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    Entrando em Campo:

    A Formao do Conhecimento no Campo do Direito e das Cincias Sociais1

    Michel Lobo Toledo Lima IESP/UERJ2

    Resumo

    O presente trabalho visa analisar, por meio da comparao por contrastes, a formao do

    conhecimento no campo do Direito e da Antropologia, e as possibilidades de dilogos e seus ganhos

    entre o fazer antropolgico e o fazer jurdico. Para tanto, parto da minha experincia como graduado

    em Direito, e posteriormente como ps-graduando no campo das Cincias Sociais, especificamente na

    rea da Sociologia e da Antropologia. Ao longo dessa trajetria acadmica, muitas foram minhas

    trocas reflexivas com outros estudantes e profissionais em uma direo profissional semelhante a

    minha, assim como as dificuldades e problemas enfrentados, prprios dessa transio, e do dilogo

    entre esses campos do conhecimento. Pesquisas no mbito da Justia Criminal e Da Segurana

    Pblica, de antroplogos e de operadores do direito com formao posterior em cincias sociais,

    tambm me orientaram na proposta desse trabalho.

    Palavras-Chave: Antropologia do Direito, Formao do Conhecimento, Campo, Direito, Cincias

    Sociais.

    1. Introduo

    As pesquisas empricas sobre o campo do Direito, especificamente sobre o sistema da Justia

    Criminal e da Segurana Pblica no Brasil ainda so poucas e recentes no que tange s CinciasSociais, e ainda mais escassas na academia do Direito, embora com notveis avanos nos ltimos vinte

    anos 3. A academia jurdica acaba por reproduzir sua realidade unicamente em suas prprias reflexes,

    1Artigo apresentando na VIII Jornada de Alunos do PPGA/UFF, de 13 a 17 de outubro de 2014, Niteri - R.J.2Doutorando e mestre em Sociologia pelo IESP/UERJ, bacharel em Direito pela PUC-Rio. Email:.3Vem crescendo o nmero de pesquisas empricas de operadores do campo da Justia Criminal e da SeguranaPblica, dos mais variados cargos e funes, com timas dissertaes e teses, publicadas em livro, a exemplo dostrabalhos:A Polcia da Cidade do Rio de JaneiroSeus Dilemas e Paradoxos. Rio de Janeiro: Polcia Militar doRio de Janeiro, 1994, de Roberto Kant de Lima. Os Donos do Carimbo: Investigao Policial Como

    Procedimento Escrito, Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2014, de Paula Vidal.Doprincpio do Livre ConvencimentoMotivado: Legislao, Doutrina e Interpretao de Juzes Brasileiros. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, deRegina Lcia. Entre Quereres e Poderes: Dilemas Empricos Da Imparcialidade Judicial, de Brbara Gomes

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    sem mtodos de pesquisa, sem estranhamentos de suas prprias prticas, e no geral, acaba por ignorar

    as pesquisas empricas, notadamente a pesquisa de campo etnogrfica.

    A proposta do presente trabalho destacar os desafios, a relevncia, e as possibilidades de

    realizar pesquisa emprica no campo da Justia Criminal e da Segurana Pblica, dialogando o fazer

    antropolgico e o fazer jurdico4.

    Primeiro tratarei de como se d o ofcio do antroplogo e a importncia do campo e da

    pesquisa etnogrfica na sua formao do conhecimento e como pesquisador. Em seguida tratarei da

    formao do conhecimento no campo do Direito, evidenciando as dificuldades de dilogo com as

    pesquisas etnogrficas, e as possibilidades de seu uso, tendo inclusive as estatsticas como ferramentas

    de anlise. Aps trarei minha experincia de pesquisa etnogrfica ao entrar em campo e praticar o

    fazer antropolgico.

    2. O Fazer Antropolgico e o Campo: Estranhamento, Relativizao e Comparao Por

    Contrastes.

    comum que entre os antroplogos, independentemente de suas preferncias tericas, tenha

    se convencionado que a denominao campo compe uma das extenses essenciais do conhecimento

    antropolgico. H uma valorizao do trabalho de campo na antropologia contempornea, onde a ida

    ao campo tida como uma experincia necessria formao do antroplogo, mas que no exclui

    outras fontes de pesquisa, tais como documentos, arquivos, anlises estatsticas, etc.

    Assim, legtimo refletir sobre o que o campo para o antroplogo. A histria do uso do

    signo campona linguagem cientfica teve origem no final do sculoXVIII, no discurso da Geologia,

    a cincia que pesquisa a histria e a arquiteturada superfcie do nosso planeta. O signo terrain foi

    primeiramente empregado em razo da traduo francesa dos trabalhos do mineralogista alemo

    Werner e do gelogo escocs Hutton. Terrainenvolve tanto a reflexo histrica sobre o terreno como

    tambm implica em analisar sua natureza e sua classificao. H um encontro indispensvel entre uma

    reflexo sobre a histria e uma reflexo sobre a estrutura dos terrenos. A definio geolgica de

    campo/terreno fora o pesquisador a buscar uma justa articulao entre uma percepo sincrnica e

    uma percepo diacrnica (PULMAN: 2007).

    Lupetti. Transao Penal e Penas Alternativas: Uma Pesquisa Emprica Nos Juizados Especiais Criminais DoRio De Janeiro. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2014, de Vera Ribeiro. O Ritual Judicirio Do Tribunal Do Jri: OCaso Do nibus 174. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, de Luiz Eduardo. Entre vrios outros.4 A resoluo n 9 de 29 de setembro de 2004 do Conselho Nacional de Educao (CNE) da Cmara deEducao Superior (CES) instituiu novas diretrizes curriculares nacionais do curso de graduao em Direitotendo por objetivo integrar o estudante no campo, estabelecendo as relaes do Direito com outras reas dosaber, abrangendo dentre outros, estudos que envolvam contedos essenciais sobre Antropologia, CinciaPoltica, Economia, tica, Filosofia, Histria, Psicologia e Sociologia. A prpria resoluo estabelece que esse

    eixo de formao profissional tem por fim abranger uma formao do conhecimento no campo do Direito paraalm do seu enfoque dogmtico. Porm, apesar dessa previso, poucas so as reflexes acadmicas sobre aspossibilidades e problemas de aproximao entre o Direito e outros saberes, em especial a Antropologia.

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    Para um gelogo o seu campo o espao geogrfico que ele quer estudar. Observar os

    detalhes da superfcie de uma pedreira, escavar com a p, acompanhar um afloramento por rastros

    superficiais, tudo isto trabalho de campo. O sentido abonado, atualmente, palavra campo tem

    uma pr-histria que se desenvolveu na Geologia. Em Antropologia, o signo campo dispe da mesma

    bipolaridade semntica (PULMAN: 2007). Campo ao mesmo tempo o objeto de estudo (definio

    daquilo que se presente estudar), e o local da pesquisa do antroplogo (o lugar aonde o pesquisador

    vai, fisicamente, observar o seu objeto de estudo), na contemporaneidade.

    Outro aspecto importante sobre o campo que ele se desenrola em um confronto. Tal

    batalha abrange ao menos dois aspectos: os perigos fsicos e os perigos simblicos. O primeiro refere-

    se aos riscos reais de certos campos, tais como conflitos armados, doenas, etc. O segundo perigo,

    refere-se capacidade do pesquisador em abandonar a si mesmo sem perder o objeto da pesquisa,

    entrar em campo consciente de seus preconceitos, de seus valores, os identificando e os reconhecendo,

    ao ponto de no incorpor-los, ao menos no de forma inconsciente, em sua interpretao do que

    observou. Da mesma forma o pesquisador pode ser seduzido pelo campo, ao ponto de extrair de suas

    observaes somente aquilo que seus interlocutores do campo querem lhe mostrar. Os riscos so

    epistemolgicos, em analisar e reconhecer a validade e os limites do conhecimento em saber lidar com

    o que o campo traz para o pesquisador. um choque de percepes, entre o ponto de vista do

    pesquisador, com suas verdades, e a forma como ele ir traduzir sua experincia em campo para um

    texto, para a escrita.

    A pesquisa etnogrfica o meio pelo qual a teoria antropolgica se desenvolve, e se sofistica

    quando desafia os conceitos constitudos pelo senso comum no confronto entre as teorias e as vises

    de mundo que o pesquisador leva consigo para o campo e a observao da realidade nativa

    observada por ele, com a qual se enfrenta (PEIRANO:1992). O pesquisador deve estar munidode uma

    formao adequada que lhe permitirrealizar a sntese do que observou em campo.

    Roberto Cardoso de Oliveira destaca trs etapas de apreenso dos fenmenos sociais,

    necessrios reflexo no exerccio da pesquisa etnogrfica e na elaborao do conhecimento: o olhar

    o, ouvir, e o escrever. O autor dispe o olhar como a primeira experincia do pesquisador em campo.

    necessria uma domesticao do seu olhar terico. O objeto de pesquisa, o qual o pesquisadorconduz o seu olhar, no escapa de ser aprendido pelo esquema conceitual da rea formadora de nossa

    maneira de perceber a sociedade. O ouvir como complementao do olhar, como etapa inicial da

    obteno de dados, disposto como um ouvir especial. H de se saber ouvir, apontando para a questo

    do encontro de subjetividades e da desigualdade nos dilogos entre pesquisador e sujeitos de pesquisa

    (OLIVEIRA: 1998). principalmente nessa etapa, mas no exclusiva ou isoladamente nela, que o

    pesquisador deve estranhar e tematizar as categorias percebidas em campo. Para o autor, o ouvir ganha

    em qualidade e altera uma relao, na interao, nos dilogos entre pesquisador e interlocutor, que

    assume ou no a observao participante,onde o pesquisador admite um papel aceitvel pelo grupoo qual observa, saindo do papel de mero observador, conforme a convenincia e desenrolar da sua

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    pesquisa. Por fim, Roberto Cardoso dispe sobre o escrever como um exerccio de gabinete, no

    dilogo do pesquisador consigo mesmo, no interior de uma representao coletiva, buscando a

    articulao entre os dados obtidos no trabalho de campo e a construo do texto.

    Identificar e acessar a realidade do campo de pesquisa implica em conseguir perceber as

    categorias dos nativos, da a necessidade de se ouvir nomes, histrias, categorias, descries das

    categorias pelos nativos, etc., alm de observar. Estranhar, tematizar e relativizar as categorias so um

    exerccio fundamental para quem estuda a prpria sociedade, especificamente um campo naturalizado.

    Porm, esse constante exerccio acaba por levar o pesquisador para alm dos estranhamentos,

    esforando-se em explicitar o implcito, identificando, interpretando e relativizando significados da

    lngua e de verdades consagradas (DAMATTA: 1987). um relativismo que funde os processos de

    autoconhecimento, autopercepo e autoentendimento com os processos de conhecimento, percepo

    e entendimento do outro; que identifica, arquitetando o que somos e entre quem estamos (GEERTZ:

    1998).

    Porm, nem todo bom antroplogo essencialmente um etngrafo. H aqueles com maior ou

    menor afinidade para a pesquisa de campo. Entretanto todo bom antroplogo estuda e reconhece que

    na sensibilidade para o confronto ou o dilogo entre teorias acadmicas e nativas que est o potencial

    de riqueza da antropologia (PEIRANO: 1992).

    A pesquisa etnogrfica no possui uma frmula, um manual para ser seguido, nem um jeito

    especfico para ser conduzida, mas no realizada de qualquer maneira, h mtodos para tal. A

    etnografia decorre de um exerccio de experincias do pesquisador que pode seguir modelos que lhe

    convier. importante para o pesquisador definir o seu objeto de pesquisa, o seu campo, e a relevncia

    dele estar l, de passar pela experincia do deslocamento para o campo. H uma reflexo posterior

    pesquisa, onde o pesquisador pode utilizar metodologia(s), teoria(s) que lhe convierem em sua

    reflexo. Assim, possvel ter pesquisas de antroplogos sobre um mesmo campo, em um mesmo

    tempo, mas com perspectivas e interpretaes diferentes, com contemplaes de situaes diversas.

    Charles Wright Mills dispe os exerccios de reflexes do cientista social como um artesanato

    intelectual, e que uma das melhoras formas de se realizar as reflexes sistemticas que o cientista

    social precisa fazer por meio da manuteno de um dirio de campo, capturando experinciaspessoais, os estudos em elaborao e os estudos planejados, estimulando a captura de pensamentos

    marginais, de ideias, mesmo que simplrias. A manuteno desse dirio visa desenvolver hbitos de

    autorreflexo, de escrita e de expanso das categorias que o pesquisador usa em seu raciocnio.

    No processo de aprender a estranhar e de romper com o senso comum, prprio dos

    antroplogos, impossvel realizar uma pesquisa de campo de forma inteiramente neutra ou pura de

    teorias e conceitos tanto de senso comum quanto cientficas, seja por parte do prprio pesquisador,

    seja por parte dos sujeitos da pesquisa. Gilberto Velho dispe que a subjetividade do pesquisador est

    presente em todo seu trabalho. Roberto Kant de Lima tambm dispe que o conhecimentoantropolgico, no , nem poderia ser neutro. A questo se d no pesquisador saber reconhecer e

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    explicitar seus prprios preconceitos, e como isso pode afetar a sua pesquisa. A pesquisa afeta o

    antroplogo, e o antroplogo pode afetar os interlocutores.

    Outra caracterstica marcante na pesquisa etnogrfica a que o campo fala. Diferente de

    outras reas do saber, onde se parte de uma hiptese que se busca evidenciar ao longo da pesquisa, o

    antroplogo entra em campo sem uma hiptese pr-formulada.

    Max Gluckman props o mtodo da anlise de situaes sociais nas pesquisas etnogrficas,

    focando-se na anlise de indivduos ou grupos especficos em situaes sociais ou dramas sociais, com

    o fim de explicar as interpretaes particulares. Em decorrncia disso, o autor tambm sugere que as

    regras sociais so contraditrias e/ou conflitantes, sendo redefinidas pelas pessoas e grupos, e que

    essas contradies devem ter lugar prestigiado nas anlises sobre o campo, diferenciando-se assim de

    uma anlise de um perfil geral de um sistema ou cultura, onde as variaes individuais eram

    negligenciadas em favor de uma regularidade estrutural.

    Van Velsen preferiu chamar as situaes sociais de Gluckman de anlise situacional, disps

    algumas questes especficas. Tal anlise baseia-se nas descries analticas a partir dos registros das

    aes dos indivduos, transcritas em um dirio de campo, de situaes reais e comportamentos

    especficos, fornecendo possibilidades de abstraes do material de campo, enfatizando um estudo das

    aes normais e excepcionais dos indivduos. Esse tipo de anlise dispe os dilogos e aes dos

    indivduos como fontes para diagnsticos, questes sociolgicas e hipteses de um determinado

    campo. So das situaes, notadamente os conflitos, que decorrem os maiores problemas sociolgicos

    a serem detectados. Aqui os dilogos no so meras ilustraes de problemas, mas orientadores na

    formulao de questes. O campo fala.

    Identificar problemas vem a partir dos conflitos e contradies do campo, focando nos casos

    observados como delineadores de questes sociolgicas e no como meras ilustraes de teorias j

    prontas. enfatizada a necessidade de se considerar nas anlises as relaes contraditrias e

    conflituosas. A anlise aqui deve buscar a regularidade nas irregularidades.

    Por fim, vale destacar outra caracterstica importante da antropologia contempornea, a

    comparao por contrastes que proporciona mtodos relevantes para melhor avaliar as especificidades,

    ou as diferenas, que caracterizam as realidades locais, regionais e nacionais estudadas (GEERTZ:1998).

    A comparao por contrastes um mtodo que se difere das percepes e teorias

    evolucionistas (a exemplo de Marx) e funcionalistas (a exemplo de Durkheim) que geralmente

    norteiam os estudos comparativos da Sociologia, da Cincia Poltica e do Direito. O objetivo no

    detectar padres (semelhanas) e desvios desses padres, mas focar-se em relacionar a anlise da tida

    como estrutura da sociedade s aes e interaes dos indivduos que operam esta estrutura, e trazer os

    indivduos e suas estratgias e conflitos ao centro da anlise, inclusive na anlise comparativa a partir

    das diferenas entre essas aes e interaes em sociedades ou grupos diferentes. A inteno, portanto, chegar a modelos que deem conta das diferenas, e que se atualizam na prtica de vrias formas

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    diferentes. Assim, so a partir das diferenas que se arquitetam modelos explicativos, e no o oposto,

    idealizando um modelo e verificando em que medida os sistemas empricos se conformam a ele

    (LIMA: 2013).

    3.

    A Formao do Conhecimento no Campo do Direito: Dogmatismo, Dever-Ser e

    Lgica do Contraditrio.

    Nesse tpico, analisarei algumas questes referentes formao do conhecimento no campo

    do Direito, contrastando-as com algumas caractersticas do fazer antropolgico.

    Roberto Kant de Lima, a partir de suas experincias como professor e pesquisador, aponta

    para as diferenas essenciais nas formas de produo e reproduo do conhecimento com alunos que

    integravam a Faculdade de Direito e as Academias de Polcia Militar e a Polcia Civil, onde estes

    ltimos geralmente tambm so formados em Direito. A forma dogmtica e instrucional prevalece,

    apregoando, consciente e inconscientemente, verdades que necessitavam ser absorvidas e

    reproduzidas, ao invs de conhecimentos que deveriam ser compreendidos de forma reflexiva e crtica,

    como ocorrem no ensino e na pesquisa das Cincias Sociais.

    A reproduo do conhecimento universitrio nas Faculdades de Direito e Academias de

    Polcia Militar e Civil reflete as formas institucionais de produo e reproduo do saber jurdico e

    militar, seja no quartel, seja no tribunal. Tal formato dogmtico e instrucional se ampara intensamente

    na lgica do contraditrio5que promove o dissenso infinito que apenas cessado por meio de uma

    autoridade externa s partes, que declara uma tese vencedora e a outra vencida (LIMA: 2008).

    O campo do Direito possui forte enraizamento nos meio utilizados para produzir a verdade

    judiciria da Civil Law Tradition6. Para me fazer entender melhor nessas questes, utilizo um debate

    sobre o funcionamento da Justia Criminal no Brasil. Aqui, a ao penal uma obrigao do Estado

    ao tomar conhecimento de indcios de um fato criminoso, no se tratando de uma opo, mas de

    obrigao, no podendo o Estado desistir da ao penal aps a sua propositura 7. Assim, no nosso

    sistema de justia, o processo penal uma prerrogativa obrigatria do Estado com o fim de punir

    transgresses s normas preestabelecidas em lei, onde os acusados de algum crime devem comprovar

    sua inocncia, ou seja, o nus de comprovao de no culpabilidade do acusado

    8

    . Assim, temos duascaractersticas importantes em nosso sistema de Justia Criminal: o processo judicial do Estado; e a

    inquisitorialidade, aonde quem chega Justia Criminal tem a priori alguma parcela de culpa no fato

    criminoso a ele atribudo, onde o acusado deve comprovar sua inocncia.

    5No confundir lgica do contraditrio com princpio do contraditrio presente na Constituio da RepblicaFederativa do Brasil de 1988, embora estejam interligados.6Ver: LIMA, Roberto Kant de. Sensibilidades Jurdicas, Saber e Poder: Bases Culturais De Alguns AspectosDo Direito Brasileiro Em Uma Perspectiva Comparada. In: Anurio Antropolgico, v. 2, p. 25-51, 2010.7Mesmo em casos de ao penal publica incondicionada que aquela onde a vtima possui a iniciativa da ao

    em tornar um conflito em uma ao penal. Aps sua iniciativa, a ao penal passa a ser do Estado.8Aqui reside a reflexo e crtica de muitos antroplogos que pesquisam o campo do Direito ao princpio dapresuno da inocncia que no faz sentido em nosso sistema judicial.

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    Dentro dessa lgica de funcionamento em que o Estado ao mesmo tempo o dono do processo

    judicial e o acusador, e quem tem o nus de comprovar sua inocncia o acusado, destaca-se a lgica

    do contraditrio, onde o acusado deve contradizer as acusaes feitas pelo Estado como forma de

    defesa9. O dissenso, o antagonismo de teses a lgica de funcionamento do nosso sistema de Justia

    Criminal. O contraditrio acaba por impor uma lgica de uma relao necessariamente competitiva e

    conflituosa o qual s se interrompe atravs de uma autoridade externa s partes (juiz), que lhe d fim e

    declara uma tese vencedora e a outra, vencida. H a busca por uma verdade real, construda

    processualmente.

    Alm disso, nosso sistema de Justia provm da tradio da Civil Law que funda sua

    legitimidade em uma racionalidade abstrata, considerando os julgamentos tcnicos dos juzes melhores

    que os de pessoas comuns, por deterem um saber jurdico especializado. Apesar da minha ilustrao

    da lgica do contraditrio se dar por meio do processo penal, essa uma lgica que perdura a forma de

    receber e resolver conflitos no mbito do judicirio brasileiro10.

    A lgica do contraditrio se diferencia das lgicas adversrias de produo de verdades,

    predominantes nas reas acadmicas e cientficas, constituda a partir de um consenso sobre fatos que

    se arquitetam por meio da reflexo e explicitao de distintos pontos de vista dos envolvidos em um

    processo de argumentao demonstrativa, que tem por objetivo o convencimento das partes envolvidas

    no processo. Aqui, o consenso que valida o conhecimento.

    A lgica do contraditrio tambm se d no saber jurdico, fora dos tribunais, onde o capital em

    disputa no campo o poder de dizer o que o direito (BOURDIEU: 1987), prevalecendo o argumento

    da autoridade sobre a autoridade do argumento, ou seja, h uma disputa hierrquica pela legitimidade

    do reconhecimento intelectual. As correntes doutrinrias so bons exemplos disso, pregoando diversas

    interpretaes sobre um mesmo fato jurdico que competem entre si, buscando uma relao conflituosa

    de subtrao, e no de soma (SIMMEL: 1983).

    Outra caracterstica especfica na formao do conhecimento no campo do Direito se d com

    a sua escrita que focada em ningum, ou melhor, em um sujeito indeterminado, com aes escritas

    por meio de verbos impessoais, tais como "percebe-se, "conclui-se", etc. - ora alternado pelo verbo

    em terceira pessoa do plural - "percebemos", "conclumos", etc. - com o fim de se falar no em nomede quem escreve, mas em nome de um corpo jurdico, no qual o "eu" est incluso, calcado em uma

    doutrina e/ou jurisprudncia; ou em nome de todos, como forma de universalizao do que se

    escreve. Tal forma de escrita em que o eu de quem escreve excludo ou suprimido desenvolvida

    nas academias do direito.

    9No direito brasileiro no h criminalizao da mentira dos rus. Isso um desdobramento do princpio jurdicoda no autoincriminao, ou seja, ningum obrigado a produzir prova contra si mesmo. Ela uma tcnicamuito utilizada pelos acusados, uma vez que o ru notem o compromisso legal de dizer a verdade. Instrumentoeste que vedado para as testemunhas, que se mentirem sofrem sano penal por falso testemunho.10

    Vide: LUPETTI BAPTISTA, Brbara. Os Rituais Judicirios e o Princpio da Oralidade : Construo daverdade no processo civil brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.

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    Embora o direito no seja exclusivo nessa forma de escrita, tal caracterstica mais forte e

    enraizada no campo jurdico pelo ofcio de se advogar. O advogado sempre atua em prol do outro,

    do direito ou do dever do outro, ou seja, do seu cliente. A escrita raramente se refere ao eu do

    advogado. Toda argumentao do advogado se d em harmonizar os direitos e deveres do seu cliente

    frente legislao, jurisprudncia e doutrina pertinentes aos seus fins pretendidos. Assim temos os

    promotores pblicos que atuam em nome do Ministrio Pblico; os juzes que representam o Estado

    em sua funo de gerenciar conflitos e punies; e os defensores pblicos, que defendem o direito do

    outro que no tiver recursos financeiros para contratar advogado particular. Alm disso, esses

    profissionais so voltados para resolver problemas e no para elaborar problemas, como os cientistas

    sociais em geral.

    Grande contraste se faz com a escrita das Cincias Sociais, notadamente em referncia

    escrita etnogrfica, marcada por impresses e reflexes do observador sobre o que ele v, sobre o que

    ele observa. O "eu" do pesquisador em campo constri os dados, pois ele os observa e os seleciona

    para reflexo. O eu do antroplogo arquiteta as reflexes, as relativizaes, a escrita.

    Alm disso, existe um desafio geralmente apontado por aqueles que pesquisam a rea da

    Justia Criminal e da Segurana Pblica onde j atuam profissionalmente: a dificuldade em se

    estranhar um mundo de certa forma j familiarizadopor eles, com absoro de linguagens e prticas

    nativas da profisso, demonstrando ser um grande obstculo a vencer, a capacidade de se estranhar um

    mundo naturalizado, e de relativizar categorias internalizadas. A arte de se estranhar para se

    conhecer prpria das pesquisas etnogrficas geralmente demandam um esforo maior por parte

    desses que so ao mesmo tempo operadores e pesquisadores de um campo, com constante

    aprendizado.

    Sobre isso, Roberto DaMatta aponta que quando o estudo se volta a nossa prpria sociedade,

    h um movimento semelhante a um auto exorcismo, onde o antroplogo deve tirar a capa de membro

    de uma classe e de um grupo social especfico e buscar estranhar alguma regra familiar e assim

    descobrir o extico que est petrificado dentro de ns.

    Gilberto Velho atenta que h os nveis de familiaridade que o pesquisador tem com o campo.

    O fato de ser habituado, familiarizado com certo cenrio, com certo campo, no implica em conheceros hbitos, crenas, valores e percepes dos atores desses cenrios, ou pode haver um conhecimento,

    mas em nveis diferentes. O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas no

    essencialmente conhecido, e o que no vemos e encontramos pode ser extico, mas, at certo ponto,

    conhecido. Entretanto estamos continuamente pressupondo familiaridades e exotismos como fontes de

    conhecimento ou desconhecimento, respectivamente (VELHO: 1978).

    Tal dificuldade em se estranhar um campo naturalizado possui implicaes especficas no caso

    dos operadores do Direito e da Segurana Pblica. Ana Paula Miranda aponta para a prevalncia de

    uma cultura policial, ou seja, uma percepo de mundo que arquitetada a partir da socializao doindivduo no exerccio da funo, enraizadamente autoritria e hierrquica, fundamentada no combate

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    ao criminoso e no ao crime. Os policiais tendem a desvalorizar o conhecimento produzido pelas

    instituies de ensino, afirmando que a rua o local onde se aprende a profisso (MIRANDA: 2008).

    Roberto Kant de Lima aponta que os juristas possuem uma preocupao maior em manualizar o

    conhecimento jurdico, uniformizando as suas categorias e normalizando procedimentos conforme um

    conceito idealizado e utpico. Essa questo agravada com a percepo do mundo a partir do dever-

    serque constitui o campo jurdico, dificultando que os operadores desse campo percebam a realidade

    tal como ela , ou seja, multiplamente passvel de representaes e que dependem das perspectivas

    empregadas na sua construo (LIMA: 2013).

    Assim, h uma percepo por parte dos operadores do Direito e da Segurana Pblica de que

    para se entender algo preciso atuar nele, ou seja, s quem possui a prtica, a experincia em ser

    operador de um campo possui a legitimidade do conhecimento sobre as prticas daquele campo, tendo

    certa rejeio ao conhecimento emprico, acadmico. Porm, a grande riqueza do conhecimento est

    justamente no dilogo entre esses conhecimentos: o da prtica e o emprico.

    Porm, a lgica do contraditrio enraizada na forma de ensino das academias de polcia e do

    direito acaba por dificultar esse dilogo, onde esses conhecimentos acabam por competir, tornando-se

    um debate entre razes para vitria de um conhecimento sobre outro. um choque de percepes, um

    embate de verdades com tendncias a uma verdade maior dos operadores do campo judicial e policial,

    por eles mesmos, por considerarem que a experincia que valida o seu conhecimento, sua verdade,

    menosprezando a empiria.

    Alm disso, segundo Ana Paula Miranda, as unidades de ensino policiais, militar e civil, tm

    uma cadeia de rotinas que se prope a reproduzir suas prprias categorias. A transferncia de

    conhecimentos formalizada em aulas, instrues, e treinos, mas h diversos contedos que so

    reproduzidos em rotinas cotidianas, conformando um conjunto de prticas ocultas que robustece o

    modelo de hierarquia excludente. Existe na formao dos oficiais uma percepo de segurana pblica

    abalizada pela ao puramente operacional e pontual; enquanto que na formao dos soldados, no h

    contedo referente segurana pblica, funo da polcia numa sociedade democrtica. Deste modo,

    os teores das disciplinas focam exclusivamente as dimenses policial e legal. O que a instituio

    pondera como treinamento uma srie de reprodues de condutas, em que se valoriza intensamente oconhecimento prtico, arquitetado a partir da experincia. Neste caso, confunde-se a experincia com a

    obteno de conhecimentos, induzindo a uma grave desvalorizao do ensino.

    Daqui surge o desafio de se desconstruir a lgica do contraditrio, e de ampliar o debate, por

    meio do dilogo de conhecimentos, e no de competio entre eles. o desafio de se construir algo

    novo, de se trazer elementos para debater, relativizar e estranhar os discursos j prontos, naturalizados

    pelos operadores do Direito e da Segurana Pblica.

    Como j foi destacado, o fazer antropolgico implica na relativizao de verdades

    consagradas, de percepes, enquanto o fazer jurdico e policial por meio de suas prprias verdades eprticas se reproduz, sendo este contraste metodolgico uma expressiva barreira ao dilogo destes

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    campos. Desembaraar a aproximao destes saberes o desafio, em conseguir analisar o direito e a

    polcia fora de suas prprias interpretaes.

    Para finalizar esse tpico, trago outra questo, a comparao por semelhanas, prprias das

    doutrinas comparativas do Direito. O direito comparado uma disciplina jurdica que visa estabelecer

    ordenadamente se aquilo que se selecionou para um estudo comparativo possui, ou no, equivalncia

    em algum ou vrios sistemas jurdicos, de diferentes pases. J o mtodo comparado por contrastes

    um procedimento para avaliar as particularidades de fatos e de instituies em um dos sistemas e de

    culturas pesquisadas, e visa explicitar peculiaridades prprias s instituies jurdicas brasileiras,

    quando comparadas s de outros pases.

    Para Geertz, o sistema jurdico busca descrever o mundo e seus acontecimentos nos seus

    prprios termos, e essa tcnica empregada sintetiza o empenho para que a representao dos fatos seja

    adequada, correspondente realidade, sua realidade. A verdade construda no processo a verdade

    do processo. Ou seja, existem categorias jurdicas de diferentes sociedades, como as leis e crimes, que

    no podem ser comparadas por possurem significados diferentes, oriundos dos contextos do lugar as

    quais so provenientes.

    Desta forma, por exemplo, a categoria homicdio possui percepes diferentes no Brasil e

    nos Estados Unidos, tanto pela sociedade quanto pelas instituies jurdicas, e por consequncia,

    possui implicaes e consequncias scio-jurdicas to diversas que impediriam uma comparao

    simplesmente por pertencerem, a princpio, a uma mesma categoria jurdico-normativa 11. A proposta

    de Geertz comparar diferenas entre sistemas de significados, enfatizando o contexto das instituies

    e seu significado local. A sensibilidade jurdica , portanto, o primeiro fator que merece a ateno

    daqueles cujo objetivo falar de uma forma comparativa sobre as bases culturais do direito (GERTZ:

    1997). Seu exemplo clssico sobre a variao dessas sensibilidades dispe que ao deparar-se com as

    leis antipoluio, a Toyota contratou mil engenheiros e a Ford mil advogados. Uma das formas em

    que as sensibilidades jurdicas ocidentais se explicitam est, por exemplo, nas tradies jurdicas,

    como as da Civil Lawe da Common Law (LIMA: 2010).

    4.

    A Carncia de Dados Quantitativos no Campo da Justia Criminal e SeguranaPblica: Possibilidades de Dilogo Pela Lacuna Estatstica.

    A ida ao campo uma experincia importante formao do antroplogo, assim como as

    possibilidades de se utilizar outras ferramentas que auxiliem sua pesquisa etnogrfica, seja por

    convenincia metodolgica ou terica, seja por afinidade por determinados mtodos. Dentre as

    ferramentas possveis, destacarei aqui o uso de dados quantitativos, de estatsticas, como dilogo,

    ferramenta, entre etnografia e o campo do Direito. No o objetivo aqui desenvolver um debate sobre

    11

    A prpria categoria Lei, por exemplo, possui significados distintos. Enquanto que no Brasil h umaseparao entre lei e direitoexplicitando uma separao da elaborao legislativa e da aplicao do direito -, apalavraLaw, lei em ingls, significa direito e lei, sem essa dicotomia.

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    anlise de dados quantitativos, mas expor as dificuldades especficas do campo do Direito e da

    Segurana Pblica para a anlise desses tipos de dados, e considerando algumas possibilidades

    introdutrias e contribuies sobre o dilogo entre pesquisa etnogrfica e anlises estatsticas para, e

    nesse(s) campo(s).

    Embora seja uma boa ferramenta de anlise, os registros e dados estatsticos sobre a Justia

    Criminal e a Segurana Pblica no Brasil geralmente apresentam, pelo menos, trs problemas: a

    carncia de uma tradio, acadmica e institucional, de coleta de dados e de anlises estatsticas; o

    sigilo que as instituies desse campo geralmente fazem, de dados referentes aos seus prprios atos e

    registros; e a falta de qualidade e a baixa confiabilidade de parte de dados coletados e publicamente

    divulgados.

    Sobre o primeiro problema, vale mencionar algumas instituies que publicam macrodados

    e/ou anlises estatsticas sobre o campo policial e judicial: o ISP - Instituto de Segurana Pblica - que

    coleta e fornece dados relativos segurana pblica; o DATASUS - departamento de informtica do

    sistema nico de sade - que tem a responsabilidade de coletar, processar e disseminar informaes

    sobre sade; o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica - que por meio da sua srie

    Estatsticas do Sculo XX disponibiliza dados histricos referentes justia no Brasil; o CNJ -

    Conselho Nacional de Justia - que por meio do Departamento de Pesquisas Judicirias possui

    pesquisas e dados quantitativos sobre o fluxo de processos judiciais; o InfoPen - Sistema Integrado de

    Informaes Penitencirias - que publica o registro de indicadores gerais e preliminares sobre a

    populao penitenciria do pas; o IPEA (Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada) que possui

    atividades de pesquisa voltadas s aes governamentais para a formulao e reformulao de

    polticas pblicas; dentre vrios outros. No geral, so instituies com dados recentes e que no esto,

    ao menos diretamente, vinculadas s instituies jurdicas e policiais.

    Sobre o segundo problema, importante relembrar a caracterstica inquisitorial que norteia o

    campo do Direito e da Segurana Pblica. H a ideia de que uma verdade deve ser verificada

    secretamente e registrada por escrito no transcorrer de uma acusao penal. Tal ideia expressa no

    sigilo das acusaes e no processo escrito, no campo das prticas judiciais penais. Os conflitos tidos

    com relevncia penal devem ser apurados pelo crivo da Polcia Civil, sob a forma de um inquritoescrito e sigiloso, cujo conhecimento se preserva s autoridades competentes, que decidiro se tornam,

    ou no, as acusaes pblicas para os acusadosque, de indiciadosno inqurito policial, se tornam rus

    de uma ao criminal quando denunciadospelo promotor de justia.

    Como decorrncia disso, associa-se a tutela do Estado sobre a sociedade como um valor

    positivo, desempenhado pelo sigilo das acusaes para o pblico e para os interessados, como meio de

    proteo de seus interesses. Porm, tais formas de aplicao da lei baseiam-se no sigilo, e

    fundamentam-se exclusivamente na quantidade de poder disponvel para a autoridade que a interpreta

    e aplica. O sigilo, a vigilncia e o registro, so ferramentas de acusao, e no de defesa dosenvolvidos (LIMA: 2010). Disso tambm decorre a rejeio dessas instituies da possibilidade de

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    12

    exposio de suas prticas internas, de seus registros, e da publicizao de decorrentes problemas

    desdobrados dessas prticas.

    A respeito do terceiro problema, vale dispor sobre algumas pesquisas que realizaram uma

    combinao de dados qualitativos, por meio da pesquisa etnogrfica, e de dados quantitativos. Joana

    Domingues Vargas abordou a administrao da justia para o crime de estupro12. A pesquisadora

    analisou, por meio de pesquisa de campo, o processo de transformao das narrativas feitas pelas

    vtimas durante a fase de queixa-crime at se tornarem denncias relatveis de crimes sexuais,

    buscando compreender como se dava a traduo de um fato social em um fato jurdico, e como os

    policiais decidiam sobre a decretao, ou no, da priso de um acusado de cometer estupro.

    Com o fim de enriquecer sua pesquisa, Joana Vargas analisou o fluxo do Sistema de Justia

    Criminal para os crimes de estupro, utilizando dados quantitativos a partir dos boletins de ocorrncia

    ao qual teve acesso. A autora detectou os desafios de articular dados qualitativos e quantitativos nesse

    campo, uma vez que o boletim de ocorrncia no descrevia o fato ocorrido, mas continha o registro

    daquilo que o policial interpretou daquele fato, transcrito em uma linguagem que visa categorizar o

    ocorrido como, simplesmente, um fato jurdico (universalizante) ou no. Alm disso, os registros no

    permitiram reconstituir o processo de seleo a que so submetidos pessoas e papis ao longo do seu

    processamento, e assim ponderar sobre as perdas do sistema. O objetivo da pesquisa foi o de

    identificar, de um lado, as caractersticas do estupro, dos acusados, das vtimas e da relao existente

    entre eles e, de outro, captar o processo de seleo e filtragem a que estes so submetidos no decorrer

    de seu processamento no sistema de justia criminal (VARGAS: 2007), o que s foi possvel com a

    combinao entre etnografia e anlises estatsticas.

    Em minha pesquisa de campo, de orientao etnogrfica, em um Juizado Especial Criminal 13

    (JECrim) da Baixada Fluminense, constru e analisei dados qualitativos e quantitativos que

    evidenciaram contradies entre os ideais proclamados do juizado e as prticas de seus operadores.

    Demonstrei que apesar do Juizado Especial Criminal ser uma poltica pblica voltada para a

    democratizao do acesso a justia, pautada na consensualidade como meio de resoluo de conflitos,

    isso no ocorre, onde a sua forma de administrar os conflitos da violncia cotidiana acabava por

    limitar a democratizao da justia e o exerccio da cidadania, ao invs de ampli-los.Ao me deparar com a carncia de dados quantitativos sobre o meu campo de pesquisa,

    elaborei um questionrio com variveis que constavam nos processos judiciais e coletei dados

    quantitativos atravs do exame dos processos judiciais referentes aos casos que observei em campo,

    construindo um banco de dados quantitativos referente ao perfil das partes conflitantes, s

    12VARGAS, Joana Domingues.Anlise Comparada do Fluxo do Sistema de Justia para o Crime de Estupro.DADOSRevista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 50, n. 4, 2007, pp. 671 a 697.13

    LIMA, Michel Lobo Toledo. Prximo da Justia e Distante do Direito:Um Estudo Num Juizado EspecialCriminal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2014. 170 p. Dissertao (Mestrado em Sociologia) Programa dePs-Graduao em Sociologia (IESP) da UERJ.

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    caractersticas das demandas e das formas de administrao e resoluo dos conflitos do juizado

    pesquisado, com o fim de analisar as influncias nos desfechos possveis em cada caso.

    Percebi que quantitativamente (64%) a categoria acordo, constante nos processos judiciais,

    correspondia maioria dos desfechos das conciliaes observadas, me levando ideia de que

    majoritariamente os conflitos tinham um desfecho consensual naquele juizado. Porm, apesar dessa

    porcentagem, minhas observaes em campo demonstraram o contrrio, que a maioria desses casos de

    acordo no se referia a acordos consensuais entre as partes conflitantes, sendo comum os conciliadores

    intervirem e at constrangerem as partes para que desistissem do processo judicial, categorizando tal

    ato como acordo. Essa categoria assumia vrios significados e atos dentro do judicirio, ou seja, o

    acordo consensual entre as partes que a lei prev podia assumir diversos significados e fins dentro do

    campo judicial. Assim, a partir do que observei em campo, destrinchei a categoria jurdica e genrica

    acordo em acordo induzido e acordo espontneo, conforme o seu uso naquele campo, e detectei que

    o acordo induzido era, quantitativamente, o desfecho majoritrio naquele juizado, me propiciando

    assim subsdios para novas reflexes sobre aquele campo judicial.

    Portanto, embora os dados quantitativos pudessem propiciar uma ideia da demanda que chega

    ao Juizado Especial Criminal, nem sempre permitiam compreender aspectos qualitativos, sobretudo

    aqueles que se referem ao direito e justia neles exercidos.

    Ana Paula Mendes de Miranda aponta para a importncia das anlises quantitativas e

    qualitativas de polticas pblicas. A avaliao quantitativa permite medir a eficincia de uma ao,

    podendo-se avaliar a relao entre o empenho empregado na implementao de certa poltica e os

    efeitos obtidos, assim como medir a eficcia de uma poltica, ao compar-la com as metas preditas e as

    metas conquistadas. A avaliao qualitativa permite avaliar o ponto de vista que as pessoas

    envolvidas, direta ou indiretamente, na proposta de uma poltica pblica, possuem sobre as

    deficincias e melhorias, permitindo a observao do sucesso da poltica pblica implementada, no

    que se alude a relao entre as finalidades determinadas e os impactos na transformao das condies

    sociais do grupo.

    A proposta, embora preliminar, que a combinao de anlises qualitativas e quantitativas

    visa uma apreciao emprica das prticas judiciais e policiais por meio de mtodos e tcnicas prpriasdas Cincias Sociais, promovendo um exame interdisciplinar entre os esquemas de referncia prprios

    da doutrina jurdica e as evidncias empricas das relaes etnogrficas em conjunto com dados

    estatsticos: teorias, mtodos e tcnicas das Cincias Sociais que podem se complementar para

    pesquisar prticas judiciais e dialogar com o campo do Direito e da Segurana Pblica.

    Desse dilogo j surge uma questo: as anlises estatsticas so utilizadas para testar ou

    elaborar hipteses. A elaborao de hipteses por via estatstica na Cincia Poltica e na Sociologia

    comumente seguida por dois tipos de testes qualitativos: entrevistas formais ou informais,

    estruturadas, semiestruturadas ou aprofundadas; e/ou grupos focais. Como teste de hipteses, asanlises estatsticas comumente so precedias de conceitos e reflexes tericas. Comumente, ao lado

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    de anlises estatsticas, no h lugar para as pesquisas etnogrficas, a outra irm das pesquisas

    qualitativas, onde se inicia uma pesquisa, pela entrada em campo, sem uma hiptese pr-formulada,

    mas que pode gerar hipteses e questes oriundas da observao em campo para fins estatsticos. E

    por outro lado, as anlises estatsticas podem auxiliar o etngrafo na anlise de questes encontradas

    em campo.

    Por fim, fica o desafio de como comparar quantitativamente sensibilidades jurdicas de

    sociedades diferentes, uma vez que as categorias quantitativas, assim como as categorias jurdicas, so

    universalizantes, e exigem, para uma anlise estatstica, categorias semelhantes para serem

    comparadas. Superar esse desafio uma questo para, ao menos, minimizar a supresso de atos

    individuais, tpicas dessa anlise. Uma das possibilidades analisar fluxos de sistemas de justia

    considerando as sensibilidades jurdicas a qual se prestam, por meio de pesquisas etnogrficas,

    relativizando categorias e reconstituindo os filtros do processo de seleo a que so submetidos

    pessoas e papis ao longo do seu processamento. Enfim, so mais inquietaes e reflexes do que

    solues.

    5. Entrando em Campo

    Nesse tpico trarei brevemente a experincia da minha entrada em campo e minhas dificuldades e

    dilogos iniciais que tive em realizar pesquisa etnogrfica no campo do Direito, e que me levaram s

    reflexes dispostas nesse artigo.

    Ao terminar minha formao em Direito eu tinha grande interesse pela teoria do direito brasileiro,

    notadamente sobre a Justia Criminal e suas contradies, entre o que a academia me ensinava e a

    prtica jurdica que eu vivenciei ao longo de minha formao jurdica, contradies delineadas por

    disputas interpretativas para aplicao das legislaes aos casos concretos. Eu queria ver o Direito fora

    de suas prprias interpretaes. Recorri s Cincias Sociais, no mestrado em Sociologia14que cursei.

    Muitos foram os dilogos que tive com a Antropologia no ltimo ano do curso de mestrado 15, o que

    me trouxe uma mistura de fascinao, identificao, estranhamento e confuso.

    Ressalto a importncia da anlise situacional de Van Velsen16 que influenciou na conduo da

    minha pesquisa de campo. Tal anlise se fundamenta nas descries analticas a partir dosapontamentos das aes dos indivduos, transcritas em um dirio de campo, de situaes reais e

    comportamentos caractersticos, municiando possibilidades de abstraes do material coletado em

    14No IESP/UERJ, orientado pelo Professor Glucio Ary Dillon Soares. Atualmente sou doutorando no mesmoprograma de ps-graduao.15 Esse foi um dilogo no s entre Sociologia e Antropologia, mas interinstitucional que tive ao cursar adisciplina Problemas Especficos em Anlise Antropolgica: Trabalho de Campo do Programa de Ps-graduao em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, lecionada pelo Professor Roberto Kant deLima que posteriormente se tornara meu coorientador. A presena da maioria de alunos do Programa de Ps-graduao em Direito dessa Universidade nessa disciplina tornou possvel um compartilhamento de dvidas em

    comum, prprias da transio da formao em Direito para as Cincias Sociais.16VELSEN, J. Van. A Anlise Situacional e o Mtodo de Estudo Detalhado. In: Antropologia das SociedadesContemporneas: Mtodos, p. 437-468. 2 Ed. So Paulo: Editora UNESP, 2010.

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    15

    campo, realando um estudo das aes normais e excepcionais dos indivduos. Esse tipo de anlise

    dispe os dilogos e aes dos sujeitos como fontes para diagnsticos, questes sociolgicas e

    hipteses de um determinado campo. So das situaes, especialmente os conflitos, que emanam os

    maiores problemas sociolgicos. Aqui os dilogos no so simples ilustraes de problemas, mas

    orientadores na elaborao de questes.

    Seguindo tal orientao, entrei no campo, um Juizado Especial Criminal na Baixada

    Fluminense. Mesmo com certas predefinies minhas sobre os Juizados Especiais Criminais, busquei

    reconhec-los e me abster desses preconceitos para observar o campo e ento paulatinamente

    conseguir detectar os problemas decorrentes de suas relaes sociais, permitindo que o campo me

    falasse os problemas dessas relaes.

    Ao entrar em campo, me vi em questes mais complexas que eu poderia imaginar. A

    dificuldade em se estranhar um mundo de certa forma j familiarizado por mim, com absoro de

    linguagens e prticas nativas da minha formao em Direito, demonstrou ser um grande obstculo a

    vencer, a capacidade de se estranhar um mundo naturalizado. A arte de se estranhar para se conhecer

    prprias das pesquisas etnogrficas demonstrou que eu precisaria de um esforo maior do que eu

    imaginava, com constante aprendizado.

    Tais questes fizeram com que eu me perguntasse e buscasse uma definio de mim mesmo

    como profissional dentro de algumas escolhas: afirmar-me como um pesquisador social, um cientista

    social, que busca entender o Direito e as prticas judicirias como um fenmeno social; ou ser um

    operador do Direito onde as Cincias Sociais seriam um instrumento de melhor compreenso desse

    mundo, assumindo o "eu" como profissional do Direito; ou a pior das hipteses, no conseguir assumir

    nenhuma das duas posies anteriores e acabar em um mundo dividido, marcado pela superficialidade

    de conhecimento de ambos os mundos, o jurdico e o das cincias sociais17. Minha escolha foi a

    primeira, a de ser um Cientista Social.

    Quando comecei meu trabalho de campo eu no tinha qualquer treinamento sobre pesquisa de

    campo, nem sobre tcnicas e mtodos de observao e interpretao18. E ao mesmo tempo em que

    entrei em campo foi que comecei a ter estudos e leituras sobre pesquisas etnogrficas.

    Ao longo do curso de mestrado em Sociologia desenvolvi maior afinidade e simpatia portrabalhos de autores que realizaram pesquisas empricas, principalmente aqueles que iam ao lugar da

    pesquisa e observavam o seu objeto de anlise. Nesse sentido, Erving Goffman foi um dos primeiros

    autores que li com esse tipo de pesquisa19, e um dos seus livros, Manicmios, Prises e Conventos,

    17 Obtive essa reflexo aps uma de muitas conversas que tive com o Professor Luis Antnio Machado doIESP/UERJ, com minhas incontveis dvidas e anseios em compreender as cincias sociais.18 Algo semelhante ocorreu com William Foote-Whyte, economista que queria estudar uma rea pobre edegradada e que acabou indo ao campo realizar sua pesquisa. In FOOTE-WHYTE, William. Anexo A. In:

    Sociedade de Esquina, pp. 283-263. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.19Ao cursar a disciplina Teoria Sociolgica II, no 2 semestre de 2012, li e conheci trabalhos de vrios autoresque constituam uma viso panormica das principais correntes na teoria sociolgica do sculo XX, dos anos

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    16

    chamou-me a ateno por sua linguagem simples e aberta a uma variedade de leitores, inclusive um

    iniciante em Cincias Sociais como eu. Harold Garfinkel com a etnometodologia tambm me chamou

    a ateno com a sua proposta de pesquisar situaes cotidianas, onde o pesquisador no s observava

    dilogos, mas intervinha diretamente neles. Meu questionamento era o de como pesquisar o campo

    jurdico, e que metodologia e tcnicas usar.

    Diante dessa vontade de pesquisar em campo, mas sem saber como, consultei meu orientador,

    Glucio Ary Dillon Soares, sobre as possibilidades. Sua primeira recomendao foi que eu cursasse

    uma disciplina externa com o Professor e antroplogo Roberto Kant de Lima da Universidade Federal

    Fluminense, o que me trouxe satisfao, pois eu j conhecia o Professor e Antroplogo Roberto Kant e

    um pouco do seu trabalho20. Meu orientador ainda comentou que pesquisas empricas sobre o campo

    jurdico no Brasil ainda so poucas, que um campo que merece ateno e que tende a crescer ao

    longo do tempo, no s no Brasil como na Amrica Latina, e que o meu esforo valia a pena.

    Essa sugesto foi-me conveniente em dois sentidos: primeiro por me possibilitar entrar em um

    mundo que mesmo estranho para mim, me despertava grande interesse, que era a pesquisa de

    campo; segundo por me possibilitar coletar os dados quantitativos no prprio campo jurdico, que

    possui pouqussimos dados referentes aos seus prprios atos e registros, e que geralmente faz sigilo

    dos poucos dados estatsticos que possui.

    Meus primeiros contatos em campo foram marcados por rejeies. No Juizado Especial

    Criminal procurei fazer meu primeiro contato em seu cartrio, onde fui atendido pelo escrivo e me

    apresentei como um aluno de mestrado que queria realizar uma pesquisa ali, e ele respondeu: voc

    que fazer pesquisa n. No permitimos isso no. O que voc quer saber?. Novamente apresentei -me

    como aluno de mestrado em Sociologia, e afirmei que queria realizar uma pesquisa naquele juizado,

    observando as conciliaes. Olhar voc pode u, ningum vai te proibir, respondeu -me. Contente

    com a resposta, tambm perguntei se naquele juizado havia estatsticas dos seus casos, ou se tinha

    algum sistema de registro de dados informatizados com os dados dos processos judiciais que eu

    pudesse olhar. Olha s, a j confidencial, os dados so sigilosos, voc no pode ficar vendo os

    dados das pessoas, falou-me o escrivo. Expliquei que meu interesse no era ver dados pessoais, mas

    dados sobre o perfil de quem ajuizava uma ao naquele JECrim, e quais os tipos de crime maiscomuns que chegavam ali. O escrivo comentou:

    a gente no quer saber dos nossos problemas, isso ns j vivenciamos todos os dias,dos nossos problemas ns j sabemos, pra que publicar isso? Ningum quer serexposto. Se voc quer saber, o que mais tem aqui leso corporal e ameaa, j teresolvo isso, e sua pesquisa fica pronta. Mas se voc quiser, pode voltar aqui e falarcom a juza. Acho melhor voc se resolver com ela. Aproveita que a secretria delaest aqui, na sala ao lado, a sua direita ao sair. Por mim eu no autorizo isso no.

    1930 at os anos 1970, estabelecendo alternncias e dilogos entre teoria e empiria, entre pesquisas quantitativas

    e qualitativas, e entre anlises macrossociolgicas e microssociolgicas.20Conheci o Professor Roberto Kant de Lima quando cursei a ps-graduao lato sensuem Polticas Pblicas deJustia Criminal e Segurana Pblica na Universidade Federal Fluminense, entre 2009 e 2010.

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    Posteriormente, em outra ocasio, conversei com a juza daquele JECrim para expor as minhas

    intenes de pesquis-lo. Foi-me pedido pela juza que eu fizesse um pedido por escrito sobre a minha

    inteno de pesquisar aquele juizado, constando meu endereo residencial, contatos telefnicos, alm

    de uma carta da minha universidade dizendo que era aluno do mestrado, e fotocpias dos meus

    documentos de RG (registro geral) e de CPF (cadastro de pessoa fsica). Sobre esse pedido, a juza

    comentou:

    Voc entende n, preciso de um respaldo. Certa vez um advogado veio aqui pra serconciliador, e nas conciliaes ficava distribuindo cartes de seu escritrio. Elequeria captar clientes. No pode, eu mesma entrei com uma ao contra ele. Masvoc formado em Direito e sabe como as coisas funcionam.

    Com o intuito de observar todo o processo de administrao de conflitos no Juizado EspecialCriminal, tambm me dirigi s trs Delegacias Legais existentes no municpio do frum da comarca

    pesquisada. Em duas das trs delegacias legais, o meu pedido de pesquisa foi negado de forma

    definitiva. Em ambas dirigi-me ao balco de atendimento e apresentei-me como aluno de mestrado

    que queria realizar uma pesquisa, e em ambos os casos dirigiram-me a um inspetor de polcia que

    negou o meu pedido. Nos dois casos, os policiais que me atenderam disseram para eu procurar outra

    delegacia.

    Na terceira e ltima delegacia repeti a minha apresentao uma atendente e expus minha

    finalidade, perguntando se era possvel eu conversar com o delegado. A atendente me comunicou quea delegada no ficava sempre ali, mas tinha um policial que era bem camarada e colega da delegada.

    Como sugesto, aceitei conversar com o inspetor de polcia. O dilogo foi mais extenso do que nas

    demais delegacias:

    Inspetor de Polcia: - Pois no?Eu: - Boa tarde. Sou aluno de mestrado em sociologia, e estou fazendo uma pesquisasobre os juizados especiais criminais. J estou pesquisando no frum h alguns dias.Observando as conciliaes. Pergunto se possvel fazer essa pesquisa aquitambm. Trouxe um pedido escrito com uma declarao de estudante da

    universidade em que estudo, se precisar.Inspetor de Polcia: - Olha s, melhor voc ir delegacia perto da sua casa. Ondevoc mora?

    Eu: - J fui delegacia prxima de onde moro.Inspetor de Polcia: - Ento, sua jurisdio l, no aqui.Eu: - Pode ser em qualquer delegacia do municpio. Escolhi aqui por ser a maisprxima do frum, onde j pesquiso.Inspetor de Polcia: - T. Mas o que? Estgio? J proibimos estagirios aqui h umbom tempo. Um aluninho desses a de direito veio aqui contar horas pra faculdadedele, anotava umas coisas, e depois chegaram notcias de fofocas aqui. Ficavafalando mal da gente. Uma merda.No queremos X9 no.

    Eu: - Entendi. Mas no identifico ningum na pesquisa, nem o local. O que meinteressa olhar como as pessoas chegam e registram crimes aqui. S isso.

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    Inspetor de Polcia: - T. Olha s, vem aqui, fica sentado a (apontando para osassentos de espera) e fica olhando. A eu no posso te proibir de ficar. lugar

    pblico. Por hoje t bom?Eu: - Na verdade eu precisaria vir por alguns dias. No sei dizer quanto tempo, maso mximo possvel.

    Inspetor de Polcia: - T, vem vindo, e fica sentado ali.

    Eu: - Ok, obrigado. Posso deixar esse pedido que fiz pra realizar minha pesquisaaqui? Tem meus contatos, endereo e cpias dos meus documentos. Pra ficar tudotranquilo.

    Inspetor de Polcia: - T, tudo bem. Pode deixar comigo. Mas volta outro dia ento,fica hoje no.

    Coincidentemente, dessa vez no complementei minha apresentao como sendo formado em

    Direito, e percebi que foi bom assim, considerando o comentrio do inspetor de polcia sobre o

    episdio narrado por ele.

    Encerrado o primeiro dia de observao, voltei delegacia no dia seguinte. Ao entrar, notei

    que o inspetor de polcia que me permitira ficar na delegacia estava l, e ele logo me chamou para

    conversar:

    Inspetor de Polcia: - Preciso conversar com voc.Eu: - Boa noite. Tudo bem.Inspetor de Polcia: - Olha s, voc no vai poder continuar vindo aqui no. Aspessoas esto incomodadas.Eu: - Nem observando apenas?Inspetor de Polcia: - Pois . As pessoas se sentem observadas, ficam nervosas, commedo de falar besteira. Somos humanos sabe, erramos, e no queremos problemas

    com isso. Alguns colegas aqui te viram ontem sentado a anotando coisas, e nogostaram no. Ento no vai dar. Beleza?Eu: - Voc sabe se a delegada viu o meu pedido?Inspetor de Polcia: - Olha, ela nem apareceu aqui esses dias. imprevisvel. Vocdeixou seu telefone de contato n? Qualquer coisa te retornamos.

    Eu: - Tudo bem. Agradeo a sua ajuda.Inspetor de Polcia: - T beleza. Boa sorte.

    Desta forma, encerrei prematuramente a minha pesquisa recm-iniciada na delegacia. Embora

    no tenha sido possvel coletar dados, essa dificuldade de acesso s delegacias, e a prpria negativa

    inicial da pesquisa no Juizado Especial Criminal pelo escrivo, me trouxe tona sobre o quanto

    difcil realizar pesquisas no campo policial e judicial, sobretudo sem malhas legais e judiciais para o

    trabalho de campo21.

    Aqui evidencio outra questo que se d comumente nesse campo, a desconfiana dos

    operadores do Direito e da Segurana Pblica perante as pesquisas etnogrficas. Isso decorre de uma

    percepo do pesquisador como um espio, que visto como um investigador dos investigadores, ou

    seja, uma inverso da lgica de atuao desses profissionais.

    21Vide: LIMA, Roberto Kant de. A Polcia da Cidade do Rio de JaneiroSeus Dilemas e Paradoxos. Rio deJaneiro: Polcia Militar do Rio de Janeiro, 1994. Pg. 10-14.

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    6. Consideraes Finais

    Visei nesse trabalho dispor as dificuldades de dilogos entre Antropologia e Direito e expor a

    relevncia da realizao de pesquisas empricas, de orientao etnogrfica, e com possibilidades de

    uso da estatstica (e de sua melhor utilizao em conjunto com a etnografia), para a compreenso do

    Direito e de suas instituies, para alm das suas prprias interpretaes.

    O fazer antropolgico e o fazer jurdico tambm possuem semelhanas entre suas vises do

    mundo, ao enfocar as suas prticas aos casos individuais, mas que pode tanto dividir como unir. O

    dilogo entre esses fazeres um grande desafio, onde a interao de duas profisses to orientadas

    para a prtica, to profundamente limitadas a universos especficos e to fortemente dependentes de

    tcnicas especiais, pode ter como resultado mais ambivalncia e hesitao que acomodao e sntese

    (GEERTZ: 1997).

    Para Kant de lima, esse dilogo dificilmente ter xito se for estabelecido to somente por via

    terica, j que as teorias antropolgicas, por si s, aparentam estar desconectadas aos discursos e

    prticas dos operadores do campo do Direito, na perspectiva desses operadores. Porm, a aproximao

    desses saberes se for feita por via metodolgica, atravs da realizao de etnografias comparativas,

    objetivando o estudo das prticas judicirias, pode permitir uma interlocuo com o campo emprico

    que incorpora produo do saber jurdico os significados que os operadores do campo conferem lei

    e s normas, permitindo uma percepo mais completa e mais democrtica dos fenmenos e institutos

    jurdicos (LIMA: 2013).

    E os ganhos desse dilogo so de via dupla, em transpor as sensibilidades jurdicas na

    Antropologia, e de assimilar a sensibilidade das pesquisas etnogrficas no Direito.

    7. Referncias

    BERTRAND, Pulman. Por Uma Histria Da Noo De Campo. In: Revista Cadernos de

    Campo. So Paulo, n. 16 p. 201-218, 2007.

    BOURDIEU, Pierre. A Fora Do Direito: Elementos Para Uma Sociologia Do Campo

    Jurdico. In: O Poder Simblico, pp. 209-254. 16 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

    CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O Trabalho do Antroplogo: Olhar, Ouvir e Escrever.In: _____. O Trabalho do Antroplogo. So Paulo: Editora UNESP, 1998.

    DAMATTA, Roberto. O Ofcio do Etnlogo ou como ter Anthropological Blues. In:

    NUNES, Edson de Oliveira (org). A aventura sociolgica: Objetividade, paixo, improviso e mtodo

    na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

    ______.Relativizando: Uma introduo Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

    Pg. 143-173.

    GEERTZ, Clifford. O Saber Local: Fatos E Leis Em Uma Perspectiva Comparativa. In: O

    Saber Local: Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa, pp. 249-356. Petrpolis: Vozes, 1998.

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