liÇÕes dos concursos infantis de beleza e da escola de ... · você não se torna uma princesa...

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LIÇÕES DOS CONCURSOS INFANTIS DE BELEZA E DA ESCOLA DE PRINCESAS Antonio Jorge Ferreira Knupp Daniela Ripoll Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade Luterana do Brasil Introdução Você não se torna uma Princesa simplesmente vestindo um vestido extravagante e uma tiara brilhante. Ser uma Princesa de verdade é ter a confiança para ser a melhor versão de si mesma. Acreditamos firmemente que todas as mulheres são princesas e que podemos aprender a aplicar os atributos de caráter e comportamento de Princesa em tudo o que fazemos na vida. A ESCOLA DE PRINCESAS é um projeto criado para levar ao coração de meninas, valores e princípios morais e sociais que as ajudarão a conduzir sua vida com sabedoria e discernimento. É sobre tratar a todos com bondade e generosidade, ter valores e princípios imutáveis independentes de modismos, assim como acreditar apaixonadamente em si mesma e em seus sonhos. A ESCOLA DE PRINCESAS não é somente um curso de etiqueta ou uma escola de comportamento. Nós acreditamos na construção de um caráter sólido e incorruptível, resgatando os valores éticos e morais, na civilidade básica e queremos incorporar este pensamento (esta convicção) em nossos programas. A cada lição, as meninas são encorajadas a aproveitar as qualidades positivas do caráter e do comportamento de Princesas tanto reais quanto fictícias, bem como históricas ou modernas e aplicá-las em sua vida. A Missão da Escola é oferecer serviços de excelência que propiciem experiências de natureza intelectual, comportamental e vivencial do dia a dia da realeza, para meninas com idade entre 4 e 15 anos que sonham em se tornar princesas e fazê-las resgatar a essência feminina que existe em seus corações (ESCOLA DE PRINCESAS, SITE 1 , 2017). A Escola de Princesas, de acordo com sua idealizadora, tem como objetivo transmitir valores e princípios morais e sociais, comportamentos, postura e etiquetas a meninas com idades variando entre quatro e quinze anos de idade. Criada na cidade de Uberlândia, Minas Gerais, no ano de 2013, hoje já possui filiais em Uberaba, Belo Horizonte, São Paulo, Cuiabá, 1 Todas as informações sobre o site Escola de Princesas foram obtidas do site http://escoladeprincesas.net/ws/ em 20 maio 2017.

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LIÇÕES DOS CONCURSOS INFANTIS DE BELEZA E DA ESCOLA DE

PRINCESAS

Antonio Jorge Ferreira Knupp

Daniela Ripoll

Programa de Pós-Graduação em Educação

Universidade Luterana do Brasil

Introdução

Você não se torna uma Princesa simplesmente vestindo um vestido

extravagante e uma tiara brilhante. Ser uma Princesa de verdade é ter a

confiança para ser a melhor versão de si mesma. Acreditamos firmemente

que todas as mulheres são princesas e que podemos aprender a aplicar os

atributos de caráter e comportamento de Princesa em tudo o que fazemos na

vida.

A ESCOLA DE PRINCESAS é um projeto criado para levar ao coração de

meninas, valores e princípios morais e sociais que as ajudarão a conduzir sua

vida com sabedoria e discernimento. É sobre tratar a todos com bondade e

generosidade, ter valores e princípios imutáveis independentes de modismos,

assim como acreditar apaixonadamente em si mesma e em seus sonhos.

A ESCOLA DE PRINCESAS não é somente um curso de etiqueta ou uma

escola de comportamento. Nós acreditamos na construção de um caráter

sólido e incorruptível, resgatando os valores éticos e morais, na civilidade

básica e queremos incorporar este pensamento (esta convicção) em nossos

programas. A cada lição, as meninas são encorajadas a aproveitar as

qualidades positivas do caráter e do comportamento de Princesas – tanto

reais quanto fictícias, bem como históricas ou modernas – e aplicá-las em

sua vida.

A Missão da Escola é oferecer serviços de excelência que propiciem

experiências de natureza intelectual, comportamental e vivencial do dia a dia

da realeza, para meninas com idade entre 4 e 15 anos que sonham em se

tornar princesas e fazê-las resgatar a essência feminina que existe em seus

corações (ESCOLA DE PRINCESAS, SITE1, 2017).

A Escola de Princesas, de acordo com sua idealizadora, tem como objetivo transmitir

valores e princípios morais e sociais, comportamentos, postura e etiquetas a meninas com

idades variando entre quatro e quinze anos de idade. Criada na cidade de Uberlândia, Minas

Gerais, no ano de 2013, hoje já possui filiais em Uberaba, Belo Horizonte, São Paulo, Cuiabá,

1 Todas as informações sobre o site Escola de Princesas foram obtidas do site http://escoladeprincesas.net/ws/ em

20 maio 2017.

Rio de Janeiro, Manaus e com perspectivas de se projetar para outras cidades, estados e o

exterior. Trata-se de uma escola cujos clientes “são pessoas da classe A, B e C que desejam

que suas filhas, netas, enteadas e afilhadas aprendam princípios e valores pessoais como

cordialidade, gentileza e honestidade, além de realizar os sonhos dessas pequenas mocinhas

de viverem a experiência de uma vida de princesa” (ESCOLA DE PRINCESAS, SITE, 2017).

Apesar de não ter sido criada para atender especificamente as participantes de

concursos infantis de beleza, é possível observar muitas semelhanças entre essa “escola” e as

competições de beleza; é possível, também, pensar que se trata, na verdade, de uma escola de

treinamento para os concursos de beleza. Neste artigo, pretendemos traçar um paralelo entre a

Escola de Princesas e os concursos infantis de beleza (que produzem, com suas coroas e

troféus, as chamadas “princesas e rainhas da beleza”) estudados na Dissertação de Mestrado

intitulada “Escola de pequenas misses: um estudo sobre os concursos infantis de beleza”

(KNUPP, 2015). A pesquisa situa-se no campo dos Estudos Culturais, no entrecruzamento

com os Estudos de Gênero e o estudo das culturas infantis contemporâneas. Buscamos

problematizar como as infâncias são produzidas e acionadas dentro dessas “escolas” que

ensinam o momento de falar, brincar, ouvir, enfim, transformar-se em “pequenas damas”.

Estes espaços impregnados da cultura do espetáculo e do consumismo vão construindo

sujeitos de um determinado tipo e instituindo uma série de lições: ser miss ou ser princesa

exige comportamento e postura; aparência é o que vale; há coisas certas [para dizer] e coisas

erradas [para calar]; entre tantas outras. Lições que vão ensinando essas crianças a se

produzirem e se portarem como adultas, a serem sensuais, a terem uma preocupação com a

beleza física e o corpo desde muito pequenas etc.

Na primeira seção, então, fazemos uma contextualização da Escola de Princesas. Já na

segunda seção, abordamos as Escolas de Pequenas Misses. Em seguida, pensamos sobre as

infâncias construídas nessas escolas e discutimos algumas lições aí produzidas.

A Escola de Princesas: “todo sonho de menina é tornar-se uma princesa”?

Sua filha é preciosa para você e precisa ser preparada desde já para que seu

coração seja capaz de discernir entre o certo e o errado, entre a ação que

produz algo bom e o gesto que traz constrangimentos. Desta forma

ministramos ao coração das meninas valos e princípios éticos, morais e

sociais, que a ajudarão a conduzir sua vida com sabedoria e discernimento

(ESCOLA DE PRINCESAS, SITE, 2017).

A assertiva acima presente no site oficial de um espaço denominado Escola de

Princesas busca convencer/capturar os pais de meninas e adolescentes com idade entre 4 e 15

anos da importância e necessidade de matricularem suas filhas neste lugar, uma vez que para

elas se tornarem pessoas com caráter, valores, princípios éticos etc., de acordo com essa

“escola”, só seria possível mediante os ensinamentos aí promovidos.

A Escola de Princesas (Figura 1) foi inaugurada em janeiro de 2013 e tem como

escopo, de acordo com o site oficial, “ensinar valores e princípios de caráter e

comportamento, para que meninas se tornem princesas da vida real”.

Figura (1) – “Escola de Princesas”.

Fonte: http://escoladeprincesas.net/, acessado em 20/05/2017.

Esta escola tem vários ambientes2. Um deles chama a atenção pelos detalhes em cor-

de-rosa que nos remetem ao quarto da Barbie (Figura 2) – só que não se trata de um quarto e,

sim, de um salão de beleza criado para que “as meninas pudessem ter a certeza de que eram

verdadeiras princesas”, comenta Nathália de Mesquita, apresentada no site como “professora,

psicopedagoga e idealizadora da Escola de Princesas”.

2 Como se trata de uma franquia, as filiais citadas na introdução deste artigo seguem o mesmo padrão da matriz.

Figura (2) – “Salão de Beleza” da Escola de Princesas.

Fonte: http://escoladeprincesas.net/, acessado em 20/05/2017.

De acordo com informações do site, na Escola de Princesas é possível fazer cursos

que podem durar de um a três meses. O principal curso que a Escola oferece é o “Vida de

Princesa”, com aulas de etiqueta, moda, beleza, artes, culinária etc. Este curso é divido em 12

módulos assim distribuídos: 4 a 6 anos (básico, intermediário e avançado); 7 a 9 anos (básico,

intermediário e avançado); 10 a 12 anos (básico, intermediário e avançado); 13 a 15 anos

(básico, intermediário e avançado). Cada módulo, segundo informações publicadas no site,

possui conteúdo exclusivo e cuidadosamente elaborado para o que seriam “as distintas etapas

de desenvolvimento de uma menina”. Chama a atenção, por exemplo, a menção ao conteúdo

“Relacionamentos de Princesa”, com tópicos como: “conceito de relacionamento”; “tipos e

níveis de relacionamentos: valores e princípios”; “Autoridades”; “Amigos ou parceiros?”;

“Problemas de relacionamentos”; “Competição X Cooperação”; “União” e “Semear e

Colher”. Sobre a “Etiqueta de Princesa”, os conteúdos são os seguintes: “Boas maneiras e

postura corporal”; “comportamentos externos (caráter externo da princesa) – autogoverno”;

“Etiqueta Social”; “Etiqueta à mesa (em chás, lanches, do almoço do dia a dia em família aos

jantares de gala)”; “Organização pessoal – oratória – netqueta”. Outros tópicos também

chamam a atenção em “Estética da Princesa” (que aborda higiene pessoal, esporte,

alimentação, beleza (em especial, cabelo e maquiagem) e moda (roupas e acessórios) e em

“De Princesa à Rainha” (que aborda o matrimônio em “Restaurando os valores e os

princípios morais do matrimônio”; “À espera do príncipe - como se guardar”;

“Educação/orientação sexual”; dentre outros).

Além do curso “Vida de Princesa”, é possível participar de eventos de férias que

coincidem com as datas dos calendários escolares. Entre estes eventos, destacamos o “Chá de

Princesas” e as “Férias de Princesas”. A decoração da Escola é toda inspirada nos castelos de

princesas dos contos de fadas, conforme se pode verificar na Figura 3:

Figura (3) – “Sala de chá das Princesas”.

Fonte: http://g1.globo.com/minas-gerais/triangulo-mineiro/noticia/2014/01/ex-empresaria-de-xuxa-faz-

parceria-com-escola-de-princesas-em-mg.html, acessado em 20/05/2017.

Em entrevista ao portal de notícias da Globo (G1), Nathália de Mesquita, afirma:

“ensinamos a arrumar a cama, lavar a louça, cozinhar, a respeitar os pais, a se maquiar e se

vestir sem ser vulgar, entre outras ações que ajudam no desenvolvimento de uma pessoa. A

intenção não é mudar a essência da pessoa e sim agregar conhecimentos” (RESENDE,

2014). E, ainda afirma que “as meninas aprendem a fazer atividades que vão desde pregar um

botão em uma roupa até como se comportar à mesa”. Além dos serviços, referidos acima,

oferecidos pela “escola”, é possível realizar festas de aniversário tematizadas nos finais de

semana.

A invenção dos concursos infantis de beleza

Segundo o site3 oficial do concurso Our Little Miss (Figura 4), a modelo e jogadora de

basquete norte-americana Marge Hannaman (1924-2006) foi a idealizadora do primeiro

concurso de beleza para crianças no ano de 1962 e que existe até os dias de hoje. O evento

realizado no hotel Roosevelt, em Nova Orleans, Lousiana, de acordo com o site tinha como

objetivo “ajudar as crianças a melhorar suas vidas, serem confiantes e capazes de crescer no

mundo dos negócios” (OUR LITTLE MISS, SITE)4.

Figura (4) – Foto de abertura do site “Our Little Miss, Inc.”.

3 http://www.ourlittlemiss.com – Acesso: 18/05/2017. 4 Sempre que aparecer entre parênteses OUR LITTLE MISS, significa que as informações referidas

anteriormente foram retiradas do site oficial deste concurso.

Fonte: http://www.ourlittlemiss.com/story-of-olm.html, acessado em 18/05/2017.

A página do Our Little Miss informa que o evento é organizado pela Federação

Mundial da Juventude e tem como filosofia a participação da família através de show de

talentos, havendo, assim, uma interação entre concorrentes, familiares e organizadores. Our

Little Miss

é um símbolo de esperança para o futuro das crianças em todos os lugares.

(...) A competição é algo tão americano como a torta de maçã e a

maternidade. No entanto, a maneira de lidar com a competição varia muito.

Na Federação Mundial de Juventude, há um suave toque [de competição],

onde as discussões envolvendo o ganhar e o perder, as alegrias e as

decepções, são parte integrante do programa. Do show de talentos (ao

mesmo tempo, bobo e sério) à troca de presentes entre concorrentes de todo

o mundo, “Our Little Miss” verdadeiramente incentiva a participação

familiar e camaradagem. O verdadeiro prêmio é a experiência (OUR

LITTLE MISS, SITE, tradução própria).

A página da internet chama a atenção para o fato de que esse concurso, Our Little

Miss, não permite que crianças entre zero e doze anos usem unhas postiças (a partir dos três

anos já é permitido uso de esmalte); as meninas entre zero e nove anos podem usar sapatos

fechados e com no máximo 1,5 cm de altura; não é permitido uso de brilho no corpo e nem

bronzeamento artificial; não são aceitáveis também roupa sexy e decotes baixos (OUR

LITTLE MISS). O site do Our Little Miss, ainda, registra que a “fórmula” para o sucesso do

concurso se deve à combinação do período de férias escolares, a realização do evento em

cidades com ambientes turísticos glamorosos e, também, o fato de as meninas usarem seus

títulos de forma eficaz na conquista de comerciais televisivos e de papéis em filmes.

Neste momento acreditamos ser importante apresentar o artigo denominado Nymphet

Fantasies: Child Beauty Pageants and the Politics of Innocence (1998) de Henry A. Giroux,

um estudioso dos Estudos Culturais. Segundo este autor, desde a década de 1960 os concursos

envolvendo crianças vêm se multiplicando, e estima-se que nos Estados Unidos mais de três

mil concursos são realizados anualmente e que mais de 100 mil crianças com idade entre três

e doze anos de idade participam de competições. Para o referido autor, “concursos de beleza

infantis são lugares exemplares para se examinar criticamente como o discurso da inocência

mistifica a apropriação dos corpos infantis em uma sociedade que cada vez mais sexualiza as

crianças e as transforma em mercadorias” (p. 36). Afirma, também, que “enquanto concursos

de beleza para adultos, como o concurso anual de Miss América, têm sido alvo de enormes

quantidades de crítica feminista, poucos acadêmicos e críticos culturais concentram-se em

concursos infantis de beleza como um objeto sério de análise cultural” (GIROUX, 1998, p.

44).

Giroux (1998) argumenta que diversos pais envolvidos nos concursos de beleza não se

preocupam com as possíveis consequências negativas de vestir suas filhas com roupas

sensuais, dentes artificiais, cílios e unhas postiças e, além de tudo, deixar essas crianças

expostas perante o público de forma a sugerir uma sexualidade bem além dos anos. As ideias

de Giroux (1998) vão ao encontro das de Debert (2010) sobre a adultização precoce dessas

meninas que participam de competições de beleza e as de Harvey (2012) sobre meninas sendo

cópias perfeitas (simulacros) de mulheres seja na forma de vestir, andar, falar, se portar etc. ao

afirmar que “a maquiagem, a pose, o sorriso e os penteados das crianças de seis anos não são

diferentes das concorrentes mais velhas” (p. 44). Em seguida, o autor ainda acrescenta que “a

linha entre crianças e adultos é tênue” (p. 44). Os concursos de beleza infantis, ainda sob o

viés de Giroux (1998), mostram que

os processos de sexualização e mercantilização das crianças nos concursos

não são completamente diferentes das relações sociais que ocorrem em

outros locais em que os órgãos e partes do corpo de jovens meninas são

usados para saciar o desejo do mercado [...]. O que conecta os concursos de

beleza ao mundo da publicidade e da moda é que as meninas estão sendo

ensinadas a se tornarem pequenas mulheres, enquanto que na sociedade

adulta as mulheres estão sendo ensinadas a assumirem a identidade de

crianças abandonadas e impotentes (p. 51-52).

A revista Pageantry5 narra que não há leis que regulamentam os concursos de beleza

nos Estados Unidos e, ainda, informa que para o procurador geral do departamento de justiça

da Califórnia (EUA), “não há nenhuma lei que prescreve como um concurso deve ser

gerenciado, as regras são definidas por cada promotor do concurso”. E, no Brasil, também não

há: tanto empresas quanto pessoas físicas podem realizar um concurso de beleza. Em muitos

casos, os promotores e demais organizadores não estão preocupados com as crianças e a

qualidade do evento, preocupando-se apenas em ganhar dinheiro.

A revista Pageantry também apresenta um estudo feito pela socióloga Hilary Levey,

que realizou entrevistas com quarenta e uma mães de crianças na faixa etária de dois a seis

anos que participam, em média, de cinco concursos de beleza por ano. Ela percebeu que as

mães de baixa renda e com baixo nível de escolaridade colocam seus filhos em concursos com

o objetivo de ter ascensão social. Já as mães com rendas médias e que possuem ensino médio

explicaram à pesquisadora que seus filhos participam de concursos porque a

“concorrência/competição é necessária para o sucesso”. Giroux (1998), ao se referir às

candidatas participantes de certames de beleza, também afirma isso:

A maioria das competidoras que entra nos concursos locais é de famílias de

classe trabalhadora impulsionadas por fantasias de consumo e atraídas por

um prêmio em dinheiro de pequeno porte. Os concursos maiores e mais

caros parecem ser dominados por pais de classe média e de classe alta, [...]

que têm muito dinheiro e recursos para gastar em treinamento de voz e aulas

de dança, treinadores para concurso, trajes caros e as taxas de participação

dos desfiles (GIROUX, 1998, p. 42).

Esses eventos de beleza, inventados nos Estados Unidos e rapidamente disseminados

para os mais diversos cantos do planeta, levam os pais e as mães a exigirem de suas filhas que

elas sejam competitivas, subjetivando-as sempre a buscar pelo primeiro lugar, custe o que

custar e não importando quais os sacrifícios que terão que fazer, sejam eles físicos,

financeiros ou éticos.

A infância construída pelas/nas escolas de princesas e de pequenas misses e algumas

lições daí resultantes

5 A revista Pageantry Magazine é especializada em divulgar reportagens da cultura dos certames de beleza.

Hoje as possibilidades de representação da infância também se

ampliaram: fala-se em infância digital, em infância

desrealizada, em infância midiática, em infância adultizada, em

infância erotizada, em criança sabe-tudo, em criança-monstro

etc. (FERREIRA, 2005, p. 211).

A citação acima sugere que devemos falar de infâncias e não infância. Na atualidade,

as transformações sociais, políticas e econômicas inventam diversas possibilidades de ser

criança, ou seja, todos esses modos de ser criança são construções sociais presentes no meio

cultural em que estão inseridas. Dentro dessa lógica, as infâncias contemporâneas são

entendidas neste artigo como constructos sociais e históricos, e não simplesmente como

“fases” baseadas em entidades biológicas (STEINBERG e KINCHELOE, 2004).

Mariangela Momo (2007), em sua tese de Doutorado, afirma que não existe um jeito

certo de viver a infância e ao qual os demais jeitos devam ser ajustados: “o modo de conceber

a infância, então, varia de acordo com o tempo, o espaço, as condições culturais e sociais” (p.

115). Para essa autora, infância é “um objeto cultural que é fabricado pelos discursos, pela

mídia, pelo consumo e pelas condições culturais de pós-modernidade” (MOMO, 2007, p.

116). Existem diferentes formas de viver a infância e múltiplos modos de ser criança que

estão em constante processo de ressignificação/transformação (FELIPE e GUIZZO, 2003).

Como problematiza Walkerdine (1999), “a natureza da criança” não é descoberta, mas

produzida em regimes de verdades criados nas práticas culturais e sociais (p. 77).

Pensando na infância como objeto cultural - produzida em práticas culturais e sociais

conforme as autoras supracitadas no parágrafo anterior -, o presente artigo problematiza

algumas práticas comuns entre a Escola de Princesas e os concursos infantis de beleza (tidos,

por nós, como “escolas de pequenas misses”). Almejamos analisar as práticas presentes

nesses espaços e que vão constituindo determinados tipos de meninas e adolescentes.

Guita Grin Debert, no artigo “A dissolução da vida adulta e a juventude como valor”

(2010), apresenta as relações entre adultos e crianças em três períodos da história. Para esta

autora, na Idade Média, as crianças não eram separadas do mundo adulto. Elas participavam

da vida social e do mundo do trabalho desde muito cedo. A representação de infância, para

Debert, foi inventada ao longo dos séculos e só lentamente roupas, jogos, brincadeiras, entre

outras coisas, foram acentuando as diferenças entre crianças e adultos. Já a transição da Idade

Média para a Modernidade levou, segundo ela, à construção da ideia de adulto como um ser

“independente”, “com maturidade” e “responsabilidade”, enquanto a ideia de criança foi

sendo construída como se referindo a um ser “frágil” e “dependente”.

A referida autora ainda argumenta que “a padronização da infância, adolescência,

idade adulta e velhice pode ser pensada como resposta às mudanças econômicas, devidas,

sobretudo, à transição de uma economia que tinha como base a unidade doméstica para outra

baseada no mercado de trabalho” (DEBERT, 2010, p. 59). Debert nos mostra que o processo

de globalização e, contemporaneamente, a presença das mídias borram a separação da

infância e da vida adulta, posto que as crianças passaram a ter acesso ao que antes era

permitido apenas aos adultos. Dessa forma, houve um apagamento das fronteiras que

separavam adultos de crianças. A padronização e classificação das fases da vida (infância,

adolescência, fase adulta e velhice) de forma cronológica são características da Modernidade

e não comporta as mudanças atuais (DEBERT, 2010). Vivemos em “um tempo em que a vida

se organiza dentro do universo tecnológico, que vem modificando não apenas as formas de

pensar, como também sonhos, desejos e significados” (MOMO, 2009, p. 203-204).

Pensando nos concursos infantis de beleza, as meninas, em especial, estão cuidando de

seus corpos, se embelezando de forma sensual e muitas vezes erotizada, enfim, tornando-se

meninas-mulher. A preocupação com a produção corporal dessas meninas começa muito cedo

com hidratação, bronzeamento, depilação de sobrancelha, buço, pernas, alisamentos dos

cabelos, massagens, escovas, próteses e clareamentos dentários, maquiagens, cílios artificiais,

unhas postiças e pintadas, seios e bumbuns postiços. Todos esses recursos estéticos, antes

inimagináveis, são oriundos das representações de beleza que emergem na

contemporaneidade. Para Beck e Guizzo (2014), “é característica cultural e social (...) fortes e

maciços investimentos nos corpos com o intuito de constituí-los dentro de padrões que

reforçam sinônimos de moda e embelezamento, veiculados pelas instâncias sociais e

culturais” (p.180).

Pensando na Escola de Princesas, nos parece, em um primeiro momento, que ela está

deslocada no tempo. Sim! Como é possível, em pleno século XXI, que uma escola seja

inventada com o objetivo de ensinar meninas a arrumar a cama e o guarda-roupa, a se

portarem a mesa? Como é possível que um local como esses seja inventado – e estruturado

sob a forma de franquia – voltado para ensinar a menina a arrumar o cabelo, se maquiar,

portar-se à mesa, organizar a casa (lavar, passar, limpar) e “guardar-se” para o “príncipe

encantado”? Como pode que essa escola (e, também, os concursos de beleza) venham, a cada

dia, ganhando mais adeptos e admiradores e se espalhando, como febre, pelos mais variados

cantos do Brasil, recebendo alunas de diversos outros países conforme divulgado em diversas

reportagens midiáticas?

Para Louro (1997), quando se aborda gênero, é preciso pensar em um processo de

construção no âmbito das relações sociais, e não em proposições essencialistas, existentes a

priori. As concepções de gênero se diferenciam, não só entre as sociedades ou períodos

históricos, mas no interior de uma determinada sociedade, ao considerarmos os grupos que a

constituem. Além disso, como salientam Gomes e Miranda (2014):

Na perspectiva feminista, o corpo é uma construção política. Um conjunto de

dispositivos incide sobre as mulheres [e meninas] e seus corpos. Desde a

regulação de ciclos, passando por práticas da feminilidade – maquiagem,

cosméticos, transformação química dos cabelos, cirurgias ‘estéticas’, dietas

rigorosas, ‘cultura fitness’, moda fashion – chegando até as anorexias e

bulimias, um rigoroso e repetido controle se exerce sobre o corpo feminino

convertido aos ditames da procriação e às prescrições higienistas (p. 98).

Guizzo (2005) afirma que, “na atual conjuntura da sociedade, o conceito de gênero

ainda não é pensado de maneira plural, parece ter vigência o pensamento de que existe apenas

uma única forma de ser menino [da mesma forma que só existe uma única forma de ser

menina – grifos nossos]; aquela dotada de coragem, segurança etc. Além disso, é possível

afirmar que representações sobre meninos são bem distintas das que existem sobre meninas”

(GUIZZO, 2005, p. 44).

No caso dos certames infantis, pais, mães, promotores contratam profissionais

específicos para moldarem as pequenas aspirantes à miss e torná-las possuidoras dos

chamados “dons de miss”. Preconiza-se a formação de meninas dinâmicas, com desenvoltura,

em constante processo de reconfiguração de si mesmas. E, na Escola de Princesas, contratam-

se psicólogos, estilistas, nutricionistas, consultores de imagens, cabeleireiros, maquiadores

etc. para ensinarem as meninas e torná-las “princesas de verdade”. Assim, uma das lições que

emerge quando analisamos ambas as “escolas” é a seguinte: a aparência é o que vale. Em prol

da beleza, as aspirantes a miss (e as aspirantes à “realeza”), mesmo que tenha uma cabeleira

sem sinais de envelhecimento (quase impossível na infância) e farta, são aconselhadas a

colocar uma extensão; a boca da menina “princesa-miss” deve ter lábios carnudos e sensuais

(e, para disfarçar um lábio fino, por exemplo, as meninas recorrem ao lápis de contorno de

boca. Este serve para redesenhar os lábios além do seu formato natural, ampliando-os). Os

dentes precisam estar extremamente alvos, além daquilo que a genética permitiu (e, por isso,

na semana anterior ao concurso, se recomenda fazer um clareamento e, ainda corrigir

pequenas deformidades (alinhamento, preenchimentos de espaços por mais pequeninos que

sejam, próteses móveis para serem usadas em momentos estratégicos [avaliação do corpo de

jurados, fotos, gravações de clipes], pois é impossível uma criança conseguir conversar ou se

alimentar com uma prótese dentária, entre diversas outras estratégias e técnicas.

A menina “princesa-miss” preocupa-se intensamente com sua imagem e a vaidade é

um assunto permanente nas aulas. Algumas meninas aprendem a confeccionar pulseiras,

brincos, a se pentearem e se maquiarem, a usarem roupas delicadas e com cores tidas como

adequadas (branco, rosa). A elas, de acordo com uma administradora de uma das franquias da

Escola de Princesas, são passados ensinamentos de que para ser uma “princesa de verdade”

precisam resgatar valores passados de avós para as mães e abandonarem a “vulgaridade”

atual.

Guizzo (2005), ao se referir à infância, afirma que

através dessa preocupação com a aparência que cresce aceleradamente entre

as crianças, percebe-se o quanto está havendo transformação e/ou

reconfiguração no entendimento de infância. Se antes as crianças deixavam

que seus/suas responsáveis tomassem conta de seus visuais, na

contemporaneidade, várias delas provavelmente por se mostrarem mais

independentes e vaidosas, querem poder escolher o tipo de corte e a cor dos

cabelos, as roupas que vão vestir e os acessórios que vão usar. E com isso

dão margem para que os diferentes mercados que se voltam para elas

cresçam ainda mais, produzindo uma variedade e uma abundância de

produtos, mercadorias e serviços para tentar saciar a vontade e o desejo de

consumir que já, de forma ampla, existe entre tal faixa etária (p. 44).

O entendimento de que não se nasce belo radicaliza-se, de certa forma, nos concursos

infantis de beleza e na Escola de Princesas – e as noções de corpo-projeto (projeto de vida,

inclusive, árdua e perpetuamente sofrendo alterações, ajustes, “melhorias”, redesenhos etc.) e

de corpo-performance adquirem centralidade. Tais eventos atuam de forma pedagógica, pois

os vemos ensinando a suas participantes sobre a importância de se ter um corpo magro,

bronzeado, ajustado, engessado e formatado para miss e/ou princesa (o que envolve a postura,

o jeito de caminhar, a forma de sorrir e de expressar sentimentos e simpatia etc.). Dessa

forma, tanto as meninas princesas quanto as meninas misses são sujeitas a performances

corporais e passam a considerar “natural” embelezar/fabricar um corpo para atingirem a tão

sonhada identidade de miss ou de “princesa de verdade”. Enfim, “aprendem que para serem

desejadas, amadas, valorizadas, precisam se comportar de determinada forma” (FELIPE,

2014, p. 31).

Referências

BECK, D. Q; GUIZZO, B S. Moda e embelezamento: "borramento de fronteiras" entre mulheres e

meninas. In: Joanalira Corpes Magalhães; Paula Regina Costa Ribeiro. (Org.). Educação para a

Sexualidade - Coleção Cadernos Pedagógicos da EAD. 1 ed. Rio Grande, v. 23, p. 179-192, 2014.

DEBERT, G. G. A dissolução da vida adulta e a juventude como valor. Horizontes antropológicos,

ano 16, n. 34, p. 49-70, 2010.

ESCOLA DE PRINCESAS. Site Escola de Princesas. Disponível em: <

http://escoladeprincesas.net/ws//>. Acesso em: 20 mai. 2017.

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