginária, talvez funcio-nando em reciprocidade com a exibição de ban-deiras lulics (objectos sagrados), pelo menos nocaso dos aliados. No caso dos adversários, arevolta contra os malai (estrangeiros) voltou alegitimar, nos espíritos dos seguidores, a forçada tradição e da cultura dos lulic e da religião tra-dicional.

Com exemplo de um reino leal, observemoso que ficou gravado numa inscrição quase ilegí-vel, no pórtico da igreja Motael, em Díli: «ÀMemória do / Rei de Motael, / Brigaderio Gre-gorio / Rodrigues Pereira / Pelos Valioças / Ser-vicos Que / Prestou à Nação / 1800-1820».

Podemos dizer que a identidade timorensefoi altamente controversa durante quase todo oinício da permanência portuguesa. Não era con-traditório, para um timorense, pagar regular-mente as fintas (bens em espécies), impostosimportantes, e tudo o que devesse ser feito comoacto de lealdade em relação à Coroa Portuguesae aos seus agentes, e, ao mesmo tempo, reafir-mar a sua lealdade ao clã, linhagem ou ao luirai(senhor das terras). Em todo o caso, comodefendi anteriormente13, durante muitos anosTimor foi tratado, mais como um protectoradodo que como uma colónia, apesar dos pressu-postos legais.

Enquanto o poder das armas se inclinavapara o lado dos colonizadores europeus, com oadvento do canhoneiro a vapor, por volta de1870, ainda custa a imaginar uma identidadelusitana em Timor sem um debate sobre o papelda igreja. Diz a fama que foi com a vinda para

Timor do Bispo Medeiros e da sua equipa demissionários, vindos de Macau em 1877, que apresença da igreja na educação e no trabalhopastoral assumiu uma maior importância.Embora a educação dificilmente se estendessepara além do nível primário, emergia, noentanto, um quadro de falantes de portuguêsnas cidades da colónia, a vanguarda de uma eliteque se constituía. Detectava-se, entretanto, umimenso sincretismo ou mesmo uma tensãoentre a ortodoxia da igreja e práticas pré-cristãsna formação da identidade timorense.

A etnografia pré-guerra colonial, em Timor,o que é discutível, preocupou-se durante muitotempo com as origens dos Timorenses. Uma talpesquisa concentrou-se na antropologia física,mas também procurou estabelecer as origensdos mitos e das lendas. Após a guerra, a ênfasemudou para a classificação étnica, talvezfazendo eco de obsessões similares entre os bri-tânicos, franceses, holandeses e outros etnógra-fos coloniais da época.

Notável é o trabalho efectuado pelo Dr.António de Almeida14, que foi, a partir de 1953,o chefe da Missão Antropológica de Timor, quefoi a mais ampla plataforma de uma investiga-ção antropológica em Timor, durante mais deuma década. Almeida conduziu uma série deinvestigações que tiveram por resultado a classi-ficação de 31 grupos etno-linguísticos na coló-nia. Os referidos dialectos foram então reduzi-dos a sete grupos linguísticos principais, Vai-queno, Makua, Fataluku, Makassai, Tétum--Galoli-Waimaha e Mambai-Tokodede-Kemak.Embora este estudo só tivesse sido publicado em1982, representou um enquadramento impor-tante para a perspectiva etnológica.

No entanto, defendo que a insistência daadministração de Salazar, ao tratar as colóniasportuguesas como províncias metropolitanasultramarinas, enquanto atrasava o processo dedescolonização, contribuiu para obscurecer e21

Homem tocando flauta. Fotografia de Elaine Brière.Fundação Austronésia Borja da Costa.

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mistificar a questão da identidade timorense.Comunicações muito incipientes, terrenoescarpado, etc., reforçaram as lealdades pri-mordiais e poucos timorenses, até aos anos 60,tiveram o prazer de considerar o seu país sobuma perspectiva nacional. Aventurar-me-ei aafirmar que o primeiro corpo de timorensesque se enquadram nessa definição foi o recru-tado nas forças armadas portuguesas. A subse-quente defecção deste grupo em favor da Freti-lin, em Outubro de 1975, pareceu reforçar estavisão de si próprio. Assim, pode dizer-se que aFretilin, o primeiro partido político baseadonas massas em Timor--Leste, foi a primeiraorganização que se assumiu como verdadeira-mente timorense, identificando-se espiritual-mente com o conceito. Os homens mauberesda Fretilin eram tão simbólicos quanto a inven-ção de Timor-Leste. Também pela primeira vezo Tétum surgiu como uma língua franca indí-gena, primus inter pares, ao mesmo título queo português, a língua da modernidade. Porexemplo, o jornal da Fretilin era impresso emportuguês e, pela primeira vez, em Timor, forados circuitos restritos da igreja, em Tétumromanizado.

A «comunidade imaginada» constituídapela elite da Fretilin compartilhou, no entanto, asua visão de um futuro Timor-Leste indepen-dente e de algum modo, acertando o passo comos conflitos dos seus irmãos e irmãs em Moçam-bique e Angola, cujo apoio era recíproco. Hoje, ohorizonte de solidariedade com Timor-Lesteenvolve todos os países lusófonos, incluindoMacau e o distante Brasil. É notável que a eliteda Fretilin não se tenha sentido atraída pelosmodelos asiáticos, apesar da propaganda indo-nésia relacionando a Fretilin com a China. Detodo o modo, a elite da Fretilin não era consti-tuída por falantes de outras línguas asiáticas,nem, sobretudo, algum país asiático terá algumavez sido solidário com a sua causa.

O enquadramento indonésio daidentidade timorense

É óbvio que os 24 anos de ocupação indo-nésia constituíram uma ruptura significativanos 500 de História de contacto europeu. Temoque, a menos que a geração mais jovem deTimor-Leste comece realmente a estudar esses500 anos de História, a sua verdadeira impor-tância não perdure. Através da linguagem, espe-cialmente, e em consequência do sistema esco-lar indonésio, os habitantes de Timor-Lesteforam esclarecidos acerca da sua identidadeindonésia. Escusado será dizer que a História deTimor foi, sem transição, incorporada na Histó-ria nacional da Indonésia.

No entanto, também é verdade que pela pri-meira vez em 500 anos de organização social, osjovens de Timor-Leste alargaram os seus hori-zontes mentais à amplitude do arquipélago.Incluo várias centenas de Leste-Timorenses,refugiados económicos e políticos que traba-lham os campos de verduras do estado monta-nhoso de Sabah, a leste da Malásia, lado a ladocom os pequenos proprietários rurais de Chris-tian Kadazan (alguns dos quais foram entrevis-tados pelo autor em 1995). Uma verdadeira diás-pora interna de Timorenses de Leste espalhadosao longo do arquipélago indonésio. A maiorparte dos Timorenses de Leste desta época, liame ouviam a notícias em baasa indonésio, atravésda altamente censurada imprensa de Jacarta.

A pirâmide educacional fora obviamentedesviada para longe de Portugal para os rarosprivilegiados, na universidades e mesmo acade-mias militares de Java e Bali. O povo de Timor--Leste viajava com passaportes indonésios. Pelaprimeira vez aprendia-se em Timor-Leste emprimeira-mão o alcance hegemónico da culturade Java e Bali. A promoção foi levada a cabo emduas fases. A primeira consistia no encontrodirecto de muitos milhares de Timorenses, espe-cialmente jovens, enquanto estudantes ou via- 22

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Homem enrolado em bandeira portuguesa,enterrada no dia da chegada das tropas invasorasindonésias ao suco de Liquiçá e lá escondida até àlibertação de Timor. Fotografia de Eduardo Gajeiro.

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jantes. A segunda traduzia-se na presença domi-nadora de militares e seus familiares, que trans-ladaram as suas comunidades religiosas emodos de vida para o interior de Timor-Leste.Não era desafio menor, para a identidade timo-rense, a presença de dezenas de milhares detransmigrantes, colonizadores e comerciantesespontâneos, muitos vindos de Sulawesi, deidentidade fortemente islâmica.

Tal como me foi dado observar o problema,em cinco ou seis visitas prolongadas a Timor-Leste durante o regime militar Indonésio, a iden-tidade timorense era sempre altamente contes-tada. Lembro-me das palavras de um pequenoproprietário rural, em Maubara, quando passá-mos um pelo outro numa estrada deserta:«Merah Putih masih ditimbangkan disini» (abandeira vermelha e branca – da Indonésia – éainda muito apreciada por aqui). Poderia multi-plicar exemplos como este. Escusado será dizerque com o encerramento da última escola por-

tuguesa em Díli, no rescaldo do massacre deSanta Cruz, em Novembro de 1991, o portuguêsse tornou uma língua proibida. Efectivamente,sob o regime indonésio, o baasa indonésio tor-nou-se o idioma oficializado e língua franca, pelomenos entre timorenses e não-timorenses15.

Fazendo, porém, eco ds palavras de Hun-tington16, é hoje em dia claro que o povo deTimor-Leste assume actualmente múltiplasidentidades. Um timorense pode, por exemplo,ser um falante de Fataluku em casa, um votanteTim Tim nas eleições provinciais e um «indoné-sio» celebrante do dia nacional da Indonésia(como testemunhado pelo autor a 17 de Agostode 1997). Mas, surpreendentemente, sob a capadesta veneração, ou misto de respeito e temor,uma nova identidade, subversiva ou alternativa,estava já em vias de gestação. Inspirados pelaevolução da conjuntura internacional, os jovenshabitantes de Timor-Leste acabaram por rein-ventar um novo Timor-Leste independente.

Velho canhão português da linha de defesa decosta, baía de Díli. Fotografia de Eduardo Gajeiro.

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Uma vez mais o papel da Igreja na promoção eprotecção desta identidade não pode ser igno-rado. Por isso, um outro aspecto da questãoidentitária foi o surgimento de católicos,homens e mulheres falantes de tétum, cada vezmais conscientes da cada vez mais ampla comu-nidade internacional, moralmente justa diantedas graves injustiças cometidas pelo ocupante, epró-independência.

Ao olhar para trás, para o período indonésio,foi do maior interesse da Indonésia primeira-mente basear as suas queixas, no que a Timor--Leste diz respeito, em actos políticos (porexemplo, a Declaração de Balibo, na integraçãode 1979), e apenas acessoriamente levantarquestões de antropologia e de história, pelomenos nos fóruns internacionais. Os problemasteriam sido diferentes se as fronteiras da provín-cia indonésia, que separam o oeste do leste dailha, tivessem sido completamente apagadas e

uma qualquer versão simbólica, do mítico cen-tro político timorense de Wehala (de facto loca-lizado no lado ocidental de Timor) tivesse renas-cido e impelido à unidade os povos da ilha.

Hoje, porém, o desafio de manter a culturae a identidade de Timor-Leste resulta igual-mente do efeito da globalização, cuja porta foiaberta pela presença das Nações Unidas e pelaintrodução do inglês como língua de trabalhoentre os funcionários multinacionais.

Este texto é uma versão de uma comunicação apresentadano Seminário Internacional «The identity of East Timor andits framing within Civilization», Centro Cultural Portuguêsem Díli, Timor-Leste, a 1 de Março de 2002.A minha dívida vai para o Dr. Rui Rasquilho e especialmentepara o Professor José Mattoso, pelo enquadramento inte-lectual do debate.

1 Samuel P. Huntington, «The Clash of Civilizations?»,Foreign Affairs, Summer 1993, Vol. 72, pp. 22-28.

2 Anthony Reid, «Islamization and Christianization in Sout-heast Asia: the critical phase», in Anthony Reid (org.), Sout-heast Asia in the Early Modern Period: Trade, Power, andBelief, Ithaca & London, Cornell University Press, 1995, p.155

3 L. C. D. de Freycinet, Voyage autour du Monde (Paris, 1827),citado por Geoffrey Gunn, Timor Loro Sa’e 500 Anos, Macau,Livros do Oriente, 1999, p. 81

4 Huntington, op. cit.5 Alfred Russel Wallace, The Malay Archipelago: The Land of

the Orang-utan and the Bird of Paradise, Londres,18696 Geoffrey Hull «The languages of Timor 1772-1997: A Litera-

ture Review», in Studies in Languages and Cultures of EastTimor (vol. I), Language Acquisition Research Center, Uni-versity of Western Sydney Macarthur, 1998, pp. 1-5

7 Affonso de Castro, As possessões portuguesas na Oceânia,Lisboa, Imprensa Nacional, 1867, p. 328.

8 Raphael das Dores, Diccionario Teto-Portugues, Lisboa,Imprensa Nacional, 1907.

9 Castro, 1867, op. cit., p. 325.10 Alberto Osório de Castro, A Ilha Verde e Vermelha de Timor,

Lisboa, Cotovia, 1996, p. 94.11 Ibid., p. 74.12 Hull, op. cit., p. 8.13 Gunn 1999, op. cit.14 Hull, op. cit., p. 14; e ver António de Almeida, O Oriente de

Expressão Portuguesa, Lisboa, Fundação Oriente, 1994.15 Geoffrey C. Gunn, «Language, Literature and Political Hege-

mony in East Timor», in David Myers (ed.), The Politics ofMulticulturalism in the Asia Pacifc, Darwin, Northern Ter-ritory University Press, 1996, pp. 117-123.

16 Huntington, op. cit.

Casa tradicional em Lautém, Lospalos. Fotografia de Ruy Cinatti.