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Leituras de Raynal e a ilustração na América Latina Roberto Ventura A Filosofia das Luzes e as Carnadas Letradas Latino-Americanas Publicada em 1772, a Histoire des Deux Indes do Abade Raynal foi um dos maiores sucessos do mercado editorial francês no século XVIII. De 1772 a 1780, quando aparece o texto definitivo, são lançadas pelo menos dezessete edições integrais, além de algumas antologias. A versão de 1780 terá mais dezessete edições até 1787. Abordando a história dos impérios coloniais europeus desde a descoberta da América, a História de Raynal exerceu grande influência no Novo Mundo, chegando a vender, em versão condensada, 25 mil exemplares nos Estados Unidos 1 . Mas, ao contrário de outros bestsellers da época, como o Candide de Voltaire, La Nouvelle Héloise de Rousseau e a Encyclopédie de Diderot e D'Alembert, a obra de Raynal foi sendo esquecida ao longo do século XIX. As diferentes leituras da Histoire des Deux Indes na América Latina se inserem nas condições de recepção e reinterpretação dos modelos da Ilustração nas colônias portuguesas e espanholas. As "idéias francesas", como se dizia então, se difundiram entre a elite colonial, que apresentava, como marca de distinção, tanto a passagem pelo sistema de educação, quanto a pertença ou o acesso ao círculo dos funcionários, comerciantes e proprietários. As Luzes se propagaram como debate e discussão de idéias e princípios no seio das camadas letradas, excluindo a maioria da população, formada de indígenas, negros, mestiços e indivíduos sem propriedade 2 . Viajando pela América do Sul e pelo Caribe de 1799 a 1804, Humboldt observa que os criollos ou "americanos" manifestavam, sobretudo após 1789, seu ressentimento com os privilégios concedidos pelo governo aos espanhóis. Aos criollos eram negados na América hispânica os direitos de participação na administração pública e nos postos públicos desfrutados pelos "peninsulares", criando "motivos de inveja e de raiva perpétua" entre os dois grupos 3 . Além dessa animosidade, o interesse dos comerciantes e proprietários de terras de romper com o monopólio comercial e com os direitos fiscais da Coroa contribuiu para a difusão das idéias ilustradas. A oralidade é a forma dominante de comunicação na sociedade ibero-americana em fins do século 1 BENOT, Y. Avertissement. In: RAYNAL, G.T. Histoire philosophique & politique des Deux Indes. Paris, Maspero, 1981 e LUESEBRINK, H.J. Enzyklopaedismus als 'Sprache der Freiheit'. In: BADER, W. e RIESZ, J., org. Literatur und Kolonialismus /. Frankfurt/M., Bern, Peter Lang, 1983. 2 RINCÓN, C. Die Aufklaerung im spanischen Amerika. In: KRAUSS, W. Die Aufklaerung in Spanien, Portugal und Lateinamerika. Muenchen, W. Fink, 1973. p. 236. 3 HUMBOLDT, A.V. Essai politique sur le Royanme de la Nouvelle-Espagne. Paris, F.Schoell, 1811.v.2, p. 2.

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Page 1: Leituras de Raynal e a ilustração na América Latina · of Man de Thomas Paine também estavam proibidos. O controle de obras, sob a responsabilidade da Inquisição, do Santo Ofício

Leituras de Raynale a ilustraçãona América LatinaRoberto Ventura

A Filosofia das Luzes e as CarnadasLetradas Latino-Americanas

Publicada em 1772, a Histoire desDeux Indes do Abade Raynal foi umdos maiores sucessos do mercadoeditorial francês no século XVIII. De1772 a 1780, quando aparece o textodefinitivo, são lançadas pelo menosdezessete edições integrais, além dealgumas antologias. A versão de 1780terá mais dezessete edições até 1787.Abordando a história dos impérioscoloniais europeus desde a descobertada América, a História de Raynalexerceu grande influência no NovoMundo, chegando a vender, em versãocondensada, 25 mil exemplares nosEstados Unidos1. Mas, ao contrário deoutros bestsellers da época, como oCandide de Voltaire, La NouvelleHéloise de Rousseau e a Encyclopédiede Diderot e D'Alembert, a obra deRaynal foi sendo esquecida ao longodo século XIX.

As diferentes leituras da Histoire desDeux Indes na América Latina seinserem nas condições de recepção ereinterpretação dos modelos daIlustração nas colônias portuguesas eespanholas. As "idéias francesas",como se dizia então, se difundiramentre a elite colonial, que apresentava,como marca de distinção, tanto a

passagem pelo sistema de educação,quanto a pertença ou o acesso aocírculo dos funcionários, comerciantese proprietários. As Luzes sepropagaram como debate e discussãode idéias e princípios no seio dascamadas letradas, excluindo a maioriada população, formada de indígenas,negros, mestiços e indivíduos sempropriedade2.

Viajando pela América do Sul e peloCaribe de 1799 a 1804, Humboldtobserva que os criollos ou"americanos" manifestavam,sobretudo após 1789, seuressentimento com os privilégiosconcedidos pelo governo aosespanhóis. Aos criollos eram negadosna América hispânica os direitos departicipação na administração públicae nos postos públicos desfrutadospelos "peninsulares", criando"motivos de inveja e de raivaperpétua" entre os dois grupos3. Alémdessa animosidade, o interesse doscomerciantes e proprietários de terrasde romper com o monopólio comerciale com os direitos fiscais da Coroacontribuiu para a difusão das idéiasilustradas.

A oralidade é a forma dominante decomunicação na sociedadeibero-americana em fins do século

1 BENOT, Y. Avertissement. In: RAYNAL, G.T. Histoire philosophique & politiquedes Deux Indes. Paris, Maspero, 1981 e LUESEBRINK, H.J. Enzyklopaedismus als'Sprache der Freiheit'. In: BADER, W. e RIESZ, J., org. Literatur und Kolonialismus/. Frankfurt/M., Bern, Peter Lang, 1983.

2 RINCÓN, C. Die Aufklaerung im spanischen Amerika. In: KRAUSS, W. DieAufklaerung in Spanien, Portugal und Lateinamerika. Muenchen, W. Fink, 1973.p. 236.

3 HUMBOLDT, A.V. Essai politique sur le Royanme de la Nouvelle-Espagne. Paris,F.Schoell, 1811.v.2, p. 2.

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XVIII, persistindo até o século XX. Arevolução bibliográfica, trazida com adivulgação das obras de Volney,Raynal, Mably, Rousseau, Voltaire,Montesquieu, Diderot e D'Alembert,implicou um impacto considerável dacultura escrita e tipográfica emsociedades fortemente orais4. Essarevolução das formas de consciência ede representação se realizou atravésda mediação tradutora einterpretativa dos grupos letrados,detentores da linguagem escrita.

A formação dos letrados se dava noscentros de ensino, como os colégios euniversidades em Lima, México eBuenos Aires, no caso da Américahispânica. No Brasil, as possibilidadesde formação se encontravam restritasaos colégios secundários, controladospelos jesuítas até sua expulsão em1759, limitando-se a alfabetização aossetores sociais dominantes. Aausência de faculdades no Brasiltornava necessária a permanência naEuropa, em particular nasuniversidades de Coimbra eMontpellier, para a aquisição deeducação superior. Tal fato provocouuma extrema restrição dos círculosletrados e da difusão das Luzes nacolônia portuguesa. Enquanto naAmérica hispânica 150 mil indivíduosrealizaram estudos superiores até ofim da época colonial, houve, de 1772a 1872, em um período de cem anos,1.242 estudantes brasileiros naUniversidade de Coimbra5.

As idéias ilustradas viajavam denavio, chegando ao Novo Mundoatravés das estadias de americanos naEuropa, da passagem de europeus nascolônias ou por meio da importaçãoou contrabando de livros, opúsculos eperiódicos. A Histoire des Deux Indese outras obras centrais para a difusãodos princípios filosóficos e políticos

das Luzes, como o Contrat Social deRousseau, Des Droits et des Devoirsdu Citoyen de Mably, a Encyclopedicde Diderot e D'Alembert, The Historyof America de Robertson, seencontram presentes em muitasbibliotecas do período colonial, apesarde sua proibição pela censura ibérica.

Em Portugal e no Brasil eramproibidos sobretudo autores franceses,como Raynal, D'Alembert, Buffon,Condorcet, Condillac, Diderot,Mably, Montesquieu, Rousseau,Voltaire, em uma lista que incluía amaior parte dos filósofos daIlustração. A censura portuguesahavia vetado ainda os Essais deMontaigne, La princesse de Clèves deMme. de la Fayette, as Fábulas de LaFontaine, os Contes Moraux deMarmontel. Diversos livros traduzidosna língua francesa se encontravamproscritos, ou podiam ser lidossomente com licença, como obras dePope, Swift, Sterne, Goethe,Robertson, Hume, Hobbes e Locke.The Wealth of the Nations de A.Smith e a tradução francesa de Rightsof Man de Thomas Paine tambémestavam proibidos. O controle deobras, sob a responsabilidade daInquisição, do Santo Ofício e do Rei,é unificado em 1768 pelo futuroMarques de Pombal com a criação daReal Mesa Censoria, organismosubstituído em 1787 pela ComissãoGeral para o Exame e a Censura dosLivros6.

Na Espanha e na América hispânica, aHistória de Raynal foi proibida pelaInquisição em 1779. A"Enciclopédia" é banida desde 1759.O Index espanhol de 1790 vetavalivros de Bayle, Bossuet, Diderot,Helvétius, Holbach, La Fontaine,Marmontel, Montaigne, Montesquieu,Rousseau e Voltaire. O suplemento ao

A oralidade é a formadominante de

comunicação nasociedade

ibero-americana emfins do século XVIII,

persistindo até o séculoXX.

4 MOTA, C.G. Nordeste 1817. Estrutura e argumentos. São Paulo, Perspectiva, 1972.p. 31.

5 CARVALHO, J.M. A construção da ordem. A elite política imperial. Rio de Janeiro,Campus, 1980. p. 21, 57-68.

6 MORAES, R.B. Livros e bibliotecas no Brasil colonial. Rio de Janeiro/São Paulo,Livros Técnicos e Científicos, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1979.p. 51-7.

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Index de 1805 acrescentou à relaçãoCondillac, Condorcet, Necker, aversão francesa de An EssayConcerning Human Understanding deLocke, e as obras de Mably eVoltaire7.

Apesar das restrições à venda ecirculação das obras dos autoresmencionados, elas se encontravam emum grande número de bibliotecas,chegando ao Novo Mundo comrelativa rapidez. A Histoire des DeuxIndes, cuja primeira edição data de1772, era discutida entre osinconfidentes mineiros de 1789. DesDroits et des Devoirs du Citoyen deMably, publicado em 1789, é objetode interrogatórios na devassa de 1794contra a Sociedade Literária do Rio deJaneiro. Em Portugal, o Marquês dePombal possuía livros proibidos,como Two Treatises of Governmentde Locke, Les Lettres Persones deMontesquieu, Utopia de T. Monis. OCorreio Brasiliense, editado emLondres por Hipólito da Costa, seencontrava interdito, sendo lido,apesar de tudo, na Corte do Rio deJaneiro, inclusive pelo PríncipeRegente. Publicações proscritas, comoa Enciclopédia e a História deRaynal, podiam ser consultadas nabiblioteca pública de Salvador ou nado Colegio de San Marcos em Lima8.

A censura dificultava a difusão dasobras colocadas no Index, mas nãochegava a impedi-la, ainda que osinfratores fossem passíveis de sançõeslegais. As interdições despertavampossivelmente o interesse pelasleituras de obras tidas como perigosase subversivas e os livros eram, emgeral, banidos muito tempo após suadistribuição. Em uma carta de 1776 aoMarquês de Pombal, o Bispo de São

Paulo denuncia a presença de "maus"livros entre o clero da cidade,revelando os obstáculos à implantaçãono Brasil dos decretos da censurametropolitana:

"Escolhi o modo mais suave de lhe[ao clero] introduzir bons livros, masnão posso extinguir os maus, porqueas Leis, e Editais da Real MesaCensoria, (...) ou não chegaram a estaCidade, ou nela não tiveram, quem asexecutasse, e ficou suspenso o seupreciso efeito"9.

Os inquéritos e processos contra osparticipantes das inconfidências de1789 em Minas Gerais, de 1794 noRio de Janeiro, de 1798 na Bahia, de1801 em Pernambuco e da insurreiçãode 1817 no Nordeste contêm mençõesou inventários das obras e bibliotecasconfiscadas. Uma das maiorescoleções pertencia ao Cônego LuísVieira da Silva, envolvido naconspiração de 1789 em Vila Rica.Sua biblioteca, bastante vasta para ospadrões da época, compreendia 270obras, em um total de 800 volumes,dentre os quais se incluíam dois tomosda Encyclopedic, as Observations surle Gouvernement des États Unis del'Amérique de Mably, L'Esprit deslois de Montesquieu, a traduçãofrancesa de The History of America deRobertson, livros de Voltaire,Marmontel, B. de Saint-Pierre,Condillac, Lafitau, além de diversosvolumes de teologia, direito canônicoe historia eclesiástica. O cônegopossuía ainda obras representativasdas Luzes ibéricas, como OVerdadeiro Método de Estudar deVerney e o Teatro Crítico Universaldo Padre Feijoo10.

Segundo uma testemunha, o Cônego"lia" com freqüência a Histoire de

7 HUSSEY, R.D. Traces of Enlightenment in colonial Hispanic America. In:WHITAKER, A.P., org. Latin America and the Enlightenment. New York, CornellUniversity Press, 1961. p. 25.

8 MORAES, op. cit., p. 57-9, 159.

9 ELLIS, M. Documentos sobre a primeira biblioteca pública oficial de São Paulo.Revista de História. São Paulo, 14 (29): 387-447, 1957.

10 FRIEIRO, E. O diabo na livraria do cônego. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1957 eADIM. Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Rio de Janeiro, BibliotecaNacional, 1936. v. l, p. 436; v. 5, p. 279.

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mandado queimar por SuaMagestade"12.

O potencial subversivo do texto deRaynal se realizaria, segundo essetestemunho, na passagem à açãopolítica, legitimada por uma "fala aoPovo" e ratificada por um letrado. Oacusado Domingos Vidal Barbosateria divulgado as idéias do Abadecom uma tal eloqüência que chegava asaber de cor algumas passagens daobra. Uma outra testemunha afirma terouvido dos conspiradores que:

"o Abbade Raynal tinha sido umescriptor de grandes vistas; porqueprognosticou o levantamento daAmerica Septentrional, e que aCapitania de Minas Gerais com olançamento do tributo da derramaestaria agora nas mesmascircumstancias"13.

A inconfidência de 1798 na Bahia, deque participam pequenos artesãos,antigos plantadores de cana e militaresde baixa posição, adquire um carátermais social do que anticolonial14. Ainfluência das idéias esclarecidas edos modelos revolucionários

11 ADIM. Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Rio de Janeiro, Bibl. Nacional,1936. v. l, p. 110-11.

12 Ibid., v. 4, p. 180.

13 Id. ibid., p. 207.

14 MOTA, C.G. Idéia de Revolução no Brasil (1789-1801). Estudo das formas depensamento. Petrópolis, Vozes, 1979. p. 89.

l'Amérique anglaise, provavelmente atradução francesa do livro deRobertson:

"elle testemunha era amigo intimo doConego Luis Vieira, filho destasMinas; mas que observava nelle umastantas cousas, que se fôra Rei, lhemandava cortar a cabeça, (...) semprevia empregado aquelle Conego dossuccesses da America Ingleza; lendo asua Historia; a uma naturalcomplacencia no exito, que os ditosrebeldes Americanos tiveram"¹¹.Outro acusado, Dr. José Pereira,possuía a História das Duas índias euma coleção das leis constitutivas dosEstados Unidos, que figuraram comopeças de acusação no processo. Ainfluência das idéias de Raynal érevelada por alguns depoimentos:"ouviu dizer (...) que havia um livrode um Autor Francez, que estava namão de um Doutor (...) o qual no fimtrazia o modo de se fazerem oslevantes que era cortando a cabeça aoGovernador e fazendo uma fala aoPovo e repetida por um sujeitoerudito, e que este livro tinha sido

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estrangeiros ultrapassa os quadros daelite, sendo propagados slogans daRevolução Francesa em manifestosque revelam a aspiração a umasociedade igualitária, em que asdiferenças raciais não representembarreiras aos cargos e à mobilidadesocial. Foram encontrados, com seusparticipantes, cadernos comtranscrições de textos de Rousseau euma tradução manuscrita da obra deVolney, com o título de Revoluçãodos séculos passados. Os envolvidossão acusados de fazer avançar o"Monstro da projetada Revolução"pela propagação das "imagináriasvantagens do governo daigualdade"15.

As Luzes comportam também um ladooficial: as novas idéias erampropagadas, em versões amenizadas,pela administração e pela Coroa, queapoiavam a renovação científica epedagógica dos centros de ensino emHavana, Quito, Bogotá, México eBuenos Aires. Na América hispânicaforam fundadas sociedades, queestudavam a agricultura e amineração, publicando periódicos deorientação científica, como oMercúrio Peruano, editado de 1791 a1795 em Lima, ou El Seminario delReino de la Nueva Granada emQuito, a partir de 1808.

Em Portugal e no Brasil, o reformismoesclarecido se desenvolve com aadministração do Marquês de Pombal,responsável pela reforma das escolas euniversidades. O movimento ilustrado,colocado ao serviço do absolutismo,adquire um sentido pragmático,pedagógico e científico. Esseprograma modernizador leva àfundação de academias literárias ecientíficas, como a Academia Real dasCiências, fundada em Lisboa em1779. No Brasil, são criadasacademias literárias, dentre elas a

Sociedade Científica do Rio deJaneiro em 1772, que dá lugar em1779 à Sociedade Literária do Rio deJaneiro, instalada em 1786 sob aproteção do Vice-Rei16. Eram porémescassas as possibilidades dedivulgação dos trabalhos dasacademias e sociedades brasileiraspela ausência de imprensa no períodocolonial, introduzida apenas com avinda da Família Real em 1808.

Em 1794 o Vice-Rei ordena arealização de devassa contra aSociedade Literária do Rio de Janeiro,que se torna suspeita aos "olhos" e"ouvidos" da administração colonialdevido à estima de seus membrospelas idéias políticas de Raynal eMably e à sua simpatia pelainconfidência de Minas Gerais e pelaRevolução Francesa17. O inquéritoinvestiga membros da sociedade, opoeta e advogado Manoel Inácio daSilva Alvarenga, o licenciado emFilosofia em Coimbra, Mariano JoséPereira, e o médico Jacinto José daSilva, formado em Montpellier.

Alvarenga possuía uma biblioteca de1.576 volumes, com grande númerode autores proibidos, como A. Smith,Fénelon, Montesquieu, Voltaire eDiderot. As autoridades o interrogama respeito de dois volumesconfiscados da História de Raynal ede uma obra de Mably:

"E logo pelo DezembargadorChanceller foi dito a elle respondente(...) se haverem achado na sua livrariaalguns tomos da Historia do AbbadeRaynal livros que em muitos dos seuslugares conthem máximas e principiosoppostos ás Monarchias, (...) por entreeles se encontrar o livro que tem portitolo = Direitos do Cidadão = doAbbade Mably livro que desde as suasprimeiras linhas não tem outro objectomais que destruir, e arruinar as

Em Portugal e noBrasil, o reformismoesclarecido sedesenvolve com aadministração doMarquês de Pombal,responsável pelareforma das escolas euniversidades.

15 ABN. A Inconfidência da Bahia em 1798. Anais da Biblioteca Nacional Rio deJaneiro, 1922. v. 45, p. 24.

16 MARCHANT, A. Aspects of Enlightenment in Brazil. In: WHITAKER, A.P., org.Latin America and the Enlightenment, op. cit.f p. 97-113.

17 JOBIM, L. Diderot et le Brésil. In: CHOUILLET, A.M., org. ColloqueInternational Diderot. Paris, Aux Amateurs du Livre, 1985. p. 406.

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Monarchias e estabelecer o governoRepublicano"18.

O acusado anima ignorar que essesvolumes contenham "doutrinaserradas, ou que se derigissem a attacaras Monarchias", acrescentando haverlido apenas os títulos, "reservando asua lição para os tempos das ferias".Com Mariano José Pereira, a quempertenciam os dois tomos de Raynal,foram encontrados o Émile deRousseau e o Supplement au Voyagede Bougainville de Diderot. Segundoum depoimento, membros daSociedade Literária aguardavam achegada de navios da Europa comperiódicos, como o Mercure deFrance, prontamente lidos para secolocarem a par dos progressos dosfranceses na revolução. Pergunta-se atestemunha: "que liberdade tem essescaxorros dos Francezes se elles estãomatando huns aos outros?"19. Apóstrês anos de detenção, os acusadosforam colocados em liberdade, semque as autoridades confirmassem aexistência de um projeto deinsurreição. A libertação dos membrosda Sociedade Literária fez parte deuma política de neutralização donacionalismo, que incluía a nomeaçãode brasileiros diplomados pelaUniversidade de Coimbra, como JoséBonifácio de Andrada e Silva, paracargos de importância20. O inquéritomostra as limitações e controles a queestavam sujeitas as academiasliterárias e científicas sob oreformismo esclarecido.

O Homem Americano e asCivilizações Antigas

Na introdução à Histoire des DeuxIndes, Raynal observa que adescoberta do Novo Mundo e apassagem para as índias trouxeramuma revolução econômica e política,responsável pelo alargamento da visãode mundo do homem moderno:"Começou então uma revolução nocomércio, no poderio das nações, noscostumes, na indústria e no governode todos os povos"21.

A oposição entre a Europa e aAmérica é decisiva para a formaçãoda consciência moderna, tornandomanifesta a "superioridade" do"homem civilizado" e a possibilidadede "progresso", que tem comoevidência histórica a figura do"homem selvagem" do ultramar22. Aomesmo tempo, o homem americanoadquire uma significaçãohistórico-filosófica pela imagem doreino da natureza, em que a liberdadee a moral universal se realizariamatravés da igualdade entre osindivíduos. A interferência de doisdiscursos na representação do "mundoselvagem", um de apologia dafelicidade natural, outro de afirmaçãodas vantagens da civilização, "indicauma visão ambígua, em que aflora apercepção de uma realidadecontraditória"23.

Antonello Gerbi considera a Histoiredes Deux Indes como parte da"polêmica do Novo Mundo", pela

18 ABN. Devassa ordenada pelo Vice-Rei Conde de Resende. Anais da BibliotecaNacional Rio de Janeiro, 1939. v. 61, p. 408-09.

19 Ibid., p. 306.

20 MAXWELL, K. Conflicts and conspiracies. Brazil & Portugal (1750-1808).Cambridge University Press, 1973.

21 RAYNAL, G.T. Histoire philosophique et politique des établissements & ducommerce des Européens dans les Deux Indes. Geneve, Libraires Associés, 1775.v.l, p.1-2.

22 KOSELLECK, R. Kritik und Krise. Fine Studie zur Pathogenese der buergerlichenWelt. Frankfurt/M., Suhrkamp, 1959. p. 250.

23 DUCHET, M. Anthropologie et Histoire au siècle des Lumières. Buffon, Voltaire,Rousseau, Helvétius, Diderot. Paris, Maspero, 1971. p. 11.

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qual se difunde no pensamento daIlustração a tese da "inferioridade" domeio americano e da "fraqueza" desuas espécies vegetais, animais ehumanas24. A filosofia das Luzesinverte a visão paradisíaca daAmérica, formando um novo discursosobre o homem e a natureza, marcadopela negatividade. Desse discursofazem parte a Histoire Naturelle deBuffon, as Recherches Philosophiquessur les Américains de De Pauw, oartigo "Amérique" da Encyclopédie ea obra de Raynal. A tese sobre ainferioridade do homem e da naturezana América tem como principalantecedente a análise de Montesquieudas relações entre os climas, asinstituições e os costumes, sendo aescravidão, a poligamia e odespotismo considerados formascaracterísticas dos países quentes.

Raynal adota a posição de Buffon ede C. de Pauw sobre as zonas tórridase úmidas como insalubres, atribuindoao clima as doenças contagiosas e asbaixas taxas de natalidade entre ospovos Guaranis do Paraguai. Mas elenão estende ao europeu ou ao criolloa tese de Buffon sobre a

"degeneração" do homem naAmérica: os criollos teriam sofridoantes uma "degradação" de caráter,devido aos preconceitos daadministração colonial contra osamericanos e aos "vícios que nascemdo ócio, do calor do clima, e daabundância de todas as coisas"25. Oclima americano explicaria também apredisposição de seus habitantes aoalcoolismo e à concubinagem.

A imagem da América em Raynalresulta da projeção de uma teoriaclimática que divide o mapa-mundi emzonas tórridas, zonas glaciais e zonastemperadas, trazendo assimetriasvalorativas com implicações políticas.Enquanto na América do Norte oclima temperado atrairia povoslaboriosos e livres, favorecendo acultura pacífica e sedentária, na zonatórrida do continente, a escravidão eas monarquias absolutas seriam osefeitos diretos das condições naturais.A partir desse desequilíbrio climático,Raynal prevê a futura dominação peloNorte da América do sul, "aliançamonstruosa e fraca de uma raça deescravos com uma nação detiranos"26.

24 GERBI, A. La disputa del Nuovo Mondo. Storia di una polemica. 1750-1900.Milano/Napoli, Riccardo Ricciardi, 1955.

25 RAYNAL, G.T. Histoire phihsophique et... op. cit.t p. 672-73.

26 RAYNAL, G.T. Histoire phihsophique & politique des Deux Indes. Paris,Maspero, 1981. p. 227-28.

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O homem americano e as civilizaçõesantigas do México e do Peruconstituem um problemaepistemológico, que resiste à reduçãoao modelo climático adotado porBuffon, Raynal e De Pauw. EscreveBuffon na Histoire Naturelle: "Ohomem selvagem é, com efeito, detodos os animais o mais singular, omenos conhecido e o mais difícil dedescrever"27. Explicando pelo climaas diversidades antropológicas,Buffon atribui à expressão "NovoMundo" uma significação geológica,ligada à pretensa formação recente daAmérica. Esse caráter tardio docontinente permitiria explicar auniformidade do homem selvagem,apesar da existência de diversosclimas: ele não se teria tornado pretonas zonas tórridas, como os habitantesda África, devido à sua menorexposição ao sol dos trópicos...

Buffon, Raynal e De Pauw contestama antigüidade das civilizações astecas,toltecas e incas, rejeitando asdescrições de Hernan Cortés e do incaGarcilaso de la Vega, da grandeza emagnificência das cidades emonumentos. Os dados de Las Casassobre as numerosas populações doMéxico e do Peru também são objetode crítica, já que estes povos teriamatingido apenas recentemente o estadosocial. Observa Raynal: "Deve-serelegar ao plano das fábulas estaquantidade prodigiosa de cidadesconstruídas com tanto cuidado edispêndio. (...) Os povos seencontravam dispersos nos campos; eera impossível que fosse de outromodo"28.

Em diversas obras escritas poramericanos ou por europeus quehabitaram na América, é discutida e

colocada em questão a idéia de umafraqueza do homem e da natureza e dadegeneração das espécies no NovoMundo: nos escritos climáticos egeográficos do peruano HipólitoUnánue e do padre Molina, nasCartas Mexicanas do padre Moxó, naHistoria Antigua de México deClavijero e no Ensaio Econômicosobre o Comércio de Portugal e suasColônias de Azeredo Coutinho.

No Ensaio Econômico, AzeredoCoutinho transcreve extensas citaçõesda obra de Raynal a respeito da"coragem" e da "imaginaçãoardente" dos nascidos na América. Aconcepção climática de Montesquieu écontestada através de uma mistura deargumentos históricos e teológicos:sua teoria das fibras nervosas fariasupor, segundo Coutinho, "o absurdoque o Criador do Universo só soubecriar fibras próprias para os climasfrios ou temperados, mas não para oda Zona Tórrida"29. Oriundo de umapróspera família de plantadores decana-de-açúcar do Nordeste, AzeredoCoutinho foi bispo em Portugal e noBrasil, fundando o Seminário deOlinda, colégio secundário deorientação científica e experimental.Ocupou o último posto de inquisidordo Reino, antes da extinção daInquisição em 1821, no mesmo ano desua morte. Aparentemente se poderiafalar de um conflito de papéis entresua posição oficial e sua atividade deensaísta e educador, mas sua carreiraé significativa da orientaçãopragmática das Luzes ibéricas30.

A Historia Antigua de Méxicocontribuiu para a redescoberta dosmonumentos americanos na segundametade do século XVIII, o queanuncia a relativa superação da

27 BUFFON, C. de, G.L.L. Histoire naturette. In:Daguin Frères, 1749-1789. v. 3, p. 263-64.

28 RAYNAL, G.T. Histoire philosophique et politique des établissements et ducommerce des Européens dans les Deux Indes. Geneve, Jean-Léonard Pellet, 1780.v. 4, p. 46.

29 COUTINHO, JJ.C.A. Ensaio econômico sobre o comércio de Portugal e suascolônias. In:_________. Obras econômicas. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1794. p. 103.

30 BURNS, E.B. The role of Azeredo Coutinho in the Enlightenment of Brazil. TheHispanic American Historical Review. Durham, 44 (1): 145-160. Feb. 1964.

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polêmica do Novo Mundo e daimagem negativa da América. Essasuperação se realiza sobretudo comAlexander von Humboldt e o relato desua viagem de exploração, a Relationhistorique du Voyage aux Régionséquinoxiales du Nouveau Continent.Humboldt critica a tese de Buffonsobre a pretensa degeneração dosanimais domésticos na América:"Essas idéias se propagaram comfacilidade, porque, lisonjeando avaidade dos europeus, se ligavam ahipóteses brilhantes sobre o antigoestado de nosso planeta"31. Refere-seironicamente a Raynal e a De Pauw,observando a respeito dostrabalhadores indígenas e mestiços nasminas do México:

"O aspecto desses homens laboriosose robustos teria podido fazer mudar deopinião aos Raynal e aos Pauw, (...)que se comprazeram em declamarsobre a degeneração de nossa espéciena zona tórrida"32.

A obra de Clavijero fornece aHumboldt o ponto de partida parasuas observações sobre osmonumentos americanos no Essaipolitique sur le Royanme de laNouvelle-Espagne, sendo tambémmencionados os trabalhos sobre oclima de Hipólito Unánue em Lima ede Francisco Caldas em Quito, com osquais estabelece relações. Humboldtse prepara para a expedição e aobservação da realidade americanapor um processo de leitura e estudoprévio das fontes e documentos, noqual emprega seis anos, antes de partircom Bonpland em viagem que seestenderá de 1799 a 1804.

As críticas de Humboldt a Buffon,Raynal e De Pauw indicam a rupturacom a visão negativa do Novo Mundodifundida pela Ilustração. Enquanto a

"História" de Raynal teve grandeinfluência sobre os letradoslatino-americanos no período de lutapela independência, os escritos deHumboldt marcarão a produçãocultural e o pensamento político nosséculos XIX e XX, de Simon Bolívare José Martí até o presente33. Osromances e ensaios de AlejoCarpentier atestam a penetração doenfoque do naturalista alemão, comoem Los Pasos Perdidos, em que o seupercurso pelo Orinoco é recriado pelaficção. Em El Siglo de las Luces, opersonagem Esteban revela suadesilusão com os filósofos das Luzes,após ter participado das lutasrevolucionárias na Europa e naAmérica:

"esos años (...) habían tenido el poderde envejecer tremendamente ciertascosas: ciertos libros, sobre todo. Unencuentro con el Abate Raynal, en losentrepaños de la biblioteca, le dioganas de reir"34.

Da Rebelião de Escravos aosDireitos e Deveres do Cidadão

A recepção da Histoire des DeuxIndes nas colonias portuguesas eespanholas da América está ligada àsimplicações políticas das posições deRaynal e de seu colaborador Diderot arespeito do tráfico de escravos, dasituação dos cativos e dasubordinação política às metrópolesibéricas. A independência dos EstadosUnidos criou um contexto favorável àdifusão da obra de Raynal na AméricaLatina: edições com os capítulos sobrea América do Norte circulavam emversões francesas e inglesas, sob ostítulos Revolution de l'Amérique(1781) e The Revolution of America(1781). Uma tradução espanholaparcial, interrompida no Livro V, é

31 HUMBOLDT, A. V. Essai politique ... op. cit., v. 3, p. 224-25.

32 Ibid., p. 362.

33 ETTE, O. Der Blick auf die neue Welt. In: HUMBOLDT, A.V. Edição alemã daRelation historique du Voyage aux Régions équinoxiales du Nouveau Monde.Frankfurt/M., Suhrkamp, 1989 no prelo.

34 CARPENTIER, A. El siglo de las luces. Barcelona, Seix Barral, 1952. p. 261.

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publicada em Madrid de 1784 a 1790,com a supressão das partes filosóficase dos ataques à Espanha35.

As rebeliões de escravos na coloniafrancesa de São Domingo e aRevolução Haitiana em 1791 dão aalgumas passagens da Histoire desDeux Indes, como o apelo aoSpartacus negro, um tom profético,gerando o temor de uma ampla revoltaracial:

"Onde está esse grande homem que anatureza deve a seus filhos vexados,oprimidos, atormentados? Onde estáele? Ele aparecerá, não o duvidemos,ele se mostrará, ele elevará oestandarte sagrado da liberdade. Essesinal venerável reunirá ao seu redor oscompanheiros de seu infortúnio. (...)Os campos americanos se enebriarãode forma arrebatada com um sangueaguardado há tempos, e as ossadas detantos infelizes amontoadas há trêsséculos tremerão de alegria"36.

Esse apelo à revolta determina arejeição da filosofia das Luzes porAzeredo Coutinho, que defende, naAnálise sobre a justiça do comérciodo resgate dos escravos da Costa daÁfrica, o caráter humanitário dotráfico negreiro, concebido como"resgate" de indivíduos sujeitos aocativeiro ou condenados à morte naÁfrica. Coutinho denuncia, a partir doexemplo do Haiti, as "conseqüênciasfunestas" da transposição às colôniasda América e das Antilhas dosprincípios dos filósofos franceses,verdadeiros "monstros" e "canibais"por seu apoio às rebeliões deescravos.

As leituras políticas da Histoire desDeux Indes destacam os protestoscontra as atrocidades coloniais, os

apelos à revolta e a afirmação doprincípio da liberdade e daindependência, cujas passagens maisveementes foram escritas porDiderot37 . Raynal afirma a existênciade três tipos de liberdade: a liberdadenatural, relativa ao homem; aliberdade civil do cidadão; e aliberdade política, própria a um povoSendo a liberdade política definidacomo "o estado de um povo que nãoalienou sua soberania e que faz suaspróprias leis, ou está associado, emparte, à sua legislação", os habitantesdas colônias, quer escravos, querhomens livres, estão submetidos aocativeiro da "tirania" e do"despotismo"38.

A escravidão exprime, de formametafórica, a subordinação política dohomem tanto na Europa absolutista,quanto na América colonial, criandouma fictícia identidade de interessesentre os homens dos dois lados doAtlântico: "na Europa, como naAmérica, os povos são escravos"39.Esse deslocamento metafórico já sefaz presente nos artigos "Despotisme"e "Esclavage" da Encyclopédie deDiderot e D'Alembert, em que aservidão é associada às formasdespóticas e tirânicas de governo40.Nos capítulos sobre a "Revolução daAmérica", Raynal observa a ausênciade contrato social entre as colônias eas metrópoles, idéia que se liga aosmodos de leitura do Contrat Social deRousseau no processo deindependência da América Latina.

Simon Bolívar, de uma rica famíliaproprietária de plantações, fazendas eescravos, foi um dos principaisprotagonistas das lutas deindependência. Criado, segundo alenda, de acordo com o modelo do

Raynal afirma aexistência de três tipos

de liberdade: aliberdade natural,

relativa ao homem; aliberdade civil do

cidadão; e a liberdadepolítica, própria a um

povo.

35 TIETZ, M. Diderot und das Spanien der aufklaerung. In: HEYDENREICH, T., org.Denis Diderot. 1713-1784. Zeit — Werk — Wirkung. Erlangen, 1984. p. 142.

36 RAYNAL, G.T. Histoire des Deux Indes, op. cit., p. 202.37 BENOT, Y. Diderot. De l'athéisme à l'anticolonialisme. Paris, Maspero, 1981.

p. 256.38 RAYNAL, op.cit., p. 191.39 Id. Histoire philosophique et politique des ... Européens dans les Deux Indes.

Geneve, Jean-Leonard Pellet, 1780. v. 6, p. 22.40 DIDEROT, D. e D'ALEMBERT, J.R. Encyclopedic ou Dictionnaire raisonné des

sciences, des arts et des métiers. Paris, Briasson, 1754-1755. v. 4-5.

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Émile de Rousseau, Bolívar realizaestudos na Espanha e passa uma longatemporada em Paris, onde assiste àcoroação de Napoleão. Seupensamento político revela os limitesda filosofia das Luzes e do liberalismonas sociedades da América Latina, apartir da tensão entre a inspiraçãodemocrática dos ideários e aorientação autocrática dos programasadotados.

Em "La Carta de Jamaica", escrita emKingston em 1815, Bolívar proclamaa inevitabilidade da ruptura políticaentre a América e a Europa: "eldestino de la América se ha fijadoirrevocablemente; el lazo que la unia ala España está cortado"41. Elogia oamor dos mexicanos por sua pátria,prevendo sua próxima libertação combase no exemplo de Raynal:

"Ya ellos dicen con Raynal: llegó eltiempo, en fin, de pagar a losespañoles suplicios con suplicios y deahogar esa raza de exterminadores ensu sangre o en el mar"42.

Bolívar exprime o ponto de vista doscriollos, revelando a identificaçãoentre seus interesses e os da "pátria",do "povo" e da "nação":

"no somos indios ni europeos, sino

una especie media entre los legítimospropietarios del país y los usurpadoresespañoles: (...) americanos pornacimiento y nuestros derechos los deEuropa"43.

A posição de Bolívar mostra o caráterproblemático da identidade social dascamadas criollas e dos grupos letradoslatino-americanos, divididos entre aherança européia e a tradiçãoamericana. Essa ambivalência foiinterpretada por Sarmiento emFacundo e por Euclides da Cunha emOs Sertões como o resultado da lutaentre as forças da civilização e as dabarbárie44. Sarmiento toma Bolívarcomo representativo do conflito entrevalores europeus e americanos, entreseu lado de Napoleão e sua faceta decaudilho. Raynal, Mably e Rousseausão citados como autores quecontribuíram, com suas "idéiasexageradas" sobre os déspotas e ostiranos, para o distanciamento políticode Buenos Aires em relação aoscaudilhos do interior, trazendo aanarquia, o terror e a violência dasguerras civis dos primórdios daRepública Argentina45.

No discurso de abertura do Congressode Venezuela em 1819, Bolívar

41 BOLÍVAR, S. Doctrina del libertador. Caracas, Ayacucho, 1979. p. 56.42 Ibid., p. 58.43 Id. ibid., p. 62.44 VENTURA, R. A nossa Vendéia: Canudos, o mito da Revolução Francesa e a

constituição de identidade nacional-cultural no Brasil (1897-1902). Revista de críticaliteraria latinoamericana. Lima, (24): 109-125, 1986.

45 SARMIENTO, D.F. Facundo: civilización y barbarie. Madrid, Alianza, 1845. p.156, 195.

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apresenta um projeto de Constituição,proferindo sua fé nos princípiosdemocráticos. Propõe todavia umprograma político afastado doliberalismo democrático, tendo comopontos centrais o estabelecimento deSenado vitalício e hereditário, ofortalecimento dos poderes doExecutivo e a divisão entre cidadãosativos e passivos, com base em umcritério censitário. Esse desvio doliberalismo é justificado através dareferência às concepções deMontesquieu, segundo as quais -escreve Bolívar, em uma citaçãoquase literal do livro I de L'Esprit deslois — "las leyes deben ser relativas alo físico del país, al clima, a la calidaddel terreno, a su situación, a suextensión, al género de vida de lospueblos"46. Menciona ainda o caráter"heterogêneo" da população emtermos étnicos e a "diferença decastas" como fatores que devem serconsiderados pelo legislador aoestabelecer o sistema de governo:

"Tengamos presente que nuestropueblo no es el europeo, ni elamericano del Norte, que más bien esun compuesto de África y de América,que una emanación de la Europa (...)•Si el principio de la igualdade politicaes generalmente reconocido, no lo es

menos el de la desigualdad física ymoral"47.O recurso de Bolívar à teoria do climae às observações de Montesquieusobre a relação entre as "leisnaturais" e as "leis políticas" indica aambigüidade da concepção denatureza entre a elite intelectual epolítica das sociedades nacionais daAmérica Latina. De um lado, avalorização da natureza local serelaciona ao projeto de fundação dapátria e de construção doEstado-nação; de outro, os gruposletrados internalizaram elementoseurocêntricos das Luzes relativos aocontinente americano e ao homemselvagem e africano48. Apesar doprogressivo esquecimento de Raynalno século XIX, certas estruturasideológicas da polêmica do NovoMundo se mantêm como elementos deexplicação da distância crescenteentre a América do Norte e suacontraparte latina, fazendo-sepresentes no debate sobre osobstáculos à transposição dos modelosdas revoluções francesa, inglesa enorte-americana. Nesse sentido, asculturas nacionais latino-americanasreproduziram, de forma ambivalente, adissimetria da imagem das duasAméricas veiculada por Raynal e seuscolaboradores na Histoire des DeuxIndes.

Bibliografia

BURNS, E.B. The Enlightenment in two colonial Brazilian libraries. Journal of theHistory of Ideas. New York, 25 (3): 430-438, jul./sept. 1964.

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CLAVIJERO, F.J. Historia Antigua de México. México, Porrua, 1780. 1982.COUTINHO, J.J.C.A. Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos escravos da

Costa da África. In:______. Obras econômicas. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1798.1966.

UNÁNUE, H. Observaciones sobre el clima de Lima. In: ______. Obras científicasy literarias. Barcelona, Tip. La Académica, 1806. 1914. v. 1. 2 v._____________

46 BOLÍVAR, op. cit.t p. 108.47 Id. ibid., p. 110-11.48 VENTURA, R. Estilo tropical: a natureza como pátria. Ideologies & literature.

Minneapolis, 2 (2): 145-158, 1987.

Roberto Ventura é pesquisador do CNPq na área de teoria literária e literaturacomparada na USP e integrante da área de concentração "História, Ideologias,Mentalidades" do IEA.