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Lições da Mãe-África Uma performance desconhecida do ambientalismo africano T al apontamento está muito dis- tante de ser um arroubo de ora- tória. Basta consultar recentes relatórios da ONU referentes à Campanha para plantar 1 Bilião de Árvores, lançada em 2006 durante a Convenção do Clima da Organização das Nações Unidas, realizada em Nairobi, capital do Quénia. Esta mobi- lização, organizada para responder ao an- seio público mundial por acções concre- tas na questão das mudanças climáticas, teve o seu sucesso assegurado pela notá- vel performance de diversos países africa- nos engajados nas acções para combater o aquecimento global. Como se sabe, as florestas possuem pa- pel fundamental na regulação climática, pois absorvem dióxido de carbono, um carro-chefe dos chamados gases de efeito estufa. Combater o desmatamento é outra frente de grande importância, pois a der- rubada e queima da massa vegetal libera enormes quantidades de carbono, compe- tindo inclusive com as emissões veicula- res e das indústrias. As árvores desempe- nham um papel crucial na oferta de pro- dutos e serviços para a população rural e urbana, uma pauta que inclui comida, ma- deira, fibras, remédios e energia, sem con- tar que asseguram a fertilidade do solo, mantém as reservas de humidade e con- tribuem para conservar a biodiversidade. A Campanha para plantar 1 Bilião de Árvores, contando com apoiantes em todo o mundo, conquistou expressão peculiar no continente africano. A Etiópia, um dos Estados mais antigos do mundo, não tar- dou em responder a este chamado em de- fesa do Planeta. O país foi responsável pe- lo plantio de 700 milhões de árvores em 2006, correspondendo a 69% do total do reflorestamento mundial de 2006. A este montante se somaram em 2008 outras 687 milhões de árvores. Ao longo dos últi- mos três anos, este país, de longa história e considerado um dos berços da civiliza- ção, acumulou 1 bilião e 400 milhões de árvores plantadas. Um feito de alcance in- discutível. E não se trata apenas de um es- forço isolado dos etíopes. No Quénia, os ci- dadãos deste país plantaram 143 milhões de árvores, multiplicando o replantio, es- verdeando a paisagem, controlando a ero- são e detendo a ameaça do avanço da de- sertificação. Outros países do continente deram seu quinhão para o sucesso da empreitada. Ruanda, um pequeno país da África Equa- torial, plantou 50 milhões de árvores. A Tunísia contribuiu com 22 milhões de ár- vores. O Marrocos, com mais 20 milhões. Na África do Sul, o antigo bairro do Sowe- to, palco de duras lutas da resistência ne- gra contra o apartheid, a Campanha Green Soweto (Soweto Verde) está transforman- do regiões assoladas por tempestades de areia em avenidas cheias de árvores, cha- mando de volta a humidade, dando som- bra aos pedestres e transformando este bairro num verdadeiro oásis. Acredita-se que esta comunidade alcançou com folga a sua meta ambiciosa em plantar 1 milhão de árvores até finais de 2009. Assinale-se que mesmo países que atravessam dificul- dades internas, tais como a Somália e a Li- béria, plantaram, neste mesmo ano, dois milhões de árvores cada um. Movimento ambiental comunitário Estes feitos retratam outra interface ra- ramente conhecida do continente, a saber, a existência de um movimento ambiental de base comunitária, enraizado na tradi- ção religiosa local e com forte inserção nas camadas populares. Este ambientalismo de matiz africana tem em Ken Saro Wiwa (1941-1995), um dos seus mais notáveis expoentes. Considerado o Chico Mendes da África, Ken Saro Wiwa, tal como o am- bientalista brasileiro, ganhou notoriedade ao organizar mobilizações de cunho não- violento para deter a degradação ambien- tal promovida pela Shell na região do delta do rio Níger, sua terra natal. A adesão que conquistou para a sua campanha suscitou forte reacção da ditadura militar nigeria- na, que o julgou e o sentenciou à morte. Contudo, a morte de Ken Saro Wiwa, motivando protestos internacionais, iso- lou a Nigéria durante vários anos nos fo- ros internacionais. Outrossim, mais vivo do que nunca, Saro Wiwa continuou a ins- pirar novas gerações de nigerianos em fa- vor do equilíbrio ambiental, democracia e justiça social. Na sequuência, também poderíamos citar o biólogo congolês René Ngongo, co- nhecido defensor das florestas pluviais do seu país e Baba Dioum, veterano ambien- talista senegalês com larga participação em organizações internacionais. Ambos são expoentes de posturas rela- cionadas com a conservação da natureza, pertencendo a uma listagem passível de ampliação quando recordamos que a ques- tão ambiental não se resume aos movimen- tos ambientalistas em seu strictu sensu. Ademais, este relato não seria comple- to – e sequer faria justiça à defesa do meio ambiente africano – descartando-se da avaliação a participação feminina no am- bientalismo do continente. Nesta vertente devemos recordar a actuação de Sidibé Aminata Diallo, professora universitária e economista maliana, primeiro candidato do sexo feminino ao posto de presidente do seu país em 2007. Actuando em con- junto com países vizinhos, o seu trabalho incentivou a criação de reserva transfron- teiriça da biosfera, abrangendo trechos do Mali, Guiné-Conacry e Burkina Fasso. Ou- tro nome contemporâneo é Dudu Mphe- nyeke, liderança de proa do movimento de direitos ambientais e civis da África do Sul, conhecida pelo seu trabalho junto à população pobre urbana em prol do aces- so à água e electricidade. Já no temário das florestas, um nome relativamente desconhecido pelo público ocidental seria digno de menção. Trata-se da militante ecologista Fátima Jibrell. Nas- cida no seio de uma família de nómadas, esta activista da Somália, além de criar a Associação Feminina para a Paz e ser uma das fundadoras do Sun Fire Cooking – so- lar –, se notabilizou pela defesa das matas do seu país. Particularmente, Jibrell lan- çou uma bem sucedida campanha pela preservação das acácias, árvores centená- rias ameaçadas de desaparição devido à actuação das carvoarias. Por sua determi- nação em defesa do meio ambiente, Fáti- ma Jibrell recebeu diversos prémios inter- nacionais e apoios para seu projecto de popularização dos fornos solares, propos- ta de grande alcance numa nação que foi intensamente desmatada visando aten- der a demanda por lenha e carvão. Contudo, nestas lutas de resistência de- senvolvidas em solo africano, implicando a reivindicação por uma sustentabilidade que implicitamente questiona as tecnolo- gias usuais e, de resto, reforça instituições práticas de gestão comunitária, o desta- que cabe à queniana Wangari Maathai. Em 1977, Maathai abandonou o seu cargo de professora universitária para se voltar ao trabalho de motivar mulheres do meio ru- ral a proteger o seu meio ambiente. Esta motivação foi o cerne do Movimento da Cintura Verde do Quénia, iniciado com a plantação de não mais que 7 árvores em 5 de Junho de 1977. Após quinze anos, o tra- balho de Wangari Maathai já havia distri- buído 7 milhões de mudas, plantadas e protegidas por grupos formados por cam- ponesas em 22 distritos de todo o Quénia. Note-se que este trabalho não foi só de convencimento. Dia e noite, Maathai teve de enfrentar políticos corruptos e empre- sários interessados na destruição das flo- restas. Foi um embate no qual a activista contou com o apoio dos estudantes uni- versitários, activistas ambientais e de multidões de camponeses. Em face do sucesso da sua iniciativa, esta catedrá- tica, a primeira mulher contemplada com o título de PHD no seu país, foi laureada com o Prémio Nobel da Paz de 2004, o pri- meiro a ser concedido a uma mulher afri- cana e a um militante do meio ambiente. Detentora de uma primorosa folha de serviços em defesa das florestas,Wangari Maathai inspirou e tornou-se em 2006, juntamente com o Príncipe Alberto II do Mónaco, patrocinadora da Campanha pe- lo Plantio de 1 Bilião de Árvores. Viajando pelo mundo, a sua voz foi ouvida em deze- nas de países, motivando milhões de pes- soas a aderirirem à Campanha. A sua fala repercutiu amplamente em todo o conti- nente africano. Conforme foi registado, neste ano, apenas a Etiópia respondeu com quase 70% do plantio deste total de mudas. Até 2007, a África sozinha repre- sentou 60,4% de todo o reflorestamento mundial, contra pouco mais de 10% do to- tal plantado pela Europa, 5,6% pela Amé- rica do Norte e 24% pela América Latina. Maurício Waldman A U T 28 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 15 a 28 de Setembro de 2014 | Cultura Logo do Observatório Homem-Ambiente Ken Saro Wiwa

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Lições da Mãe-ÁfricaUma performance desconhecida do ambientalismo africanoTal apontamento está muito dis-tante de ser um arroubo de ora-tória. Basta consultar recentesrelatórios da ONU referentes à Campanhapara plantar 1 Bilião de Árvores, lançadaem 2006 durante a Convenção do Clima daOrganização das Nações Unidas, realizadaem Nairobi, capital do Quénia. Esta mobi-lização, organizada para responder ao an-seio público mundial por acções concre-tas na questão das mudanças climáticas,teve o seu sucesso assegurado pela notá-vel performance de diversos países africa-nos engajados nas acções para combater oaquecimento global.Como se sabe, as florestas possuem pa-pel fundamental na regulação climática,pois absorvem dióxido de carbono, umcarro-chefe dos chamados gases de efeitoestufa. Combater o desmatamento é outrafrente de grande importância, pois a der-rubada e queima da massa vegetal liberaenormes quantidades de carbono, compe-tindo inclusive com as emissões veicula-res e das indústrias. As árvores desempe-nham um papel crucial na oferta de pro-dutos e serviços para a população rural eurbana, uma pauta que inclui comida, ma-deira, fibras, remédios e energia, sem con-tar que asseguram a fertilidade do solo,mantém as reservas de humidade e con-tribuem para conservar a biodiversidade.A Campanha para plantar 1 Bilião deÁrvores, contando com apoiantes em todoo mundo, conquistou expressão peculiarno continente africano. A Etiópia, um dosEstados mais antigos do mundo, não tar-dou em responder a este chamado em de-fesa do Planeta. O país foi responsável pe-lo plantio de 700 milhões de árvores em2006, correspondendo a 69% do total doreflorestamento mundial de 2006. A estemontante se somaram em 2008 outras687 milhões de árvores. Ao longo dos últi-mos três anos, este país, de longa históriae considerado um dos berços da civiliza-ção, acumulou 1 bilião e 400 milhões deárvores plantadas. Um feito de alcance in-discutível. E não se trata apenas de um es-forço isolado dos etíopes. No Quénia, os ci-dadãos deste país plantaram 143 milhõesde árvores, multiplicando o replantio, es-verdeando a paisagem, controlando a ero-são e detendo a ameaça do avanço da de-sertificação.Outros países do continente deram seuquinhão para o sucesso da empreitada.Ruanda, um pequeno país da África Equa-torial, plantou 50 milhões de árvores. ATunísia contribuiu com 22 milhões de ár-vores. O Marrocos, com mais 20 milhões.Na África do Sul, o antigo bairro do Sowe-to, palco de duras lutas da resistência ne-gra contra o apartheid, a Campanha Green

Soweto (Soweto Verde) está transforman-do regiões assoladas por tempestades deareia em avenidas cheias de árvores, cha-mando de volta a humidade, dando som-bra aos pedestres e transformando estebairro num verdadeiro oásis. Acredita-seque esta comunidade alcançou com folgaa sua meta ambiciosa em plantar 1 milhãode árvores até finais de 2009. Assinale-seque mesmo países que atravessam dificul-dades internas, tais como a Somália e a Li-béria, plantaram, neste mesmo ano, doismilhões de árvores cada um.Movimento ambiental comunitárioEstes feitos retratam outra interface ra-ramente conhecida do continente, a saber,a existência de um movimento ambientalde base comunitária, enraizado na tradi-ção religiosa local e com forte inserção nascamadas populares. Este ambientalismode matiz africana tem em Ken Saro Wiwa(1941-1995), um dos seus mais notáveisexpoentes. Considerado o Chico Mendesda África, Ken Saro Wiwa, tal como o am-bientalista brasileiro, ganhou notoriedadeao organizar mobilizações de cunho não-violento para deter a degradação ambien-tal promovida pela Shell na região do deltado rio Níger, sua terra natal. A adesão que

conquistou para a sua campanha suscitouforte reacção da ditadura militar nigeria-na, que o julgou e o sentenciou à morte.Contudo, a morte de Ken Saro Wiwa,motivando protestos internacionais, iso-lou a Nigéria durante vários anos nos fo-ros internacionais. Outrossim, mais vivodo que nunca, Saro Wiwa continuou a ins-pirar novas gerações de nigerianos em fa-vor do equilíbrio ambiental, democracia ejustiça social.Na sequuência, também poderíamoscitar o biólogo congolês René Ngongo, co-nhecido defensor das florestas pluviais doseu país e Baba Dioum, veterano ambien-talista senegalês com larga participaçãoem organizações internacionais.Ambos são expoentes de posturas rela-cionadas com a conservação da natureza,pertencendo a uma listagem passível deampliação quando recordamos que a ques-tão ambiental não se resume aos movimen-tos ambientalistas em seu strictu sensu.Ademais, este relato não seria comple-to – e sequer faria justiça à defesa do meioambiente africano – descartando-se daavaliação a participação feminina no am-bientalismo do continente. Nesta vertentedevemos recordar a actuação de SidibéAminata Diallo, professora universitária eeconomista maliana, primeiro candidatodo sexo feminino ao posto de presidentedo seu país em 2007. Actuando em con-junto com países vizinhos, o seu trabalhoincentivou a criação de reserva transfron-teiriça da biosfera, abrangendo trechos doMali, Guiné-Conacry e Burkina Fasso. Ou-tro nome contemporâneo é Dudu Mphe-nyeke, liderança de proa do movimento dedireitos ambientais e civis da África doSul, conhecida pelo seu trabalho junto àpopulação pobre urbana em prol do aces-so à água e electricidade. Já no temário das florestas, um nomerelativamente desconhecido pelo públicoocidental seria digno de menção. Trata-seda militante ecologista Fátima Jibrell. Nas-cida no seio de uma família de nómadas,esta activista da Somália, além de criar aAssociação Feminina para a Paz e ser umadas fundadoras do Sun Fire Cooking – so-lar –, se notabilizou pela defesa das matasdo seu país. Particularmente, Jibrell lan-çou uma bem sucedida campanha pelapreservação das acácias, árvores centená-rias ameaçadas de desaparição devido àactuação das carvoarias. Por sua determi-nação em defesa do meio ambiente, Fáti-ma Jibrell recebeu diversos prémios inter-nacionais e apoios para seu projecto depopularização dos fornos solares, propos-ta de grande alcance numa nação que foiintensamente desmatada visando aten-der a demanda por lenha e carvão.

Contudo, nestas lutas de resistência de-senvolvidas em solo africano, implicandoa reivindicação por uma sustentabilidadeque implicitamente questiona as tecnolo-gias usuais e, de resto, reforça instituiçõespráticas de gestão comunitária, o desta-que cabe à queniana Wangari Maathai. Em1977, Maathai abandonou o seu cargo deprofessora universitária para se voltar aotrabalho de motivar mulheres do meio ru-ral a proteger o seu meio ambiente. Estamotivação foi o cerne do Movimento daCintura Verde do Quénia, iniciado com aplantação de não mais que 7 árvores em 5de Junho de 1977. Após quinze anos, o tra-balho de Wangari Maathai já havia distri-buído 7 milhões de mudas, plantadas eprotegidas por grupos formados por cam-ponesas em 22 distritos de todo o Quénia.Note-se que este trabalho não foi só deconvencimento. Dia e noite, Maathai tevede enfrentar políticos corruptos e empre-sários interessados na destruição das flo-restas. Foi um embate no qual a activistacontou com o apoio dos estudantes uni-versitários, activistas ambientais e demultidões de camponeses. Em face dosucesso da sua iniciativa, esta catedrá-tica, a primeira mulher contemplada como título de PHD no seu país, foi laureadacom o Prémio Nobel da Paz de 2004, o pri-meiro a ser concedido a uma mulher afri-cana e a um militante do meio ambiente.Detentora de uma primorosa folha deserviços em defesa das florestas,WangariMaathai inspirou e tornou-se em 2006,juntamente com o Príncipe Alberto II doMónaco, patrocinadora da Campanha pe-lo Plantio de 1 Bilião de Árvores. Viajandopelo mundo, a sua voz foi ouvida em deze-nas de países, motivando milhões de pes-soas a aderirirem à Campanha. A sua falarepercutiu amplamente em todo o conti-nente africano. Conforme foi registado,neste ano, apenas a Etiópia respondeucom quase 70% do plantio deste total demudas. Até 2007, a África sozinha repre-sentou 60,4% de todo o reflorestamentomundial, contra pouco mais de 10% do to-tal plantado pela Europa, 5,6% pela Amé-rica do Norte e 24% pela América Latina.

Maurício Waldman

Alguns�prémiosUrso�de�Prata�no�Festival�Internacional�de�Cinema�de�Berlin�(Berlinale)�em�1993�Tanit�de�Prata�nas�Jornadas�Cinematográficas�de�Cartago

28 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 15 a 28 de Setembro de 2014 | Cultura

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DIÁLOGO INTERCULTURAL | 29Cultura | 15 a 28 de Setembro de 2014 Sete biliões de árvoresDeste modo, alavancada pela África, emtermos mundiais a meta de 1 Bilião foi ra-pidamente superada. Vitoriosa em 166países, a mobilização ampliou sucessiva-mente as suas metas para 2, 3, 4, 5 e 6 Bi-liões de Árvores. Nas vésperas da Confe-rência de 2009 sobre Mudança Climáticada ONU de Copenhaga (Dinamarca), acre-dita-se que 7 biliões de árvores, equiva-lentes a pouco mais de uma árvore porpessoa viva no Planeta, estavam planta-das em todos os continentes. Trata-se deuma vitória fenomenal na história do am-bientalismo internacional, cujo mérito seamplia quando sabemos que este resulta-do derivou em grande parte de iniciativasda sociedade civil.Nesta sequência, Maathai vislumbraoutros alvissareiros cenários no avanço-das florestas. Em data recente, agradecen-do pelo apoio prestado à campanha pelapresidente Ellen Johson Sirleaf, da Libé-ria, a ambientalista pautou uma nova mo-bilização: o Green World – Mundo Verde –voltada agora para criar um cinturão ver-de global. Um dos espaços de apoio paraeste plano seria justamente a África.Tomando por base a experiência acu-mulada no Quénia, a ideia é alastrar umvasto cordão de árvores atando a capitaldo Senegal, Dakar (no Atlântico), a Dji-bouti (no Índico), unindo o continente deuma ponta a outra. Preservando o solo, osrecursos hídricos e a biodiversidade, estamuralha verde pode garantir a sobrevi-vência de milhões de africanos, e ao mes-mo tempo, conter o alastramento do Saa-ra. A respeito dos desdobramentos dacampanha, afiançou Wangari Maathai emSetembro de 2009:"Vamos plantar ainda mais árvores para co-memorar essa realização maravilhosa, fruto daacção colectiva de pessoas de todo o planeta. Aofazer da Campanha 1 Bilião de Árvores tama-nho sucesso, os habitantes de todos os conti-nentes estão instando seus governos a real-mente começar a cuidar do planeta e encontrarunidade no combate às mudanças do cli-ma" (Declaração feita à Rádio ONU).Não menos importante, este va-lioso saldo da expansão das flores-tas é com certeza um argumentoque permite pressionar as autori-dades mundiais para aceitar re-gras mais claras para a estabiliza-ção climática. Isto significa que para-lelamente ao replantio, o desmatamen-to e as emissões de gases de-vem ser detidos e retroagi-dos, de modo a dar esteio

ao avanço das florestas. Um modo de vidasustentável, convivendo com os recursosnaturais existentes e utilizando-os na ca-pacidade de reposição dos ecossistemas –ensinamento do qual a aldeia tradicionalafricana constitui exemplo imemorial –também se coloca na ordem do dia. Nadapoderá ter efeito real se os segmentosafluentes mantiverem o seu modo de vidaperdulário, afectando o Planeta como umtodo. Como lembram os africanos, as ne-ves do monte Kilimanjaro não estão derre-tendo por conta dos gases de efeito estufagerados na África, mas sim, pelas socieda-des dos países centrais.A realidade cultural do homem africanoEm termos de conclusões, tal aferiçãotambém suscita diversas outras conside-rações. Inteligivelmente, o que foi expostoaté ao presente momento é lapidar emtermos de contestar as imagens costumei-ramente endereçadas à África e aos seuspovos. Uma destas, central na desqualifi-cação não só do continente africano comodo mundo negro em geral, diz respeito auma suposta falta de iniciativa que carac-terizaria os africanos e os seus descen-dentes, tendo por sucedâneos o subde-senvolvimento e o retrocesso social. O ra-ciocínio sub-reptício é o de que nada épossível esperar de um continente grava-do pelo “atraso económico”.Seguramente, trata-se de uma percep-ção que nada mais configura do que umarecidiva do secular preconceito racial, quesubentende os povos do hemisfério nortecomo os únicos capazes de gerir os proble-mas mundiais (grande parte dos quais pro-movidos e aprofundados pelas demandasreclamadas pelo próprio modo de ser dospaíses ocidentais). Devemos esclarecerque tais invectivas são em primeiro lugarerróneas por ignorarem a realidade cultu-ral do homem africano. A África avança co-mo um trem na noite, seguindo trilhos

próprios, muito diferentes dos estipula-dos pela sociedade capitalista ocidental.Como pondera o professor KabengeleMUNANGA: “Diz-se que a economia afri-cana é um mistério, que o continente afri-cano acumula atrasos, que sua cultura seacomoda mal às regras capitalistas. Tem-se pena ao ler os relatórios internacionaisque anualmente avaliam o nível de vidaem África. É questão por toda parte de bai-xa renda per capita, do recuo da produção,da compressão da poupança, a fuga de ca-pitais, da destruição da única infra-estru-tura que o colonizador tem deixado, semesquecer os factores exógenos à economiacomo o crescimento das epidemias, o fogoda guerrilha e fome muitas vezes confun-dida com má nutrição.Todas estas calamidades já teriam feitode muitos países africanos espaços mor-tos no mundo. Se jogarmos e cruzarmosnum super computador os índices econó-micos de uma economia capitalista, pode-mos chegar à conclusão de que muitospaíses africanos já estão mortos. Ora, bas-ta aventurar-se entre o trópico de Câncere do Capricórnio para receber ao vivo arealidade de uma outra África, viva e ale-gre, onde se diz com certo humor que a si-tuação é sempre grave, mas nunca gravís-sima. Desse continente cheio de escórias,surgem pepitas humanas, cineastas, mú-sicos, desportistas e também homens emulheres que inventam dia após dia suasobrevivência, escapando dos critérioscartesianos de desenvolvimento edifica-dos pelo homem ocidental” (1997:299).Com efeito, pensando o continente combase nas metodologias lineares e alheiasao mundo vivido, próprias do pensamentoocidental, a África já deveria ter sido risca-da do mapa há tempos. Mas, em isso nãotendo ocorrido, resta a salutar reflexão arespeito dos próprios parâmetros que,equivocadamente, têm sido aplicados paraas sociedades do continente. Um exercício

intelectual que até hoje não tem sido cono-tado com a disposição que um tema cen-tral como este seria merecedor.Outra ponderação toma por base o queo economista ecológico Joan MartinezALIER (2005), define como movimento dejustiça ambiental, enraizado no cenárioafricano assim como em muitos contextosdo III Mundo. Este movimento, que pensaa questão ambiental a partir da realidadede vida dos excluídos, perfaz um ecologis-mo dos pobres, atento às premissas de sus-tentabilidade de populações altamentevulneráveis aos desequilíbrios ambientais.É esta contextualização que explica que acampanha pelo reflorestamento mundialtenha tido tamanha repercussão em seg-mentos sociais que, aos olhos de um “am-bientalismo afluente”, seriam impermeá-veis a este chamamento. Atentos às amea-ças que rondam o quotidiano, são “os debaixo” os primeiros a tomarem consciênciada necessidade de soluções concretas.Com efeito, tanto na África como nosdemais continentes, foram pessoas do po-vo as que mais abraçaram a ideia da Cam-panha. Dado incontestável, a maior parte-do trabalho foi executada por movimen-tos sociais e cidadãos anónimos. Estimu-lando o plantio de espécies nativas ade-quadas aos ambientes locais, a mobiliza-ção testemunhou participação e entusias-mo das comunidades nas diferentes áreasde operação, algo que coloca em cheque otriunfalismo do marketing ecológico devárias grandes corporações (com base emdados da ONU, o sector privado foi res-ponsável por uma pequena fracção do re-plantio, entre 6 e 15% do total). Verdadeiramente, enquanto muitospaíses falam em diminuir o recuo da flo-resta e festejam a divulgação de taxasmenores de desmatamento, muitas co-munidades africanas arregaçaram asmangas e partiram com determinaçãopara de fato enfrentar o problema,

Wangari Maathaii

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ampliando a área de florestas e não cons-trangedoramente diminuindo os desma-tes (Assinale-se que no caso do Brasil, es-ta contribuição tem sido muito aquém dassuas possibilidades. Em 2007, o país plan-tou somente 16 milhões de árvores, nú-mero largamente superado pelo coefi-ciente de desmatamento da Amazónia).Por fim, restaria admoestar aos queainda sustentam uma visão negativa sobrea África que o continente, além de não po-der ser imputado com este estigma, temainda por cima ostentado diversos marcosde empreendimentos bem-sucedidos.Angola, por exemplo, é recordista mun-dial em proporção de mulheres empresá-

rias na economia; Moçambique, junta-mente com Angola, tem sustentado cresci-mento económico na ordem de dois dígi-tos anuais; no plano cultural, a Nigériaconstitui hoje o segundo pólo de produçãocinematográfica do mundo, a Nollywood(acrónimo de Nigéria e Hollywood); paí-ses como a Libéria, hoje sob o comando dapresidenta Sirleaf, tem superado conflitosinternos ao passo que outros, como Ango-la e Moçambique, se distanciam dos con-turbados tempos do pós-colonialismo;também temos o caso da África do Sul, umpaís que integra - apesar deste processonão estar isento de contradições - a órbitadas economias mundiais emergentes.

Como podemos observar, nada dissocondiz com a imagem cuidadosamente-cultivada pelo racismo a respeito docontinente, dos seus povos e das suasculturas.Pelo contrário, a África, repudiando a im-posição de uma imagem que não lhe dizres-peito, se prontifica em participar da históriahumana a partir do que lhe é mais específi-co e singular, predisposição inseparável dacondição de um continente que jamais abdi-ca da esperança, este eterno inquilino dotempo e da memória dos homens.Esta aferição se reactualiza quando sevislumbra o potencial criativo e apredis-posição da África e dos seus filhos em

construir um futuro melhor para o con-junto da humanidade, contribuição ines-timável em momentos nos quais a capaci-dade em enfrentar desafios que ameaçamo cerne da vida no nosso Planeta, é vitalpara sua perpetuação.A África, mãe da humanidade e partei-ra da história humana, está orgulhosa-mente presente, novamente disposta a er-guer pontes que nos ligam ao futuro, umcaminho que passa directamente pelo co-ração deste magnífico continente semfim.

REFERÊNCIASALIER, Juan Martinez. El Ecologismo de Los Pobres - Conflictos Ambientales yLenguajes de Valoración. Barcelona, Espanha: Icaria-Antrazyt-Flacso, 2005;BALANDIER, Georges. África Ambígua. Buenos Aires: Sur. 1964;BROWN, Lester. Plano B 4.0 – Mobilização para Salvar a Civilização. Edição impressapatrocinada por Bradesco. São Paulo: Idéia Socioambiental e New Content. 2009;MUNANGA, Kabengele. Cultura, Identidade e Estado Nacional no Contexto dosPaíses Africanos. In A Dimensão Atlântica da África (Coletânea da IIª ReuniãoInternacional de História da África). p. 297-300. São Paulo: CEA-USP/SDGMarinha/CAPES. 1997;RÁDIO DAS NAÇÕES UNIDAS: <http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/>(Acesso: Nov. 2009);RÁDIO VOICE OF AMÉRICA: <http://www.voanews.com/english/> (Acesso: Jun.2009);SUN FIRE COOKING:<http://www.tucacas.info/sunfirecooking/SFCnewweb/index.html> (Acesso: Out.2008).WALDMAN, Maurício. Clima: Semeando Esperanças. in Jornal Diário do Grande ABC.Edição de Domingo, p. 2, 13-12-2009;A Temática Africana em Sala de Aula, artigo publicado pelo CentroCultural Africano de São Paulo. Revista África Magazine, São Paulo (SP), p. 30-31, 01set. 2009. Texto disponível on line em:<http://www.mw.pro.br/mw/mw.php?p=antrop_africa_magazine&c=a>A Redescoberta da África Texto da Conferência A Temática Africanaem Sala de Aula, proferida no encerramento do IXº Curso de Difusão CulturalIntrodução aos Estudos de África. Centro de Estudos Africanos da USP. Disponível online em:

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