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    Universidade

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais

    Estratgias de visibilidade, Poltica e Movimentos Sociais:

    reflexes sobre a luta de moradores de favelas cariocas contra

    violncia policial

    Juliana Farias

    Rio de Janeiro

    2007

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    Juliana Farias

    Estratgias de visibilidade, poltica e movimentos sociais: reflexes

    sobre a luta de moradores das favelas cariocas contra a violncia

    policial

    Dissertao apresentada ao Programa

    de Ps-graduao em Cincias Sociais,

    da Universidade do Estado do Rio deJaneiro (UERJ), como requisito

    necessrio obteno do grau de

    mestre em Cincias Sociais.

    Orientadora: Profa. Dra. Mrcia Pereira Leite

    Rio de Janeiro2007

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    CATALOGO NA FONTEUERJ / REDE SIRUS / BIBLIOTECA CCS/C

    J36 Farias, Juliana.

    Estratgias de visibilidade, poltica e movimentos sociais: reflexes

    sobre a luta de moradores das favelas cariocas contra a violncia

    policial / Juliana Farias. 2007.

    135f.

    Orientadora: Mrcia Pereira Leite

    Dissertao (Mestrado) Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro, Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais.

    Bibliografia: f.113-122

    1. Sociologia Dissertaes. 2. Favela. 3. Violncia. 4. Movimentos

    Sociais. I. Leite, Mrcia Pereira. II. Universidade do Estado do Rio deJaneiro. Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais. III. Ttulo.

    CDU 342.7

    Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial

    desta dissertao.

    _____________________________ _________________________________

    Assinatura Data

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    Juliana Farias

    Estratgias de visibilidade, poltica e movimentos sociais: reflexessobre a luta de moradores das favelas cariocas contra a violncia

    policial

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais, da

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), como requisito necessrio

    obteno do grau de mestre em Cincias Sociais.

    BANCA EXAMINADORA:

    ______________________________

    Profa. Dra. Mrcia Pereira Leite (PPCIS/UERJ)Orientadora

    ______________________________

    Profa. Dra. Patrcia Birman (PPCIS/UERJ)

    ______________________________

    Profa. Dra. Bianca Freire-Medeiros. (CPDOC/FGV)

    ______________________________

    Profa. Dr. Luiz Antnio Machado da Silva (IFCS/UFRJ)

    SUPLENTES:

    ______________________________

    Profa. Dra. Sandra Carneiro (PPCIS/UERJ)

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    Resumo

    De abril de 2004 a julho de 2007, acompanhei o trabalho da Rede de

    Comunidades e Movimentos contra Violncia s vezes como pesquisadora, s

    vezes como militante, s vezes acumulando as funes. Um dos resultados desta

    experincia esta dissertao de Mestrado, cujo eixo foi construdo atravs da

    reflexo sobre o grupo social rotulado como favelados: foram levados em conta

    tanto o surgimento do grupo e do termo que o designa, como as relaes entre a

    cidade e a favela, entre os moradores do asfalto e os moradores da favela, entre

    pesquisadores do asfalto e moradores de favela. Examino tambm como so

    elaborados novos 'idiomas de ao' utilizados para denunciar a violao dos direitoshumanos, exigir justia, reivindicar acesso cidade e tambm para descriminalizar e

    legitimar a luta de moradores de favelas contra a violncia policial que os atinge,

    considerando os desafios inerentes ao processo de atualizao das linguagens de

    protesto e das formas de atuao dos chamados novos movimentos sociais.

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    Dedico este trabalho Rede de Comunidades e Movimentos contra Violncia.

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    Agradecimentos

    Antes de mais nada, gostaria de agradecer s instituies de fomento que tornaram

    possvel o desenvolvimento desta dissertao: a Capes Coordenao de

    Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior, FURS Foundation for Urban and

    Regional Studies e tambm Fundao Farias Mello, Fundao Lima, Fundao

    Pereira Leite, Fundao Freire-Medeiros, Fundao Siqueira, Fundao

    Menezes, Fundao Gama e Fundao Rocha.

    Agradeo a todos os integrantes da Rede de Comunidades e Movimentos contra

    Violncia, especialmente s mes, mesmo sabendo que o meu agradecimentonunca ser suficiente.

    Agradeo minha me, Andra, meu maior exemplo e meu maior apoio.

    Agradeo aos meus avs Mariazinha, Jacira e Jos, por estarem ao meu lado

    sempre.

    Agradeo a Joo, meu melhor amigo.

    Agradeo a todos os meus tios e primos, em especial a Bernardo, que se revelou um

    torcedor e um verdadeiro amigo.

    Agradeo Patrcia Pedrosa, pelo carinho.

    Agradeo Tnia Fres, pelo investimento.

    Agradeo especialmente a Fabiene Gama, Palloma Menezes e Raza Siqueira

    este trabalho no existiria agora se elas no fossem quem so.

    Agradeo Lia Rocha, pelas aulas de vida.

    Agradeo a Alberto Calil, Suene Almeida e Camila Sampaio, meus fiis escudeiros.

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    Agradeo Alyssa, minha amiga mais nova.

    Agradeo Carolina Gonalves e Roberta Zanatta, por toda a pilha.

    Agradeo Paula Quaresma, minha irm.

    Agradeo Paula Pimenta, pela pacincia e pela indicao do Verani.

    Agradeo a todas as minhas amigas, Claudinha, Ju Pitta, Manu, Cynthia, Vivian,

    Bethnia, todas mesmo, pela torcida.

    Agradeo a Fred, que acompanhou de perto todo o surgimento desta pesquisa.

    Agradeo a Patrcia Lanes e Mnica Santos, pela amizade e pelo crdito.

    Agradeo Christina Vital, por todas as trocas.

    Agradeo Ldia Medeiros, por todas as oportunidades de aprendizado.

    Agradeo Filippina Chinelli, por toda a ateno.

    Agradeo a Sandra Carneiro, Clara Mafra e Mas Santana, por todos os

    ensinamentos.

    A Larissa Accioly e Gabriela Macedo, pela fora.

    Agradeo a Christiane, Margareth, Mauro, Ferreira, Max e Andria.

    Agradeo a todos os professores do PPCIS.

    Agradeo a todos que cruzaram comigo no PPCIS e na Graduao e colocaram

    pilha nas minhas escolhas.

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    Agradeo a todos os integrantes das pesquisas nas quais trabalho, por me

    ensinarem tanto.

    Agradeo, finalmente, s quatro cabeas responsveis pela minha formao como

    Cientista Social: Patrcia Birman, Luiz Antonio Machado da Silva, Bianca Freire-

    Medeiros e Mrcia Leite. claro que agradeo especialmente Mrcia, por ter

    aceitado me orientar e me aturar duplamente.

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    NDICE

    Introduo ...................................................................................................... 11

    1 Quem quem .............................................................................................. 18

    1.1 Dos produtores do cartaz bilnge ..................................................... 18

    1.2 Do envolvimento do pesquisador ...................................................... 28

    2 Quando a exceo vira regra: os favelados como populao

    matvel......................................................................................................... 48

    2.1 Afastando o zoom .............................................................................. 48

    2.2. O termo matvel .............................................................................. 512.3 Da configurao de um tratamento especial.................................... 52

    2.4. Da atualizao dos mecanismos de controle: favelas e biopoder..... 63

    3 Estratgias de visibilidade e afins ............................................................ 78

    3.1 Protestos e protestos ......................................................................... 78

    3.1.1 Em 2003 ............................................................................ 78

    3.1.2 De 2003 para 2004............................................................ 86

    3.1.3. De 2004 para 2005 ........................................................... 96

    3.2 Sobre influncias e bastidores ...................................................... 104

    Consideraes finais................................................................................... 112Bibliografia ................................................................................................... 113

    Fontes ........................................................................................................... 124

    Anexo ............................................................................................................ 126

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    Introduo

    No dia 16 de abril de 2005, a primeira pgina do jornal Folha de So Paulo

    exibia suas manchetes encaixadas entre trs fotografias coloridas. A fotografia

    localizada na regio central da pgina mostrava uma menina negra, sria, de uns

    seis ou sete anos de idade, com um penteado de trancinhas bem feitas, dedo

    indicador da mo esquerda na boca e olhar fixo nas lentes da cmera. Na mo

    direita a menina segurava um cartaz no formato pirulito que preenchia a fotografia

    de uma margem lateral outra, chamando a ateno do leitor para o texto: I have

    been a victim of violence!!! Who will be the next? YOU??? We hope not.. Abaixo da

    fotografia, a legenda: Globalizados. Menina exibe cartaz, em ingls, contra

    violncia; 1.200 sem-terra e favelados do Rio protestaram na lngua para atingir a

    opinio pblica internacional.

    Apesar de me sentir atrada pela idia de analisar a disposio desta imagem

    no jornal e o prprio contedo das respectivas manchete e matria, no foi por este

    motivo que iniciei o texto com a descrio acima. Fotografia e legenda mereceram o

    status de comisso de frente por condensarem aspectos que considero

    extremamente relevantes para o estudo dos movimentos sociais contemporneos: a

    possibilidade da parceria entre grupos sociais distintos; a combinao de insistncia

    e criatividade na utilizao de recursos visuais durante os protestos e a aposta na

    ampliao do grupo de receptores da mensagem.

    Devo admitir, entretanto, que antes de encarar a fotografia descrita como

    parte de um material interessante para se pensar movimentos sociais, eu passei um

    bom tempo olhando pra ela sem conseguir refletir, sem estabelecer conexes com

    outras fontes de informao aquele cartaz tinha outros significados para mim. Emabril de 2005, eu fechava a primeira etapa de um trabalho de campo junto ao grupo

    que co-organizou, com o MST, a manifestao noticiada pela Folha de So Paulo1:

    fazia um ano que eu havia sido apresentada quele cartaz.

    A primeira vez que vi o cartaz (que, na verdade, bilnge de um lado o

    texto est em ingls e do outro em portugus) foi durante uma manifestao pblica

    contra violncia nas favelas. A manifestao aconteceu na Zona Sul da cidade do

    Rio de Janeiro, em abril de 2004, marcando um ano do episdio que ficou conhecido1O desenvolvimento do trabalho de campo que me permitiu coletar os dados analisados na presentedissertao ser abordado no item 1.1 do captulo 1.

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    como chacina do Borel2. Foi a minha primeira experincia em campo com a cmera

    fotogrfica na mo e fiquei to encantada com o conjunto de imagens que se movia

    diante dos meus olhos (ou da lente da minha cmera), que em diversos momentos

    do evento eu parecia estar surda. Os cartazes bilnges representaram elementos-

    chave na composio da paisagem que despertou a minha preferncia pelo registro

    fotogrfico durante os trabalhos de campo.

    Mas a minha ligao com os cartazes no se limitou ao gosto por fotograf-

    los. Em janeiro de 2005, estava eu na passeata de abertura da quinta edio do

    Frum Social Mundial (FSM), em Porto Alegre, fotografando sim! aqueles

    cartazes, mas tambm sendo fotografada segurando os mesmos. Acredito que eu

    tenha segurado os cartazes porque, naquele momento, a luta dos moradores dasfavelas cariocas contra a violncia no era somente deles: j me pertencia de tal

    forma que eu no me contentava em observar e registrar aquele evento. Fiquei, de

    fato, emocionada quando me dei conta de que aqueles cartazes (produzidos

    manualmente, com madeira e folha de papel A3), estavam rodeados por bandeiras

    carregadas de legitimidade poltica, por combinaes de cores e smbolos

    reconhecidos internacionalmente, por fotografias ampliadas de cenas e figuras

    condenadas pelas campanhas anti-imperialistas, por retratos pintados depersonagens histricos da luta socialista, por slogans impressos, colados e

    rabiscados, contra ou a favor de governos, partidos, povos e naes. Enfim, me

    emocionei ao ver aqueles cartazes compondo uma parcela significativa do conjunto

    de elementos visuais que reforam o n que amarra ao FSM os celebrados adjetivos

    pluralidade e diversidade3.

    De volta ao Rio de Janeiro, a emoo gerada pela imagem dos cartazes

    bilnges concentrados num ponto especfico da passeata do FSM deu lugar a

    2 A mobilizao dos moradores do Borel em torno desta chacina e seus desdobramentos sotrabalhados no item 1.1 do captulo 1 e tambm no captulo 3 desta dissertao.3De acordo com as estimativas da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, mais de 200 mil pessoasestiveram presentes na passeata de abertura do FSM 2005. (Fonte:http://www.forumsocialmundial.org.br/noticias_01.php?cd_news=1707&cd_language=1, acesso em12 de abril de 2006). Ainda sem escapar das informaes visuais, pluralidade e diversidadepoderiam ser exemplificadas atravs das vestimentas, penteados, adereos e caractersticas fsicasdas pessoas que circulam pelo territrio do FSM. Entretanto, necessrio deixar claro que essesadjetivos esto atrelados especialmente aos princpios que orientam o FSM enquanto uma iniciativacapaz de comportar diferentes maneiras de pensar, falar e agir em prol da construo de uma

    sociedade planetria orientada a uma relao fecunda entre os seres humanos e destes com aTerra. (Carta de Princpios do Frum Social Mundial). Da a utilizao da idia de reforar o n, vistoque tais caractersticas do FSM so constantemente reafirmadas, inclusive atravs das imagens.

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    outros sentimentos que estavam ligados no concentrao, mas possibilidade de

    disperso daquele objeto. Os cartazes se espalharam pela Avenida Rio Branco

    durante a manifestao noticiada pela Folha de So Paulo, fazendo-me acreditar

    que outros atores sociais passavam a se inserir naquela luta contra violncia

    especialmente aqueles que tambm so vtimas da violncia policial (ainda que em

    situaes diferentes das experimentadas pelos moradores das favelas). Dessa vez o

    que eu sentia era empolgao: dois vendedores ambulantes seguiam a passeata ao

    lado do carro de som suas bicicletas carregavam os cartazes bilnges junto a

    isopores encapados com fitas adesivas coloridas e papel alumnio; diversos

    integrantes do movimento dos trabalhadores sem-teto, que moram em ocupaes no

    centro e na periferia do Rio de Janeiro, participavam da manifestao segurando omesmo cartaz.

    Naquele momento, associar a disperso dos cartazes ampliao da luta

    contra violncia poderia sugerir algo relevante: alm de olhar e sentir, eu estava

    comeando a olhar e pensar. Mas era apenas um anncio da possibilidade da

    reflexo, que ainda se encolhia diante das conseqncias do envolvimento com o

    grupo social estudado. Alis, j est mais do que na hora de apresent-lo.

    Sigo, portanto, no item 1.1 do captulo 1 desta dissertao, apresentando os

    produtores do tal cartaz bilnge, para, em seguida (item 1.2), localizar a minha

    posio em relao a este grupo (acrescentando reflexes e dilemas metodolgicos

    ego trip exposta nas linhas desta introduo). No captulo 2, dou incio

    apresentao do enquadramento terico utilizado para construir o argumento central

    deste trabalho: as estratgias de visibilidade desenvolvidas pelo movimento socialque acompanhei podem ser lidas como estratgias de sobrevivncia.

    Desenvolvo no segundo captulo, portanto, um eixo terico que torna possvel

    trabalhar com a luta pela sobrevivncia desta populao rotulada como favelados.

    Entendo que a continuidade desta luta est diretamente relacionada elaborao de

    um vocabulrio poltico alternativo, alimentado por diferentes recursos imagticos e

    por este motivo que enfoco o processo de atualizao dos formatos de protesto de

    um movimento social que luta contra a violncia policial em favelas.

    A partir do captulo 3, desenvolvo e analiso os dados empricos relativos a

    este processo. nesta etapa que o recorte escolhido para a presente dissertao se

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    faz mais evidente, pois se faz necessrio abordar a questo da reconfigurao das

    culturas polticas dominantes para escrever sobre uma relao especfica entre

    imagem e poltica.

    Concluo, enfim, levantando algumas questes relacionadas a aspectos que

    no puderam ser abordados ao longo da dissertao, mas que talvez sirvam como

    pistas para a elaborao de trabalhos futuros (meus e, talvez, de quem mais

    considerar relevante o tema e os problemas examinados nesta dissertao).

    Para elaborao dessa dissertao, realizei trabalho de campo entre abril de

    2004 e maro de 2006, colhendo a maior parte do material que analiso. Realizei

    observao participante, acompanhando diversas reunies, manifestaes pblicas,

    julgamentos de policiais e outras atividades relacionadas ao grupo para o qual voltominha ateno neste trabalho. Foram utilizadas diversas fontes: matrias de jornais

    e revistas, entrevistas, panfletos e cartazes de divulgao de manifestaes pblicas

    e as fotografias dos eventos nos quais estive presente. Aps uma primeira anlise

    do material em questo, contudo, realizei ainda algumas entrevistas em 2007.

    Uma ressalva

    Para se pensar na atuao de um movimento social contemporneo,

    fundamental levar em conta o processo de reconfigurao das culturas polticas

    dominantes.4 Atualmente, dentre as atribuies dos movimentos sociais, pode ser

    destacada a funo de produzir articulaes discursivas capazes de questionar o

    que pode e o que no pode ser considerado poltico (Alvarez, Dagnino e Escobar,

    2000). Uma das minhas hipteses que exista um dilogo entre este

    questionamento e determinadas escolhas feitas durante a trajetria da Rede de

    Comunidades e Movimentos contra a Violncia.

    Organizar a ordem das apresentaes artsticas que acontecem durante uma

    passeata; construir e atualizar um site ou elaborar uma logomarca so tarefas que

    configuram uma maneira de se comunicar que pode ser entendida como fonte de

    processos polticos. Nesta lista tambm poderia ser includa, por exemplo, a

    4 Para trabalhar este tema estou utilizando a definio de cultura poltica apresentada por Alvarez,Dagnino e Escobar (2000). Para os autores, a expresso cultura poltica entendida como a

    construo social particular em cada sociedade do que conta como poltico, ou seja, como odomnio de prticas e instituies, retiradas da totalidade da realidade social, que historicamente vma ser consideradas como propriamente polticas.

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    convocao de jornalistas nos dias de julgamento dos policiais acusados de

    assassinar os moradores das favelas, ou ainda a negociao com a segurana do

    Frum onde acontecem tais julgamentos para conseguir pendurar faixas e cartazes

    nas grades do estacionamento local.

    Pensando especificamente nos dois ltimos exemplos apresentados,

    importante ressaltar as aes correspondem a estratgias de visibilidade que

    possibilitam uma ampliao do significado do julgamento: ao invs de se manter

    como um procedimento estritamente legal, o julgamento se transforma num

    acontecimento poltico. Apostando na capacidade que determinados movimentos

    possuem de contestar e redesenhar as fronteiras do poltico, Slater (2000)

    argumenta que eles revelam os significados do poltico encerrado no social, alm

    de assumirem o papel de

    subverter os dados tradicionais do sistema poltico poder estatal, partidos

    polticos, instituies formais contestando a legitimidade e o

    funcionamento aparentemente normal e natural de suas aes no interior

    da sociedade (Slater, 2000: 509).

    Em certa medida, possvel associar as transformaes das culturas polticas

    e a ampliao dos papis dos movimentos sociais noo de enfraquecimento das

    foras propriamente polticas trazida por Touraine. Seu argumento se baseia na

    necessidade que os movimentos sociais possuem de se distanciar do modelo

    poltico dos grandes partidos populares de massa originrios dos regimes

    totalitrios. Assim o autor explica a crise e o possvel desaparecimento do papel dospartidos polticos que se colocam acima dos atores sociais e muitas vezes contra

    eles, chegando a afirmar inclusive que as instituies polticas herdadas da

    sociedade industrial

    no mais expressam fortes demandas sociais e se transformam em

    agncias de comunicao poltica, enquanto que os novos movimentos

    sociais mobilizam princpios e sentimentos (Touraine, 2002: 262-263).

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    Seguindo a mesma linha de raciocnio, Ydice (2000) identifica a inadequao

    dos partidos polticos e argumenta que o processo poltico institucionalizado

    disfuncional para responder s necessidades sociais. O autor aponta como

    conseqncia do predomnio de governos neoliberais um deslocamento da ateno

    poltica: o enfoque central deixa de ser o poder estatal, cedendo o lugar para as

    questes dos direitos humanos e civis e da qualidade de vida. Acreditando que os

    partidos polticos no conseguiram acompanhar essa transformao, Ydice afirma

    que

    os atores mais inovadores no estabelecimento de agendas para polticas

    sociais so os movimentos de base e ONGs nacionais e internacionais que

    os apiam (Ydice, 2000: 427).

    Faz sentido, portanto, retomar o argumento de Alvarez, Dagnino e Escobar

    (2000), considerando especialmente o alerta que fazem em relao s limitaes

    analticas dos trabalhos que no se desprendem de concepes estreitas de poltica,

    tomando o poltico como algo que est dado e que seria socialmente incontestvel.Ao defenderem a necessidade de uma reconceituao do poltico, os autores

    insistem para que a poltica seja entendida como

    algo mais que um conjunto de atividades especficas (votar, fazer

    campanha ou lobby) que ocorrem em espaos institucionais claramente

    delimitados, tais como parlamentos e partidos; ela deve ser vista como

    abrangendo tambm lutas de poder realizadas em uma ampla gama de

    espaos culturalmente definidos como privados, sociais, econmicos,

    culturais e assim por diante (Alvarez, Dagnino e Escobar, 2000: 29).

    Considerando os desafios inerentes ao processo de atualizao das

    linguagens de protesto e das formas de atuao dos chamados novos movimentos

    sociais, tenho investigado como esto sendo elaborados novos idiomas de ao

    utilizados para denunciar a violao dos direitos humanos, exigir justia, reivindicar

    acesso cidade e tambm para descriminalizar e legitimar a luta de moradores de

    favelas contra a violncia policial que os atinge. Busquei analisar os formatos de

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    atuao da Rede de Comunidades e Movimentos contra Violncia, focalizando

    especialmente as estratgias que apostam no poder de comunicao das imagens.

    Ao fazer este recorte, estou apostando na idia de que manter a circulao

    dessas imagens significa demarcar posicionamentos, divulgar desigualdades,

    agregar parceiros e fortalecer projetos. Estou entendendo que, durante a luta poltica

    de um movimento social contemporneo, tem sido atribudo um papel fundamental

    s imagens: encaixadas nas exigncias do seu tempo, as imagens da poltica esto

    sendo produzidas para conquistar e convencer, assim como as imagens da

    publicidade. Mas, quando se trata, justamente, de fazer poltica, o potencial para

    disputar no espao pblico no se resume ao poder de persuaso. Alm de

    garantirem a venda, as imagens carregam a responsabilidade de viabilizar a compra:

    cabem a elas as tarefas de vender o peixe e comprar a briga.

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    1 Quem quem

    1.1 Dos produtores do cartaz bilnge

    Para apresentar a Rede de Comunidades e Movimentos contra Violncia o

    movimento social que venho acompanhando, considero fundamental escrever

    algumas linhas sobre duas pessoas em especial: Thiago da Costa Correia da Silva e

    Carlos Magno de Oliveira Nascimento5.

    Thiago sempre gostou muito de matemtica, se profissionalizou como

    mecnico e, ainda bem novo, foi pai de uma menina esperta de cabelos cacheados

    chamada Gabriela. Carlos Magno gostava muito de esportes e desde que foi morarcom sua me e seu padrasto na Sua aprendeu a esquiar. Carlos Magno tambm

    estudava na Sua, mas tinha vindo ao Brasil para se alistar no servio militar do seu

    pas de origem e estava passando frias na casa da sua av materna, que morava

    no morro do Borel. Thiago da Costa tambm morava no morro do Borel e os dois

    eram amigos de infncia.

    No dia 17 de abril de 2003, Thiago e Magno combinaram de se encontrar

    numa barbearia para cortarem o cabelo. A barbearia, que na poca era muitoprocurada pelos moradores mais jovens do Borel6, ficava na Estrada da

    Independncia, a via principal que sobe o morro e por onde possvel passar de

    carro. Quando Magno e Tiago saram do barbeiro, escutaram sons de tiros e

    correram. Carlos Alberto da Silva Ferreira, outro morador da comunidade que tinha

    acabado de chegar barbearia, tambm ouviu os tiros e correu. Pensando que os

    tiros estavam vindo de baixo, da prpria Estrada da Independncia, os trs rapazes

    atravessaram a rua e seguiram para um beco bem em frente, conhecido como Vilada Preguia.

    Ao entrar na Vila da Preguia, os trs rapazes foram alvejados. Um grupo de

    policiais estava na laje de uma casa em construo na mesma vila onde entraram os

    rapazes. Justamente de cima da laje partiram os primeiros disparos. Magno, que

    5Todos os nomes que sero apresentados nesta dissertao so nomes verdadeiros. Ao utilizar osnomes verdadeiros das vtimas, de seus familiares e dos demais atores envolvidos na luta contraviolncia policial, estou respeitando as suas identidades individuais e tambm apoiando (dentro doslimites de um trabalho acadmico) os esforos para trazer visibilidade luta em questo.6 Ele muito famoso, porque ele faz esses cortes que os garotos gostam, bota aqueles desenhos nacabea. Ento ali sempre fica cheio de garotada., afirmou Dona Marlene, moradora do Borel, ementrevista realizada por Mrcio Jernimo para o documentrio Entre muros e favelas (2005), do qual um dos diretores.

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    tinha 18 anos, morreu na hora: levou seis tiros, dentre os quais trs pelas costas

    (cabea, brao direito e regio escapular esquerda) e trs tiros pela frente (ombro

    esquerdo, bacia e clavcula)7. Mas os tiros no partiram somente de cima da laje.

    Tiago, que tinha 19 anos, ainda agonizou no cho pedindo socorro e dizendo que

    era trabalhador. Morreu aps levar cinco tiros, quatro pela frente e um pelas costas

    (regio dorsal direita)8. O laudo ainda atesta uma alta energia cintica na sada dos

    projteis, o que demonstra que alguns dos disparos foram efetuados queima

    roupa. Confirmando a verso dos disparos a curta distncia, o laudo de Carlos

    Alberto tambm aponta para uma alta energia cintica na sada dos projteis.

    Carlinhos, como era conhecido, era pintor e pedreiro e tinha 21 anos. Sofreu doze

    disparos (sendo sete deles pelas costas), alm de fratura no antebrao e no fmur. importante observar que cinco dos disparos atingiram a parte interna do seu

    antebrao direito e mos direita e esquerda o que demonstra que tentava se

    defender dos tiros efetuados contra ele com os braos dobrados na frente do corpo

    e/ou do rosto9.

    Esta somente uma parte do resultado desta operao realizada por

    dezesseis policiais do 6 Batalho da Polcia Militar (BPM), sediado no bairro da

    Tijuca. Houve ainda outra vtima fatal: Everson Gonalves Silote, que tinha 26 anose era taxista. Everson voltava para casa a p quando foi rendido por policiais

    militares na Estrada da Independncia. Como trazia um envelope com seus

    documentos, o rapaz tentou se identificar e, por esse motivo, teve seu brao direito

    quebrado por um golpe do policial. Afirmando ser trabalhador, insistiu em mostrar os

    documentos, mas foi executado antes de apresent-los. Levou quatro tiros pela

    frente (tendo cabea e corao atingidos) e um pelas costas (prximo coluna

    cervical)

    10

    .Alm das quatro vtimas fatais, tal incurso da polcia militar ainda deixou

    baleados Pedro da Silva Rodrigues e Leandro Mendes tambm moradores do

    Borel. Ao fim das quatro execues, os policiais colocaram os corpos de Magno,

    Tiago, Carlinhos e Everson dentro do camburo que estava estacionado na sada da

    Vila, na prpria Estrada da Independncia. Nenhum morador do local conseguiu se

    aproximar das vtimas, nem mesmo seus familiares. Tiveram que se contentar com

    7 Laudo cadavrico 2658/2003 Instituto Mdico Legal (IML).8 Laudo cadavrico 2659/2003 IML.9 Laudo cadavrico 2657/2003 IML.10 Laudo cadavrico 2660/2003 IML.

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    as instrues dos policiais: Se quiser ver, vai no [hospital do] Andara., Se quiser

    ver vai atrs, no Andara11.

    Hoje est evidente para mim que impossvel apresentar a Rede de

    Comunidades e Movimentos contra Violncia sem falar claramente da interrupo

    das vidas de Carlos Alberto da Silva Ferreira, Carlos Magno de Oliveira Nascimento,

    Everson Gonalves Silote e Thiago da Costa Correia da Silva. Ou seja, trata-se

    mesmo de um grupo de pessoas que se uniu e de seu percurso individual e coletivo

    a partir desta associao, quando as trajetrias desses quatro rapazes foram

    interrompidas. Mas importante ressaltar que o quando est grifado porque ogrupo se uniu a partir daquele episdio, mas no necessariamente por causa dele:

    parte dos integrantes da Rede12j militava em outros movimentos sociais urbanos,

    j estava ligada a trabalhos sociais e/ou projetos desenvolvidos em favelas13do Rio

    de Janeiro, ou j estava diretamente engajada em lutas contra a violncia policial.

    11Depoimento de Dalva Correia, me de Tiago da Costa Correia da Silva, em entrevista realizada por

    mim, em maio de 2004. Alm deste depoimento, utilizei outras fontes para elaborar esta apresentaodo caso do Borel: o Relatrio de Execues Sumrias (19972003), do Centro de Justia Global; umdocumento redigido no dia 24 de abril de 2003, pelos moradores do Borel, para ser encaminhado aospoderes pblicos e imprensa, alm de entrevistas e conversas com moradores do Borel e comoutros familiares das vtimas desta operao policial.12Para o texto no ficar muito repetitivo, utilizarei tambm a palavra Rede para me referir Rede deComunidades e Movimentos contra Violncia. necessrio esclarecer ainda que, apesar darelevncia das discusses a respeito do conceito de rede nas cincias sociais, que tm produzidodiversas anlises sobre as possibilidades e limites de suas diferentes modalidades de atuao, suanatureza, seus objetivos e os contextos que presidem sua estruturao (consultar Castells, 1999;Alvarez, Dagnino e Escobar, 2000), optei por no desenvolver este eixo analtico nesta dissertaodado o foco de minha investigao. Entretanto, percebendo que tal esforo pode enriquecer asexplicaes a respeito do modo de operao da Rede de Comunidades e Movimentos contra

    Violncia, algumas observaes se fazem necessrias. O termo rede tomado por seusintegrantes apenas como uma parte do nome deste grupo por lhe permitir se apresentar publicamenteenquanto um movimento social integrado por diversos atores emovimentos, Mas esta apropriao dovocabulrio poltico do tempo tambm indica, como sustenta Dagnino, uma construo coletiva queresulta [da] (...) articulao de movimentos sociais de vrios tipos com outros setores e organizaes[com base] em um campo comum de referncias e diferenas para a ao coletiva e a contestaopoltica (Baierle, 1992: 19 apud Dagnino, 2000: 80). Por certo, esta articulao , em vrios casos,pontual e contextual o que leva a autora a referi-la nestas situaes atravrs da noo de teias.Mas, no caso em anlise, esta forma de articulao e apresentao pblica de si o que permite Rede lidar com as conhecidas variaes de insero e participao de atores individuais e coletivos os chamados fluxos e refluxos dos movimentos sociais (Machado da Silva e Ziccardi, 1983;Scherer-Warren e Krischke, 1987; Gohn, 1997; Alvarez, Dagnino e Escobar, 2000; entre outros) - earticular, discursiva e praticamente, modalidades diversas, presenciais e virtuais, de integrao (ao) e

    participao no movimento. Ver, a respeito das segundas, as anlises de Appadurai (1996) e deRibeiro (2000).13 Utilizo neste trabalho o termo favela ao invs de comunidade, por considerar esta opopoliticamente relevante em relao s questes analisadas. A palavra favela no atenua a situao

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    Enfim, todos estes militantes que se encontraram (ou se reencontraram) a

    partir da Chacina do Borel traziam em sua bagagem experincias de participao

    poltica e esse um dado fundamental para compreender a maneira como este

    grupo, que hoje compe a Rede se organizou e como vem mantendo o seu

    trabalho desde ento. Para continuar a desenvolver este argumento, vou utilizar uma

    explicao que um dos integrantes da Rede apresentou na abertura de uma

    reunio do grupo.

    Esta reunio aconteceu no dia 07 de maio de 2005, no auditrio do edifcio do

    CEDIM/RJ (Conselho Estadual dos Direitos da Mulher)14 espao que foi escolhido

    pela Rede tanto por estar localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro, quanto

    por oferecer a infra-estrutura necessria para o encontro de um nmero significativode pessoas. Era a primeira reunio ampliada da Rede aps uma srie intensa de

    atividades (que descreverei mais frente) e tambm foi uma reunio aberta a

    pessoas que no militavam junto ao grupo, mas que poderiam se interessar pelo

    trabalho e agregar esforos.

    Responsvel por fazer a apresentao da Rede naquele evento, Maurcio

    Campos15disse que o movimento era constitudo por trs grupos distintos: um (do

    qual ele prprio afirmou fazer parte) formado por pessoas que no necessariamentemoram em favelas, mas que participam de movimentos sociais urbanos e atuam em

    favelas e periferias; outro grupo composto por moradores de favelas que participam

    de atividades polticas dentro e fora das favelas; e um terceiro grupo, formado pelos

    familiares das vtimas de violncia policial em favelas componentes diferentes,

    que a gente tem que saber ajustar, segundo Maurcio. Afirmou ser este ltimo o

    grupo mais forte dos trs e complementou: acostumamos a chamar de mes, mas

    tambm existem irms, primos etc.social qual seus moradores esto submetidos. Por este mesmo motivo alterno as expressesfavelados e moradores de favelas.14 O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher CEDIM/RJ um rgo de assessoramento naimplementao de polticas pblicas, vinculado Subsecretaria de Defesa e Promoo de DireitosHumanos, da Secretaria de Estado de Assistncia Social e Direitos Humanos. (Mais informaes em:http://www.cedim.rj.gov.br/cedim.htm). Antes de possuir a sua prpria sede (resultado de umprocesso que ser discutido mais frente), a Rede de Comunidades e Movimentos contra Violnciautilizava diferentes espaos para se reunir (como salas cedidas por ONGs localizadas dentro e foradas favelas, auditrios e/ou salas de diferentes sindicatos do Rio de Janeiro, entre outros).15 Maurcio Campos integra a Frente de Luta Popular e milita em movimentos urbanos desde suaadolescncia. Assim como a trajetria de Maurcio, as trajetrias de outros militantes (que hoje

    integram a Rede de Comunidades e Movimentos contra Violncia) sero apresentadas ao longo dadissertao. No reservei um captulo especfico para apresent-las em bloco, pois entendo que sejamais interessante intercalar tais informaes com a argumentao a qual elas estiveremrelacionadas.

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    Esta espcie de trip, que Maurcio apresentou em 2005 como a base de

    sustentao da Rede, o modelo utilizado atualmente por mim para definir este

    grupo. Essa constituio mantm-se a mesma at hoje e, de fato, o militante soube

    medir os pesos e apresentar a parte mais forte do trip: os familiares. So eles

    (especialmente as mes das vtimas) que detm maior capacidade para legitimar as

    reivindicaes do grupo e trazer visibilidade luta contra violncia policial em

    favelas16. Ainda utilizando as palavras de Maurcio:

    As mes impedem que a gente perca o foco do movimento e so a prova de

    que os efeitos do genocdio e do extermnio continuam. [...] Fazem os outros

    companheiros do movimento entender que tambm h o envolvimentoemocional.

    Este ltimo aspecto mencionado por Maurcio outro dado fundamental para

    a compreenso do encaixe dos trs grupos que compem a Rede. Reconhecer e

    saber lidar com as diferentes motivaes que permitiram cada um dos integrantes

    da Rede se engajarem na luta contra violncia policial foi e continua sendo um

    desafio para o grupo. Para explicar melhor o que estou chamando de desafio, vou

    puxar a linha do tempo um pouco para trs.

    Se o incio da histria da Rede est diretamente relacionado Chacina do

    Borel, tambm fez parte desta origem o sofrimento de Dalva Correia e Marta Dahyle

    mes de Thiago da Costa e Carlos Magno, respectivamente. Ao sofrimento de

    Dalva e Marta somaram-se a indignao e a solidariedade de outros moradores do

    Borel, de membros de ONGs, da Associao de Moradores e de outras instituies

    locais.

    J tiveram outras mortes aqui dentro da comunidade, mas essa foi em

    grande nmero e chocou muito a comunidade, entendeu? A comunidade

    ficou muito estremecida [...] todo mundo estava sentindo na pele que aquilo

    que aconteceu naquele dia poderia voltar a acontecer a qualquer momento,

    com qualquer um de ns, entendeu? [...] qualquer uma pessoa estava

    16Este aspecto ser desenvolvido no captulo 3 desta dissertao.

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    correndo aquele risco. A gente tinha que pedir socorro de qualquer jeito, no

    dava mais pra suportar... a violncia estava muito grande17.

    A partir do dia 16 de abril de 2003, a indignao transformou-se em alimentopara a fora poltica que marca o histrico de ao coletiva do Borel18. A fala de

    Dona Marlene expressa os mesmos sentimentos de indignao, de desamparo, de

    que assim no d para continuar contidos na metfora que Mnica Santos utilizou

    para referir-se quele e a outros episdios similares nas favelas e definir o que seria

    o combustvel do potencial transformador de sua populao: um coquetel molotov

    de fracasso e utopia, de busca por mudana, por outro referencial19. A mobilizao

    local foi reforada por moradores de outras favelas (dentre os quais se destacavamalgumas mes de vtimas de outros episdios de violncia policial na cidade)20e por

    movimentos e ONGs como a Frente de Luta Popular, o Centro de Cultura Proletria,

    e a Central de Movimentos Populares.

    A reunio dessas pessoas configurou o embrio de um movimento contra

    violncia policial em favelas o Movimento Posso me identificar?. Sentimentos

    como sofrimento, indignao e medo foram combinados a posicionamentos polticos

    que reivindicavam a garantia plena dos direitos humanos e civis da populaoresidente em favelas. O resultado desta combinao foi apresentado atravs de uma

    srie de atividades e eventos significativos21 para o resgate e a ampliao da

    mobilizao dos moradores de favelas na cidade do Rio de Janeiro.

    Ao mesmo tempo, as diferentes motivaes para adeso luta e para o

    encaminhamento prtico da mesma passaram a configurar um dos maiores

    problemas a serem administrados. Aps o primeiro ano de atuao do grupo, que

    17Depoimento de Dona Marlene, moradora do Borel, em entrevista realizada por Mrcio Jernimo,durante as filmagens do documentrio Entre muros e favelas, que co-dirigiu. Mrcio Jernimo eramorador da favela de Manguinhos, onde atuava em diferentes projetos, especialmente quelesligados mdia comunitria. Mrcio no familiar de nenhuma vtima fatal das aes policiais emfavelas e passou a fazer parte da Rede por conta da sua militncia poltica.18 Datam do ano de 1954 as primeiras organizaes de moradores de favelas no Rio de Janeiro,dentre as quais se destaca a Unio dos Trabalhadores Favelados do Morro do Borel (Lima, 1989;Machado da Silva, 2002; Feire-Medeiros e Chinelli, 2003).19 Trecho do depoimento de Mnica Santos, tambm moradora do Borel, durante debate naFundao Getlio Vargas, em maio de 2007.20 O ato agregou ainda familiares de vtimas de outras modalidades de violncia na cidade, comdestaque para a me de Gabriela, jovem morta em estao do metr no bairro da Tijuca durante um

    tiroteio entre um policial e assaltantes, que dele participou ativamente. Cfr. Leite (2006).21 Assim como o processo que deu incio utilizao da frase Posso me identificar? pelosintegrantes do grupo, a srie de atividades mencionada ser descrita e analisada no captulo 3 destadissertao.

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    passou a ser reconhecido como Movimento Posso me identificar?, ficou claro que

    nem todos os seus integrantes estavam de acordo em relao s medidas a serem

    tomadas para combater a violncia policial nas favelas.

    Apesar de terem conseguido promover manifestaes bem sucedidas, terem

    conquistado uma certa legitimidade para ocupar o espao pblico da cidade do Rio

    de Janeiro e terem ampliado a visibilidade da luta contra a violncia policial que

    atinge as favelas, nem todos os integrantes do grupo concordavam com a

    manuteno de estratgias de atuao poltica marcadas por aes reivindicatrias,

    atos pblicos e atividades afins. Acreditavam que os esforos poderiam ser

    concentrados na construo de uma sede para o grupo um espao onde

    pudessem funcionar cursos e oficinas para os jovens moradores das favelas.No segundo semestre de 2004, as divergncias internas ao Posso me

    identificar? tomaram uma proporo maior: alguns dos integrantes responsveis por

    gerir seus eventuais recursos financeiros retiraram-se do movimento e o debate em

    torno da modalidade de atuao acirrou-se. O grupo acabou se dividindo

    desigualmente em dois blocos: um maior, que defendia a organizao permanente

    de passeatas e atos pblicos para pressionar o poder pblico, exigir justia,

    denunciar a violao dos direitos humanos e reivindicar acesso cidade (Lefebvre,1991); e outro, menor, que sustentava a idia de atuar atravs do desenvolvimento

    de projetos pontuais, especialmente cursos profissionalizantes direcionados aos

    jovens22.

    Na tentativa de solucionar o problema, o grupo majoritrio decidiu se

    emancipar do movimento Posso me identificar?, elegendo uma nova

    denominao. Surgiu, ento, a Rede de Comunidades e Movimentos contra a

    Violncia. Como venho acompanhando a trajetria deste grupo desde abril de 2004,gostaria de destacar que identifico como uma das dificuldades enfrentadas pela

    22Ao analisarem o contexto dos anos 90 como perodo no qual se consolidaram as metforas daguerra e da cidade partida como referncia violncia urbana no Rio de Janeiro, Machado da Silva,Leite e Fridman (2005) examinam como se produziu uma proposta, alternativa poltica desegurana pblica ento praticada, de pacificao da cidade por meio de solues democrticaspara o problema da segurana pblica. Segundo os autores, a tentativa de concretizar tal propostadeu-se atravs de trs linhas de atuao de integrantes de ONGs, movimentos sociais epesquisadores interessados no processo. Gostaria de chamar a ateno para o fato de que o grupode integrantes do movimento Posso me identificar? que defendia a realizao de projetos pontuaisvoltados para jovens nas favelas, apesar de concentrar menor nmero de pessoas, compartilhava,

    justamente, da aposta em uma das trs linhas de atuao apontadas por Machado da Silva, Leite eFridman aquela baseada na proposio de novos procedimentos e rotinas policiais, bem como depolticas pblicas focadas nos segmentos populacionais compreendidos como de risco, isto , quese encontrariam em situaes-limite facilitadoras do ingresso no crime.

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    Rede a prpria modificao da denominao. A pergunta Posso me identificar?

    carrega o potencial de agregao de novos atores sociais ao movimento, pois no

    corresponde apenas a uma cobrana por direitos que foram violados no Borel e so

    violados nas favelas cariocas. A pergunta est relacionada violao dos direitos

    que atinge, em diferentes nveis, as maiores parcelas da sociedade brasileira. Vale

    ressaltar aqui sua fora simblica na evocao pelos (e para) os de baixo das

    hierarquias e desigualdades que marcam nossa histria, especialmente por

    contraste ao recurso ao voc sabe com quem est falando? recorrente da parte

    dos de cima (DaMatta, 1981). Alm deste fator, tambm estou levando em conta o

    fato de que ao Posso me identificar? enquanto nome do movimento que esto

    associados o sucesso da modalidade de se apresentar no espao pblico queconstitui o foco de minha anlise, pois foi desta forma que os moradores de favelas

    conseguiram ocupar maior espao na mdia e consolidar sua luta contra violncia

    processo analisado no captulo 3 desta dissertao.

    Alm da modificao no nome Posso me identificar?, esta primeira etapa de

    redefinio poltica e reorganizao interna do movimento tambm foi marcada pelas

    conseqncias do processo de amadurecimento poltico das duas mes de vtimas

    da Chacina do Borel que estavam atuando na luta contra violncia policial. Aindaque a entrada da maior parte das mes de vtimas de violncia em movimentos

    como a Rede se d pela via dos sentimentos, a permanncia na luta permite que

    elas identifiquem o prprio potencial e desenvolvam sua prpria forma de atuao

    poltica23. Por este motivo, as trajetrias de Marta Dahyle e Dalva Correia, que

    tiveram um ponto de partida comum na luta contra a violncia policial, desenvolvem-

    se de formas distintas.

    Como morava na Sua, Martha Dahyle articulou-se a outros militantes queresidiam na Alemanha e na Sua e fundou, ainda no ano de 2003, o Comit

    Direitos Humanos nas Favelas do Rio de Janeiro24. Desta forma, vem mantendo

    sua vinculao (com) e participao no movimento e, ao mesmo tempo, faz

    repercutir no exterior as questes, campanhas e atividades da Rede, trazendo

    visibilidade para a Chacina do Borel e outros episdios de violncia nas favelas

    23 Para abordagens deste aspecto da trajetria das mes de vtimas de violncia em diferentesmovimentos sociais, ver as anlises de Leite (2003; 2004; 2006) e de Arajo (2007).24 Para uma descrio detalhada do processo de organizao do Comit Direitos Humanos nasFavelas do Rio de Janeiro, ver Farias (2005).

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    cariocas. O Comit atua em parceria com o grupo fixado no Brasil desde o seu

    surgimento, mas o estreitamento do dilogo entre os militantes dos diferentes

    pases fez com que o Comit passasse a funcionar como uma espcie de

    extenso da Rede de Comunidades e Movimentos contra Violncia na Europa.

    Assim, Marta Dahyle articulou-se s questes da luta que vinha sendo

    desenvolvida no Brasil, mas nem sempre podia estar presente fisicamente. Sua

    trajetria enquanto ator desse movimento social envolveu um deslocamento da

    tematizao de um caso particular (a morte de seu filho Calos Magno, uma das

    vtimas da Chacina do Borel, e o episdio de violncia policial no Borel) para o

    geral. Marta passou a circular internacionalmente como uma representante do

    conjunto de familiares de vtimas das aes policiais nas favelas brasileiras. Por

    outro lado, Dalva Correia passou a participar de diversas atividades ligadas luta

    pelos Direitos Humanos, representando publicamente as mes das vtimas da

    Chacina do Borel e tambm representando um conjunto mais amplo de mes de

    vtimas de violncia policial da cidade do Rio de Janeiro.

    Comprometida poltica e sentimentalmente com o movimento

    expressamente formado a partir do assassinato do seu filho Thiago e dos outros

    jovens do Borel, Dalva Correia opera com uma forma de apresentao de si

    publicamente como integrante do Movimento Posso me identificar?. Assim

    Dalva continuou a utilizar o nome original do movimento, mesmo aps a

    elaborao e oficializao do nome Rede de Comunidades e Movimentos contra

    a Violncia. Entretanto, poucos moradores do Borel mantiveram a atuao

    poltica que culminou no processo de formao do Posso me identificar? -

    embora sejam por ele acionados e/ou o acionem como um movimento que pode

    falar pelo Borel em casos de violncia policial contra sua populao25-, enquanto

    a atuao poltica de Dalva Correia se consolida a cada dia26.

    25Cf. por exemplo sua participao nos atos de protesto que se seguiram ao assassinato de Lohan,em setembro de 2006. Para mais informaes, ver A Caminhada da comunidade do Borel emprotesto contra a morte de Lohan, relatrio de campo elaborado por Andreia dos Santos, GislaineGomes Espndola, Sylvia Amanda da Silva Leandro e Alexandre Magalhes disponvel emhttp://redecontraviolencia.org/artigos, acesso em 22 de setembro de 2006.26 Alm de manter relaes pessoais com Dalva Correia e, portanto, por estar razoavelmenteatualizada em relao sua agenda, posso fazer esta afirmao por ter realizado um intenso trabalho

    de campo na favela do Borel, durante o qual pude observar os desdobramentos da insero de Dalvana luta pelos Direitos Humanos e a centralidade da participao de Dalva nas atividades internasdesta favela relacionadas associao de moradores e em projetos sociais. Em 2006, por exemplo,Dalva apresentou projeto ao governo federal e obteve financiamento para desenvolver atividades de

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    Apesar de no se apresentar enquanto integrante da Rede, Dalva Correia

    participa eventualmente de atividades organizadas por este grupo mas esta

    relao pode ser apresentada atualmente como uma das interrogaes que

    persegue os militantes da Rede. Entendo que parte das dvidas em relao

    participao de Dalva dentro e/ou fora da Rede esto conectadas com um certo

    desconforto de alguns militantes em relao denominao do movimento.

    Jamais os integrantes do grupo que hoje compe a Rede deixou de discutir a

    modificao do nome do movimento.

    Ainda hoje este um tema que divide opinies e que provoca discusses

    de longa durao. Para alguns, o Posso me identificar? atualmente um

    movimento local do Borel, inserido na Rede de Comunidades e Movimentos

    contra Violncia. Os meus dados empricos indicam que esta insero no se

    concretizou, mas, pelas razes antes expostas, considero que esta possibilidade

    pode se colocar no futuro. Explicito minha avaliao porque no pretendo tentar

    neutralizar o meu posicionamento atual em relao a este grupo. Afinal eu toro

    para que essa suposta ruptura seja esclarecida. Mas torcer no (ou no deveria

    ser) funo de pesquisador, portanto, antes que se acumulem mais dvidas a

    respeito da validade cientfica desta dissertao, proponho que passemos aoitem seguinte.

    1.2 Do envolvimento do pesquisador

    D Juliana, primeiro, de praxe, seu nome, sua idade, se voc quiserfalar...

    J Sem problemas!D Sem problemas! ... e o qu que voc est fazendo agora.

    J T. Meu nome todo Juliana de Farias Mello e Lima, eu estou com 24

    anos agora e estou terminando o mestrado, n?, em Cincias Sociais l na

    UERJ... , voc quer saber das pesquisas j ou no?

    D No. Depois voc fala.

    J S isso est bom?

    D Hum-hum.

    formao tcnica e de cidadania com jovens da localidade com vistas sua incorporao nos JogosPanamericanos e tambm ao mercado de trabalho. Atualmente, encontra-se envolvida, entre outrasatividades, na construo de reas de lazer para jovens no Borel com recursos deste projeto.

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    J Ento isso.

    A citao acima um recorte do trecho inicial da entrevista que um integranteda Rede de Comunidades e Movimentos contra Violncia realizou comigo em

    200627. Decidi iniciar este captulo atravs desta espcie de inverso de papis por

    dois motivos especficos.

    O primeiro: aps ter sido entrevistada por Deley de Acari que alm de ser

    integrante da Rede, uma figura que compe o quadro de lideranas histricas das

    favelas do Rio de Janeiro me dei conta de que estava vivendo uma espcie de

    concluso de uma etapa da minha relao com aquelas pessoas com as quais euvinha trabalhando desde 2004. Explico: Cheguei a este grupo que hoje compe a

    Rede como mera observadora, uma aluna do curso de Cincias Sociais da UERJ,

    moradora do asfalto28, que estava interessada na questo da violncia policial em

    favelas mas que desconfiava da sua capacidade de lidar com este assunto. Eu

    cumpria as tarefas que caracterizavam o meu treinamento de pesquisadora, mas

    no evitava (at porque nem percebia) a transformao daquelas relaes

    profissionais em relaes pessoais.Durante o trabalho de campo, que me permitiu coletar os dados que analiso

    nesta dissertao, constru laos afetivos (alguns muito fortes, outros muito frouxos)

    com a grande maioria dos integrantes da Rede ou com pessoas que conheci a

    partir do trabalho desenvolvido por este grupo. E como uma das marcas temporais

    do incio deste trabalho de campo foi justamente a realizao de uma entrevista29,

    ser entrevistada por Deley permitiu-me enxergar uma espcie de fechamento de

    ciclo: eu entrevistei aquelas pessoas, observei o trabalho delas, me aproximei delas,

    27Agradeo imensamente a Wanderley da Cunha o Deley de Acari por ter me cedido a gravaodesta entrevista e por ter autorizado a sua utilizao sem fazer qualquer restrio. Esta entrevista foirealizada durante a primeira etapa do desenvolvimento de um projeto de pesquisa idealizado porDeley (intitulado Tamo junta e misturada), no qual uma equipe formada por moradores de favelasentrevistou pesquisadoras (todas moradoras do asfalto) que trabalham em favelas e, especialmente,trabalham com moradoras de favelas. O objetivo do projeto pensar nas relaes estabelecidasdurante a convivncia entre essas mulheres de diferentes origens, focalizando um momento recenteda insero da academia nas favelas cariocas.28Utilizo o termo asfalto porque considero importante trabalhar com esta forma de separar a cidadeem dois espaos claramente demarcados. Ainda que a dicotomia asfalto/favela me parea muitoreducionista, negar a existncia desta separao seria desconsiderar os arranjos sociais que

    tornaram possveis o surgimento e a manuteno desta diviso.29No dia 19 de abril de 2004, realizei a primeira entrevista gravada com uma integrante do grupo quehoje apresentado como Rede de Comunidades e Movimentos contra Violncia. Trata-se de MartaDahyle, me de Carlos Magno a quem (repito) meus agradecimentos nunca sero suficientes.

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    trabalhei com elas, conheci as famlias delas, fiz refeies com elas, chorei com

    elas, me diverti com elas, cantei com elas, bebi com elas, viajei com elas, me

    desentendi com elas, me aborreci com elas, enchi meu saco delas, enchi o saco

    delas, senti saudades delas, dei presentes a elas, ganhei presentes delas, aprendi

    com elas, ensinei a elas, me preocupei com elas, solicitei a ateno delas, e

    inesperadamente fui entrevistada por uma delas!

    Enfim, eu nunca deixei de ser observadora e eles nunca deixaram de ser

    observados, mas esses dois papis no foram os nicos desempenhados por mim e

    por eles durante este perodo. A entrevista que Deley fez comigo configura uma

    situao que torna explcita e concreta a multiplicidade de papis que podemos

    desempenhar uns nas vidas dos outros multiplicidade que por muitas vezes ainda apagada (ou at mesmo reprimida) por um arranjo engessado da relao

    pesquisador-objeto ou pesquisador-universo pesquisado.

    Por este motivo afirmo que a entrevista de Deley, ao inverter os papis,

    apareceu para mim como uma espcie de fechamento de ciclo. Que fique claro que

    no me refiro a um fechamento de ciclo porque a partir de agora essas trocas

    deixaro de fazer parte da minha trajetria muito pelo contrrio: aquela entrevista

    marca o fechamento de um ciclo e o incio de outro, pois o reconhecimento daconstruo e da manuteno de laos afetivos concretos deu se ao mesmo tempo

    em que o dilogo estabelecido com alguns integrantes da Rede se intensificou,

    permitindo-me elaborar melhor o que se convencionou chamar nas Cincias Sociais

    de participao observante30.

    O segundo motivo para ter iniciado este captulo atravs da inverso de

    papis provocada pela entrevista de Deley est relacionado oportunidade que

    este entrevistador me proporcionou para refletir no s sobre a minha relao com aRede de Comunidades e Movimentos contra Violncia, mas tambm sobre a minha

    relao com as favelas, com as cincias sociais e com as cincias sociais realizadas

    nas/sobre/com as favelas. Decidi copiar e colar abaixo a primeira pergunta feita por

    Deley aps a apresentao que deu incio gravao da entrevista. Entendo que,

    para tentar dar conta do meu posicionamento atual em relao Rede de

    Comunidades e Movimentos contra Violncia e da escolha do meu objeto de

    estudo, pode ser interessante apresentar neste texto etapas e situaes que

    30Este aspecto especfico do trabalho de campo ser trabalhado durante o desenvolvimento destecaptulo.

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    selecionei e agrupei para comear a responder a Deley. Seguem abaixo, portanto,

    pergunta e resposta, sem cortes, sem correes, sem nenhuma alterao.

    D ... Juliana, quando que voc comeou a ter um contato, assim... com

    comunidade de favela e periferia?

    J Bom, contato, o primeiro contato mesmo, eu era adolescente ainda, tinha

    uns 12, 13 anos. Minha me dentista e ela foi trabalhar num projeto da

    prefeitura como dentista num posto de sade na Mar, l na Vila do Joo. E

    a ela um dia perguntou se eu queria ir, porque ela achava legal conhecer

    outros lugares. Eu moro em Niteri, l tem favelas tambm, mas a gente no

    tinha acesso, n? Ento quando ela comeou a trabalhar l na Mar ela

    achou que poderia ser legal me levar pra conhecer. E a eu fui e assim... pra

    mim aquilo era ... no era um lugar que me assustava, n?, como pras

    minhas amigas, por exemplo, da escola. Era um lugar normal, n? Eu achava

    at legal, animado, quando eu ia com ela. Um dia eu fui pra acompanhar um

    dia de trabalho comum l dentro do CIEP e outros dias fui em ocasies de

    comemorao de alguma coisa, festa... Ento assim, meu primeiro contato

    mesmo foi l, na Mar. E a, depois de um tempo, eu j na faculdade, tive

    uma oportunidade de conhecer a Casa das Artes da Mangueira31. E foi

    assim, o primeiro lugar que eu fui pra fazer uma pesquisa mesmo, assim, j

    estudante, n?, de Cincias Sociais, na graduao. E desde ento o meu

    interesse s foi aumentando, porque eu achava um barato, assim, a

    quantidade de projetos que tinham na poca, tanto de rdio comunitria

    como de jornal, assim, coisas que possibilitavam um contato maior entre as

    favelas ou ento da favela pra cidade, como que a favela tava falando pra

    cidade... Eu achava isso um barato, assim! A tive a sorte de comear a

    trabalhar com a Mrcia Leite, n? Ela foi minha professora quando eu tava noterceiro perodo ainda e a eu descobri que ela tinha um trabalho com favela.

    Eu ainda no sabia o qu que era, mas fui conversar com ela. E foi legal

    tambm porque assim, alm do tema, ela tinha uma postura diferente dos

    outros professores, sabe, porque eu achava o pessoal muito... que s tinha

    placa na porta e queria publicar e... assim, no tinha uma atuao mais

    31Gostaria de fazer um agradecimento especial minha grande amiga Diana Tubenchlack figuraque proporcionou esta entrada na Casa das Artes da Mangueira. Aproveito para registrar o fato de

    que esta estria no mundo dos trabalhos etnogrficos aconteceu em 2002, durante a disciplinaTeoria Antropolgica II, atravs do incentivo da professora Clara Mafra. O resultado desta primeiratentativa foi o trabalho Reportagem Verde e Rosa: uma outra forma de olhar o mundo, realizado emco-autoria com Carolina Gonalves, Raza Siqueira e Roberta Zanatta.

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    direta. E a eu achava aquilo estranho e se fosse pra eu me formar pra virar

    aquilo eu no queria. E a eu conheci a Mrcia e a Mrcia tinha um trabalho

    diferente, tinha uma atuao com ONG, uma coisa mais, assim, que eu via

    que era uma outra postura profissional, que no se restringia s quela coisada Academia. E a foi timo porque a eu comecei a trabalhar com ela num

    projeto e a assim, a foi quando minha relao com moradores de favela

    comeou a se intensificar, porque eu ia a tudo o que acontecia.

    E assim foi. Considerando que a memria seletiva dependendo das

    conexes do indivduo com seus grupos de convvio e de referncia (Bosi, 1994),

    e que

    os relatos de vida esto sempre contaminados pelas vivncias posteriores

    ao fato relatado e vm carregados de um significado, de uma avaliao que

    se faz tendo como centro o momento da rememorao (Ortiz, 1994: 79 apud

    Leite, 2007),

    seria uma negligncia inaceitvel escrever sobre a minha relao com a favela e

    com os moradores de favela sem voltar no texto experincia que tive, aindaadolescente, na favela da Mar. Seria uma negligncia tanto em relao minha

    memria, que selecionou aquele perodo, quanto em relao a Deley, que permitiu

    minha memria selecionar aquele perodo. Mas seria uma negligncia ainda maior

    com a minha me no, simplesmente, por ter sido ela a pessoa que me levou para

    dentro da favela pela primeira vez, mas especialmente porque foi ela quem me

    mostrou (talvez sem se dar conta) que a relao de um morador do asfalto com

    moradores de favela pode ser uma experincia enriquecedora capaz, por exemplo,de converter um morador do asfalto despolitizado e ingnuo em um cidado

    participativo e questionador. A citao abaixo ajuda a esclarecer esta afirmao:

    Ao terminar o curso de graduao em odontologia na Universidade Federal

    Fluminense (UFF), em 1995, vi-me ansiosa por comear a trabalhar. Passado

    algum tempo, soube, por uma colega de turma, de um projeto da Secretaria

    de Sade da Prefeitura do Rio de Janeiro desenvolvido no Complexo da

    Mar o Projeto Mar e tive interesse em enviar meu currculo. Aps

    passar por entrevistas de seleo, fui chamada para trabalhar no Posto de

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    Sade do CIEP Gustavo Capanema, localizado na Vila do Pinheiro, um dos

    dezesseis bairros do Complexo da Mar. Iniciei o trabalho junto quela

    comunidade e comecei a perceber o quanto era prazeroso estar ali, a

    maneira respeitosa como era tratada, como valorizavam o meu trabalho e odos demais colegas, o que vinha a contrariar as vises estereotipadas e

    preconceituosas das classes mdias pequeno-burguesas, que tm a

    tendncia de ver somente a dimenso de carncia das comunidades

    pobres, tornando-se mopes para a riqueza humana, a densidade afetiva e o

    potencial de transformao que tm essas populaes. Nesta minha

    experincia pude observar que a imagem caricata dessas comunidades,

    sempre amplificada pela mdia com as notcias de violncia, deve ser

    contraposta por experincias reais de vivncia comunitria, semetnocentrismo, mas com respeito ao sofrimento e s estratgias de

    sobrevivncia que eles so capazes de engendrar. Entretanto, somado ao

    prazer de trabalhar na comunidade, sentia tambm que a minha formao

    era suficiente o bastante para as exigncias tcnicas do Projeto Mar, porm

    me faltava algo, que no incio no percebia bem o que era, para o trabalho

    junto quela populao, com suas caractersticas diferenciadas. Agia, assim,

    quase que por intuio, com a necessidade, colocada pelo Projeto, de

    trabalhar junto a uma comunidade carente, numa equipe de sade, fazendo

    trabalhos educativos em sade no prprio CIEP e nas demais escolas e

    creches do bairro. Desta forma, a minha primeira colocao no mercado de

    trabalho como cirurgi-dentista no esperava de mim apenas o conhecimento

    tcnico que o curso de graduao em odontologia no Brasil costuma ensinar,

    pois o que vivenciei exigia uma formao mais geral, com foco em

    conhecimentos e habilidades no campo da pedagogia, da comunicao, das

    cincias sociais e humanas. Participei do Projeto Mar desde a sua

    implantao e l permaneci por trs anos e meio. Com o passar do tempo,

    percebendo e entendendo as falhas na minha formao para aquele tipo de

    trabalho com a comunidade, buscava leituras que pudessem dar respostas

    s minhas questes, e trocar experincias com os outros colegas do Posto

    mdicos (pediatras, clnicos e ginecologistas), enfermeiros, tcnicos de

    higiene dental, atendentes de consultrio dentrio, agentes comunitrios de

    sade pois o Projeto esperava que trabalhssemos em equipe, o que se

    mostrava difcil para todos, j que durante a graduao no fomos formadospara atuar dessa forma, sendo sempre valorizada a prtica individual. Na

    faculdade no tive oportunidade de experimentar o trabalho inserida em uma

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    equipe de sade, nem tampouco de participar de experincias que pudessem

    me dar meios de compreenso dos fenmenos sociais de forma

    contextualizada. A disciplina de Odontologia Social e Preventiva da UFF,

    levava os alunos algumas vezes a escolas pblicas durante o curso, pormos encontros foram poucos em nmero e em qualidade, pois colocar as

    escolas como pano de fundo, no estando o aluno de graduao interagindo

    com a realidade daquelas crianas, traz muito pouco benefcio para ambas

    as partes. [...] (Mel lo , 2004).

    Depois de questionar bem a formao oferecida pelos cursos de odontologia

    das universidades pblicas do Rio, a dentista (que um dia achou que seriaendodontista), virou Mestre em Tecnologia Educacional nas Cincias da Sade,

    saiu do consultrio, foi dar aulas de Sade Coletiva para moradores do asfalto que

    faziam graduao em faculdades particulares, foi trabalhar na rea da Ateno

    Bsica, atuando diretamente na formao de facilitadores de educao

    permanente em sade32, e recebeu do Ministrio da Sade, h dois anos atrs, o

    Prmio Srgio Arouca de Gesto Participativa provavelmente por dirigir 80

    quilmetros todos os dias para fazer do Sistema nico de Sade algo possvel em

    um municpio onde mais de 70% da populao atendida pelo Programa de Sade

    da Famlia33.

    Sim, esta dentista, citada acima como Mello, a minha me: Andra. Ela

    era a moradora do asfalto ingnua e despolitizada que se transformou em uma

    cidad participativa e extremamente questionadora. Ns duas (eu e a minha me)

    podemos afirmar que esta profissional que ela hoje e esta cidad que ela hoje

    32 Segundo dados disponibilizados pelo Ministrio da Sade, a noo de ateno bsica constituda por um conjunto de aes de sade, no mbito individual ou coletivo, que abrange apromoo e proteo da sade, a preveno de agravos, o diagnstico, o tratamento, a reabilitao ea manuteno da sade, situadas no primeiro nvel de ateno do sistema de sade. [...] A efetivaodas aes da Ateno Bsica depende fundamentalmente de uma slida poltica de educaopermanente, capaz de produzir profissionais com habilidades e competncias que lhes permitamcompreender e atuar no SUS com competncia tcnica, esprito crtico e compromisso poltico(Cadernos de Ateno Bsica, nmero 17, srie A, Normas e Manuais Tcnicos. Departamento deAteno Bsica. Braslia: Ministrio da Sade, 2006). Sobre o curso de Formao de Facilitadores deEducao Permanente em Sade, ver http://www.ead.fiocruz.br/curso/index.cfm?cursoid=612.33 Plano regional reorganizao do Sistema nico de Sade/SUS na Regio Metropolitana I doEstado do Rio de Janeiro, / Ministrio da Sade, Secretaria de Gesto Estratgica e Participativa.

    Braslia: Editora do Ministrio da Sade, 2007. (Documento disponvel emhttp://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/5_seminario_gestao_participativa_plano_regional_reorganizacao_do_SUS_da_regiao_metropolitana_I_rio_de_janeiro.pdf, acesso em 26/07/07).

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    no so resultado do ensino oferecido nas escolas particulares, nem na

    Universidade Federal Fluminense. Esta transformao profissional e pessoal, que

    pude observar to de perto, resultado direto da relao que a minha me

    estabeleceu com a favela da Mar e com os moradores desta favela. resultado da

    convivncia com pessoas inesquecveis como Mulhero e Solange. resultado do

    contato cotidiano com experincias de vida terrveis e maravilhosas; com

    experincias que podem chocar, mas que tambm podem sensibilizar o morador do

    asfalto experincias que marcam as rotinas da grande maioria dos moradores das

    favelas do Rio de Janeiro. No estou desconsiderando aqui a diversidade das

    favelas cariocas. Apenas quero chamar ateno para o fato de que foi esta A

    favela que eu conheci. E pelos moradores desta favela e com os moradoresdesta favela que eu trabalho.

    No h como negar que esta minha relao com os moradores de favela

    temperada com uma forte dose de romantismo e idealizao. Durante os dois

    primeiros anos em que realizei trabalho de campo em favelas foi muito difcil

    formular crticas a qualquer projeto ou movimento desenvolvido por moradores de

    favelas por mais que eu enxergasse falhas. O romantismo ainda era reforado poruma culpa que carregava simplesmente por pertencer ao que chamam de classe

    mdia o que me fez, inclusive, lamentar (tambm nos momentos iniciais do

    trabalho de campo) o fato de eu no ter nascido em uma favela.

    E foram romantismo e culpa que marcam o incio da minha etnografia com a

    Rede de Comunidades e Movimentos contra Violncia. A minha observao no

    poderia ser de outro tipo que no a participante, porque eu no me contentava em

    simplesmente ficar quietinha coletando dados sem ao menos tentar dar algo emtroca. Mas lidar com os casos de violncia policial torna toda esta observao

    participante algo muito difcil de ser realizado de uma forma em que a relao entre

    o pesquisador que observa e o grupo que observado possa ser vista por ambas as

    partes como uma relao de troca razoavelmente equilibrada.

    Diante de tanto sofrimento, foi complicado acreditar que seria possvel fazer

    qualquer coisa por aquelas pessoas. Hoje percebo que foi justamente essa

    impotncia o que me permitiu iniciar a tal observao participante da forma que eu

    iniciei: fazendo realmente qualquer coisa mas no fazendo por eles, e sim com

    eles. Dentro desse conjunto enorme de qualquer coisa, a minha especialidade se

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    tornou estar por perto. Participava de todas as atividades organizadas pelo grupo

    especialmente as reunies e a constncia da minha presena foi permitindo que

    eu ganhasse a confiana de alguns dos integrantes do grupo (especialmente as

    mes das vtimas).

    E era apenas isso mesmo o que eu ofereci ao grupo durante os primeiros

    meses de trabalho de campo: a minha presena, que quando era possvel era

    marcada pela realizao de tarefas prticas (ajudar a carregar/arrumar coisas e usar

    o telefone da minha casa para convocar pessoas para atividades, por exemplo). Era

    uma presena que se fazia calada: raramente eu falava alguma coisa durante as

    reunies e quando eu falava era s para fazer perguntas; jamais para me posicionar

    em relao a qualquer questo ou tema. E durante outras atividades, eu s mepronunciava para fazer alguma brincadeira com quem eu j comeava a ter alguma

    intimidade, mas no passava disso.

    Sempre presente nas atividades do grupo, aos poucos comecei a ser

    convidada por integrantes da Rede para atividades especficas. Os primeiros

    convites partiram de Dalva Correia e Mrcio Jernimo. Dalva me chamou para

    acompanh-la durante uma ida Defensoria Pblica. Ela sabia que eu no entendia

    nada a respeito de processos jurdicos e coisas afins apenas queria companhia. JMrcio Jernimo me telefonou um dia perguntando se eu no poderia ajud-lo a

    realizar uma entrevista para o documentrio que ele estava dirigindo34.

    Os dois convites fizeram-me ter certeza da confiana que aquelas pessoas

    depositavam em mim. Mas devo admitir que o convite da Dalva me fazia questionar

    as minhas possibilidades de ao enquanto futura cientista social pois, durante

    uma ida Defensoria Pblica, somente a advocacia aparecia como uma

    possibilidade concreta de atuao a favor dos familiares das vtimas. J o convite doMrcio possibilitou-me pr em prtica algo que eu realmente sabia fazer por conta

    do que tinha aprendido enquanto estagiria de um projeto de pesquisa da minha

    faculdade. Momentos como esses ainda se repetiram muitas vezes: apesar do meu

    enorme interesse em relao s atividades de pesquisa durante a graduao em

    Cincias Sociais, o cotidiano daquele movimento social me fazia duvidar cada vez

    mais da capacidade de interveno de um profissional desta rea, ao pr em prtica

    34Ver nota 15.

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    suas competncias especficas, que resultasse em alguma mudana para os

    moradores de favelas.

    Curiosamente, a demanda dos prprios integrantes da Rede foi um dos

    fatores fundamentais para eu ficar mais vontade em relao minha escolha

    profissional. A participao no documentrio foi s o ponto de partida deste

    processo. No final do ano de 2004, entrevistei novamente Marta Dahyle35, no seu

    apartamento na Tijuca. Conversei com Mrcio sobre o que eu achava interessante

    perguntar e ali iniciava-se um processo de troca interessante, porque tanto esta

    entrevista, como outros trechos do material bruto deste documentrio foram-me

    cedidos para que eu pudesse utilizar/citar falas que no fizeram parte da edio final

    do filme em relatrios de atividades de pesquisa e outros textos posteriores, comopor exemplo a minha monografia de concluso de curso de graduao.

    Mas at a, estava tudo sob controle. Entrevistar uma das mes das vtimas

    da chacina do Borel (a primeira durante o trabalho de campo), no era uma tarefa

    complicada. O primeiro desafio apresentou-se durante os preparativos da Rede

    para a ida ao V Frum Social Mundial em Porto Alegre evento programado para

    acontecer em janeiro de 2005. Naquela poca, eu ainda acompanhava praticamente

    todas as reunies do grupo. Na reunio em que foi decidida a primeira lista depessoas que teriam seus lugares garantidos no nibus que seria alugado pelo

    movimento para a viagem (ida e volta) at Porto Alegre, um dos integrantes da

    Rede colocou meu nome na lista sem perguntar nada a ningum nem a mim. Eu

    cheguei a questionar, depois que percebi, minha incluso naquela lista, mas ao

    menos ali, durante aquela reunio (e na minha frente!) nenhum integrante do

    grupo questionou a insero do meu nome.

    Muito mais do que ida e volta grtis num nibus para Porto Alegre, a inserodo meu nome naquela lista significava que eles me viam como integrante do grupo

    tambm; dado novo por mais que eu achasse que estava sendo vista, desde o incio

    do trabalho de campo, como uma estudante da UERJ (at gente boa para alguns)

    que estava fazendo uma pesquisa sobre aquele grupo. Saber que eu merecia

    pertencer quela lista foi um verdadeiro presente para mim. Depois deste dia,

    passou a me importar bem menos o fato de manter ou no um posicionamento de

    pesquisador e no de militante. As fronteiras entre os distintos posicionamentos no

    35Ver nota 27.

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    estavam nada demarcadas e esta situao no se resolveu facilmente. E ainda bem

    que foi assim.

    Poucas reunies depois, iniciou-se o processo de diviso das tarefas relativas

    participao da Rede no FSM de 2005. Dentre as diversas tarefas, uma era

    escrever um texto (uma lauda, para a confeco de um panfleto), no qual deveriam

    estar enumeradas e explicadas as propostas polticas da Rede. O texto seria

    distribudo durante as oficinas que o movimento realizaria em Porto Alegre. Deley de

    Acari foi escolhido para escrever o texto. Maurcio Campos36sugeriu, ainda durante

    a reunio, que eu escrevesse o texto junto com Deley. A a observadora j estava

    comeando a se enrolar! Como eu escreveria um texto que futuramente poderia se

    tornar meu objeto de anlise? Esta dvida existiu durante poucos minutos. E quandoeu pensei nisso, j tinha respondido que sim, aceitava me responsabilizar pela

    tarefa junto com Deley. E como no aceitar? Era uma oportunidade de fazer algo

    concreto (ainda que fosse algo pequeno) para aquele grupo que havia me recebido

    to bem e que tinha acabado de deixar claro que me considerava um deles37,

    ainda que eu no integrasse um dos grupos que constituam o trip da Rede.

    Enfim, o texto foi escrito e a viagem aconteceu. Mas eu fui e voltei de Porto

    Alegre sem me considerar como integrante da Rede. Conviver diariamente,estreitar laos sociais, compartilhar intimidades certamente, tudo isso marca um

    momento importante da minha vida pessoal. Mas eu desempenhava as atividades

    como se estivesse com o piloto automtico ligado: ajudava a carregar coisas

    porque sempre ajudei, ajudava a arrumar os espaos das oficinas da Rede porque

    todos estavam ajudando, fotografava os eventos porque sempre fotografei, gravava

    o udio das oficinas da Rede porque sempre gravei e fazia anotaes num

    caderno de campo porque sempre anotei. Nem militante convicta, nempesquisadora convicta.

    A viagem, portanto, no significou para mim uma insero concreta naquele

    movimento social e nem me fez achar que dormir e acordar com aquele grupo foi a

    36Ver nota 13.37Considero importante ressaltar o comportamento da minha orientadora diante de situaes comoessa. Eu falava com ela do desenvolvimento da tarefa junto Rede e ouvia frases do tipo s presteateno, Ju; o importante se as perguntas que voc faz so de dentro ou de fora. Mrcia jamaiscobrou o tal do distanciamento necessrio ao rigor cientfico exigido nas pesquisas sociolgicas.

    Foi incapaz de dizer acho que voc no deve fazer, ou faa deste e no daquele jeito. Mrciasimplesmente esperou o meu tempo de perceber a melhor forma de lidar com essa sobreposio deidentidades. Em momentos como aquele eu me pegava agradecendo por ser ela a minha orientadora.E at hoje me pego fazendo o mesmo. A academia pode no ser to feia o quanto parece.

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    melhor oportunidade para coletar dados. Mas, naquele momento, no ter um

    posicionamento definido em relao Rede me incomodava mais do que fazer

    trabalho de campo por costume, sem ter ainda um recorte especfico.

    Depois da viagem, cheguei a acompanhar algumas reunies do grupo, mas j

    no mantinha a mesma freqncia. Eu estava cansada das discusses internas da

    Rede, do tempo perdido com fofocas envolvendo os integrantes do grupo e, alm

    disso, iniciei em 2005 o curso de mestrado e comecei a trabalhar paralelamente em

    dois projetos de pesquisa. Enfim, afastei-me da Rede. No totalmente, mas me

    afastei.

    Digo que no foi totalmente porque houve uma demanda do movimento que

    me permitiu participar daquele processo de outra forma. Eu enxergava aparticipao como uma espcie de parceria: eu me via como algum de fora do

    grupo com quem eles sabiam que podiam contar para determinadas tarefas

    (escrever um projeto de pedido de financiamento, por exemplo) ou para estar

    presente em momentos importantes (especialmente nas manifestaes pblicas).

    Mas aquela relao no era vista pela Rede como uma parceria. Um dia, fui

    informada, atravs de um telefonema, que havia sido tirado em reunio que eu

    participaria da realizao de um relatrio sobre casos recentes de violncia policialem favelas. Quem me ligou foi Bete presidente da Associao de Mes de

    Vtimas do Caju e militante da Rede que na poca havia sido convidada pela

    Anistia Internacional para participar de uma srie de atividades em diferentes pases

    da Europa.

    Diante do convite da Anistia, foi decidido em uma reunio que seria produzido

    um relatrio atravs do qual Bete pudesse denunciar no s os casos de violncia

    nos quais as vtimas eram filhos/familiares de integrantes da Rede, mas tambmoutros casos, de preferncia ocorridos recentemente nas favelas da cidade do Rio

    de Janeiro. Ao me telefonar, Bete explicou que j havia uma lista dos casos e que

    faltavam apenas os dados relacionados aos mesmos. A proposta era que

    realizssemos juntas algumas entrevistas com os familiares das vtimas daqueles

    episdios recentes. Teramos pouco tempo, pois a data da viagem de Bete estava

    bem prxima. Ento ela se responsabilizaria pelos contatos, agendaria os encontros

    e, depois das entrevistas realizadas por ns duas, eu escreveria o relatrio.

    Tal proposta teve um peso enorme na minha trajetria tanto de

    pesquisadora, como de militante. Foi a partir da realizao dessas entrevistas e da

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    produo do relatrio que comecei a enxergar outras maneiras de participar daquela

    luta contra violncia policial. Tambm foi durante uma destas entrevistas que fui

    apresentada pela primeira vez como integrante da Rede de Comunidades e

    Movimentos contra Violncia a outros moradores de favela38. Apesar de achar que

    os integrantes da Rede j me consideravam parte do grupo desde a viagem a Porto

    Alegre, foi diferente ter escutado um dos militantes dizer: Aquela Juliana, da

    Rede.

    E este relatrio foi o primeiro texto que escrevi sozinha e assinei pelo coletivo

    Rede de Comunidades e Movimentos contra Violncia. E foi assim abrindo mo

    de algo to fundamental para a carreira acadmica e para mim tambm que eu

    comecei a me considerar como militante. Foi atendendo a demandas como esta queeu comecei a perceber que seria possvel estar dentro da academia e dentro do

    movimento. O seja, o que me fez assumir a condio de integrante da Rede foi, ao

    mesmo tempo, o que me permitiu o afastamento necessrio para eu escrever um

    trabalho acadmico mesmo: esta dissertao que vocs esto lendo.

    Explico. Percebendo as limitaes prprias de um trabalho acadmico diante

    da complexidade das questes relativas sociabilidade urbana (especialmente no

    que diz respeito rotina dos moradores de favelas na cidade do Rio de Janeiro),no conseguia me sentir vontade para pensar a violncia policial nas favelas. Eu

    queria produzir uma dissertao-denncia, algo que tivesse o poder de uma

    interveno poltica mais direta. Resumindo: eu no queria escrever um trabalho

    acadmico. Portanto, ao aceitar os convites da Rede e ao me assumir militante, eu

    passei a desempenhar uma atuao mais direta e assim permiti-me elaborar um

    projeto de dissertao para pensar no para pensar a violncia policial em

    favelas (porque esta eu no quero pensar, eu quero denunciar); mas para pensaralgo que me interesse enquanto pesquisadora: os formatos de protesto dos

    movimentos sociais, em especial aqueles que valorizam o poder de comunicao

    das imagens para fazer poltica. Havia, enfim, elaborado as minhas questes e

    definido o meu recorte de pesquisa.

    Sendo assim, o meu distanciamento se deu atravs da radicalizao do meu

    envolvimento com o grupo social que estava sendo observado. E como essa

    38No dia 29 de setembro de 2005, Bete, Maurcio e eu fomos Vila do Pinheiro, na Favela da Mar,para entrevistar os familiares de Carlos Henrique da Silva, atingido na cabea durante uma incursodo BOPE.

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    necessidade de um distanciamento para a realizao de um trabalho cientfico

    sempre me pareceu um problema, admito que sou grata Rede por ter me ajudado

    a solucion-lo. Fiz questo de apresentar tal desconforto nesta dissertao porque

    de fato compreendo este trabalho como uma oportunidade para dialogar com a

    academia e gostaria de aproveitar este espao no s para explorar afinidades

    analticas e tericas, mas tambm para compartilhar preocupaes.

    No pretendo enveredar por um caminho que me conduza a questionamentos

    relativos aos papis a serem cumpridos atualmente pelas disciplinas que compem

    as Cincias Sociais. Mas considero pertinente recuperar algumas reflexes que

    marcam um debate acerca dos limites e dos alcances da antropologia,

    especialmente aquelas que envolvem questes ticas.O ponto deste debate que me interessa resgatar est relacionado, numa

    escala global, com o desmantelamento dos imprios coloniais momento em que as

    relaes sociais entre os que perguntam e observam e os que so perguntados e

    observados passam por transformaes radicais (Geertz, 2002). Estas

    transformaes foram marcadas, basicamente, pelo fato deste outro escolhido

    pelos antroplogos das culturas ocidentais para ser estudado passar a se

    apresentar e, especialmente, a se posicionar como um grupo, que alm de ter (ouexigir) pleno acesso aos escritos produzidos a seu respeito, tambm elabora

    anlises a respeito de si mesmo e dos grupos que os escolhiam como (e, s vezes,

    s os enxergavam como) objeto de estudo.

    Ainda que ns pesquisadores