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A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso. David Lynch: o céu em chamas Autor(es): Alcarva, Paulo Publicado por: Crescente Branco: Associação Cultural e Recreativa URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/37356 Accessed : 7-May-2021 22:42:57 digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

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Page 1: letras & artes · 2016. 3. 22. · “Blue Velvet” e “Twin Peaks” (a série de televisão (1990-91) e o filme prequela “Twin Peaks: Fire Walk with Me”, 1992), Lynch utiliza

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UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e

Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos.

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Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito

de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste

documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por

este aviso.

David Lynch: o céu em chamas

Autor(es): Alcarva, Paulo

Publicado por: Crescente Branco: Associação Cultural e Recreativa

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/37356

Accessed : 7-May-2021 22:42:57

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PAULO ALCARVA

DAVID LYNCHO CÉU EM CHAMAS

If everything is real, then nothing is real as wellDavid Lynch (The Angriest Dog in the World)

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O surrealismo, como o dadaísmo fizera anteriormente, veio propor um mergulho sobre o irracional, revolvendo as entranhas da arte (velha?) e criar algo que reflectisse a verdadeira natureza humana.

Assim, se o cubismo promoveu uma derrocada da representação realista do mundo, o surrealismo veio desestruturar a lógica racionalista e deixar vir à tona (também) o horror antevisto séculos atrás por Bruegel, o Velho. Esta forma de representação artística e pensamento veio mostrar-nos que o son(h)o da razão produz monstros, construindo uma dialética permanente entre o racional e o irracional, que no Cinema contemporâneo (e mesmo na arte em geral) apenas se reconhece presente verdadeira e coerentemente nas obras de David Lynch e de Terry “Monty Python” Gilliam. Mas com particular grandiloquência e obstinação na cinematografia de Lynch.No caso de Lynch essa obstinação consiste em ir às profundezas do inconsciente e voltar com matéria suficiente para produzir uma obra de arte. Lynch desde sempre recusou-se a mergulhar num universo de imagens e de conteúdos convencionais, moldando as suas personagens e os seus cenários na matéria do absurdo e do maravilhoso. Em Lynch o percurso surrealista foi-se adensado à medida que foi construindo o seu Cinema, com a domesticação do excesso das suas primeiras curtas-metragens e uma mais perfeita fusão entre o onírico e o espaço real. Assim, se na sua primeira obra, “The Alphabet” (1968), sabemos que os acontecimentos ocorrem no sonho da criança, sendo aí que encontramos explicitamente a distorção/abstracção/reversão, já no mais maduro “Blue Velvet” (1986) o sonho invade o real e o quotidiano, a luz do dia, e é contaminado pela razão surreal.Se há um momento/cena de um filme de Lynch que sintetiza na perfeição a sua visão surreal, encontramo-lo precisamente na obra-prima absoluta que é “Blue Velvet”, quando a câmara ululante viaja por um típico jardim dos subúrbios: a cerca de madeira imaculadamente branca, o céu de um azul paradisíaco, as flores primaveris luxuriantes de cor e harmonia e, de repente, um contrapicado sobre a relva perfeitamente aparada e passamos a estar em contacto com formigas, vermes e … uma orelha humana ensanguentada! Lynch cita Buñuel na mutilação em “Un Chien Andalou”, um dos filmes inaugurais da corrente surrealista no Cinema.A superfície perfeita desmorona-se e vemos de que massa também o real é feito. Vemo-nos ao espelho como seres humanos matizados de várias cores e luzes, de várias realidades, também com as nossas humanas imperfeições e almas quísticas. Ver implica redireccionar o olhar. Para se penetrar no mistério do real, que não é raso, nem previsível, temos de olhar para dentro de nós, descascar as suas várias camadas de significação.

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O QUOTIDIANO (SUR)REAL

Com a excepção de “Dune” (1984), o mundo surreal de Lynch emerge do quotidiano, do subúrbio, da pequena cidade industrial. Através de uma apuradíssima técnica cinematográfica, muito longe da pirotecnia actual do 3D e dos efeitos especiais, o cinema de Lynch suporta-se antes em montagens de imagens com primorosos “raccords” e uma estética cénica e sonora enleante como se de um poema se tratasse. A rebeldia da poesia marca também a permanente desconstrução da linha narrativa, não obedecendo a uma lógica discursiva no encadeamento das ideias; muitas vezes há uma discordância entre o sentido e a sintaxe filmíca, causando uma propositada ruptura no discurso.Essa linguagem poética surrealista existe mesmo no seu cinema aparentemente mais directo, como é o caso flagrante da história de Alvin em “The Straight Story” (1999) (título que brinca precisamente com essa ideia de história simples e com o nome da personagem principal, Straight). Alvin é um viajante que se perde na sua viagem, como se integrasse o texto de André Breton e Philippe Soupault feito a partir da escrita automática, “Les Champs Magnétiques”, onde o seu percurso (“straight”) é mais do que uma simples viajem. Antes estamos na presença de um processo de reencontro de si mesmo, repensando a sua vida perante a morte iminente do seu irmão e talvez da sua própria. A viagem física e exterior é um pretexto para a sinuosidade da viagem interior.“The Straight Story” não desmonta a construção da lógica narrativa como “Eraserhead” (1977) ou “INLAND EMPIRE” (2006), contudo, tal como em “Blue Velvet” e “Twin Peaks” (a série de televisão (1990-91) e o filme prequela “Twin Peaks: Fire Walk with Me”, 1992), Lynch utiliza o quotidiano para revelar aquilo que está sob a superfície, como nesta odisseia de Alvin Straight. Um poema surrealista.“So you see, there’s this beautiful world and you just look a little bit closer and it’s all red ants.” (David Lynch) Esta pequena frase sintetiza todo o universo dos filmes de David Lynch, uma sensação de permanente e apreensivo alerta para o que nos intriga e intranquila, envolvido e ameaçado pelo quotidiano e pela segurança do dia-a-dia. “A habilidade de detectar o poder diabólico do futuro a bater à porta”, como chamava Gilles Deleuze ao trabalho de Kafka e Francis Bacon e que faz justiça também à visão metamórfica de Lynch. “Eraserhead”, a sua primeira longa-metragem, é a elegia de Lynch à “Metamorfose” de Kafka e a “O Nariz” de Gogol.

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A RAZÃO DOMESTICADA PELOS SENTIDOS

Porque é que o cinema de Lynch ainda hoje surpreende pela falta de linearidade narrativa? Porque é que se continua à procura em “Mulholland Drive” (2001) de uma história com causa e efeito? A resposta a estas perguntas leva a pensar que a relação do público com o cinema (de Lynch) está ainda muito atrasada em relação, por exemplo, às artes plásticas e à literatura, onde as diversas rupturas modernistas libertaram há muito tempo a obra de arte da necessidade de apresentar unidade e coerência. Neste sentido, a perplexidade que o cinema de Lynch gera parece tão antiquada e obsoleta quanto um eventual sentimento de escândalo diante de um quadro da fase cubista de Picasso.É verdade que a forma sequencial como se desenvolve a própria experiência fílmica encoraja a que do filme se espere uma forma narrativa, seja ela qual for. A que acresce o facto de a nossa mente nascer (e viver) figurativa, ou ser contaminada ao longo da vida por essa necessidade; e mesmo a construção não-narrativa, assim mesmo, costuma também ela obedecer a uma lógica que, se decifrada, auxilia a compreensão do que se imagina que deva ser compreendido. Mas tudo isto são circunstâncias que devemos estar dispostos a abdicar, transformar, para poder entrar numa dimensão sensorial para além do real, surreal.O cinema de David Lynch, como bem sublinha a habitual banda sonora sombria e hipnotizante de Angelo Badalamenti, pretende falar mais aos sentidos do que à razão, dirigindo-se ao inconsciente do espectador. O suspense e a estranheza são produzidos mais pela atmosfera criada do que pelas armadilhas convencionais dos enredos, que ocultam até o último segundo a chave de um enigma. David Lynch caminha sempre no sentido inverso: começa por contar uma história aparentemente linear, para depois baralhar tudo, numa viagem alucinante.O que David Lynch nos propõe constantemente é uma experiência de imagens, sensações, narrativas ocultas. O que ele nos dá não é uma narrativa capaz de ser entendida à luz do repertório que o cinema nos possibilitou, mas um punhado de retalhos que nos fazem construir a nossa própria narrativa – que, dessa mesma perspectiva, não tem a obrigação de fazer qualquer sentido. A matéria do seu cinema é a mesma que constrói diariamenteos nossos sonhos/pesadelos.