ler o espaço e compreender o mundo

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Revista Tamoios— Julho / Dezembro 2005, Ano II, nº02 23 Ler o Espaço para Compreender o Mundo: algumas notas sobre a função alfabetizadora da Geografia Carmen Lúcia Vidal Perez* Resumo Pensar o ensino de Geografia nas séries iniciais a partir de sua função alfabetizadora é procurar resgatar o seu próprio objeto – o espaço –, inserindo-o em uma perspectiva teórica que articula a leitura da palavra à leitura do mundo. Tal abordagem nos possibilita pensar alfabetização e Geografia, através de uma articulação teórica que, sem cair na tentação do álibi do conteúdo ou na armadilha do método, aponte para uma construção epistemológica. Palavras-chave: espaço, leitura, Geografia, pedagogia, mundo.

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  • Revista Tamoios Julho / Dezembro 2005, Ano II, n02

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    Ler o Espao para Compreender o Mundo:algumas notas sobre a funo alfabetizadora da Geografia

    Carmen Lcia Vidal Perez*

    Resumo

    Pensar o ensino de Geografia nas sries iniciais a partir de sua funo alfabetizadora procurar resgatar o seu prprio objeto o espao , inserindo-o em uma perspectiva terica que articula a leitura da palavra leitura do mundo. Tal abordagem nos possibilita pensar alfabetizao e Geografia, atravs de uma articulao terica que, sem cair na tentao do libi do contedo ou na armadilha do mtodo, aponte para uma construo epistemolgica.

    Palavras-chave: espao, leitura, Geografia, pedagogia, mundo.

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    Introduo

    O presente texto um ensaio de pensamento, que, ao abordar a funo alfabetizadora do ensino de Geogra-fia nas sries iniciais, pretende, a partir do dilogo entre as obras de Paulo Freire e de Milton Santos, pensar a construo de uma epistemologia existencial, to cara a estes dois grandes pensadores, quanto necessria esco-la brasileira. Articular alfabetizao e Geografia refletir sobre o ser humano, a natureza, a cultura, a sociedade, praticar uma pedagogia da possibilidade, fundada em uma epistemologia situada entre a teoria e a realidade.

    Considerando que o tema central da Geografia o estudo do espao a partir da anlise da relao ao-objeto, ou seja, que o espao geogrfico define-se pela presena articulada da cincia e da tcnica no territrio, podemos afirmar que o espao contm tudo desde a ao humana at os usos diferenciados do espao e do tempo que tal ao provoca. Espao e tempo so categorias fundamentais, tanto para o raciocnio filosfico, quan-to para a anlise da ao, da a necessidade de empirizar o tempo.

    Empirizar o tempo , no dizer de Santos (1998a), utilizar concomitantemente as categorias de tcnica e pol-tica, na anlise do espao. Por meio do conceito de tempo emprico possvel equiparar tempo e espao. A defini-o do espao geogrfico como resultante da conjugao de sistemas de objetos e sistemas de aes (Santos, 1997a) nos coloca a necessidade de pensar o tempo (e o prprio espao) empiricamente. O espao geogrfico e a histria produzida so resultantes do fenmeno tcnico; o espao geogrfico tem como contedo as tcnicas e as diferentes formas de ao que produzem a histria, pois a histria, do ponto de vista geogrfico, resultado da utilizao das tcnicas. O viver-fazer humano uma tcnica de vida, que se processa como temporalidades e se realiza como histria.

    O homem est no mundo e com o mundo produzindo-o e transformando-o, preenchendo com a cultura os espaos geogrficos e os tempos histricos. O ser humano se identifica com sua prpria ao: "objetiva o tempo, temporaliza-se, faz-se homem-histria (Freire, 1979, p. 31). As relaes do homem com o seu espao so rela-es temporais, transcendentes e criativas. Cotidianamente, o ser humano recria pelos aconteceres o seu espao de viver: "todos os dias o povo se renova; o povo renova cotidianamente o seu estoque de impresses, de conhe-cimento, de luta" (Santos, 1998b, p 38).

    A Geografia um instrumento importante para a compreenso do mundo. Pensar o ensino de Geografia a partir de sua funo alfabetizadora articular a leitura do mundo leitura da palavra, na perspectiva de uma polti-ca cultural cultura aqui entendida como a relao do ser humano com o seu entorno que instrumentalize as classes populares a saberem pensar o espao, para nele se organizarem na luta contra a opresso e a injustia. O conceito de alfabetizao se amplia e transcende o seu contedo etimolgico de lidar com letras e palavras me-canicamente passando a traduzir as relaes da criana com o mundo, mediada pela prtica transformadora deste mundo.

    Tanto Freire (1993) quanto Santos (1998b) esses homens sbios porque "lentos" nos apontam a possibili-dade e a necessidade de pensar, desejar e lutar pela construo de um mundo em que os homens sejam mais feli-zes; onde haja um outro tipo de "globalizao" no a globalizao da sem-vergonhice, como diz Freire mas uma globalizao mais humana, mais solidria; um mundo em que os homens possam produzir espaos felizes.

    Sobre o ato de ler o mundo e a palavra

    Aprender a ler, a escrever , antes de mais nada, aprender a ler o mundo; compreender seu contexto, locali-zar-se no espao social mais amplo, a partir da relao linguagem-realidade. O processo de alfabetizao se realiza no movimento dinmico entre palavra e mundo: a palavra dita flui para o mundo carregada de significao existenci-al: "palavra-mundo", a mais perfeita traduo do acontecer humano.

    Do ponto de vista da Geografia, podemos dizer que ler o mundo ler o espao, construo social e histrica da ao humana. Como instncia da sociedade, o espao o objeto da Geografia; disciplina que o analisa, o inter-preta e o explica, como resultante da economia, da poltica e da cultura. Assim, ler o mundo estudar a sociedade; estudar o processo de humanizao do ser humano a partir do territrio usado1. o uso do territrio que deter-mina o tipo de vida que levamos. Do controle do fogo conquista da lua, a humanidade desenvolveu capacidades tcnicas que construram o seu modus vivendi. O espao, movimento solidrio e contraditrio de sistemas de obje-tos e sistemas de aes2 no qual a histria se processa, um objeto geogrfico, ou seja, a Geografia uma disci-plina histrica que estuda o espao emprico, resultante das obras dos homens. Espao o territrio usado, natu-

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    reza socialmente definida pelo movimento do viver-fazer humano: o acontecer humano se reflete no territrio do espao geogrfico, o que nos possibilita definir metaforicamente a Geografia como uma escrita existencial do ser humano no seu territrio.

    Santos (1997a) lembra que o fenmeno tcnico um dado central do processo histrico; a histria uma sucesso de tcnicas e sistemas de tcnicas que so, ao mesmo tempo, contedo e continente da ao humana. Como contedo e continente da ao, a tcnica possibilitou ao homem escrever a histria sem escrever palavras: primeiro o homem escreveu o mundo pela tcnica e pela ao; depois falou o mundo transformando-o pela lingua-gem e, por ltimo, o homem registrou o mundo nomeando-o, podemos encontrar um paralelo desta concepo no pensamento de Freire & Macedo, pois:

    O ato de aprender a ler e escrever deve comear a partir de uma compreenso muito abrangente do ato de ler o mundo, coisa que os seres humanos fazem antes de ler a palavra. At mesmo historicamente, os seres humanos primeiro mudaram o mundo, depois revelaram o mundo e a seguir escreveram as palavras. Esses so momentos da histria. Os seres humanos no comearam por nomear A!F!N! Comearam por libertar a mo e apossar-se do mundo. (Freire & Macedo, 1990, p. 32)

    Alfabetizar-se no contedo do mundo , do ponto de vista da Geografia, identificar, na natureza tecnicamente produzida, as contradies em que estamos inseridos, procurando desvendar as aes necessrias construo de um novo mundo, de uma nova natureza, na qual o ato humano tenha a identidade de sua humanidade.

    Ler o mundo ler o espao

    Ler o mundo apreender a linguagem do mundo, traduzindo-o e representando-o: a percepo do espao e sua representao. Esta capacidade fruto de um processo de mltiplas operaes mentais que se desenvolve a partir da compreenso simblica do mundo e das relaes espaciais topolgicas locais. No que se refere ao ensino de Geografia nas sries iniciais e, ao que mais especificamente estamos tratando, a sua funo alfabetizadora, importante ressaltar o papel que a aquisio da noo de espao e sua representao desempenham no desenvol-vimento cognitivo da criana. A noo de espao uma estrutura mental que se constri ao longo do desenvolvi-mento desde o nascimento da criana at a formalizao de seu pensamento por meio de um processo comple-xo e progressivo, que implica a mediao constante do adulto que a cerca.

    Do ponto de vista pedaggico, a noo de espao (bem como a noo de tempo) no pode ser consolidada atravs de procedimentos didticos que partem de noes simples e concretas para as mais abstratas, como se sua aquisio fosse linear e monoltica. O fundamental o fato de sabermos que tanto para a construo da noo de espao, quanto para a aquisio da linguagem escrita, no h apenas um caminho. Tais aquisies permeiam to-das as reas do conhecimento, pois no se referem a um contedo em si, mas a algo inerente ao desenvolvimento humano.

    O ensino de Geografia nas sries iniciais deve ter como fundamento a alfabetizao da criana na leitura do mundo atravs da leitura do espao. Fazer Geografia dialogar com o mundo, possibilitando criana ampliar os significados construdos (atravs do uso de novas e diferentes linguagens), transformando sua observao em dis-curso ( dizendo mundo que significamos o mundo), de modo que possa compreender o conjunto de movimentos que d sentido ao mundo. O sentido do mundo est no prprio mundo, portanto, ler o espao apreender o seu sentido. Tal percepo nos leva a indagar sobre sua significao: o que o mundo hoje? Como nos colocamos ne-le? Indagar o mundo para construir o sentido do mundo!

    O mundo hoje uma unidade planetria. O mundo vivido o mundo unificado da cincia, da tcnica e da in-formao: meio tcnico-cientfico-informacional,3 que realiza-se de forma extensa e contnua em muitos lugares, ao passo que, em outros, manifesta-se apenas como manchas ou pontos, dividindo o mundo em espaos hegemni-cos perfeitamente adaptados s exigncias das aes econmicas, polticas, culturais caractersticas da globaliza-o e espaos no-hegemnicos reas no dotadas dessas virtualidades (Santos, 1997a) Atualmente, a cin-cia, a tecnologia e a informao constituem a base tcnica da vida social, modificando radicalmente a relao do homem com o mundo e com a natureza. Se em um dado momento histrico a natureza era unificada por foras tel-ricas (que davam visibilidade ao mundo), hoje o princpio unificador do mundo a sociedade mundial, o que torna menos visvel para todos aqueles que tm menos informao. No mundo menos visvel, as relaes de poder so extremamente opacas, ocultadas pela lgica da dissimulao e pela difuso de um imaginrio coletivo, no qual o povo se reconhece e se identifica.

    Como resistir a esta produo de subjetividades hegemnicas, que engendram formas de ser-pensar-sentir-

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    fazer? Como reverter este tempo fundante, veloz e fugaz, que cotidianamente transforma homens em coisas? Para Santos, a resposta a estas questes encontra-se na anlise do cotidiano. No cotidiano, espao e tempo aparecem recortados sob a forma de um espao banal que leva consigo todas as dimenses do acontecer e de um tempo plural, tempo cotidianamente compartilhado, um tempo dentro do tempo (1997a, p. 38). A concepo do cotidiano como espao banal e tempo plural nos remete ao processo de conscientizao, do qual nos fala Freire (1980, p. 26 ) conscincia e ao crtica sobre o mundo que implica ultrapassar a esfera espontnea de apreenso da realidade. A leitura do mundo comea pela leitura do lugar espao existencial do acontecer humano.

    O lugar o territrio horizontalmente definido pela ao humana. O modo de viver do homem expressa-se na dimenso horizontal do territrio. Santos (1997b, p.22), atravs das categorias de horizontalidade e verticalidade, analisa o lugar e suas diferentes configuraes. Segundo ele, as horizontalidades so o domnio de um cotidiano (com)partilhado, com a tendncia de criar as prprias normas, fundadas no exerccio de uma existncia solidria. Graas a esta solidariedade, consciente ou no, os homens tem a possibilidade de resistir as verticalidades impos-tas pela globalizao.4 Quanto mais a globalizao se aprofunda, impondo regulaes verticais, mais aumenta a tenso entre a globalidade e a localidade, quanto mais o mundo se afirma no lugar, tanto mais o lugar torna-se ni-co.

    O homem produz (produzindo-se cotidianamente), seu espao, que , ao mesmo tempo, expresso material de suas necessidade e domnio da liberdade. O espao, em sua dimenso cotidiana, inclui uma multiplicidade infini-ta de perspectivas. No cotidiano, o espao se apresenta como polissmico e complexo, no podendo ser reduzido a uma viso simplificadora da materialidade fsica de uma realidade ltima. O espao resultante do movimento e deuma construo social e histrica da ao humana.

    A globalizao um processo que reflete, ao mesmo tempo que produz, um momento marcado por dissolu-es e de acelerao de uma crise, que , ao mesmo tempo, existencial e civilizatria Vivemos em um mundo para-doxal, espao de saberes mltiplos, de verdades relativas, de indeterminaes, nebulosidades, ambivalncias e contradies; em um espao to complexo como uma gravura de um mundo moderno, ou modernizado pela tcni-ca, que coloca, para o homem contemporneo, o desafio de (sobre)viver em um universo paradoxal, em uma estru-tura social complexa, sem fragmentar-se, sem perder-se de si mesmo.

    O mundo dominado pela tcnica tambm o mundo da ideologia. Ideologia que, alm de produzir idias, pro-duz coisas, objetos e subjetividades. Com a cientificizao da produo e da tcnica, tudo o que se produz prece-dido de uma idia cientfica. O mundo atual pode ser definido como um grande mercado de idias, que antecipa a produo de tudo: objetos, pessoas e lugares. O consumo o grande fundamentalismo da atualidade, porque o parmetro de uma forma de vida que transforma o ser humano em coisa, em objeto.

    No incio, o ser humano criava e comandava os objetos, dominando a natureza e humanizando-se pelo traba-lho. Atualmente, so os objetos que comandam a vida do homem: "na minha infncia e juventude eram poucos ob-jetos, e eu os comandava. Hoje, so eles que me comandam. E a gente acaba sendo perseguido pelos objetos, vo-c tem fax em casa, e-mail, um inferno" (Santos, 1998c).

    Santos (1998b) nos fala da contradio entre a produo do consumidor e do cidado. A idia de cidado est ligada idia de indivduo forte, ao passo que a idia de consumidor nos remete idia de indivduo fraco, d-bil, at mesmo debilide. Esta contradio s vezes nos parece difcil de ser superada, nos fazendo acreditar que vivemos em um mundo onde uma reverso se torna impossvel Como nos lembra Linhares (1996, p. 6), este parece ser o esprito da poca:

    pouca discusso, solues pragmticas, sonhos manipulados e modelizados pela indstria cultural, projetos polti-cos a servio de sectarismos, excludncias ameaadoras que comeam pela negao do emprego e que vo at a desapropriao do saber.

    Em um tempo marcado pela desesperana, pela acomodao e pelo medo, a humanidade enfrenta, cotidia-namente, a necessidade de aprender a viver em um universo abandonado pelos deuses. Neste contexto, morreu a verdade nica e absoluta, deixando o homem rfo de suas certezas. Essa orfandade entregou ao homem a cons-truo do prprio destino.

    Freire & Macedo (1990) nos chamam a ateno para o fato de que nada sobre a sociedade, a lngua, a cultu-ra ou a alma humana simples; nada se desenrola "naturalmente", nem na natureza, nem na histria. O ser huma-no um ser-em-situao, sujeito circunstanciado por e submerso nas condies espaos-temporais do mundo. Co-mo ser situado, o ser humano desafiado pelas circunstncias a refletir sobre sua ao ao refletir sobre seu contexto ele constri e reconstri seu espao existencial, produzindo cultura e fazendo histria.

    Ao produzir a cultura e a histria, o homem produz vida, a sua vida como indivduo e como espcie. Seu fluxo vital o coloca em um estado permanente de tornar-se: criando, aumentando e intensificando suas potencialida-

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    des e energias. O homem vida, e a vida essencialmente mais vida. Sendo o acontecer humano um permanente processo de tornar-se, o seu cotidiano pode ser interpretado como o espao-tempo do movimento de fazer-se e re-fazer-se, intensamente vivido no processo de fazer o mundo e produzir a histria. O homem um ser curioso, dado aventura e paixo de conhecer, de ser-mais (Freire,1979, p.13), esta vocao ontolgica do ser humano algo que se constri na histria. Como um ser inserido no mundo (e no simplesmente adaptado), o ser humano realiza-se pelo seu sonho o seu sonho que produz a histria.5

    A histria como possibilidade (e no determinismo) do fazer humano encontra no sonho a matria-prima de realizao: o sonho o motor da histria. Da a importncia da educao, que, no podendo tudo, pode alguma coisa (Freire, 1986, p. 21). Pode, por exemplo, contribuir para uma leitura do mundo (e da palavra) fundada na lin-guagem da possibilidade que comporta a utopia como sonho possvel. Uma educao comprometida com as clas-ses populares no pode abrir mo da utopia. A utopia um compromisso histrico que os sujeitos polticos assu-mem frente transformao do mundo. A utopia , tambm, um ato de conhecimento, pois exige a "denncia de um presente intolervel e o anncio de um futuro a ser criado, construdo poltica, esttica e eticamente pelo ho-mem (Freire, 1986, p. 28). O sonho necessrio a qualquer projeto de construo de um mundo diferente, menos feio, mais solidrio. No h mudana sem sonho, assim como no h sonho sem esperana. Uma educao volta-da para o exerccio da liberdade humana pressupe o compromisso com a utopia.6 Utopia aqui entendida como u-ma aprendizagem poltica, necessria s classes populares; como uma assuno, que no seria possvel se lhes faltasse o gosto pela liberdade, se lhes faltasse a esperana, sem a qual no lutamos para que o mundo se realize de outra maneira.

    A luta uma categoria histrica muda de espao-tempo a espao-tempo; portanto necessita ser revisitada e atualizada permanentemente. Em um momento histrico como o que vivemos hoje, no pas e no mundo, a realida-de mesma que grita, advertindo os homens da urgncia de se reinventarem novas formas de encontro e novas solu-es polticas para os velhos e inadiveis problemas que a humanidade enfrenta.

    O mundo no feito de certezas, essa a nica "verdade" possvel. A forma mais construtiva de enfrentar-mos os problemas que se configuram na crise atual assumirmos um compromisso verdadeiro com a solidarieda-de, construindo coletivamente uma rede de solidariedade. O compromisso sempre solidrio e no pode reduzir-se jamais a gestos de falsa generosidade, ou a um ato unilateral. o encontro de homens solidrios, comprometidos com um mundo, mais humanizado, um mundo em que todos os homens coletiva e solidariamente se responsabili-zem perante a histria.

    ltimas (porm no definitivas) palavras

    A tarefa e o desafio que se colocam tanto para a Geografia, quanto para a educao, reaprender o mundo (real e complexo), superando um discurso didtico fundamentado na reflexo de um mundo imaginrio. A aborda-gem dos contedos de Geografia insere-se na perspectiva da leitura do mundo. Ler o mundo ler o espao, ler o lugar; reconhecer no cotidiano os elementos sociais, culturais e naturais que formam o espao geogrfico: um es-pao que contm mltiplos espaos e tempos em permanente transformao.

    Saber pensar o espao para nele se organizar. Este deve ser o objetivo central de um ensino de Geografia comprometido com uma educao voltada para o exerccio da liberdade e da emancipao. A aprendizagem da Geografia deve possibilitar a reflexo crtica sobre o espao: uma reflexo que incorpore as diferentes leituras de um mesmo objeto e que, fundamentada no confronto de idias, interesses, valores socioculturais, estticos e econ-micos, evidencie as diferentes interpretaes e intencionalidades que marcam a histria da construo de um espa-o; uma reflexo que possibilite a elaborao de questionamentos sobre o espao, a vida, o mundo.

    Do ponto de vista pedaggico, trabalhar a representao espacial da criana significa trabalhar a leitura do mundo, no sentido de possibilitar a compreenso da espacialidade dos fenmenos e dos processos histrico-sociais que os constituem. Partindo da leitura e da produo de diferentes linguagens, o ensino de Geografia possibilita criana definir outros referenciais espaciais que no estejam vinculados a si mesma, ao mesmo tempo em que se articula a leitura da palavra pela sistematizao de smbolos e pela apropriao das convenes sobre o funciona-mento das linguagens.

    Ler o mundo, do ponto de vista geogrfico, no significa "ler o grande livro aberto da natureza". A leitura do mundo pressupe o domnio e a manipulao de todo um instrumental conceitual que possibilite o des-velar da rea-lidade; a leitura do mundo implica a compreenso das diferentes formas de espacialidade traduzidas nos diferentes modos de viver em sociedade. No que se refere escolaridade, a funo alfabetizadora da Geografia nas sries iniciais se traduz na manipulao de instrumentos conceituais que auxiliem a criana construir a um raciocnio geo-grfico para saber pensar o espao. No cotidiano, as relaes e representaes espaciais confundem-se

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    caoticamente, pois, de modo geral, as formas de espacialidade com as quais convivemos uma multiplicidade de representaes espaciais, que se superpem umas s outras demandam um saber que possa nos ajudar a pen-sar o espao em um mundo globalizado pela tcnica.

    O ensino de Geografia nas sries iniciais deve desenvolver na criana o sentimento de pertencimento per-tencer a um mundo natural e social; a um tempo veloz e lento; a um lugar nico e global; a uma realidade em per-manente transformao. A Geografia pode (e deve) pensar dialeticamente o espao, ou seja, pens-lo em sua com-plexidade; complexidade que incorpora a unidade heterognea do saber e do existir humanos, em uma totalidade una, que , ao mesmo tempo contraditria e heterognea, portanto mltipla a unidade das diferenas no movi-mento que se faz vida. O espao construo, resultante do acontecer humano e "ser resultante no ser 'teatro da histria' mas, sim a prpria histria territorializada" (Santos, D., 1996 , p. 33).

    Pensar a funo alfabetizadora da Geografia, associando a ela a leitura da palavra colocar no centro do debate pedaggico a lgica, como instrumento fundamental leitura do mundo. A escola ensina a criana a pensar o mundo na perspectiva da lgica formal o que, do ponto de vista do processo ensino-aprendizagem, tem resulta-do em um conhecimento ineficaz do mundo, impedindo a aquisio de novas posturas e a construo de respostas necessrias ao enfrentamento dos desafios que o cotidiano nos coloca. Trazer a lgica para o centro do debate evidenciar a necessidade de superar (principalmente na educao) uma racionalidade operante, substituindo-a por um novo aprendizado, capaz de promover uma leitura do mundo (e da palavra) fundamentada na lgica dialtica: uma lgica capaz de resgatar as contra-racionalidades, ou melhor, "racionalidades paralelas (e no irracionalidades) que foram jogadas embaixo do tapete da histria e recusadas nos estudos de nossas faculdades" (Santos,1998c, p35).

    O desafio que se coloca para a escola e para a educao neste final de sculo o de promover a passagem do homo sapiens, para o homo dialecticus, o que significa:

    alterar o estilo arquitetnico de nosso intelecto. Exige-se a nova arquitetura da Razo uma razo dialtica ca-paz de praticar no paradoxo, de pensar o complexo, de se equilibrar no oceano agitado da nova ordem, de se habituar a presena constante do contraditrio. Acontece, porm, ser esse estilo novo, algo dificlimo de alcanar, porque requer aprendizagem. algo semelhante ao que no passado aconteceu quando se tratou de libertar o pensar da tirania da aparncia sensorial. Tambm este salto qualitativo do Homo credulus para o Homo sapiensrequereu aprendizagem. Trata-se agora de passar do Homo sapiens para o Homo dialecticus. (...) O conhecimen-to dialtico do universo e do nosso existir nele talvez nos ajude a edificar a unidade heterognea dos saberes, ao fazer-nos ver que afinal o clssico modelo de unidade no o nico possvel. A totalidade una, pode ser, simulta-neamente, contraditria e heterognea a unidade dos diferentes. Tal como a composio das cores e dos sons, tambm a dos saberes pode variar de estilo. (Branco, 1989, p. 285-287)

    A leitura dialtica do mundo implica praticar uma pedagogia da esperana, comprometida com a liberdade; voltada para a realizao da humanidade do homem humanidade que se realiza no pelo conhecimento, mas pela sabedoria. Formar homens sbios (e no eruditos) deve ser o ideal de uma educao fundada na dialtica. A sabe-doria constri-se a partir da compreenso, e esta no se desenvolve somente a partir do ponto de vista intelectual-racional. Uma educao comprometida com o desenvolvimento da humanidade uma educao para a sabedoria: uma educao e uma escola voltadas para a construo de uma sociedade verdadeiramente democrtica, portanto inclusiva e compreensiva.

    Ensinar Geografia possibilitar as condies necessrias para que a criana construa um novo modo de compreender, cientificamente o mundo. A tarefa que hoje se coloca para a Geografia a de explicar o mundo revisitar o mundo, desvelando efeitos de verdade, redescobrindo significados, desnudando imagens e recuperando identidades. Santos (1996, p. 13) nos fala da necessidade de se apreender o mundo em sua temporalidade, em seu estado de coisas atuais, decodificando o tempo presente, para conceb-lo como um estado de coisas possveis.

    Freire e Santos, esses andarilhos da esperana, nos acenam com o futuro possvel. Para Santos (1998b, p. 42):

    O Brasil tem jeito, porque nunca aceitou o conformismo. O Brasil uma cultura rebelde. No Brasil os mais pobres no desistiram de ser gente os pobres querem ser gente e isso contagioso. (...) O futuro j chegou e este per-odo de globalizao est morrendo. Agora o tempo de uma globalizao por baixo, uma globalizao que vem de baixo para cima, que vem com emoo e que vai incluir todas as minorias e todas as minoridades.

    A funo alfabetizadora da Geografia define-se na opo poltico-pedaggica de pensar-fazer uma educao comprometida com o povo, com o territrio, com a nao, uma educao que se traduz em uma pedagogia do so-

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    nho, da utopia e da esperana de construo de uma ptria-mundo mais bonita, mais justa, mais solidria e mais gentil com todos os seus cidados.

    Notas

    * Professora do Departamento de Educao, Sociedade e Conhecimento, da Faculdade de Educao da Universi-dade Federal Fluminense. Doutoranda em Educao na Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo. 1. "fazer a sociedade falar atravs do territrio. Da mesma maneira como a gente pode dar voz sociedade atravs da economia ou da cultura, tambm o territrio capaz de mostrar a sociedade tal e qual (...) o territrio um formi-dvel revelador, porque no pode esconder nada. Porque ele o lugar de vida, trabalho e circulao, o lugar das relaes sociais e do trato entre os indivduos, e at mesmo de manifestao do esprito." Santos, A natureza do espao: tcnica e tempo, razo e emoo. So Paulo: Hucitec, 1997, p.43.2. Para Santos, Geografia cabe estudar o conjunto indissocivel de sistemas de objetos e sistema de ao que formam o espao. O espao hoje um sistema de objetos cada vez mais artificiais, povoado por sistema de aes tambm artificializadas, cada vez mais estranhas ao lugar e seus habitantes. Fbricas, hidroeltricas etc. so obje-tos que marcam o espao lhe dando um contedo tcnico. Sistemas de objetos e sistema de aes esto em per-manente interao; os sistemas de objetos condicionam a forma como se do as aes e o sistema de aes leva criao de novos objetos tcnicos, assim que o espao encontra sua dinmica e se transforma. A Natureza do Espao: tcnica e tempo, razo e emoo. So Paulo: Hucitec, 1997, p. 51-52. 3. Na atual fase da histria da humanidade, assistimos a um processo de unificao que faz do planeta Terra um sistema-mundo, internacionalizando, em diferentes graus, lugares e indivduos. Tal conjunto sistmico nos d a im-presso de que a globalizao constitui um paradigma capaz de nos fornecer a compreenso dos diferentes aspec-tos da realidade. A unio da tcnica e da cincia associa-se, na contemporaneidade, idia de um mercado global, no qual a informao ocupa papel de destaque. Da mesma forma como participam da criao de novos processos vitais e da produo de novas espcies (animais e vegetais), a cincia e a tecnologia, juntamente com a informa-o, encontram-se na base de produo, utilizao e funcionamento do espao. Pelo fato de ser fruto da produo tcnica-cientfica-informacional, o meio geogrfico tende a ser universal, assegurando o funcionamento dos proces-sos de globalizao. 4. Santos chama de horizontalidades as extenses formadas de pontos que se agregam sem descontinuidade e de verticalidades, aqueles pontos no espao que separados uns dos outros, asseguram o funcionamento global da so-ciedade. O espao se compe desses dois recortes, a partir dessas novas subdivises que devemos pensar no-vas categorias analticas. As horizontalidades referem-se a produo propriamente dita, o locus de uma coopera-o mais limitada, as verticalidades referem-se a circulao, distribuio e o consumo da produo. SANTOS. A-pontamentos de aula. FFLECH/USP, 1998. 5. A esse respeito ver Branco, Joo Maria de Freitas - Dialtica, cincia e natureza, citado por Santos, Douglas, no artigo intitulado A tendncia desumanizao dos espaos pela cultura tcnica, in: Cadernos CEDES: O Ensino de Geografia, n. 39. Campinas. Papirus, 1996, p 39. 6. Utopia aqui entendida no como algo irrealizvel; no como idealismo, mas como objetivo de vida, como cons-truo histrica, como "dialetizao dos atos de denunciar e anunciar: denunciar a estrutura desumanizante e anun-ciar uma estrutura humanizante".

    Referncias Bibliogrficas

    BRANCO, Joo Maria de Freitas. Dialtica, cincia e natureza. Lisboa: Caminho, 1989.

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