leitura literária - maria de fátima cruvinel

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Leitura Literária

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http://leituras.literaturas.pro.br/index.jsp?conteudo=310LITERATURA NA ESCOLA: RECUSA E PERSISTNCIAMaria de Ftima Cruvinel (CEPAE/UFG)H coisas que s a literatura com seus meios pode nos dar.Italo CalvinoLiteratura para qu?, interroga Antoine Compagnon (2009). Essa pergunta pressupe outras questes, como o papel que a sociedade concede literatura, hoje; os valores a serem por ela transmitidos aos leitores de agora; a serventia que ela teria para o mundo contemporneo; o lugar a ser ocupado por ela no espao pblico; o suporte que promove o seu encontro com o leitor; a funo que ela pode cumprir na instituio escolar. O presente trabalho elege como provocao a pergunta do estudioso francs, no fio que a liga ao universo pedaggico institucionalizado, para refletir sobre o papel da literatura na escolarizao bsica e reafirmar esse nvel escolar como determinante no processo de formao do leitor. Para iluminar as reflexes, ser considerada uma prtica de leitura desenvolvida no Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada Educao da Universidade Federal de Gois CEPAE/UFG, especialmente o trabalho com a narrativa juvenilPivetim, do escritor mineiro Dcio Teobaldo, obra vencedora do Prmio Barco a Vapor 2008, realizado pelas Edies SM.Em artigo publicado no ano de 2006, intitulado Literatura para todos, Leyla Perrone-Moiss afirma que a literatura, como disciplina escolar e universitria, estaria correndo o risco de desaparecer. O propsito da autora nesse texto refletir sobre a crise da literatura, especialmente a respeito de seu ensino, com base em documentos do MEC sobre o assunto. Para introduzir suas consideraes, se reporta a artigo de Roland Barthes, publicado mais de vinte anos antes, que j teria anunciado o estado agnico da literatura, apontando comocausa mortiso desprestgio da disciplina no meio acadmico. Outra referncia da autora, com data mais recente, compreenso de Compagnon, para quem a presena da literatura no mundo estaria se escasseando, como pele de asno, numa aluso ao romance de Balzac. A causa, segundo esse estudioso, seria a falta de paixo pela leitura observada nos estudantes que ingressam nos cursos de Letras. Seno paixo, certa assiduidade na prtica leitora seria o mnimo a ser exigido de um aluno dessa rea de conhecimento, provavelmente futuro professor.Perrone-Moiss cita, ainda, o depoimento de um professor brasileiro, que reclama do repertrio de leitura de seus alunos, tanto da graduao quanto da ps, e conclui que a origem do problema estaria na educao bsica, nvel em que os estudantes deveriam adquirir as competncias necessrias para as prticas de leitura e de escrita. A essa citao, segue-se uma crtica aos pesquisadores da rea de Letras, que no demonstram, segundo a autora, interesse pela didtica do ensino, tampouco preocupao em interferir no mbito oficial e regulador do ensino, o que fere o propsito crtico mas propositivo que se espera da instituio de ensino superior. Para a estudiosa,H um abismo vertiginoso entre as especulaes dos ps-graduandos e dos ps-doutores, informados de sofisticadas teorias internacionais, ocupados com temas refinados e confinados, e os contedos didticos ou as prticas cotidianas do bsico e do secundrio (PERRONE-MOISS, 2006, p.18).Essa dissonncia confirma o que j na graduao sinalizado: a supervalorizao do bacharelado e certa depreciao da licenciatura, ou seja, um favorecimento da pesquisa em detrimento do ensino (no se compreenda, aqui, que o ensino no merea ser objeto de investigao). Tal comportamento associa-se ao pouco interesse da academia pela didtica e prtica de ensino e tambm pelos currculos da educao bsica, o que acabou por permitir aos responsveis pelos documentos oficiais o desmerecimento da Literatura no ensino mdio.As consideraes da autora se encaminham para os PCN, neles observando outras questes da educao, como a substituio equivocada da ordem do conhecimento pela ordem da tecnologia, o desprestgio da norma padro, a banalizao do conceito bakhtiniano de dialogismo, assim como a reduo significativa da autoridade do professor em favor da socializao do aluno, num evidente engano de perspectiva, j que respeitar o estudante seria, ao contrrio, consider-lo apto, qualquer que seja sua extrao social e suas carncias culturais, a adquirir maiores conhecimentos e competncias (PERRONE-MOISS, 2006, p. 23). E para ilustrar esse equvoco refere-se a aspectos especficos do ensino de literatura, citando um questionamento que envolve um paralelo entre Machado de Assis e Paulo Coelho, Carlos Drummond de Andrade e Z Ramalho, para afirmar que o conceito de literatura discutvel e sugerir a opo por uma literatura mais digervel em substituio a uma literatura considerada difcil. A concluso da autora a de que esse projeto tratar-se-ia, antes, de um democratismo pedaggico alimentado pela falsa impresso de permisso do acesso dos menos favorecidos literatura, o que privaria o aluno do direito experincia esttica promovida pela produo literria consolidada como referncia.Apesar de o debate sobre a prtica da leitura literria na escola no ser recente, antes pelo contrrio, e por isso mesmo parecer datado, ainda se pode consider-lo premente. No sem razo, permeia as ltimas e inusitadas preocupaes de Tzvetan Todorov, reunidas na coletnea de ensaios publicados com o sugestivo ttulo A literatura em perigo. Nessa coletnea, o autor critica a maneira como a literatura tem sido abordada na escola do ensino fundamental ao superior , consequentemente, como ela oferecida aos jovens, observando que o texto literrio no chega ao aluno; o que lhe chega so os discursos da teoria, da crtica ou da histria literrias. Segundo o autor, a considerar os programas de ensino e a prtica do professor de literatura,Ler poemas e romances no conduz reflexo sobre a condio humana, sobre o indivduo e a sociedade, o amor e o dio, a alegria e o desespero, mas sobre as noes crticas, tradicionais ou modernas. Na escola, no aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os crticos (TODOROV, 2009, p.27).Reitera-se, pois, certo movimento dos interessados pela formao de leitores literrios em direo ao resgate da literatura, notadamente, em direo retomada de sua funo, que no passado lhe teria rendido a reputao de subversiva, dado seu poder de intervir na formao do esprito, sob pena de ela se ausentar da formao esttica e cultural do indivduo. No obstante se poder afirmar que o livro, impresso ou digital, constitui-se hoje num cobiado objeto de consumo, j que pelo menos nas metrpoles figura nas vitrines das megalivrarias situadas emshoppings centers, avizinhando-se, portanto, de produtos de consumo diversos, de todas as naturezas e gostos, a leitura do gnero literrio ainda se afigura como uma prtica cotidiana de poucos e, infelizmente, ainda no reconhecida como uma necessidade ou um bem incompressvel, para usar aqui uma ideia de Antonio Candido (1995).A segunda edio da pesquisaRetratos da leitura no Brasil(AMORIM, 2008), a despeito de constituir-se numa ampla investigao da prtica leitora em geral, merece ser lembrada na considerao que faz com base nos dados colhidos junto aos brasileiros. Segundo o responsvel pela pesquisa, no campo institucional, os dados apontam duas constataes: a primeira, positiva, a de que quando o Estado cumpre seu dever de investir em polticas pblicas, h bons resultados, como o perceptvel aumento dos ndices de leitura na escola bsica, apesar de continuar baixo o desempenho dos alunos brasileiros em compreenso leitora. A segunda concluso, lamentavelmente negativa, a de que no Brasil, apesar dos avanos recentemente observados, at o momento no se reconhece a questo do livro e da leitura como algo realmente importante e estratgico para seu presente e, sobretudo, para construir outro tipo de futuro (AMORIM, 2008, p. 16).Cumpre, pois, exigir que se confira leitura ostatusde poltica de Estado, com investimentos destinados s instituies responsveis pela promoo da prtica leitora, como a biblioteca pblica e a escola. No caso especfico do espao escolar, necessrio promover a recuperao dos cursos de graduao e investir nas pesquisas sobre o ensino, o que sem dvida passa pela valorizao da carreira docente, bem como reavaliar os conceitos que orientam os currculos escolares.Uma reviso da proposta dos PCN quanto presena da Literatura no ensino mdio foi realizada, com o lanamento, em 2006, dasOrientaes Curriculares para o Ensino Mdio, no volume intitulado Linguagens, Cdigos e suas Tecnologias (expresso cujo tom soa ainda estranho ao estudo da literatura), que traz um captulo dedicado exclusivamente aos Conhecimentos de Literatura. preciso levar em conta que esse novo documento cumpre a funo de recolocar questes importantes para o reconhecimento das especificidades do discurso literrio e a funo doletramento literriona educao bsica. Contudo, a interrogao sobre autilidadeda literatura permanece, como se pode constatar no recorrente comportamento de nossos alunos certa indisposio diante da exigncia da leitura mais demorada e solitria , e continua a merecer reflexo. Da no ser surpresa ela figurar como mote para a aula inaugural, de Antoine Compagnon, quando de seu ingresso no Collge de France h quase exatos quatro anos, e sua preleo ter como propsito a defesa da literatura, embutida na exposio sobre a literatura francesa moderna e contempornea. Seu primeiro questionamento por que falar sobre esse assunto no sculo XXI, uma vez que o lugar ocupado pela literatura na sociedade, segundo o autor, se mostra raro j h uma gerao. Assim ele sintetiza a escassez da literatura nos meios em que no passado ela reinava: na escola, onde os textos didticos a corroem, ou j a devoraram; na imprensa (...) onde as pginas literrias se estiolam; nos lazeres, onde a acelerao digital fragmenta o tempo disponvel para os livros (COMPAGNON, 2009, p. 21).Diante desse estado agnico da leitura literria provocado por contingncias polticas ou de ordem diversa, que, se no a impossibilitam, dificultam o satisfatrio encontro e a permanncia do jovem com o livro, cabe ao professor reiterar a pergunta, com o intuito de forar-se a respond-la, lanando mo dos resultados de prticas de leitura em sala de aula, para ento justificar a presena da literatura na escola e efetivar esse espao como principal instituio formadora de leitores. Assim, sem querer minimizar as inmeras implicaes que perpassam a atividade de ler, a comear pelo acesso ao objeto e posteriormente pela ao fsica de abrir o livro, o que demanda vontade do leitor j que o verbo ler no admite imperativo, conforme to acertadamente sentenciou Daniel Pennac (1998), a pretenso deste trabalho, reitera-se, reafirmar a funo da escola no processo de democratizao da leitura e, ao mesmo tempo, tentar responder ao questionamento literatura para qu?.Para tanto, expe-se uma prtica de leitura do livro de literatura juvenilPivetim(TEOBALDO, 2009), desenvolvida com alunos de stimo ano Ensino Fundamental do CEPAE/UFG, no anoem curso. Oobjetivo depreender, mediante as atividades desenvolvidas e algumas manifestaes dos alunos-leitores, suas impresses e concluses sobre a obra, sua experincia como sujeito-leitor, com o fito de justificar a defesa da literatura na escola. Assim, expem-se aqui algumas das atividades desenvolvidas a fim de mobilizar os alunos em torno do livro e das ideias por ele suscitadas, destacando a proposta de interlocuo com o autor. O interesse com essas atividades foi o de faz-los circular do livro vida, desta ao livro, de si aos personagens, destes ao mundo, e retornar a si mesmos, de mos dadas com o garoto de rua, Pivetim.Como primeira entrada no livro, a proposta foi ler o primeiro captulo, em sala de aula para toda a turma, a fim de convid-los a ingressar coletivamente no universo do protagonista, que entra em cena interpelado pela voz da prpria fome: Ass, a gente faz o cerco. No temca,maluco! Confia no? T aquimermo. Limpeza! (TEOBALDO, 2009, p.7). Antes disso, contudo, preciso levar em conta o ttulo, Pivetim, anunciado vrias vezes antes da chegada do livro materializado graficamente, povoando, pela fora sonoro-semntica da expresso, o horizonte dos futuros leitores com a imagem do protagonista. Isso foi reforado posteriormente pela viso fsica do exemplar dePivetim, cuja capa estampa um rosto, resultado de projeto grfico sobre ilustrao do grafiteiro Speto. O trao forte do grafite, realado por cores quentes, entremostra uma face triste e esquiva de um garoto, marcada pelo olhar perdido e a boca cerrada.Dar a conhecer o primeiro captulo funcionou como uma estratgia fecunda, j que nesse captulo apresenta-se, pela voz do prprio Pivetim, narrador da histria, a razo de ele estar vivendo nas ruas. Dificilmente o leitor ficaria indiferente histria de um garoto que, aos oito anos de idade, se v obrigado a buscar abrigo e comida nas ruas de uma grande cidade, depois de ver desagregada sua famlia. E a curiosidade do aluno-leitor talvez j regada compaixo pelo tom afetuoso alcanado pela forma diminutiva do ttulo faz-se aliada obra e garante a retomada do texto pelos leitores, agora solitariamente, para acompanhar as peripcias e vicissitudes do protagonista Pivetim e de seus companheiros. Situada nas ruas, a narrativa no poderia ter outra linguagem seno a coloquial, marcada por grias e expresses identificadoras dos grupos sociais que protagonizam a trama do romance. Trata-se de conceder a esses grupos uma identidade pela via da linguagem, cujos efeitos de sentido para a constituio dos conflitos logram xito em razo da cuidadosa pesquisa realizada por Dlcio Teobaldo, jornalista, documentarista e pesquisador da cultura popular, consequentemente, arguto observador da sociedade. Por essa razo, solicitou-se dos alunos uma leitura mais demorada, observando a linguagem empregada no romance para recolher os termos e expresses de cunho oral. A primeira expresso a compor o glossrio o prprio ttulo do livro,Pivetim, certamente corruptela depivetinho, que na forma dicionarizada como brasileirismo e gria pivete tem conotao pejorativa: menino ladro e/ou que trabalha para ladres (FERREIRA, 1999).Esclarecidos os sentidos das expresses desconhecidas, os leitores so chamados a escolher os personagens que mais lhe chamaram a ateno, buscando expor seus conflitos e compreender sua histria. Para essa atividade, o captulo Comuna revelador dos personagens mais prximos de Pivetim. A anlise dos nomes de alguns desses personagens tambm solicitada, com o intuito de observar o trabalho de criao do autor, bem como a maneira operada por ele para jogar luz sobre os atores sociais que habitam o universo representado no romance, tipos urbanos como menores infratores, pedintes, representantes das leis, jornaleiros, donos de restaurantes e seus serviais, velhos e seus animais. A recepo da obra pelos alunos-leitores continua sendo o norteador da abordagem da narrativa, ao se propor que se ressaltem as passagens ou captulos mais provocadores. O episdio que trata dachurrascafoi um dos mais lembrados e motivou a referncia a um fato real, uma evidente prtica de extermnio, a chacina da Candelria, na cidade do Rio de Janeiro, na dcada de 1990.Churrasca, explica o narrador, quando jogam gasolina sobre as caixas de papelo e tacam fogo sem avisar (TEOBALDO, 2009, p.25).O destaque dos personagens, cenas e captulos remete observao dos temas problematizados pelo autor, tais como a dissoluo do ncleo familiar e o abandono de crianas, o trabalho infantil, a segregao social, e chama a ateno tambm para o projeto esttico da obra que indicia a cruel realidade dos meninos de rua, mas ao mesmo tempo apela para a memria do narrador, para alcanar seus momentos de beleza e fantasia e dimension-lo em sua humanidade. Em certa medida isso comparece em algumas resenhas feitas pelos alunos, no que diz respeito s razes para se indicar a leitura do livro. Um exemplo o episdioem que Pivetimnarra seu prazer e dos colegas em ver os cacos de vidro brilhar no muro da casa de seu Albano, que ficava ao p do morro. Os cacos de vidro, pontudos, cortantes, usados para guardar a propriedade, guardavam mesmo era o lado mais bonito de nossa fantasia (TEOBALDO, 2009, p.132).Alm de outras atividades de explorao do texto, expresso usada aqui nos sentidos de percorrer procurando ideias, delas tirando proveito para o preparo da prpria semeadura de sentidos, outros textos foram postos em circulao para reabastecer a reflexo proporcionada pela leitura dePivetim.Assim, foi convidado para compor a cena de leitura o tambm menino de rua, Faquinha, personagem do cartunista Glauco, com publicao no jornalFolha de S. Paulo(2007). A tira escolhida para interpretao em sala traz o protagonista numa situao em que sua condio de menor abandonado e de total desprovimento de afeto familiar significada pelo seu desconhecimento da palavra pai. A cena da tira, que traz a corriqueira disputa entre crianas ao ostentar os bens materiais do pai, mostra um garoto que, ao passar de carro por Faquinha e seu companheiro parados na rua, grita-lhes que seu pai tem carro importado e o deles, no. Faquinha no reage provocao, apenas pergunta ao amigo O que isso?, ao que este interpela: Carro importado?, e, por fim, Faquinha responde: No, o que que pai?.Os poemas Dorme, pretinho, de Srgio Caparelli, e Cano do menino, de Maria Dinorah (BERALDO, 1990, p. 25), so igualmente chamados ao dilogo com o romance de Dlcio Teobaldo. No primeiro, o eu-lrico observa um menino de rua, que dorme numa cama de jornal, / (...) ele dorme sob a lua / de um anncio de neon, numa evidente referncia situao dos moradores de rua que tm como cama improvisada jornais ou caixas de papelo, como se vemPivetim. Parailustrar, recorre-se passagem em que o narrador explica a ao de extermnio conhecida pelo grupo comochurrasca, que dimensiona a vulnerabilidade do morador de rua durante o sono: se quero armar minha cama de papelo aqui, antes dela, sempre armo uma cama falsa e boto jornal dentro pra parecer que tem gente deitada. Assim, se tacarem fogo, tenho tempo de correr. (TEOBALDO, 2009, p. 25). No segundo poema, o eixo o jogo de sobreposio da realidade pelo sonho, operado pelo eu-lrico, como nica possibilidade se suportar sua condio humana: Mas hoje h tanto frio, / tanta umidade, / que invento um cobertor / de sol poente, / e um pijama de sonho / em cama quente. / bom brincar de gente. (BERALDO, 1990, p. 13). EmPivetim, h passagens em que o protagonista consegue superar as dificuldades, fugir da violncia, evadindo-se no sonho, como no captulo Ah!, cuja concluso a de que apenas no sonho se pode viver sem medo (TEOBALDO, 2009, p.86).O gnero crnica tambm entra na roda de reflexes sobre o tema principal da obra em questo, pelas mos de Luis Fernando Verssimo, com O mais terrvel (1992), e de Marina Colasanti, com De quem so os meninos de rua? (2002). Verssimo elabora sua crnica pautada numa cena em que uma garota, de to pequena, no consegue atingir o narrador com a cusparada que emite em resposta recusa do tio ao pedido de um trocado, no semforo. E, como o prprio ttulo da crnica sinaliza, o mais terrvel no fora a naturalidade com que a menina cuspira-lhe na cara, tampouco o fato de ela no ter alcanado seu intento, mas ele ficar escolhendo frases e cuidando o estilo da crnica que escreve, como se seu ato fosse fazer diferena, ou fosse salvar o tio da sua impotncia e cumplicidade e a sobrinha annima do seu destino (VERSSIMO, 1992). Colasanti, por sua vez, constroi seu argumento sobre a diferena entre Menino De Famlia, Menino De Rua e Menino Na Rua. Trata-se de uma pontual anlise da sociedade na relao que estabelece com os chamados menores abadonados. Reporta-se histria Joozinho e Maria para mostrar a diferena entre as crianas que foram desamparadas pelos pais e os sete milhes de crianas que s podem ter sido abandonados pela coletividade (COLASANTI, 2002), e nos convoca, a todos, para irmos ao bosque, buscar as crianas brasileiras ali deixadas. Dlcio Teobaldo tambm cita a comovente histria dos irmos abandonados no bosque, numa cenaem que Pivetim, estranhando a comida farta, se lembra da histria de Joozinho e Maria, contada pela av. Ocorre que sua lembrana vai at a cena em que a bruxa alimenta as duas crianas para devor-las no Natal, o que faz Pivetim vomitar todo orango.Outros dois textos da literatura infantil e juvenil so levados ao circuito de debates: o conto O bife e a pipoca, de Lygia Bojunga Nunes, e o livro de imagensCena de rua, de ngela Lago. O propsito com esses livros foi o de observar certa proximidade entre eles e a obraPivetim, na forma sensvel e comovedora de abordar os mesmos temas.Em Lygia Bojunga, patente a diferena de classes, estampada no perfil dos dois protagonistas, Rodrigo e Tuca; na realidade dos dois espaos urbanos, rua e morro / cidade e favela; na qualidade da comida, bife e pipoca. Para a relao com o romance de Teobaldo, o interesse foi o de ressaltar os contornos do ncleo familiar de Tuca e Pivetim, assim como a explorao do trabalho infantil, que tambm ser o ponto de convergncia da vinculao proposta entreCena de ruaePivetim. A narrativa visual traz como conflito o trabalho realizado por criana na rua um menino vende frutas num semforo , e sofre alguns percalos, como o ataque de ces, o calote, a desconfiana, a hostilidade. Em forma circular, a narrativa sugere a repetio dos dias e da sina.Cumpre citar, ainda, uma das aes mobilizadas pela leitura do livroPivetim, que foi o contato, via e-mail, dos alunos com o autor Dlcio Teobaldo, o que permitiu, inquestionavelmente, um envolvimento desses leitores com a obra e uma proximidade maior entre eles e Pivetim e sua turma. Nas perguntas elaboradas pelos alunos, reiterou-se a curiosidade em saber o que teria motivado a escrita do livro e se o autor teria convivido com meninos de rua para escrever a histria. Disso se pode depreender que chamou a ateno dos leitores a verossimilhana, ou seja, a coerncia interna da obra no tocante ao mundo imaginrio das personagens e situaes recriadas. As respostas do autor reafirmaram a natureza ficcional do romance, observando que o fato de o livro assemelhar-se ao real, e por vezes soar brutal, deve-se triste constatao de que a fantasia tem sido brutalizada. A maioria dos alunos realou a seguinte mudana ocorrida com eles aps a leitura dePivetim: a percepo de que nem todos os moradores de rua so delinqentes, como eles sempre foram levados a acreditar. Reconheceram seu equvoco e a luta diria das crianas de rua para conseguirem sobreviver.Considerando aqui, de maneira pontual, a recepo da obra pelos leitores em questo, pode-se recorrer, evitando a parfrase para no corromp-la, afirmao integral de Todorov (2009, p. 81): Quanto menos essas personagens se parecem conosco, mais elas ampliam nosso horizonte, enriquecendo assim nosso universo. Trata-se, pode-se inferir, de ampliar a conscincia por meio da experincia esttica, na medida em que novas maneiras de ser so agregadas s j existentes. O que o romance nos d no um novo saber, mas uma nova capacidade de comunicao com seres diferentes de ns (...) O horizonte ltimo dessa experincia no a verdade, mas o amor, forma suprema da ligao humana. (TODOROV, 2009, p.81).Literatura para qu? pode-se, agora, tornar a perguntar. Ou ainda: O que pode a literatura?. Ou por fim: Pra que serve a fico?. Ora, a prtica de leitura desenvolvida com os alunos do stimo ano do CEPAE/UFG permite responder que o que a literatura aspira, e por tabela quem a mantm como prtica, levar compreenso da prpria natureza humana, j que por meio dela o leitor pode viver uma experincia singular e ntima. Da a necessidade de a escola se opor recusa, normalmente vinda de no leitores a saber, aqueles que no tiveram oportunidade de viver alguma experincia esttica e manter a persistncia especialmente se reafirmando como espao privilegiado da leitura.Referncias bibliogrficasAMORIM, G. (Org.).Retratos da leitura no Brasil. So Paulo: Imprensa Oficial: Instituto Pr-Livro, 2008.BERALDO, A.Trabalhando com poesia. So Paulo: tica, 1990.COMPAGNON, A.Literatura pra qu?Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.PERRONE-MOISS, L. Lieratura para todos. In:Literatura e Sociedade.N 9, So Paulo, 2006, p.16-29.TODOROV, T.A literaturaem perigo. Riode janeiro: DIFEL, 2009.CANDIDO, A. O direito literatura. In: _____.Vrios escritos. 3. ed. So Paulo: Duas Cidades, 1995.PENNAC, Daniel.Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.TEOBALDO, D.Pivetim. So Paulo: Edies SM, 2009.FERREIRA, A. B. H.Aurlio sculo XXI: o dicionrio da Lngua Portuguesa. 3. ed. rev. eampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.BRASIL. 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