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II Encontro Nacional de Pesquisadores em Filosofia da Psicanálise 13 a 15 de novembro de 2006 Local: Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo

Contato: [email protected]

Arqueologia da Psicanálise: o Problema da Cura

Christian Ingo Lenz Dunker Instituto de Psicologia USP

Resumo

Tomamos o texto seminal de Freud sobre a psicoterapia (Tratamento Psíquico Tratamento da

Alma, Freud, 1893) como ponto de partida para entender a constituição da psicanálise como prática

clínica e como forma de psicoterapia. Há um contingente de argumentos contrários a idéia de que a

psicanálise procederia da tradição clínica, tal como constituída na medicina ocidental, principalmente à

partir do século XVIII. Não se trata de examinar as condições de possibilidade na cultura ou na socie-

dade que tornaram possível a invenção de um tratamento da alma baseado na palavra, mas de localizar

os pontos historicamente problemáticos que permanecem ativos na prática psicanalítica contemporânea.

O pressuposto que subjaz este trabalho é que as questões envolvidas nas práticas discursivas que cons-

tituem, lógica e historicamente o tratamento psicanalítico são, no fundo, questões redutíveis ao tema do

poder. O poder constituído pela palavra que influencia, o poder que se fabrica e se desfaz em seu dis-

positivo, o poder que legitima, prescreve e se positiva nas formas de sofrimento psíquico e ainda o

poder que sempre se problematiza no axioma psicopatológico.

1. Freud entre a Clínica e a Psicoterapia

Em 1890 Freud redige um pequeno artigo para um manual de medicina ver-

sando sobre o tratamento psíquico. Este artigo é certamente um dos textos fundadores

da psicoterapia tal como a conhecemos hoje. Não se pode dizer que antes de 1897 a

psicanálise já estivesse estabelecida como método. No entanto Freud recebia pacien-

tes e acompanhava tratamentos há pelo menos dez anos. Logo, antes de se tornar psi-

canalista Freud era um clínico e um psicoterapeuta. Quero acentuar aqui a distância

que separa, historicamente, os clínicos dos terapeutas. Clínico refere-se aqui princi-

palmente ao paciente e metódico exercício de observação, descrição e comparação de

fenômenos, tal como a história da psiquiatria nos revela. O clínico é, sobretudo, um

leitor dos signos que formam o campo de uma semiologia, é um especialista em diag-

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nóstica. A figura do psicoterapeuta, por sua vez, implica uma designação mais genéri-

ca e compreende um campo difuso de práticas curativas que vão do tratamento moral,

ao magnetismo animal, da eletroterapia ao hipnotismo, passando por um leque de

compromissos com práticas religiosas, pedagógicas e místicas. O psicoterapeuta, na

virada do século XIX francês, é alguém interessado na eficácia de sua ação. As hipó-

teses causais e a descrição dos sintomas lhe interessam na medida em que podem con-

tribuir para estes efeitos no âmbito da avaliação subjetiva do paciente. Para o clínico,

ao contrário, as impressões subjetivas do paciente sobre seu próprio estado são irrele-

vantes se não se incluírem na lógica de sua semiologia.

É costume acentuar a importância do aprendizado de Freud com Charcot em

seu período de formação junto à escola de Paris. Charcot era, antes de tudo, um clíni-

co. Seus problemas passam, por exemplo, pela comprovação de que a histeria poderia

acometer o sexo masculino, pela possibilidade de um diagnóstico diferencial entre

histeria e epilepsia ou ainda pela minunciosa descrição das quatro fases do ataque

histérico 1. Menos valorizada do que o aprendizado com Charcot são as pequenas in-

cursões que Freud fez, principalmente ao sul da França, para conhecer melhor as téc-

nicas de hipnotismo e também encontrar figuras como Libéault e Bernheim. Autênti-

cos “curadores de almas” eles declaravam-se capazes de aliviar o sofrimento pelo

poder da relação pessoal (rapport) e da sugestão. A psicoterapia como um movimento

de expressão popular, exposto à crítica permanente de charlatanismo, impregnou pejo-

rativamente o termo, especialmente na França 2.

Freud em Paris e Freud em Nancy apontam para uma combinação entre a for-

mação clínica e como um psicoterapeuta. É neste período que ele redige o texto chave

sobre o tratamento da alma. Este período foi descrito da seguinte maneira vinte e qua-

tro anos depois:

“ (...) uma época heróica, ao splendid isolation não faltam vantagens nem atra-

tivos. Não tinha nenhuma bibliografia que ler, nenhum oponente mal informa-

do a quem escutar, não estava submetido á influência alguma nem urgido por

nada. Aprendi a refrear as inclinações especulativas e, atendendo ao inesque-

cível conselho de meu mestre Charcot, a examinar de novo as mesmas coisas

1 Charcot, J.M. – Grande Histeria, Contracapa, Riod e Janeiro, 2003.

2 Roudinesco, E. – O Paciente, o Terapeuta e o Estado, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2005.

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tantas vezes quanto fosse necessário para que elas, por si mesmo, começassem

a dizer algo.”3

2. A Cura

A ênfase na observação faz prevalecer a experiência clínica sobre o contato

com a psicoterapia. Compreende-se que, nesta passagem, Freud tenha evitado as refe-

rências à psicoterapia, mas isso não elimina o texto de 1890. O título deste artigo -

Tratamento Psíquico (Tratamento da Alma) - já assinala a conhecida ambigüidade

entre alma (Seele) e psíquico (Psychische). O dois termos são precedidos pela palavra

tratamento (Behandlung). Tratar, em português, evoca a idéia de acerto, contrato, ou

seja, acordo consentido entre pessoas. Em alemão a palavra procede de Hand (mão) e

evoca algo como manejo, lida e cuidado. A idéia de tratamento da alma não possui em

alemão a conotação mágico-religiosa que o termo evoca para nós 4. Behandlung pode-

se traduzir alternativamente como tratamento e como cura. A palavra cura tem sido

preterida em relação à noção de tratamento tendo em vista sua associação direta e

automática com a conotação médica e com a idéia de resultado. Além disso, a noção

de cura ecoa ainda com a conotação mágico psicoterapêutica que encontramos em

expressões como “a cura de águas” ou a “cura religiosa”. Note-se como a noção de

cura constrata com a de terapia, como por exemplo em eletroterapia (desenvolvida por

Erb e citada por Freud várias vezes em função de sua ineficácia).

Portanto há um duplo sentido na recusa da noção de cura em psicanálise, por

um lado ela soa clínica e médica demais, por outro ela está perigosamente próxima da

psicoterapêutica e, portanto, pouco “clínica”. Sugiro assim que a fonte de nosso mal

estar com a noção de cura não decorre de sua pertinência à um âmbito mais ou menos

científico de discursividade, mas da ligação que o termo induz com a esfera do poder.

Tanto a cura como produto da técnica médica como a cura como expressão de uma

epifania mística nos convidam a uma posição de poder que a psicanálise haveria de

recusar. No entanto esta recusa não deveria servir de argumento nominal para a evita-

ção dos termos em que o problema se coloca. Ou seja, não basta declarar uma espécie

de evasão do terreno político para garantir uma certa extraterritorialidade cujos fun-

3 Freud, S. – História do movimento psicanalítico (1914), in AO, V. XIV:21.

4 Hanns, L. – icionário Comentado do Alemão de Freud, Imago, Rio de Janeiro, 1996:332.

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damentos não estaríamos mais, nem na obrigação nem no encargo de apresentar. Esta

estratégia nos levaria a manter como incógnita na prática analítica o tema da influên-

cia que o analista exerce sobre seu analisante e, inversamente, que seu analisante e-

xerce sobre seu analista. Método sem ética ou ética sem método ? – como delimitar o

tipo de influência que encontramos na cura psicanalítica ? Aliás é sobre este tema que

Freud se detém no artigo sobre o Tratamento Psíquico:

“As palavras são, sem dúvida, os principais mediadores da influência que um

homem pretende exercer sobre os outros: as palavras são bons meios para pro-

vocar alterações anímicas naquele a quem são dirigidas e por isso já não soa

enigmático asseverar que a influência da palavra pode eliminar fenômenos pa-

tológicos, ainda mais aqueles que tem sua raíz em estados anímicos.” 5

Encontramos aqui um tema caro aos psicoterapeutas, a influência que se pode

exercer sobre o outro. O tema da influência reúne uma constelação de estratégias cuja

fonte seria difícil de rastrear. Trata-se aqui da formulação de métodos e procedimen-

tos que derivam dos mais dispersos saberes práticos: a interpretação de sonhos, as

curas taumatúrgicas e animistas, a sugestão, a retórica médica; as práticas religiosas

de aconselhamento, a direção de consciência e a confissão, bem como as pedagogias

da alma e finalmente a utopia e distopia política. Dizer que as palavras são fonte de

influência é, portanto, uma afirmação vazia se não se puder explicar como funciona a

própria influência.

3. O Poder

Este breve exame do texto seminal de Freud sobre a psicoterapia precipita um

ponto de partida para entender a constituição da psicanálise como prática clínica e

como forma de psicoterapia. Há inúmeras objeções e dificuldades em incluir e separar

a psicanálise da psicoterapia. Há ainda um outro contingente de argumentos contra a

idéia de que a psicanálise teria algo que ver com a tradição clínica, tal como constituí-

da na medicina ocidental, principalmente à partir do século XVIII. Mas em geral esta

linha dupla de objeções apóia-se em um tipo de historiografia profundamente funda-

5 Freud, S. – Tratamento psíquico (tratamento da alma) (1890), in AO, V. I:123.

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cionista e legitimista. Interessada em assinalar a extraterritorialidade da psicanálise,

dado o caráter original de sua forma de tratamento, esta linha de defesa é compreensí-

vel na esfera disciplinar e no âmbito da afirmação da permanência da psicanálise na

cultura. Ao mesmo tempo esta estratégia reativa impede que a psicanálise pense sua

própria constituição histórica de tal forma a reinventar o seu presente. Isso não signi-

fica refazer a cadeia das idéias psicológicas que levaram à noção de inconsciente, de

sexualidade, de infância ou de recalcamento, mas tentar reconstruir a lógica que le-

vou a psicanálise a se instalar como uma forma singular entre a prática clínica e a psi-

coterapêutica. Não se trata de examinar as condições de possibilidade na cultura ou na

sociedade que tornaram possível a invenção de um tratamento da alma baseado na

palavra, mas de localizar os pontos historicamente problemáticos que permanecem

ativos na prática psicanalítica contemporânea, em outras palavras, se faz necessária

uma arqueologia e uma genealogia da cura em psicanálise, que não se limite a apontar

parentescos e afinidades entre idéias e práticas tematicamente congruentes com a psi-

canálise. Quero evitar o exame de tipo epistemológico sobre o estatuto científico ou

para-científico da psicanálise, interessa-me mais os modos de subjetivação, as estraté-

gias do dizer e do calar que a psicanálise emprega para levar a cabo sua política de

cura.

O pressuposto que subjaz este trabalho é que as questões envolvidas nas práti-

cas discursivas que constituem, lógica e historicamente o tratamento psicanalítico são,

no fundo, questões redutíveis ao tema do poder. O poder constituído pela palavra que

influencia, o poder que se fabrica e se desfaz em seu dispositivo, o poder que legitima,

prescreve e se positiva nas formas de sofrimento psíquico e ainda o poder que se pro-

blematiza no axioma psicopatológico.

Sempre me pareceu chamativo que o texto mais importante e mais sistemático

de Lacan sobre a clínica psicanalítica chame-se justamente A Direção do Tratamento

e os Princípios de seu Poder 6. A tradução brasileira realiza uma escolha referida ao

problema que coloquei, em francês trata-se, da Direcion de la Cure, assim como em

Variantes da Cura Padrão7, se trata de cure (cura) e não de guerisón (tratamento).

Mas se tratamento soa mais palatável é por que na idéia de cura há algo de crítico a

ser recuperado.

6 Lacan, J. – Direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958), in Escritos, Jorge Zahar, Rio

de Janeiro, 2001. 7 Lacan, J. – Variantes do tratamento padrão (1955), in Escritos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1998.

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Da dialética do senhor e do escravo à crítica dos modelos de formação de ana-

listas, da noção de ato analítico à teoria dos quatro discursos, da crítica da primazia da

técnica psicanalítica sobre a ética, há uma persistente reflexão lacaniana sobre a di-

nâmica do poder envolvido na situação analítica. Esta não é a única nem a mais origi-

nal contribuição de Lacan ao escopo específico do tratamento, mas quero crer que é

um dos veios menos explorados pelos que se dedicaram a refletir sobre sua obra. A-

costumamo-nos a reconhecer uma separação entre ética e política, a ponto de nos pa-

recer natural que onde há poder esteja ausente a ética e onde está a ética ali se ausente

o poder, e isso apesar de Lacan ter se referido explicitamente à política do tratamento.

As ligações e separações entre clínica, psicoterapia e psicanálise, os problemas

relativos à definição de seu método implicam em considerar o tratamento como uma

política, uma política discursiva cujo limite talvez seja a noção de felicidade. Portanto

o poder de que se trata aqui não é o poder de Estado (interessado na segurança das

populações), nem o poder das associações (interessado na disciplinarização da práti-

ca) e ainda menos o das políticas de saúde mental (interessado na eficácia), mas aque-

le que confronta o sujeito com seu desejo e com seu destino.

4. Cuidado de Si e Soberania

Minha hipótese é que a origem da noção de cura que interessa a psicanálise lo-

caliza-se num conjunto de práticas que antecederam a formação do cristianismo e

sucederam à formação das escolas filosóficas de Aristóteles e Platão. Tais práticas

foram reunidas, a partir dos trabalhos de Foucault, em torno da noção de cuidado de

si.

A primeira objeção a esta hipótese é que ela não é corroborada textualmente

por Lacan. Ele repetitivamente menciona a ascese filosófica como contrária à psicaná-

lise e ao mesmo tempo localiza a psicanálise no contexto de uma ética trágica. Pode-

se argumentar que este percurso pelas práticas do cuidado de si, em sua especificidade

histórica e em sua singularidade ética, parece ter passado desapercebido à Lacan. São

inúmeras as afirmações que opõe, por exemplo, a psicanálise a qualquer tipo de asce-

se filosófica ou religiosa. Lacan morre um ano antes da publicação dos estudos pio-

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neiros de Foucault8 neste campo e é pouco provável que tivesse contato com o traba-

lho de Hadot9. Sua fonte helenística disponível era, possivelmente, os trabalhos de

Festugière10

, que incorporavam as práticas estóicas e a ascese filosófica à ascese reli-

giosa. No entanto quando Deleuze começa a recuperar os estóicos, principalmente no

que toca á sua concepção de linguagem, percebe-se uma imediata reação em Lacan.

Os textos do final da década de 60 e início dos anos 70 abundam em referências aos

estóicos.

Portanto não uma prática de vida, uma técnica da felicidade, para usar a ex-

pressão de Freud, mas uma forma de ação e de desdobramento do conflito em uma

cena circunscrita exatamente entre o momento da organização social baseada no mito

e o momento de plena realização da filosofia como projeto político e ético. É este laço

entre tragédia e início da filosofia propriamente dita que interessou Lacan em várias

de suas considerações acerca do dispositivo clínico da psicanálise, veja-se, por exem-

plo, o tema de Sócrates e o desejo do analista, o tema de Antígona, e as considerações

sobre Parmênides e pré-socráticos.

No conjunto os exercícios contidos nos diversas variantes do cuidado de si tes-

temunham um novo momento na forma de organizar o conflito. Se na tragédia o con-

flito é tematizado como prova jurídica da verdade que decidirá a partilha entre ho-

mens e deuses; se na retórica esta agonística se desloca para a relação de fala e con-

vencimento entre os mortais; com o cuidado de si o regime de fixação e regulação do

conflito se interioriza. O cuidado de si se forma no espaço deixado vazio tanto pela

cidade, quanto pelas leis e pela religião no que se refere a como conduzir a vida. Este

espaço será gradualmente revertido pelas técnicas de vida biopolíticas, religiosas e

jurídicas, que marcaram a idade média e a ascensão do cristianismo 11

. Portanto a dis-

cussão sobre o caráter confissional da psicanálise, sobre a presença de uma ética da

renúncia e da resignação, sobre sua dependência para com o dispositivo de sexualida-

de tem como ponto de partida justamente este momento helênico do cuidado de si.

Temos então a hipótese de que este ponto inaugural se dá no espaço do cuida-

do de si, no qual a noção de verdade, concernente ao sujeito, é deflacionada de seu

8 Gros, F. – Situação do Curso, in Foucault, M. – A Hermenêutica do Sujeito, Martins Fontes, São

Paulo, 2004: 629. 9 Hadot, P. – Filosofia da Antiguidade,

10 Festugière, A.J. – Contemplation et vie contemplative selon Platon, Paris, 1950:70 ss.

11 Focuault, M. op. cit. 543.

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potencial epistemológico ou moral (no sentido de um saber pré-constituído sobre a

ação). Uma hipótese adicional afirma que, neste espaço, a verdade estaria potencial-

mente imunizada contra seus efeitos de opressão e dominação. Se ambas as hipóteses

se verificam isso depõe à favor de uma certa ontologia política das práticas clínicas, e

da psicanálise entre estas. O argumento dos helênicos é de que o cuidado de si não é

uma atividade concernente ao mundo do trabalho, ela não envolve a produção de um

objeto nem as técnicas inerentes a esta. Também não é, necessariamente, uma ativida-

de estética ou religiosa e muito menos uma atividade contemplativa ou teórica, se bem

que possa incluí-las ocasionalmente. O cuidado de si, como matriz da noção de cura,

se insere no campo da práxis, como tal definido pelo caráter indissociável entre o a-

gente, os meios, os fins e o outro a quem a ação se dirige.

Para Aristóteles o campo da práxis é composto por dois saberes: a ética e a po-

lítica, qual orientado, respectivamente, para o bem individual ou comum. Considera-

se a política como um campo definido pela noção de conflito, e ainda, no qual este

conflito é tematizado e tramitado segundo as regras que definem o próprio campo. Ou

seja, um conflito político se resolve politicamente e é politicamente que se deliberam

as regras pelas quais ele poderá ser abordado: o direito, a guerra, a economia. Nem

todas as éticas são éticas constitutivamente baseadas no conflito, mas toda política o é.

Segundo esta apreciação a psicanálise se caracterizaria ou como uma ética que admite

o caráter constitutivo do conflito ou como uma ética que segue, necessariamente, o

princípio geral que rege a política. Isso aparece de forma implícita em Lacan quando

este aborda o desejo, ao longo de toda a sua obra, à partir da relação dialética entre o

senhor e o escravo. Ou seja, uma relação definida pelo poder e pelo conflito entre as

formas do desejo que a própria situação engendra.

Neste campo, assim definido, encontramos a verdade como um elemento, a

princípio, estranho. Historicamente política e verdade só se reúnem às custas de uma

teologia ou de uma metafísica. Tanto na teologia como na metafísica o ser do sujeito

em sua facticidade e experiência é absorvido como um caso particular do Ser em geral.

Nisso se priva a perspectiva em que o dizer verdadeiro cabe ao sujeito e que este o

afete de qualquer maneira. A questão acerca do ser do sujeito e dos efeitos de retorno

da verdade sobre o sujeito, origina-se na tradição que Foucault chama de espirituali-

dade, que não é nem a da teologia nem a da metafísica. Em nossa época duas formas

de prática são heranças desta tradição: a psicanálise e o marxismo.

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“ (...) todo o interesse e a força das análises de Lacan estão precisamente nis-

so: creio que Lacan foi o único depois de Freud a querer recentralizar a ques-

tão da psicanálise precisamente nesta questão das relações entre sujeito e ver-

dade. (...) ele tentou colocar a questão que, historicamente, é propriamente es-

piritual: a questão do preço que o sujeito tem que pagar para dizer o verdadeiro

e a questão do efeito que tem sobre o sujeito o fato de que ele disse, de que

pode dizer e disse, a verdade sobre si próprio.” 12

A questão que resta em aberto nesta trilha é se a psicanálise poderá dar conta

destes efeitos no plano do conhecimento uma vez que o cuidado de si, por definição,

não se pode traduzir nestes termos. Ou seja, a questão é saber se a teoria psicanalítica

e a formalização da clínica que a define pode ou não estar à altura do fator de contra-

poder inerente ao tipo de prática de onde esta emerge. De fato a prática do cuidado de

si situa-se no campo político, mas como uma espécie de elemento negativo, como

uma resistência à que esta estabeleça o único regime possível de soberania, a sobera-

nia sobre os outros. No caso do cuidado de si se trata da soberania sobre si, soberania

deduzida de seus limites.

Historicamente há três momentos na prática do cuidado de si, o momento so-

crático-platônico, cuja referência maior é o diálogo Alcibíades, de Platão; o período

helênico em que o cuidado de si se expande em uma cultura de si, à época da Roma

imperial e, finalmente, os séculos IV e V onde tal prática filosófica é absorvida ao

asceticismo cristão e que termina por submeter o cuidado de si à primazia do conhe-

cimento de si, epimeléia heatutoû, para os gregos, ou cura sui, para os latinos.

No diálogo platônico encontramos o personagem de Alcibíades, o mesmo que

se encantara por Sócrates em O Banquete e que Lacan utiliza para reler a estrutura da

transferência em termos do sujeito suposto saber. Todavia no diálogo intitulado Alci-

bíades a situação é outra, aqui o jovem guerreiro envelheceu ingressando na idade

crítica em que abandona os amores de juventude, ambicionando a vida política. Alci-

bíades não está interessado apenas em usufruir de seus relações e viver pacatamente

em família, quer outrossim, transformar seu status em uma ação política de governo

sobre os outros. Diante desta demanda Sócrates lhe responde que o exercício do poder

deve ser antecedido pelo cuidado de si. Sem a experiência do cuidado de si, na qual

Alcibíades se mostra ignorante, o poder se extrapola em excesso ou se corrompe em

12

Op. cit:40.

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10

tirania. Não que falte a Alcibíades formação (paidéia), experiência política ou virtude

(sabedoria, justiça, temperança e coragem), falta o cuidado de si. Como cuidar dos

outros, no sentido de ser soberano de uma cidade, sem antes saber como cuidar de si ?

Alcebíades é levado à reconhecer sua ignorância sobre o que é isso, o próprio eu, do

qual ele deve se ocupar. Portanto é a ignorância, reposta ao longo do percurso, como

uma espécie de paixão renitente, que conduz o cuidado de si. Como trata-se de um

dos diálogos aporéticos nele não se elucida propriamente a questão levantada não

sendo possível uma medida exata do que significaria o cuidado de si para Platão. Cer-

to é que ele inaugura um logo trajeto de absorção, de redução e de dominação do cui-

dado de si pelo conhecimento de si. Ignorância se opõe à saber, mas como o próprio

diálogo mostra, é também fonte e origem do cuidado.

É no quadro do cuidado de si que uma série de técnicas, práticas e dispositivos

serão relidos e transformados sempre por meio de uma relação dialogal. O cuidado de

si é uma atividade para toda a vida, mas que se inicia e se transmite privilegiadamente

em uma relação finita. A imagem que podemos ter desse processo é a de uma série de

encontros, de duração variável, entre um mestre e um discípulo. Este conjunto de en-

contros, pode incluir o exame de situações pontualmente problemáticas: a doença de

um ente querido, ser deserdado pelo pai, assumir ou não um posto ou um encargo,

enfim tudo o que pode ser fonte de maus encontros durante a vida cotidiana. O cuida-

do de si é impossível sem a participação ativa e continuada do outro. O homem ama

demais a si mesmo para se libertar sozinho, afirma Galeno. Mas se é na esfera das

relações humanas que emergem as dificuldades não seria fora delas que estas se re-

solveriam.

O outro, suporte e condição para o estabelecimento do cuidado de si, possui

um estatuto ambíguo, ora aproxima-se de um amigo, outras vezes de um conselheiro

fixo e ainda de um mestre ou médico da alma. Tais técnicas praticadas incluem a puri-

ficação (catharsis), a concentração e dispersão da alma, o retiro e as provas. Incluem

ainda a preparação e exame dos sonhos, o exercício da memória sobre os atos que

compõe a vida, e o questionamento das decisões nela envolvidas. Há as técnicas que

visam recolher a atenção para si mesmo e dirimir a curiosidade dispersiva. Há tam-

bém as técnicas de memória que recuperam as pequenas escolhas do cotidiano reme-

tendo-as a um exame das representações que estas evocam no próprio sujeito. Há ain-

da, uma atividade de separação e avaliação dos conhecimentos necessários para o

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cuidado de si, sendo eles os de natureza etopoiética, ou seja, aqueles que conduzem à

autarquéia (depender de si) e à contenti (contentamento consigo).

Vemos aqui duas expressões de natureza política empregadas para especificar

o cuidado de si, como será o caso também da noção de harmonia em outros paradig-

mas terapêuticos. Esta parece ser uma espécie de meta hipótese de Foucault, que inse-

re A Hermenêutica do Sujeito, nosso texto de referência para a questão, dentro de um

projeto mais vasto: não há outro ponto, primeiro e último, de resistência ao poder

político senão na relação de si para consigo 13

. Daí que seus trabalhos tanto sobre a

história da sexualidade, como sobre a história da loucura, sobre as formas jurídicas ou

de governabilidade são simultaneamente textos de crítica histórica quanto uma genea-

logia da ontologia política da clínica psicanalítica.

Aquilo com que se deve ocupar é a alma (heautón), não a alma prisioneira do

corpo, nem a alma análoga da arquitetura social ou o lugar das faculdades mentais,

mas a alma em um sentido muito específico de sujeito da ação e do corpo. A alma tem

aqui acepção próxima do que Aristóteles chamou de hypokeimenon, suposto e saber

necessário para uma operação, termo no qual Lacan via o antencedente lógico para

sua noção de sujeito.

A alma, como sujeito, e não como substância, é agente de um tipo de cuidado

que não se confunde, senão metaforicamente, com o que um médico despende a seu

paciente, que o dono da casa realiza em seu lar (economia) ou que o amante mantém

para com a amada (eros). Diferentemente do médico, do pai de família ou do profes-

sor, o cuidador cuida do cuidado que alguém pode ter consigo mesmo. Isso não exclui

a erótica, a dietética ou as relações sociais que alguém tem para com sua vida. O cui-

dado de si não implica descuidado com os outros, mas precisamente coloca como

problema o modo como o cuidado de si se introduzirá nestes contextos.

Vejamos um exemplo concreto. É a história de um pai de família que fica to-

mado pelo desespero quando sua filha fica gravemente doente. Vendo que em tal es-

tado ele seria de pouca ajuda, deixa a filha aos cuidados da família e dirige-se para a

Escola onde consulta Epicteto. O filósofo aponta ao pai que apesar do amor legítimo

que sente pela filha ele cometera um equívoco. Comovido pela doença, não suportan-

do ver aquela triste cena, ele tivera afinal pouco cuidado consigo mesmo. Ao deixar

de cuidar de si para cuidar da filha (no sentido de ser tomado pela pré-ocupação) o pai

13

Foucault, M. op. cit: 306.

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deixara de examinar as representações que lhe ocorriam ao espírito impedindo-se de

agir ativamente sobre a situação. É interessante notar que aos nossos olhos a conduta

do pai seria um pouco egoísta, ao passo que para Epicteto foi justamente por atentar

pouco para si mesmo, e tentar cuidar da filha antes de cuidar de si, que ele não pode,

efetivamente, cuidar dela. Regra geral: é preciso cuidar de si para cuidar dos outros,

começamos cuidando dos outros e tudo estará perdido.

O destino do cuidado de si, como já apontei, se divide claramente em uma tra-

dição que tentará incluí-lo e submetê-lo ao conhecimento de si, como condição preli-

minar para o conhecimento em geral e uma outra tradição na qual o cuidado de si se

separa da finalidade epistemológica para se tornar parte de uma técnica de vida. Téc-

nica (technê) neste caso, não se refere a uma atividade automática, repetitiva e anôni-

ma. As metáforas mais comuns para designar o cuidado de si provém, neste caso, da

arte da navegação e remetem a uma forma de saber-fazer semelhante ao daquele que

dirige uma embarcação. Na arte da pilotagem é preciso saber sua própria posição,

mas também converter o olhar para os sinais das circunstâncias, o vento, o movimento

das marés, os rochedos e barrancas. Na experiência da pilotagem é necessário poder

ficar só, separar-se de um conjunto de obrigações e dívidas que compõe o cotidiano.

A viagem impõe ainda a idéia de soberania sobre si, de autoapropriação reflexiva so-

bre os destinos e caminhos tomados. Há uma afinidade entre curar, dirigir e governar

que atravessa a história do cuidado de si como uma metáfora fundamentalmente liga-

da ao tempo.

5. Conclusão

Vimos então que a recusa da noção de cura em psicanálise pode ser lida como

resistência com relação às tradições psicoterapêutica e clínica, como uma ruptura com

relação à forma de poder que estas trazem consigo. Mas esta ruptura não deveria nos

eximir de pensar a concepção especificamente negativa de poder que remanesce nesta

recusa. Ou seja, a separação entre ética e política é bem menos clara quando se consi-

dera, como hipótese, que a matriz desta divisão encontra-se na antiga tradição do cui-

dado de si. Quando se afirma que não há outro ponto, primeiro e último, de resistên-

cia ao poder político senão na relação de si para consigo, isso não quer dizer exterio-

ridade política, neutralidade benevolente ou malevolente, nem mesmo confissão diri-

gida ou interiorização psicologizante. Como vimos o pedido de Alcebíades é explici-

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tamente relativo ao ingresso na prática política, para Platão o cuidado de si assume a

conotação de uma propedêutica política, uma preparação e condição. O problema da

cura, como conceito limite entre a filosofia e a psicanálise, é que não basta recusá-la

ou aderir a ela, como se se tratasse apenas de uma extensão da cura filosófica. É pre-

ciso encontrar a justa medida para bem recusá-la sem perder a tensão entre ética e

política que nela se exprime.