liberdade na cabeça
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A cabeleireira afro Negra Jhô superou uma infância difícil e hoje faz trança em famosos, é modelo de cidadania e ganhou título de belezaTRANSCRIPT
LIBER-POR SILVIA ARAÚJOFOTOS SOLANGE ROSSINI
Entrevista Negra Jhô
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negra, filha de ogum com Yansã, mãe solteira, avó, dona de
um sorriso cativante. Com autoestima elevada, negra Jhô usa
diariamente vestimentas africanas e turbantes coloridos. é forte
e se integra perfeitamente ao cenário do Centro Histórico ao
despojar-se na calçada em frente ao seu salão.
Casé e Mariana ximenes. Nos cabelos realiza
verdadeiras obras de arte, inspiradas em
técnicas próprias adquiridas desde a infância,
quando penteava as irmãs e as bonecas,
usando a sensibilidade, a curiosidade, assim
como o sangue e a raça africanos, dos quais
muito se orgulha.
Negra Jhô também se destaca na criação de
estilosos turbantes, mantendo com sucesso
a exposição Coroa de Ouro, com 21 peças,
no Museu Udo Knoff, no Pelourinho. Ela foi
símbolo do Carnaval em 2003 e é destaque
há nove anos no Bloco Olodum. Está em
badalados eventos como símbolo da cultura
e estética da mulher afrodescendente. Um
dos seus desafios é o trabalho social que
realiza no Centro Histórico, e que tenta levar
dignidade às crianças daquela região, a
partir da capacitação com trançado afro.
capacitação
DADELIBER-a caBeleireira afro negra Jhô superou uma infância difícil e hoJe faz trança em famosos, é modelo de
cidadania e ganhou título de Beleza
ela nasceu em um terreiro do candomblé, em quilombo da muribeca,
em são Francisco do Conde. no ano passado, ficou extremamente feliz,
pois foi brindada com o título de Cidadã de salvador e com o prêmio
da revista Contigo!, categoria beleza. “Para mim é forte demais, tanta
menininha de peitinho e corpinho arrumadinhos e eu arrebatei este
prêmio da Contigo!”, brinca ela com seu tom espontâneo e simpático.
valmira telma Jesus sacramento, 51 anos, é cumprimentada
praticamente por todas as pessoas que passam à sua frente, no
Pelourinho. Às crianças, ela sempre faz uma referência carinhosa:
“Como você está bonita hoje!” um tratamento bem diferenciado do
que sua madrasta lhe fazia, aos 5 anos de idade. na época, usava
vestidos largos e coloridos, tinha cabelos curtos e usava um pano
amarrado na cabeça. era depreciada e chamada de João. daí a origem
de seu nome. mas não ligava, deu a volta por cima. Criou os seus dois
filhos, afro Jhô, 30 anos, e Caio Jhê, 12 anos. Foi precursora em trançar
cabelos ao ar livre, em plena calçada do Pelô. tornou-se referência em
penteados afro. atendeu personalidades como Carlinhos brown, lázaro
ramos, daniela mercury, ivete sangalo, thiago lacerda, regina
na cabeça
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Let’s Go - Você já trançou muita gente
famosa? Isso te envaidece?
Negra Jhô - Olha... Todas as pessoas que
entram aqui adiciono como celebridades.
Não me ligo em famosos. Ligo-me nesse dia
a dia porque a fama está dentro da gente
e se a gente não souber levar o índice de
fama, tira o pé do chão e se perde.
Let’s Go - Qual a concepção da
exposição de turbante que criou?
Negra Jhô - Esta exposição uniu o útil ao
agradável. O espaço com o momento. Eu
queria fazer fechar o ano com esta exposição
neste local bem bacana, o Museu Udo
Knoff. Já passaram mais de mil pessoas
visitando. A cada trabalho me concentrei,
me entreguei, criei o nome, fiz homenagens
às pessoas que representam algo pra mim,
como minha mãe, meu filho Afro Jhô,
zumbi dos Palmares, Carlinhos Brown.
Coloquei o material no chão e fui criando.
Não estudei para fazer algo direcionado. Foi
algo intuitivo. Depois que vejo a exposição
montada, eu fico assim: “Meu Deus... onde
fui?” Fui muito além do que se espera de
mim. A proposta vai pra outros estados e
países. Vamos trabalhar para isso.
Let’s Go - Desde quando você usa
vestimenta afro?
Negra Jhô - Quando era pequena eu via
o filme de Tarzan. Ele é um homem branco,
mas foi criado na áfrica. Quando passava
a parte da áfrica eu ficava louca, o que via
mexia comigo e dizia: “Meu Deus, um dia
ainda vou me vestir assim. Eu tenho que
permanecer minha vida toda assim”. Aí
me chamavam de maluca. Olha eu aqui,
fazendo o que eu sempre almejei. Eu me
visto assim no meu dia a dia. Adoro cores
que chamam atenção, vermelho, laranja...
Nasci dentro do candomblé, sigo a religião
de matriz africana e fiz aqui na exposição
um turbante inspirado na natureza.
Entrevista Negra Jhô
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negra Jhô assina estilosos turbantes da exposição Coroa de ouro, com 21 peças, no museu udo Knoff, no Pelourinho
Let’s Go - O que a religião representa para você?
Negra Jhô - A religião é a humildade, a sabedoria, não discriminar quem está ao seu lado. É o que você cultua, no que você crê. Pra mim um copo de água é uma religião porque a água tanto mata quanto salva. Ela é a benção, o respeito.
Let’s Go - Como se sente Cidadã de Salvador? Inclusive, 2011 foi um ano de reconhecimento, como cidadã. E a revista Contigo! também lhe reconheceu na área Beleza...
Negra Jhô - Foi um ano muito bom, aclamado, cheio de títulos. Estou feliz com o reconhecimento, com este meu jeito sou vista como cidadã de Salvador, pois amo esta cidade e me sinto parte dela. A Contigo! também foi gratificante, muito forte arrebatar um título deste, pois num mundo em que se valoriza meninas com peitinho e corpinho arrumadinhos, eu fui escolhida.
Let’s Go - Qual o movimento que você está fazendo para conseguir montar o centro de arte, cultura e estética?
Negra Jhô - Eu sei que vou conseguir em 2012 um espaço maior para implantar os meus cursos e oficinas de penteado, dança afro, turbantes e culinária, exposições. Hoje realizo as atividades nas instituições e associações que me contratam ou convocam. Espero que o ano seja de mudanças. Tenho fé.
Let’s Go - Como você desenvolve seu trabalho social? Como contribui para combater a pobreza no Centro Histórico?
Negra Jhô - Eu tenho vários filhos que não pari. Muitos me chamam de mãe, avó, tia. Eu tenho um trabalho social. Aliás... nem sei o que faço... O povo diz assim: “Ah! o seu salão”. Não é um salão é uma casa de amor. Eu dou colo, eu dou carinho, vou pra delegacia, para os hospitais, para a sinaleira (divaga). Eu tenho um instituto e vou renovar a minha documentação para angariar verbas porque já cansei de tirar de onde não tem. Pois tudo que a gente faz tem um custo. Tenho um projeto, o Eterna Juventude, de oficinas de maquiagem e dança com mulheres idosas que sofreram a vida toda. Tudo isso fazemos num grupo com pessoas que têm idade de ser a minha avó e a gente se depara com a mesma idade.
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Temos ainda um trabalho social
com meninos de rua, conversamos com eles e
tentamos tirá-los da rua. Damos a liberdade, carinho.
Let’s Go - Você também teve uma infância
muito sofrida ?
Negra Jhô - Já passei necessidade, dormi com
fome, apanhei muito para sobreviver. Eu não me
vencia, sempre reagia, sempre fui atrás de meus
direitos, de melhorar minha vida e as de meus
irmãos. Sempre gostei de roupa grande, larga,
colorida, como não tinha cabelo, os meninos
me colocaram o nome de João, eu usava meus
turbantes.
Let’s Go - Mas você superou tudo isso? Como
ficou sua autoestima?
Negra Jhô - Eu me senti na sorte, na ousadia
de guerrear, de crescer, de mostrar a minha força,
a minha liderança. Eu sou blindada pelos meus
valores. O que me diziam não me abalava, ao
contrário, me fortalecia. Dei a volta por cima. Tenho
formação em Auxiliar de Comunicação, trabalhei
como auxiliar de embalagem, já cozinhei, lavei, fiz
congelamento. E faria tudo de novo se precisasse.
a baiana nascida no quilombo da muribeca, em são Francisco do Conde, é cidadã soteropolitana e símbolo de beleza
Entrevista Negra Jhô
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