liÇÕes dos concursos infantis de beleza e da escola de ... · você não se torna uma princesa...
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LIÇÕES DOS CONCURSOS INFANTIS DE BELEZA E DA ESCOLA DE
PRINCESAS
Antonio Jorge Ferreira Knupp
Daniela Ripoll
Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade Luterana do Brasil
Introdução
Você não se torna uma Princesa simplesmente vestindo um vestido
extravagante e uma tiara brilhante. Ser uma Princesa de verdade é ter a
confiança para ser a melhor versão de si mesma. Acreditamos firmemente
que todas as mulheres são princesas e que podemos aprender a aplicar os
atributos de caráter e comportamento de Princesa em tudo o que fazemos na
vida.
A ESCOLA DE PRINCESAS é um projeto criado para levar ao coração de
meninas, valores e princípios morais e sociais que as ajudarão a conduzir sua
vida com sabedoria e discernimento. É sobre tratar a todos com bondade e
generosidade, ter valores e princípios imutáveis independentes de modismos,
assim como acreditar apaixonadamente em si mesma e em seus sonhos.
A ESCOLA DE PRINCESAS não é somente um curso de etiqueta ou uma
escola de comportamento. Nós acreditamos na construção de um caráter
sólido e incorruptível, resgatando os valores éticos e morais, na civilidade
básica e queremos incorporar este pensamento (esta convicção) em nossos
programas. A cada lição, as meninas são encorajadas a aproveitar as
qualidades positivas do caráter e do comportamento de Princesas – tanto
reais quanto fictícias, bem como históricas ou modernas – e aplicá-las em
sua vida.
A Missão da Escola é oferecer serviços de excelência que propiciem
experiências de natureza intelectual, comportamental e vivencial do dia a dia
da realeza, para meninas com idade entre 4 e 15 anos que sonham em se
tornar princesas e fazê-las resgatar a essência feminina que existe em seus
corações (ESCOLA DE PRINCESAS, SITE1, 2017).
A Escola de Princesas, de acordo com sua idealizadora, tem como objetivo transmitir
valores e princípios morais e sociais, comportamentos, postura e etiquetas a meninas com
idades variando entre quatro e quinze anos de idade. Criada na cidade de Uberlândia, Minas
Gerais, no ano de 2013, hoje já possui filiais em Uberaba, Belo Horizonte, São Paulo, Cuiabá,
1 Todas as informações sobre o site Escola de Princesas foram obtidas do site http://escoladeprincesas.net/ws/ em
20 maio 2017.
Rio de Janeiro, Manaus e com perspectivas de se projetar para outras cidades, estados e o
exterior. Trata-se de uma escola cujos clientes “são pessoas da classe A, B e C que desejam
que suas filhas, netas, enteadas e afilhadas aprendam princípios e valores pessoais como
cordialidade, gentileza e honestidade, além de realizar os sonhos dessas pequenas mocinhas
de viverem a experiência de uma vida de princesa” (ESCOLA DE PRINCESAS, SITE, 2017).
Apesar de não ter sido criada para atender especificamente as participantes de
concursos infantis de beleza, é possível observar muitas semelhanças entre essa “escola” e as
competições de beleza; é possível, também, pensar que se trata, na verdade, de uma escola de
treinamento para os concursos de beleza. Neste artigo, pretendemos traçar um paralelo entre a
Escola de Princesas e os concursos infantis de beleza (que produzem, com suas coroas e
troféus, as chamadas “princesas e rainhas da beleza”) estudados na Dissertação de Mestrado
intitulada “Escola de pequenas misses: um estudo sobre os concursos infantis de beleza”
(KNUPP, 2015). A pesquisa situa-se no campo dos Estudos Culturais, no entrecruzamento
com os Estudos de Gênero e o estudo das culturas infantis contemporâneas. Buscamos
problematizar como as infâncias são produzidas e acionadas dentro dessas “escolas” que
ensinam o momento de falar, brincar, ouvir, enfim, transformar-se em “pequenas damas”.
Estes espaços impregnados da cultura do espetáculo e do consumismo vão construindo
sujeitos de um determinado tipo e instituindo uma série de lições: ser miss ou ser princesa
exige comportamento e postura; aparência é o que vale; há coisas certas [para dizer] e coisas
erradas [para calar]; entre tantas outras. Lições que vão ensinando essas crianças a se
produzirem e se portarem como adultas, a serem sensuais, a terem uma preocupação com a
beleza física e o corpo desde muito pequenas etc.
Na primeira seção, então, fazemos uma contextualização da Escola de Princesas. Já na
segunda seção, abordamos as Escolas de Pequenas Misses. Em seguida, pensamos sobre as
infâncias construídas nessas escolas e discutimos algumas lições aí produzidas.
A Escola de Princesas: “todo sonho de menina é tornar-se uma princesa”?
Sua filha é preciosa para você e precisa ser preparada desde já para que seu
coração seja capaz de discernir entre o certo e o errado, entre a ação que
produz algo bom e o gesto que traz constrangimentos. Desta forma
ministramos ao coração das meninas valos e princípios éticos, morais e
sociais, que a ajudarão a conduzir sua vida com sabedoria e discernimento
(ESCOLA DE PRINCESAS, SITE, 2017).
A assertiva acima presente no site oficial de um espaço denominado Escola de
Princesas busca convencer/capturar os pais de meninas e adolescentes com idade entre 4 e 15
anos da importância e necessidade de matricularem suas filhas neste lugar, uma vez que para
elas se tornarem pessoas com caráter, valores, princípios éticos etc., de acordo com essa
“escola”, só seria possível mediante os ensinamentos aí promovidos.
A Escola de Princesas (Figura 1) foi inaugurada em janeiro de 2013 e tem como
escopo, de acordo com o site oficial, “ensinar valores e princípios de caráter e
comportamento, para que meninas se tornem princesas da vida real”.
Figura (1) – “Escola de Princesas”.
Fonte: http://escoladeprincesas.net/, acessado em 20/05/2017.
Esta escola tem vários ambientes2. Um deles chama a atenção pelos detalhes em cor-
de-rosa que nos remetem ao quarto da Barbie (Figura 2) – só que não se trata de um quarto e,
sim, de um salão de beleza criado para que “as meninas pudessem ter a certeza de que eram
verdadeiras princesas”, comenta Nathália de Mesquita, apresentada no site como “professora,
psicopedagoga e idealizadora da Escola de Princesas”.
2 Como se trata de uma franquia, as filiais citadas na introdução deste artigo seguem o mesmo padrão da matriz.
Figura (2) – “Salão de Beleza” da Escola de Princesas.
Fonte: http://escoladeprincesas.net/, acessado em 20/05/2017.
De acordo com informações do site, na Escola de Princesas é possível fazer cursos
que podem durar de um a três meses. O principal curso que a Escola oferece é o “Vida de
Princesa”, com aulas de etiqueta, moda, beleza, artes, culinária etc. Este curso é divido em 12
módulos assim distribuídos: 4 a 6 anos (básico, intermediário e avançado); 7 a 9 anos (básico,
intermediário e avançado); 10 a 12 anos (básico, intermediário e avançado); 13 a 15 anos
(básico, intermediário e avançado). Cada módulo, segundo informações publicadas no site,
possui conteúdo exclusivo e cuidadosamente elaborado para o que seriam “as distintas etapas
de desenvolvimento de uma menina”. Chama a atenção, por exemplo, a menção ao conteúdo
“Relacionamentos de Princesa”, com tópicos como: “conceito de relacionamento”; “tipos e
níveis de relacionamentos: valores e princípios”; “Autoridades”; “Amigos ou parceiros?”;
“Problemas de relacionamentos”; “Competição X Cooperação”; “União” e “Semear e
Colher”. Sobre a “Etiqueta de Princesa”, os conteúdos são os seguintes: “Boas maneiras e
postura corporal”; “comportamentos externos (caráter externo da princesa) – autogoverno”;
“Etiqueta Social”; “Etiqueta à mesa (em chás, lanches, do almoço do dia a dia em família aos
jantares de gala)”; “Organização pessoal – oratória – netqueta”. Outros tópicos também
chamam a atenção em “Estética da Princesa” (que aborda higiene pessoal, esporte,
alimentação, beleza (em especial, cabelo e maquiagem) e moda (roupas e acessórios) e em
“De Princesa à Rainha” (que aborda o matrimônio em “Restaurando os valores e os
princípios morais do matrimônio”; “À espera do príncipe - como se guardar”;
“Educação/orientação sexual”; dentre outros).
Além do curso “Vida de Princesa”, é possível participar de eventos de férias que
coincidem com as datas dos calendários escolares. Entre estes eventos, destacamos o “Chá de
Princesas” e as “Férias de Princesas”. A decoração da Escola é toda inspirada nos castelos de
princesas dos contos de fadas, conforme se pode verificar na Figura 3:
Figura (3) – “Sala de chá das Princesas”.
Fonte: http://g1.globo.com/minas-gerais/triangulo-mineiro/noticia/2014/01/ex-empresaria-de-xuxa-faz-
parceria-com-escola-de-princesas-em-mg.html, acessado em 20/05/2017.
Em entrevista ao portal de notícias da Globo (G1), Nathália de Mesquita, afirma:
“ensinamos a arrumar a cama, lavar a louça, cozinhar, a respeitar os pais, a se maquiar e se
vestir sem ser vulgar, entre outras ações que ajudam no desenvolvimento de uma pessoa. A
intenção não é mudar a essência da pessoa e sim agregar conhecimentos” (RESENDE,
2014). E, ainda afirma que “as meninas aprendem a fazer atividades que vão desde pregar um
botão em uma roupa até como se comportar à mesa”. Além dos serviços, referidos acima,
oferecidos pela “escola”, é possível realizar festas de aniversário tematizadas nos finais de
semana.
A invenção dos concursos infantis de beleza
Segundo o site3 oficial do concurso Our Little Miss (Figura 4), a modelo e jogadora de
basquete norte-americana Marge Hannaman (1924-2006) foi a idealizadora do primeiro
concurso de beleza para crianças no ano de 1962 e que existe até os dias de hoje. O evento
realizado no hotel Roosevelt, em Nova Orleans, Lousiana, de acordo com o site tinha como
objetivo “ajudar as crianças a melhorar suas vidas, serem confiantes e capazes de crescer no
mundo dos negócios” (OUR LITTLE MISS, SITE)4.
Figura (4) – Foto de abertura do site “Our Little Miss, Inc.”.
3 http://www.ourlittlemiss.com – Acesso: 18/05/2017. 4 Sempre que aparecer entre parênteses OUR LITTLE MISS, significa que as informações referidas
anteriormente foram retiradas do site oficial deste concurso.
Fonte: http://www.ourlittlemiss.com/story-of-olm.html, acessado em 18/05/2017.
A página do Our Little Miss informa que o evento é organizado pela Federação
Mundial da Juventude e tem como filosofia a participação da família através de show de
talentos, havendo, assim, uma interação entre concorrentes, familiares e organizadores. Our
Little Miss
é um símbolo de esperança para o futuro das crianças em todos os lugares.
(...) A competição é algo tão americano como a torta de maçã e a
maternidade. No entanto, a maneira de lidar com a competição varia muito.
Na Federação Mundial de Juventude, há um suave toque [de competição],
onde as discussões envolvendo o ganhar e o perder, as alegrias e as
decepções, são parte integrante do programa. Do show de talentos (ao
mesmo tempo, bobo e sério) à troca de presentes entre concorrentes de todo
o mundo, “Our Little Miss” verdadeiramente incentiva a participação
familiar e camaradagem. O verdadeiro prêmio é a experiência (OUR
LITTLE MISS, SITE, tradução própria).
A página da internet chama a atenção para o fato de que esse concurso, Our Little
Miss, não permite que crianças entre zero e doze anos usem unhas postiças (a partir dos três
anos já é permitido uso de esmalte); as meninas entre zero e nove anos podem usar sapatos
fechados e com no máximo 1,5 cm de altura; não é permitido uso de brilho no corpo e nem
bronzeamento artificial; não são aceitáveis também roupa sexy e decotes baixos (OUR
LITTLE MISS). O site do Our Little Miss, ainda, registra que a “fórmula” para o sucesso do
concurso se deve à combinação do período de férias escolares, a realização do evento em
cidades com ambientes turísticos glamorosos e, também, o fato de as meninas usarem seus
títulos de forma eficaz na conquista de comerciais televisivos e de papéis em filmes.
Neste momento acreditamos ser importante apresentar o artigo denominado Nymphet
Fantasies: Child Beauty Pageants and the Politics of Innocence (1998) de Henry A. Giroux,
um estudioso dos Estudos Culturais. Segundo este autor, desde a década de 1960 os concursos
envolvendo crianças vêm se multiplicando, e estima-se que nos Estados Unidos mais de três
mil concursos são realizados anualmente e que mais de 100 mil crianças com idade entre três
e doze anos de idade participam de competições. Para o referido autor, “concursos de beleza
infantis são lugares exemplares para se examinar criticamente como o discurso da inocência
mistifica a apropriação dos corpos infantis em uma sociedade que cada vez mais sexualiza as
crianças e as transforma em mercadorias” (p. 36). Afirma, também, que “enquanto concursos
de beleza para adultos, como o concurso anual de Miss América, têm sido alvo de enormes
quantidades de crítica feminista, poucos acadêmicos e críticos culturais concentram-se em
concursos infantis de beleza como um objeto sério de análise cultural” (GIROUX, 1998, p.
44).
Giroux (1998) argumenta que diversos pais envolvidos nos concursos de beleza não se
preocupam com as possíveis consequências negativas de vestir suas filhas com roupas
sensuais, dentes artificiais, cílios e unhas postiças e, além de tudo, deixar essas crianças
expostas perante o público de forma a sugerir uma sexualidade bem além dos anos. As ideias
de Giroux (1998) vão ao encontro das de Debert (2010) sobre a adultização precoce dessas
meninas que participam de competições de beleza e as de Harvey (2012) sobre meninas sendo
cópias perfeitas (simulacros) de mulheres seja na forma de vestir, andar, falar, se portar etc. ao
afirmar que “a maquiagem, a pose, o sorriso e os penteados das crianças de seis anos não são
diferentes das concorrentes mais velhas” (p. 44). Em seguida, o autor ainda acrescenta que “a
linha entre crianças e adultos é tênue” (p. 44). Os concursos de beleza infantis, ainda sob o
viés de Giroux (1998), mostram que
os processos de sexualização e mercantilização das crianças nos concursos
não são completamente diferentes das relações sociais que ocorrem em
outros locais em que os órgãos e partes do corpo de jovens meninas são
usados para saciar o desejo do mercado [...]. O que conecta os concursos de
beleza ao mundo da publicidade e da moda é que as meninas estão sendo
ensinadas a se tornarem pequenas mulheres, enquanto que na sociedade
adulta as mulheres estão sendo ensinadas a assumirem a identidade de
crianças abandonadas e impotentes (p. 51-52).
A revista Pageantry5 narra que não há leis que regulamentam os concursos de beleza
nos Estados Unidos e, ainda, informa que para o procurador geral do departamento de justiça
da Califórnia (EUA), “não há nenhuma lei que prescreve como um concurso deve ser
gerenciado, as regras são definidas por cada promotor do concurso”. E, no Brasil, também não
há: tanto empresas quanto pessoas físicas podem realizar um concurso de beleza. Em muitos
casos, os promotores e demais organizadores não estão preocupados com as crianças e a
qualidade do evento, preocupando-se apenas em ganhar dinheiro.
A revista Pageantry também apresenta um estudo feito pela socióloga Hilary Levey,
que realizou entrevistas com quarenta e uma mães de crianças na faixa etária de dois a seis
anos que participam, em média, de cinco concursos de beleza por ano. Ela percebeu que as
mães de baixa renda e com baixo nível de escolaridade colocam seus filhos em concursos com
o objetivo de ter ascensão social. Já as mães com rendas médias e que possuem ensino médio
explicaram à pesquisadora que seus filhos participam de concursos porque a
“concorrência/competição é necessária para o sucesso”. Giroux (1998), ao se referir às
candidatas participantes de certames de beleza, também afirma isso:
A maioria das competidoras que entra nos concursos locais é de famílias de
classe trabalhadora impulsionadas por fantasias de consumo e atraídas por
um prêmio em dinheiro de pequeno porte. Os concursos maiores e mais
caros parecem ser dominados por pais de classe média e de classe alta, [...]
que têm muito dinheiro e recursos para gastar em treinamento de voz e aulas
de dança, treinadores para concurso, trajes caros e as taxas de participação
dos desfiles (GIROUX, 1998, p. 42).
Esses eventos de beleza, inventados nos Estados Unidos e rapidamente disseminados
para os mais diversos cantos do planeta, levam os pais e as mães a exigirem de suas filhas que
elas sejam competitivas, subjetivando-as sempre a buscar pelo primeiro lugar, custe o que
custar e não importando quais os sacrifícios que terão que fazer, sejam eles físicos,
financeiros ou éticos.
A infância construída pelas/nas escolas de princesas e de pequenas misses e algumas
lições daí resultantes
5 A revista Pageantry Magazine é especializada em divulgar reportagens da cultura dos certames de beleza.
Hoje as possibilidades de representação da infância também se
ampliaram: fala-se em infância digital, em infância
desrealizada, em infância midiática, em infância adultizada, em
infância erotizada, em criança sabe-tudo, em criança-monstro
etc. (FERREIRA, 2005, p. 211).
A citação acima sugere que devemos falar de infâncias e não infância. Na atualidade,
as transformações sociais, políticas e econômicas inventam diversas possibilidades de ser
criança, ou seja, todos esses modos de ser criança são construções sociais presentes no meio
cultural em que estão inseridas. Dentro dessa lógica, as infâncias contemporâneas são
entendidas neste artigo como constructos sociais e históricos, e não simplesmente como
“fases” baseadas em entidades biológicas (STEINBERG e KINCHELOE, 2004).
Mariangela Momo (2007), em sua tese de Doutorado, afirma que não existe um jeito
certo de viver a infância e ao qual os demais jeitos devam ser ajustados: “o modo de conceber
a infância, então, varia de acordo com o tempo, o espaço, as condições culturais e sociais” (p.
115). Para essa autora, infância é “um objeto cultural que é fabricado pelos discursos, pela
mídia, pelo consumo e pelas condições culturais de pós-modernidade” (MOMO, 2007, p.
116). Existem diferentes formas de viver a infância e múltiplos modos de ser criança que
estão em constante processo de ressignificação/transformação (FELIPE e GUIZZO, 2003).
Como problematiza Walkerdine (1999), “a natureza da criança” não é descoberta, mas
produzida em regimes de verdades criados nas práticas culturais e sociais (p. 77).
Pensando na infância como objeto cultural - produzida em práticas culturais e sociais
conforme as autoras supracitadas no parágrafo anterior -, o presente artigo problematiza
algumas práticas comuns entre a Escola de Princesas e os concursos infantis de beleza (tidos,
por nós, como “escolas de pequenas misses”). Almejamos analisar as práticas presentes
nesses espaços e que vão constituindo determinados tipos de meninas e adolescentes.
Guita Grin Debert, no artigo “A dissolução da vida adulta e a juventude como valor”
(2010), apresenta as relações entre adultos e crianças em três períodos da história. Para esta
autora, na Idade Média, as crianças não eram separadas do mundo adulto. Elas participavam
da vida social e do mundo do trabalho desde muito cedo. A representação de infância, para
Debert, foi inventada ao longo dos séculos e só lentamente roupas, jogos, brincadeiras, entre
outras coisas, foram acentuando as diferenças entre crianças e adultos. Já a transição da Idade
Média para a Modernidade levou, segundo ela, à construção da ideia de adulto como um ser
“independente”, “com maturidade” e “responsabilidade”, enquanto a ideia de criança foi
sendo construída como se referindo a um ser “frágil” e “dependente”.
A referida autora ainda argumenta que “a padronização da infância, adolescência,
idade adulta e velhice pode ser pensada como resposta às mudanças econômicas, devidas,
sobretudo, à transição de uma economia que tinha como base a unidade doméstica para outra
baseada no mercado de trabalho” (DEBERT, 2010, p. 59). Debert nos mostra que o processo
de globalização e, contemporaneamente, a presença das mídias borram a separação da
infância e da vida adulta, posto que as crianças passaram a ter acesso ao que antes era
permitido apenas aos adultos. Dessa forma, houve um apagamento das fronteiras que
separavam adultos de crianças. A padronização e classificação das fases da vida (infância,
adolescência, fase adulta e velhice) de forma cronológica são características da Modernidade
e não comporta as mudanças atuais (DEBERT, 2010). Vivemos em “um tempo em que a vida
se organiza dentro do universo tecnológico, que vem modificando não apenas as formas de
pensar, como também sonhos, desejos e significados” (MOMO, 2009, p. 203-204).
Pensando nos concursos infantis de beleza, as meninas, em especial, estão cuidando de
seus corpos, se embelezando de forma sensual e muitas vezes erotizada, enfim, tornando-se
meninas-mulher. A preocupação com a produção corporal dessas meninas começa muito cedo
com hidratação, bronzeamento, depilação de sobrancelha, buço, pernas, alisamentos dos
cabelos, massagens, escovas, próteses e clareamentos dentários, maquiagens, cílios artificiais,
unhas postiças e pintadas, seios e bumbuns postiços. Todos esses recursos estéticos, antes
inimagináveis, são oriundos das representações de beleza que emergem na
contemporaneidade. Para Beck e Guizzo (2014), “é característica cultural e social (...) fortes e
maciços investimentos nos corpos com o intuito de constituí-los dentro de padrões que
reforçam sinônimos de moda e embelezamento, veiculados pelas instâncias sociais e
culturais” (p.180).
Pensando na Escola de Princesas, nos parece, em um primeiro momento, que ela está
deslocada no tempo. Sim! Como é possível, em pleno século XXI, que uma escola seja
inventada com o objetivo de ensinar meninas a arrumar a cama e o guarda-roupa, a se
portarem a mesa? Como é possível que um local como esses seja inventado – e estruturado
sob a forma de franquia – voltado para ensinar a menina a arrumar o cabelo, se maquiar,
portar-se à mesa, organizar a casa (lavar, passar, limpar) e “guardar-se” para o “príncipe
encantado”? Como pode que essa escola (e, também, os concursos de beleza) venham, a cada
dia, ganhando mais adeptos e admiradores e se espalhando, como febre, pelos mais variados
cantos do Brasil, recebendo alunas de diversos outros países conforme divulgado em diversas
reportagens midiáticas?
Para Louro (1997), quando se aborda gênero, é preciso pensar em um processo de
construção no âmbito das relações sociais, e não em proposições essencialistas, existentes a
priori. As concepções de gênero se diferenciam, não só entre as sociedades ou períodos
históricos, mas no interior de uma determinada sociedade, ao considerarmos os grupos que a
constituem. Além disso, como salientam Gomes e Miranda (2014):
Na perspectiva feminista, o corpo é uma construção política. Um conjunto de
dispositivos incide sobre as mulheres [e meninas] e seus corpos. Desde a
regulação de ciclos, passando por práticas da feminilidade – maquiagem,
cosméticos, transformação química dos cabelos, cirurgias ‘estéticas’, dietas
rigorosas, ‘cultura fitness’, moda fashion – chegando até as anorexias e
bulimias, um rigoroso e repetido controle se exerce sobre o corpo feminino
convertido aos ditames da procriação e às prescrições higienistas (p. 98).
Guizzo (2005) afirma que, “na atual conjuntura da sociedade, o conceito de gênero
ainda não é pensado de maneira plural, parece ter vigência o pensamento de que existe apenas
uma única forma de ser menino [da mesma forma que só existe uma única forma de ser
menina – grifos nossos]; aquela dotada de coragem, segurança etc. Além disso, é possível
afirmar que representações sobre meninos são bem distintas das que existem sobre meninas”
(GUIZZO, 2005, p. 44).
No caso dos certames infantis, pais, mães, promotores contratam profissionais
específicos para moldarem as pequenas aspirantes à miss e torná-las possuidoras dos
chamados “dons de miss”. Preconiza-se a formação de meninas dinâmicas, com desenvoltura,
em constante processo de reconfiguração de si mesmas. E, na Escola de Princesas, contratam-
se psicólogos, estilistas, nutricionistas, consultores de imagens, cabeleireiros, maquiadores
etc. para ensinarem as meninas e torná-las “princesas de verdade”. Assim, uma das lições que
emerge quando analisamos ambas as “escolas” é a seguinte: a aparência é o que vale. Em prol
da beleza, as aspirantes a miss (e as aspirantes à “realeza”), mesmo que tenha uma cabeleira
sem sinais de envelhecimento (quase impossível na infância) e farta, são aconselhadas a
colocar uma extensão; a boca da menina “princesa-miss” deve ter lábios carnudos e sensuais
(e, para disfarçar um lábio fino, por exemplo, as meninas recorrem ao lápis de contorno de
boca. Este serve para redesenhar os lábios além do seu formato natural, ampliando-os). Os
dentes precisam estar extremamente alvos, além daquilo que a genética permitiu (e, por isso,
na semana anterior ao concurso, se recomenda fazer um clareamento e, ainda corrigir
pequenas deformidades (alinhamento, preenchimentos de espaços por mais pequeninos que
sejam, próteses móveis para serem usadas em momentos estratégicos [avaliação do corpo de
jurados, fotos, gravações de clipes], pois é impossível uma criança conseguir conversar ou se
alimentar com uma prótese dentária, entre diversas outras estratégias e técnicas.
A menina “princesa-miss” preocupa-se intensamente com sua imagem e a vaidade é
um assunto permanente nas aulas. Algumas meninas aprendem a confeccionar pulseiras,
brincos, a se pentearem e se maquiarem, a usarem roupas delicadas e com cores tidas como
adequadas (branco, rosa). A elas, de acordo com uma administradora de uma das franquias da
Escola de Princesas, são passados ensinamentos de que para ser uma “princesa de verdade”
precisam resgatar valores passados de avós para as mães e abandonarem a “vulgaridade”
atual.
Guizzo (2005), ao se referir à infância, afirma que
através dessa preocupação com a aparência que cresce aceleradamente entre
as crianças, percebe-se o quanto está havendo transformação e/ou
reconfiguração no entendimento de infância. Se antes as crianças deixavam
que seus/suas responsáveis tomassem conta de seus visuais, na
contemporaneidade, várias delas provavelmente por se mostrarem mais
independentes e vaidosas, querem poder escolher o tipo de corte e a cor dos
cabelos, as roupas que vão vestir e os acessórios que vão usar. E com isso
dão margem para que os diferentes mercados que se voltam para elas
cresçam ainda mais, produzindo uma variedade e uma abundância de
produtos, mercadorias e serviços para tentar saciar a vontade e o desejo de
consumir que já, de forma ampla, existe entre tal faixa etária (p. 44).
O entendimento de que não se nasce belo radicaliza-se, de certa forma, nos concursos
infantis de beleza e na Escola de Princesas – e as noções de corpo-projeto (projeto de vida,
inclusive, árdua e perpetuamente sofrendo alterações, ajustes, “melhorias”, redesenhos etc.) e
de corpo-performance adquirem centralidade. Tais eventos atuam de forma pedagógica, pois
os vemos ensinando a suas participantes sobre a importância de se ter um corpo magro,
bronzeado, ajustado, engessado e formatado para miss e/ou princesa (o que envolve a postura,
o jeito de caminhar, a forma de sorrir e de expressar sentimentos e simpatia etc.). Dessa
forma, tanto as meninas princesas quanto as meninas misses são sujeitas a performances
corporais e passam a considerar “natural” embelezar/fabricar um corpo para atingirem a tão
sonhada identidade de miss ou de “princesa de verdade”. Enfim, “aprendem que para serem
desejadas, amadas, valorizadas, precisam se comportar de determinada forma” (FELIPE,
2014, p. 31).
Referências
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