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Letícia Mendes Ricardo Uso de Plantas Medicinais: o Sistema Único de Saúde e a autonomia dos saberes comuns Rio de Janeiro 2009. Ministério da Saúde Fundação Oswaldo Cruz Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca

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Letícia Mendes Ricardo

Uso de Plantas Medicinais: o Sistema Único de Saúde e a autonomia

dos saberes comuns

Rio de Janeiro2009.

Ministério da Saúde

Fundação Oswaldo Cruz

Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca

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Letícia Mendes Ricardo

Uso de Plantas Medicinais: o Sistema Único de Saúde e a autonomia

dos saberes comuns

Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ, como requisito parcial à obtenção do título de especialista.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Navarro Stotz.

Rio de Janeiro2009.

Folha de Aprovação

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Letícia Mendes Ricardo

Uso de Plantas Medicinais: o Sistema Único de Saúde e a autonomia

dos saberes comuns

Banca examinadora:

_________________________________

Prof. Ms. Glauco de Kruse Villas Bôas

_____________________________________

Prof. Dr. José Wellington Gomes Araújo

_____________________________________

Prof. Dr. Eduardo Navarro Stotz

Rio de Janeiro2009.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha mãe pelo amor, incentivo e força para

começar um novo processo de estudo e trabalho; pelo esforço

para viabilizar minha dedicação ao estudo durante 2008.

Aos queridos amigos de Minas, em especial à Mari e à Bia,

que sempre estiveram junt@s na formação de uma referência

profissional, política e ética e na luta pela saúde pública.

Aos novos amigos cariocas que estiveram junt@s

no estudo sobre a saúde coletiva ao longo de 2008;

Aos que ajudaram a suportar a saudade de casa, da família

e do sotaque mineiro com um samba bem carioca...

À Isa, amiga querida que compartilhou as inúmeras

“regras religiosas” no primeiro ano de Rio e companheira no

entendimento da saúde pública e nas dificuldades

de elaboração de um trabalho científico...

Ao Júlio, pelo carinho, compreensão e incentivo ao novo desafio;

pelo exemplo de tranqüilidade e esforço.

Aos professores do curso de Especialização em Saúde Pública da ENSP / Fiocruz

no ano de 2008, em especial à coordenação, sempre empenhada

em garantir a qualidade e o aprofundamento dos diversos temas abordados.

Ao Eduardo Stotz, professor que se disponibilizou

a orientar esse meu primeiro trabalho acadêmico; pelos inúmeros aprendizados

construídos a cada conversa e pelo exemplo de pesquisador

comprometido com a articulação entre teoria e prática em direção à transformação social.

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“Desde os tempos medievosNossos sábios ancestraisQuando surgia um problemaDe doenças corporaisSeu médico e sua farmáciaEstavam na eficácia Das plantas medicinais.

Pra misturar uma plantaCom outra planta, dependeDa pessoa conhecerDonde uma e outra descende,Isso aí requer culturaPorque senão a misturaEm vez de curar ofende.

Quando um índio era atingido Pela flecha duma bestaOu a borduna acertavaO meio da sua testaPra curar o ferimento Ia ‘ver’ medicamentoNa farmácia da floresta.

Os pretos vindos da ÁfricaNos tais Navios NegreirosTrouxeram os braços escravos,O candomblé dos Terreiros,O som dos caracachás,A fé nos seus Ourixás,E o saber dos curandeiros.

Quando por qualquer ‘deslize’Os negros eram açoitados,Suas feridas abertasE seus membros laceradosTratavam a base de ervaCom o saber de reservaVindo dos antepassados.

Branco colonizador, Silvícola, ou negro servil,Aprenderam se tratarAqui nesse meio hostilPois se alguém passava malSó tinha como hospital As florestas do Brasil.

Neste trabalho eu descrevoPlantas de muitos Estados,Para as diversas doençasE com nomes variados,Graças ao clima e distância,Nuns, tem com muita abundância,Noutros, não são encontrados.

Esta farmácia do mato Não tem caixa, nem balcão,Nem ‘empurroterapia’Nem tem falsificação,Disso, pode ter certezaPorque a mãe naturezaÉ despida de ambição.

Essas árvores e plantinhasNo campo, ou casa, conservemPara usar quando preciso E a seguir observem O modo de preparar,A maneira de usarE de fato pra que servem.

Todas as plantas citadas Têm poder medicinalMas não usando direitoEm vez de bem fazem malE se a doença insistirNão se recuse de irA busca dum hospital.”

Trechos da literatura de Cordel:

Monteiro, M. O poder das plantas na cura das doenças.

Campina Grande, Paraíba. Jun. 2004

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RESUMO

O uso de plantas medicinais pela população brasileira ocorre com bastante freqüência,

em conjunto ou não com medicamentos sintéticos e baseia-se, muitas vezes, em conhecimento

empiricamente construído. A Saúde, como campo de saberes e práticas que disputam o

monopólio do cuidado ao usuário, favorece o uso de plantas medicinais sob o aspecto dos

sistemas terapêuticos e sob o dos usuários, o que fomenta, por parte desses últimos, dispor do

“sincretismo” como forma terapêutica popular. Nesse sentido, entender o contexto e as

características da utilização de plantas medicinais, as relações com o saber científico e com o

Sistema Único de Saúde favorece a atuação na permanente construção de um sistema de

saúde universal e resolutivo bem como a elaboração de políticas públicas articuladas à

realidade. Para tanto, procedeu-se a análise da produção acadêmica sobre o conhecimento

popular de plantas medicinais na região sudeste brasileira à partir da utilização de vinte

descritores nas bases de dados Lilacs, Scielo e Google Acadêmico.

A literatura examinada mostrou diferentes percepções sobre a utilização de ervas,

estando uma mais próxima do conhecimento tradicional e outra mais afastada do mesmo,

denotando pouca observação e cuidado no uso de plantas medicinais. Vários estudos

ressaltaram também que as plantas são utilizadas com finalidade ritualística / religiosa, ou

seja, recorre-se a funções que ultrapassam propriedades farmacológicas. Configurando-se

como uma forma de conhecimento, o uso popular de plantas medicinais passa a se relacionar

com o conhecimento científico apropriando-se de elementos oriundos desse último e gerando

novas informações que são utilizadas no meio acadêmico. Nesse sentido, observou-se também

que as transformações da Biomedicina ao longo da história guardam relação com o aumento e

redução do uso de plantas medicinais.

Verificou-se que a Transmissão do Conhecimento sobre plantas medicinais relaciona-se

com dificuldades de acesso ao Sistema Único de Saúde e insatisfação com o atendimento

recebido. Entretanto, a literatura examinada apontou dificuldades na transmissão do

conhecimento, particularmente a intergeracional. Não obstante, observou-se que as redes

sociais são meios profícuos de troca e difusão de práticas populares de saúde.

Palavras-chave: plantas medicinais, conhecimento popular, Sistema Único de Saúde.

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ABSTRACT

The use of medicinal plants by Brazilian population occurs frequently, in combination

or not with synthetic medicines, and often bases on empirical knowledge. The Health, as a

field where knowledges and practices dispute the monopoly of the users care, favors the use

of medicinal plants by therapeutics systems and users aspects, what promote, by these ones,

the syncretism as a popular therapeutic. Understanding medicinal plants´ context and

characteristics favors the construction of a universal and resolutive health system besides the

development of public policies close to reality. It was proceeded an analysis of the academic

production about medicinal plants popular knowledge on the southeast Brazilian region.

Twenty descriptors were used on Lilacs, Scielo and Google Acadêmico.

The examined literature showed different perceptions about herbs utilization, one closer

by the traditional knowledge and other farther, meaning few observation and care on

medicinal plants use. A lot of researches highlight that plants are also used with a ritualistic /

religious purpose, invoking functions that transcend the pharmacological properties. As a type

of knowledge, the popular use of medicinal plants links to the scientific knowledge by

appropriating some elements produced by it and generating new informations that would be

used on academy. On this way, it was observed that there are relationships between the

Biomedicine transformations along the years and increases and reductions on medicinal plants

use.

It was verified that knowledge transmission about medicinal plants keeps a relationship

with a difficult of access to the Unified Health System and a discontent with the care received.

However, the examined literature pointed difficulties of the knowledge transmission,

especially between generations. Despite that, it was observed that social supports are suitable

places to share and diffuse popularly health practices.

Keywords: medicinal plants, popular knowledge, Unified Health System.

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ÍNDICE

Introdução ................................................................................................................. 01Objetivo Geral .......................................................................................................... 05Objetivos Específicos ............................................................................................... 051. Referencial teórico-conceitual e metodológico .................................................. 061.1 Uso de plantas medicinais e fitoterapia ................................................................ 061.1.1 Uso de plantas medicinais e fitoterapia como conhecimentos populares ......... 071.1.2 Uso de plantas medicinais e fitoterapia como elementos culturais ................... 071.2 Medicina popular ................................................................................................. 081.3 Biomedicina ......................................................................................................... 101.4 Ciência Moderna .................................................................................................. 121.5 Referencial metodológico .................................................................................... 152. Conhecimento sobre plantas medicinais, usos e formas de transmissão ........ 172.1 Conhecimento sobre plantas medicinais ............................................................ 172.1.1 Usos, indicações e posologia ........................................................................... 172.1.2 Comentários sobre toxicidade ......................................................................... 192.1.3 Influências e relações do saber popular sobre plantas medicinais com o

conhecimento científico ...........................................................................................19

2.1.4 Fatores que contribuíram para redução e aumento do uso de plantas

medicinais ao longo do tempo ..................................................................................21

2.2 Transmissão do conhecimento ........................................................................... 242.2.1 Difusão do conhecimento nas comunidades e principais agentes de cura ...... 242.2.2 Relação entre uso de plantas medicinais e estratos sociais ............................. 282.2.3 O contexto local e o uso de plantas medicinais ............................................... 293. O acesso aos serviços oficiais de saúde e o uso de plantas medicinais ........... 333.1 Uso de plantas medicinais como um saber próprio culturalmente reproduzido 333.1.1 Abordagem sobre o uso ritualístico ................................................................. 343.1.2 Relação do saber popular sobre plantas medicinais com o conhecimento

científico ...................................................................................................................35

3.1.3 Relação entre uso de plantas medicinais e biomedicina ................................. 423.2 Relação entre dificuldade de acesso ao Sistema Único de Saúde e uso de

plantas medicinais ....................................................................................................49

4. Considerações finais ........................................................................................... 57Referências .............................................................................................................. 60

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INTRODUÇÃO

Durante a graduação na Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas

Gerais tive algumas experiências em Extensão Universitária que favoreceram

questionamentos acerca da orientação curricular que focaliza o ensino que considera apenas a

dimensão farmacológica das plantas medicinais, deixando em segundo plano os vários

aspectos que permeiam a história de utilização de ervas e a construção desse saber no meio

popular. Nesse sentido, teve fundamental importância o projeto “Extensão em assentamento

do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)” realizado no assentamento Ho

Chi Minh, localizado em Nova União, MG. Sob orientação formal do professor Gil Sevalho e

posteriormente do professor Erly do Prado, o projeto ocorreu a partir do segundo semestre de

2005 até final de 2007. Pude perceber que as plantas medicinais eram uma referência ao

cuidado em saúde tanto como uma forma de resistência ao modelo biomédico quanto como

uma alternativa à dificuldade de acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS), expressando

limites de sua universalidade.

Gaia 1 lembra que as plantas adquiriram importância na medicina popular devido a suas

propriedades terapêuticas ou tóxicas. Exemplos dessa utilização datam períodos distantes,

como a China que se dedica ao cultivo de plantas medicinais desde 3000 a.C. e egípcios que,

desde 2300 a.C, cultivavam diversas ervas e a partir delas formulavam purgantes, vermífugos,

cosméticos e diuréticos 1.

No Brasil, diversas substâncias ativas farmacologicamente foram descobertas por meio

da observação das práticas indígenas com plantas medicinais 2, o que data desde a época do

descobrimento e continua vigorando e se expandindo para o conhecimento oriundo de outras

populações tradicionais – situação observada também em vários outros países. De acordo com

Villas Bôas 3, os dez biomas brasileiros agregam quase um terço da flora mundial,

representando uma biodiversidade exuberante, cujos recursos são “fundamentais para o

desenvolvimento econômico, social e cultural das sociedades humanas” 4. Para Cimbleris 2, o

“Brasil não apenas tem uma enorme biodiversidade, mas possui também uma enorme

sociodiversidade devido à nossa origem mista” (p. 14 – 15). Essa autora lembra que apesar do

histórico uso de plantas medicinais no Brasil e da riqueza socioambiental nesse país, tal

recurso terapêutico não é utilizado em todo o seu potencial, contrastando com a Alemanha,

onde “os fitoterápicos estão em 30% das receitas médicas” 2 (p. 15).

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O objeto de estudo da presente monografia é o conhecimento popular sobre o uso de

plantas medicinais disponível na literatura. Segundo Villas Bôas 5, o conhecimento tradicional

sobre plantas medicinais deve ser diferenciado do conhecimento popular uma vez que aquele

é construído à margem da cultura passada pelos meios de comunicação – cultura de massa – e

este está imerso nesse meio. O conhecimento tradicional, assim como assinala Verger 6, possui

um sistema de classificação próprio, complexo, é fortalecido pela transmissão oral do saber e

construído ao longo de gerações, sendo amplo o suficiente para o cuidado / cura dos vários

males que atingem aqueles que o constroem. Tal conhecimento é peculiar e circunscrito a

populações que permaneceram muito tempo sem contato com outros povos, havendo

geralmente pessoas-chave detentoras do saber e com características fundamentais para a

indicação de um bom tratamento e explicações sobre as causas iniciais dos problemas. Alguns

trechos do livro “Ewé: o uso das plantas na sociedade iorubá”, de Pierre Fatumbi Verger 6,

foram selecionados uma vez que retratam bem a noção de conhecimento tradicional:

“a transmissão oral do conhecimento é considerada na tradição iorubá como o veículo do axé, o poder, a força das palavras, que permanece sem efeito em um texto escrito. [...] O conhecimento transmitido oralmente tem o valor de uma iniciação pelo verbo atuante, uma iniciação que não está no nível mental da compreensão, porém na dinâmica do comportamento. É baseada mais em reflexos que no raciocínio, reflexos estes induzidos por impulsos oriundos do fundamento cultural da sociedade” (p. 20).

“Devemos ter em mente que, na língua iorubá, frequentemente existe uma relação direta entre os nomes das plantas e suas qualidades, e seria importante saber se receberam tais nomes devido às suas virtudes ou se devido a seus nomes determinadas características foram a elas atribuídas, como um tipo de jogo de palavras (ou, mais respeitosamente, ọfộ).Essas encantações-jogos de palavras têm uma grande importância nas civilizações de tradição oral. Sendo pronunciadas em orações solenes, podem ser consideradas como definições e com freqüência são as bases sobre as quais o raciocínio é construído. Servem também como conclusão e prova final nas histórias transmitidas de geração a geração pelos babalaôs, e expressam ao mesmo tempo o ponto de vista da cultura iorubá e o senso comum de seu povo” (p. 24).

O conhecimento popular sobre plantas medicinais também é construído empiricamente,

porém é perpassado por informações advindas do conhecimento científico, de propagandas, e

aquelas obtidas no dia a dia através do contato com outras pessoas – vizinhos, amigos,

conhecidos – em diferentes circunstâncias e espaços – centro de saúde, igreja, farmácia, filas,

entre outras. Geralmente tal conhecimento não foi construído ao longo de várias gerações de

uma determinada população e encontra-se difuso no território. O conhecimento popular sobre

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plantas medicinais se insere no âmbito da Medicina Popular, definição abordada no

referencial teórico-conceitual.

O conhecimento sobre ervas é parte do desenvolvimento científico vinculado

inicialmente ao inventário das “drogas do sertão” e à instalação de jardins botânicos para

futura exploração comercial das plantas. O conhecimento adquirido com os índios durante as

incursões no interior do Brasil teve grande importância para o desenvolvimento de estudos

sobre propriedades terapêuticas de plantas. A botânica, no início de seu desenvolvimento,

buscava nomear e categorizar os vegetais medicinais, sendo provavelmente uma das primeiras

ciências a estudar plantas medicinais 7. Os farmacêuticos, antes da disseminação de

medicamentos sintéticos, buscavam trabalhar com produtos da flora local avaliando as

propriedades terapêuticas das plantas medicinais. Esse início da fitoterapia, muito marcado

pelas experiências populares sobre o uso de ervas, influenciou o distanciamento dessa área do

conhecimento do restante da ciência durante um longo período 7. No âmbito das ciências

sociais o uso de plantas medicinais ocupa posição singular na antropologia, cujos estudos de

etnobotânica buscam compreender as relações entre o ser humano e as plantas.

Os serviços médicos brasileiros, até quase o final do século XX, ficaram restritos aos

trabalhadores formalmente empregados, o que certamente contribuiu para a grande utilização

e construção do conhecimento sobre medicina popular. Somado a isso, nota-se que o Brasil

era um país marcadamente rural até os anos 1960, com amplo uso de plantas medicinais

nativas e introduzidas; cabe lembrar a grande difusão do uso de chás na cultura nacional

brasileira até os dias atuais. A instituição do SUS não impediu o delineamento da Saúde como

campo de saberes e práticas que disputam o monopólio do cuidado ao ser humano que sofre –

paciente, usuário. Com isso, observa-se que o uso de plantas medicinais pode ocorrer sob o

aspecto dos sistemas terapêuticos e sob o dos usuários, sendo as disputas entre os diferentes

sistemas terapêuticos favorecedoras do sincretismo como forma terapêutica popular. Segundo

Rabelo 8,

“muitas das histórias que contam sobre casos de doença revelam um percurso complexo entre diferentes serviços terapêuticos, tentativas — nem sempre bem sucedidas — de lidar com visões conflitantes do problema e incertezas quanto à causa da doença e o resultado dos vários tratamentos procurados” (p. 316).

São buscados diferentes sistemas terapêuticos, que apresentam visões diversas quanto às

explicações causais das doenças e quanto à forma de lidar com ela. A idéia de cura estaria

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ligada à uma realidade processual, uma vez que ela necessita ser continuamente negociada e

“confirmada no cotidiano do doente e dos membros de suas redes de cuidado e apoio” 8 (p.

317).

Considerando que o Brasil possui uma flora medicinal muito rica, que o uso de plantas

medicinais pela população ocorre com bastante freqüência, em conjunto ou não com

medicamentos sintéticos, e que muitas vezes esse uso se baseia em conhecimento

empiricamente construído, é importante estudar a utilização de plantas medicinais para

entender o contexto em que esse uso ocorre atualmente, as relações com o saber científico e

suas implicações com a finalidade de atuar na permanente construção de um sistema de saúde

universal e resolutivo.

Nessa perspectiva de análise a revisão de literatura mostra-se uma forma interessante de

compreender os aspectos citados acima, uma vez que podem ser discutidos trabalhos em

localidades diferentes e perceber semelhanças e desafios que talvez apontem para tendências

atuais da utilização de plantas medicinais.

É importante salientar que a análise crítica da literatura favorece o entendimento de por

que e com qual finalidade as ervas são utilizadas, contribuindo em grande medida para o

desenvolvimento do projeto de pesquisa de Mestrado em Saúde Pública que iniciei em 2009

na Escola Nacional de Saúde Pública / FIOCRUZ, uma vez que pretendo estudar o uso de

plantas medicinais em assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra no

estado do Rio de Janeiro, sob orientação do professor Eduardo Navarro Stotz e co-orientação

do professor Victor Vincent Valla.

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OBJETIVO GERAL

Analisar a produção acadêmica sobre o conhecimento popular de plantas medicinais na

região sudeste brasileira para identificar suas características e as relações com o conhecimento

científico no campo da saúde.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

- Selecionar estudos acadêmicos que abordam o uso de plantas medicinais;

- Identificar aspectos que configuram o uso popular de plantas medicinais como

conhecimento e fatores que se relacionam à sua transmissão intergeracional;

- Relacionar o conhecimento popular sobre plantas medicinais com o conhecimento

científico.

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1 REFERENCIAL TEÓRICO-CONCEITUAL E METODOLÓGICO

1.1 Uso de plantas medicinais e fitoterapia

Plantas medicinais são aquelas que contêm substâncias com propriedades terapêuticas,

podendo ser utilizadas raízes, folhas, caules, flores e cascas. Muitas vezes são chamadas de

ervas e de remédio do mato, indicando o uso popular das mesmas. De acordo com a

Resolução da Diretoria Colegiada nº 48 (RDC 48) da Agência Nacional de Vigilância

Sanitária (ANVISA) 9, de 16 de março de 2004, “Fitoterápico” é definido como

“medicamento obtido empregando-se exclusivamente matérias-primas ativas vegetais. É caracterizado pelo conhecimento da eficácia e dos riscos de seu uso, assim como pela reprodutibilidade e constância de sua qualidade. Sua eficácia e segurança é validada através de levantamentos etnofarmacológicos de utilização, documentações tecnocientíficas em publicações ou ensaios clínicos fase 3. Não se considera medicamento fitoterápico aquele que, na sua composição, inclua substâncias ativas isoladas, de qualquer origem, nem as associações destas com extratos vegetais” (p. 2).

Nesse sentido, pode-se afirmar que a fitoterapia é a utilização dos insumos terapêuticos com

as características citadas acima. Sendo assim, o uso de chás, xaropes, pomadas, cataplasmas,

entre outros remédios caseiros, não está de acordo com a conceituação de fitoterápicos e

fitoterapia adotada pela ANVISA, e a designação “fitoterapia popular” seria mais adequada

para expressar a utilização desses remédios originados de plantas.

De acordo com Villas Bôas 5, é importante lembrar que a denominação “medicamentos

alopáticos” iniciou-se com a homeopatia como forma de diferenciar essas duas especialidades

farmacêuticas. Nesse sentido, haveria duas grandes categorias: homeopáticos e alopáticos,

sendo que essa última pode ser subdividida em sintéticos, genéticos e de origem vegetal, a

qual agregaria fitofármacos e fitoterápicos. Os fitofármacos correspondem a moléculas com

ação terapêutica de origem vegetal 3. À partir dessa classificação apresentada, optou-se por

utilizar a expressão “medicamentos sintéticos”, ou apenas “sintéticos” para diferenciá-los dos

medicamentos (ou remédios) de origem vegetal – fitofármacos, fitoterápicos ou fitoterápicos

populares.

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1.1.1 Uso de plantas medicinais e fitoterapia como conhecimentos populares

Conforme será abordado no capítulo 3, o uso de plantas medicinais e a fitoterapia

podem ser considerados conhecimentos populares uma vez que agregam um conjunto de

características direcionadas ao melhor aproveitamento desses recursos terapêuticos. O

conhecimento acerca de características das plantas, cura de doenças, de terapêutica e

toxicidade é advindo da prática de forma não sistemática, uma vez que é repassado oralmente

e de maneira difusa no cotidiano. Há um sistema próprio de classificação das plantas

medicinais, particularmente marcado por analogias e que evidencia o alto grau de observação

que origina o conhecimento.

1.1.2 Uso de plantas medicinais e fitoterapia como elementos culturais

O uso de plantas medicinais também se afirma dentro da cultura das comunidades. Os

símbolos e as especificidades variam de uma região para outra; o modo de entender o

processo saúde-doença-cuidado, ao mesmo tempo que guarda características próprias, traz

elementos de outras formações culturais. No Brasil, por exemplo, segundo Maioli-Azevedo &

Fonseca-Kruel 10, a utilização de plantas medicinais é influenciada pelas culturas indígenas,

africanas e européias. Características culturais se expressam de maneiras diferenciadas

dependendo do grupo étnico e da origem de uma população – meio urbano ou rural.

Conforme será mostrado adiante, o contato com o meio rural favorece o uso de plantas

medicinais. A escolha por usar um tratamento ou não traz implícitos os valores, sofrimentos,

modos de entender e atuar na realidade, enfim, a opção se define a partir da cultura da

comunidade onde os sujeitos estão inseridos, que por sua vez é determinada pelas condições

objetivas vivenciadas. A utilização das plantas medicinais como recurso terapêutico é uma

prática milenar, “historicamente construída na sabedoria do senso comum, que articula cultura

e saúde, uma vez que esses aspectos não ocorrem de maneira isolada, mas inseridos num

contexto histórico determinado” 11 (p. 2). De acordo com Helman 12, na maioria das culturas as

teorias leigas sobre o funcionamento do corpo e sobre o processo saúde-doença fazem parte

de um conjunto complexo de heranças populares, sendo fortemente influenciado,

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especialmente nos países industrializados, por conceitos divulgados nos meios de

comunicação e que seguem o modelo médico.

Outro aspecto cultural do uso de plantas medicinais é a função mágica, muito

influenciada pelos agentes de cura e marcada pelos costumes e práticas das comunidades.

Busca-se a eficácia do tratamento que extrapola os limites farmacológicos e adentra outros

“princípios curativos” constituintes das plantas. O entendimento popular de que não há

dicotomia entre corpo e mente é um dos fatores para a utilização de ervas medicinais, banhos,

massagens e rezas concomitantemente 13. Nesse sentido, Rocha 13 (p. 55) afirma que “do

mesmo modo como se toma infusão de arruda, utiliza-se esta planta para rezar o doente”.

Lévi-Strauss lembra a observação de Jeness 14 (p. 64), que quando um feiticeiro-curandeiro do

leste canadense coleta alguma parte de planta com objetivo medicinal, é necessário “se

harmonizar com a alma da planta, depositando-lhe ao pé uma mínima oferenda de tabaco;

pois está convicto de que, sem o auxílio da alma, o ‘corpo’ da planta não teria, sozinho,

nenhuma eficácia”. O uso medicinal e o mágico / ritualístico não apresentam um limite

preciso, estando ambos envolvidos na função curativa das plantas e podendo ser usados

concomitantemente.

1.2 Medicina popular

Oliveira15 afirma que a medicina popular, ao oferecer respostas concretas aos problemas

e sofrimentos vividos no cotidiano, mostra-se uma prática de cura que “confronta seus

conhecimentos, seu arsenal de técnicas e a cultura da qual é parte com a medicina praticada

pelos médicos – a medicina erudita” (p. 8). Essa definição é compartilhada por Loyola 16, para

quem a medicina popular é o conjunto de técnicas de tratamento empregadas pelos

especialistas não reconhecidos pela medicina oficial. Ela pode ser dividida, conforme

lembrado por Queiroz 17, em medicina caseira e medicina religiosa. Para Rocha 13, os

principais recursos terapêuticos utilizados na medicina popular são alimentação, plantas

medicinais, resguardo, água, barro, massagens, toques e rezas. Entretanto, como Oliveira 15

ressalta, os procedimentos adotados são transmitidos a cada geração, fazendo com que os

recursos usados variem conforme a região e a comunidade, em especial as plantas medicinais.

Essa autora ressalta ainda que a medicina popular é praticada em diferentes circunstâncias,

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espaços e por várias pessoas, inclusive profissionais populares de cura, construindo, dessa

forma, um saber aprendido no cotidiano. O conjunto de práticas, historicamente criado e

transformado, marca a heterogeneidade e complexidade da medicina popular, que agrega

várias concepções de doenças, profissionais de cura e práticas terapêuticas. Nesse sentido,

Loyola 16 enfatiza algumas práticas da medicina popular, como o comércio de ervas

medicinais, casas de artigos religiosos que vendem produtos médicos de umbanda, consultas e

tratamentos ofertados em praças públicas, rezadores de diversas crenças ou especialidades,

vendedores ambulantes de garrafadas e hospital de umbanda.

Oliveira 15 ressalta a existência de um confronto permanente entre a medicina popular e

a medicina erudita, o que a torna mais complexa na medida em que passa a conter práticas

que se aproximam do saber erudito e outras que continuam populares, congregando agentes

de cura isolados, como benzedeiras, ervateiros, parteiras, raizeiros, curandeiras e novos

agentes, aqueles institucionalizados – médiuns, pastores de cura divina e pais-de-santo. Ela

também passa a se recriar por meio de agências religiosas, principalmente o pentecostalismo e

a umbanda. As práticas incluídas na medicina popular adotam diferentes sistemas de

classificação de doenças e de fenômenos orgânicos, produzindo estratégias específicas de

cura; no geral são pautadas por prevenção, diagnóstico e enfrentamento 15. Como especialistas

dessa medicina, Oliveira 15 identifica os ervateiros – aqueles que conheciam as ervas –, os

raizeiros – aqueles que manipulavam as raízes –, as parteiras – mulheres que auxiliavam as

parturientes no momento do parto e as benzedeiras e curandeiras que sabiam rezas e podiam

fazer benzimentos. Os capelães instrumentalizavam uma medicina popular mais voltada à

religião por meio de bênçãos e rezas.

Oliveira 15 ressalta que atualmente a medicina popular vem se abrindo, cada vez mais, a

setores da população que se mostram insatisfeitos com a medicina erudita, que combinam sem

ambigüidade, em determinados casos de mal, os conhecimentos da ciência aos do saber

popular. No meio urbano essa autora afirma que a medicina popular convive com práticas

alternativas voltadas à cura do corpo e da alma, como a homeopatia, a ioga, a acupuntura, o

tai-chi e o uso de pirâmides. Entretanto, para Oliveira 15 há diferenças entre práticas

alternativas em saúde e medicina popular, sendo a resistência cultural e política a principal

característica dessa última. Nessa perspectiva, Rocha 13 (p. 41) também afirma que as

características fundamentais da medicina popular são “sua origem popular, seu objetivo

marcado pelo tom de resistência e seu método intuitivo”.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) 18 não define medicina popular, e sim

medicina tradicional. Esta é retratada como sendo “os conhecimentos, instrumentos e práticas

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10

baseadas em teorias, crenças e experiências indígenas passados para diferentes culturas e que

são usados para manutenção da saúde, prevenção, diagnóstico ou tratamento de sofrimentos

físicos e mentais” (p. 1). A OMS reconhece que a medicina tradicional tem sido usada há

milhares de anos, sendo a contribuição fornecida por seus praticantes de enorme valor para o

provimento de cuidados básicos em saúde no nível comunitário; congrega uma ampla

variedade de terapias e práticas, que variam conforme o país e a região, sendo também

chamada de medicina alternativa ou medicina complementar 18.

1.3 Biomedicina

Conforme será abordado adiante, o uso de plantas medicinais e a Biomedicina guardam

uma estreita relação. No presente trabalho será utilizada a discussão sobre Biomedicina

empreendida por Camargo Jr. 19 no âmbito da concepção de Racionalidades Médicas. Nesse

sentido, o referido autor propõe que a Biomedicina seja delineada por meio de suas três

principais características: caráter generalizante, produzindo discursos com validade universal,

caráter mecanicista, em que o corpo humano passa a ser visto como uma gigantesca máquina

e caráter analítico, pressupondo o isolamento das partes para explicação do todo. A

incorporação da anatomia patológica como referencial da medicina marca a doença como

categoria central da prática e saber médicos. Nas palavras do autor,

“a doutrina médica traz implícita a idéia de que as doenças são objetos com existência autônoma, traduzíveis pela ocorrência de lesões que seriam, por sua vez, decorrência de uma cadeia de eventos desencadeados a partir de uma causa ou de causas múltiplas; o sistema diagnóstico é dirigido à identificação das doenças, a partir da caracterização de suas lesões. A terapêutica é hierarquizada segundo sua capacidade de atingir as causas últimas das doenças; a morfologia e a dinâmica vital servem, sobretudo, como auxiliares na caracterização do processo mórbido. A própria definição de saúde, apesar dos inúmeros esforços em contrário, é assumida como a ausência de doenças” 19 (p. 181).

Segundo Helman 12, (p. 71), “na maioria das sociedades, uma dada forma de atenção à

saúde – como a medicina científica no Ocidente – é elevada acima das outras formas, e tanto

seus aspectos sociais quanto culturais são sustentados pela lei”. Nesse sentido, Stotz 20 afirma

que o caráter generalizante da Biomedicina leva à exclusão de racionalidades médicas

alternativas ou concorrentes.

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11

De acordo com Camargo Jr. 19, questões contextuais e outras intrínsecas à própria

racionalidade da Biomedicina possibilitam uma série de características do modelo de atenção

à saúde, como o “uso excessivo de exames complementares, a desvalorização da

subjetividade do paciente (e do próprio médico) e a farmacologização excessiva, que

configuram uma propensão iatrogênica intrínseca que não pode ser chamada de ‘distorção’”

(p. 197). Tesser 21, nessa linha de argumentação, afirma que a cultura medicalizada transforma

o conhecimento cultural sobre a saúde – tradicional, popular ou de outras medicinas –

obsoleto e muitas vezes indesejado.

Apesar da marcante presença do modelo biomédico nos serviços de saúde, Helman 12

afirma que alguns críticos da Biomedicina apontam que a mesma encontra-se em crise. “Nos

anos recentes, uma insatisfação pública crescente tem-se refletido em um volume cada vez

maior de reclamações contra médicos, em litígios e campanhas nos meios de comunicação

contra a classe médica e na maior popularidade de curandeiros não-médicos” 12 (p. 93). As

razões apontadas para essa crise são: maior protagonismo do usuário durante seu tratamento

devido ao aumento da prevalência de doenças crônicas; aumento dos custos com o cuidado

médico, exacerbando os efeitos da distribuição desigual dos recursos em saúde; efeitos

iatrogênicos amplamente divulgados; aumento de doenças que não podem ser curadas por

medicamentos; sociedades cultural e socialmente mistas, que não aceitam um único modelo

inflexível de educação em saúde e de biomedicina; “os sucessos históricos da ciência médica,

juntamente com o declínio da religião organizada, também levou a expectativas exageradas

com relação aos médicos” 12 (p. 95). Camargo Jr. 19 segue a mesma linha de argumentação e

afirma que a biomedicina vem sendo criticada sistemática e severamente devido à suas

mazelas, as quais têm inúmeros determinantes, dentre eles “opções de política econômica, o

impacto da organização dos setores público e privado na assistência à saúde, as deficiências

na formação profissional e os interesses econômicos mais ou menos explícitos das indústrias

farmacêuticas e de equipamentos médicos” 19 (p. 196). Stotz 20, reportando-se à análise feita

por Loyola 16, afirma que a ação estatal tem historicamente reforçado a biomedicina, sendo

intolerante aos conhecimentos sobre saúde gerados fora de seu domínio. A área da saúde, ao

reafirmar a neutralidade da técnica, “mascara as diferenças de classe atualizadas no

tratamento diferencial dos doentes” 20 (p. 11). De acordo com esse autor, a partir de 1968,

entretanto, a atenção médica previdenciária começou a mostrar-se insuficiente para lidar com

diversos problemas de saúde “advindos de uma industrialização acelerada, em condições de

intensa exploração, baixa incorporação dos trabalhadores ao mercado formal de trabalho e

precária organização de infra-estrutura urbana” 20 (p. 12). Stotz 20 alerta que em meados da

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década de 1970 o governo começou a perceber os limites da medicina oficial uma vez que o

aumento da mortalidade infantil, dos índices de desnutrição e epidemias como a meningite

traduzem “problemas agudos de sobrevivência da população trabalhadora, decorrentes da

intensa e elevada acumulação de capital às expensas do trabalho e da desproteção social” 20 (p.

12).

1.4 Ciência Moderna

Segundo Lacey 22, a ciência moderna comporta uma importante ambigüidade em seu

elemento cartesiano, qual seja: “entendimento extensivo” e “entendimento completo” da

realidade. O entendimento extensivo caracteriza-se por considerar apenas categorias

materialistas (físicas, químicas e biológicas) no estudo dos fenômenos; utiliza princípios

explicativos como relações matemáticas que expressam leis, promove um reducionismo

molecular e se abstrai dos contextos humanos e ecológicos. O entendimento completo procura

compreender os fenômenos, levando igualmente em consideração “1) as possibilidades

materiais dos espaços e as caracterizações humanas e sociais das condições de contorno; 2) as

conseqüências humanas, sociais e ecológicas dos processos dentro dos espaços; e 3) as

possibilidades humanas e sociais que podem estar escondidas neles” 22 (p. 144). O autor

salienta que embora o entendimento produzido nas instituições científicas apresente

elementos constituintes tanto do extensivo quanto do completo, aquele tende a ser

privilegiado em relação à este porque a ciência moderna está impregnada de valores,

especialmente o valor de controle, o qual sustenta a utilização de estratégias materialistas.

O conhecimento científico gerado sobre plantas medicinais encontra-se imerso nessa

ambigüidade. A busca de compreensão de alguns aspectos da fitoterapia em detrimento de

outros relaciona-se ao caráter redutor do conhecimento científico, que “reduz o objeto

complexo real a sistemas formais” 23 (p. 23). Esse caráter, de acordo com Martins 23, é uma

das principais características da Ciência; “na redução, perde-se muitos aspectos do objeto real,

tanto aspectos não quantificáveis por natureza (e não menos reais e efetivos por isso), quanto

outros aspectos quantificáveis mas que não entraram no estudo em questão” (p. 24). Sendo

assim, os resultados necessariamente são incompletos porque refletem uma ou poucas

perspectivas. Observa-se, dessa forma, que a utilização de métodos científicos e a redução aos

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aspectos redutíveis e quantificáveis não levaria à verdade do objeto estudado, ao que

supostamente lhe seria essencial 23.

A seguir será apresentado um quadro-síntese com as definições adotadas nos itens 1.1,

1.1.1, 1.1.2, 1.2, 1.3 e 1.4:

Categoria DefiniçãoUso de Plantas Medicinais e Fitoterapia Utilização de partes de um vegetal como

recurso medicinal terapêutico. Uso de Plantas Medicinais e Fitoterapia

como Conhecimentos Populares

A utilização de plantas medicinais é um

conhecimento popular pois agrega, por meio

de experiências cotidianas, informações

necessárias para a utilização eficaz e segura

de ervas.Uso de Plantas Medicinais e Fitoterapia

como elementos da Cultura

O uso de plantas medicinais se inscreve num

contexto local de símbolos, valores,

sofrimentos e modos de entender e atuar na

realidade, o que torna a fitoterapia um

elemento cultural.Medicina Popular Conjunto de técnicas de tratamento – rezas,

benzimentos, fitoterapia – empregadas por

agentes de cura não reconhecidos pelo

sistema oficial de saúde. É composta por uma

grande diversidade de práticas e, apesar de

confrontar permanentemente seus saberes

com o conhecimento científico, incorpora

algumas práticas advindas desse último.Biomedicina Apresenta como principais características o

caráter generalizante, mecanicista e analítico.

A “doença” é a categoria central da prática e

saberes médicos. Atualmente o modelo de

atenção à saúde pautado na Biomedicina

apresenta “uso excessivo de exames

complementares, desvalorização da

subjetividade do paciente (e do próprio

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médico) e farmacologização excessiva, que

configuram uma propensão iatrogênica

intrínseca que não pode ser chamada de

‘distorção’” 42 (p.197). Tais características

favorecem a “crise” atualmente enfrentada

pela Biomedicina. Ciência Moderna A ciência moderna comporta uma importante

ambigüidade em seu elemento cartesiano,

qual seja: “entendimento extensivo” e

“entendimento completo” da realidade 22.

Atualmente o entendimento extensivo tende a

ser privilegiado em relação ao completo.

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15

1.5 Referencial metodológico

Baseando-se em algumas orientações de Alves-Mazzotti & Gewandsznajder 24 foi

realizada uma revisão da bibliografia que aborda o conhecimento sobre o uso de plantas

medicinais. Foram selecionados os descritores etnobotânica, planta medicinal, plantas

medicinais, sociologia rural, geografia crítica, fitoterapia, fitoterapêutica, educação

científica, medicina alternativa, medicinas alternativas, medicina tradicional, medicina

natural tradicional, medicina popular, erveiras, erveiros, ervateiro, raizeiros, raizeiras, ervas

medicinais. Foi incluído sociologia rural pois considerou-se importante selecionar estudos

que abordassem as relações sociais em localidades rurais, o que poderia incluir o uso de

plantas medicinais devido à proximidade com a terra. Geografia crítica foi utilizado devido à

possibilidade de selecionar estudos realizados junto a movimentos sociais ou que analisassem

diferenças regionais e territoriais na utilização de plantas medicinais. O descritor educação

científica foi utilizado com a intenção de identificar estudos que abordassem os temas, noções

e conceitos ensinados no meio científico sobre plantas medicinais. Procedeu-se, então, a

pesquisa nas bases de dados Scielo, Lilacs e Google Acadêmico. Como alguns descritores da

Scielo e da Lilacs são diferentes, foram necessárias algumas modificações, quais sejam: não

foi feita busca na Scielo com as palavras-chave raizeira, razeiras, raizeiro, ervateira,

ervateiros e ervateiras, mas acrescentou-se erva, ervas e ervas aromáticas; na Lilacs não

foram usados planta medicinal, sociologia rural, geografia crítica, educação científica,

medicina natural tradicional, erveiros e ervateiro, tendo sido acrescentados fitoterapêutico,

fitoterapêuticos fitoterapêuticas, medicina de ervas, ervateiros, raizeiras e erva. É importante

ressaltar que em nenhuma base de dados foram encontrados estudos que articulassem

sociologia rural, geografia crítica e educação científica com o objeto de estudo do presente

trabalho. Por meio dessa seleção inicial foram identificadas 190 produções bibliográficas,

dentre elas livros, teses, monografias, dissertações e artigos. A inviabilidade de análise desse

total em função do prazo de entrega da monografia levou a uma nova seleção, que filtrou os

trabalhos acadêmicos – dissertações, teses, monografias e artigos – cujos estudos foram

realizados na região sudeste brasileira. Foram encontradas quarenta publicações e optou-se

pela utilização apenas daquelas disponíveis on line, resultando em 21 artigos e uma tese de

doutorado 04, 10, 11, 17, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42.

Para a seleção de estudos que abordam o uso de plantas medicinais foi feita a leitura dos

resumos e identificados aqueles que discutem saberes e práticas envolvidos na utilização de

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ervas em comunidades. Foram excluídos aqueles que tratam da farmacologia, de tratamento a

doenças específicas e os relacionados à química de plantas.

Em seguida as publicações foram lidas na íntegra e identificados aspectos que

demonstram o saber construído empiricamente como uma forma de conhecimento. Para tanto,

observou-se as considerações acerca de usos, indicações, posologia e toxicidade. Nesse

contexto, tornou-se interessante identificar nas publicações as influências e relações com o

conhecimento científico, além de fatores que contribuíram para redução e aumento do uso de

ervas ao longo do tempo. Tendo em vista que as questões citadas acima são intrínsecas ao

saber sobre plantas, optou-se por apresentá-las em uma única categoria: “Conhecimento sobre

Plantas Medicinais”. De forma semelhante, observou-se que a categoria “Transmissão do

Conhecimento” poderia incluir informações sobre a difusão do conhecimento e principais

agentes de cura nas comunidades, em quais estratos sociais o uso de plantas medicinais é mais

freqüente e o contexto local em que a transmissão do conhecimento ocorre.

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2 CONHECIMENTO SOBRE PLANTAS MEDICINAIS, USOS E FORMAS DE

TRANSMISSÃO

Nesse capítulo serão apresentados os resultados obtidos a partir da análise dos artigos

selecionados. Conforme salientado no item anterior – Referencial Metodológico –, foram

utilizadas duas categorias de análise, uma relacionada ao conhecimento popular sobre usos de

plantas medicinais e outra ligada à transmissão desse conhecimento.

2.1 Conhecimento sobre plantas medicinais

2.1.1 Usos, indicações e posologia

Observou-se que o termo "uso" foi empregado com diferentes sentidos ao longo dos

textos. Estudando as plantas medicinais e seus usos na Reserva Rio das Pedras em

Mangaratiba, Rio de Janeiro (RJ), os autores utilizam a palavra "uso" ou "uso medicinal" para

apontar a indicação terapêutica, ou seja, órgãos e doenças a serem tratados 30. Vários autores 31, 32, 33, 34 utilizaram o termo "Indicações de uso" para especificar as doenças e os órgãos

tratados por plantas medicinais. Rodrigues 34 observou que na região do Alto Rio Grande,

Minas Gerais (MG), duas espécies foram citadas como plantas utilizadas na prática de

descarrego e mau-olhado. Já Fonseca-Kruel & Peixoto 4, referindo-se a espécies vegetais no

geral, utilizaram o termo "Usos" tanto de forma inespecífica, para designar categorias como

construção, medicinal, alimentar, tecnologia, lenha e ornamental, quanto de forma mais

precisa, para designar indicações das espécies, como remédio para doenças pulmonares e

tosse. É interessante ressaltar que a forma de uso foi bem detalhada pelos entrevistados em

vários estudos, possibilitando um tratamento adequado com as plantas. Alguns autores 33, 34, 30

observaram em diferentes localidades que a forma de preparo também era uma preocupação

dos entrevistados, o que pode ser verificado no trecho: "as flores de macelinha do campo,

preparadas em infusão e administradas oralmente amenizam, em crianças pequenas, a dor dos

dentes quando estão nascendo" 30 (p. 395). Rodrigues 34 e Rodrigues & Carvalho 33 salientam

que a maioria dos raizeiros entrevistados afirmou que a dosagem utilizada é fundamental para

a cura das doenças. Tal situação é interessante de ser destacada uma vez que a transmissão

oral do conhecimento na comunidade está atualmente dificultada – situação abordada a seguir

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–, o que torna os detalhes sobre a forma de utilização das plantas medicinais fáceis de serem

perdidos já que são informações de difícil percepção e compreensão. Explicações sobre a

forma de utilização de plantas são importantes uma vez que influenciam diretamente no

aproveitamento do princípio ativo, podendo reduzir a eficácia ou gerar toxicidade. O preparo

correto de fitoterápicos é fundamental para o adequado aproveitamento de princípios ativos,

pois cada grupo de substâncias exige uma forma específica de extração e cada problema de

saúde uma determinada dose e forma farmacêutica 35.

Os autores 36 que pesquisaram o uso da vegetação nativa pela população de Ingaí, MG,

utilizaram o termo "Uso" de forma pouco específica, designando apenas se a planta é utilizada

para madeira, lenha, medicinal ou diversos usos, sem detalhar as doenças tratadas. Entretanto,

é observada a preocupação dos entrevistados com relação à saúde, uma vez que a Aroeira,

Litrhaea molleoides, e a Dedal, Lafoensia pacari, não são utilizados como lenha por

causarem, respectivamente, queimaduras e irritação nos olhos devido à fumaça. Também é

observada a conotação mágico / religiosa no uso da madeira, como pode ser observada nas

seguintes falas: "Óleo-Copaíba é boa lenha, mas dizem que atrai trovão"; "Cedro não pode

queimar porque a cruz de Jesus foi feita de cedro"; "Embaúba não pode queimar porque

quando Nossa Senhora fugia com Jesus, a embaúba abriu e ela escondeu o filho lá dentro";

"Santo-Antônio é lenha ruim e dá azar queimar. Ele chora roxo e espirra igual foguete";

"Embaúba é lenha ruim e os antigos falavam que não pode queimar, dá azar e chora no olho" 36 (p. 153). Maioli-Azevedo & Fonseca-Kruel 10, pesquisando plantas medicinais e ritualísticas

vendidas em feiras livres no município do Rio de Janeiro, RJ, utilizaram o termo "Usos" para

indicar se as plantas seriam utilizadas em banho ritualístico, com finalidade alimentar ou

medicinal e verificaram que o uso medicinal foi o mais relatado pelos feirantes, seguido do

ritualístico. Outros autores que realizaram estudo parecido 37 usaram o termo "Indicação" e

categorias de uso para apontar se o uso é medicinal ou religioso / ritualístico, não informando

o tratamento específico para o qual é utilizada. De forma semelhante ao estudo anterior,

verificaram que a maior parte das espécies comercializadas tem finalidade medicinal seguida

da religiosa. Parente & Rosa 38 coletaram dados referentes às plantas comercializadas como

medicinais em Barra do Piraí, RJ, junto a erveiros e consumidores usuais de tais produtos,

utilizando o termo "Indicações Terapêuticas" para designar as doenças a serem tratadas.

Diferentemente dos outros estudos realizados em feiras livres, nessa pesquisa as plantas com

finalidade ritualística foram as mais citadas - utilizadas para banhos de descarrego, afastar

maus espíritos, mau olhado e quebranto. Em Mogi-Mirim, São Paulo, os autores 39

observaram, embora em pequena proporção, o uso de plantas medicinais para "simpatia".

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Nesta mesma pesquisa o termo "Usos" foi utilizado de forma específica, designando os órgãos

afetados e as doenças a serem combatidas.

2.1.2 Comentários sobre toxicidade

Seis estudos referem-se aos comentários dos entrevistados sobre toxicidade de plantas.

Dessa forma, Rodrigues 34 afirma que podem ser inferidas informações sobre toxicidade das

plantas usadas na região do Alto Rio Grande, MG, pois há alertas quanto à quantidade

máxima a ser ingerida de algumas delas. De forma semelhante, Rodrigues & Carvalho 33

comentam que a maioria dos raizeiros entrevistados nessa mesma região de Minas Gerais

adverte sobre o potencial tóxico das plantas. Segundo os raizeiros, o excesso de dose pode ser

tóxico, causando danos no organismo; inclusive no caso de doenças que requerem uso

contínuo de ervas deve haver intervalos de tempo sem o uso das mesmas. Conforme apontado

anteriormente, os autores 36 observaram que os entrevistados no município de Ingaí, MG, se

reportaram à alergia provocada pela Aroeira e à irritação dos olhos provocada pela Dedal

quando queimada. Não obstante, em Niterói, RJ, os entrevistados não se referiram à

toxicidade das plantas medicinais, justificando o uso, inclusive, pela ausência de efeitos

colaterais 40. Da mesma forma, a maioria da população de Datas, MG, que utiliza plantas

medicinais acredita que elas não fazem mal à saúde 35. Também foi observado que em Mogi-

Mirim, SP, as ervas são utilizadas sem grandes preocupações; são tratadas como remédios

naturais que não têm potencial de causar danos no organismo. Os autores lembram, no

entanto, que apesar de a dose dos fitoterápicos não requerer rigorosa exatidão, algumas

plantas podem ser tóxicas caso utilizadas em sobredose 39.

2.1.3 Influências e relações do saber popular sobre plantas medicinais com o

conhecimento científico

Uma forma de interação entre conhecimento popular e científico sobre plantas

medicinais observada nos estudos analisados relaciona-se à utilização de nomes de

medicamentos alopáticos para designação de ervas. Nesse sentido, verificou-se que em Mogi-

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20

Mirim, SP, Vick® é o nome dado à família Acanthaceae, Antibiótico à espécie Alternanthera

brasiliana, Novalgina® à Achillea millefolium e Insulina à Cissus cf. tinctoria 39.

Vários autores salientaram as indicações de uso citadas que concordam com as

informações disponíveis em publicações científicas, procurando demonstrar a validade do

conhecimento corrente nas comunidades estudadas. Pilla, Amorozo & Furlan 39 afirmaram que

das quatro espécies mais citadas três já foram submetidas a testes farmacológicos,

comprovando as citações de uso informadas pela população. De forma semelhante foi

observado que não houve divergência quanto à indicação de uso fornecida pelos estudantes

universitários da Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, e a literatura científica

consultada 41. Verificou-se que em Bauru, SP, em 69,4% das vezes a indicação de uso das

plantas medicinais foi coincidente com a literatura em pelo menos um sintoma ou doença 31.

Todavia, 25,5% das vezes não apresentaram uso coincidente. Em outro estudo foi observado

que as fonoaudiólogas do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, SP, concordam que os

tratamentos com medicina alternativa devem ser submetidos a testes científicos antes de

serem aceitos pelo Conselho de Fonoaudiologia 42. Na pesquisa sobre plantas medicinais e

ritualísticas comercializadas em feiras livres do Rio de Janeiro, RJ, as autoras afirmaram que

os erveiros vendem algumas espécies que não têm validação e / ou não tiveram seus

compostos químicos testados e análises toxicológicas finais 10. Chamam atenção ainda para o

fato de os produtos e subprodutos de plantas serem vendidos a partir de seus nomes populares,

o que pode "interferir no processo de qualidade e fiscalização sanitária, pois não há registros

explícitos dos processos de coleta, identificação e armazenamento" 10 (p. 266). Salientam que

espécies tóxicas – e outras contra-indicadas para gestantes e lactantes – são muitas vezes

vendidas como medicinais, situação também observada em Barra do Piraí, RJ 38. Nesse

sentido, Maioli-Azevedo & Fonseca-Kruel 10 afirmam que é necessária a orientação de

erveiros que têm contato direto com os usuários visando garantir a melhor qualidade dos

produtos vendidos em feiras livres.

Guizardi & Pinheiro 25, numa outra perspectiva, refletindo sobre as práticas de

fitoterapia popular apoiadas pela Pastoral da Saúde em Vila Velha e Vitória, Espírito Santo

(ES), afirmam que não lhes “importa uma discussão sobre a comprovação científica de sua

eficácia, ou qualquer outro modo de averiguação técnica de seus efeitos” (p. 117). As autoras

estudam os efeitos biopolíticos da fitoterapia popular pois partem do pressuposto de que essa

prática terapêutica incide nos dispositivos do saber-poder biomédico, permitindo “a expressão

e produção do desejo social de outras formas de saúde, que não aquelas hoje hegemônicas” 25

(p. 117). Nesse sentido, “o uso da fitoterapia popular demonstra a sobrevivência de um

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recurso terapêutico mesmo com a hegemonia da subjetividade capitalista e expressa um

‘devir’ planta, ou seja, pontua a necessidade de manter a ecologia para a sobrevivência do

homem” 40 (p. 238-9). Os últimos autores completam dizendo que mesmo recebendo

orientações técnicas e científicas de profissionais de saúde os usuários fazem uso de práticas

populares de cuidado, assim demonstrando que o saber popular não é residual, mas

permanente, mesmo com a valorização atual do saber técnico-científico 40 .

Na comparação entre a eficácia de medicamentos sintéticos e de ervas medicinais,

foram observadas questões semelhantes em Paulínea, SP 17, e em Niterói, RJ 40. Os

entrevistados em ambas as pesquisas afirmaram que a ação farmacológica dos medicamentos

sintéticos é mais rápida que a das plantas. No estudo em Niterói os autores observam que no

imaginário popular o medicamento é mais “forte” e eficaz para os casos mais graves, além de

ser indicado por um representante da ciência; em contrapartida, a química presente agride

mais o organismo 40. As ervas, cujos efeitos seriam mais brandos, têm sua ação mais lenta.

Diferentemente de Guizardi & Pinheiro 25, Queiroz 17, afirma que “em geral, a medicina

caseira não contradiz nem se conflitua com a medicina oficial, na medida em que, na grande

maioria dos casos ela não se coloca como alternativa, mas apenas como um complemento

limitado” (p. 275).

2.1.4 Fatores que contribuíram para redução e aumento do uso de plantas medicinais ao

longo do tempo

É importante ressaltar que essa questão tem um aspecto relacionado à disputa de

diferentes racionalidades médicas e não médicas pela hegemonia no campo do cuidado em

saúde e outro relacionado à transmissão do conhecimento, característica que levou a autora a

optar por apresentá-la tanto no item 2.1 quanto no 2.2. Contudo, cabe salientar que essa

divisão foi um artifício utilizado com a finalidade de elaborar uma explicação mais clara, pois

são aspectos que se entrelaçam e são mutuamente influenciados, uma vez que acontecimentos

contextuais refletem-se no ambiente comunitário e esse, por sua vez, engendra transformações

na realidade.

Algumas autoras observam que

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“com a institucionalização da medicina, o aparato derivado do saber médico hegemônico perseguiu e proibiu as práticas não oficiais, os charlatães, os sangradores, e tantas outras pessoas do povo, por considerá-los incapazes de exercer a arte de curar, impondo-se o reconhecimento social e a valorização do saber médico” 41 (p. 65).

Ressaltam também que o positivismo contribuiu amplamente para a marginalização do uso de

plantas medicinais e de outras práticas de origem popular 41. A perda da biodiversidade

original é colocada como fator crucial para o afastamento das pessoas do contato com a flora

e conseqüente restrição das plantas usadas com fins terapêuticos a ambientes antropizados,

dificultando a ampliação do conhecimento acerca das mesmas 04, 39. Rodrigues 34 também

ressalta o meio ambiente em sua análise sobre os fatores externos à dinâmica da comunidade

que interferem na transmissão do conhecimento. Afirma que o extrativismo inadequado de

várias espécies, a maior facilidade de acesso à medicina moderna, o deslocamento de pessoas

a partir de seus ambientes naturais para regiões urbanas, além da degradação ambiental e

intrusão de novos elementos culturais acompanhados da desagregação dos sistemas de vida

tradicionais – o que ameaça o acervo de conhecimentos empíricos e um patrimônio genético

de valor inestimável para as futuras gerações – levam à perda do caráter utilitário do

conhecimento popular acumulado há várias gerações.

Entretanto, outras autoras 41 afirmam que no Brasil, especialmente a partir das décadas

de 80 e 90 do século XX, “frente às várias mudanças engendradas pelo momento político,

econômico e também da saúde, algumas práticas populares de saúde, entre elas as plantas

medicinais, começaram a ser resgatadas” 41 (p. 67) com o intuito de atuarem

complementarmente às práticas de saúde alopáticas / sintéticas vigentes. As razões apontadas

pelas autoras como motivadoras desse resgate são: falhas do modelo médico biologicista no

tratamento de doenças, efeitos iatrogênicos associados ao alto custo de determinados

medicamentos, eficácia de alguns recursos naturais – especialmente plantas medicinais –

comprovada cientificamente, consciência ecológica que eclodiu no país nos anos 90 do século

passado, entre outras 41. Os entrevistados da região do Alto Rio Grande, MG, vivenciaram as

implicações dessas transformações em suas práticas diárias, pois como ressaltam Rodrigues &

Carvalho 33, segundo a maioria dos raizeiros havia alta procura por seus serviços quanto à

utilização de plantas medicinais no cuidado à saúde em décadas passadas, o que declinou

entre as décadas de 70 e 80 e teve nova ascensão por volta de 1985, intensificando-se cada

vez mais até os dias de hoje. Outros autores 10, 38, 40 também concordam que os altos preços e

constantes efeitos adversos dos medicamentos sintéticos e deficiências na prestação de

serviços públicos de saúde impulsionam o uso de plantas medicinais; fatores que se supõe

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23

acontecer em todo o território brasileiro. Não obstante, outros aspectos que ocorrem de forma

difusa e concomitante são destacados separadamente por cada um dos autores. Teixeira &

Nogueira 40 ressaltam, sobretudo, que a busca por terapias naturais também representa uma

alternativa às práticas tradicionais institucionalizadas. Maioli-Azevedo & Fonseca-Kruel 10

enfatizam que o “uso e o comércio de plantas vêm sendo estimulados, nas últimas décadas,

pela necessidade de uma crescente população que busca uma maior diversidade e quantidade

de plantas para serem utilizadas no cuidado da saúde e também aplicadas em tradições

religiosas” (p. 263-4). Parente & Rosa 38 afirmam que remédios a base de ervas para

tratamento de doenças pouco entendidas pela medicina moderna, como cânceres, viroses e

aquelas que comprometem o sistema imunológico atraem cada vez mais consumidores de

fitoterápicos. Azevedo & Silva 37 sugerem que a “desarticulação de políticas públicas relativas

ao atendimento das necessidades básicas de saúde das populações periféricas vem levando a

uma crescente procura de alternativas economicamente mais viáveis, gerando aumento do

consumo de plantas medicinais” (p. 185). Outro fator lembrado pelas autoras é a divulgação

de plantas pelos meios de comunicação, o que aumenta a procura pelas mesmas e as fazem

passar a ser consideradas medicinais, situação observada nas feiras livres e mercados do Rio

de Janeiro, RJ.

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2.2 Transmissão do conhecimento

2.2.1 Difusão do conhecimento nas comunidades e principais agentes de cura

Em Ingaí, MG, entrevistou-se moradores indicados por membros da própria

comunidade 36. As entrevistas foram feitas com residentes cujas idades variavam entre 45 e 75

anos, sendo dois artesãos, quatro raizeiros, cinco lenheiros e três agricultores. Notou-se

diferença entre os gêneros em relação ao conhecimento sobre usos da flora nativa. A atividade

de coletar lenha é predominantemente feminina, e por isso, enquanto as mulheres se

mostraram grandes conhecedoras de espécies com potencial lenheiro os homens citaram um

maior número de espécies madeireiras. Os autores lembram que a idade dos informantes e o

contato com o meio rural favorecem o conhecimento sobre plantas medicinais, e dão como

exemplo um informante de 54 anos que morou na zona rural durante 28 anos, ainda tendo

contato regular com a região, e que, sozinho, citou 130 espécies de vários hábitos e usos.

Ressaltou-se que o conhecimento acerca de plantas foi passado de geração a geração, não

sendo detectada, na população estudada, influências oriundas de meios de comunicação como

o rádio e a televisão 36. Maioli-Azevedo & Fonseca-Kruel 10, entretanto, entrevistaram erveiros

que comercializavam plantas medicinais em feiras livres do Rio de Janeiro, RJ, com idades

entre 25 e 65 anos, e verificaram que o sistema terapêutico dos erveiros nas feiras livres dessa

cidade é “dinâmico e aberto a influências externas (mídia através de telejornais, revistas),

alterando o caráter tradicional desse conhecimento” 10 (p. 271). Em Ingaí, MG, somente cinco

entrevistados disseram passar o conhecimento adquirido dos pais para outras pessoas. A

mesma situação foi observada por Rodrigues 34, pois apenas um dos informantes – todos

foram referenciados pela comunidade –, entre os que constituíram família, transmitiu seus

conhecimentos sobre plantas medicinais a um de seus filhos. Foi entrevistada a população

usuária do Programa Saúde da Família de Datas, MG, onde a atividade econômica local

advém da exploração mineral e da agricultura de subsistência e verificou-se que o

conhecimento sobre plantas medicinais foi adquirido com antecedentes, principalmente pais e

avós, mas que atualmente poucos entrevistados passam seus conhecimentos para outras

pessoas 35. Rodrigues & Carvalho 33 entrevistaram onze raizeiros e duas raizeiras – indicados

por membros da população – com idades entre 56 e 72 anos, sendo todos descendentes de

avós indígenas, africanos ou ambos. Dos que constituíram família apenas três transmitiram

seus conhecimentos sobre utilização, dosagem e preparo de fitoterápicos populares a alguns

de seus filhos. Os motivos apresentados pelos raizeiros, para não terem passado a todos os

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descendentes seus conhecimentos sobre as plantas medicinais são, sobretudo: falta de tempo

ocasionada ora pelo trabalho dos filhos para ajudar na renda familiar (na maioria dos casos),

ora ocasionada pelo estudo dos mesmos; falta de interesse por parte dos filhos, principalmente

após terem entrado na idade escolar; e, em alguns casos porque os filhos constituíram famílias

ainda jovens, distanciando-se dos pais, dificultando, assim, o processo ensino –

aprendizagem. Os autores afirmam que atualmente, na região do Alto Rio Grande, MG, são

“poucos os raizeiros que detêm a sabedoria dos índios e caboclos antepassados sobre quais,

como e para que fins são utilizadas as espécies medicinais” 33 (p. 122). Foi observado que em

Mogi Mirim, SP, desconfianças com relação à eficácia das propriedades de cura das plantas

medicinais foram demonstradas apenas por poucos informantes, mas ocorreu especialmente

entre os mais jovens, que procuram pelo médico principalmente para tratar doenças de seus

filhos 39. Os autores afirmam também que os entrevistados com menos de 39 anos citaram e

utilizam menos plantas que aqueles com mais de 40 anos, os quais também são mais

detalhistas nas informações fornecidas; tais fatos sugerem a tendência da população jovem em

buscar formas de tratamento terapêutico provenientes da medicina oficial 39. Por isso, alertam

que é importante buscar entender se a juventude está em processo de aprendizado quanto ao

uso de plantas ou se está havendo de fato um afastamento em relação a fitoterapia. Na

Reserva Rio das Pedras, em Mangaratiba, RJ, observou-se que os jovens da comunidade não

sabem fazer uso do recurso vegetal medicinal disponível 30. Complementarmente, Fonseca-

Kruel & Peixoto 4 afirmam que a criação de espaços que possibilitem o compartilhamento do

saber entre jovens e pessoas mais experientes é essencial para a conservação do conhecimento

tradicional e do meio ambiente na Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo, RJ. Nota-

se, com esses achados, a importância da experiência de vida para construção do conhecimento

sobre plantas medicinais e da sistematização desse saber como forma de preservá-lo.

Assim como nas pesquisas realizadas na Reserva Rio das Pedras 30, e em Ingaí, MG 36,

os sujeitos entrevistados na região do Alto Rio Grande, MG 34, trabalham ou trabalharam no

meio rural. Seis entrevistados eram do sexo masculino e dois do feminino, com idades

variando entre 30 e 75 anos e descendência de bisavós ou avós indígenas ou africanos, sendo

a aquisição de conhecimentos com relação às plantas medicinais nativas principalmente com

os pais ou avós. Observou-se que todos os informantes têm facilidade de encontrar as plantas

medicinais apresentadas, mesmo nos fragmentos florestais que não são os que habitualmente

são feitas suas coletas. Tanto na Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo, RJ 4,

quanto em Mogi-Mirim, SP 39, observou-se que a maior parte das espécies cultivadas são

exóticas, indicando a influência de diferentes culturas na formação do conhecimento sobre

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plantas. Corroborando esses resultados, Rodrigues 34 afirma que a fitoterapia popular

atualmente praticada no Brasil é influência de várias tradições culturais, criando sistemas

etnofarmacológicos bastante heterogêneos. Essa autora chama atenção para o fato de que a

procura por aqueles que detêm a sabedoria de cura de doenças por meio de plantas está

mantida na população rural e urbana, entretanto, a tradição no repasse dessa sabedoria está se

perdendo, sendo reduzida a poucas pessoas. Alguns autores 30 afirmam que a flora nativa da

Reserva Rio das Pedras em Mangaratiba, RJ, e a cultura popular vêm sendo dizimadas em

função do impacto causado pelo turismo e pelo avanço da cultura moderna. As idades dos

informantes variavam entre 37 e 60 anos de idade; os principais usuários de plantas

medicinais do tipo vegetacional da região são os pequenos agricultores, caiçaras e sitiantes,

sendo a transmissão oral do conhecimento praticada há gerações. Entretanto, o processo de

aculturação vem ocorrendo, uma vez que novas gerações buscam meios modernos de

comunicação, dificultando a transmissão oral da sabedoria sobre plantas.

Fonseca-Kruel & Peixoto 4 estudaram etnobotânica na Reserva Extativista Marinha de

Arraial do Cabo, RJ, e relataram que a mulher tem o papel central de cura aos doentes,

valendo-se de orações e plantas medicinais, sendo, devido a isso, chamadas de rezadeiras.

Tais ensinamentos foram repassados para as filhas; entretanto, atualmente tais práticas são

raras. Observaram também que os pescadores cabistas, denominação que implica pertencer a

um sistema social determinado no tempo e no espaço, no qual inscrevem-se valores, símbolos

e histórias de vida comuns, acumulam informações passadas a cada geração sobre o

“ambiente, regime dos ventos, marés e vegetação. Conhecem frutos comestíveis e épocas de

frutificação, plantas medicinais, madeiras utilizadas na construção, consertos de canoas,

confecção de artefatos e utensílios” 4 (p. 181). O saber tradicional encontra-se mantido

especialmente entre os pescadores mais idosos de origem rural ou entre aqueles que têm

contato prolongado com esse meio.

Queiroz 17 entrevistou 42 famílias em Paulínea, SP, onde os homens trabalhavam, em

sua maioria, como operários e as mulheres como donas de casa. A população estudada era

predominantemente constituída por migrantes provenientes de Minas Gerais, Paraná, estados

do Nordeste e do interior de São Paulo, sendo 47% dos adultos provenientes do meio rural. As

mulheres eram as responsáveis por avaliar as condições de saúde, tanto a sua própria como a

de seus filhos e tomavam a decisão de procurar os agentes de cura. O autor ressaltou que não

há, em Paulínea, raizeiros profissionais, embora “existam pessoas que se consideram

entendidas no assunto e que prestam efetiva assistência à comunidade” 17 (p. 275). O autor

verificou também que as mulheres procuram mais intensamente por soluções dentro e fora do

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âmbito da medicina oficial, tanto para ela como para seus filhos e que “a difusão do

conhecimento que envolve a medicina caseira ocorre principalmente através de pessoas mais

velhas na família, geralmente via sexo feminino, embora o sexo masculino não seja excluído,

havendo alguns que efetivamente se interessam por este assunto” 17 (p. 275). Na comunidade

estudada há três mulheres que se consideram e são consideradas especialistas em ervas

medicinais, prestando assistência à população por meio de diagnósticos de doenças e

recomendação de tratamentos. “O espiritismo Kardecista e, mais modernamente, a umbanda

são também importantes difusores das ervas medicinais e das formas terapêuticas que elas

envolvem” 17 (p. 275). Moura 26, estudando a utilização de plantas medicinais em obstetrícia

em Itapecerica da Serra e Embu Guaçu, SP, observou que o uso e conhecimento de plantas

medicinais entre as mulheres durante o período gravídico-puerperal manteve-se presente,

fazendo parte “parte da cultura do povo, como resultado de experiências de gerações

passadas, que foram transmitidas por meio de aprendizagem consciente e inconsciente” 26 (p.

87). As entrevistadas moravam na zona urbana dos municípios e muitas, apesar de não terem

referido conhecimento sobre plantas medicinais como recurso terapêutico, as utilizavam.

Moura observa que isso se deve “ao aprendizado inconsciente, transmitido de geração para

geração” 26 (p. 89). Teixeira & Nogueira 40 entrevistaram 300 usuários de uma unidade básica

de saúde de Niterói, RJ, entre eles adultos e idosos, verificando que a maioria nasceu e residiu

na região urbana, apesar do uso expressivo de plantas medicinais. O conhecimento foi

adquirido principalmente com familiares e amigos, e por isso os autores observam que o

emprego da erva não é meramente paliativo, mas carregado de valores subjetivos, passados de

geração a geração, o que denota um cunho afetivo e contextualizado com o território social

em que o sujeito se encontra. De forma semelhante, outros autores afirmam que as “redes

sociais que se formam entre as famílias e as relações de vizinhança têm sido meios profícuos

de troca e difusão das práticas populares de saúde” 41 (p. 66).

Guizardi & Pinheiro 25 notaram que a busca por saúde (e não pela cura de doenças), que

caracteriza o trabalho da Pastoral da Saúde em Vila Velha e Vitória, ES, “implica o

compartilhamento de um saber que possibilite às pessoas aprenderem a cuidar-se e a decidir

como fazê-lo” 25 (p. 116). De acordo com as autoras, essa forma de transmissão de

conhecimento favorece a autonomia da pessoa em relação à sua saúde e o conhecimento do

próprio corpo. Foi observado também que as mulheres buscam mais os trabalhos da Pastoral

para conseguir remédios para seus filhos, cônjuges e parentes. Outros autores 39 teceram breve

comentário sobre a procura pela Pastoral da Saúde em Mogi-Mirim, SP, no qual afirmam que

a religião de grande parte dos entrevistados – católica – talvez explique que grande parte das

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plantas utilizadas e das receitas de preparo de fitoterápicos são adquiridas na Pastoral e com o

padre da paróquia.

Poucos estudos abordaram a escolaridade dos entrevistados que detinham o

conhecimento sobre plantas medicinais. Em um deles, verificou-se que 66% dos entrevistados

em Mogi-Mirim, SP 39, não completaram o ensino fundamental, embora a escolaridade não

tivesse sido um fator de influência no uso de plantas uma vez que diferentes informantes

demonstraram conhecimentos semelhantes tanto de uso quando de tratamento. De forma

semelhante, Fonseca-Kruel & Peixoto 4 observaram grande número de espécies citadas na

Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo, RJ, e que a maior parte dos pescadores e

seus filhos cursaram apenas o ensino fundamental. Rodrigues & Carvalho 33 observaram que

entre os treze raizeiros mais procurados pela população da região do Alto Rio Grande, MG,

para tratamento de doenças apenas três freqüentaram a escola, apesar de não terem concluído

o primeiro grau. Teixeira & Nogueira 40 observaram, no estudo sobre o uso popular de ervas

no cuidado com o corpo realizado em Niterói, RJ, que o nível de escolaridade dos

entrevistados distribuiu-se em ensino fundamental (48,7%), ensino médio (22,6%) e

alfabetizado (17%), sendo bastante expressivo o uso de plantas medicinais. Moura 26 notou

amplo uso de plantas medicinais no período gravídico-puerperal e que 69% das mulheres

entrevistadas em Embu Guaçu, SP, possuíam apenas o primeiro grau de estudo. O mesmo foi

observado em Datas, MG 35, onde a população que mais utiliza plantas medicinais tem baixo

nível de escolaridade.

2.2.2 Relação entre uso de plantas medicinais e estratos sociais

Os estudos classificam estratos sociais de formas distintas. Enquanto alguns referem-se

à características qualitativas, como "estrato social baixo ou alto", "classes mais pobres",

"periferia", outros abordam características quantitativas relacionadas à renda familiar, como

"até um salário mínimo", "mais de cinco salários mínimos". Um dos estudos refere-se de

maneira qualitativa a uma variável medida quantitativamente, reportando-se a "poder

aquisitivo baixo ou médio". Independente da forma como tal caracterização foi abordada por

cada autor, os textos apontam, por meio da classificação adotada, em qual estrato social há

maior prevalência do uso de plantas medicinais, facilitando a compreensão dos artigos, mas

dificultando comparações.

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29

Na pesquisa realizada em Bauru, SP 31, região com expressivas atividades urbanas, foi

verificada grande quantidade de entrevistados pertencentes ao estrato social baixo. Porém, em

todos os estratos sociais houve predomínio de uso de duas a quatro espécies de plantas. Do

total de respostas, o não-uso foi mais referido no estrato social alto, e, no geral, 10,8% dos

entrevistados não utilizam plantas. Os autores salientam que a forma de obtenção de ervas

confronta o método natural ao industrializado, sendo o primeiro usado principalmente pelo

estrato baixo devido à existência de quintal com terra na maioria das casas e a proximidade

com áreas de vegetação silvestre. Em Datas, MG 35, durante o estudo sobre plantas

medicinais de uso caseiro, os autores também verificaram que a maior parte dos entrevistados

tinha renda familiar de até um salário mínimo, motivo apontado para a “busca de tratamentos

de baixo custo ou que não façam mal” 35 (p. 04). De forma semelhante, Teixeira & Nogueira 40

afirmaram que em relação à renda familiar, na amostra estudada em Niterói, RJ, o uso das

ervas é mais procurado entre as classes mais pobres da população principalmente devido ao

aspecto financeiro, uma vez que não têm o mesmo tipo de assistência que as classes mais

ricas. Afirmam também que “essas práticas populares procuram atender o sujeito em seu

contexto, abarcando a subjetividade do mesmo e a dimensão mágica e religiosa” 40 (p. 234).

Em Campos dos Goytacazes, RJ 28, verificou-se que o maior número de espécies foram

citadas pelos entrevistados do estrato IV – correspondente a periferia – seguido dos estratos

III e II – poder aquisitivo baixo e médio, respectivamente. Tal situação sugere que o uso de

plantas se dá de forma mais ampla entre a população do estrato IV, uma vez que esta

demonstra conhecer mais espécies que os entrevistados dos outros estratos.

Todavia, em Marília, SP 32, constatou-se que a maior utilização de plantas medicinais

ocorreu entre os indivíduos cuja renda familiar excedia cinco salários mínimos, ou seja, entre

o estrato populacional estudado de maior renda. Ainda assim os autores lembram que a

pesquisa foi realizada em 150 domicílios e que apenas 29 entrevistados informaram fazer uso

de plantas medicinais. Por outro lado, em Mogi-Mirim, SP 39, todos os entrevistados utilizam

plantas medicinais no tratamento de suas doenças mais freqüentes, estando a renda média

mensal familiar concentrada principalmente nas faixas entre mais de dois a cinco salários

mínimos (54% da população amostrada) e mais de cinco a dez salários mínimos (26%).

2.2.3 O contexto local e o uso de plantas medicinais

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30

Observou-se que o aspecto financeiro permeia a discussão de vários autores que

abordam os motivos que levam ao uso de plantas medicinais. Fonseca-Kruel & Peixoto 4

observam que embora não se possa afirmar que a população da Reserva Extrativista Marinha

de Arraial do Cabo, RJ, dependa, para cura de suas doenças, de plantas medicinais coletadas

na restinga ou cultivadas em quintais, as mesmas são muito importantes no seu dia-a-dia. Da

mesma forma, porém num contexto urbano, outros autores 39 apontam a utilização de plantas

medicinais por populações de cidades como um dos recursos terapêuticos para tratar suas

doenças mais freqüentes. Somado a isso, tem-se o fato de que medicamentos industrializados

são caros, favorecendo o uso de plantas medicinais que podem ser cultivadas nos quintais das

próprias casas 39. Seguindo a mesma linha de argumentação, autores de outro estudo 36

comentam que um dos fatores que influenciam a opção de tratamento com plantas medicinais

em Ingaí, MG, é o baixo poder econômico das famílias e a estrutura precária do município

para atendimento dos enfermos, sendo necessário o deslocamento até o município de Lavras,

MG, a 30 Km de distância. Moura 26 afirma que o principal benefício das plantas medicinais

usadas pela população feminina de Embu Guaçu, SP, durante o período de gravidez e

puerpério é o baixo custo das mesmas, tornando essa terapêutica mais atrativa para a classe

social menos favorecida. A fim de obter informações sobre a utilização de serviços de saúde

pela população da Reserva Rio das Pedras, foram entrevistados profissionais de saúde do

hospital municipal de Mangaratiba, RJ 30. Foi relatado que os sitiantes mostram-se resistentes

ao uso de medicamentos sintéticos devido aos altos preços dos mesmos, preferindo, dessa

forma, o tratamento baseado no conhecimento da medicina tradicional, caseira. Todos os

estudos que se referem à forma de obtenção de plantas medicinais salientam que o cultivo

caseiro é predominante, demonstrando a importância da família e da vizinhança tanto na

transmissão do conhecimento quanto para obtenção de plantas. Tal fato foi observado em

Mogi-Mirim, SP 39, na Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo, RJ 4, no município

de Colômbia, SP 27 e na região de Bauru, SP 31. Outros estudos 37, 38 que analisaram a

comercialização de plantas medicinais em feiras de Barra do Piraí e Rio de Janeiro, RJ,

também observaram que a maior parte dos erveiros cultivam em casa as ervas que vendem.

Queiroz 17 observou que as famílias trabalhadoras pesquisadas no município de Paulínea, SP,

adquirem plantas medicinais por meio de cultivo próprio ou junto a vizinhos. O mesmo foi

encontrado em Datas, MG 35, porém a aquisição com vizinhos ocorre com menor freqüência.

Os moradores pesquisados do município de Marília, SP 32, em sua maioria cultivam as plantas

medicinais em suas casas ou as compram em supermercados. Já os estudantes da área da

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31

saúde pesquisados da Universidade Federal do Rio de Janeiro adquirem suas plantas

principalmente no comércio do município 41.

Rodrigues 34 afirma que “as práticas relacionadas ao uso popular de plantas medicinais

são o que muitas comunidades têm como alternativa viável para o tratamento de doenças ou

manutenção da saúde” (p. 12). Os erveiros entrevistados na região do Alto Rio Grande, MG,

indicam que os motivos principais para serem procurados pela população são “o fácil acesso a

eles, em relação aos postos de saúde das comunidades, a preferência por tratamento por meio

de plantas, o anseio pela cura mais rápida e a economia financeira em relação aos

medicamentos vendidos nas farmácias” 34 (p. 62). Em pesquisa semelhante, Rodrigues &

Carvalho 33 afirmaram que segundo os raizeiros da mesma região de Minas Gerais, vários são

os fatores que influenciam na demanda por plantas medicinais para cura de enfermidades.

Entre eles, em ordem decrescente de ocorrência, têm-se: preço elevado de certos

medicamentos sintéticos, anseio no bem-estar e na cura mais rápida, fazendo uso dos dois

tipos de medicamentos (sintéticos e fitoterápicos) e as irritações causadas no organismo dos

pelo uso de medicamentos sintéticos 33.

Teixeira & Nogueira 40, contudo, entrevistando usuários de uma Policlínica de Saúde em

Niterói, RJ, observaram que entre os principais motivos para uso das plantas medicinais estão

a sensação de melhora, o caráter natural da erva e a ausência de efeitos adversos. “Estes

achados indicam que existe um movimento social em busca de ‘práticas naturais’ e de maior

contato com a dimensão ecológica da vida” 40 (p. 234). Completam informando que quando se

questiona aos depoentes sobre a opção terapêutica preferida no cuidado com a saúde, 20,7%

deles disseram que fariam uso apenas do medicamento prescrito pelo médico. “As

justificativas mencionadas foram: o medicamento tem mais eficácia porque é mais fidedigno;

confia-se mais no saber do médico. [...] Todavia, uma quantidade expressiva (43,7%) optou

pelo uso exclusivo das ervas” 40 (p. 235-6). Tais achados guardam semelhança com o que foi

observado entre os usuários de plantas medicinais em Barra do Piraí, RJ 38, uma vez que a

maioria utiliza plantas medicinais devido ao preço inferior em relação aos medicamentos

industrializados e à crença de que são formas mais saudáveis de tratamento.

Foi observado que entre os estudantes pesquisados da área da saúde da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, RJ, os motivos de uso de plantas medicinais são, principalmente,

facilidade de acesso, baixo custo, heranças culturais (familiares) e respostas satisfatórias da

terapêutica com fitoterápicos e, em alguns casos, insatisfatórias com sintéticos 41. Não

obstante, a falta de credibilidade desse recurso como prática curativa, o sabor desagradável de

algumas ervas e a ausência de reconhecimento social para os profissionais de saúde que

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32

indicam a fitoterapia são aspectos explicativos para a opção de vários estudantes não

utilizarem plantas medicinais 41. Outros autores 32 observaram que os moradores entrevistados

de Marília, SP, em sua maioria não utilizava plantas medicinais, atribuindo tal achado ao

“aumento do acesso da população às especialidades farmacêuticas nos últimos anos” (p. 127).

De forma convergente a esses autores, Queiroz 17 observa que “o fator econômico é, sem

dúvida, o mais importante na determinação da tomada de decisão. Este fator configura e

limita o universo de opções e o leque de possibilidades disponíveis” (p. 280). Entretanto,

lembra também que as famílias trabalhadoras pesquisadas em Paulínea, SP, fazem uso

corrente dos serviços médicos disponibilizados pela rede pública e das medicinas caseira e

religiosa. Tais informações, contraditórias a primeira vista, sugerem que o uso de plantas

medicinais habita um universo complexo, refletindo muitas vezes limites da oferta de

atendimento em saúde oferecido pelo Estado e anseio por outro tipo de modelo de atenção à

saúde. Indica que as escolhas não se justificam por um motivo ou outro, mas sim por um

motivo e outro; são problemas vivenciados na área da saúde que se interligam e influenciam a

escolha das opções terapêuticas. Nesse sentido, Guizardi & Pinheiro 25, estudando fitoterapia

comunitária em Vila Velha e Vitória, ES, afirmam que

“quanto aos argumentos levantados acerca dos motivos que os levaram a procurar a Pastoral, percebemos que, se, por um lado, a procura pela fitoterapia se associa claramente à dificuldade de acesso ao tratamento tradicional - especialmente no tocante aos medicamentos alopáticos, muito caros para grande parte da população -, por outro, verificamos que sua busca (mesmo quando há o problema do acesso), em grande medida, é marcada pelo desejo de uma outra assistência, de uma outra prática e concepção de saúde” (p. 114).

As autoras completam dizendo que o uso de plantas medicinais se deve, em grande parte, ao

fato de se “apresentar e se afirmar como uma alternativa à referência biomédica de saúde.

Alternativa em grande medida inexistente nos serviços de saúde, tanto públicos, quanto

privados” 25 (p. 113).

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33

3 O ACESSO AOS SERVIÇOS OFICIAIS DE SAÚDE E O USO DE PLANTAS

MEDICINAIS

A literatura examinada no capítulo anterior abordou, de forma geral, características e

contextos do Conhecimento sobre uso de plantas medicinais e da Transmissão do

conhecimento envolvida. As observações decorrentes dessa perspectiva de análise

contribuíram para identificação e aprofundamento da relação entre dificuldades de acesso ao

SUS e o uso de plantas medicinais. Demonstrando o caráter eminentemente empírico do

conhecimento popular sobre a utilização de ervas e as especificidades adquiridas em função

do local, origem urbano / rural e agente de cura, a análise da referida literatura possibilitou

também a discussão sobre o uso de plantas medicinais como um saber próprio culturalmente

reproduzido e sua relação com a ciência. Dessa forma, à luz do que foi apresentado no

capítulo anterior as questões referidas acima serão discutidas na forma de tópicos.

3.1. Uso de plantas medicinais como um saber próprio culturalmente reproduzido

Poetas niversitário, Poetas de Cademia, De rico vocabularo Cheio de mitologia;

Se a gente canta o que pensa, Eu quero pedir licença,

Pois mesmo sem português Neste livrinho apresento

O prazê e o sofrimento De um poeta camponês. [...]

Sou um caboco rocêro, Sem letra e sem istrução; O meu verso tem o chêro

Da poêra do sertão; Vivo nesta solidade

Bem destante da cidade Onde a ciença guverna.

Tudo meu é naturá, Não sou capaz de gostá

Da poesia moderna.Aos poetas clássicos – Patativa do Assaré

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34

3.1.1 Abordagem sobre o uso ritualístico

O termo “Uso”, presente nos artigos analisados, designa a forma de tratamento – se

medicinal ou ritualístico – e / ou função terapêutica das plantas medicinais, retratando um

conhecimento empiricamente construído. Esse termo, elaborado pelos autores dos artigos,

favorece o entendimento do texto e, sobretudo, permite observar se o uso das plantas

medicinais nas comunidades restringe-se à atividade farmacológica ou a ultrapassa. Embora o

uso ritualístico de plantas medicinais não seja o objetivo de análise da presente revisão

bibliográfica, faz-se necessário tecer algumas considerações, uma vez que essa forma de uso é

expressão da amplitude de conotações atribuídas às plantas medicinais. O uso medicinal ou

religioso / ritualístico é influenciado sobremaneira pelo agente de cura e pelo tratamento

proposto, a exemplo da Umbanda e do Candomblé que utilizam plantas medicinais como

parte de seu ritual de cura. No estudo sobre o uso de plantas medicinais em Marília, SP 32,

observou-se que o uso de determinadas plantas tem estreita relação com a religião do usuário.

Entretanto, a maior parte dos artigos analisados não salientou a relação entre o uso religioso /

ritualístico de plantas medicinais e a crença religiosa dos entrevistados. A divisão entre uso

medicinal e religioso / ritualístico foi adotada no presente estudo a fim de facilitar a discussão

dos mesmos, não sendo observada separação bem delimitada nos artigos analisados, a qual, se

existir, apresenta tênues limites. Tal divisão poderia corresponder à dualidade entre corpo e

mente, o que, de acordo com a observação de Loyola 16 em Nova Iguaçu, RJ, a diferenciação

entre cuidados do corpo e cuidados do espírito é tanto mais acentuada quanto mais próxima

estiver das práticas dos médicos oficialmente reconhecidos. Segundo Helman 12, os rituais,

característicos de todas as sociedades humanas, sejam grandes ou pequenas, “constituem uma

parte importante do modo como qualquer grupo social celebra, mantém e renova o mundo em

que vive, assim como do modo como o grupo lida com os perigos e as incertezas que

ameaçam o seu mundo” 12 (p. 205). Martins 23 questiona se os ritos religiosos não seriam "uma

forma de luta política, contra o autoritarismo de um controle médico invasivo e presunçoso"

(p. 27). Em tais ritos os indivíduos teriam sua autonomia respeitada, um ambiente facilitador

para melhorarem, reabilitarem-se, recuperar a força, a potência e a firmeza abaladas 23. Sobre

os rituais de infortúnio, Helman 12 (p. 216) afirma que eles

"têm geralmente duas fases consecutivas: a fase do diagnóstico ou adivinhação da causa do infortúnio e a fase de tratamento dos efeitos produzidos pelo infortúnio e eliminação de sua

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causa. [...] Mesmo na mais primitiva das sociedades, onde o aspecto puramente ritual do tratamento é o mais forte, é provável haver um componente de observações e de experiências perspicazes por parte do curandeiro a respeito de como e por que as pessoas ficaram enfermas, algum conhecimento sobre a natureza humana e domínio de certas técnicas práticas e teatrais".

Lévi-Strauss 14 considera que o pensamento mágico e a ciência são ignorantes sobre diversos

aspectos da realidade, fazendo com que ambos se utilizem do determinismo para algumas

explicações. O autor sugere que o pensamento mágico tem uma exigência mais imperiosa e

intransigente de determinismo, o que a ciência, quando muito, considera insensata e

precipitada. Ele ainda afirma que uma importância fundamental da magia e da feitiçaria é que

ambas admitem uma intervenção corretiva sobre algum mal que tenha ocorrido – é possível

utilizá-las contra a causa maior que originou o problema, como mau-olhado, feitiçaria, azar.

Segundo Helman 12, “em sociedades onde a falta de saúde e outros tipos de infortúnio são

atribuídos a causas sociais (bruxaria, feitiços ou mau olhado) ou a causas sobrenaturais

(deuses, espíritos, fantasmas ancestrais ou destino), são especialmente comuns os curandeiros

sagrados” (p. 76). Esse mesmo autor afirma que em muitas culturas drogas são usadas como

substâncias sacramentais, fazendo parte de rituais religiosos, de cura e de certas interações

sociais.

3.1.2 Relação do saber popular sobre plantas medicinais com o conhecimento científico

Em Mogi-Mirim, SP 39, os entrevistados associaram o uso de remédios caseiros,

principalmente na forma de chás, aos medicamentos industrializados, o que sugere o

conhecimento sobre a existência de substâncias – princípios ativos – responsáveis pelos

efeitos farmacológicos. Conforme pontuado no capítulo 2, os autores também ressaltaram a

influência da medicina alopática / sintética no meio popular, uma vez que algumas plantas

medicinais recebem nomes comerciais ou de substâncias ativas. São associações feitas com

base no cheiro, gosto ou efeito do medicamento industrializado. Essa “eficácia comparada”

indica o reconhecimento das propriedades medicinais de plantas e, sobretudo, a confiança nos

efeitos terapêuticos dos medicamentos sintéticos a ponto de torná-los referências de

tratamento; o uso de determinadas plantas com propriedades semelhantes às dos sintéticos

pode inclusive ser mais antigo, mas a referência passa a ser esses últimos. Observa-se,

portanto, que o processo de medicalização da sociedade atinge o saber popular reduzindo sua

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legitimidade enquanto conhecimento acumulado ao longo de gerações e possuidor de

informações próprias e eficazes. Além disso, a designação de plantas por nomes comerciais de

medicamentos mostra como o conhecimento sobre alguns sintéticos encontra-se difundido

nessas populações, facilitando a comunicação e troca de informações sobre recursos

terapêuticos. Conforme ressaltado anteriormente, Helman 12 chama atenção para o fato das

teorias leigas sobre o processo saúde-doença serem influenciadas por elementos oriundos do

saber médico. Nesse sentido, Teixeira & Nogueira 40 observam que o saber popular apropria-

se do saber instituído na sociedade – científico ou não – e realiza readaptações para o contexto

sócio-cultural local, o que, para os autores, ajudou a compreender a concepção de doença na

população estudada em Niterói, RJ, que varia desde reinterpretações do saber científico até

visões mágicas e religiosas. Outros autores 10, 33 afirmam que o inverso também ocorre, quando

indústrias farmacêuticas passam a estudar propriedades medicinais de plantas de uso corrente

em comunidades tradicionais visando a prospecção de novos produtos. Um exemplo é o caso

do Jaborandi-brasileiro (Pilocarpus pinnatifolius Engl.), do qual são extraídos os sais de

pilocarpina desde 1876 pelo laboratório Merck e exportados para a América, Ásia e Europa 33.

“Hoje, as 125 principais indústrias farmacêuticas do mundo realizam pesquisas com produtos

de plantas e, por isso, 2/3 dos medicamentos lançados nos últimos anos, nos Estados Unidos,

provêm, direta ou indiretamente, de plantas” 34. As indústrias farmacêuticas estimulam fazer

das plantas medicinais uma mercadoria por meio de patentes. Geralmente a tecnologia

necessária para o desenvolvimento dos fitoterápicos encontra-se em empresas, especialmente

estrangeiras, fazendo com que o ganho financeiro advindo dessas patentes não beneficie

países de economia periférica. Lacey 22, comentando sobre a pesquisa biotecnológica, afirma

que o resultado disso não é apenas a “perpetuação da dependência e da desigualdade nas

relações comerciais, mas também o enfraquecimento da capacidade das nações pobres de

utilizar para os próprios fins uma de suas mais valiosas riquezas naturais, a riqueza e a

variedade dos recursos genéticos” 22 (p. 157). Nesse sentido, o conhecimento extensivo utiliza

o saber oriundo do povo para iniciar suas pesquisas sem por ele pagar, considerando-o

patrimônio da humanidade. A complexidade de tal problema levou a inúmeras discussões,

afirmando pelo menos duas maneiras de lidar com ele: a primeira prevê a concessão de

direitos de propriedades intelectuais tanto ao conhecimento tradicional quanto ao produto

industrializado, solução adotada pelo Tratado do Rio sobre Biodiversidade; na segunda,

ambos os conhecimentos são considerados pertencentes ao patrimônio comum e gratuito da

humanidade, versão compartilhada pela maioria das organizações populares nos países

periféricos 22.

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Teixeira & Nogueira 40 também observam que muitos pesquisadores tomam como início

de seus estudos o saber popular para realizar, posteriormente, pesquisas experimentais e

clínicas. Nesse sentido, buscando compreender o processo de transformação do óleo de

chaulmoogra, usado principalmente pela população hindu no tratamento da lepra, em

medicamento validado pelo padrão científico ocidental, os autores 29 afirmam que para que

um elemento não reconhecido pela medicina científica como possuidor de qualidades

terapêuticas seja transformado em medicamento, é necessário proceder seu isolamento do

contexto histórico e social em que foi observado inicialmente. “A partir de então, passa a ser

construída uma nova rede de conhecimentos articulada socialmente ao novo contexto no qual

esse elemento estará situado, tecnicamente, ao conjunto de práticas e aos saberes que

configuravam a ciência médica” 29 (p. 33). Dessa forma, a chaulmoogra foi dissociada da sua

rede tradicional de saberes e sua “assimilação somente se concluiu na medida em que foi

construída uma nova rede calcada nos valores ocidentais, a qual veio respaldar o

conhecimento referente ao seu uso” 29 (p. 33). No entanto, o “saber científico das plantas

segue uma lógica racional, objetiva, que rege as práticas de saúde cunhada com o modelo

biomédico” 41 (p. 66). Nesse contexto, Loyola 16 observou que em Nova Iguaçu, RJ, os

farmacêuticos que comercializavam ervas industrializadas se distinguem dos erveiros pelo

“fato de estarem mais próximos da indústria, da cidade, da modernidade do que da natureza,

do artesanato, do campo e da tradição” (p. 20).

A RDC 48 9, cujo texto dispõe sobre a normatização do registro de medicamentos

fitoterápicos, salienta que a eficácia e segurança de tais medicamentos podem ser validadas

por meio de levantamentos etnofarmacológicos de utilização, documentações tecnocientíficas

em publicações reconhecidas pela agência como sendo de boa qualidade (monografias da

droga vegetal) ou ensaios clínicos fase três. A primeira possibilidade é admitida porque

quando se trata de populações tradicionais, cujos tratamentos com plantas ocorrem há bastante

tempo e o conhecimento foi passado de geração a geração, acredita-se que as informações

adquiridas são seguras e eficazes. Isso acontece porque o uso constante equivaleria a um teste

farmacológico in vivo, favorecendo a descoberta de tratamentos específicos, partes utilizadas

da planta, forma de preparo, via de administração, posologia e restrições de uso. De acordo

com Lacey 22, nos dias atuais observa-se o “monopólio de conhecimento pretendido pela

ciência extensiva (ou reducionista)” 22 (p. 154). Considerando tal fato e que plantas medicinais

podem causar prejuízos à saúde humana, a ANVISA tende a publicar suas normas de forma a

submetê-las aos critérios de cientificidade atuais que servem a esse modelo de conhecimento

científico. Quando a indicação de uso provém de conhecimento popular é exigida a validação

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terapêutica para comercialização nacional dos insumos derivados de plantas. Um

posicionamento diferente desse no momento histórico atual provavelmente seria considerado

negligente. Entretanto, observa-se que por um lado é importante que os órgãos

governamentais responsáveis certifiquem-se da segurança e eficácia de plantas medicinais de

introdução relativamente recentemente no cotidiano de uma população – pois, nesse caso,

ainda não foi constituído um conhecimento sólido, passado a cada geração – para que a

utilização possa ser estendida regional ou nacionalmente. Além disso, a validação do

conhecimento corrente sobre plantas medicinais é necessário devido ao grande número de

informações, muitas vezes de origem duvidosa, que o complexo médico-industrial vem

lançando na sociedade visando a venda de seus produtos, questão a ser abordada em seguida.

Por outro lado, conforme visto anteriormente, freqüentemente as ervas são utilizadas devido à

propriedades que ultrapassam efeitos farmacológicos; a elas são atribuídas funções religiosas

e mágicas, a possibilidade de um cuidado eminentemente familiar, o entendimento da situação

e contexto de vida do usuário, o fortalecimento do saber construído no meio popular por meio

da experiência cotidiana, a autonomia perante a um profissional de saúde que nem sempre é

acessível e a possibilidade de organização comunitária, questões de difícil normatização.

Helman 12 (p. 180) afirma que

“em muitos casos, o efeito de uma medicação sobre a fisiologia humana ou sobre o estado emocional de um indivíduo não depende unicamente de suas propriedades farmacológicas. Uma série de fatores, tais como personalidade, origem e formação social ou cultural, podem tanto acentuar quanto atenuar efeitos e influenciar a grande variabilidade das reações das pessoas à medicação”.

Lefèvre 43 afirma que o medicamento, na formação social brasileira, apresenta três aspectos ao

mesmo tempo, sendo entendido como mercadoria, quimioterápico e símbolo. Essa última

característica permite que a saúde “biologizada” esteja representada no medicamento. O autor

salienta que por meio dessa ambigüidade dialética o medicamento forma uma unidade

complexa estruturada. Esse simbolismo talvez pouco se aproxime da dimensão simbólica da

fitoterapia popular. Nesse caso, as plantas medicinais representam, incorporam e materializam

qualidades abstratas relacionadas à saúde em seu sentido amplo, considerando as condições

contextuais de vida e comportando também um aspecto relacional acentuado. Para trabalhar

com o princípio da totalidade do ser humano é imprescindível considerar os “aspectos

subjetivos que permeiam o processo de saúde e de doença incluindo a valorização das

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39

crenças, valores, emoções e outros aspectos que interferem na saúde humana” 41 (p. 65).

Sendo assim, ao desconsiderar todos esses elementos como necessários para a eficácia das

plantas, provavelmente os efeitos reais produzidos pelo uso das mesmas serão alterados,

comprometendo significativamente o processo de validação científica. Outro exemplo que

demonstra a complexidade do tema foi observado por Rodrigues 34 na Região do Alto Rio

Grande, MG. Essa autora verificou que embora um mesmo nome popular se refira a duas ou

mais plantas medicinais diferentes, os informantes tinham conhecimento do fato, uma vez que

mostravam as diferenças entre as espécies. No contexto daquela comunidade, portanto, essa

situação era bem compreendida e utilizada, o que pode ser avaliado negativamente por um

observador externo que apreende a realidade baseando-se nos critérios científicos, os quais

exigem que cada espécie receba uma denominação diferente para evitar confusões de

identificação. Conseqüentemente, nota-se que é difícil julgar as informações advindas do

saber popular sem contextualizá-las e compreender o significado que adquirem na

comunidade estudada. Observa-se que as características não farmacológicas das plantas

medicinais e que influenciam o tratamento são deixadas de lado durante o processo de

validação científica das mesmas, uma vez que fazem parte de aspectos não quantificáveis e,

portanto, não são passíveis de redução. Entretanto, é necessário ponderar que condições

contextuais locais em que a fitoterapia popular se insere e que favorecem a eficácia

terapêutica das plantas, ou seja, questões não farmacológicas, podem não ser semelhantes em

outros locais, dificultando o caráter de universalização relativa que define as ciências em

geral. Para o conhecimento empírico, contudo, tais benefícios oriundos das plantas medicinais

continuam sendo fundamentais para o exercício da fitoterapia popular.

Voltando à questão da necessidade de validação farmacológica de plantas medicinais,

observa-se que em muito isso se deve à pretensão de verdade universal do modelo biomédico,

calcada na ciência moderna. Um exemplo que retrata tal situação é a afirmação de José Luiz

Gomes do Amaral 44, presidente da Associação Médica Brasileira, sobre a Portaria 971 de 04

de maio de 2006 - Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no Sistema

Único de Saúde, que autorizou a utilização da homeopatia, acupuntura, fitoterapia e do

termalismo social ou crenoterapia nos tratamentos do SUS: “ela também tenta legitimar

alternativas sem qualquer comprovação científica [...]. Se não houver critérios técnico-

científicos, jamais se consolidará um Sistema Único de Saúde integral e de qualidade,

conforme estabelece a Constituição Federal” 44 (p. 03). Em relação ao ensino superior, “a

academia ensina e sustenta o processo ensino-aprendizagem no saber acadêmico-científico

porque este foi comprovado pela experimentação e prova científica e objetivado por meio da

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40

técnica; conseqüentemente, ele passa a ser adotado como critério de verdade.” 11 (p. 5). Direta

ou indiretamente, a mencionada validação do conhecimento popular se dá em qualquer uma

das três opções de certificação da eficácia e segurança indicadas na RDC 48. Ela ocorre

diretamente quando os testes científicos são processados a partir de levantamentos

etnofarmacológicos e indiretamente quando são estabelecidos os critérios de aceite para

inclusão de estudos realizados em comunidades tradicionais, mesmo sem a execução dos

referidos testes. Além disso, a elaboração de tais critérios favorece a certificação da segurança

e eficácia dos fitoterápicos, entretanto, “a maioria da obras na literatura colocada como

referência não contempla estudos clínicos de plantas da flora brasileira utilizadas na medicina

popular” 45 (p. 67). Os autores complementam dizendo que a medicina popular é

desvalorizada pelas normas oficiais, uma vez que várias plantas utilizadas tradicionalmente

como medicinais ainda não foram submetidas a testes de segurança e eficácia, “o que tornaria

proibitivo o seu registro como fitoterápico” 45 (p. 67). Exceto Guizardi & Pinheiro 25, que

salientaram que o objetivo do estudo era entender o significado biopolítico do uso de plantas

medicinais e por isso não era necessária uma discussão sobre a comprovação científica de sua

eficácia, conforme apresentado no capítulo anterior, vários autores ressaltaram as indicações

de uso citadas que concordam com as informações disponíveis em publicações científicas

como forma de validar o conhecimento popular, podendo as razões para tal posicionamento

assemelhar-se às sugeridas para a ANVISA.

O saber popular, conforme detalhado no capítulo 1, é uma forma de conhecimento, não

sendo a ciência descobridora de verdades ou a única forma possível de compreensão da

natureza. Queiroz 17 afirma que a “antropologia tem demonstrado que aquilo que não é

classificado nem nomeado pela cultura também não é percebido” 17 (p. 274). Nesse sentido,

em Ingaí, MG, observou-se que por meio de comparações os informantes dividem as espécies

em famílias 36, o que facilita o conhecimento sobre a natureza. Os entrevistados afirmam que a

canjerana é da mesma família do cedro e que a paineira é da mesma família do quiabo, sendo

esta última observação originada da comparação do gosto das folhas mais novas de paineira

com o sabor do quiabo 36. Tal correlação pode ser chamada de analogia uma vez que a relação

entre os elementos dos dois domínios – paineira e quiabo – são evidenciados 46. De acordo

com Duarte 47, a analogia pressupõe uma “relação que é assimilada a outra relação, com a

finalidade de esclarecer, estruturar e avaliar o desconhecido a partir do que se conhece” 47 (p.

8). Na região do Alto Rio Grande, MG, observou-se que os erveiros entrevistados classificam

as plantas medicinais em família com a finalidade de proporcionar sinergismo entre as

espécies e assim facilitar a cura de doenças 33. Lévi-Strauss 14 comenta que a classificação de

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41

algumas espécies zoo-botânicas é realizada em algumas comunidades indígenas

principalmente por meio de semelhanças e diferenças físicas entre elas. A necessidade de

ordenação dos vegetais, percebida nas comunidades estudadas, é uma característica em

comum da ciência e do conhecimento empírico que favorece a continuidade da vida 48. Por

meio da classificação, qualquer que seja ela, introduz-se um princípio de ordem no universo, o

que é mais virtuoso do que a falta de classificação; é a partir das propriedades comuns que se

chega com mais facilidade ao desconhecido 14. O autor completa dizendo que “os cientistas

suportam a dúvida e a derrota porque não podem agir de forma diferente. Mas a desordem é a

única coisa que não podem nem devem tolerar” 14 (p. 29). A classificação salvaguarda a

riqueza e a diversidade do inventário, facilita a formação de uma memória. De forma

semelhante, as analogias – presentes tanto na ciência quanto no senso comum – são formas de

conhecer a realidade; reduzir o desconhecido ao conhecido 48. Rodrigues 34 ressaltou ainda que

a forma de uso das plantas medicinais foi relatada minuciosamente pelos informantes da

região do Alto Rio Grande, MG, demonstrando conhecimento acerca das propriedades

terapêuticas dos vegetais utilizados. Na Reserva Rio das Pedras em Mangaratiba, RJ, também

foi observado que a forma de preparo dos fitoterápicos populares e a dose utilizada são

preocupações dos entrevistados 30. Sendo assim, observa-se que o conhecimento tradicional,

construído por meio de observações, erros e acertos permite acumular informações

necessárias para um tratamento que dê bons resultados e que, sobretudo, não cause danos ao

usuário. Lévi-Strauss 14 salienta o cuidado que vários grupos têm em reconhecer diferenças

entre espécies de um mesmo gênero botânico e o profundo conhecimento acerca dos hábitos,

costumes e utilização terapêutica das mesmas, o que demonstra a riqueza de observações do

saber indígena, um dos tipos de medicina tradicional. O autor afirma também que “é claro que

um saber tão sistematicamente desenvolvido não pode estar em função da simples utilidade

prática” 14 (p. 28). Ele salienta, a partir dos diversos exemplos analisados, que as espécies

animais e vegetais não são conhecidas na medida em que se mostram úteis; elas são

classificadas úteis ou interessantes porque são primeiro conhecidas. Tal peculiaridade não

pode ser afirmada para as comunidades apresentadas nos artigos analisados neste trabalho,

uma vez que ficou claro que a dificuldade de acesso à tratamentos oferecidos pelo sistema

público fomentou, em vários momentos, o conhecimento sobre espécies medicinais.

Outras situações também demonstram a efetividade do conhecimento empírico, como a

observada numa experiência sobre manejo agrícola no agreste da Paraíba, onde os

“agricultores manejam melhor os complexos sistemas informacionais locais do que os

próprios pesquisadores” 49 (p. 124). É reforçado que “no processo de experimentação

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42

conduzido pelos agricultores, tanto os problemas de ordem produtiva quanto as hipóteses para

sua solução são formulados com base em um estado ampliado de percepção consciente por

parte das famílias a respeito de seus agroecossistemas” 49 (p. 130). Os autores salientam ainda

que o conhecimento gerado tem nítido sentido de aplicabilidade local, o que dificulta

generalizações para outros agroecossistemas, que são muito diversos entre si. Como se trata

de um subsistema complexo – o agroecológico –, a metodologia experimental clássica, com

seus pressupostos de objetividade e isolamento de variáveis, tem sido insuficiente para

pesquisá-lo 49. Foi observado também que “a construção de conhecimentos a respeito dos

sistemas técnicos por parte dos agricultores está vinculada não só a uma refinada capacidade

de observação, mas também a processos bastante eficientes de aprendizado com base na

experimentação.” 49 (p. 130).

3.1.3 Relação entre uso de plantas medicinais e biomedicina

Após a Revolução Industrial na Europa foi necessário lançar mão de recursos

terapêuticos que conseguissem restaurar rapidamente a saúde do trabalhador com vistas a

manter a produção das fábricas e, conseqüentemente, o lucro dos industriários 41. Nesse

sentido, as práticas de saúde que "fugiam ao interesse do capital foram sendo consideradas

obsoletas e, portanto, renegadas" 41 (p. 66). Outros autores 11 comentam que anteriormente a

esse período, a Revolução Científica ocorrida nos séculos XVI e XVII, já marca o surgimento

de um novo paradigma que favoreceu o modo de produção capitalista “na medida em que a

ciência passou a ter grande responsabilidade por manter a força de trabalho ativa do homem,

garantindo a produção das fábricas” 11 (p. 01). Nogueira & Camargo Jr. 50 afirmam que nesse

mesmo período a biomedicina surgiu, passando o corpo humano a ser concebido por meio de

fenômenos matemáticos e tratado como se fosse uma máquina. A nova ordem cultural advinda

com a produção industrial capitalista desprestigiava as práticas não convencionais de saúde,

em especial as plantas medicinais, “pois não faziam parte do saber especializado, comprovado

pela lógica da ciência; e tudo o que não era objetivado, explicado e demonstrado

cientificamente, foi sendo descartado como saber e como prática” 11 (p. 02).

Rocha 13 afirma que a medicina popular vem perdendo forças “devido à invasão de

outras medicinas e de outros interesses; esta invasão é tanto de ordem material (recursos

farmacológicos, cirúrgicos, etc.), como de ordem ideológica, através da propaganda e

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43

resultado, em última análise, da própria dinâmica das relações sociais” 13 (p. 43). Somado a

isso, o descobrimento de novos fármacos e a possibilidade de síntese e utilização terapêutica

fizeram com que a medicina passasse a preferir substâncias puras sintéticas, o que contribuiu

para que parte da cultura popular fosse depreciada, reduzindo o conhecimento sobre plantas

medicinais e sua transmissão a cada geração, “havendo descrédito sobre a terapêutica caseira

com plantas e desestimulando a pesquisa necessária nessa linha” 31 (p. 123). Alguns autores 11

afirmam que a economia brasileira, essencialmente rural, era favorável à utilização de plantas

medicinais para tratamento de doenças devido ao contato direto com a terra e a inexistência de

outras formas de tratamento. As transformações da ciência e da economia ocorreram mais

tardiamente nesse país, colaborando para que as práticas de saúde populares permanecessem

hegemônicas até o início do século XX, o que foi modificado com a institucionalização dos

serviços de saúde e o advento da alopatia.

Os artigos analisados na presente revisão bibliográfica apontam três perspectivas de

análise da fitoterapia popular: uma refere-se a essa prática como alternativa à dificuldade de

acesso ao SUS, discutida no item 3.2.; outra a analisa como sendo uma forma de resistência

ao modelo biomédico presente nos atuais serviços de saúde. A terceira abordagem encontra-se

inserida no contexto da Medicina Alternativa, que é direcionada a tratamentos e estilos de

vida “mais naturais” visando uma melhor forma de viver no mundo contemporâneo, conforme

pontuado no capítulo 1. É importante salientar que a análise dessa última inserção da

fitoterapia não é privilegiada no presente trabalho porque isso escaparia aos objetivos

propostos. Contudo, mais adiante serão destacadas algumas questões relativas à intensa busca

pela Medicina Alternativa atualmente como forma de contextualizar a utilização de plantas

medicinais. Considerando que as duas primeiras são situações que podem ocorrer de forma

concomitante, ou seja, dificuldade de acesso ao SUS e insatisfação com o modelo de

assistência prestado, a autora do presente trabalho sugere que são perspectivas de análise que

convergem mais do que se contrapõe. São aspectos que se entrelaçam, uma vez que

acontecimentos contextuais refletem-se no ambiente comunitário e esse, por sua vez,

engendra transformações na realidade. Para entender a resistência à biomedicina é preciso

salientar que a medicina popular se configura como uma racionalidade não médica que

disputa, com outras racionalidades médicas e não médicas, a hegemonia pelo cuidado no

campo da saúde. Essa situação influencia novas opções em saúde e significações dadas à

realidade, alterando sobremaneira a transmissão do conhecimento; já a ampliação do saber,

indicando um limite da universalidade do SUS e / ou resistência ao modelo biomédico por ele

oferecido, altera o cenário de disputa entre as diferentes racionalidades.

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44

Baptista 51 afirma que no Brasil “a década de 80 iniciou-se em clima de

redemocratização, crise política, social e institucional do Estado Nacional” 51 (p. 26). Nesse

sentido, impulsionado pelo fim da ditadura militar do país, o contexto econômico-político

brasileiro da época estava em plena mudança, o que fomentava – já desde os anos 70 –

diversas discussões na área da saúde na direção de um modelo de atenção à saúde que não o

biomédico vigente. Embora o inequívoco avanço da formalização do direito à saúde na

legislação brasileira, vários desafios são colocados à operacionalização do SUS; são

“heranças deixadas pelos anos de autoritarismo, centralização decisória e prática clientelista

no Brasil” 51 (p. 37). Dessa forma, é um grande desafio “incorporar e construir uma nova

concepção de saúde, capaz de compreender o indivíduo no contexto de uma coletividade e dos

problemas que ela emana” 51 (p. 38), uma concepção em que o direito à saúde não se traduza

em consumo de serviços médicos, procedimentos e medicamentos, e em que o médico e os

hospitais não tenham a centralidade no processo saúde-doença.

Conforme Loyola 16 aponta, aos olhos de um observador menos atento parece que o fato

de a população de Nova Iguaçu, RJ, recorrer a medicamentos sintéticos e fitoterápicos

armazenados em casa é reflexo único e imediato da falta de atendimento prestado a essa

população. Apesar de essa ser uma das principais razões, verifica-se que há também uma forte

ligação entre a escolha do recurso terapêutico usado e o vínculo estabelecido entre o usuário e

o agente de cura. Medicamentos prescritos por médicos que adquiriram a confiança da

comunidade são guardados em casa com cuidado e sempre se recorre ao que restou nas

cartelas no caso de necessidade, o contrário do que acontece com aqueles indicados por

médicos que não adquiriram tal confiança. Nesse sentido, desconfiar da eficácia de

medicamentos receitados por um médico que pouco escuta as queixas do usuário, que

prescreve de forma autoritária e não fornece explicações sobre a doença e o tratamento sugere

o desejo por outro tipo de assistência à saúde, um modelo diferente do biomédico, apesar de

não necessariamente conhecer essa classificação e sua teoria. Guizardi & Pinheiro 25 afirmam

que na pesquisa realizada em Vila Velha e Vitória, ES, o uso de plantas medicinais está se

ampliando porque constitui uma alternativa à referência biomédica em saúde. Observa-se, por

meio do relato de Loyola 16 e dessas últimas autoras 25, que tanto a busca pela fitoterapia

quanto o desejo de que os medicamentos sintéticos estejam inseridos em outra lógica de

atendimento em saúde podem representar a insatisfação com o modelo médico hegemônico.

Guizardi & Pinheiro 25 afirmam que uma concepção de saúde alternativa à do modelo

biomédico “implica o compartilhamento de um saber que possibilite às pessoas aprenderem a

cuidar-se e a decidir como fazê-lo” 25 (p. 116). Nesse caso, o trabalho desenvolvido no

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Espírito Santo não centraliza o saber nas mãos de um especialista e não requer a

especialização técnica; é organizado por meio da sistematização e coletivização do saber

popular, opondo-se, dessa forma, à biomedicina, marcada pela dependência extrema em

relação ao médico. A relação engendrada torna-se mais importante do que a técnica

propriamente dita, impedindo a transformação do outro em objeto 25. Teixeira & Nogueira 40

observaram que atualmente está ocorrendo uma valorização das terapias naturais como

recursos alternativos às práticas tradicionais institucionalizadas. Completam dizendo que a

utilização de plantas medicinais pode ser uma forma de resistência à “medicalização na

sociedade, expressando o valor cultural e a subjetividade do grupo em seu território. O uso

das ervas constitui um repertório de práticas de cuidados, as quais nem sempre se coadunam

com as práticas oficiais em saúde” 40 (p. 234). A inserção em movimentos sociais, cujos

debates e estrutura organizativa privilegiam espaços de formação política e troca de

experiências, favorece a luta pela efetivação do direito à saúde por meio do estabelecimento

de atitudes concretas de reivindicação. Torna-se possível a discussão contextual em que o

processo saúde-doença se insere e a luta pela superação dos fatores políticos, econômicos e

culturais que conformam a desigualdade social e o modelo oficial hegemônico de saúde.

Outro exemplo do uso de plantas medicinais como forma de resistência ao modelo biomédico

e ao mesmo tempo como alternativa à falta de acesso ao SUS é o atual “Curso de Terapias

Tradicionais” realizado pelo setor saúde do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra /

RJ em que a fitoterapia e terapias chinesas são destacadas.

Alguns autores 11 afirmam que o descrédito da biomedicina contribuiu para a retomada

do uso de plantas medicinais; alertam que a partir dos anos 80 e 90 do século XX mudanças

engendradas pelo momento político, econômico e da saúde, além da “falta de êxito do modelo

médico biologicista no tratamento de doenças, efeitos iatrogênicos associados ao alto custo de

determinadas drogas alopáticas e da eficácia de algumas plantas já comprovadas

cientificamente” 11 (p. 02), favoreceram o resgate do uso terapêutico de plantas medicinais

não no sentido de contraposição às práticas alopáticas, mas como complementares a essas

últimas. Outros autores 45 apontam também que os avanços ocorridos na ciência permitiram o

desenvolvimento de “fitoterápicos reconhecidamente seguros e eficazes, como também uma

forte tendência de busca, pela população, por terapias menos agressivas destinadas ao

tratamento primário em saúde” (p. 65). Teixeira & Nogueira 40, ao entrevistar usuários de uma

Policlínica de Saúde em Niterói, RJ, observaram que entre os principais motivos para uso das

plantas medicinais estão a sensação de melhora, o caráter natural da erva e a ausência de

efeitos adversos. Os autores argumentam que “estes achados indicam que existe um

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movimento social em busca de 'práticas naturais' e de maior contato com a dimensão

ecológica da vida” 40 (p. 234). Da mesma forma, a expressiva utilização de plantas medicinais

em estratos sociais mais altos em Mogi-Mirim e Marília, SP, sugere relação com a tendência

atual de busca pela fitoterapia e práticas "naturais" de cura. Luz 52 observa que o movimento

de contracultura na América Latina fez com que a medicina ayurveda e a chinesa,

reinterpretadas culturalmente de acordo com padrões ocidentais, além da homeopatia e

fitoterapia populares, ganhassem notoriedade nos anos 70 especialmente entre faixas

populacionais jovens de classe média urbana, as quais relacionavam-se com a “medicina

naturista”. Todas essas terapias foram vistas como formas mais “naturais” de tratar as

doenças, carecendo dos constantes efeitos adversos observados com a medicina convencional.

Essa autora também salienta a reafirmação das medicinas populares de cada país, como a

afro-indígena no Brasil 52. Outros autores 50 observam ainda que as novas práticas ligadas ao

movimento de contracultura tinham uma posição antitecnológica em relação à saúde e que o

papel de formação de opinião da classe média colaborou para a difusão dessas práticas, as

quais, atualmente, têm sido buscadas por diversos estratos sociais. Afirmam também que

concomitantemente surgem os movimentos ecológicos e ambientais, tematizando a unidade

do homem com a natureza 50. A busca por medicinas alternativas cresceu em países de

economia central e periférica basicamente a partir da década de 70, tendo seu auge nos anos

80, período caracterizado por uma crise sanitária e médica que deu base para o sucesso das

terapias alternativas 52. Tal crise é caracterizada por Luz 52 como fruto da intensa desigualdade

social, das condições de trabalho do capitalismo globalizado e da cultura que emerge a partir

dessa base econômica, gerando desdobramentos nos planos ético, político, pedagógico e

institucional. À partir do momento em que o sujeito humano sofredor deixou de ser o centro

das investigações e práticas terapêuticas, é gerada crise tanto na saúde das populações quanto

na medicina como instituição, “detectada a partir da segunda metade do século XX, que

parece ter-se agudizado nos últimos vinte anos” 52 (p. 151). A alimentação com base em

produtos naturais, o vegetarianismo e a utilização de chás medicinais ganharam impulso nos

últimos tempos. A autora 52 ressalta que as novas representações sobre valorização do corpo,

individualidade, beleza e conservação da juventude, “apoiadas na divulgação, pela mídia, de

padrões ‘naturais’ de consumo, de beleza e de salubridade, tendem a valorizar um

neonaturismo ecológico como fonte de saúde e a buscar a superação da representação homem

/ máquina na cultura contemporânea” 52 (p. 152). Essa autora chama atenção para a criação,

nos centros urbanos, de lojas de produtos naturalísticos, o reaparecimento recente de erveiros

em feiras populares e o grande número de reportagens na imprensa sobre os efeitos curativos

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de práticas terapêuticas não convencionais. A mercantilização da saúde abarcou também as

práticas naturais de cura, que são requisitadas cada dia mais num momento em que se

consome muitos produtos industrializados considerados, no escopo das orientações

individuais sobre estilo de vida, ruins para a saúde. As mudanças individuais no estilo de vida

atingiram em grande parte a classe média, estrato social com recursos financeiros suficientes

para pagar pelos novos bens de consumo. Lefèvre 43 afirma que os “centros de tratamento de

problemas causados pela agitação da vida moderna – excesso de peso, estresse, ansiedade,

tensão e perturbações nervosas estão disseminando de forma generalizada em todo o país” 43

(p. 36). Esse autor também enfatiza que diversas peças publicitárias sobre medicamentos

exploram "a resolução natural da vida", pois o que é artificial tem uma conotação pejorativa.

Os artifícios de conciliação entre o “natural” e o “artificial” são necessários para dar respostas

à reação de uma “parcela de consumidores de medicamentos (alopáticos), que vêem –

influenciados pelo pensamento ecológico – nestes um exemplo do 'artificialismo' da vida

moderna e das suas conseqüências 'nefastas' no que há de mais central no ser humano: seu

próprio organismo” 43 (p. 67). Novas informações geradas sobre a utilização de plantas

medicinais, muitas vezes com sérios conflitos de interesse, atingem a sociedade como um

todo, podendo influenciar sobremaneira a medicina popular. Nesse sentido, observa-se que em

várias comunidades o conhecimento sobre plantas medicinais encontra-se misturado com

informações muitas vezes duvidosas, e que a comercialização de ervas, em grande parte, é

uma ocupação desenvolvida como alternativa ao desemprego nas grandes cidades e cujos

praticantes nem sempre detém o conhecimento passado a cada geração 37. Queiroz 17 afirma

que em contextos urbanos e industrializados a medicina caseira tende a seguir um princípio

mais sintomático, aproximando-se, em muitos aspectos, de medicamentos industrializados

que buscam intervir mais “dramática e diretamente no organismo humano no sentido de

rapidamente aliviar os sintomas que incomodam o paciente e restabelecer sua capacidade de

trabalho” 17 (p. 275). Parente & Rosa 38 ressaltam que os principais riscos no uso de plantas

medicinais são “o uso descuidado de plantas tóxicas, a utilização de plantas que contenham

substâncias tóxicas de ação retardada, o uso de plantas mofadas por terem sido mal preparadas

e mantidas em recipientes e locais impróprios e o uso de plantas indicadas ou adquiridas

erroneamente” 38 (p. 56). Afirmam que na aquisição de plantas em feiras e mercados a

garantia de uma boa conservação, preparo do material e a certeza de que é a espécie desejada

“só podem ser garantidas com base no conhecimento do raizeiro, que pode ser um simples

vendedor ou um especialista no assunto, cuja formação representa a cultura tradicional

passada de geração a geração” 38 (p. 56-7). Nesse caso, é importante criar estratégias que

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resguardem o saber tradicional sobre plantas, que além de estar ameaçado pelas dificuldades

da transmissão oral do conhecimento, questão apontada no próximo item, pode estar

negativamente influenciado por esse volume de informações com conflitos de interesse. Tal

cuidado é necessário pois, conforme ressaltado anteriormente, plantas medicinais podem

causar danos à saúde porque contêm princípios ativos; a desconsideração desse fato, associada

à facilidade de obtenção de ervas, pode gerar intoxicações graves no organismo, o que é

ressaltado por Parente & Rosa 38. Os autores verificaram que na feira livre de Barra do Piraí,

RJ, por exemplo, várias espécies tóxicas foram listadas como medicinais; Maioli-Azevedo &

Fonseca-Kruel 10 afirmam que cerca de “25,5% das plantas indicadas por erveiros nas feiras

do Rio de Janeiro, RJ, estão registradas na Lista de Plantas Tóxicas do Programa de Plantas

Medicinais da Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro e do Center for Food Safety & Applied

Nutrition” (p. 272).

Paralelamente ao aumento do uso de terapias naturais para o tratamento de doenças e

cuidado com o corpo, verifica-se a existência de posicionamentos que guardam relação com o

modelo biomédico em saúde. Alguns autores 31 verificaram que em Bauru, SP, “o estrato mais

afastado da prática de uso de plantas medicinais é o alto, por seu maior acesso à medicina

alopática e identificação, na estrutura social, com seus representantes” 31 (p. 163). Também foi

observado que os estudantes entrevistados da área da saúde da Universidade Federal do Rio

de Janeiro, RJ, que preferem não utilizar plantas medicinais apontam a falta de credibilidade

nesse recurso terapêutico e o “preconceito que envolve essa prática, uma vez que não garante

o 'status' ou reconhecimento social para os profissionais de saúde” 41 (p. 67). As autoras

ressaltam que o ingresso na universidade faz com que os estudantes passem a se comprometer

com os ditames desse meio, onde a cultura erudita científica está dicotomizada da cultura

popular. Concluem dizendo que “essa postura ideológica que perpassa a formação dos

estudantes universitários fundamenta-se na influência do modelo biomédico, o modelo oficial

de saúde no Brasil” 41 (p. 67).

Apesar de algumas pesquisas terem mostrado de forma clara que o uso de plantas

medicinais indica o desejo por um modelo de atenção à saúde diferente do biomédico, outras,

como ressaltado anteriormente, sugerem que o uso de ervas é uma alternativa à falta de acesso

ao sistema oficial de saúde. A maior parte dos estudos, entretanto, relata a ocorrência de

ambos os fatores concomitantemente. Um contraponto é fornecido por Queiroz 17, que

ressalta, de acordo com o observado em Paulínea, SP, que “a insatisfação da clientela quanto

aos serviços prestados pela rede pública de saúde tem muito a ver com o fato de a mesma

sentir-se frustrada em sua expectativa de uma intervenção ativa do médico no sentido de

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restabelecer a sua saúde como num passe de mágica” (p. 279). O autor reforça a idéia de que

“num mercado com configuração capitalista, o consumo em saúde decorre de um complexo

conjunto de elementos de decisão, valores, representação, padrões culturais e práticas

individuais, familiares e de classe social” (p. 279). Segue dizendo também que até um certo

ponto os remédios caseiros completam os vazios deixados pela medicina oficial, como mal-

estares, indisposições leves e algumas doenças crônicas para as quais não existem meios de

cura simples disponíveis 17.

3.2 Relação entre dificuldade de acesso ao Sistema Único de Saúde e uso de plantas

medicinais

Atualmente nota-se que a maior parte da população brasileira tem a rede do Sistema

Único de Saúde como a única alternativa assistencial 53; quando há dificuldade de acesso a

esse atendimento e / ou aos medicamentos fornecidos pelas unidades de saúde, as plantas

medicinais são utilizadas para o tratamento de doenças, especialmente as mais prevalentes.

Entretanto, conforme ressaltado por Sabroza 54, a crise da saúde pública não se reduz à

dificuldade de acesso aos serviços de saúde e medicamentos; há um componente relacionado

ao modelo assistencial, em que a insatisfação com o atendimento recebido é marcante 54,

questão abordada no item anterior.

Outro exemplo de utilização da medicina popular devido à falta de atendimento no

sistema público de saúde foi o trabalho das parteiras observado por Loyola 16 em Nova

Iguaçu, RJ. Com a criação do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social

(INAMPS) os serviços oferecidos pelas parteiras passaram a limitar-se a certos pontos do

sistema que não eram atendidos de forma satisfatória, como atendimento à clientela excluída

do referido instituto e assistência domiciliar às parturientes recém-saídas das maternidades.

Além disso, conforme pontuado anteriormente, outras racionalidades médicas, ao ganharem

espaço junto à população, influenciam sobremaneira as escolhas das práticas de saúde que

serão utilizadas para tratamento de doenças. Observou-se que à medida que as mulheres de

Nova Iguaçu eram atendidas nos hospitais, familiarizavam-se com princípios da medicina e

puericultura modernas, não aceitando mais as prescrições das parteiras e passando a difundir

nesse meio as práticas aprendidas. Dessa forma, a ampliação limitada de atendimentos

ofertados pelo INAMPS alterou significativamente a transmissão do conhecimento das

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parteiras ao reduzir a demanda por essas profissionais e modificar o processo de trabalho das

mesmas.

Contudo, Oliveira 15 discorda que a medicina popular e, portanto, o uso de plantas

medicinais, uma de suas práticas terapêuticas, sobreviva devido à falta de atendimento

médico; para essa autora a medicina popular é entendida estritamente como uma forma de

resistência política ao modelo de saúde até então vigente. A presente revisão bibliográfica

verificou, entretanto, que o uso de plantas medicinais e a transmissão do conhecimento

envolvida podem guardar relação com dificuldade de acesso ao SUS, especialmente pela

população rural. Conforme apresentado no capítulo 2, o aspecto financeiro é um dos

principais fatores que levam ao uso de plantas medicinais, expondo um limite da

universalidade do SUS, em que a garantia de tratamento também é um pressuposto de sua

abrangência universal. Em Nova Iguaçu, RJ 16, a falta de atendimento à população contribuiu

para o armazenamento, nos domicílios, de fitoterápicos e medicamentos sintéticos para serem

usados em caso de necessidade; a "farmácia familiar" constituída estaria assim inserida num

"sistema de ajuda mútua e de trocas entre vizinhos" 16 (p. 138). Dessa forma, a autora

considera que a troca de experiências e de conhecimentos terapêuticos também constitui um

instrumento alternativo à falta de acesso ao sistema de saúde. Em Niterói, RJ 40, e na região do

Alto Rio Grande, MG 33, 34, os entrevistados afirmaram que as plantas medicinais curam de

forma mais rápida que os medicamentos sintéticos, aspecto novo em relação ao senso comum;

os autores do primeiro estudo justificam tal achado considerando mais o poder simbólico

atribuído às ervas do que a farmacologia propriamente dita. O fato de o tratamento com ervas

ser recomendado por familiares, amigos, religiosos ou curandeiros potencializa a eficácia

desses recursos ao lançar mão da dimensão emotiva que envolve o cuidado com o corpo no

âmbito familiar. Ressaltam que o emprego de ervas, carregado de valores subjetivos passados

de geração a geração denota um cunho afetivo contextualizado com o território social em que

o sujeito se encontra, ultrapassando os efeitos farmacológicos.

Atualmente, apesar do sistema de saúde oficial ser gratuito e estender-se à zona rural,

ele não consegue atender de forma adequada à demanda desta população, que também não

tem poder aquisitivo suficiente para pagar diretamente um profissional de saúde 39. “Além

disso, medicamentos industrializados são caros e as pessoas se rendem à facilidade de se obter

plantas medicinais, que muitas vezes são cultivadas nos quintais de suas casas” 39 (p. 789-90).

Queiroz 17, fazendo uma análise mais ampla, afirma que “fatores gerais, tais como as

condições de produção da oferta, o padrão de distribuição de renda, as políticas

governamentais e a pertinência a classes e estratos sociais, imprimem uma influência

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fundamental na organização do consumo” 17 (p. 279). Alguns autores 31, 35, 40, 28 observaram em

localidades diferentes que o uso de plantas medicinais se dava prioritariamente nos estratos

sociais baixos, refletindo a busca por tratamentos de menor custo. A possibilidade de cultivo

em casa, a troca de mudas com vizinhos e a facilidade de preparo das formas farmacêuticas a

serem usadas – em sua maioria chás – reduzem o custo do tratamento. Observa-se, então, que

a formação do conhecimento sobre plantas medicinais nestes estratos sociais está favorável,

uma vez que o aprendizado sobre uso das mesmas é de fundamental importância para a

manutenção e restauração da saúde. Em Marília, SP, entretanto, os autores 32 verificaram que

apenas 19,3% da amostra estudada faz uso de plantas medicinais, sugerindo que isso se deve

ao maior acesso ao SUS. Todavia, foi observada nessa pesquisa e em outra realizada em

Mogi-Mirim, SP 39, expressiva utilização por estratos sociais mais altos – reforçando as

observações relatadas no item anterior – de que há outras questões envolvidas na escolha pela

fitoterapia, apesar da questão financeira ter um grande peso. Situação semelhante foi

observada em Niterói, RJ 40, em Paulínea, SP 17, em Mogi-Mirim, SP 39, e na Reserva Rio das

Pedras em Mangaratiba, RJ 30, onde os entrevistados, apesar de fazerem uso corrente do

sistema de saúde público, também utilizam plantas medicinais no seu cotidiano. Sendo assim,

observa-se que a dificuldade de acesso associada a poucos recursos financeiros para compra

de medicamentos sintéticos é questão decisiva para o uso de plantas medicinais; no entanto, a

facilidade de acesso ao setor público ou privado de saúde e a presença de recursos financeiros

suficientes para compra de medicamentos sintéticos não necessariamente inibem o uso de

plantas medicinais.

Uma vez que a dificuldade de acesso ao SUS e a conseqüente necessidade de utilização

de plantas medicinais fomentam a transmissão do conhecimento sobre ervas, faz-se necessário

tecer algumas observações sobre o processo de difusão desse saber nas comunidades e sobre

os principais agentes de cura. Oliveira 15 ressalta que antes da crise do modelo agrário-

exportador brasileiro, as comunidades rurais escolhiam determinados membros para serem

“seus médicos, seus padres, seus conselheiros. Eram pessoas tidas como as mais sábias, as

mais generosas, as mais competentes” 15 (p. 20). Os médicos populares, as parteiras, os

ervateiros e os raizeiros trabalhavam essencialmente com a medicina popular que tinha pouco

ou nada a ver com religião. As plantas eram classificadas e selecionadas para as doenças mais

comuns da comunidade, ou seja, era uma medicina criada como resposta às suas necessidades

concretas de doença e sofrimento. Apenas depois de classificadas e selecionadas os moradores

podiam conhecer as plantas. Da mesma forma, outros autores 33, 34, 36 verificaram que nas

comunidades estudadas há especialistas em plantas medicinais. Entretanto, nos estudos não é

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unânime que sejam pessoas com atividades predominantemente relacionadas ao cuidado da

saúde da população. Alguns são também lenheiros, agricultores e artesãos. Outra diferença

observada é que o conhecimento sobre plantas e, conseqüentemente, a caracterização de

sujeitos como agentes de cura, se dá a cada geração, não sendo, entretanto, todos os

indivíduos interessados pela aprendizagem, fazendo com que a escolha pela comunidade de

seus médicos populares seja relativamente restrita. Foi observado que os principais agentes do

conhecimento nas comunidades retratadas nos artigos possuíam mais de 25 anos e a idade

máxima ultrapassava 60 anos. Alguns autores 36 afirmam que a idade dos informantes

favorece o conhecimento sobre plantas medicinais, uma vez que a experiência adquirida é

fundamental nesse campo. Helman 12 observa que no mundo ocidental geralmente há seis

formas de as pessoas tornarem-se curandeiros populares: por meio de herança; posição dentro

da família; sinais ou presságios no nascimento; revelação; aprendizagem com outro

curandeiro e aquisição de uma habilidade específica sem o auxílio de outros. Assim como

alguns autores 34, 4, 36, Loyola 16 observou que “os detentores das tradições do mundo rural e,

entre estas, dos conhecimentos terapêuticos, são, na grande maioria, pessoas que nasceram e

viveram no campo” (p. 171). Tal fato foi verificado por Queiroz 17, pois em Paulínea,

município com acentuadas características urbanas no interior de São Paulo, não havia

raizeiros profissionais, situação oposta à observada em localidades rurais. Fonseca-Kruel &

Peixoto 4, de forma semelhante aos autores acima, salientaram o vasto conhecimento que os

pescadores da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo, RJ, tinham sobre plantas

medicinais, sendo um dos fatores determinantes a origem rural ou a residência há mais de 30

anos no local. É interessante notar que entre os estudos que se referem à toxicidade de plantas,

exceto aquele realizado em Datas, MG 35, município com características rurais, todos os que

pesquisaram moradores da zona rural 33, 34, 36 salientam o cuidado dos informantes em relação

ao potencial tóxico das plantas, enquanto aqueles realizados em zona urbana 39, 40 não

observaram o mesmo. Entretanto, é prudente ressaltar que embora a origem rural / urbana seja

um fator relevante para a formação do conhecimento sobre plantas medicinais, ele não é o

único, sendo influenciado pela classe social e participação em movimentos sociais. Observou-

se nos estudos analisados que em relação ao uso de plantas medicinais a centralidade do

aprendizado com outras pessoas e a experiência de vida são questões que se sobrepõem às

outras cinco sugeridas por Helman 12. Loyola 16 salienta que a “origem rural ou urbana e o

período de experiência de vida urbana associados à idade e ao grau de escolaridade parecem

estar relacionados à aceitação e ao uso maior ou menor da medicina oficial ou da medicina

popular” (p. 170). Essa mesma autora afirma ainda que os mais velhos são mais apegados às

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práticas médicas populares que os mais jovens, situação também observada na presente

revisão bibliográfica. Foi observado que em Mogi-Mirim, SP 39, os jovens desconfiam das

propriedades medicinais das plantas e valorizam mais a medicina oficial, encarando a

medicina popular como uma prática ultrapassada. Os autores verificaram também que a

diferença de conhecimento e uso de plantas medicinais entre os grupos etários foi

estatisticamente significativa. Além disso, conforme relatado no capítulo 2, em várias

comunidades estudadas a transmissão do conhecimento dos pais para os (as) filhos (as) está

dificultada. Tais situações fragilizam enormemente a transmissão do conhecimento pois

favorecem a perda de importantes informações acumuladas ao longo de anos e representa o

afastamento da população jovem do uso de plantas medicinais, o que já é explicitamente

notado em algumas localidades, como na região do Alto Rio Grande, MG, onde Rodrigues &

Carvalho 33 observaram que o desinteresse dos mais jovens pela aprendizagem sobre plantas

medicinais é um dos fatores para os raizeiros não terem passado aos seus filhos o

conhecimento sobre o tema. O fato de os jovens buscarem mais o sistema oficial de saúde que

os mais velhos reflete tanto o momento histórico por eles vivido, em que abrem-se novas

possibilidades terapêuticas ofertadas pelo Estado, a disputa por hegemonia entre diferentes

racionalidades médicas e não médicas e a fragilidade da transmissão oral do conhecimento.

Além disso, questões ambientais também estão ligadas à dificuldade de preservação e

transmissão do conhecimento sobre plantas medicinais. Rodrigues 34 ressalta o extrativismo

inadequado de várias espécies, degradação ambiental e migração do campo para a cidade,

enquanto outros autores 30 salientam a devastação da flora nativa causada pelo turismo. “A

forte pressão antrópica que os ecossistemas vêm sofrendo tem levado à perda de extensas

áreas verdes, da cultura e das tradições das comunidades que habitam essas áreas” 4 (p. 177-

8). Da mesma forma, a perda da biodiversidade em Mogi-Mirim, SP 39, contribuiu fortemente

para a menor utilização e conhecimento das plantas medicinais pelos moradores desse

município em relação a outras localidades com rica flora nativa. De modo geral, os autores

relatam que "à medida que a relação com a terra se transforma pela modernização do campo e

o contato com a sociedade nacional se intensifica, seja pelos meios de comunicação ou por

agentes sociais, a rede de transmissão do conhecimento sobre plantas pode sofrer alterações" 39 (p. 790).

Em Nova Iguaçu, RJ 16, foi observado que os entrevistados buscam tratar-se primeiro

com recursos terapêuticos familiares e só após o esgotamento desses recorrem aos diversos

especialistas de cura, o que também foi observado em Datas, MG 35. Tal questão merece

novos estudos para ser melhor investigada, entretanto, ela pode estar relacionada à falta de

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credibilidade da população em relação ao atendimento público de saúde e à maior facilidade

de uso de fitoterápicos. Helman, baseando-se em Kleinman 12, sugere três setores sobrepostos

e interligados da assistência à saúde numa sociedade complexa. O primeiro seria o setor

informal, em que a família é a principal arena da assistência à saúde. Sendo assim, tanto o

paciente quanto o agente de cura compartilham pressupostos semelhantes sobre saúde e

doença, sendo relativamente rara a ocorrência de equívocos entre as duas pessoas. Nesse

âmbito a maior parte das situações de falta de saúde é identificada e tratada. “As mulheres são

as principais provedoras de serviços de saúde, normalmente as mães ou as avós, que

diagnosticam a maior parte das enfermidades comuns e as tratam com os materiais

disponíveis” 12 (p. 72). Em alguns estudos 17, 4, 25 analisados na presente revisão bibliográfica

as mulheres destacam-se como principais agentes de cura e / ou na busca por soluções dentro

e fora do âmbito da medicina oficial. Rodrigues & Carvalho 33 e Rodrigues 34 também

observaram acentuada diferença entre gêneros na formação dos agentes de cura na região do

Alto Rio Grande, MG, entretanto, o sexo masculino foi predominante entre os profissionais

populares. Os outros estudos analisados não enfatizaram tal questão, mostrando ser necessária

a execução e identificação de pesquisas que tematizem diferenças entre gêneros na utilização

de plantas medicinais e na transmissão do conhecimento para afirmações mais consistentes. O

segundo setor sugerido é o setor popular, particularmente extenso em sociedades não-

industrializadas, onde certos indivíduos especializam-se em formas de cura sagradas ou

seculares ou em uma mistura de ambas. “Esses curandeiros não pertencem ao sistema médico

oficial e ocupam uma posição intermediária entre os setores informal e profissional” 12 (p. 75).

O autor ressalta que os curandeiros populares formam um grupo heterogêneo, com grande

variação individual em termos de estilo e de pontos de vista. Além disso, é comum a atuação

tanto de curandeiros sagrados quanto dos seculares, sendo que os primeiros trabalham com

práticas relacionadas à magia ou de cunho ritualístico e os segundos utilizam ervas;

entretanto, com freqüência há sobreposição de ambos os curandeiros 12. O terceiro seria o

setor profissional, composto por profissões da área da saúde que são organizadas e

sancionadas legalmente, como é o caso da medicina ocidental, também conhecida por alopatia

ou biomedicina. Esse autor lembra que o relacionamento entre os setores popular e

profissional de atendimento em saúde “é marcada por sentimentos mútuos de desconfiança e

de suspeita. A maior parte dos médicos tende a ver os curandeiros tradicionais como

trapaceiros, charlatões, feiticeiros ou medicastros que representam um perigo à saúde dos seus

pacientes” 12 (p. 79). Todavia, a escolha de um desses setores é influenciada pelo contexto do

usuário, pela disponibilidade de cada setor e de recursos para pagar pelo atendimento e pela

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concepção do usuário sobre o processo saúde-doença 12. Helman 12 afirma que a “maioria dos

curandeiros populares compartilha os mesmos valores culturais básicos e a mesma visão de

mundo das comunidades onde vivem, inclusive as crenças sobre a origem, o significado e o

tratamento da falta de saúde” (p. 76). Observa ainda que uma das vantagens da cura pela

tradição popular em relação à medicina científica moderna é o freqüente envolvimento da

família no diagnóstico e no tratamento. Somado a isso, verifica-se que existe, entre o paciente

e o curandeiro, “uma visão compartilhada de mundo, proximidade, cordialidade,

informalidade e uso de linguagem do dia-a-dia nas consultas” 12 (p. 77); ao passo que os

médicos tendem a dizer a seus pacientes o que aconteceu, os curandeiros explicam o porquê 12. Esse autor salienta que alguns curandeiros populares acabam por reforçar os valores

culturais da comunidade em que vivem, e por isso mostram-se em

“vantagem em relação aos médicos ocidentais que, muitas vezes, estão separados de seus pacientes no que diz respeito à classe social, à posição econômica, ao gênero, à especialização da educação e, algumas vezes, a antecedentes culturais [...]. Eles também oferecem modos culturalmente familiares de explicar as causas e o momento da falta de saúde e sua relação aos mundos social e sobrenatural” 12 (p. 77).

Guizardi & Pinheiro 25, estudando a experiência de farmácias fitoterápicas comunitárias

em Vila Velha e Vitória, ES, mostram que apesar da grande proporção de pessoas com ensino

fundamental completo ou incompleto, as atividades desenvolvidas tinham como premissa

sistematizar e coletivizar o saber popular sobre plantas medicinais. De forma semelhante,

vários autores 33, 4, 40, 26 observaram poucos anos de estudo em diferentes localidades. No

entanto, são relatados expressivos usos e conhecimentos sobre plantas medicinais, sugerindo

que além da escolaridade não ser um fator determinante desses aspectos, são questões

aprendidas e compartilhadas no meio do povo; um saber oriundo de experiências populares

que se contrapõe, dessa forma, à lógica biomédica que centraliza o conhecimento e poder de

decisão no médico. Considerando o acima exposto, em que as pessoas mais idosas, a família,

a vizinhança e a origem rural desempenham papel fundamental para a construção do

conhecimento sobre plantas medicinais, o qual se torna complexo ao especificar-se em

diferentes relações e grupos sociais, sugere-se que o referido conhecimento faça parte da

cultura de diversas comunidades, perpassando a vida cotidiana das mesmas e, conforme

citado por Moura 26, inclua até mesmo aprendizados inconscientes.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A apresentação dos resultados da revisão bibliográfica por meio dos tópicos

selecionados possibilitou a análise da produção acadêmica sobre o conhecimento popular de

plantas medicinais na região sudeste brasileira no sentido de identificar suas características e

relações com o conhecimento científico no campo da saúde. É importante ressaltar que apesar

da diversidade de descritores usados na busca bibliográfica, a maior parte dos estudos

encontrados relaciona-se à pesquisas de eficácia e segurança, sendo poucos aqueles que

refletem sobre aspectos da utilização de plantas medicinais. Essa observação decorre do fato

de o entendimento produzido nas instituições científicas privilegiar o conhecimento extensivo

em relação ao completo, uma vez que a ciência moderna está impregnada de valores,

especialmente o valor de controle.

Em relação ao Conhecimento sobre Uso de Plantas Medicinais, a literatura examinada

mostrou diferentes percepções sobre a utilização de ervas. Uma mostra-se mais próxima do

conhecimento tradicional, uma vez que reconhece e identifica propriedades tóxicas,

diferenças e semelhanças entre espécies vegetais e é cautelosa quanto à forma de preparo e

dose dos remédios caseiros. Outra forma de utilização de ervas verificada nos estudos

relaciona-se à crença de que “o que é natural não faz mal”, denotando pouca observação e

cuidado no uso desse recurso terapêutico. A literatura ressaltou também que as plantas muitas

vezes são utilizadas com finalidade ritualística / religiosa, ou seja, recorre-se a funções que

ultrapassam propriedades farmacológicas. Nesse sentido, alguns estudos apontaram que as

precauções de uso de plantas medicinais se devem tanto a propriedades tóxicas quanto a

conotações mágico / religiosas.

Configurando-se como uma forma de conhecimento, o uso popular de plantas

medicinais passa a se relacionar com o conhecimento científico apropriando-se de elementos

oriundos desse último e gerando novas informações que são utilizadas no meio acadêmico.

Exemplos dessas situações são a adoção de nomes de medicamentos sintéticos (Vick®,

Novalgina®, Anador®, Terramicina®, Antibiótico, Insulina®) para nomeação de plantas e o

fornecimento de informações terapêuticas advindas do uso cotidiano de plantas por

comunidades tradicionais para desenvolvimento científico de novos produtos.

Alguns estudos observaram o uso popular de plantas medicinais concomitante à

utilização de serviços oficiais de saúde, demarcando uma opção por esse recurso terapêutico.

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Não obstante, vários autores verificaram que os entrevistados consideram os medicamentos

sintéticos mais eficazes e com ação terapêutica mais rápida para algumas doenças apesar de

agredirem mais o organismo.

Grande parte dos autores buscaram demonstrar a validade do conhecimento popular

referenciando-o ao conhecimento científico, questão que merece novos estudos para ser

melhor avaliada, pois a princípio esse posicionamento sugere uma hierarquia entre

conhecimentos e não uma troca entre saberes. Vale ressaltar que a origem do conhecimento e

o tempo em que está disponível em determinada comunidade são fundamentais para o uso

eficaz e seguro de plantas medicinais.

Os fatores apontados para redução do uso de plantas medicinais ao longo do tempo

foram: institucionalização da medicina; perda da biodiversidade original; maior facilidade de

acesso à medicina moderna e deslocamento de pessoas para a região urbana. Os fatores que

contribuíram para a retomada do uso de plantas foram: falhas do modelo médico biologicista;

efeitos adversos e altos preços de medicamentos sintéticos; tratamento de doenças pouco

entendidas pela medicina moderna; eficácia de plantas comprovada cientificamente;

dificuldade de acesso aos serviços públicos de saúde; tradições religiosas; e divulgação de

plantas medicinais pelos meios de comunicação.

A Transmissão do Conhecimento sobre plantas medicinais guarda relação com

dificuldades de acesso ao Sistema Único de Saúde e insatisfação com o atendimento recebido.

Entretanto, a literatura examinada apontou dificuldades na transmissão do conhecimento,

particularmente a intergeracional, o que é atribuído em grande parte à desconfiança dos mais

jovens em relação à eficácia terapêutica de plantas medicinais. A tradição está especialmente

mantida entre pessoas mais idosas e aquelas que têm mais contato com o meio rural. Os

Agentes de Cura geralmente adquiriram o conhecimento com os pais e avós, não excluindo a

transmissão do conhecimento entre amigos, vizinhos e familiares; a utilização de plantas

ocorre com bastante freqüência entre a população de baixa renda, apesar de o uso estar

crescendo entre a população de alta renda. As práticas religiosas foram apontadas como

importantes difusores do uso de ervas – especialmente com finalidade ritualística –, e as redes

sociais como meios profícuos de troca e difusão de práticas populares de saúde.

Por fim, é importante salientar também que a aprovação da Política Nacional de Plantas

Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF), decreto 5813 de 22 de junho de 2006, representou um

marco histórico das políticas públicas brasileiras uma vez que a biodiversidade do país é

colocada como fonte de conhecimento e origem do processo de desenvolvimento tecnológico

dos medicamentos de origem vegetal 3. De acordo com Villas Bôas 3, a PNPMF também

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incentiva a revisão de conceitos e normas adotados ANVISA. Apesar disso, o autor observa

que

“a primeira grande lacuna da legislação em pauta é não deixar claro que os fitofármacos fazem parte da mesma base tecnológica que os fitoterápicos, sendo ambos reconhecidos como oportunidades decorrentes das pressões de transformação na indústria globalizada. Em outras palavras, a legislação não esclarece todo o potencial tecnológico da biodiversidade para a saúde” (p. 312).

A forma como a legislação no âmbito do SUS e da ANVISA aborda as práticas

autônomas derivadas dos saberes comuns sobre plantas medicinais seria objeto de estudo de

futuros trabalhos acadêmicos, entretanto, dada a importância do mesmo, cabe ressaltar que

têm sido freqüentes as discussões de especialistas em torno dessa questão. Os representantes

da Fiocruz no Grupo de Trabalho Interministerial para elaboração do Programa Nacional de

Plantas Medicinais e Fitoterápicos definiram que um debate essencial a ser feito no referido

grupo é sobre a redefinição conceitual da fitoterapia de forma a caracterizar os diferentes

níveis de complexidade das práticas e produtos envolvidos com esta área do conhecimento 3.

Com isso, o conhecimento inerente a cada nível de uso, produção e inovação de plantas

medicinais estaria assegurado em suas particularidades, permitindo sua preservação, estímulo,

geração e organização 3.

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