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17 revista Liberdades. | Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais | nº 17 – setembro/dezembro de 2014 | ISSN 2175-5280 | Expediente | Apresentação | Entrevista | Spencer Toth Sydow entrevista Ramon Ragués | Artigos | Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal | Aury Lopes Jr. | Caio Paiva | Reflexões acerca do Direito de Execução Penal | Felipe Lima de Almeida | Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punição da Lei 11.340/2006 | Mayara de Souza Gomes | A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio por organização | Joyce Keli do Nascimento Silva | Quis, ubii, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? | Tânia Konvalina-Simas | Os problemas do Direito Penal simbólico em face dos princípios da intervenção mínima e da lesividade | André Lozano Andrade | História | Ressonâncias do Discurso de Dorado Montero no Direito Penal Brasileiro | Renato Watanabe de Morais | Resenha de Livro | Jó, vítima de seu povo: o mecanismo vitimário em “A rota antiga dos homens perversos”, de René Girard | Wilson Franck Junior | Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa | Resenhas de Filmes | A vida é notícia de jornal. Análises do contemporâneo a partir do filme “O outro lado da rua” | Laila Maria Domith Vicente | Match Point: sorte na vida ou vencer a qualquer preço? | Yuri Felix | David Leal da Silva

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17revista Liberdades.

| Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais | nº 17 – se tembro/dezembro de 2014 | ISSN 2175-5280 |

Expediente | Apresentação | Entrevista | Spencer Toth Sydow entrevista Ramon Ragués | Artigos | Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal | Aury Lopes Jr. | Caio Paiva | Reflexões acerca do Direito de Execução Penal | Felipe Lima de Almeida | Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punição da Lei 11.340/2006 | Mayara de Souza Gomes | A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio por organização | Joyce Keli do Nascimento Silva | Quis, ubii, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? | Tânia Konvalina-Simas | Os problemas do Direito Penal simbólico em face dos princípios da intervenção mínima e da lesividade | André Lozano Andrade | História | Ressonâncias do Discurso de Dorado Montero no Direito Penal Brasileiro | Renato Watanabe de Morais | Resenha de Livro | Jó, vítima de seu povo: o mecanismo vitimário em “A rota antiga dos homens perversos”, de René Girard | Wilson Franck Junior | Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa | Resenhas de Filmes | A vida é notícia de jornal. Análises do contemporâneo a partir do filme “O outro lado da rua” | Laila Maria Domith Vicente | Match Point: sorte na vida ou vencer a qualquer preço? | Yuri Felix | David Leal da Silva

INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS2Revista Liberdades - nº 17 – setembro/dezembro de 2014 I Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

expediente sumário apresentação entrevista artigos história resenha de livro

resenhas de filmes

EexpedienteDiretoria da Gestão 2013/2014

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Diretoria Executiva

Presidente:Mariângela Gama de Magalhães Gomes

1ª Vice-Presidente:Helena Lobo da Costa

2º Vice-Presidente:Cristiano Avila Maronna

1ª Secretária:Heloisa Estellita

2º Secretário:Pedro Luiz Bueno de Andrade

Suplente:Fernando da Nobrega Cunha

1º Tesoureiro:Fábio Tofic Simantob

2º Tesoureiro:Andre Pires de Andrade Kehdi

Diretora Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais:Eleonora Rangel Nacif

Conselho Consultivo

Ana Lúcia Menezes Vieira Ana Sofia Schmidt de Oliveira Diogo MalanGustavo Henrique Righi Ivahy Badaró Marta Saad

Ouvidor

Paulo Sérgio de Oliveira

Suplentes da Diretoria Executiva

Átila Pimenta Coelho Machado Cecília de Souza Santos Danyelle da Silva Galvão Fernando da Nobrega CunhaLeopoldo Stefanno G. L. Louveira Matheus Silveira PupoRenato Stanziola Vieira

Assessor da Presidência

Rafael Lira

Colégio de Antigos Presidentes e Diretores

Presidente: Marta Saad

Membros: Alberto Silva Franco Alberto Zacharias Toron Carlos Vico MañasLuiz Flávio GomesMarco Antonio R. NahumMaurício Zanoide de Moraes Roberto PodvalSérgio Mazina Martins Sérgio Salomão Shecaira

INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS3Revista Liberdades - nº 17 – setembro/dezembro de 2014 I Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Coordenadores-Chefes dos Departamentos

Biblioteca: Ana Elisa Liberatore S. BecharaBoletim: Rogério FernandoTaffarelloComunicação e Marketing: Cristiano Avila MaronnaConvênios: José Carlos Abissamra FilhoCursos: Paula Lima Hyppolito OliveiraEstudos e Projetos Legislativos: Leandro SarcedoIniciação Científica: Bruno Salles Pereira RibeiroMesas de Estudos e Debates: Andrea Cristina D’AngeloMonografias: Fernanda Regina VilaresNúcleo de Pesquisas: Bruna AngottiRelações Internacionais: Marina Pinhão Coelho AraújoRevista Brasileira de Ciências Criminais: Heloisa EstellitaRevista Liberdades: Alexis Couto de Brito

Presidentes dos Grupos de Trabalho

Amicus Curiae: Thiago BottinoCódigo Penal: Renato de Mello Jorge Silveira CooperaçãoJurídica Internacional: Antenor Madruga Direito Penal Econômico: Pierpaolo Cruz BottiniEstudo sobre o Habeas Corpus: Pedro Luiz Bueno de AndradeJustiça e Segurança: Alessandra TeixeiraPolítica Nacional de Drogas: Sérgio Salomão ShecairaSistema Prisional: Fernanda Emy Matsuda

Presidentes das Comissões Organizadoras

18º Concurso de Monografias de Ciências Criminais: Fernanda Regina Vilares20º Seminário Internacional: Sérgio Salomão Shecaira

Comissão Especial IBCCRIM – Coimbra

Presidente:Ana Lúcia Menezes VieiraSecretário-geral:Rafael Lira

Coordenador-chefe da Revista Liberdades

Alexis Couto de Brito

Coordenadores-adjuntos:Bruno Salles Pereira RibeiroFábio LoboscoHumberto Barrionuevo Fabretti João Paulo Orsini Martinelli

Roberto Luiz Corcioli Filho

Conselho Editorial: Alexis Couto de BritoCleunice Valentim Bastos Pitombo Daniel Pacheco Pontes

revista Liberdades.Fábio LoboscoGiovani Agostini SaavedraHumberto Barrionuevo FabrettiJosé Danilo Tavares LobatoJoão Paulo Orsini Martinelli João Paulo SangionLuciano Anderson de Souza Paulo César Busato

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Eexpediente ........................................................................................................................2

Apresentação ...................................................................................................................6

Entrevista

Spencer Toth Sydow entrevista Ramon Ragués ....................................................................................8

Artigos

Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal ................................................................................11

Aury Lopes Jr. e Caio Paiva

Reflexões acerca do Direito de Execução Penal .................................................................................24

Felipe Lima de Almeida

Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punição da Lei 11.340/2006 .........50

Mayara de Souza Gomes

A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio por organização .................69

Joyce Keli do Nascimento Silva

Quis, ubii, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? ..............................................................................85

Tânia Konvalina-Simas

INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS5Revista Liberdades - nº 17 – setembro/dezembro de 2014 I Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

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resenhas de filmes

Os problemas do Direito Penal simbólico em face dos princípios da intervenção mínima e da lesividade ....................................................................................................99

André Lozano Andrade

História

Ressonâncias do discurso de Dorado Montero no direito penal brasileiro ........................................118

Renato Watanabe de Morais

Resenha de Livro

Jó, vítima de seu povo: o mecanismo vitimário em “A rota antiga dos homens perversos”, de René Girard .....................................................................................................141

Wilson Franck Junior e Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa

Resenhas de Filmes

A vida é notícia de jornal. Análises do contemporâneo a partir do filme “O outro lado da rua” .....149

Laila Maria Domith Vicente

Match Point: sorte na vida ou vencer a qualquer preço? ...................................................................158

Yuri Felix e David Leal da Silva

INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS6Revista Liberdades - nº 17 – setembro/dezembro de 2014 I Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

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ApresentaçãoMais uma edição da Liberdades, e mais uma vez, trabalhos notáveis.

Iniciamos com a entrevista do professor Ramón Ragués realizada pelo professor Spencer Toth Sydow, e faz considerações sobre a teoria da cegueira deliberada.

Nos artigos científicos, variadas reflexões.

No campo processual, Aury Lopes Jr. e Caio Paiva abordam o projeto de lei 554/11 e as vantagens da implementação, no Brasil, da audiência de custódia e imediata apresentação do preso ao juiz.

Em uma abordagem histórica da execução penal na legislação brasileira, Felipe Lima de Almeida disserta sobre a natureza jurídica da execução penal e as finalidades que pretende alcançar.

Passando ao direito material, sobre a tensão que existe entre a violência domestica contra a mulher e a política criminal de ultima ratio, Mayara de Souza Gomes analisa a dicotomia sugerindo uma solução que possa atender aos anseios sociais e sistêmico-penais.

Joyce Keli do Nascimento Silva parte da ação comunicativa de Habermas para analisar autoria mediata e o domínio do fato em aparatos organizados de poder.

Mudando da dogmática para a criminologia, a abordagem de Tânia Konvalina-Simas sobre a importância da profissão de criminologista no cenário jurídico-penal português oferece um entendimento acerca de uma melhor operacionalização da criminologia e sua capacidade de rendimento para os procedimentos penais

André Lozano Andrade também navega pela criminologia e pela política criminal ao discorrer sobre o direito penal simbólico e a intervenção mínima e como tais conceitos podem ser sentidos e absorvidos pelo contexto social.

A abordagem histórica nos é trazida por Renato Watanabe de Morais. O sempre atual e discutido Dorado Montero e seu correcionalismo são revisitados em busca de uma aplicação prática no campo da política de drogas.

Wilson Franck Junior e Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa nos trazem a resenha do livro “A rota antiga dos homens perversos”, do sempre crítico René Girard, que apesar de sua formação essencialmente religiosa nos traz observações muito interessantes sobre o ser humano e seus desejo de vingança.

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Por fim, Laila Maria Domith Vicente, Yuri Felix e David Leal da Silva nos trazem duas resenhas de filmes absolutamente recomendáveis. “O outro lado da Rua” interpreta a forma de ser e estar no mundo, e “Match Point” tem como tema de reflexão a competitividade, aceleração e a busca do sucesso no mundo moderno.

Como se vê, mais uma interessante edição, elaborada com a ajuda dos colaboradores, que continuam apostando e prestigiando a nossa publicação.

A todos, uma boa leitura.

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Reflexões acerca do Direito de Execução Penal

Felipe Lima de AlmeidaMestre em Direito pela UCAM/RJ.Membro do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro.Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro

Sumário: 1. Evolução histórica da Execução Penal no Brasil; 1.1 Período Colonial; 1.2 Período Imperial; 1.3 Primeira República; 1.4 Projetos e Anteprojetos; 1.5 A Lei de Execução Penal; 1.6 A Constituição da República de 1988; 2. Os Sistemas de Execução Penal; 2.1 Os sistemas de execução penal no ordenamento jurídico brasileiro; 2.2 A Lei de Execução Penal e a jurisdicionalização da execução da pena; 2.3 A natureza jurídica da Execução Penal; 3. Direito de Execução Penal: autonomia e conceito; 3.1 Autonomia; 3.2 Conceito; 4. Considerações finais; 5. Referências bibliográficas.

Resumo: Esse artigo analisa a evolução da execução penal no ordenamento jurídico brasileiro, desde os primórdios até o atual estágio, com a vigente Lei de Execução Penal e a consolidação do Direito de Execução Penal. O trabalho analisa a jurisdicionalização promovida pela Lei de Execução Penal, os sistemas e a natureza jurídica da execução da pena, assim como examina a autonomia e o conceito conferidos ao Direito de Execução Penal, com os consequentes questionamentos e diferenciações que necessitam ser feitos

Palavras-chave: Lei de Execução Penal – Jurisdicionalização da execução da pena – Direito de Execução Penal – Autonomia.

1. Evolução histórica da Execução Penal no Brasil

1.1 Período Colonial

O período colonial do Brasil (1500-1822), que ultrapassou o fim da Idade Média e o início da Modernidade, contabilizando mais de três séculos de história, com influências do Iluminismo e da Revolução Francesa, não demonstrou muito interesse com a execução das penas e o sistema penitenciário. O Brasil, na condição de colônia de Portugal, submetia-se ao ordenamento jurídico português (Ordenações do Reino).

As Ordenações Afonsinas, em cuja vigência (1447-1521) se deu a descoberta do Brasil, não tiveram qualquer influência na nova colônia. As Ordenações Manuelinas (1521-1603), igualmente, não conheceram aplicação prática, não

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passando de referência burocrática, casual e distante das práticas penais concretas em terras brasileiras. Ao contrário disso, as Ordenações Filipinas, que sucederam as Ordenações Manuelinas, afirma a doutrina, “constituíram o eixo da programação criminalizante de nossa etapa colonial tardia, sem embargo da subsistência paralela do direito penal doméstico que o escravismo necessariamente implica”.1

Nas Ordenações Filipinas as penas principais eram: de morte, corporais (em várias modalidades) e de degredo, restando a prisão como instrumento de constrangimento ao pagamento de dívidas ou de custódia do condenado que aguarda o cumprimento de sua pena.2

A vigência das Ordenações Filipinas em matéria penal, inclusive, avançou alguns anos sobre o próprio estado nacional brasileiro, até a promulgação do Código Criminal do Império em 1830, com os limites e alterações decorrentes da nova ordem constitucional e de algumas leis penais editadas naquele período.3

1.2 Período Imperial

Após a independência do Brasil (1822), o Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824, promulgou a primeira constituição brasileira. A Constituição Imperial de 1824 não previa nenhum dispositivo específico sobre execução penal, contudo, reconhecia princípios importantes como o juiz natural, a personalidade da pena; abolição das penas cruéis e a pioneira previsão da individualização da pena.4 Como afirmava Roberto Lyra, “mal se libertou do espírito medieval das Ordenações,

1 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – Teoria geral do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006. v. 1, p. 413-417.

2 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da pena e execução penal. Uma introdução crítica. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p. 218.3 No âmbito do direito privado, inúmeras disposições das Ordenações Filipinas vigeram até 1.º de janeiro de 1917, quando entrou em vigou o Código Civil.

Cf. ZAFFARONI et al. Op. cit., 2006, p. 417.4 Art. 179. “A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade,

é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. (...)” XI. “Ninguem será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na fórma por ella prescripta.(...)” XIX. “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis.” XX. “Nenhuma pena passará da pessoa do delinquente. Por tanto não haverá em caso algum confiscação de bens, nem a infamia do Réo se transmittirá

aos parentes em qualquer gráo, que seja.” XXI. “As Cadêas serão seguras, limpas, o bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos Réos, conforme suas circumstancias, e natureza dos

seus crimes”. (sic passim).

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o Brasil antecipou-se na revelação de sua sensibilidade aos então recentes clamores da consciência humana contra a ignomínia do cárcere”.5

Com o Código Criminal do Império, sancionado em 16.12.1830, em seu Título II – Das Penas (arts. 33 a 64) foram regulados alguns institutos. O referido Código trouxe, enfim, a previsão expressa da privação de liberdade como pena, ainda que envolta a uma gama de onze penas possíveis (pena de morte,6 de galés,7 prisão com trabalho,8 prisão simples,9 banimento,10 degredo,11 desterro,12 multa,13 suspensão do emprego, perda do emprego e açoites14), sem a previsão de qualquer sistema penitenciário.15

Com o passar dos anos, a pena de prisão (simples ou com trabalho) foi ganhando cada vez mais espaço como modalidade principal de punição. Por conseguinte, os estabelecimentos destinados a consecução de seus fins declarados, foram se tornando cada vez mais escassos.

5 LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1942, v. 2, p. 94.6 A pena capital era executada na forca (art. 38), depois de irrevogável a sentença, no dia seguinte ao da intimação do condenado (art. 39). Após a execução,

os corpos dos enforcados poderiam ser entregues aos seus parentes ou amigos, que não podiam enterrá-los com pompa, sob pena de prisão de um mês a um ano (art. 42).

7 A pena de galés sujeitava os réus a andarem de calceta nos pés e corrente de ferro, juntos ou separados, e a se empregarem em trabalhos públicos nas Províncias onde se perpetrou o delito (art. 44). Tal sanção era vedada às mulheres, aos menores de 21 anos e aos maiores de 60 anos, conforme art. 45 do Código Criminal.

8 A pena de prisão com trabalho obrigava ao preso trabalhar na atividade que lhe for destinada, no interior da prisão, na conformidade da decisão judicial e do regulamento da prisão (art. 46). Na hipótese de não haver prisões com as comodidades e arranjos necessários para o trabalho dos condenados, as penas de prisão com trabalho eram substituídas pela prisão simples (art. 49).

9 A pena de prisão simples implicava no recolhimento do condenado às prisões públicas, pelo tempo determinado na sentença (art. 47).10 A pena de banimento privava os condenados para sempre dos direitos de cidadão brasileiro, impedindo-os perpetuamente de habitar o território do Império

(art. 50).11 A pena de degredo obrigava o condenado a residir no exato lugar determinado pela sentença criminal, não podendo dele sair durante o tempo fixado por

esta, segundo o art. 51 do Código Criminal.12 A pena de desterro impelia o condenado a deixar o lugar do delito, não podendo entrar em sua residência ou na residência do ofendido durante o tempo

marcado na sentença, segundo o art. 52 do Código Criminal.13 “Art. 56. As multas serão recolhidas aos cofres das Camaras Municipaes; e os condemnados que, podendo, as não pagarem dentro em oito dias, sejam

recolhidos á prisão, de que não sahirão, sem que paguem.” “Art. 57. Não tendo os condemnados meios para pagar as multas, serão condemnados em tanto tempo de prisão com trabalho, quanto fôr necessario para

ganharem a importancia dellas. (sic passim).”14 Muito embora a Constituição Imperial tivesse expressamente vedado tal modalidade de pena, o Código Criminal cominava os açoites, limitados a 50 por

dia, aos escravos (art. 60). 15 Neste sentido. Cf. LYRA. Op. cit., 1942, p. 94.

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Nesse panorama punitivo, na primeira metade do século XIX, era comum a utilização como prisões, de instalações precariamente adaptadas, tais como fortalezas, ilhas, quartéis e até mesmo navios, subsistindo ainda as prisões eclesiásticas, estabelecidas especialmente em conventos.16 Neste sentido eram as críticas de Lyra: “Deve ser salientado o expressivo pronúncio da individualização que se registra no preceito da Constituição de 1824. Na realidade, porém, a promiscuidade entre os processados e condenados, maiores e menores, civis e militares, criminosos primários e habituais, políticos e comuns; a ausência de regras de disciplina, educação, higiene, trabalho e moralidade caracterizavam a Cadeia Velha, que, sob a República, serviu de sede à Câmara dos Deputados, o Aljube, antiga prisão eclesiástica, a da Ilha das Cobras, a de Santa Bárbara no morro do Castelo (o chamado ‘calabouço’), a do Arsenal de Marinha, e as das fortalezas de Santa Cruz e São João”.17

Como se pode perceber, os problemas que assolavam o sistema prisional brasileiro na primeira metade do século XIX, infelizmente, não mudaram muito em praticamente duzentos anos de história. Apesar de novos tempos, constatamos os mesmos velhos problemas.

O Código Criminal de 1830, não regulamentou nenhum outro aspecto da execução das penas, cabia a leis esparsas a regulamentação de alguns poucos institutos como o cumprimento das penas de galés, que era obrigatória, juntamente, com a pena de trabalhos forçados para os escravos, e facultativa para o condenado não escravo (neste caso aplicada de forma temporária e onde não houvesse penitenciária, como na ilha de Fernando de Noronha).18

Somente alguns anos depois, com a inauguração da Casa de Correção da Corte, em 01.08.1850 (primeira prisão propriamente “penitenciária” aberta no Brasil), foi editado o Dec. 678 de 06.07.1850 (Regulamento para a Casa de Correção do Rio de Janeiro). Este regulamento, segundo Roig, “pode ser considerado a matriz de nosso regramento carcerário, não apenas em razão de sua magnitude e extensão a outras unidades prisionais em território nacional, mas, sobretudo, por erigir um arcabouço penitenciário cujas permanências são sentidas até hoje”.19

16 Neste sentido, vale a pena conferir o estudo histórico sobre as prisões e legislações no Rio de Janeiro Colonial, Imperial e Primeira República elaborado por ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Direito e prática histórica da execução penal no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 28-101. Ver também: PAVARINI e GIAMBERARDINO. Op. cit., 2011, p. 218.

17 LYRA. Op. cit., 1942, p. 94.18 A Ilha de Fernando de Noronha não possui data precisa quanto ao início de sua utilização como Presídio, estima-se que teria sido entre o final do século

XVIII e o início do século XIX. O Regime Civil do Presídio de Fernando de Noronha teve início com a Lei de 03.10.1833, Lei Complementar à Constituição, ao Código Criminal e ao Código de Processo Criminal. Sobre a história do Presídio da Ilha de Fernando de Noronha e a Reforma Prisional no Império: Cf. COSTA, Marcos Paulo Pedrosa. “O Caos ressurgirá a ordem. Fernando de Noronha e a Reforma Prisional do Império.” São Paulo: IBCCRIM, 2009, p. 85-87. Ver também: BRITO, Alexis Couto de. Execução Penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 55-56. PAVARINI e GIAMBERARDINO. Op. cit., 2011, p. 220.

19 Certo é que o referido regulamento inspirou os demais Regulamentos Penitenciários do Império (Dec. 1.774/1856 – Regulamento da Casa de Detenção

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Posteriormente, com a abolição da escravidão em 13.05.1888 e a proclamação da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil, em 15.11.1889, foi necessário reformar o Código, adaptando-o à nova realidade social. A pena de galés foi abolida (Dec. 774, de 20.09.1890) e foi editado, em 11.10.1890, um novo Código Penal.

1.3 Primeira República

O Código Penal da República (1890), como ficou conhecido, foi o primeiro a adotar a pena de prisão efetivamente como reprimenda principal, afastando-se de certas práticas punitivas do Império, consideradas arcaicas e degradantes. O aludido Código em seu art. 43 previa as seguintes penas: a) prisão celular, como pena principal;20 b) banimento;21 c) reclusão;22 d) prisão com trabalho obrigatório;23 e) prisão disciplinar,24 além de possível interdição, multa e suspensão ou perda de emprego público.

O Código Penal de 1890 também aboliu a prisão perpétua, limitando a privação de liberdade em trinta anos (art. 44), adotou parcialmente o sistema progressivo de cumprimento de pena (apenas para as penas de prisão celular superiores a seis anos – art. 50)25 e instituiu a figura do livramento condicional (embora inserido no Código como direito de graça

instalada nas dependências da Casa de Correção; Dec. 8.386/1882 – Novo Regulamento para a Casa de Correção da Corte). ROIG. Op. cit., 2005, p. 45-59.

20 “Art. 45. A pena de prisão cellular será cumprida em estabelecimento especial com isolamento cellular e trabalho obrigatorio, observadas as seguintes regras:

a) si não exceder de um anno, com isolamento cellular pela quinta parte de sua duração; b) si exceder desse prazo, por um periodo igual a 4.ª parte da duração da pena e que não poderá exceder de dous annos; e nos periodos sucessivos, com

trabalho em commum, segregação nocturna e silencio durante o dia. (sic passim).”21 Logo proscrita pela Constituição de 1891 (art. 72, § 2.º – fica abolida a pena de galés e a de banimento).22 A pena de reclusão era cumprida em fortalezas, praças de guerra, ou estabelecimentos militares.23 A pena de prisão com trabalho era cumprida em penitenciarias agrícolas, destinadas para esse fim, ou em presídios militares.24 A pena de prisão disciplinar, destinada aos “menores até a idade de 21 anos”, era cumprida em estabelecimentos industriais especiais.25 “Art. 50. O condemnado a prisão cellular por tempo excedente de seis annos e que houver cumprido metade da pena, mostrando bom comportamento,

poderá ser transferido para alguma penitenciaria agricola, afim de ahi cumprir o restante da pena. § 1º Si não perseverar no bom comportamento, a concessão será revogada e voltará a cumprir a pena no estabelecimento de onde sahiu. § 2º Si perseverar no bom comportamento, de modo a fazer presumir emenda, poderá obter livramento condicional, comtanto que o restante da pena a

cumprir não exceda de dous annos.” (sic passim).

INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS29Revista Liberdades - nº 17 – setembro/dezembro de 2014 I Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

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– “concedido por ato do poder federal ou dos Estados” – e de cunho administrativo – “mediante proposta do chefe do estabelecimento penitenciário”).26

Certo é que o Código Penal de 1890, desde o seu surgimento, foi alvo de severas críticas da comunidade jurídica, visto que era considerado antiquado e em descompasso com as novas realidades, aquém dos anseios sociais e jurídicos da época. Segundo Nilo Batista e Zaffaroni, o desprestígio proveio de seu fracasso na programação criminalizante dos alvos sociais do sistema penal da Primeira República (imigrantes indesejáveis, anarquistas, prostitutas e cáftens etc), que precisou ser empreendida através de uma profusão de leis extravagantes,27 fracasso esse ligado diretamente a circunstancia do Código não passar de um decalque alterado do diploma anterior.28

O Código Penal da República previa, dentro da lógica dos sistemas penais do capitalismo industrial, que os vadios que violassem o “termo de tomar ocupação dentro de 15 dias” seriam recolhidos, por um a três anos, em “colônias penais que se fundarem em ilhas marítimas ou nas fronteiras do território nacional” (arts. 399, § 1.º e 400).29

De acordo com os mencionados autores, a programação criminalizante da Primeira República espelha, com evidente didática, as contradições de um sistema penal que participa decisivamente da implantação da ordem burguesa, porém traz consigo, e reluta em renunciar a ela, a cultura da intervenção corporal inerente ao escravismo.30

26 “Art. 50. O condemnado a prisão cellular por tempo excedente de seis annos e que houver cumprido metade da pena, mostrando bom comportamento, poderá ser transferido para alguma penitenciaria agricola, afim de ahi cumprir o restante da pena.

§ 1.º Si não perseverar no bom comportamento, a concessão será revogada e voltará a cumprir a pena no estabelecimento de onde sahiu. § 2.º Si perseverar no bom comportamento, de modo a fazer presumir emenda, poderá obter livramento condicional, comtanto que o restante da pena a

cumprir não exceda de dous annos.” (sic passim).27 Entre os diplomas legais, vale ressaltar: Dec. 434, de 04.07.1891 (crimes falimentares); Dec. 121, de 11.11.1892 (furto de gado); dec. 177-A, 15.09.1893

(emissão não autorizada de títulos); Lei 452 de 03.11.1897 (contrabando de bebida); Lei 496 de 01.08.1898 (criminalizava contrafacção de obra literária ou científica); Lei 1.102 de 21.11.1903 (emissão irregular de conhecimento de depósito); Lei 2.321, de 30.12.1910 (criminalização de rifas e loterias), entre dezenas de outros diplomas que ora criminalizava determinada conduta, ora aumentava a pena, estendia punibilidade, tornava inafiançável ou transformava em pública a ação penal de certo delito.

28 ZAFFARONI et al. Op. cit., 2006, p. 446.29 O dec. 145, de 11.06.1893, dispunha que a pena de prisão correcional será cumprida em colônias fundadas pela União ou pelos Estados, para a ‘reabilitação’

de ‘mendigos válidos, vagabundos ou vadios, capoeiras e desordeiros.30 ZAFFARONI et al. Op. cit., 2006 p. 456. “Se o proletariado dava os primeiros passos para organizar-se e reconhecer-se como classe, num enfrentamento

diuturno e frequentemente sangrento, os alvos desclassificados daquele sistema penal, que ousassem ultrapassar as fronteiras de seus lugares sociais, eram quase passivamente vigiados e criminalizados, e suas improvisadas estratégias de autoproteção não dispunham de eficácia muito superior às velhas orações para ‘fechar o corpo’, invocando um São Jorge algo africanizado, e ainda sob os riscos da feitiçaria, prevista em lei (art. 157 do CP 1890) e versada pela Conferência Judiciária-policial.” (Idem, p. 459).

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Consequentemente o CP/1890 acabou sendo complementado e modificado por inúmeros textos legislativos.31 O emaranhado de leis penais especiais, com ou sem alteração do texto do Código, foi se agravando, ao ponto de existirem tantos textos legais que dificultavam até mesmo a própria aplicação da lei penal, o que levou alguns autores a publicarem compilações para uso forense.

O mais completo desses trabalhos, segundo Zaffaroni e Nilo Batista, foi o “Código Penal Brasileiro, completado com as leis modificadoras em vigor”, de autoria do Desembargador do Distrito Federal Vicente Piragibe, que com paciência beneditina preservou a estrutura articulada do código, enxertando-lhe os acréscimos e alterações. Tal compilação foi oficializada como Consolidações das Leis Penais, através do Dec. 22.213 de 14.12.1932.32

1.4 – Projetos e Anteprojetos

Nesse contexto histórico, era possível verificar diferentes regulamentos para cada uma das unidades prisionais do país, muitas vezes colidentes entre si. A necessidade de uniformização do tratamento à questão carcerária, juntamente com a consolidação da autonomia cientifica do Direito Penitenciário, suscitada desde o X Congresso Penitenciário Internacional, realizado em 1930, em Praga, deflagrou a busca por uma legislação específica para a execução da pena, com inúmeros debates e proposições legislativas.33

A primeira proposição em nosso país foi o Projeto de Código Penitenciário da República, elaborado em 1933 pela 14.ª Subcomissão Legislativa, composta por Cândido Mendes de Almeida, José Gabriel de Lemos Brito e Heitor Pereira Carrilho. Este Projeto conferiu ao Brasil a condição de pioneiro na defesa da tripartição dos Códigos em matéria penal

31 A primeira alteração no código foi anterior à sua própria vigência: os artigos 205 e 206, que criminalizavam a greve, tiveram a sua redação modificada pelo Dec. 1.162 de 12.12.1890. Sobre execução penal, vale ressaltar o Dec. 16.588 de 06.09.1924 – que introduziu o sursis no Direito brasileiro; o Dec. 16.664 de 05.11.1924 – que designava galerias da Casa de Correção como prisão privativa para detenção por efeito de estado de sítio; o Dec. 16.665 de 06.11.1924 – que criou o Conselho Penitenciário e jurisdicionalizou o livramento condicional, estabelecendo regras para a concessão; o Dec. 16.751 de 31.12.1924 – instituiu o Código de Processo Penal para o Distrito Federal, abordando a execução da sentença, sursis, livramento condicional e estatística penitenciária; etc.

32 ZAFFARONI et al. Op. cit., 2006, p. 456.33 Neste sentido Cf. LYRA, Roberto. Projetos e Anteprojetos de Código Penitenciário. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1978, p. 8. Para uma análise das quatro

proposições de Códigos Penitenciários (1933 – Projeto de Cândido Mendes, Lemos Brito e Heitor Carrilho; 1957 – Anteprojeto de Oscar Stevenson; 1963 – Anteprojeto de Roberto Lyra e 1970 – Anteprojeto de Benjamin Moraes Filho) e a orientação criminológica de cada um de seus autores: Cf. ROIG, Op. cit., 2005, p. 103-124. Ver também GOULART, José Eduardo. Princípios Informadores do Direito da Execução Penal. São Paulo: RT, 1994, p. 65-71.

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(Direito Penal, Processual e Executivo). O Projeto possuía 854 artigos, divididos em 25 títulos, fortemente influenciados pela escola positiva e etiológica, com evidências positivistas e antropológicas ao longo de toda a obra.34

No ano seguinte, com a Constituição de 1934, finalmente foi definida a competência da União para legislar sobre Normas fundamentais de Regime Penitenciário (art. 5.º, XIX, c). O Projeto apresentado ao Governo em 1933 foi encaminhado para a Câmara dos Deputados em 1935 pela bancada da Paraíba, recebendo a denominação de Projeto n. 1. Com parecer favorável de 06 de maio do mesmo ano, foi publicado no Diário do Poder Legislativo em 25.02.1937. Contudo, com a competência legislativa cassada pela Polaca, Constituição de 10.11.1937 (arts. 16, XVI e 18) e o advento do Estado Novo, a discussão do Projeto foi impedida.35

Em 07.12.1940, foi publicado o Dec.-lei 2.848, que instituiu o Código Penal. Por conseguinte, o Projeto do Código Penitenciário foi abandonado, visto que possuía vários pontos que conflitavam com o novo estatuto penal. O Código Penal de 1940 trazia inovações como a atuação do judiciário na execução e o preparo técnico dos agentes administrativos ligados ao sistema.

Assim, no lugar do Código Penitenciário, surgiu o Livro IV do Código de Processo Penal de 1941 (Dec.-lei 3.689 de 03.10.1941), que passava a disciplinar pela primeira vez na legislação brasileira a execução da pena e da medida de segurança, entrando em vigor simultaneamente com o Código Penal, em 01.01.942.36

Com a Constituição Federal de 1946 (art. 5.º, XV, b), foi devolvida à União a competência para legislar sobre regime penitenciário. Dessa forma, ante a necessidade de harmonização das normas penitenciária com o Código Penal de 1940, foram apresentados diversos projetos legislativos.

Posteriormente, em 30.07.1956, o Ministro da Justiça Nereu Ramos constituiu uma Comissão para elaboração de um código penitenciário, convidando para Presidência o professor Roberto Lyra, que recusou o convite.37 Com a recusa de Lyra, os trabalhos foram conduzidos pelo Vice-presidente Oscar Penteado Stevenson.38 A Comissão era composta

34 Cf. LYRA. Op. cit., 1975, p. 179. No mesmo sentido: Cf. LYRA. Op. cit., 1978, p. 8.35 Cf. LYRA. Op. cit., 1975, p. 122-125. Cf. Item n. 02 da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal.36 Cf. BRITO. Op. cit., 2011 p. 56.37 Roberto Lyra, que alegou ter repugnância por um Código Penitenciário, afirmou: “Não era somente pela denominação, mas também pelo conteúdo.

Combato o intolerável anacronismo e tudo o que ele representa. A penitência cabe a sociedade. O convicto do velho Direito passou a ser o juiz. Por isso, não pude aceitar a convocação do Ministro Nereu Ramos. A carta com as razões da recusa de Lyra estão publicadas em: LYRA, Roberto. Direito penal normativo. Rio de Janeiro: José Konfino, 1975, p. 74-75.

38 Que justificou a ausência de Roberto Lyra com a informação que o mesmo se encontrava fora do país, exonerando-se quando de sua chegada Cf. LYRA. Op. cit., 1978, p. 129 e 200.

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ainda por Rodrigo Ulisses de Carvalho, Justino Carneiro e Aníbal Bruno, além do Padre Fernando Bastos de Ávila e do Major Victorio Caneppa. Os trabalhos foram concluídos em 28.04.1957, com a apresentação do Anteprojeto de Código Penitenciário, a segunda proposição legislativa desta natureza em nosso país. Este Anteprojeto dividia a matéria em duas partes: uma parte geral (contendo cinco títulos) e uma parte especial (contendo sete títulos).39

Entretanto, o Anteprojeto sequer foi enviado ao Congresso Nacional e o Governo contentou-se com o PL 636, apresentado em 1951, de autoria do Deputado Carvalho Neto. O PL 636 foi sancionando em 02.10.1957, transformando-se na Lei 3.274 (Normas Gerais de Regime Penitenciário).40

Em 1963, durante o Governo de João Goulart, o Ministro João Mangabeira convidou novamente Roberto Lyra para elaboração de um código das execuções penais.41 Desta vez Lyra aceitou a tarefa, elaborando uma terceira proposição, denominado por ele de Código das Execuções Penais.42 O Anteprojeto era composto de 240 artigos, dispostos em 14 capítulos, estabelecendo normas gerais do regime de cumprimento das penas e medidas de segurança, direitos e deveres do preso, assistência ao sentenciado, medidas de segurança não detentivas, assistência ao egresso, entre outras relevantes questões, impregnando a execução de humanidade, legalidade, jurisdicionalidade e responsabilidade.43

O Anteprojeto de Roberto Lyra pode ser considerado a proposição legislativa mais técnica sobre o assunto feita em nosso país. O anteprojeto previa importantes postulados como a aplicação imediata da lei penal executiva e a retroatividade para beneficiar o condenado (art. 11), aplicação da analogia (art. 12), métodos de interpretação da lei executiva (art. 13), entre outros. O autor do projeto, preocupado com a necessidade de jurisdicionalização da execução, inseriu dispositivo segundo o qual as margens do critério administrativo serão preenchidas sempre com senso da dignidade e solidariedade humanas (art. 14).44 Assim, Lyra reuniu todos os poderes em sede de execução penal no Poder Judiciário, transformando

39 Cf. LYRA. Op. cit., 1978, p. 131. Neste sentido. Cf. GOULART. Op. cit., 1994, p. 66-67.40 Cf. BRITO. Op. cit., 2011, p. 57. Sobre o Anteprojeto de Oscar Stevenson, cf. ROIG. Op. cit., 2005, p. 112-116.41 Na ocasião Lyra foi chamado também para presidir a revisão do Anteprojeto do Código Penal de Nelson Hungria e do Anteprojeto do Código de Processo

Penal de Hélio Tornaghi.42 Roberto Lyra optou pela denominação Código das Execuções Penais, visto que, segundo o autor “a penitência cabe à sociedade”. Cf. LYRA. Op. cit., 1978,

p. 200.43 Cf. LYRA. Op. cit., 1978, p. 201. Neste sentido. Cf. GOULART, Op. cit., 1994, p. 68-69. De acordo com Alexis Couto de Brito, os profundos conhecimentos

criminológicos do autor proporcionaram a elaboração de um texto coeso e renovador que, em caso de aprovação, humanizaria o tratamento prisional à altura das legislações mais modernas. Cf. BRITO. Op. cit., 2011, p. 57.

44 ... a autoridade administrativa tornou-se praticamente irresponsável. É mais influente a mudança de um diretor do que a de um Código. O rigor das penas depende do carcereiro. Ele suspende a execução e libera de fato. Seu arbítrio atua para o bem e o mal, para o nobre e o ignóbil. Favorece, prejudica, persegue contra a lei e a sentença. Que deve prevalecer numa democracia a serviço de um povo fiel à justiça e à verdade? O absolutismo dos carcereiros, a ditadura administrativa, a inconstitucionalidade dos ‘desregimes’ ou a lei e a dignidade humana? Cf. LYRA. Op. cit., 1978, p. 211.

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o juízo da execução em universal, capaz de executar as sentenças em todos os seus termos e efeitos (art. 18), com competência sobre todos os presos e internados (art. 19).45

Segundo Roig, o Anteprojeto de Lyra buscou “não apenas seguir o sentido da humanização da execução penal, mas também arrefecer o absolutismo das premissas positivistas e antropológicas, muito embora as tenha substituído por paradigmas igualmente etiológicos”.46

Com a tomada do poder pelas forças armadas, Roberto Lyra foi convocado pelo novo governo em 1964 para dar continuação aos trabalhos de revisão dos anteprojetos, momento em que pediu dispensa da comissão, solicitando que a revisão fosse feita numa “oportunidade mais propícia à reflexão, para não sobrecarregar e desviar, nesta hora, um Parlamento ressentido e emprazado”.47 Assim, o Anteprojeto foi arquivado.

A Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional 1, de 17.10.1969, manteve a competência da União para legislar sobre regime penitenciário (art. 8º, XVII, c). Logo em seguida, foi publicado o Dec.-lei 1.004, de 21.10.1969, que instituía o novo Código Penal, o chamado Código Hungria.

Em 1970, o Ministro da Justiça Alfredo Buzaid, com o objetivo de complementar a matéria do Código de Processo Penal, incumbiu a Comissão de Estudos Legislativos da tarefa de elaborar um código penitenciário. Dessa forma, no dia 29.10.1970, o Coordenador da Comissão, José Carlos Moreira Alves, encaminhou para o Ministro Buzaid o “Código de Execuções Penais” de Benjamim Moraes Filho, cuja revisão foi realizada pelos professores José Frederico Marques, José Salgado Martins e José Carlos Moreira Alves. Este quarto anteprojeto foi publicado no dia 09.11.1970.48

Ocorre que o Código Penal de 1969 teve a sua vacatio prorrogada inúmeras vezes, sendo modificado substancialmente pela Lei 6.016 de 31.12.1973 e, ao final, revogado pela Lei 6.578, de 11.10.1978. Assim, diante da necessidade de modificação da lei penal (que acabara de ser alterada profundamente na execução da pena pela Lei 6.416/1977) e a instituição de um novo código penal, o Anteprojeto de Benjamim Moraes Filho foi deixado de lado e retomou-se a iniciativa de reforma dos códigos (Penal, Processual e Executivo).49

45 De acordo com Roberto Lyra, a jurisdicionalização teria o condão de conduzir a execução penal à humanidade, à legalidade e à responsabilidade, sendo incompreensível a ausência do juiz no único momento real e concreto da jurisdição. Cf. LYRA. Op. cit., 1978, p. 212.

46 ROIG. Op. cit., 2005, p. 122.47 Segundo Roberto Lyra: O novo poder atribui-se do arbítrio que não lhe daria o mais reacionário dos Códigos. Já estava com tudo. Não precisava, pois, de

leis propriamente ditas. Prefiro para o meu anteprojeto, o descanso em paz do arquivo. LYRA. Op. cit., 1975, p. 76-77 (íntegra da carta de demissão e a respectiva resposta).

48 Item 5 da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal. Neste sentido: Cf. GOULART. Op. cit., 1994, p. 69.49 Sobre o Anteprojeto de Benjamim Moraes Filho: Cf. LYRA. Op. cit., 1978, p. 271-272; ROIG. Op. cit., 2005, p. 120-124.

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1.5 A Lei de Execução Penal

Dessa forma, por intermédio do Ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, em 1981, foi criada uma comissão (Portaria 429, de 22.07.1981), coordenada pelo professor Francisco de Assis Toledo e composta por juristas como os Professores Renê Ariel Dotti, Benjamim Moraes Filho, Miguel Reale Júnior, Rogério Lauria Tucci, Ricardo Antunes Andreucci, Sergio Marcos de Moraes Pitombo e Negi Calixto, para elaboração de um anteprojeto para a Lei de Execução Penal.

Em 1982, após a revisão por comissão integrada pelos professores Francisco de Assis Toledo, René Ariel Dotti, Jason Soares Albegaria e Ricardo Antunes Andreucci e a participação dos Professores Sérgio Marcos de Moraes Pitombo e Everardo Cunha Luna, o anteprojeto foi apresentado pela Comissão, transformando-se no PL 1.657, e encaminhado ao Congresso Nacional pelo Presidente da República em 29.06.1983, através da Mensagem 242, publicada no Diário do Congresso Nacional em 01.06.1983. Após algumas emendas na Câmara dos Deputados, tornou-se a Lei 7.210, de 11.06.1984, juntamente com a nova Parte Geral do Código Penal (Lei 7.209/1984).50

A Lei de Execução Penal – Lei 7.210/1984 encerrou um longo ciclo de esforços doutrinários e legislativos, no sentido de dotar o país de um sistema de execução penal.51 A Lei surge como resposta aos reclamos de quase a totalidade da comunidade jurídica nacional, pela revogação da Lei 3.274/1957 e a consolidação de uma execução penal jurisdicionalizada, mais humana, responsável e alinhada com o Estado de Direito, com viés abertamente voltado à finalidade de prevenção especial positiva e a harmônica integração social do condenado e do internado, como preconiza seu artigo inaugural.52

Na Lei de Execução Penal (LEP), segundo Beneti, o regramento dos direitos dos presos é pormenorizado, fiel à tese de que o preso, mesmo após a condenação, continua titular de todos os direitos que não foram atingidos pelo internamento prisional decorrente da sentença condenatória em que se impôs uma pena privativa de liberdade. Não se trata, como adverte a Exposição de Motivos, de regras meramente programáticas, mas de direitos do prisioneiro, positivados através de preceitos e sanções, indicados com clareza e precisão, a fim de se evitar a fluidez e as incertezas resultantes de textos vagos ou omissões e, ainda, caracterizando-se como direitos invioláveis, imprescritíveis e irrenunciáveis, os quais, por isso, podem ser invocados diretamente, de modo que a infringência implica excesso ou desvio reparável por intermédio de procedimento judicial (LEP, arts. 185 e 194).53

50 Item nº 185 da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal. Neste sentido: Cf. GOULART. Op. cit., 1994 p. 70-71; BRITO. Op. cit., 2011, p. 58.51 BENETI, Sidnei Agostinho. Execução Penal. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 31.52 PAVARINI e GIAMBERARDINO. Op. cit., 2011, p. 227.53 BENETI. Op. cit., 1996, p. 35.

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1.6 Constituição da República de 1988

A Constituição da República, promulgada em 05.10.1988, embora sem marcantes inovações no aspecto penal e processual penal, além de incorporar garantias usuais da legislação ordinária ao texto constitucional, proclamou expressamente postulados penais e processuais penais, que se transformam em garantias importantes na execução da pena,54 quais sejam: a individualização da pena (art. 5.º, XLVI), a proibição de penas desumanas e cruéis (art. 5.º, XLVII), a distinção de estabelecimentos penais de acordo com a natureza dos delitos, idade e o sexo do condenado (art. 5.º, XLVIII), a garantia de integridade física e moral dos presos (art. 5.º, LIX), as garantias especiais para a mãe lactente presa (art. 5.º, L), a garantia do devido processo legal (art. 5.º, LIV), a garantia do contraditório e da ampla defesa (art. 5.º, LV), a proibição de provas ilícitas (art. 5.º, LVI), a comunicação da prisão (art. 5.º, LXII), os direitos do preso a calar-se e a ter assistência jurídica e da família (art. 5.º, LXIII).55

2. Os sistemas de Execução Penal

A partir da Revolução Industrial e a expansão do capitalismo, iniciou-se um processo de “humanização” do Direito Penal,56 mormente, após a Revolução Francesa, com um aumento substancial na utilização da pena de privação de

54 BENETI. Op. cit., 1996, p. 34-35.55 Nesse sentido, necessário destacar os instrumentos internacionais de proteção às pessoas privadas de liberdade, tais como: as Regras Mínimas para o

Tratamento de Reclusos da ONU (1955); Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966); Convenção Americana de Direitos Humanos (1969); Conjunto de Princípios para a proteção de todas as pessoas submetidas a qualquer forma de detenção ou prisão (1988); Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU (Resolução 39/46, adotada pela ONU em 1984 e ratificada pelo Brasil em 1989); Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, da OEA (1985); Princípios básicos para o tratamento dos reclusos (Resolução da ONU n. 45/111, de 1990); Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra os desaparecimentos forçados (Resolução da ONU n. 47/133, de 1992); Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangkok – 2010).

56 “Historicamente o capitalismo recorreu ao sistema penal para duas operações essenciais: 1.º garantir a mão-de-obra; 2º impedir a cessação do trabalho. Para garantir a mão-de-obra, criminalizava-se o pobre que não se convertesse em trabalhador. A experiência, nos séculos XVII e XVIII, das ‘casas de trabalho’ (Workhouse, Arbeithaus), a pioneira das quais foi a rasp-huis holandesa (onde muito pau-brasil certamente foi raspado), conduziu à generalização do internamento ‘correicional’. Com a revolução industrial, o esquema jurídico ganhou feições mais nítidas: criou-se o delito de vadiagem. Para impedir a cessação do trabalho, criminalizava-se o trabalhador que se recusasse ao trabalho tal como ele ‘era’. Criou-se o delito de greve. (BATISTA, Nilo. Punidos e Mal Pagos. Violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 35). Em certo sentido, é válido afirmar que os cárceres são a imagem do mundo burguês do trabalho pensado até suas últimas conseqüências, que o ódio dos homens pelo que devem fazer com eles mesmos põe como emblema no mundo.” (ZAFFARONI et al. Op. cit., 2006, p. 395).

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liberdade, em detrimento das demais penas consideradas cruéis.57

Assim, a partir do século XIX, principalmente, a doutrina começou a se preocupar com a execução da pena de prisão, seus estabelecimentos, sua administração, organização, etc. Consequentemente foram desenvolvidos os chamados sistemas de execução penal, isto é, a forma como o estado executa e efetiva as suas próprias sentenças criminais (condenatória ou absolutória imprópria). Na literatura especializada, segundo Anabela Miranda Rodrigues, existem três sistemas de execução penal: o sistema administrativo, o sistema jurisdicional e o sistema misto.58

No sistema administrativo a pena é aplicada pelo juiz e, após o trânsito em julgado, é transferida aos órgãos administrativos encarregados da custódia do condenado para sua execução. O Estado esgota a função jurisdicional na prolatação da sentença penal condenatória, passando a execução à função administrativa.

Segundo a doutrina, o sistema administrativo tem como característica, a falta de ênfase legislativa nas garantias de execução penal e, também, a inexistência de Juízo especial de Execução da Pena, ou a redução deste à atividade administrativa, o que coloca o condenado sob o regramento de normatividade secundária, como Decretos e Regulamentos, e sob a decisão puramente do administrador do presídio, agindo, este, verdadeiramente, como o clássico “supercarcereiro”.59

Exemplos desse sistema são fornecidos pela França (com tendência à mitigação), Inglaterra, Estados Unidos e grande parte dos países da América Latina.60

Já no sistema jurisdicional, a execução da pena possui caráter eminentemente judicial, isto é, as penas e medidas de segurança são executadas/fiscalizadas pelo Poder Judiciário. A jurisdicionalização da execução da pena significa a garantia judicial de tutela efetiva, não apenas pelo aspecto do cumprimento da sentença, o que é óbvio, mas também pela existência de um controle jurisdicional sobre toda a fase de execução.

57 “O cadafalso onde o corpo do suplicado era exposto à força ritualmente manifesta do soberano, o teatro punitivo onde a representação do castigo teria sido permanentemente dada ao corpo social, são substituídos por uma grande arquitetura fechada, complexa e hierarquizada que se integra no próprio corpo do aparelho do Estado. O muro alto, não mais aquele que cerca e protege, não mais aquele que manifesta, por seu prestígio, o poder e a riqueza, mas o muro cuidadosamente trancado, intransponível num sentido e no outro, e fechado sobre o trabalho agora misterioso da punição, será bem perto e as vezes mesmo no meio das cidades do século XIX, a figura monótona, ao mesmo tempo material e simbólica, do poder de punir.” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 35. ed., Petrópolis: Vozes, 2008, p. 96)..

58 Cf. RODRIGUES, Anabela Miranda. A posição jurídica do recluso na execução da pena privativa de liberdade. Seu fundamento e âmbito. São Paulo: IBCCRIM, 2000. v. 11, p. 38-54.

59 Neste sentido: Cf. BENETI. Op. cit., 1996, p. 17. A expressão, utilizada relativamente à distorção da atuação do Juiz das Execuções Penais, é encontrada em FRANCO, Alberto Silva. Jurisdicionalização da execução penal in Temas de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 104.

60 Cf. BENETI. Op. cit., 1996, p. 17-19; FRAGOSO. Op. cit., 1980, p. 19-23.

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O sistema jurisdicional de execução penal é adotado em países como a Alemanha (com as suas particularidades),61 Itália,62 Espanha,63 Portugal64 e Polônia.65

Por fim, com uma composição híbrida, existem os sistemas mistos, também chamados de ecléticos, que possuem uma atividade complexa na execução penal, desenvolvida entrosadamente nos planos jurisdicional e administrativo. Nessa atividade participariam dois Poderes estatais: o Judiciário e o Executivo.

2.1 Os Sistemas de Execução Penal no ordenamento jurídico brasileiro

No Brasil, durante muito tempo, notadamente, por influência da doutrina italiana e francesa no início do século XX, entendeu-se que a execução da pena tinha caráter estritamente administrativo, visto que caberia a lei determinar a pena, ao juiz pronunciá-la e à administração executá-la. Dessa forma, a natureza da execução penal seria de ato de administração (natureza administrativa), uma vez que cessada a atividade do Estado-jurisdição com a sentença final, começaria a do Estado-administração com a execução penal.66

61 Na Alemanha, desde 1953, foi reconhecido o caráter de jurisdicionalidade das decisões envolvendo a concessão de livramento condicional e outras que modificam a aplicação de medidas de segurança ou de correção. Atualmente, no sistema alemão, por meio da Strafvollzugsgesetz, de 16.03.976, a execução da pena é conduzida pelo Juízo (comando jurisdicional da execução penal) e pela Promotoria (movimentação material da execução fora da atividade propriamente do Juízo). Cf. BENETI. Op. cit., 1996, p. 20-22. No mesmo sentido: JESCHECK, Hans-Heinrich. WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal: parte general. Trad. Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Editorial Comares, 2002, p. 821-822 (§72-IV).

62 Na Itália, desde o Código de 1930 (art. 144), os direitos subjetivos dos incidentes de execução são da competência do juiz de execução (art. 628 do CPP), sendo o respectivo processo provido de especiais garantias. A tutela dos interesses legítimos era confiada ao juiz de supervisão (Giudice di Sorveglianza), que provia com meras decisões administrativas, denominadas “ordens de serviço” (art. 585 do CPP), caracterizando um sistema eclético. Cf. RANIERI, Silvio. Manual de derecho penal. 2. Parte General. Trad. Jorge Guerrero Bogotá: Temis, 1975, t. p. 358-359; BATTAGLINI, Giulio. Direito Penal. Parte Geral. Tradução de Paulo José da Costa Júnior e Arminda Bergamini Miotto. São Paulo: Saraiva, 1973. v. 2, p. 665-666. Com a reforma penitenciária levada a termo pela Lei 663 de 10.10.1986, as medidas e as decisões do magistrado de vigilância adquiriram igualmente uma forma jurisdicional, eliminando assim toda possível dúvida sobre a natureza desta atividade. Cf. BENETI. Op. cit., 1996. p. 26.

63 A Espanha, com base no art. 25.2 da Constituição e pela Lei Geral Penitenciária de 1979 (LOGP: LO 1/1979, de 26 de setembro), que criou a figura do “Juiz de Vigilância”, a quem cabe fiscalizar a atividade penitenciária e garantir o direito dos presos, adotou-se o sistema jurisdicional. Cf. MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte General. 8. ed., Buenos Aires: B de F, 2008. p.740-741.

64 Em Portugal, o Dec.-lei 265 de 01.08.1979, regia a matéria relativa a execução das medidas privativas de liberdade, sendo considerado país vanguardista no movimento de reforma da execução penal, desde a Reforma Prisional de 1936. Cf. RODRIGUES. Op. cit., 2000, p. 51.

65 Na Polônia, desde 01.01.1970 existe o Código Penal Executivo, onde a intervenção judicial se estende praticamente a toda execução penal. Neste sentido: Cf. GOULART. Op. cit., 1994, p. 57-58.

66 Adotavam o sistema administrativo de execução da pena: na Itália, Chiovenda, Manzini, Catelani, entre outros; na França, Garraud, Cuche, entre outros;

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Nesse sistema, afirma Couto de Brito, o juiz apenas calculava a pena do condenado, a partir daí, a tarefa era entregue ao Estado em sua função executiva, que cuidava de executar a pena em todos os seus limites, resolvendo sobre seus incidentes (as progressões e regressões, indultos e outros benefícios eram concedidos pelo Chefe do Executivo ou diretor do estabelecimento prisional), excepcionalmente, algum incidente passava pelo Judiciário.67

Consequentemente, não havia um processo de execução penal, não havia sequer acesso à jurisdição, não sendo possível falar em processo executivo penal.68 Contudo, como ressalta Salo de Carvalho, esse entendimento puramente administrativista acabava se chocando com a imperativa necessidade de intervenção judicial nos chamados incidentes de execução, principalmente, no caso do livramento condicional (que implica na libertação do preso).69

Desta forma, a doutrina passou a defender a necessidade de um sistema misto, de concepção híbrida, com natureza administrativa e jurisdicional. Nesse sistema misto haveria duas esferas: uma administrativa, outra judiciária. Essa divisão significaria que o Estado-administração ficaria encarregado de regular o sistema penitenciário e o Estado-jurisdição de conceder/restringir os “benefícios” previstos em lei, mediante a deflagração do respectivo incidente.70

Esse entendimento acabou sendo acolhido pelo Código de Processo Penal de 1941 (Dec.-lei 3.689/1941), que dedicou um Livro inteiro à execução da pena (n. IV – arts. 668 a 779), prevendo a figura do Juiz da Execução (art. 668), a execução das penas em espécie (arts. 674 a 695), incidentes da execução como a suspensão condicional da pena e o

no Brasil: Joaquim Canuto Mendes de Almeida (ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. A contrariedade na instrução criminal. Dissertação para concurso à Livre Docência de Direito Judiciário Penal, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1937, p. 131); Fernando de Albuquerque Prado (PRADO, Fernando de Albuquerque. Estudos e questões de processo penal. São Paulo: Max Limonad, 1954, p. 163-164), Adhemar Raymundo da Silva (SILVA, Adhemar Raymundo da. Estudos de direito processual penal. Salvador: Livraria Progresso, 1957, p. 66), Hélio Tornaghi (TORNAGH, Hélio. A relação processual. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 92-96). Neste sentido: Cf. CARVALHO, Salo. Penas e garantias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 163-164 e GOULART. Op. cit., 1994, p. 55-56; BENETI. Op. cit., 1996, p. 16.

67 BRITO. Op. cit., 2011, p. 26-27. No Dec. 8.386/1882 (Regulamento da Casa de Correção do Rio de Janeiro), o art. 116 prevê expressamente que todos os benefícios gozados pelos presos são, na verdade, faculdades atribuídas ao exclusivo arbítrio do diretor, a quem compete decidir quais presos são merecedores e quando serão deferidas. Vale lembrar que o livramento condicional previsto no Código Penal de 1890, era concedido a critério do diretor do estabelecimento prisional, mediante relatório fundamentado (art. 51). O Dec. 3.647 de 1900, por sua vez, estabelecia a possibilidade de imposição de ferros “a arbítrio do diretor”, ao recluso que ameaçasse ou atentasse contra algum empregado (art. 109). Neste sentido: Cf. ROIG, A “administracionalização” da execução penal. Revista de Direito da Defensoria Pública, ano 19, n. 21, p. 271, Rio de Janeiro, Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, 2006.

68 Como afirma Salo de Carvalho, “a índole administrativa pressuporia, pois, que a execução não poderia nunca pertencer ao direito processual penal: este terminaria com o trânsito em julgado da sentença” (Cf. CARVALHO. Op. cit., 2008, p. 164).

69 Idem, ibidem.70 Essa era a posição de Eduardo Espínola Filho (ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal brasileiro anotado. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora

Rio, 1962. v. 8, p. 319-320. Nesse sentido: Cf. CARVALHO. Op. cit., 2008, p. 164.

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livramento condicional (arts. 696 a 733), institutos como a graça, indulto, anistia e reabilitação (arts. 734 a 750) e a execução das medidas de segurança (arts. 751 a 779).

Todavia, a previsão dos direitos e dos deveres do preso, a regulamentação, a organização, o sistema disciplinar, entre outras importantes questões penitenciárias foram deixadas a cargo da administração,71 distanciadas do Poder Judiciário, o que acabava gerando a inevitável discricionariedade do administrador prisional que, frequentemente, resultava em violações aos direitos e garantias fundamentais dos presos.

Segundo Grinover, nesse sistema a intervenção judicial na execução da pena era bastante reduzida, “embora fosse proclamado que a atuação do juiz devia se estender a todo o campo da execução penal, na prática essa intervenção estava limitada aos ‘incidentes da execução’ (sursis e livramento condicional), dentre os quais apenas o último ensejava, com maior frequência, um verdadeiro julgamento com alteração do título executivo”.72

A ausência de legislação específica para execução penal (uma codificação executiva completa), que assegurasse os direitos dos presos e impusesse limites ao Estado na expiação da pena, evitando, destarte, os comuns excessos, dificultava demasiadamente um sistema de execução penal legítimo e eficaz, alinhado com o estado democrático de direito.73

Daí o crescimento na doutrina, do movimento não apenas pela necessidade de uma legislação específica, mas também pela imediata de jurisdicionalização da execução penal, com a retirada do Poder Executivo e a transferência definitiva para o Poder Judiciário da competência para executar na integralidade as penas e medidas de segurança, como já ocorria em diversos países.74

71 Por intermédio do direito penitenciário, como foi o caso da Lei 3.274/1957, criada anos depois.72 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 7. ed. São Paulo: RT,

2001, p. 305. Originalmente publicado: GRINOVER, Ada Pellegrini; BUSANA, Dante. Execução penal. Mesas de processo penal. São Paulo: Max Limonad, 1987.

73 Nesse sentido era a crítica da doutrina: “É lamentável que até o momento não tenha sido promulgado um Código das Execuções Criminais, apesar dos vários projetos que já tivemos. As restrições de direitos só podem provir da lei”. Cf. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Direito dos presos. Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 31.

74 Como afirmava Fragoso: “É urgente a necessidade de um Código das Execuções Criminais, através do qual se introduza a lei do mundo da prisão, definindo a condição jurídica do preso e disciplinando seus direitos”. Cf. FRAGOSO. Op. cit., 1980 p. 44. Sobre a evolução da jurisdicionalização da execução e luta pelos direitos dos presos no plano internacional: Cf. FRAGOSO. Op. cit., 1980, p. 17-30.

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2.2 A Lei de Execução Penal e a jurisdicionalização da execução da pena

Apenas com o advento da Lei 7.210/1984 – Lei de Execução Penal, finalmente no Brasil, institucionalizou-se um modelo jurisdicional de execução penal. A Lei de Execução Penal (LEP) consolidou a ideia de uma jurisdição especializada, o Juízo da Execução Penal. De acordo com a Exposição de Motivos da LEP, o legislador procurou jurisdicionalizar a execução das penas e medidas de segurança, reconhecendo a autonomia do Direto de Execução Penal.75

Segundo a doutrina, o processo de jurisdicionalização foi previsto expressamente pela Lei de Execução Penal no art. 1.º (que fixa o conteúdo jurídico da execução penal), art. 2.º (que anuncia a jurisdição e o processo), art. 66 (que detalha a competência do juiz de execução penal) e art. 194 (que determina o procedimento judicial), que objetiva tornar eficaz o princípio da legalidade, assegurando aos reclusos seus direitos fundamentais.76

É certo que o art. 2.º da LEP não deixa dúvidas sobre o caráter eminentemente judicial que a execução penal brasileira passou a ter. A Lei 7.210/1984 disciplina um processo de execução, na conformidade da Lei de Execução Penal e do Código de Processo Penal, com a resolução de todos os incidentes e demais questões que sobrevenham à execução da pena.77

A partir da Lei 7.210/1984, com a jurisdicionalização da execução penal, o Poder Judiciário adquiriu a integral competência para conduzir o processo de execução das penas e medidas de segurança, retirando esta função do Poder Executivo. Como afirma Beneti, a Lei de Execução Penal implantou a jurisdicionalização da execução em termos absolutos, “em moldes que não havia antes, em que pesem a tradição de jurisdicionalização e a normação constante do regime do Código de Processo Penal”.78

75 Neste sentido: item 10 da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal: “Vencida a crença histórica de que o direito regulador da execução é de índole predominantemente administrativa, deve-se reconhecer, em nome de sua própria autonomia, a impossibilidade de sua inteira submissão aos domínios do Direito Penal e do Direito Processual Penal.”; item 12: “O Projeto reconhece o caráter material de muitas de suas normas. Não sendo, porém, regulamento penitenciário ou estatuto do presidiário, evoca todo o complexo de princípios e regras que delimitam e jurisdicionalizam a execução das medidas de reação criminal. A execução das penas e das medidas de segurança deixa de ser um Livro de Código de Processo para ingressar nos costumes jurídicos do País com a autonomia inerente à dignidade de um novo ramo jurídico: o Direito de Execução Penal” e item 15 “A autonomia do Direito de Execução Penal corresponde o exercício de uma jurisdição especializada, razão pela qual, no art. 2.º, se estabelece que a ‘jurisdição penal dos juízes ou tribunais da justiça ordinária, em todo o território nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade desta lei e do Código de Processo Penal’”.

76 CARVALHO, Op. cit., 2008, p. 167-168.77 BRITO, Op. cit., 2011, p. 27-28.78 BENETI, Op. cit., 1996, p. 38.

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Nesse contexto, importante destacar que o enfoque jurisdicional da execução penal é extremamente relevante do ponto de vista das garantias da defesa, visto que o condenado, nessa ótica, passa a ser titular de direitos públicos subjetivos em relação ao Estado, obrigado a prestar-lhe a tutela jurisdicional.79

2.3 A natureza jurídica da Execução Penal

Em que pese o evidente caráter jurisdicional conferido à execução das penas e medidas de segurança, é preciso reconhecer, todavia, que a Lei de Execução Penal ainda prevê a participação e a autonomia dos órgãos administrativos na prática de determinados atos, tais como: permissão para trabalho externo (art. 36), permissão de saída (art. 120), aplicação do sistema disciplinar (arts. 47 e 48), transferências de presos (prevista nos regulamentos penitenciários) etc.

Dessa forma, parcela da doutrina passou a sustentar que a execução penal possuiria uma natureza jurídica complexa80 (ou mista81), uma vez que se desenvolveria no plano jurisdicional (juízo da execução) e administrativo (demais órgãos do executivo).82

79 GRINOVER. Op. cit., 2001, p. 305. No mesmo sentido: “Essa tomada de posição metodológica, pela qual o processo de execução penal tem natureza jurisdicional (apresentando as características inerentes a tal função: a substitutividade e a atuação da vontade concreta da lei), tem consequências práticas importantíssimas. Nessa visão, o réu não pode mais ser considerado, como no procedimento administrativo representado pelo inquérito policial, mero objeto da execução: torna-se titular de posições jurídicas de vantagem, como sujeito da relação processual. E as garantias constitucionais do devido processo legal e do contraditório hão de ser-lhe amplamente asseguradas, mediante observância do direito de defesa (compreendendo a defesa técnica), do duplo grau de jurisdição, igualdade processual, etc.” (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel Teoria geral do processo. 19. ed. São Paulo: RT, 2003, p. 316).

80 “A natureza jurídica da execução penal é complexa (jurisdicional e administrativa). É jurisdicional com relação aos incidentes (processos executivos) e administrativa quando visa à integração social do condenado ou internado, à fiscalização dos presídios e institutos penais, à obtenção de pareceres técnicos e demais documentos como ficha de término de pena, guia de recolhimento etc.” (LIMA, Roberto Gomes; PERALLES, Ubiracyr. Teoria e prática da execução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 2). Este já era o entendimento de Paulo Lúcio Nogueira, que defende a natureza complexa e eclética da execução penal, sujeita não só às normas de Direito Processual e Administrativo, mas até mesmo às normas regulamentares editadas pelos órgãos administrativos. Cf: NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Comentários à Lei de Execução Penal. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 6.

81 Segundo Maurício Kuehne: “a natureza da Execução Penal é mista. Contempla normas que repercutem no Direito Penal, Processual Penal, Administrativo e de Execução propriamente dito”. Cf. KUEHNE, Maurício. Lições de execução penal. Aspectos objetivos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2012. p. 28.

82 Segundo Ada Pellegrini, “a execução penal é atividade complexa, que se desenvolve, entrosadamente, nos planos jurisdicional e administrativo. Dessa atividade participam dois Poderes estatais – o Judiciário e o Executivo –, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais e dos administrativos”. Cf. GRINOVER. Op. cit. 2001, p. 303.

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Alguns autores, todavia, alertam que embora não seja possível negar essa atividade complexa da execução penal, “não é pelo fato de não prescindir de certo rol de atividades administrativas que sua natureza se transmuda; prevalece a atividade jurisdicional, não só na solução dos incidentes da execução”. Dessa forma, “mesmo havendo um envolvimento intenso no plano administrativo, todo e qualquer incidente ocorrido na execução pode ser submetido à apreciação judicial por imperativo constitucional (art. 5.º, XXXV, da CRFB/1988)”.83

Com o devido respeito ao autor, ousamos discordar desse entendimento. Basta um mínimo de contato real com o sistema prisional, os presos e as mazelas do cárcere (duro), para saber que na prática as coisas não funcionam assim. A experiência mostra que fora do plano teórico, os princípios da legalidade e da inafastabilidade do Poder Judiciário não alcançam tão facilmente às sombrias, fétidas e superlotadas celas do sistema penitenciário brasileiro.84

Filiamos-nos ao entendimento de Salo de Carvalho, para quem a natureza mista e multiforme impõe séria avaliação no que diz respeito à tutela do condenado frente ao poder administrativo: “Se é relativamente pacífico na doutrina, após o estatuto de 1984, o direito do apenado à jurisdição, tal conteúdo material carece de eficácia na vida carcerária quando da necessidade de controle da legalidade”.

Segundo Salo, a execução está vinculada à sentença penal, constituindo lesão toda e qualquer atividade restritiva além do estabelecido pelo Estado-juiz. Assim, conclui o professor gaúcho, “o processo penal dever operar de maneira otimizada na execução, controlando os atos administrativos de forma a resguardar a dignidade e a humanidade dos apenados, pois o juízo de execução tem poderes para interferir diretamente nas relações entre a administração dos estabelecimentos penais e os detentos”.85

Certo é que a intensa atividade administrativa que ainda hoje permeia a execução da pena, notadamente, no que diz respeito ao sistema disciplinar, é nefanda e incompatível com o sistema jurisdicional e o Estado Democrático de Direito.

Por isso, concordamos com Roig quando este afirma que o “viés totalitário do sistema penitenciário continua a ser alimentado por um modelo administrativista e meritocrático que rege todo o aparato normativo em sede de execução

83 MARCÃO, Renato. Curso de execução penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 33.84 De acordo com os dados fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), relativos a junho de 2013, havia no país 574.027 presos, o que

significava um déficit de 256 mil vagas no sistema. Agora, ao se considerar também a prisão domiciliar como resultado de carência, o número de vagas faltantes sobe para 358.373. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896%7D&Team= & params=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B16-24D28407509C%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D>. Acesso em: 13.06.2014.

85 CARVALHO. Op. cit., 2008, p. 168-169. No mesmo sentido afirma Couto de Brito, que a orientação, condução e fiscalização devem ser ponderadas e determinadas pelo juiz de direito, para que se garanta a execução da pena dentro dos ditames de um Estado de Direito. (Cf. BRITO. Op. cit., 2011, p. 28).

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penal e que pretende fazer do preso um refém e do Poder Judiciário um servo”. Como afirma o autor, “a primeira implicação consiste na total submissão do preso ao exclusivo arbítrio da autoridade custodiante, que se vale da vagueza da norma para manejar utilitariamente a aplicação de sanções disciplinares, muitas vezes motivadas por desavenças pessoais, conveniência ou por necessidade de manutenção de respeito e ordem”.86

Em suma, não se pode perder de vista que a natureza jurídica da execução penal é determinada pelo sistema de execução da pena por ela adotado, no nosso caso, o sistema jurisdicional, estabelecido pela Lei de Execução Penal. Daí o alerta de Geraldo Prado, quanto a premente necessidade de se implementar um caráter jurisdicional pleno da execução, mormente, para englobar a questão das faltas graves e suas consequências,87 assegurando, desta forma, uma execução penal de acordo com os preceitos legais e constitucionais.

3. Direito de Execução Penal: autonomia e conceito

Como mencionado anteriormente, a Lei de Execução Penal ressaltou expressamente o caráter jurisdicional e a autonomia científica da Execução Penal, destacando-a do Direito Penal, Processual Penal e Administrativo. De acordo com a Exposição de Motivos da LEP (itens 10, 12 e 15), o legislador reconheceu o Direto de Execução Penal como um novo ramo do Direito, distinto do direito penitenciário e muito além de um mero capítulo no Código de Processo Penal.88

A autonomia da execução penal pode ser considerada consequência lógica da própria jurisdicionalização operada pela Lei 7.210/1984. Dessa forma, a doutrina passou a entender que o Direito Penal em sentido amplo, se apoiaria em três pilares: o Direito Penal Material, Direito Processual Penal e o Direito de Execução da Pena.89

Todavia, embora tenha havido o reconhecimento expresso da autonomia cientifica da execução penal pelo legislador, na doutrina, há quem discorde, não reconhecendo a existência de um verdadeiro processo executivo. Segundo

86 ROIG, A “administracionalização”. cit., p. 272.87 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. A conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 238. Nesse

sentido é a sóbria reflexão de Roig: “a normatização penitenciária atual, a despeito de consideráveis progressos, não logra estabelecer uma contundente ruptura paradigmática, sendo constantemente importunada pela ‘tradição’ brasileira de discricionarismo administrativo, positivismo e cientificismo etiológico. O sistema penal, assim, continua a determinar o penitenciário. A falta de reformas lúcidas e não emergenciais, capazes de adequar a legislação penitenciária aos preceitos fundamentais da Carta de 1988, impede o estabelecimento de limites racionais ao poder executivo estatal, inviabilizando por completo uma perspectiva reducionista de danos penitenciários”. Cf. ROIG. Op. cit., 2005, p. 14.

88 Vide nota 75.89 Neste sentido: Cf. GOULART. Op. cit.,1994, p. 64.

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esse posicionamento, a execução penal não constituiria uma nova relação jurídica processual, sendo, na verdade, um prolongamento da relação processual instaurada pelo processo de conhecimento, ou seja, a última fase do processo penal.90

Com o todo respeito aos renomados autores, discordamos desse entendimento. Preferimos a lição, sempre relembrada, de Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, segundo a qual a execução representaria outro processo autônomo, não consistindo fase derradeira do processo de conhecimento. Segundo o mencionado autor, “é bom recordar de que o processo penal de conhecimento volta-se para o passado, que tende a reconstruir. O processo penal de execução mira o futuro e visa prevenir infrações penais, de modo prevalente, sem esquecer o castigo medido”.91

A Exposição de Motivos da LEP também descreve a dificuldade enfrentada pelo legislador, como corolário dessa autonomia científica, para encontrar consenso na doutrina e jurisprudência, quanto à denominação empregada para definir esse novo ramo do direito relativo à execução das penas e medidas de segurança. Segundo o referido texto, alguns autores procuraram defini-lo como Direito Penal Executivo (Roberto Lyra), outros, como Direito Executivo Penal (Ítalo Luder), contudo, denominação que parecia predominar era “Direito Penitenciário”, embora essa expressão fosse mais voltada à problemática do cárcere.92

O denominado direito penitenciário, segundo Arminda Bergamini Miotto, “consiste num conjunto de normas jurídicas que regulam as relações entre o Estado e o condenado, desde que a sentença condenatória legitima a execução, até que dita execução se finde no mais amplo sentido da palavra” (conceito elaborado no III Congresso Internacional de Direito Penal, realizado em Palermo, Itália, em 1933). Como pondera a autora, essa noção é datada de 1933, quando a pena privativa de liberdade, com recolhimento a estabelecimento próprio constituía a regra sem exceção ou quase, em todo o mundo ocidental de cultura europeia ou dela derivada.93

90 Para Vicente Greco Filho existe uma única relação processual (conhecimento), que se prolonga (fase executiva). Neste sentido: Cf. GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 101. Segundo Ada Pellegrini Grinover, “a tutela tendente à efetivação da sanção penal é objeto do processo de execução, o qual guarda natureza indiscutivelmente jurisdicional e faz parte do direito processual” (Cf. GRINOVER. Op. cit., 2001, p. 303).

91 “Sob o ângulo processual, a execução consiste em modalidade de tutela jurisdicional, correspondente à atuação de órgão do Poder Judiciário, aplicando norma jurídica especificada à satisfação do poder-dever estatal de punir ou sancionar reconhecido em sentença condenatória penal” (Cf. PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Execução penal. RT, vol. 623, P. 259-260, São Paulo: RT, set. 1987.

92 Item 8 da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal: “O tema relativo à instituição de lei específica para regular a execução penal vincula-se à autonomia científica da disciplina, que em razão de sua modernidade não possui designação definitiva. Tem-se usado a denominação Direito Penitenciário, à semelhança dos penalistas franceses, embora se restrinja essa expressão à problemática do cárcere”. Outras, de sentido mais abrangente, foram propostas, como Direito Penal Executivo por Roberto Lyra (As execuções penais no Brasil. Rio de Janeiro, 1963, p. 13) e Direito Executivo Penal por Ítalo Luder (El princípio de legalidad en la ejecución de la pena. Revista del Centro de Estudios Criminológicos, Mendoza, 1968, p. 29 e ss.).

93 MIOTTO, Arminda Bergamini. Temas penitenciários. São Paulo: RT, 1992. p. 18.

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Atualmente, em pleno Estado democrático de Direito, num ordenamento jurídico garantidor de direitos fundamentais, cuja liberdade é a regra e a prisão exceção, com as inúmeras medidas descarcerizadoras como o sursis, penas restritivas de direitos, pena de multa, os aparatos de vigilância indireta da monitoração eletrônica etc., a execução penal passou a ter um espectro muito mais amplo do que outrora possuía. Por isso, define a renomada penitenciarista, o Direito Penal Executivo, mais abrangente, é considerado o conjunto de normas jurídicas que disciplinam a execução das penas aplicadas e medidas outras impostas na sentença condenatória.94

Quanto à terminologia, o legislador, ao nosso entender, empregou a definição mais técnica – Direito de Execução Penal –, conforme o item 9 da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, considerando-o como o conjunto de normas jurídicas relativas à execução das penas e medidas segurança.95

É de suma importância não confundir ou associar o direito de execução penal ao direito penitenciário, o que implicaria num grande equívoco conceitual. De acordo com a doutrina, o direito de execução penal tem maior amplitude em relação ao direito penitenciário, não podendo se confundir com este. Para Goulart, com arrimo nas lições do penitenciarista francês Stanislaw Plawski, “o direito da execução das penas, é o conjunto das normas jurídicas referente à execução de todas as penas, o direito penitenciário, por sua vez, preocupa-se unicamente com o tratamento dos presos”.96

O direito penitenciário também é autônomo, distinto do direito penal e processual penal, e representa o conjunto de normas que regulamentam a organização carcerária. Diferentemente do direito de execução penal (que possui regras de direito material e direito processual), ao direito penitenciário cabe estabelecer diretrizes administrativas com o escopo de regular o ambiente da instituição, sob o aspecto da disciplina e da segurança.97

94 Idem, ibidem, p. 20.95 Item 9: “Em nosso entendimento pode-se denominar esse ramo Direito de Execução Penal, para abrangência do conjunto das normas jurídicas relativas à

execução das penas e das medidas de segurança” (cf. CALÓN, Cuello. Derecho penal. Barcelona, 1971. v. 2, t. I, p. 773; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra, 1974. p. 37).”

96 GOULART. Op. cit, 1994, p. 53.97 Neste sentido: Cf. CARVALHO. Op. cit., 2008, p. 166. Vale observar que esta sistemática foi adotada pelo legislador constituinte ao prever as competências

legislativas. De acordo o art. 24, I, da Constituição da República de 1988, compete a União, Estados e Distrito Federal, concorrentemente, legislarem sobre direito penitenciário (considerando as próprias peculiaridades e necessidades de cada ente federativo, como ocorreu no âmbito federal com o Dec. 6.049/2009 – Regulamento Penitenciário Federal –; e ocorre no âmbito estadual e distrital, com os chamados regulamentos penitenciários). Contudo, em se tratando de direito de execução penal, ante a autonomia científica e a inteligência do inc. I do art. 22 da CRFB/1988, compete privativamente à União legislar sobre a matéria.

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4. Considerações finais

Esse trabalho buscou demonstrar, a partir de uma breve evolução histórica da execução penal em nosso país, a transformação promovida pela Lei 7.210/1984 (LEP) no ordenamento jurídico brasileiro, com a adoção do sistema jurisdicional de execução das penas e medidas de segurança, e a autonomia conferida ao Direito de Execução Penal.

Nesse estudo procuramos nos posicionar quanto à natureza eminentemente jurisdicional da execução da pena, visto que não concordamos que o atual sistema possa ser considerado complexo ou misto. Para nós, não há dúvidas que o sistema jurisdicional é absoluto, motivo pelo qual defendemos uma execução penal plenamente judicial, com a retirada de todos os atos de conteúdo decisório (e de repercussão no processo executivo do condenado) ainda existentes no âmbito da administração, e a consequente transferência para o Poder Judiciário.

Ademais, a adoção de um sistema misto implicaria qualificar os direitos decorrentes dos incidentes como meros benefícios concedidos pelo Estado ao condenado, ou seja, medidas político-criminais facultadas ao juiz (regalias domésticas), contrariando a ideia de que os incidentes da execução constituem-se como verdadeiros direitos públicos subjetivos dos apenados.98

Da mesma forma esse estudo demonstrou que a Lei de Execução Penal, como corolário da jurisdicionalização e da autonomia, previu expressamente o Juízo da Execução, verdadeira jurisdição especializada, e reconheceu um legítimo processo de execução, distinto do processo de conhecimento, conduzido pelo Judiciário dentro dos ditames do devido processo legal e todos os demais princípios constitucionais, como a ampla defesa, o contraditório, a presunção de inocência, etc. Nesse contexto, ficou claro o nosso posicionamento quanto à existência de um processo executivo autônomo, pois como alerta Couto de Brito, “posicionar-se pela ausência de um processo autônomo, é reduzir o âmbito da execução penal judicial”.99

98 CARVALHO. Op. cit., 2008, p. 165. Segundo o autor, esta estrutura formal da execução penal vigorou em nosso país até a reforma de 1984.99 BRITO. Op. cit., 2011 p. 27. Nesse ponto, é importante destacar a posição de Sidnei Beneti. Para o autor, o processo de execução penal não é mera fase

do processo penal de conhecimento, mas, ao contrário, “é novo processo, que se constitui para a praticização do título executório.”. Mas, segundo Beneti, a existência de novo processo vem também em prol da caracterização de nova ação, “a ação penal de execução, pois, do contrário, estaria aumentada a dificuldade de congruência teórica na adequação do sistema, com maiores dificuldades também práticas, pois se teria de admitir, como reconhece Vicente Greco Filho, uma única relação processual, que prosseguisse depois de esgotado seu objetivo, que era o de servir de base ao julgamento regido pelo Estado de Direito, isto é, segundo direitos e deveres constantes da ordem jurídica e, mais, seria preciso admitir que a pretensão ao reconhecimento da existência do delito, imputação de autoria e dosagem de pena (sentença condenatória) já trouxesse em seu bojo a série de providências práticas da execução, o que equivaleria a dizer que, assim que iniciado o processo de conhecimento, já se estaria pensando no réu como réu condenado no aguardo da definição da medida condenatória, já antes pressuposta. Ao se iniciar o processo de conhecimento, que visa à análise isenta do caso para eventual condenação, já se teria o prejulgamento condenatório, porque pressuposta a condenação à própria ação penal de conhecimento” (Cf. BENETI. Op. cit., 1996, p. 49).

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Por fim, esse artigo ao analisar o Direito de Execução Penal como categoria autônoma do Direito, distinta do direito administrativo, penal ou processual penal, dada a sua autonomia científica, demonstrou a necessária (e nem sempre clara) distinção com o denominado direito penitenciário.

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