leocÁdio, miguel - origens e problematicas da sociologia da literatura

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  • Rev. de Letras - N0. 27 - Vol. 1/2 - jan/dez. 20055 8

    ResumoEste artigo faz o percurso das origens da sociolo-

    gia da literatura aos seus desdobramentos no sculo XX,levantando os principais questionamentos presentes nosdiversos tericos comentados. Dessa forma, examinam-seos rumos tomados pelas pesquisas que vinculam literaturae sociedade em suas principais configuraes.

    Palavras-chave: Sociologia da literatura; literatura; so-ciedade.

    AbstractThis article studies the origins of the sociology of the

    literature until its developments in the 20. century, showingthe principal questions by the differents theoricians that wecomment. In this way, the paths of the recherches that makesthe relationship litterature and society are examinated.

    Keywords: sociology of literature; literature; society.

    1. INTRODUOA idia de que a obra literria, em sentido amplo,

    constitui uma representao da realidade parece ter certotrnsito entre os mais renomados tericos e estudiosos daliteratura, tais como Ren Wellek e Austin Warren1 , Erich

    ORIGENS E PROBLEM`TICA DASOCIOLOGIA DA LITERATURA

    Miguel Leocdio Arajo Neto*

    Auerbach2 , Afrnio Coutinho3 e outros. Adotando este pres-suposto bsico e ampliando-o em direo s indagaes emtorno das relaes entre literatura e sociedade, apresenta-se-nos a necessidade de uma reflexo sobre como os mtodossociolgicos de abordagem do texto literrio, ou mais especi-ficamente a chamada sociologia da literatura, entenderiam oproblema da representao da realidade pela literatura.

    A complexidade das questes relativas s relaesentre literatura e sociedade, e como, no sculo XX, a teoria ea crtica literrias as entendem, afigura-se-nos como umajustificativa possvel para o trabalho do pesquisador inte-ressado em compreender quais as especificidades da repre-sentao do fato social pela literatura.

    Pretendemos, em primeiro lugar, compreender maisacuradamente o significado do social, em seu sentido maisgeral, para os tericos da literatura. Paralelamente, tenciona-mos compreender como os tericos entendem que este so-cial absorvido pela literatura e nela representado.

    Nessa perspectiva, o presente trabalho faz ummapeamento da metodologia sociolgica aplicada ao estu-do da obra literria com vistas compreenso do modo comoo dado social4 identificado na literatura. Na primeira parte,apresentamos as origens das reflexes sobre a questo dasrelaes entre o literrio e o social que redundariam no esta-belecimento de mtodos para a Sociologia da Literatura. Jno captulo seguinte, passamos leitura de A teoria do ro-mance, de Georg Lukcs (2000), um dos baluartes do que secompreende como anlise sociolgica da literatura.

    * Especialista em Investigao Literria (UFC). Mestrando em Literatura Brasileira (UFC). Bolsista CAPES. Professor substituto do Departa-mento de Literatura da Universidade Federal do Cear.

    1 Comentando as relaes entre literatura e sociedade, Wellek e Warren (1971, p. 117) afirmam que a literatura representa a vida: e a vida

    , em larga medida, uma realidade social, no obstante o mundo da Natureza e o mundo interior ou subjetivo do indivduo terem sido,tambm, objeto de imitao literria.

    2 Auerbach (1976) escreveu um livro de ensaios que explica as mudanas, ao longo da histria da literatura ocidental, nas perspectivas (ou

    maneiras) de a literatura representar a realidade, tomando por base para seu estudo alguns dos maiores clssicos da literatura ocidental.3 Coutinho (1987, p. 728), ao conceituar a literatura, escreve: O literrio ou o esttico inclui precisamente o social, o histrico, o religioso,

    etc. (...) A literatura, como toda arte, uma transfigurao do real, a realidade recriada atravs do esprito do artista e retransmitidaatravs da lngua para as formas que so os gneros e com os quais ela toma corpo e nova realidade.

    4 Esclarea-se que partimos da idia de que o que chamamos de dado social remete ao fato social em seu sentido mais amplo, conceito

    adotado pelas cincias sociais: aquele dado capaz de apontar para uma determinada dinmica da sociedade ou para uma determinadaprtica social (Cf. Oliveira, 1984).

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    2. A REFLEXO SOCIOLGICA ACERCA DALITERATURA: AS ORIGENS

    comum pensar-se que a Sociologia da Literatura,enquanto sistema terico formalizado e capaz de lanar umolhar crtico sobre a obra literria, nasce com as reflexesde Marx e Engels (1986), colhidas de variados escritos dosdois pensadores e reunidas em Sobre literatura e arte, oucom as de Georg Lukcs (2000), vindas a lume com A teoriado romance, publicado pela primeira vez na Alemanha em1920. No entanto, este interesse dos pensadores em com-preender as relaes entre literatura e sociedade no re-cente, embora tenha tomado mais flego, principalmente,na segunda metade do sculo XX, com a publicao, naFrana, em 1963 (cf. Zraffa, 1976, p. 105-106), da referidaobra de Lukcs, bem como dos estudos, ainda na dcadade 1950, de Lucien Goldmann, um dos mais atuantesdivulgadores dos estudos sociolgicos aplicados litera-tura. Segundo Tadi (1992, p. 163), o que hoje podemoschamar de sociologia da literatura teria suas origens teri-cas ainda em princpios do sculo XIX.

    No entanto, e ao contrrio do que se poderia pensar,a Sociologia da Literatura tem suas origens tericas maisremotas, embora no menos importantes, na passagem dosculo XVIII para o XIX, sendo a Revoluo Francesa (1789),e as vrias transformaes sociais subseqentes na vidaintelectual europia, o evento histrico desencadeador deanseios por uma nova forma de pensar o mundo, a novasociedade e as novas formas de relao social, e, enfim, poruma nova forma de pensar o novo homem. Desta necessida-de intelectual de explicar o novo quele momento, tornar-se-ia inevitvel um novo olhar para a literatura e para a arte emgeral, como produes de um novo homem em uma novasociedade (Barbris, 1997).

    Os tericos e os historiadores da literatura conver-gem para Madame de Stal como a iniciadora de uma tradi-o terico-interpretativa que originaria alguns desdobra-mentos mesmo no sculo XX, sendo o seu De la littratureconsidere dans ses rapports avec les institutions sociales(publicado em 1800) a primeira tentativa de estabelecer umrelacionamento entre literatura e sociedade, pois elegeria ascategorias Zeitgeist, esprit dpoque, et Volksgeist, espritnational como fonte primordial para a compreenso do

    sistema literrio de um determinado pas ou de um determi-nado povo (Cf. Escarpit, 1964, p. 8; Barbris, 1997. p. 150).Tambm se articulando com a gnese dos estudos de litera-tura comparada, Madame de Stal proporia trs parmetrosde leitura, quais sejam: (a) uma leitura diacrnica do siste-ma literrio (privilegiando a idia de que a literatura sofretransformaes medida que as sociedades se transformam);(b) uma leitura espacial da literatura (afastando-se de ummodelo nico e universal e aproximando-se de uma antro-pologia literria (Barbris, 1997, p. 154), leitura pela qual asliteraturas nacionais passam a ser consideradas em suaespecificidade); (c) a leitura da contradio entre literaturanecessria e literatura de fato (o exame da problemtica dasrelaes entre uma pretensa necessidade de um determina-do tipo de literatura e a literatura que aparece de fato)5 .Madame de Stal coloca, ento, questes ainda hoje carasaos pesquisadores, por exemplo: de que forma uma literatu-ra nacional (e no mbito da literatura brasileira, no podera-mos deixar de tambm considerar as literaturas regionais) searticula com a/na histria do pas? Ou ainda: o que caracte-rizaria de fato uma literatura nacional?

    Ao mesmo tempo, aparece a discusso proposta porChateaubriand em O gnio do cristianismo (tambm de 1800):as relaes entre cultura pag e cultura crist determinariamtambm uma reflexo sobre os modelos cannicos e suasubverso e, portanto, sobre as configuraes dos diferen-tes discursos decorrentes da cultura, enquanto produese prticas sociais inseridas num determinado contexto his-trico. Ao tomar como referncia certa parte do teatro fran-cs do sculo XVII e, sobretudo, a tragdia de inspiraogreco-latina, Chateaubriand revela que, na verdade, a dic-o das personagens no , e nem pode mais ser, a dicoclssica pag, mas a da Frana contempornea crist. Istodemonstra como a interpenetrao de culturas se faz de modocomplexo, revelia de qualquer projeto esttico de adoode pressupostos de elaborao artstica alheios s prticasscio-culturais de um povo em determinado momento desua histria6 .

    Tambm neste perodo, em 1806, em artigo do Mercurede France (cf. Barbris, 1997, p. 150-153), Bonald retoma suafamosa frase, A literatura expresso da sociedade, antesaparecida em 17967 , o que vai ocasionar uma srie de pol-micas sobre a trama existente entre literatura, sociedade e

    5 Stal observa que, ao contrrio do que uma teorizao histrico-social podia deixar entrever, anseios diferentes daqueles que poderiam

    ou deveriam advir de uma determinada mudana histrico-social condicionariam o surgimento de uma literatura que respondesse a estesanseios diferentes (e inesperados), e no aos anseios que supostamente seriam a conseqncia de um determinado abalo social (e nestecaso deve-se acrescentar que ela estava considerando a Revoluo Francesa e suas conseqncias), conforme esclarece Barbris (1997,p. 155): Assim como uma poltica racional se inseria na seqncia lgica de O esprito das leis, uma prospectiva do literrio parece poderser a seqncia lgica dessa teorizao histrico-social: a nova Frana tem necessidade de uma grande literatura patritica e social queexalte os novos valores coletivos, que correspondem aos desejos dos indivduos. Mas Madame de Stal logo descobre um novo estado defato: a predominncia de novos egosmos na sociedade consular, o aumento do individualismo e da ambio.

    6 Goldmann (1959, p. 347-446), em Le dieu cach, retoma, sob ponto de vista diverso, a discusso sobre o teatro de inspirao neoclssica

    no sculo XVII enquanto viso trgica de seu tempo, conforme o ltimo captulo de seu estudo, La vision tragique dans le thatre deRacine.

    7 Trata-se do ensaio Thorie du pouvoir politique et religieux dans la socit civile, dmontr par le raisonnement et par lhistoire (cf.

    Ricciardi, 1971, p. 109).

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    histria ocorridas entre os crticos do Le Globe e oprestigiado romancista Stendhal. Embora tivesse comointeno original afirmar que cada povo tem a literaturaque merece (portanto adotando, a priori, um critrio dejulgamento valorativo scio-literrio), a frase est na ori-gem do estabelecimento de um tipo de compreenso daproduo literria: a do condicionamento da literatura pelocarter da sociedade, afirmao que geraria seus des-dobramentos posteriores.

    A partir da segunda metade do sculo XIX, as contri-buies para a formalizao de uma sociologia da obra lite-rria vo aumentar consideravelmente, recebendo influnci-as inclusive das teorias cientficas em vigor na poca.

    Hyppolite Taine esboa, por volta de 18538 , a suateorizao determinista atravs do trinmio raa-meio-mo-mento, cuja principal ressonncia seria a de relacionar, oucondicionar, uma realizao literria (e, portanto, a persona-lidade que a produziu) a um contexto que no apenas his-trico, mas tambm cultural, social e racial. Desta forma, aproduo literria estaria irremediavelmente (e a priori) con-dicionada a elementos exteriores a ela. Esta perspectiva deestudo da obra literria acarretaria em problemas para o pr-prio mtodo, cuja principal acusao sofrida a de relegar arealidade interna das obras a segundo plano em benefcioda explicao dos fatores condicionantes.

    Este seria um fraco esboo de panorama sobre a evolu-o da compreenso das relaes entre literatura e sociedade.

    3. UMA OBRA FUNDAMENTAL DA SOCIO-LOGIA DA LITERATURA: GEORG LUKCS EA TEORIA DO ROMANCE

    A teoria do romance de Georg Lukcs foi publicadapela primeira vez em livro em 1920, embora tenha aparecidoantes na Zeitschrift fr sthetik und allgemeineKunstwissenschaft [Revista de esttica e de histria (cin-cia) geral da arte] e tenha sido esboada e redigida entre1914 e 1915. A motivao para sua escrita, segundo o pre-fcio edio de 1962 (Lukcs, 2000, p. 7-19), teria sido aecloso da primeira guerra mundial em 1914. Trata-se, por-tanto, de um impulso intelectual que aparentemente aindaest distante da extrao marxista a que o autor freqentemente associado e pela qual orientou-se posteri-ormente. Mesmo assim, o prprio Lukcs, no mesmo pref-cio, assume que as preocupaes de matriz marxista j es-tavam ali presentes de forma embrionria, j que, como osubttulo da obra deixa entrever, a tnica dada a histri-co-filosfica.

    Teoria e crtica se mesclam nesta obra, cuja divisooferece duas perspectivas: uma terica com intenes filo-sficas (As formas da grande pica em sua relao com o

    carter fechado ou problemtico da cultura como um todo)e uma classificatria (Ensaio de uma tipologia da formaromanesca), tomando por base algumas obras.

    A primeira parte est dividida em cinco captulos quepretendem fazer o percurso filosfico da natureza do gneropico (tomando o romance como a forma possvel para avariao e evoluo da pica) e suas relaes histrico-filo-sficas com a sociedade e, portanto, com a cultura.

    No primeiro captulo, intitulado Culturas fechadas,a epopia aparece como exemplo paradigmtico do condici-onamento (da influncia) de uma cultura, a grega (do pero-do helenstico), na constituio de um gnero. A culturagrega, sendo perfeita, acabada, e portanto fechada, s po-deria dar condies ao aparecimento de um gnero como aepopia. Com o declnio da civilizao grega, torna-se na-tural o declnio da epopia como forma do gnero pico,que dar lugar a outros tipos de formas narrativas que tra-duzam melhor o esprito da poca, como seria o caso doromance. No entanto, parece importante lembrar que a epo-pia sobrevive aos tempos, o que seria considerado porLukcs com uma sobrevivncia puramente formal, j queculturas fechadas no existem mais, fora do contexto grego.

    O segundo captulo, O problema da filosofia hist-rica das formas, dedica-se s questes relativas com-preenso do surgimento e do desaparecimento (ou enfra-quecimento) de certas formas literrias. Tratandofilosoficamente destas questes e aventando categoriasfilosficas, tais como transcendncia, empiria, vida, alma,etc., ele parece querer tentar provar que o surgimento deum gnero (o romance, p. ex.), o desaparecimento ou oenfraquecimento de um gnero (a epopia, p. ex.) ou a ma-nuteno (modificada) de um gnero (a tragdia, por ex.)condicionam-se tambm por fatores empricos (sociolgi-cos ou sociais). Na verdade, o autor afirma que a razodestes trs processos a mesma: o fato de a existnciaperder sua totalidade espontaneamente integrada e pre-sente aos sentidos (Lkacs, 2000, p. 44). Isto equivale adizer que, por causa da perda da imanncia de uma existn-cia histrico-filosfica considerada acabada, a epopiadesaparece, a tragdia se modifica e um outro gnero (oumelhor uma outra forma, o romance) nasce.

    Tomando por base o exemplo grego, mesmo na civili-zao em que foram gerados (a Grcia), os gneros sofreraminfluncia emprica direta dos abalos culturais resultantesdas coincidncias entre histria e filosofia da histria, o queresultaria que cada espcie artstica s surgisse quando suahora houvesse chegado e desaparecesse quando seus ar-qutipos sociais morressem, desaparecessem. Isto podeexemplificar com clareza, segundo as colocaes de Lukcs,a influncia da realidade emprica, social, histrica sobre osistema literrio.

    8 Segundo Barbris (1997, p. 159), com a publicao de La Fontaine et ses fables, estas reflexes sobre as trs categorias defendidas por

    Taine raa, meio e momento estariam na pauta do dia das discusses literrias.

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    No terceiro captulo, denominado Epopia e roman-ce, as duas formas literrias em questo so comparadas.Ambas pertencem ao sistema da grande pica (Lukcs,2000, p. 55) enquanto gnero maior, mas o que as diferenci-aria so os dados histrico-filosficos que importam na suaconfigurao. Neste sentido, enquanto a epopia seria ognero referente a uma era em que a perfeio e a imannciada vida eram fatos, o romance seria a pica de uma era paraa qual a imanncia do sentido vida tornou-se problemti-ca (id. ib.), mesmo tendo por inteno a totalidade. A partirdesta idia, o autor busca uma definio de cada gneroatravs da busca no s de seus aspectos constitutivos,inclusive interpretando o papel do verso e da prosa na suaconstituio interna, mas tambm do efeito causado peloutilizao destes elementos configuradores de gnero.

    O aspecto fundamental, eleito por ns, na compreen-so do condicionamento social sofrido pelo romance seria ofato de o romance buscar descobrir e construir, pela forma,a totalidade oculta da vida (id., p. 60), sendo portanto aexpresso de uma busca, considerando a perspectiva dosujeito (a personagem, o heri). Este heri que busca cons-titui o eixo fundamental do que Lukcs chama de heri pro-blemtico, conceito que nos interessa em especial por seuaspecto de descompasso do sujeito em relao ao mundo;este heri nasce de um alheamento em face do mundo exte-rior (id. p. 66), o que nos remete ao conceito deestranhamento. Ao contrrio do heri da epopia, que nun-ca representa apenas um indivduo mas toda uma comuni-dade, o heri romanesco representa o indivduo que luta eresiste a uma realidade hostil sua existncia, tornando-ouma personalidade (id. p. 69). Este descompasso frente aomundo, aspecto constitutivo essencial do heri problemti-co, seria tambm mais um desdobramento da empiria comofator determinante das formas literrias. E aqui parece ne-cessrio mencionarmos sobretudo a constituio de umasociedade individualista a partir da ascenso da burguesia,poca em que o romance passa a ser uma forma privilegiadajunto ao pblico. Se trouxermos esta reflexo para acontemporaneidade (a partir da segunda metade do sculoXX, como do nosso interesse), imaginamos que esta refle-xo pode tomar rumos ainda mais contundentes; mas istodemandaria outro estudo.

    Dando continuidade reflexo sobre os aspectosfundamentais do romance, Lukcs, no captulo intituladoA forma interna do romance, usa uma metfora para des-crever de forma bastante geral a natureza do gnero: Oromance a forma da virilidade madura (id. p. 71). Com isso,o filsofo quer contrapor a imperfeio (do ponto de vistaobjetivo) e a resignao (do ponto de vista subjetivo) domundo do romance aos mundos dos outros gneros.

    O romance, adotando o indivduo como personagem,constitui uma forma, pelo menos em seu aspecto exterior,essencialmente biogrfica, o que revela um sintoma dacontingncia de um mundo, de sua fragmentao, de sua

    descontinuidade e, em contrapartida, de seu individualis-mo: Mundo contingente e indivduo problemtico so rea-lidades mutuamente condicionantes (id. p. 79). Isto deter-minaria a forma interna do romance, j que o heriproblemtico a personagem que busca; e neste sentido, ocaminho da busca seria rumo ao conhecimento de si mesmo,posto que o mundo mostra-se inapreensvel.

    Condicionamento e significado histrico-filos-fico do romance, ltimo captulo da primeira parte dolivro, retoma as idias iniciais das relaes entre os gne-ros, a cultura e a histria, introduzindo ainda alguns as-pectos constitutivos do romance, tais como a ironia, amelancolia, o mundo sem deus. Esta reflexo contm umdos axiomas de Lukcs mais repetidos pela teoria e pelacrtica literria: O romance a epopia do mundo aban-donado por deus; a psicologia do heri romanesco ademonaca (id., p. 89), o que parece influenciar toda umacompreenso posterior do gnero romanesco e suas rela-es com o contexto histrico-filosfico. A busca do he-ri problemtico autntica, embora o mundo oferea adegradao dos valores como perspectiva, tornando estabusca uma procura de si mesmo, enquanto possvel valorsobrevivente num mundo desarticulado.

    Na segunda parte de A teoria do romance, Lukcsaventa quatro tipos genricos da configurao romanesca,tomando por base pressupostos filosficos, atravs dosquais aprofundar a reflexo feita na primeira parte.

    O idealismo abstrato retoma o tema da inadequaodo indivduo frente ao mundo, dividindo esta inadequaoem dois tipos: o personagem-indivduo cuja alma inferiorao mundo e o personagem-indivduo cuja alma superior aomundo. No primeiro caso, temos o fracasso do homem emsua busca, em seu contato com a realidade (id., p. 99-100),no sem o estabelecimento de um conflito e sua traduo emao, o que constituiria a representao do idealismoabstrato. J o romantismo da desiluso, outro tipo deconfigurao filosfica do romanesco, representa a segundaforma de inadequao indivduo-mundo: a do personagem-indivduo cuja alma superior ao mundo. Neste caso, temosa luta entre uma realidade interior (a do heri) e uma realidadeexterior (o mundo). A diferena entre os dois tipos residiriano fato de que, no caso do idealismo abstrato, o descom-passo eu-mundo gera a luta, a busca; enquanto que, para oromantismo da desiluso, o mesmo descompasso gera aevaso e a tendncia do heri passividade, fazendo comque ele se exima da participao, mesmo concernindo ao seudestino individual, em lutas e conflitos externos. O resultadoformal disto seria, neste tipo romanesco, a constantepresena nebulosa e no-configurada de estados de nimoe reflexes sobre estados de nimo, a substituio da fbulaconfigurada sensivelmente pela anlise psicolgica (id., p.118). Tal observao, que inegavelmente remete narrativaromntica e a algumas de suas matrizes anteriores, parececonvergir para parte das prprias configuraes do romance

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    do sculo XX, que privilegia o personagem e esmaecefabulao, tempo e espao, como forma de ressaltar oindivduo e sua problemtica.

    As duas ltimas configuraes romanescas descri-tas por Lukcs, que correspondem tambm aos dois ltimoscaptulos do livro, assentam-se em casos especficos eparadigmticos: um de Goethe e outro de Tolstoi.

    No primeiro caso, o terico toma Os anos de apren-dizado de Wilhelm Meister como paradigma de uma tenta-tiva de sntese dos dois aspectos mostrados anteriormen-te, o idealismo abstrato e o romantismo da desiluso, j queo tema do romance a reconciliao do indivduo proble-mtico, guiado pelo ideal vivenciado, com a realidade con-creta (id. ib.). Trata-se, portanto, da configurao romanes-ca em que se observa a passagem de uma situao de conflitocom o mundo para o encontro da harmonia com o mesmo;passagem esta que se faz de modo penoso, significando ainterveno do indivduo sobre a realidade social. Nestesentido, o redimensionamento do ideal, a superao da soli-do e da acomodao, a conscientizao para a necessidadede ao so os temas que tm na crena no homem (enquan-to indivduo a ter suas qualidades desenvolvidas) e na hu-manidade (enquanto estrutura histrico-filosfica) seu temamaior. Isto seria a estrutura do que se costuma chamar deBildungsroman (romance de educao ou romance de for-mao), pois

    a sua ao tem de ser um processo consciente, con-duzido e direcionado por um determinado objetivo:o desenvolvimento de qualidades humanas que ja-mais floresceriam sem uma tal interveno ativa dehomens e felizes acasos; pois o que se alcana des-se modo algo por si prprio edif icante eencorajador aos demais, por si s um meio de edu-cao. (id., p. 141).

    O ltimo captulo do livro, Tolsti e a extrapolaodas formas sociais de vida, examina a obra de Tolsti comouma criao que ultrapassa os dados da configuraoemprica da vida em busca de uma transcendncia que seaproxima dos ideais da epopia. A eleio da comunidade,mesmo que de homens simples e ligados natureza, parecequerer excluir da obra romanesca o descompasso entre ho-mem e mundo, negando aparentemente o prprio esprito dapoca. No entanto, este tipo romanesco tambm se vinculaaos anteriores exatamente pela negao: ao aproximar-se dasfronteiras de um mundo pico, cuja transcendncia nomais possvel vislumbrar dada sua ligao com uma cultu-ra j extinta, revela uma oposio ao mundo social emprico,enquanto demonstrao de sua indesejabilidade. Trata-sedo retrato do mundo que poderia e deveria ser, mas no . Eesta contradio, Lukcs identifica como rica e profcua.

    Ao estudar o modo como um gnero literrio (seuaparecimento, enfraquecimento ou transformao) est su-jeito a injunes culturais e histricas e ao esboar uma

    tipologia do gnero com base em pressupostos filosficosque elegem o indivduo e seu entorno como motivo, Lukcsestaria lanando as bases tericas do que se configurarianas diferentes orientaes da sociologia da literatura aolongo do sculo XX, chegando a ser considerado porGoldmann (1973, p.43) como o verdadeiro iniciador da so-ciologia da literatura.

    4. O CAMPO METODOLGICO E AS PERS-PECTIVAS OPERACIONAIS DA SOCIOLOGIADA LITERATURA

    importante ressaltar que o campo metodolgico dasociologia da literatura se ampliou a partir da contribuiode diversos pensadores, tais como Walter Benjamin, TheodorAdorno, Arnold Hauser, Jean-Paul Sartre, entre outros. Se,por um lado, estas contribuies geraram divergnciasmetodolgicas, por outro demonstrou-se a possibilidade deinvestigar as relaes entre literatura e sociedade delimitan-do campos especficos de pesquisa (algumas vezes em di-logo com outros campos), dando sociologia da literaturauma amplido de perspectivas investigativas todiversificadas quanto as da sociologia.

    As tendncias de delimitaes metodolgicas para oestudo sociolgico da literatura, grosso modo, tm se apre-sentado mais freqentemente da seguinte forma (cf. Ricciardi,1964, p. 71-100; Candido, 2002, p. 3-15):

    o estudo marcado pelo exame, e pelo relaciona-mento, entre um determinado corpus no mbitoliterrio (p. ex. uma determinada manifestao numdado estilo de poca, um gnero, etc.) e as condi-es histrico-sociais;

    o estudo centrado na considerao do autor e desua situao histrico-social, bem como de suasituao no campo intelectual; neste mbito podesituar-se inclusive o estudo do escritor e suascondies de produo, problemas de remunera-o, etc.;

    o estudo centrado em problemas relativos obraliterria, sua publicao, distribuio, circulao,incluso no cnone literrio, etc.;

    o estudo centrado no pblico leitor e sua relaocom as obras: o consumo, o sucesso (ou insu-cesso) de obras, ressonncias provocadas pelasobras (nos leitores), etc.

    Estas perspectivas de estudo, entre outras ligadas sociologia da literatura, podem trazer um problema para osestudos literrios, como observa Luiz Costa Lima: subordi-nar a obra literria ao propsito de entendimento dos me-canismos em operao na sociedade (Lima, 1983, p. 105).Tambm Antonio Candido (2002) aventa a possibilidade deo valor e o significado da obra serem relegados em benefcioda explicao sociolgica, tornando o dado exgeno ao tex-

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    to literrio o verdadeiro motor da anlise. No entanto, nomesmo ensaio, Candido reconhece perceber uma atitude demudana, por parte dos tericos e dos crticos, na constitui-o do mtodo, qual seja, o do estudo do elemento social naobra no mais como uma relao de condicionamento meio-obra (sendo a obra, desta forma, uma ilustrao de determi-nadas dinmicas sociais), mas numa perspectiva deinteriorizao do elemento social como elemento estru-turador da obra.

    A sociocrtica, por seu turno, ensaiaria devolver obra literria seu estatuto artstico, pois pretende estudar otexto em si, incluindo a os juzos de valor e o exame dosdiscursos associados a determinadas ideologias. Por outrolado, a sociocrtica no ficou livre da ressalva de ser, emalguns momentos, uma leitura imanentista que procura exa-minar a presena da representao de certas prticas soci-ais, s colocando perifericamente a relao da obra com de-terminado momento histrico-social.

    Se todas estas leituras vinculadas sociologia, le-gtimas em suas bases, como quaisquer outras leituras,colocam problemas, deve-se ao fato de que talvez nenhu-ma leitura deva requerer para si o estatuto de explicaoda totalidade da obra. Porm todas estas leituras do umaidia dos rumos tomados, e por tomar, numa pesquisaque pretenda considerar as relaes existentes entre lite-ratura e sociedade.

    H tambm que se considerar que a construo demodelos de anlise podem encontrar a facilidade das gene-ralizaes tericas, mas tambm podem encontrar a dificul-dade de confrontao com obras ou autores especficos,dada a complexidade e a pluralidade de discursos presentesnas obras. E neste caso, para suprir esta dificuldade, recor-re-se ao recorte terico como forma de superar as limita-es dos mtodos.

    Antonio Candido, no j referido ensaio, observa que possvel um tipo de anlise que possa conjugar os fatoressociais e a realizao literria, sem desconsiderar os dadosestticos das obras especficas, ainda mais quando o estu-dioso tenta identificar qual o papel daqueles fatores na con-formao da estrutura interna das obras. Ampliando estepensamento, consideramos a possibilidade de esta perspec-tiva de estudo ser enriquecida por uma investigao do pa-pel exercido pelas obras na sociedade, o que demandariatambm uma reflexo sobre a recepo destas obras nosdiversos circuitos de leitura. Contemplar as diversas instn-cias da criao literria (sociedade, autor, obra, leitor), antesde ser uma tarefa, poder vir a ser uma possibilidade dereconsiderao do mtodo.

    5. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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