leontiev alexis o homem e a cultura 1

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  • 7/31/2019 LEONTIEV Alexis O Homem e a Cultura 1

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    LEONTIEV, Alexis. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa:

    Horizonte, 1978.

    Pgina: 261-284

    O Homem e a Cultura

    1. De longa data, o homem considerado como um ser parte, qualitativamente diferentedos animais. A acumulao de conhecimentos biolgicos concretos permitiu a Darwin elaborar asua clebre teoria da evoluo, segundo a qual o homem o produto da evoluo gradual do mundoanimal e tem uma origem animal.

    Depois, a anatomia comparada, a paleontologia, a embriologia e a antropologia forneceramimensas provas novas desta teoria. Todavia a idia de que o homem se distingue radicalmente das

    espcies animais, mesmo as mais desenvolvidas, continuou a ser firmemente sustentada. Quanto asaber onde que os diversos autores viam esta diferena e como a explicavam, isso, outra histria.

    No necessrio determo-nos em todas as consideraes emitidas neste domnio. Noconcederemos qualquer ateno s que partem da idia de uma origem espiritual, divina do homem,que constituiria a sua essncia particular: admitir uma tal teoria colocarmo-nos fora da cincia.

    O essencial das discusses cientficas incidiu antes sobre o papel dos caracteres e dasdificuldades biolgicas inatas do homem. Uma grosseira exagerao do seu papel serviu defundamento terico s teses pseudobiolgicas mais reacionrias e mais racistas.

    A orientao oposta, desenvolvida pela cincia progressista, parte, pelo contrrio, da idiade que o homem um ser de natureza social, que tudo o que tem de humano nele provm da sua

    vida emsociedade, no seio da cultura criada pela humanidade.No sculo passado, pouco aps o aparecimento do livro de Darwin,A Origem das espcies,

    Engels, sustentando a idia de uma origem animal do homem, mostrada ao mesmo tempo que ohomem profundamente distinto dos seus antepassados animais e que a hominizao resultou da

    passagem vida numa sociedade organizada na base do trabalho; que esta passagem modificou asua natureza e marcou o incio de um desenvolvimento que, diferentemente do desenvolvimento dosanimais, estava e est submetido no s leis biolgicas, mas as leis socio-histricas.

    luz dos dados atuais da paleantropologia, o processo da passagem dos animais ao homempode rapidamente traar-se da seguinte maneira:

    Trata-se de um longo processo que compreende toda uma srie de estdios. O primeiroestdio o da preparaobiolgica do homem. Comea no fim do tercirio e prossegue no inciodo quaternrio. Os seus representantes, chamados australopitecos, eram animais que levavam umavida gregria; conheciam a posio vertical e serviam-se de utenslios rudimentares, notrabalhados; verosmil que possussem meios extremamente primitivos para comunicar entre si.

    Neste estdio reinavam ainda sem partilha as leis da biologia.

    O segundo estdio que comporta uma srie de grandes etapas pode designar-se como o dapassagem ao homem. Vai desde o aparecimento do pitecantropo poca do homem de Neanderthalinclusive. Este estdio marcado pelo incio da fabricao de instrumentos e pelas primeirasformas, ainda embrionrias, de trabalho e de sociedade. A formao do homem estava aindasubmetida, neste estdio, s leis biolgicas, quer dizer que ela continuava a traduzir-se poralteraes anatmicas, transmitidas de gerao em gerao pela hereditariedade. Mas ao mesmotempo, elementos novos apareciam no seu desenvolvimento. Comeavam a produzir-se, sob ainfluncia do desenvolvimento do trabalho e da comunicao pela linguagem que ele suscitava,

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    modificaes da constituio anatmica do homem, do seu crebro, dos seus rgos dos sentidos,da sua mo e dos rgos da linguagem; em resumo, o seu desenvolvimento biolgico tornava-sedependente do desenvolvimento da produo. Mas a produo desde o incio um processo socialque se desenvolve segundo as suas leis objetivas prprias, leis scio-histricas. A biologia ps-se,

    portanto, a inscrever na estrutura anatmica do homem a histria nascente da sociedadehumana.

    Assim se desenvolvia o homem, tornado sujeito do processo social de trabalho, sob a aode duas espcies de leis: em primeiro lugar, as leis biolgicas, em virtude das quais os seus rgosse adaptaram s condies e s necessidades da produo; em segundo lugar, s leis scio-histricasque regiam o desenvolvimento da prpria produo e os fenmenos que ela engendra.

    Notemos que numerosos autores modernos consideram toda a histria do homem como umprocesso que conserva esta dupla determinao. Consideram, tal como Spencer, que odesenvolvimento da sociedade ou, como eles preferem dizer, o desenvolvimento do meio supra-orgnico (isto , social), no faz seno colocar o homem em condies de existncia

    particularmente complexas, s quais ele se adapta biologicamente. Esta hiptese no temfundamento. Na realidade, a formao do homem passa ainda por um terceiro estdio, onde o papel

    respectivo do biolgico e do social na natureza do homem sofreu nova mudana. o estdio doaparecimento do tipo do homem atual oHomo sapiens. Ele constitui a etapa essencial, a viragem. o momento com efeito em que a evoluo do homem se liberta totalmente da sua dependnciainicial para com as mudanas biolgicas inevitavelmente lentas, que se transmitem porhereditariedade.Apenas as leis scio-histricas regero doravante a evoluo do homem.

    O antroplogo sovitico I. I. Roguinski descreve assim esta viragem: Do outro lado dafronteira, isto , no homem em vias de se formar, a atividade no trabalho estava estreitamente ligada evoluo morfolgica. Deste lado da fronteira, isto , no homem atual, acabado, a atividade dotrabalho no tem qualquer relao com a progresso morfolgica1 .

    Isto significa que o homem definitivamente formado possui j todas as propriedades

    biolgicas necessrias ao seu desenvolvimento scio-histrico ilimitado. Por outras palavras, apassagem do homem a uma vida em que a sua cultura cada vez mais elevada no exige mudanasbiolgicas hereditrias. O homem e a humanidade libertaram-se, segundo a expresso de Vandel, dodespotismo da hereditariedade e podem prosseguir o seu desenvolvimento num ritmodesconhecido no mundo animal2. E, efetivamente, no decurso das quatro ou cinco dezenas demilnios que nos separam dos primeiros representantes doHomo sapiens, as condies histricas eo modo de vida dos homens sofreram, em ritmos sempre mais rpidos, mudanas sem precedente.Todavia, as particularidades biolgicas da espcie no mudaram ou, mais exatamente, as suasmodificaes no saram dos limites de variaes reduzidas, sem alcance essencialnas condies davida social.

    No queremos com isto dizer que a passagem ao homem ps fim ao das leis davariao e da hereditariedade ou que a natureza do homem, uma vez constituda, no tenha sofridoqualquer mudana. O homem no est evidentemente subtrado ao campo de ao das leis

    biolgicas. O que verdade que as modificaes biolgicas hereditrias no determinam odesenvolvimento scio-histrico do homem e da humanidade; este doravante movido por outrasforas que no as leis da variao e da hereditariedade biolgicas. Na obra que consagrou teoriada evoluo, Timiriazev exprime esta idia de uma maneira notvel: A teoria da luta pelaexistncia detm-se no limiar da histria cultural. Toda a atividade racional do homem no senouma luta, a luta contra a luta pela existncia. um combate para que todas as pessoas na Terra

    possam satisfazer as necessidades, para que no conheam nem a indigncia, nem a fome, nem amorte lenta...3 .

    1 I. I. Roguinski, M. G. Levine:Fundamentos da antropologia, Moscovo, 1955.2O racismo perante a cincia, UNESCO 6. Gallimard, 1960.

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    2. A hominizao, enquanto mudanas essenciais na organizao fsica do homem, terminacom o surgimento da histria social da humanidade. Esta idia no nos parece, nos nossos dias

    paradoxal. No colquio cientfico sobre a hominizao que se reuniu recentemente em Paris, foipartilhada pela maioria dos participantes4.

    Mas ento como que a evoluo dos homens se produziu? Qual o mecanismo? Pois,desde o princpio da histria humana, os prprios homens e as suas condies de vida no deixaramde se modificar e as aquisies da evoluo de se transmitir de gerao em gerao, o que era acondio necessria da continuidade do progresso histrico.

    Era preciso, portanto, que estas aquisies se fixassem. Mas como, sej vimoselas nopodem fixar-se sob o efeito da herana biolgica? Foi sob uma forma absolutamente particular,forma que s aparece com a sociedade humana: a dos fenmenos externos da cultura material eintelectual.

    Esta forma particular de fixao e de transmisso s geraes seguintes das aquisies daevoluo deve o seu aparecimento ao fato, diferentemente dos animais, de os homens terem umaatividade criadora e produtiva. antes de mais o caso da atividade humana fundamental: otrabalho.

    Pela sua atividade, os homens no fazem seno adaptar-se natureza. Eles modificam-naem funo do desenvolvimento de suas necessidades. Criam os objetos que devem satisfazer as suasnecessidades e igualmente os meios de produo desses objetos, dos instrumentos s mquinas maiscomplexas. Constroem habitaes, produzem as suas roupas e outros bens materiais. Os progressosrealizados na produo de bens materiais so acompanhados pelo desenvolvimento da cultura doshomens; o seu conhecimento do mundo circundante e deles mesmos enriquece-se, desenvolvem-sea cincia e a arte.

    Ao mesmo tempo, no decurso da atividade dos homens, as suas aptides, os seusconhecimentos e o seu saber-fazer cristalizam-se de certa maneira nos seus produtos (materiais,

    intelectuais, ideais). Razo por que todo o progresso no aperfeioamento, por exemplo, dosinstrumentos de trabalho pode considerar-se, deste ponto de vista, como marcando um novo grau dodesenvolvimento histrico nas aptides motoras do homem; tambm a complexificao da fonticadas lnguas encarna os progressos realizados na articulao dos sons e do ouvido verbal, os

    progressos das obras de arte, um desenvolvimento esttico, etc.

    Cada gerao comea, portanto, a sua vida num mundo de objetos e de fenmenos criadopelas geraes precedentes. Ela apropria-se das riquezas deste mundo participando no trabalho, naproduo e nas diversas formas de atividade social e desenvolvendo assim as aptidesespecificamente humanas que se cristalizaram, encarnaram nesse mundo. Com efeito, mesmo aaptido para usar a linguagem articulada s se forma, em cada gerao, pela aprendizagem dalngua. O mesmo se passa com o desenvolvimento do pensamento ou da aquisio do saber. Est

    fora de questo que a experincia individual de um homem, por mais rica que seja, baste paraproduzir a formao de um pensamento lgico ou matemtico abstrato e sistemas conceituaiscorrespondentes. Seria preciso no uma vida, mas mil. De fato, o mesmo pensamento e o saber deuma gerao formam-se a partir da apropriao dos resultados da atividade cognitiva das geraes

    precedentes.

    Est hoje estabelecido com toda a certeza que se as crianas se desenvolverem desde amais tenra idade, fora da sociedade e dos fenmenos por ela criados, o seu nvel o dos animais(Zingg)5. No possuem nem linguagem nem pensamento e os seus prprios movimentos em nada seassemelham aos dos humanos; no adquirem mesmo a posio vertical. Conhecem-se, pelo

    3K. A. Timiriazev: Obras escolhidas, em 4 volumes, t. III. M. 1949, p. 196.

    4Les processus de Phominisation, Paris, 1958.5R. Zingg: Feral Man and Extreme cases of Isolations,American Journal of Psychology, 1940, n 53.

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    contrrio, casos inversos em que crianas, oriundas de povos que se encontram num nvel dedesenvolvimento econmico e cultural muito baixo, so colocadas muito cedo em condiesculturais elevadas; formam-se ento nelas todas as aptides necessrias para a sua plena integraonesta cultura. O caso citado por H. Piron6 um exemplo.

    A tribo dos Guayaquils, no Paraguai, das mais primitivas que se conhecem atualmente.A sua civilizao chamada civilizao do mel porque um dos seus meios de subsistncia arecolha do mel de abelhas selvagens. difcil entrar em contato com eles, pois no tem lugar dehabitao fixa. Assim que os estrangeiros se aproximam, fogem para os bosques. Mas conseguiu-seum dia apanhar uma criana desta tribo com sete anos de idade. Pde assim conhecer-se a sualngua que se verificou ser extremamente primitiva. Noutra vez, o etnlogo francs Vellardencontrou uma menina de dois anos num acampamento abandonado pela tribo. Confiou a suaeducao me dele. Vinte anos mais tarde (em 1958) ela em nada se distinguia no seudesenvolvimento das intelectuais europias. Dedica-se etnografia e fala francs, espanhol e

    portugus.

    Estes dados e muitos outros provam que as aptides e caracteres especificamente humanosno se transmitem de modo algum por hereditariedade biolgica, mas adquirem-se no decurso da

    vida por um processo de apropriao da cultura criada pelas geraes precedentes. Razo por quetodos os homens atuais (pelo menos no que respeita aos casos normais), qualquer que seja a sua

    pertena tnica, possuem as disposies elaboradas no perodo de formao do homem e quepermitem, quando reunidas as condies requeridas, a realizao deste processo desconhecido nomundo dos animais.

    Podemos dizer que cada indivduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dquando nasce no lhe basta para viver em sociedade. -lhe ainda preciso adquirir o que foialcanado no decurso do desenvolvimento histrico da sociedade humana.

    O indivduo colocado diante de uma imensidade de riquezas acumuladas ao longo dossculos por inumerveis geraes de homens, os nicos seres, no nosso planeta, que so criadores.

    As geraes humanas morrem e sucedem-se, mas aquilo que criaram passa s geraes seguintesque multiplicam e aperfeioam pelo trabalho e pela luta as riquezas que lhes foram transmitidas epassam o testemunho do desenvolvimento da humanidade.

    Foi Karl Marx, o fundador do socialismo cientfico, o primeiro que forneceu uma anliseterica da natureza social do homem e do seu desenvolvimento scio-histrico: Todas as suas(trata-se do homem A. L.) relaes humanas com o mundo, a viso, a audio, o olfato, o gosto,o tato, o pensamento, a contemplao, o sentimento, a vontade, a atividade, o amor, em resumo,todos os rgos da sua individualidade que, na sua forma, so imediatamente rgos sociais, so noseu comportamento objetivo ou na sua relao com o objeto a apropriao deste, a apropriao darealidade humana7. Mais de cem anos passaram depois que Marx escreveu estas linhas, mas as

    idias que elas encerram permanecem at aos nossos dias a expresso mais profunda da verdadeiranatureza das aptides humanas ou, como dizia Marx, das foras essenciais do homem(Wesenskrfte ds Menschen).

    3. a questo do desenvolvimento do homem, considerado em ligao com odesenvolvimento da cultura e da sociedade, levanta uma srie de interrogaes. Em particular, levaa perguntar-se em que consiste e como se desenrola o processo descrito mais acima de apropriao

    pelos indivduos das aquisies do desenvolvimento histrico da sociedade.

    J vimos que a experincia scio-histrica da humanidade se acumula sob a forma defenmeno do mundo exterior objetivo. Este mundo, o da indstria, das cincias e da arte, aexpresso da histria verdadeira da natureza humana; o saldo da sua transformao histrica. Mas

    6 H. Piron:De lActinie lHomme, t. II, Paris, 1959.7Manuscrits de 1844, ob. Cit., p. 91.

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    em que que consiste o prprio processo de apropriao deste mundo, que ao mesmo tempo oprocesso de formao das faculdades especficas do homem?

    Devemos sublinhar que este processo sempre ativo do ponto de vista do homem. Para seapropriar dos objetos ou dos fenmenos que so o produto do desenvolvimento histrico, necessrio desenvolver em relao a eles uma atividade que reproduza, pela sua forma, os traosessenciais da atividade encarnada, acumulada no objeto.

    Esclareamos esta idia com a ajuda de um exemplo simples: a aquisio do instrumento.

    O instrumento o produto da cultura material que leva em si, da maneira mais evidente emais material, os traos caractersticos da criao humana. No apenas um objeto de uma formadeterminada, possuindo dadas propriedades.

    O instrumento ao mesmo tempo um objetosocialno qual esto incorporadas e fixadas asoperaes de trabalho historicamente elaboradas.

    O fato de este contedo, simultaneamente social e ideal, estar cristalizado nosinstrumentos humanos, isso distingue-os dos instrumentos dos animais. Estes ltimos devemigualmente realizar certas operaes. Sabe-se, por exemplo, que o smio aprende a servir-se de um

    pau para puxar um fruto para si. Mas estas operaes no se fixam nos instrumentos dos animaise estes instrumentos no se tornam os suportes permanentes destas operaes. Logo que o pautenha desempenhado a sua funo s mos do smio, torna-se um objeto indiferente para ele. porisso que os animais no guardam os seus instrumentos e no os transmitem de gerao emgerao. Eles no podem, portanto, preencher esta funo de acumulao, segundo a expresso deJ. Bernal, que prpria da cultura. isto que explica que no existam nos animais processos deaquisio do instrumento: o emprego do instrumento no forma neles novas operaes motoras; o prprio instrumento que est subordinado aos movimentos naturais, fundamentalmenteinstintivos, no sistema dos quais se integra.

    Esta relao inversa no caso do homem. a sua mo, pelo contrrio, que se integra no

    sistema scio-historicamente elaborado das operaes incorporadas no instrumento e a mo que aele se subordina. A apropriao dos instrumentos implica, portanto, uma reorganizao dosmovimentos naturais instintivos do homem e a formao de faculdades superiores.

    A aquisio do instrumento consiste, portanto, para o homem, em se apropriar dasoperaes motoras que nele esto incorporadas. ao mesmo tempo um processo de formao ativade aptides novas, de funes superiores, psicomotoras a sua esfera motriz.

    Isto aplica-se igualmente aos fenmenos da cultura intelectual. Assim, a aquisio dalinguagem no outra coisa seno o processo de apropriao das operaes de palavras que sofixadas historicamente nas suas significaes; igualmente a aquisio da fontica da lngua que seefetua no decurso destes processos que se formam no homem as funes de articulao e de audio

    da palavra, assim como esta atividade cerebral a que os fisilogos chamam o segundo sistema desinalizao (Pavlov).

    evidente que todas estas caractersticas psicofisiolgicas so formadas pela lngua que ohomem fala e no inatas, ao ponto do conhecimento das caractersticas de uma lngua dada permitirdescrever outras com a maior verosimilhana, sem qualquer estudo particular. Assim, sabendo que alngua materna de um dado grupo humano faz parte das lnguas de tom, podemos estarabsolutamente certos que todos os seus membros tm um ouvido tonal desenvolvido8.

    A principal caracterstica do processo de apropriao ou de aquisio que descrevemos, portanto, criar no homem aptides novas, funes psquicas novas. nisto que se diferencia do

    8Ver A. N. Leontiev, I. B. Guippenreiter: Influncia da lngua materna sobre a formao do ouvido, dokl. Ak. Pd. Naouk, R. S. F.R., 1959, N 2.

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    processo de aprendizagem dos animais. Enquanto este ltimo o resultado de uma adaptaoindividual do comportamento genrico a condies de existncia complexas e mutantes, aassimilao no homem um processo de reproduo, nas propriedades do indivduo, das

    propriedades e aptides historicamente formadas da espcie humana.

    Falando do papel da aquisio da cultura no desenvolvimento do homem, o autor de umaobra recente consagrada a este problema nota muito justamente que se o animal se contenta com odesenvolvimento da sua natureza, o homem constri a sua natureza9.

    Mas como que este processo possvel no plano fisiolgico e como se processa? Trata-se de uma questo muito difcil. Com efeito, por outro lado, os fatos indicam que as aptides e asfunes que se desenvolvem no decurso da histria social da humanidade no se fixam no crebrodo homem e no se transmitem segundo as leis da hereditariedade. Por outro lado, absolutamenteevidente que uma aptido ou uma funo no pode ser seno a funo de um rgo ou de umconjunto de rgos determinados.

    A resoluo da contradio entre estas duas posies igualmente indiscutveis constitui umdos sucessos mais importantes que a fisiologia e a psicofisiologia do nosso sculo obtiveram.

    Em W. Wundt encontramos j a idia de que o carter especfico da atividade se deve aofato de ela assentar no sobre as funes fisiolgicas elementares do crebro, mas sobre asassociaes que elas formam no decurso do desenvolvimento individual. Um novo passo decisivofoi transposto neste sentido com a descoberta, por Pavlov, do trabalho por sistemas dos grandeshemisfrios cerebrais.

    Por seu turno, um dos mais eminentes contemporneos de Pavlov, A. A. Oukhotonski,emitiu a idia de que existem rgos particulares do sistema nervoso, os rgos fisiolgicos oufuncionais10.

    O que so estes rgos fisiolgicos do crebro? So rgos que funcionam da mesmamaneira que os rgos habituais, de morfologia constante, mas distingue-se por serem

    neoformaes que aparecessem no decurso do desenvolvimento individual (ontognico). Elesconstituem, portanto, o substrato material das aptides e funes especficas que se formam nodecurso da apropriao pelo homem do mundo dos objetos e fenmenos criados pela humanidade,isto , da cultura.

    As propriedades e os mecanismos de formao destes rgos so suficientementeconhecidos hoje, ao ponto de ser possvel construir modelos deles em laboratrios. Alm disto,

    podemos doravante representar com maior clareza como se efetuou a hominizao do crebro,aquilo que permitiu ao desenvolvimento do homem obedecer s leis scio-histricas e acelerar-seassim de maneira considervel: essa hominizao traduz-se pelo fato de que o crtex do crebrohumano, com os seus 15 bilhes de clulas nervosas; se tornou, num grau bem mais elevado que

    nos animais superiores, um rgo capaz de formar rgos funcionais.4. Consideramos at agora o processo de apropriao como o resultado de uma atividade

    efetiva do indivduo em relao aos objetos e fenmenos do mundo circundante criados pelodesenvolvimento da cultura humana. Sublinhamos que esta atividade deve ser adequada, quer istodizer que deve reproduzir os traos da atividade cristalizada (acumulada) no objeto ou no fenmenoou mais exatamente nos sistemas que formam. Mas pode-se supor que esta atividade adequadaaparea no homem, na criana, sob a influncia dos prprios objetos e fenmenos? A falsidade deuma tal suposio evidente.

    9 J. Chateau:La culture gnrale, Paris, 1960. p. 38.

    10 Ver A. A. Oukhtomski: Obras, t. 1, Leninegrado, 1950, p. 290.

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    A criana no est de modo algum sozinha em face do mundo que a rodeia. As suasrelaes com o mundo tm sempre por intermedirio a relao do homem aos outros sereshumanos; a sua atividade est sempre inserida na comunicao. A comunicao, quer esta se efetuesob a sua forma exterior, inicial, de atividade em comum, quer sob a forma de comunicao verbalou mesmo apenas mental, a condio necessria e especfica do desenvolvimento do homem nasociedade.

    As aquisies do desenvolvimento histrico das aptides humanas no so simplesmentedadas aos homens nos fenmenos objetivos da cultura material e espiritual que os encarnam, masso a apenas postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptides, osrgos da sua individualidade, a criana, o ser humano, deve entrar em relao com os fenmenosdo mundo circundante atravs doutros homens, isto , num processo de comunicao com eles.Assim, a criana aprende a atividade adequada. Pela sua funo, este processo , portanto, um

    processo de educao.

    evidente que a educao pode ter e tem efetivamente formas muito diversas. Na origem,nas primeiras etapas do desenvolvimento da sociedade humana, como nas crianas mais pequenas, uma simples imitao dos atos do meio, que se opera sob o seu controle e com a sua interveno;

    depois complica-se e especializa-se, tomando formas de formao superior e at a formaoautodidata.

    Mas o ponto principal que deve ser bem sublinhado que este processo deve sempreocorrer sem o que a transmisso dos resultados do desenvolvimento scio-histrico da humanidadenas geraes seguintes seria impossvel, e impossvel, conseqentemente, a continuidade do

    progresso histrico.

    Para ilustrar esta idia, voltarei a uma imagem de Piron na obra j citada. Se o nossoplaneta fosse vtima de uma catstrofe que s pouparia as crianas mais pequenas e na qualpereceria toda a populao adulta, isso no significaria o fim do gnero humano, mas a histria seriainevitavelmente interrompida. Os tesouros da cultura continuariam a existir fisicamente, mas no

    existiria ningum capaz de revelar s novas geraes o seu uso. As mquinas deixariam defuncionar, os livros ficariam sem leitores, as obras de arte perderiam a sua funo esttica. Ahistria da humanidade teria de recomear.

    O movimento da histria s , portanto, possvel com a transmisso, s novas geraes,das aquisies da cultura humana, isto , com educao.

    Quanto mais progride a humanidade, mais rica a prtica scio-histrica acumulada porela, mais cresce o papel especfico da educao e mais complexa a sua tarefa. Razo por que todaa etapa nova no desenvolvimento da humanidade, bem como no dos diferentes povos, apelaforosamente para uma nova etapa no desenvolvimento da educao: o tempo que a sociedadeconsagra educao das geraes aumenta; criam-se estabelecimentos de ensino, a instruo toma

    formas especializadas, diferencia-se o trabalho do educador do professor; os programas de estudoenriquecem-se, os mtodos pedaggicos aperfeioam-se, desenvolve-se a cincia pedaggica. Estarelao entre o progresso histrico e o progresso da educao to estreita que se pode sem risco deerrar julgar o nvel geral do desenvolvimento histrico da sociedade pelo nvel de desenvolvimentodo seu sistema educativo e inversamente.

    5. At agora consideramos o desenvolvimento do homem individual, que vem ao mundosem defesa e desarmado e que possui ao nascer uma aptido que apenas o distinguefundamentalmente dos seus antepassados animais: a aptido para formar aptides especificamentehumanas. Se no est desprovido de um certo nmero de disposies inatas que o individualizam edeixam marca no seu desenvolvimento, isso no se traduz todavia diretamente no contedo ou na

    qualidade das suas possibilidades de desenvolvimento intelectual, mas apenas em alguns traosparticulares, sobretudo dinmicos, da sua atividade; tal , por exemplo, a influncia dos tiposcongnitos de atividade nervosa superior.

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    Por outro lado, vimos qual era a nica fonte e a origem verdadeira do desenvolvimento nohomem das foras e das aptides que so o produto da evoluo scio-histrica. So os objetos e osfenmenos que encerram em si a atividade das geraes precedentes e resultam de todo odesenvolvimento intelectual do gnero humano, do desenvolvimento do homem enquanto ser

    genrico (Marx). Mas esta noo comporta uma certa abstrao cientfica tal como as dehumanidade, de cultura humana, de gnio humano.

    Certamente que podemos representar as conquistas inesgotveis do desenvolvimentohumano que multiplicaram por dezenas de milhares de vezes as foras fsicas e intelectuais doshomens; os seus conhecimentos penetram os segredos mais bem escondidos do Universo, as obrasde arte do uma outra dimenso aos seus sentimentos. Mas todos tm acesso a estas aquisies?Sabemos muito bem que no esse o caso e que as aquisies do seu desenvolvimento esto comoque separadas dos homens.

    A este propsito, quereria voltar comparao entre evoluo biolgica e progressohistrico, entre a natureza animal e a natureza humana.

    A perfeio da faculdade de adaptao dos animais ao meio, a sagacidade, a riqueza e acomplexidade dos seus instintos, do seu desenvolvimento enquanto espcie, da experinciaadquirida pela espcie. Por certo que tudo isso representa bastante pouco em relao s aquisiesdo desenvolvimento histrico da humanidade, mas se se abstrai de eventuais desvios individuais,tudo isso constitui apangio de todos os representantes da espcie considerada. Basta, portanto, aonaturalista estudar um s ou alguns para ter uma idia justa da espcie no seu conjunto.

    Para o homem o caso diferente. A unidade da espcie humana parece ser praticamenteinexistente no em virtude das diferenas de cor da pele, da forma dos olhos ou de quaisquer outrostraos exteriores, mas sim das enormes diferenas nas condies e modo de vida, da riqueza daatividade material e mental, do nvel de desenvolvimento das formas e aptides intelectuais.

    Se um ser inteligente vindo de outro planeta visitasse a Terra e descrevesse as aptidesfsicas, mentais e estticas, as qualidades morais e os traos do comportamento de homens

    pertencentes s classes e camadas sociais diferentes ou habitando regies e pases diferentes,dificilmente se admitiria tratar-se de representantes de uma e mesma espcie.

    Mas esta desigualdade entre os homens no provm das suas diferenas biolgicasnaturais. Ela o produto da desigualdade econmica, da desigualdade de classes e da diversidadeconsecutiva das suas relaes com as aquisies que encarnam todas as aptides e faculdades danatureza humana, formadas no decurso de um processo scio-histrico.

    O fato de estas aquisies se fixarem nos produtos objetivos da atividade humana modificatotalmente, vimo-lo, o prprio tipo de desenvolvimento. Este liberta-se da sua sujeio s leis daevoluo, acelera-se e novas perspectivas aparecem, impensveis nas condies de um

    desenvolvimento movido pelas leis da variao e da hereditariedade. Mas este mesmo fato temigualmente por conseqncia que as aquisies do desenvolvimento histrico possam separar-sedaqueles que criam este desenvolvimento.

    Esta separao toma antes de mais uma forma prtica, a alienao econmica dos meios eprodutos do trabalho em face dos produtores diretos. Ela parece com a diviso social do trabalho,com as formas da propriedade privada e da luta de classes. Ela , portanto, engendrada pela aodas leis objetivas do desenvolvimento da sociedade que no dependem da conscincia ou davontade dos homens.

    A diviso social do trabalho transforma o produto do trabalho num objeto destinado troca, o que modifica radicalmente o lucro do produtor no produto que ele fabrica. Se este ltimo

    continua a ser, evidentemente, o resultado da atividade do homem, no menos verdade que ocarter concreto desta atividade se apaga nele: o produto toma um carter totalmente impessoal ecomea a sua vida prpria, independente do homem, a sua vida de mercadoria.

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    A diviso social do trabalho tem igualmente como conseqncia que a atividade material eintelectual, o prazer e o trabalho, a produo e o consumo se separem e pertenam a homensdiferentes. Assim, enquanto globalmente a atividade do homem se enriquece e se diversifica, a decada indivduo tomado parte estreita-se e empobrece. Esta limitao, este empobrecimento podemtornar-se extremos, sabemo-lo bem, quando um operrio, por exemplo, gasta todas as suas foras

    para realizar uma operao que tem de repetir milhares de vezes.

    A concentrao das riquezas materiais nas mos de uma classe dominante acompanhadade uma concentrao da cultura intelectual nas mesmas mos. Se bem que as suas criaes pareamexistir para todos, s um nfima minoria, tem o vagar e as possibilidades materiais de receber aformao requerida, de enriquecer sistematicamente os seus conhecimentos e de se entregar arte;durante este tempo, os homens que constituem a massa da populao, em particular da populaorural, tm de contentar-se com o mnimo de desenvolvimento cultural necessrio produo deriquezas materiais nos limites das funes que lhes so destinadas.

    Como a minoria dominante possui no apenas os meios de produo material, mastambm a maior parte dos meios de produo e de difuso da cultura intelectual e se esfora por oscolocar ao servio dos seus interesses, produz-se uma estratificao desta mesma cultura. Enquanto

    no domnio das cincias das cincias que asseguram o progresso tcnico se verifica umaacumulao rpida de conhecimentos positivos, no domnio que toca ao homem e sociedade, suanatureza e essncia, s foras que os fazem avanar e ao seu futuro, nos domnios dos ideais moraise estticos, o desenvolvimento segue duas vias radicalmente diferentes. Uma tende para acumularas riquezas intelectuais, as idias, os conhecimentos e os ideais que encarnam o que h deverdadeiramente humano no homem e iluminam os caminhos do progresso histrico: ela reflete osinteresses e as aspiraes da maioria. A outra tende para a criao de concepes cognitivas, moraise estticas que servem os interesses das classes dominantes e so destinados a justificar e perpetuara ordem social existente, em desviar as massas da sua luta pela justia, igualdade e liberdade,anestesiando e paralisando a sua vontade. O choque destas duas tendncias provoca aquilo a que sechama a luta ideolgica.

    O processo de alienao econmica, produto do desenvolvimento da diviso social dotrabalho e das relaes de propriedade privada, no tem portanto por nica conseqncia afastar asmassas da cultura intelectual, mas tambm dividir esta em elementos de duas categorias, uma

    progressistas, democrticas, servindo o desenvolvimento da humanidade, e as outras que levantamobstculos a este progresso, se penetram nas massas, e que formam o contedo da cultura declinantedas classes reacionrias da sociedade.

    A concentrao e a estratificao da cultura no se produzem apenas no interior dasnaes ou dos pases. A desigualdade de desenvolvimento cultural dos homens manifesta-se aindamais cruamente escala do mundo, da humanidade inteira.

    esta desigualdade que serve o mais das vezes para justificar uma distino entre osrepresentantes das raas superiores e inferiores. Os pases onde se fazem os maiores esforosneste sentido so aqueles em que as classes dirigentes esto particularmente interessadas em daruma justificao ideolgica ao seu direito a submeter povos menos avanados no seudesenvolvimento econmico e cultural. No foi, portanto, um acaso se as primeiras tentativas feitas

    para impor a idia de que estes povos se situam noutro nvel biolgico e pertencem a uma variedade(subespcie) humana particular, viram a luz do dia em Inglaterra (Lawrence, G. smith e na segundametade do sculo XIX, G. Kent e os seus discpulos). Nada houve de fortuito no formidvel esforoda propaganda racista nos Estados Unidos, nos primeiros anos do movimento de libertao dos

    Negros. O democrata revolucionrio russo Tchernychevski (1828-1889) escrevia sobre este assunto:Quando os plantadores dos Estados do Sul viram o esclavagismo ameaado, as consideraes

    sbias em favor da escravatura atingiram rapidamente o grau de elaborao necessrio na sua lutacontra as idias do partido que se tornava perigoso para os esclavagistas... e encontrou-se neles

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    foras to considerveis para a luta oratria, jornalstica ou cientfica, como devia encontrar-se maistarde para a luta armada 11.

    Para dar uma aparncia cientfica pretensa deficincia natural das raas inferiores,apelou-se, como todos sabem, para dois tipos de argumentos: morfolgicos (morfologia comparada)e genticos.

    aos primeiros que pertencem as tentativas repetidamente feitas para provar a existnciade diferenas anatmicas no crebro dos homens que pertencem a raas diferentes. Estas tentativasno podiam deixar de fracassar. Foi assim, por exemplo, que o volume mdio do crebro de certastribos negras se revelou mesmo, aps um estudo escrupuloso, mais elevado que o dos Brancos (dosEscoceses). O mesmo para a estrutura fina do crebro. O. Klineberg cita no seu livro sobre a

    psicologia social dados que o testemunham12. Um colaborador do instituto de anatomia dauniversidade americana John Hopkins, Bean, publicou no seu tempo dados que mostravam que a

    parte frontal do crtex cerebral era relativamente menos desenvolvida nos homens de raa negraque nos brancos e que o seu crebro comportava igualmente algumas outras particularidadesestruturais confirmando o fato estabelecido, segundo a expresso de Bean, da inferioridade dos

    Negros. Como os dados sobre que se fundamentava Bean parecessem pouco convincentes ao diretor

    deste instituto, Mall, ele retomou as investigaes sobre a mesma coleo de crebros, masdiferentemente de Bean, sem saber antecipadamente quais os que pertenciam a brancos e quais osque pertenciam a negros. Mall e os seus colaboradores classificaram os crebros em dois grupos em

    _________________11 Tchernychevski: Obras completas, em 10 volumes, Ex. Moscovo, 1951, pp. 809-810.

    12 O. Klineberg: Social Psichology, Nova Iorque. 1954.

    funo dos critrios indicados por Bean, e quando contaram cada grupo, os dos representantes dasraas negra e branca, verificaram que estavam pouco mais ou menos igualmente repartidos: asconcluses de Bean foram infirmadas. evidente, nota Klineberg a este propsito, que esperando-se encontrar sinais de subdesenvolvimento nos negros e conhecendo antecipadamente a

    provenincia de cada um dos crebros, Bean descobriu entre eles diferenas que de fato noexistiam.

    Voltemos agora aos argumentos genticos. A sua anlise apresenta um interesse particularna medida em que tocam diretamente o problema do desenvolvimento cultural desigual em povosdiferentes. O seu fundamento a hiptese dopoligenitismo. Esta hiptese resume-se idia de queas raas humanas tm origens independentes e que provm de antepassados diferentes. Assim seexplicariam as diferenas pretensamente inultrapassveis entre elas, tanto no que toca ao nvelatingido como s possibilidades de desenvolvimento ulterior. Todavia, o progresso dosconhecimentos paleantropolgicos tornou esta hiptese cada vez menos plausveis e a maioria dosinvestigadores contemporneos defende posies contrrias; eles admitem a origem comum de

    todas as raas que no passam, do ponto de vista biolgico, de variaes de uma espcie nica: oHomo sapiens. Testemunha-o o fato de que as caractersticas raciais so pouco marcadas esuscetveis de variaes considerveis, o que explica que os limites entre as raas sejam iludidos eque exista entre elas uma graduao insensvel. Os dados modernos mostram que algumas destascaractersticas so suscetveis, em certas condies, como por exemplo a migrao para outrasregies geogrficas, de se modificarem bastante nitidamente no espao de uma nica gerao. Outra

    prova de origem comum das raas humanas que certos caracteres, tomados parte, cuja reunioforma a especificidade de uma raa, se encontram em combinaes diferentes nos representantes deraas diferentes. Finalmente, devemos sobretudo sublinhar que as principais caractersticas dohomem contemporneo acabado (a saber, um crebro altamente desenvolvido e a proporocorrespondente entre as partes enceflica e facial do crnio, a conformao caracterstica da mo, o

    fraco desenvolvimento lento da cobertura pilosa do corpo, etc.) existem em todas as raas humanassem exceo.

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    possvel admitir que as diferenas raciais provenham do fato de que a humanidade,espalhando-se cada vez mais sobre a Terra, se tenha fracionado em grupos separados que

    prosseguindo o seu desenvolvimento sob a influncia de condies naturais desiguais tenhamadquirido certas particularidades. Mas estas no tm significao adaptativa a no ser relativamentea fatores naturais agindo diretamente (por exemplo, a pigmentao da pele corresponde a uma aointensa dos raios solares). O isolamento destes grupos reforou naturalmente a acumulao

    hereditria de tais caractersticas biolgicas: vimos que o efeito das leis da hereditariedade nocessa totalmente, mas apenas no que toca fixao e transmisso das aquisies scio-histricasda humanidade. Ora justamente a este nvel que se observam as maiores diferenas.

    certo que este relativo isolamento e desigualdade das condies e das circunstncias doprogresso econmico e social pode criar, em povos humanos estabelecidos em regies diferentes domundo, uma certa desigualdade de desenvolvimento. Todavia, as diferenas enormes que se criaramentre os nveis de cultura material e intelectual dos pases e povos diferentes no podem explicar-seunicamente pelo efeito destes fatores. De fato, no decurso do desenvolvimento da humanidade, dosmeios de comunicao, dos laos econmicos e culturais entre os pases, apareceram edesenvolveram-se rapidamente. Eles deveriam ter o efeito inverso, isto , provocar uma igualizao

    do nvel de desenvolvimento dos diferentes pases e elevar os pases retardatrios ao nvel dospases mais avanados.

    Se, pelo contrrio, a concentrao da cultura mundial no cessou de se reforar, a ponto dealguns pases se tornarem os portadores principais enquanto noutros est abafada, porque asrelaes entre os pases no assentam nos princpios da igualdade de direitos, da cooperao eentreajuda, mas no princpio da dominao do forte sobre o fraco.

    A usurpao de territrios dos pases menos avanados, a pilhagem de populaesindgenas e a sua reduo escravatura, a colonizao destes pases, tudo isto que interrompeu oseu desenvolvimento e provocou uma regresso da sua cultura. Regresso devida no apenas ao fatode os povos sujeitos, na sua grande maioria, se verem privados dos meios materiais mais

    indispensveis ao seu progresso cultural, mas tambm ao fato de terem sido levantadas barreirasartificiais entre eles e a cultura mundial. Se bem que os colonizadores tenham sempre dissimuladoos seus objetivos interesseiros sob frases exaltando a sua misso cultural e civilizadora, de fatoreduziram pases inteiros misria cultural. Quando importavam riquezas culturais destinadas smassas, tratava-se o mais das vezes de riquezas fictcias, levando-lhes menos cultura verdadeira doque a espuma que sobrenada superfcie das guas.

    Assim se introduziram a concentrao e a alienao da cultura no s na histria dosdiferentes pases mas tambm e sob formas ainda menos disfaradas na histria da humanidade.

    Esta alienao provocou uma ruptura entre, por um lado, as gigantescas possibilidadesdesenvolvidas pelo homem e, por outro, a pobreza e a estreiteza de desenvolvimento que, se bem

    que em graus diferentes, a parte que cabe aos homens concretos. Esta ruptura no todavia eterna,como no so eternas as relaes scio-econmicas que lhe deram origem. o problema do seudesaparecimento completo que est no centro dos debates sobre asperspectivas de desenvolvimentodo homem.

    6. A questo do desenvolvimento futuro do homem preocupa antroplogos, psiclogos esocilogos. Como sempre, quando se trata de antropologia histrica as divergncias devem-se aconcepes opostas sobre a natureza do homem, quer do ponto de vista biolgico quer do ponto devista scio-histrico.

    evidente que estes pontos de vista no se encaram unicamente num plano puramenteabstrato; uns e outros tocam importantes problemas sociais, e servem de fundamento a tendncias

    funcionalmente diferentes para a sua soluo prtica.Os representantes da primeira tendncia, puramente biolgica, considerando o

    desenvolvimento do homem como o prolongamento direto da evoluo biolgica, no querem ver

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    as modificaes que se produziram neste mesmo tipo de desenvolvimento do homem na ltimaetapa da sua formao. Arquitetam as suas teorias sobre o futuro do homem extrapolando pura esimplesmente as mudanas morfolgicas que ocorreram no perodo de preparao e de formaoinicial do homem: recorrem mesmo a observaes sobre as variaes de caracteres particulares nohomem contemporneo, considerando uns, sem reservas, como atvicos e os outros como

    pregressistas e profticos, isto , indicado a via do desenvolvimento futuro.

    Foi assim que apareceram as teorias sobre a transformao progressiva do homem atualnum ser humano de tipo novo. Este ser, o Homo sapientissimus, descrito diferentemente segundoos autores, mas todos lhe atribuem caractersticas biolgicas novas. Em geral, vem-no maior, comum crnio mais redondo e muito mais volumoso que o do homem atual, um pequeno rosto chato,menor nmero de dentes e quatro dedos dos ps. Quanto aos seus caracteres psquicos, o principalseria um intelecto poderoso e subtil; os seus sentimentos, pelo contrrio, enfraquecer-se-o13.

    Claro que o importante no est nas descries mais ou menos fantsticas sobre o homemfuturo, mas sim na concepo das leis motoras do desenvolvimento que se esconde por detrs delase, sobretudo, nas concluses que delas decorrem inevitavelmente, no esprito do darwinismosocial.

    Se se pensa efetivamente que a evoluo do homem se faz pelo desenvolvimento doscaracteres transmissveis da espcie humana no podemos intervir no curso deste processo a no sercom medidas de melhoramento destes caracteres hereditrios. sobre esta idia que assenta aeugenia (isto , a teoria do melhoramento da espcie humana), fundada no princpio do sculo porFrancis Galton, autor da famosa obra O gnio hereditrio, suas leis e suas conseqncias.

    Para que se possam manter e desenvolver as faculdades humanas, os eugenistas exigemque se tome uma srie de medidas visando impedir a reproduo das raas e dos homensinferiores e o seu cruzamento com representantes superiores do gnero humano, os sangue azul.Ao lado destas medidas, encorajando a reproduo dos membros das classes privilegiadas dasociedade e das raas superiores, limitando, pelo contrrio, a reproduo das camadas inferiores da

    populao e dos povos de cor, os eugenistas pregam a necessidade de instaurar uma seleosexual artificial como a que se pratica para o apuramento de uma raa de animais domsticos. Oseugenistas mais reacionrios vo mais longe e preconizam a esterilizao obrigatria e mesmo aeliminao fsica das pessoas hereditariamente deficientes e de populaes inteiras. Vem nasguerras de exterminao um dos meios mais eficazes para melhorar a raa humana. Sabe-se queestas teses monstruosas e inumanas no ficaram apenas no papel; encontraram a sua aplicao

    prtica nos campos de morte fascistas e nos atos de violncia dos colonizadores racistas. A lutacontra estas idias, a denncia da sua essncia, antipopular e reacionria, no tem simplesmenteapenas uma significao terica abstrata; ela indispensvel para abrir caminho ao triunfo dasidias da democracia, da paz e do progresso da humanidade.

    O futuro da humanidade verdadeiramente grandioso est muito mais prximo do queimaginam aqueles que o esperam atravs de uma mudana de natureza biolgica. Hoje este futuroest vista; a prxima etapa da histria humana.

    O homem no nasce dotado das aquisies histricas da humanidade. Resultando estas dodesenvolvimento das geraes humanas, no so incorporadas nem nele, nem nas suas disposiesnaturais, mas no mundo que o rodeia, nas grandes obras da cultura humana. S apropriando-se delasno decurso da sua vida ele adquire propriedades e faculdades verdadeiramente humanas. Este

    processo coloca-o, por assim dizer, aos ombros das geraes anteriores e eleva-o muito acima domundo animal.

    Mas na sociedade de classes, mesmo para o pequeno nmero que usufrui as aquisies da

    humanidade, estas mesmas aquisies manifestam-se na sua limitao, determinadas pela estreitezae carter obrigatoriamente restrito da sua prpria atividade; para a esmagadora maioria das pessoas,a apropriao destas aquisies s possvel dentro de limites miserveis.

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    _________________13 H. Shapiro: Man 500 000 years from now,Journal of the American Mus. Of Natural History, 1933, n 6.

    Vimos j que isto conseqncia do processo de alienao que intervm tanto na esferaeconmica como na esfera intelectual da vida; que a destruio das relaes sociais assentes naexplorao do homem pelo homem, que engendram este processo, s ela pode por fim e restituir atodos os homens a sua natureza humana, em toda a sua simplicidade e diversidade.

    Mas um ideal acessvel o do desenvolvimento no homem de todas as suas aptideshumanas? A fora deste preconceito profundamente enraizado nos espritos, segundo o qual odesenvolvimento espiritual do homem tem a sua origem em si mesmo, to grande que ela a por o

    problema ao contrrio: no seria a aquisio dos progressos da cincia a condio da formao dasaptides cientficas, mas as aptides cientficas que seriam a condio desta aquisio: no ser aapropriao da arte a condio do desenvolvimento do talento artstico, mas o talento artstico quecondicionar a apropriao da arte. Citam-se em apoio desta teoria fatos que testemunham daaptido de uns e da incapacidade total de outros para tal ou tal atividade, sem mesmo se interrogamdonde vm estas aptides; tem-se geralmente a espontaneidade da sua primeira apario por provada sua idoneidade.

    O verdadeiro problema no est, portanto, na aptido ou inaptido das pessoas paras setornarem senhores das aquisies da cultura humana, fazer delas aquisies da sua personalidade edar-lhe a sua contribuio. O fundo do problema que cada homem, cada povo tenha a

    possibilidade prtica de tomar o caminho de um desenvolvimento que nada entrave. Tal o fimpara o qual deve tender agora a humanidade virada para o progresso.

    Este fim acessvel. Mas s o em condies que permitam libertar realmente os homensdo fardo da necessidade material, de suprimir a diviso mutiladora entre trabalho intelectual etrabalho fsico, criar um sistema de educao que lhes assegure um desenvolvimento multilateral eharmonioso que d a cada um a possibilidade de participar enquanto criador em todas asmanifestaes de vida humana.

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