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5495 LEI E ÉTICA LAW AND ETHICS Érico Marques de Mello RESUMO Pesquisa a respeito da influência exercida pela lei formalizada, tendo em vista a possibilidade de regulamentação da conduta do indivíduo. A influência dos instrumentos normativos foi apresentada de maneiro diferenciada, por diversos autores, em razão dos seguintes critérios: valorização de parâmetros racionais, mediante previsão legal; ou razão prática, por meio das relações sociais concretas, em caráter ontológico. A aplicação do direito em muitos locais priorizou a valorização das relações sociais concretas; enquanto em outros, o aspecto racional, na qualidade de ideal legal positivo. O direito não surge como instrumento de determinação da conduta humana, mas como finalidade, no sentido de garantir a preservação das relações sociais concretas, tal objetivo pode ser cumprido tanto com a constatação de não efetividade de determinada lei, quanto com a inovação legislativa instituída com alteração prática e efetiva de comportamento social concreto. PALAVRAS-CHAVES: LEI, RAZÃO PRÁTICA, DIREITO, RELAÇÕES SOCIAIS CONCRETAS, CONDUTA HUMANA ABSTRACT This paper aims at researching the Law influence in light of the possibility of human behavior regulation. The influence of regulatory tools was presented as differentiated by many authors due to the following criteria: valorization of rational principles by legal dispositions, or practical reasoning by means of concrete social relations, onthologically. Many times, the application of law prioritized concrete social relations, while other times, the rational aspect as a positive legal ideal. Law does not appear as a determination tool of human behavior, but as purpose in order to guarantee concrete social relations keeping. This purpose can be achieved both by finding the inefficacy of a given law, or by legal innovation established by practical and effective alteration of the concrete social behavior. KEYWORDS: RULE, PRACTICAL REASONING, LAW, CONCRETE SOCIAL RELATIONS, HUMAN BEHAVIOR Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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LEI E ÉTICA

LAW AND ETHICS

Érico Marques de Mello

RESUMO

Pesquisa a respeito da influência exercida pela lei formalizada, tendo em vista a possibilidade de regulamentação da conduta do indivíduo. A influência dos instrumentos normativos foi apresentada de maneiro diferenciada, por diversos autores, em razão dos seguintes critérios: valorização de parâmetros racionais, mediante previsão legal; ou razão prática, por meio das relações sociais concretas, em caráter ontológico. A aplicação do direito em muitos locais priorizou a valorização das relações sociais concretas; enquanto em outros, o aspecto racional, na qualidade de ideal legal positivo. O direito não surge como instrumento de determinação da conduta humana, mas como finalidade, no sentido de garantir a preservação das relações sociais concretas, tal objetivo pode ser cumprido tanto com a constatação de não efetividade de determinada lei, quanto com a inovação legislativa instituída com alteração prática e efetiva de comportamento social concreto.

PALAVRAS-CHAVES: LEI, RAZÃO PRÁTICA, DIREITO, RELAÇÕES SOCIAIS CONCRETAS, CONDUTA HUMANA

ABSTRACT

This paper aims at researching the Law influence in light of the possibility of human behavior regulation. The influence of regulatory tools was presented as differentiated by many authors due to the following criteria: valorization of rational principles by legal dispositions, or practical reasoning by means of concrete social relations, onthologically. Many times, the application of law prioritized concrete social relations, while other times, the rational aspect as a positive legal ideal. Law does not appear as a determination tool of human behavior, but as purpose in order to guarantee concrete social relations keeping. This purpose can be achieved both by finding the inefficacy of a given law, or by legal innovation established by practical and effective alteration of the concrete social behavior.

KEYWORDS: RULE, PRACTICAL REASONING, LAW, CONCRETE SOCIAL RELATIONS, HUMAN BEHAVIOR

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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INTRODUÇÃO

Este texto tem a finalidade de investigar a importância da lei na concretização do comportamento social. Sua relevância está relacionada à importância da moral na relação social concreta.

Como conseqüência, pretende-se responder ao seguinte questionamento: se por meio de parâmetros legais é possível alteração de costume.

O primeiro capítulo versa acerca da influência da lei no período clássico. Já no segundo, é observada a modernidade. No terceiro, será apresentado o problema do positivismo jurídico enfrentado após Kelsen. Por fim, no último capítulo será apresentada abordagem prática, com indicação de relação ética com lei.

1 ÉTICA E NATUREZA

A idéia de estado da natureza repercute em orientação normativa, tanto que a valorização do estado da natureza corresponde a uma normatização prática, em que implicitamente há definição de comportamento de valorização da conduta. Quando se observa a justiça segundo concepção inicial, na perspectiva da filosofia clássica, constata-se que não havia preocupação com o cumprimento de leis, mas em preservar uma vida equilibrada, tendo em vista expectativa e realização, que partiam de parâmetro coletivo e convergiam para o indivíduo[1].

Não se pode olvidar que a lei formal, para concepção grega, confunde-se com a perspectiva da natureza, que precede a própria idéia de sociedade civil contratualista. A espontaneidade da natureza, atrelada aos costumes, fundamentava uma auto-organização, de modo que a obediência voluntária de uma lei moral, atrelada à observância global, é que determinava uma conduta prática obrigatória. [2]

Afinal, qual seria a conduta ideal para os gregos da antiguidade? Em um primeiro momento, acreditava-se na liberdade, a partir da capacidade do homem na escolha ideal, baseada na virtude. Em um segundo momento, o surgimento da legislação formal impôs dúvida relevante entre um dever legal positivado e a virtude. É importante ressaltar que a legislação é imprescindível para a valorização de toda relação social – os gregos já sabiam disso -, entretanto, a idéia de conduta ideal não surge qualificada pela lei, mas em comportamento humano fundado na razão prática, tendo em vista a virtude.

Cumpre registrar a diferença entre a concepção de liberdade para Agostinho e Aristóteles. Isso porque, para Aristóteles, diferente da concepção da Idade Média, a liberdade não estaria exatamente em uma escolha direta entre o “certo e o errado” (como sugeriu Agostinho), mas no meio termo, ou seja, na capacidade do ser humano de agir entre um comportamento que valoriza o seu desejo particular e ao mesmo tempo o bem comum.[3]

A legislação, para a filosofia clássica, não tinha finalidade racional, no sentido de que não determinava um comportamento deontológico, uma vez que exercia a função de acompanhar o cidadão, na perspectiva de adotar condutas coerentes com o bem comum.

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A idéia de justiça, assim, não estaria relacionada ao texto da lei, mas à interpretação presa a uma conduta ontológica, comportamental e restrita à perspectiva ética.[4]

Dessa forma, a filosofia clássica valoriza a virtude como elemento determinante do comportamento ideal do homem[5], tendo em vista a razão prática. A virtude em si não estaria restrita ao bem comum, ou afastada do particular, mas no meio termo entre uma ação egoísmo e um comportamento ideal esperado pelo ser humano. Na verdade, a virtude seria o meio termo existente entre um desejo particular egoísta e o bem comum.[6]

Aristóteles acreditava na capacidade de escolha do homem, tendo em vista a dissociação do bem. Tanto que o próprio surgimento do Estado decorreu da escolha do homem, em relação ao bem comum, e a sua incapacidade diante das limitações impostas pela natureza. A própria existência do Estado decorreu da associação do homem, a partir da necessidade real de bem comum. [7]

Entretanto, enquanto no período clássico acreditou-se em um ser humano virtuoso, que agiria segundo as leis da natureza, a idade média indicou exatamente o contrário. A própria idéia de livre-arbítrio[8] de Agostinho pressupunha que o ser humano conhecesse a virtude[9] e a razão prática, o que não significa que aja de acordo com o bem comum. A idéia de livre-arbítrio definida por Santo Agostinho indica ausência de liberdade, ou seja, a possibilidade de escolha entre uma conduta que atenda às expectativas da virtude e uma oposta a idéia de virtude. O que fundamenta a legislação é justamente a idéia de livre-arbítrio de Agostinho.

É importante ressaltar que a idéia de razão prática, relativa à orientação normativa, não é observada de forma abstrata e genérica[10], pois o que a conduta idéia pressupõe é a valorização de conduta específica, para determinado momento, também, específico. Em outras palavras, a legitimidade de qualquer sistema normativo decorre da consciência prática específica e aplicada a determinada conduta, considerada orientação obrigatória em maior ou menor grau, dentro da sociedade.

Portanto, desde o período clássico, o julgador invariavelmente se depara com circunstâncias fáticas não previstas, ou regulamentações destoantes da pretensão normativa inicial, em que sua função é estabelecer relação entre a função exercida pela legislação e a circunstância fática encontrada.[11]

2 RACIONALIDADE E ÉTICA

2.1 A MODERNIDADE E O POSITIVISMO

Segundo a teoria contratualista de institucionalização da sociedade civil, a normatização tornou-se elemento fundamental de observância obrigatória, tendo em vista a regulamentação das relações sociais. Racionalmente, observaram-se leis positivas que deveriam ser respeitadas, em caráter deontológico. Na perspectiva ontológica, a razão prática prevaleceu sob forma de concepção de justiça intrínseca ao ser humano, jusnaturalismo.[12]

Com a teoria contratualista, há a idéia hipotética de passagem de um estado da natureza para a sociedade civil, por meio do contrato social. O contrato social seria instrumento

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pelo qual a sociedade define as instituições e estabelece parâmetros internos, além de orientar a distribuição de riquezas. Então seriam dois os elementos essenciais para institucionalização da sociedade civil, por meio do contrato social: existência de posição original, formada por particulares, pessoas racionais; e, consenso, mediante a idéia predominante de outorga de poderes a ente supra-sensível com representatividade.[13]

A existência de um Estado passou a ser justificada pela idéia de renúncia parcial da liberdade em privilégio da sociedade. Não se pode olvidar que a definição do Estado como ente soberano estabelece restrições a antigos direitos naturais. Dessa forma, a questão essencial passa a ser a influência do direito natural no estado civil organizado.[14]

Diferentemente do parâmetro medieval e clássico, em que o problema da lei formalizada estaria relacionado à efetividade, em face da perspectiva ética, as teorias modernas já estabelecem diretamente a influência ética, por meio do jusnaturalismo. O conflito moderno seria entre o contrato social e o jusnaturalismo.[15]

Para Hobbes o contrato social seria necessário para proteção da vida. A vida deveria ser protegida do próprio ser humano, em razão da permanente vocação humana de destruição do próximo. Caso houvesse respeito mútuo, diferente da realidade observada, o Estado Natural seria perfeito, de sorte a sociedade civil organizada jamais existiria. Entretanto, a sociedade organizada é necessária, em razão das características inerentes ao próprio ser humano.[16]

Verifica-se em Locke a institucionalização da sociedade civil com a finalidade de proteger os particulares em face de incertezas, razão pela qual há garantias, em privilégio de vantagens já estabelecidas. A prioridade da legislação estaria na proteção de fundamentos anteriores ao próprio direito natural.[17]

Para Rousseau haveria a necessidade de concessão de parte da liberdade, de cada membro da coletividade, em benefício da constituição da sociedade civil. O que caracteriza o estado civil é a restrição da liberdade individual, cedida pelo particular em benefício de toda coletividade. O fator determinante seria o consenso, em que a estrutura estatal seria resultado da coletividade.[18]

A influência ética sempre determinou a aplicação concreta da legislação, tendo em vista as relações sociais concretas, desde o período clássico. Entretanto, observou-se na modernidade, principalmente em Hobbes, um respaldo legalista para incidência do direito, ou seja, a legislação concreta determinou a regulamentação das relações concretas[19]. Para Hobbes a lei é de orientação determinante, que não admite qualquer influência prática, ou observância ética.

Destaca-se aproximação entre Hobbes e Locke, em razão do pressuposto de proteção incondicional da vida. Tanto que o próprio fundamento inicial de Locke seria a vida como propriedade. A impossibilidade de escravidão, assim como possibilidade de concessão de membros do corpo, ou qualquer forma de domínio em face da vida ou dignidade alheia estaria evidenciada, sob fundamento de que ninguém poderia conceder poderes de que dispõe. [20]

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Como conclusão, a regulamentação formal das relações sociais concretas, a partir do contrato social, é observada de forma simples. A necessidade de proteção individual de todos os particulares, bem como a valorização de modelo que privilegiasse o direito natural, tinha fundamento na própria razão de ser da lei. A função exercida pela norma positiva seria a própria proteção do direito natural.[21]

2.2 ENTRE KANT E KELSEN

Para estudo e definição de qualquer parâmetro normativo, um dos elementos mais importantes é a liberdade do particular em estabelecer as relações sociais. A partir da liberdade, e das relações sociais preestabelecidas, pode-se especular acerca da incidência normativa, tendo em vista a conduta do indivíduo. Entretanto, não é imprescindível a existência formal de norma de regulamentação, pois são identificados padrões baseados em razão eminentemente prática, que estabelecem normas obrigatórias ao indivíduo.[22]

Assim, a liberdade é aduzida como elemento essencial, identificado por Immanuel Kant, para a razão prática. Kant identifica uma causa legisladora universal, também, determinante do livre-arbítrio, observada como elemento determinador da vontade. Conseqüentemente, trata-se de orientação de natureza normativa não institucionalizada e de atenção efetivamente obrigatória.[23]

É antiga a concepção acerca da desnecessidade de legislação, uma vez que há auto-regulamentação da relação social. Assim, apresenta-se a questão: até que ponto a norma de natureza moral deve ser levada em consideração? Na teoria de Kant, a norma moral é de cumprimento obrigatório[24] e atenção incondicional, ou seja, a razão prática pode ser definida como elemento determinante da conduta, tendo em vista leis morais universais.[25]

O objetivo da legislação formalizada está na solução de conflitos, tendo em vista necessidade de prevenção quanto à circunstância fática, a partir de previsão específica e solução coerente[26]. Cada situação de fato está diretamente relacionada à norma específica. Em razão da imperfeição da forma como as relações sociais são desenvolvidas surge à necessidade da lei, e uma segunda questão seria: a lei adequada seria de natureza kantiana; ou, seria a lei um mal necessário.

A função da lei é servir de parâmetro para decisão judicial, em face da concretude das relações sociais, de forma que na ausência de lei específica cabe ao juiz descobrir o direito adequado[27]. Dessa forma, a importância da legislação está relacionada a parâmetros, tendo em vista a necessidade de incidência e o fato concreto.

Tanto que a conduta definida pela lei é ideal, sem relação com o fato concreto, pois se trata de avaliação quanto ao valor moral, sem relação alguma com resultado específico encontrado, ou eventual expectativa. A lei se manifesta como elemento anterior ao ato. A conduta ideal do ser humano não pode ser avaliada pelo resultado, nem pelos parâmetros ideais positivados.[28]

Então, do ponto de vista teórico, a existência do direito positivo manifesta-se como desnecessária, pois o comportamento é determinado por uma lei moral universal, em que a vontade máxima de todo ser racional se converge para o bem comum.[29]

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A questão essencial do direito é a coação, em privilégio da própria sociedade, a partir do momento que a instituição do poder judiciário é levada para solução de conflitos entre particulares[30]. Entretanto, o que é exigido do ser humano no caso concreto é de constatação complexa, visto que a verificação adequada quanto à conduta estaria relacionada a elementos intrínsecos ao fato.

A evolução do direito impõe atuação estatal para solução de conflitos entre particulares, mediante poder jurisdicional, inserido na sociedade de forma determinante.[31] Assim, a evolução do direito tem fundamento em critério moral, mas – de forma contraditória – na prática se baseia em soluções racionais alheias à expectativa ética.

O “ser” (fundamentado nas relações sociais concretas) e o “dever ser” (imposição legalista do ordenamento jurídico) apresentam-se como dois lados da mesma moeda, em que, no momento inicial, a legislação aparece com a finalidade de realizar a estabilidade das relações sociais[32]. No entanto, na prática, evoluem em direções distintas, e determina dupla instabilidade no ordenamento jurídico, senão vejamos: em primeiro lugar o “dever ser” é frágil por não atender às expectativas sociais concretas, em razão da constante evolução social; em segundo lugar, as relações sociais estão em crise, e a solução ideal muitas vezes não pode decorrer da expectativa ética em razão da prática de atos viciados.[33]

Dentro da estrutura apresentada, qual seria a função da lei formalizada? A lei está relacionada à capacidade racional do ser humano[34], de forma a estabelecer um parâmetro ideal de determinação e orientação de conduta nas relações sociais. A lei formalizada, portanto, seria de incidência específica, após verificação concreta da expectativa social, tendo em vista associação da lei ao fato encontrado, de modo a não privilegiar, de forma incondicional, a lei; nem, exclusivamente, o aspecto ontológico da sociedade, isto é, deve ser buscado o conteúdo ideal da norma, por meio de trabalho reconstrutivo do direito, apresentado a seguir.

3 O PARADIGMA ATUAL DO DIREITO

O que determina a estrutura social, tanto no que tange à legislação, quanto em relação à interação social, é a comunicação[35]. A comunicação estabelece conexão entre as pretensões, bem como se torna instrumento inicial para reivindicar. Toda realização social se implementa a partir da comunicação. Então, trata-se da comunicação como reconstrução da sociedade, a partir das prioridades desenvolvidas e estabelecidas, politicamente, ou não.[36]

O aspecto comunicativo é essencial, em razão de uma interação lógica, a fim de que se reconstrua permanentemente a realidade social. A questão é estabelecer a diferença entre esta e o aspecto legislativo, para que haja aplicação específica de acordo com parâmetros que apresentem soluções ideais a cada caso particular. Tal perspectiva não está restrita ao legislador e tampouco ao julgador, mas à sociedade, dentro de parâmetro epistemológico.[37]

Então, a conduta do indivíduo é associada a um agir estabelecido por meio de interação entre os demais membros da coletividade (ou grupo), os quais estabelecem uma prática momentânea, tendo em vista o parâmetro ideal encontrado na sociedade[38]. O parâmetro é estabelecido para determinada circunstância, para o dado momento e

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submete o indivíduo a um resultado específico, como determinação de conduta também específica.

A constituição do grupo ocorre, de forma que a influência exercida no indivíduo é resultado estabelecido coletivamente. A influência da coletividade é determinante nas pessoas de convívio particular, na estrutura de cada familiar ou na religião. Constatação essa evidente, afinal, os valores sociais são inseridos coletivamente, com determinação de padrões éticos.[39]

Os grupos se tornam elementos de definição do indivíduo, em meio à sociedade. A identidade de interesses e as limitações estabelecidas determinam aproximações informais entre membros da sociedade, de forma que a determinação da existência de grupos se dá com a identidade de interesses, ainda que estabelecida por pessoas de realidades distintas.[40]

A organização de grupos pressupõe ente complexo, cujo aparato de representatividade não é definido de forma direta, sobretudo em razão da dificuldade da manutenção dos interesses de cada membro. Trata-se de ente inconstante e de difícil governo, com representatividade quase impossibilitada.[41]

Ademais, as massas são destituídas de raciocínio, pois agem pelo inconsciente, em meio à crença, que determina a própria conduta, ou seja, não é necessária a verdade, mas apenas a fé. Como conseqüência, é verificada a intolerância, como característica da organização coletiva. Como segunda conseqüência, da ausência da razão, a autoridade na estrutura do grupo define a autoridade e a conduta da massa, não por meio da repressão, mas pelo exercício da autoridade, a partir da expectativa de força. A possibilidade de suprimir a reivindicação é elemento essencial para se aferir a capacidade da massa, que é ente descontrolado que não necessariamente se compromete com a virtude.

Logo, a legislação é de aplicação condicionada a diversos fatores, principalmente no que tange às organizações coletivas, de modo que a simples existência da legislação não significa nenhuma norma imperativa. A eficácia da lei exige uma interação social, ainda que mínima. A verdade é que a legislação decorre de um procedimento de autodeterminação, cujo papel do cidadão é definitivo e determinante, por meio do fator comunicação.[42]

A partir deste tópico, afirma-se a participação ativa dos membros da coletividade, tanto na construção da legislação, quanto na incidência efetiva de cada lei existente. O indivíduo, os grupos e a coletividade tornam-se determinantes na realização política, em razão de dois únicos fatores: a identidade de interesses, em que há a definição e extensão de determinada coletividade; e a comunicação que estabelece identidade entre indivíduos, grupos e coletividade.

3.1 TEORIA ARGUMENTATIVA

A incidência da lei não corresponde à atividade de criação, mas da descoberta de um direito existente. Não cabe ao aplicador atividade inovadora, mas apenas estabelecer relação entre os diversos discursos e as oportunidades legais. Assim, os direitos implícitos devem ser observados e descobertos pelo aplicador.[43]

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A definição da norma também não se apresenta tão-somente após a mera existência formal. A observação da estrutura argumentativa é relevante, para observação da convicção social em caráter coletivo, de incidência da norma, por meio da adaptação do “dever-ser” ao “ser”, ou seja, a partir das convicções internas, estabelece-se o conteúdo normativo, a partir da convicção social exteriorizado pela razão prática.[44]

A observação da teoria argumentativa se dá tanto na expectativa imediata, quanto em relação à orientação das premissas. Trata-se de dupla justificação estabelecida não apenas pelo encadeamento lógico imediato das diretrizes particulares envolvidas, como também pela adaptação sistemática, no sentido de corresponder também a fatores externos, bem como ao próprio ordenamento jurídico.[45]

A justificação interna decorre da própria estrutura argumentativa, tendo em vista os pressupostos legais observados em caráter formal. A estrutura argumentativa é orientada pelas bases e fundamentações já existentes, de modo que internamente se trata da concretização dos requisitos já apontados.[46]

A teoria da argumentação interna à dogmática do direito tem função de estabilização, tendo em vista considerações racionais de solução imediata. Entretanto, tal consideração afasta a ética universal, bem como o pressuposto de justiça, em privilégio a soluções dogmáticas, que seriam observados pela justificação externa.[47]

A estrutura argumentativa tem a finalidade de estabelecer equilíbrio entre justificação interna e externa, de sorte que haja observância da expectativa coletiva, por meio da incidência de uma ética universal, que não mais é que a adaptação da moral universal kantiana em caráter coletivo. O que determina a incidência do princípio universal é justamente a justificação interna e externa da estrutura básica do argumento jurídico.[48]

A imputação da norma válida pressupõe o atendimento particular, por meio de comportamento espontâneo. Assim, a norma afastada da perspectiva ética pode não ter validade[49], por ser norma alheia ao comportamento particular, definido pela moral. Mas a questão não se esgota no comportamento voluntário do particular, a partir do momento que existe uma lógica específica, tendo em vista razão comunicativa, de forma a estabelecer o comportamento considerado adequado.

3.2 O LEGISLADOR PODE ALTERAR COSTUME POR MEIO DE LEI?

É evidente que determinadas orientações normativas não são aplicadas, por inequívoca vontade dos membros da sociedade. Muitas leis são aprovadas sem expectativa real de coação, uma vez que são consideradas injustas. A questão do descumprimento voluntário de lei corresponde à desobediência civil.[50]

A desobediência civil decorre de convicção da sociedade em não se submeter à determinada orientação legal, na qualidade de comportamento consciente, o que não constitui ameaça ao Estado, de modo que, em que pese violação da lei, a estrutura do Estado permanece a mesma. A desobediência civil decorre de um sentimento social contrário aos parâmetros legais, exteriorizado por comportamento específico de não atendimento de orientação legal.[51]

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A desobediência civil é resultado de conjunto de fatores, definidos coletivamente, pela auto-organização social. A construção dos fatores inerentes à expectativa normativa está associada à inserção do indivíduo em coletividade, em ambiente instável de permanente reconstrução, em razão da coletividade.[52]

Dessa forma, a orientação normativa decorre da concretização das relações sociais, por meio de reconstrução dos valores sociais observados em dois momentos: o primeiro, do indivíduo, enquanto membro da coletividade; o segundo, da coletividade a partir da interação dos diversos indivíduos. A conduta observada pelo indivíduo – como obrigatória - não possui subordinação em relação à legislação existente, em razão de uma perspectiva cultural.[53]

A esfera pública, assim, não dispõe de liberdade na elaboração de instrumentos normativos, nem autonomia de controle e regulamentação do comportamento social. A legislação é construída por processo complexo, em que há a captação de determinado problema na sociedade, tendo em vista processo comunicativo. A captação do problema, por parte da estrutura política, determina atuação governamental.[54]

Então, duas são as questões: a legislação é determinada pela sociedade, a partir da interação dos indivíduos entre si, em grupos; a legislação é resultado do valor de aspecto ontológico inerente às relações sociais concretas. É fato que caso a legislação não corresponda às pretensões socais, não disporá de aplicação efetiva; da mesma forma, toda legislação existente é interpretada de forma a extrair um conteúdo específico, capaz de atender às expectativas sociais.[55]

Chega-se ao ponto objeto de discussão: o legislador pode estabelecer novo parâmetro de comportamento, por meio de lei? De forma autônoma é evidente que não, mas a partir de parâmetros comunicativos, o legislador pode identificar determinado problema inserido na sociedade e propor inovação legislativa. Como conseqüência, a sociedade, que antes vislumbrava a faculdade de agir de forma diversa, passa a seguir a referida inovação.[56]

O legislador não pode alterar a relação social concreta, uma vez que à expectativa da coletividade representa poder soberano. De fato as opiniões das massas determinam a própria capacidade de atuação por parte do Estado, de modo que tanto as leis quanto às realizações, na esfera política, devem corresponder aos interesses delas.[57]

Inicialmente, a dificuldade conceitual estaria na identificação do agir comunicativo, razão comunicativa, que não estabelece liame entre a norma e a moral, apesar de estar situado entre o direito e a moral, tendo em vista o poder democrático. O agir comunicativo se encontra nos discursos inseridos na sociedade, em que, a partir da identificação dos diversos discursos formadores de opinião, serão estabelecidos parâmetros de decisão, com valorização da expectativa democrática.[58]

O agir comunicativo[59] seria um valor central, entre o direito e o contexto social, que estabelece reconstrução de interesse, tendo em vista observação de problema específico. Assim, é identificado determinado fato, bem como a respectiva valoração ideal, por meio de uma solução legal. A partir de tal estrutura Habermas observa a relação entre a legislação existente e o agir comunicativo, que resulta na “tensão validade facticidade”.

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A solução adequada dos conflitos decorre de método procedimental que o julgador adota, no interesse de particulares dos membros da sociedade (coletividade). É verificado um método racional em que um funcionário da administração exerce atribuições com poder de decisão. Mas o poder do julgador é submetido a limitações, de acordo com aspectos baseados na legitimidade, esta é orientada pela “tensão validade facticidade”.[60]

Da mesma forma em que o julgador não aplica indistintamente toda e qualquer orientação normativa, por limitação ontológica, determinada lei pode alterar o próprio aspecto ontológico, caso a inovação legislativa corresponda à expectativa social definida em campo discursivo, ou seja, uma inovação legislativa pode estar de acordo com o bem comum, e determinar mudança no próprio aspecto ontológico, alterando o costume. Diante do exposto, defende-se a tese de que o legislador pode alterar costume por meio de lei.

3.3 APLICAÇÃO PRÁTICA

A questão apresentada versa acerca dos limites de atuação do legislador. Em um primeiro momento é observado que a incidência da lei não é definida tão-somente pela existência formal, uma vez que inúmeros fatores são determinantes na incidência concreta. Em um segundo momento, é afirmado que o legislador pode, por meio da lei, alterar costume.

Quanto ao poder do legislador, indicado no parágrafo anterior, afirma-se que a inovação legislativa pode determinar mudança do aspecto ontológico. Inicialmente, observa-se que até o ano de 1997 [61], no Brasil, não havia preocupação quanto à necessidade de dirigir com o uso de cinto de segurança, de modo que a legislação interna assim passou a regulamentar. O uso do cinto de segurança, na condução de veículos, passou a ser privilegiado em razão do reconhecimento interno de bem comum.

Posteriormente, a legislação de trânsito foi alterada novamente [62], com a proibição de condução de veículos automotores após ingestão de álcool, bem como obrigatoriedade de teste do “bafômetro” para verificar o consumo de álcool. O não uso de álcool, em razão da condução de veículos automotores, tem sido observado como critério obrigatório de conduta. A proibição de álcool já é amplamente reconhecida em privilégio do bem comum. Destaca-se que o próprio judiciário admite as diretrizes da “lei seca” em caráter incondicional. [63]

Dessa forma, é possível alteração de costume por meio de inovação legislativa, por parte do legislador, conforme se observa nos exemplos acima indicados. Se por um lado a incidência da lei não se dá de forma incondicional; por outro, é possível uma lei alterar o próprio aspecto ontológico, e elidir a permanência de costume observado socialmente.

CONCLUSÃO

A partir da presente dissertação, apresentam-se as conclusões abaixo relacionadas.

1 A razão prática apresentada por Aristóteles indica norma de conduta, definida pelo ser humano racionalmente, observada como direito natural.

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2 Com o positivismo jurídico, permanece a influência do direito natural, agora jusnaturalismo, que passa a exercer influência determinante no comportamento individual.

3 A legislação é observada como regulamentação de conduta, de modo que não há aplicação irrestrita. A incidência de normas em geral decorre de um conteúdo observado nas relações sociais concretas, isto é, a existência formal de uma lei não é elemento suficiente para determinar efetividade.

4 Da mesma forma que a legislação encontra na relação social concreta um limitador, no que tange à efetividade, o legislador, a partir da percepção das expectativas sociais, pode alterar costume, por meio da lei, de modo que a inovação legislativa - conforme observado no presente trabalho - pode alterar costume.

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[1] Gisele AMARAL. Sentido Espiritual de Lei em Filo de Alexandria. Em torno da Metafísica. Organização: Marta Luzie de Oliveira Frecheiras e Márcio Petrocelli Paixão. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001. p. 119: “(...) os homens ‘não precisavam de leis e sequer conheciam a escrita’(...) a ausência de lei escrita nos remete igualmente a um tempo longínquo em que os homens eram pouco numerosos e que, sem conhecerem a inveja nem a disputa, viviam como pastores nas montanhas (...) sentido de uma distribuição equilibrada, portanto, justa.”

[2] Ibidem. p. 120: “(...) natureza não pertencendo, por isso, a nenhuma legislação tipicamente humana. (...) hábito de uma comunidade não havia ainda a necessidade de transformar numa ‘lei escrita’. (...) costumes de um povo funcionavam como ‘leis intermediárias’entre as leis escritas’, já promulgadas, e as leis que ainda viriam a sê-lo. A obediência a essas leis dava-se, por conseguinte, de maneira voluntária.(...)”

[3] ARISTÓTELES. Ética a Nicomacos. Tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 82: “(...) o homem ideal, tal qual as outras pessoas virtuosas, dá tendo em vista o que é nobre, e dá como deve, pois o faz às pessoas certas, as quantias que convém e no momento devido, com todas as condições que acompanham o ato de dar acertadamente.” (p. 82)

[4] Ibidem. p. 41: “(...) os legisladores tornam bons os cidadãos por meio de hábitos que lhes incutem. Esse é o propósito de todos os legisladores, e quem não consegue alcançar tal meta, falha no desempenho de sua missão, e é exatamente neste ponto que reside a diferença entre a boa e a má constituição”

[5] Ibidem. p. 46-47: “(...) não somos chamados bons ou maus por causa das nossas paixões, e sim por cusa das nossas virtudes ou vícios; e não somos louvados ou censurados por causa das nossa paixões (...) a virtude do homem também será a disposição que o torna bom e que o faz desempenhar bem a sua função (...)”

[6] Ibidem. p. 49: “(...) A virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha de ações e paixões, e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática.”(p.49)

[7] Idem. Política. Tradução: Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 14: “(...) O que, especificamente, diferencia o homem e que ele sabe distinguir o bem do mal, o justo do que não o é, e assim todos os sentimentos dessa ordem cuja comunicação forma exatamente a família do Estado.

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Na ordem natural, o Estado antepõe-se à família e a cada indivíduo, visto que deve, obrigatoriamente, ser posto antes da parte. Levantai a todo: dele não restará nem pé nem mão senão no nome, como se poderá afirmar, por exemplo, que a mão separada do corpo senão pelo nome. Todas as coisas são definidas pelas suas funções; e desde o instante em que elas venham a perder os seus característicos, não mais se poderá afirmar que são as mesmas; somente ficam entendidas sob a mesma denominação. De maneira evidente, o Estado está na ordem da natureza e antecede ao indivíduo; pois, se cada indivíduo por si a si mesmo não é suficiente, o mesmo modo acontecerá com as partes em relação ao todo. Ora, o que não consegue viver em sociedade, ou que não necessita de nada porque se basta a si mesmo, não participa do Estado - é um bruto ou uma divindade. A natureza faz assim com que todos os homens se associem. Ao que primeiro estabeleceu essa fórmula se deve o bem maior; pois se o homem, chegado à sua perfeição, é o mais ímpio e o mais feroz de todos os entes vivos; não sabe, para sua vergonha, mais do que amar e comer. A justiça constitui a base da sociedade. Dá-se o nome de julgamento à aplicação do que é justo.”

[8] Santo AGOSTINHO. Livre-Arbítrio.Tradução: Nair de Assis Oliveira. 2ed. SP: Paulus, 1995. p. 75: “Assim, quando deus castiga o pecador, o que te parece que ele diz senão estas palavras: ‘Eu te castigo porque não usaste de tua vontade livre para quilo a que eu o concedi a ti’? Isto é, par aagires com retidão. Por outro lado, se o homem carecesse de lire-arbítrio da vontade, como poderia existir esse bem que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados e premiando as boas ações: Visto que a conduta desse hoem não seria pecado nem boa ação, caso ao fosse voluntário. Igualmente o castigo, como a recompensa, seria injusto, se o hoem não fosse dotado de vontade livre. Ora, era preciso que a justiça estivesse presente no castigo e na recompensa, porque aí está um dos bens cuja fonte é Deus.”

[9] Tomás de AQUINO. Suma Teológica. 1ª Parte da 2ª Parte. Tradução: Alexandre Corrêa. Rio Grande do Sul: Escola Superior de Teologia São Lourença de Brindes, 1980. p. 1745: “(...) os homens são bons pela virtude, que torna bom que a tem, como diz Aristóteles. Ora, a virtude do homem, vem-lhe de Deus, que a produz em nós, sem nós, como se disse a propósito da definição da virtude. Logo, não compete à lei tornar os homens bons.”

[10] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução: Pietro Nassetti. SP: Martin Claret, 2004. p. 104: “um homem somente é perfeito quando está de acordo com a sabedoria prática e com a virtude moral, pois esta faz com que nossa objetividade seja certa, e a sabedoria prática, comque escolhamos os meios certos”

[11] Ibidem. p. 125: “...toda lei é universal, mas não é possível fazer um afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares. (...) quando a lei estabelece uma lei geral e surge um caso que não é abarcado por essa regra, então é correto corrigir a omissão, dizendo o que o próprio legislador teria dito se estivesse presente, e que teria incluído na lei se tivesse previsto o caso em pauta.”

[12]Norberto BOBBIO. Locke e o Direito Natural. Tradução: Sérgio Bath. Tradução: Janete Melasso Garcia. Brasília, 1997.

[13] John RAWLS. Uma Teoria e Justiça. Tradução: Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 12: São esses princípios que

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pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição original de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação. Esses princípios devem regular todos os acordos subseqüentes; especificam os tipos de cooperação social que se podem assumir e as formas de governo que se podem estabelecer.”

[14]Norberto BOBBIO. Locke e o Direito Natural. Tradução: Janete Melasso Garcia. Brasília: UnB, 1997. p. 95: “(..) a razão fundamental da passagem do estado natural ao estado civil é a renúncia às disposições sobre as coisas indiferentes e a sua atribuição ao soberano, sem qualquer limite e, portanto, sem a sobrevivência dos direitos naturais.”

[15] Ibidem. p. 151: “A teoria política de Locke é um monumento levantado às leis naturais que presidem à formação das principais instituições, regulamentando a vida do homem, e das quais as leis positivas não passam de um reflexo.”

[16] Ibidem. p. 171: “Se os homens fossem como deveriam ser, o estado da natureza seria o estado pefeito; não necessitaríamos de outro. Mas, como os homens são como são, o estado da natureza degenera-se em um estado de convivência miserável e precária, sendo necessário, se não extingui-lo, pelo menos corrigi-lo.”

[17] Norberto BOBBIO. Locke e o Direito Natural. Tradução: Janete Melasso Garcia. Brasília: UnB, 1997. p. 232: “Ora, como o poder civil é um poder derivado – ao contrário do que acontece com o poder sobre as coisas, que é originário -, seu conteúdo não pode exceder o que está contido nos poderes naturais do homem que vive no estado da natureza. Em conseqüência, enquanto resultante da renúncia dos poderes naturais, o poder civil transforma-se na confluência dos dois poderes naturais transferidos do indivíduo para o corpo político.”

[18] Jean-Jacques ROUSSEAU. Do Contrato Social. Tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 35: “(...) o que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito sem limites a tudo que o tenta e pode atingir; ganha a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. (...) nossas compensações, cumpre distinguir bem a liberdade natural, que só tem por termo as forças do indivíduo, da liberdade civil, que é limitada pela vontade geral; e a possessão, que é só efeito da forma, ou o direito do primeiro ocupante, da propriedade, que não pode ser fundada a não ser num título positivo.

(...) ajuntar à aquisição do estado civil a liberdade moral, que só o faz o homem verdadeiramente senhor de si; pois o único estímulo do apetite é a servidão, e a obediência à lei prescrita é liberdade: mas já falei muito acerca desse artigo, e não é de meu presente assuntos o sentido filosófico da palavra liberdade.”

[19] Thomas HOBBES Malmesbury. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução: João Paulo e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 105: “O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmo sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela misera condição de guerra que é a conseqüência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível, capaz de os manter em

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respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza que foram expostas nos capítulos décimo quarto e décimo quinto.”

[20] John LOCKE. Segundo Tratado sobre o Governo. Tradução: Alex Marins. São Paulo: Martin Claret. 2005. p. 36: “(...) o homem não tem poder sobre a própria vida, não tem autoridade, por pacto ou por consentimento, de escravizar-se a quem quer que seja, nem se colocar sob o poder arbitrário absoluto e outrem, que lhe tome à vida a seu bel-prazer. Ninguém pode dar mais poder do que possui; e quem não pode tirar de si a própria vida não pode conceder qualquer poder sobre ela.”

[21] Jürgen HABERMAS. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. 1v. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 126: “(...) o contrato social é um ‘fim em si mesmo’. Pois ele fundamenta ‘o direito dos homens (a viver) sob leis coercitivas públicas, através das quais pode ser determinado a cada um o que é seu e assegurado contra a usurpação por parte de todos os outros’ (...) o contrato social não tem, por sua natureza, um conteúdo especial, pois ele constitui em si mesmo o modelo para uma socialização sob domínio do principio do direito (...)

(...) o contrato social serve para a institucionalização do direito ‘natural’a iguais liberdades de ação subjetivas.”

[22] Immanuel KANT. Crítica da Razão Prática. Tradução: Rodolfo Schaefer. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 29: “(...) as leis práticas referem-se exclusivamente à vontade, sem ter em conta o que é feito pela sua causalidade, podendo-se abstrair-se dessa causalidade (como pertencente ao mundo sensível) para ter puras essas leis práticas.”

[23] Ibidem. p. 44: “Ora, convenhamos: é inegável que todo querer deve ter também um objeto, por conseguinte, uma matéria; mas nem por isso constitui o princípio de determinação e a condição da máxima; porque, se o fosse, ela não poderia representar-se na forma legisladora universal, pois, nesse caso, a esperança da existência do objeto seria a causa determinante do livre-arbítrio e, como fundamento do querer, deveria pôr-se a dependência da faculdade de desejar relativamente à existência de alguma outra coisa qualquer, dependência esta que só pode ser buscada em condições empíricas, não podendo, por isso, conferir fundamento a uma regra necessária e universal.”

[24] Immanuel KANT. Crítica da Razão Prática. Tradução: Rodolfo Schaefer. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 47: “A lei moral, entretanto, ordena a cada um a mais pronta obediência. Dessa forma, o juízo do que cumpre fazer, de acordo com ela, não deve ser tão difícil que entendimento mais comum e menos exercitado não seja capaz, mesmo sem ter conhecimento do mundo.”

[25] Ibidem. p. 28: “(...) princípios da determinação da vontade, os princípios que são feitos para si mesmo nem por isso constituem ainda leis, às quais inevitavelmente se estaria submetido, porque a razão na ordem prática refere-se ao sujeito, isto é, com a faculdade de desejar, segundo cuja constituição especial a regra pode se estabelecer por muitos modos. A regra prática é sempre um produto da razão, porque prescreve a ação como meio para o efeito, considerando como intenção...Entretanto, para um ser no qual a razão não é o único princípio da determinação da vontade, essa regra é um imperativo,

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ou seja, é uma regra designada por um dever...que exprime a obrigação...objetiva da ação, e significa que, se a razão determinasse completamente a vontade, a ação ocorreria inevitavelmente conforme tal regra. Assim, os imperativos têm um valor objetivo e são inteiramente distintos das máximas, enquanto estas são princípios subjetivos. Os imperativos determinam ou as condições da causalidade do ser racional como causa eficiente, unicamente em consideração do efeito e capacidade para produzi-lo, ou então determinam apenas a vontade, seja ou não ela suficiente para o efeito. Os primeiros seriam imperativos hipotéticos e conteriam simples preceitos de habilidade (...); os segundos, ao contrário, seriam categóricos e unicamente leis práticas. Assim, as máximas certamente são princípios (...), mas não imperativos. Porém, os próprios imperativos, quando condicionados, isto é, quando não determinam a vontade apenas como vontade, mas somente em vista de um efeito desejado, ou seja, quando são imperativos hipotéticos, constituem sem dúvida preceitos práticos, mas não leis.”

[26] Hans KELSEN. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 5: “(...) o conteúdo de um acontecer fático coincide com o conteúdo de uma norma que consideramos válida.”

[27] Ibidem. p. 5: “(...) A lei aplica-se a todas as questões jurídicas para as quais contenha, segundo a sua letra oua sua interpretação, um preceito (...) deve o juiz decidir de acordo com o direito consuetudinário e, na falta deste, segundo a norma que ele, como legislador, teria elaborado”.

[28] Immanuel KANT. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução: Leopoldo Holzboch. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 28: “(..) o valor moral da ação não reside no efeito que dela se espera; também não reside em qualquer princípio da ação que precise tomar seu fundamento determinante nesse efeito esperado. Pois todos esses efeitos (o agrado do estado próprio, ou inclusivo o fomento da felicidade alheia) poderiam ser alcançados também por outras causas, e para tal não precisaria, portanto de um ser racional, em cuja vontade, e somente nela, se pode encontrar o bem supremo incondicional. Por conseguinte outra coisa não h[a senão a representa;ao da lei em si mesmo, a qual só no ser racional se realiza, enquanto é ela, e não o esperado efeito, o fundamento da vontade, podendo constituir o bem excelente a que chamamos moral, que se faz presente já na própria pessoa que age segundo essa lei, as que não se deve esperar de nenhum efeito da ação.”

[29] Ibidem. p. 29:“Mas qual pode ser essa lei, cuja representação mesmo sem tomar em consideração o efeito que se espera dela, tem de determinar a vontade para que esta se possa chamar boa, absolutamente e sem a menor restrição? Como tenho subtraído a vontade de todos os estímulos que pudessem afasta-lo do cumprimento de uma lei, nada mais resta a não ser a legalidade universal das ações em geral, essa mais deve ser o único princípio da vontade, isto é: não devo agir de modo que possa desejar que minha máxima deva se converter em lei universal. Aqui é a mera legalidade em geral (sem tomar como base qualquer lei destinada a ceras ações) o que serve de princípio à vontade, e também o que tem de lhe servir como princípio, para que o dever não seja em qualquer parte ilusão vã e conceito quimérico; com isso, equilibra-se perfeitamente a comum razão humana em seus juízos práticos, e o citado princípio jamais deixa o seu campo de visão.”

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[30] Hans KELSEN. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 5: “(...) o Direito distingue-se de outras ordens sociais. O momento coação, isto é, a circunstância de que o ato estatuído pela ordem côo conseqüência de uma situação de fato considerada socialmente prejudicial deve ser executada mesmo contra vontade da pessoa atingida e – em caso de resistência – mediante emprego da força física, é o critério decisivo.”

[31] Ibidem. p. 6: “(..) uma pacificação da comunidade jurídica somente aparece numa estágio mais elevado da evolução jurídica, a saber, naquele estádio evolutivo em que a autodefesa passa a ser proibida, pelo menos em princípio, e, por isso, nos encontramos em face de uma segurança coletiva em sentido estrito.”

[32] Hugo GROTIUS. O Direito da Guerra e da Paz. 1v. 2ed. Tradução: Ciro Mioranza. Ijuí: Unijuí, 2005. p. 45: “(..) as leis foram inventadas pelo temor de ser vítima de uma injúria e que os homens se sentem impelidos por uma espécie de força para cultivar a justiça. (..) todos juntos predominam sobre aqueles aos quais cada um deles não seria capaz de resistir sozinho. (..) o direito é a vontade do mais forte. Isto quer dizer que o direito carece de seu efeito exterior se não tiver a força que lhe dê sustentação. (..)”

[33] Ibidem. p. 109-110: “(..) proclamar e relembrar os princípios do direito de natureza apagados por uma prática viciada.”

[34] Hans KELSON. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 6: “(...) 'norma' (...) significa que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira (....) conferem poder de a realizar, isto é, quando a outrem é atribuído um determinado poder, especialmente o poder de ele próprio estabelecer normas. (...) 'dever' é aqui empregado com uma significação mais ampla que a usual.”

[35]Martin HEIDEGGER. A Caminho da Linguagem. Tradução: Márcia Sá Cavalcante Schuback. São Paulo: Vozes, 2003. p. 7-8: “(..) a linguagem é o que faculta o homem a ser o ser vivo que ele é enquanto homem.

(...) A linguagem encontra-se por toda parte.

(...) a linguagem não significa tanto conduzir a linguagem, mas conduzir a nós mesmos para o lugar de seu modo de ser, de sua essência: recolher-se no acontecimento apropriador.”

[36] Jürgen HABERMAS. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. 1v. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 21: “(..) conceito de razão comunicativa que situo no âmbito de uma teoria reconstrutiva da sociedade.”

[37] Ibidem p. 23: “(...) Arrastada para cá para lá, entre facticidade e validade, a teoria da política e do direito decompõe-se atualmente em facções que nada têm a dizer umas às outras. A tensão entre princípios normativos, que correm o risco de perder o contato com a realidade social, e princípios objetivistas, que deixam fora de foco qualquer aspecto.”

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[38] Ibidem. p. 277: “(...) ampliar as condições concretas de reconhecimento através do mecanismo de reflexão do agir comunicativo, ou seja, através da prática de arugmentação, que exige de todo o participante a assunção das perspectivas de todos os outros.”

[39] Sigmund FREUD. Psicologia de Grupo e a Análise do Ego. Tradução de Chrisiano Monteiro Oiticica. Além do Princípio de Prazes, Psicologia de Grupo e outros Trabalhos. 18v. Rio e Janeiro: IMAGO, 1996. p. 81: “O indivíduo (...) cai sob a influência de apenas um só pessoa ou de um número bastante reduzido de pessoas, cada uma das quais se torna enormemente importantes para ela.”

[40] Gustave LE BON. Psicologia das Massas. Tradução: Rosária Morais da Silva. Lisboa: Ésquilo, 2005. p. 41-42: “(..) a sua organização varia não somente segundo a raça e a composição das colectividades, mas ainda segundo a natureza e o grau de excitantes a que são submetidas.

(...) o simples facto de serem transformados em massa dota-os de uma espécie de alma colectiva. Esta alma fá-los sentir, pensar e agir de uma forma totalmente diferente daquela que cada um deles, isoladamente, sentiria, pensaria ou agiria. (...) A massa psicológica é um ser provisório, composto por elementos heterogéneos unidos num dado momento, tal com as células de um corpo vivo formam através da sua união um novo ser que manifesta característica muitíssimo diferentes daquelas que cada umas das células possui.”

[41] Ibidem. p. 51: “Esta inconstância das massas torna a sua governação muito difícil, sobretudo quando uma parte dos poderes públicos já lhes caiu nas mãos.”

[42]Jürgen HABERMAS. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. 1v. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 20: “(...) O direito normatizado não consegue assegurar-se dos fundamentos de sua legitimidade apenas através de uma legalidade que coloca à disposição dos destinatários enfoques e motivos (...) o direito moderno nutre-se de uma solidariedade concentrada no papel do cidadão que surge, em última instância, do agir comunicativo. A liberdade comunicativa dos cidadãos pode, como vimos, assumir, na prática da autodeterminação organizada, uma forma mediata através de instituições e processos jurídicos, porém não pode ser substituída inteiramente por um direito coercitivo.”

[43] Günter KLAUS. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação e Aplicação. Tradução: Claudio Molz. São Paulo: Landy, 2004. p. 410: “O descobrimento ou a busca por normas implícitas não ocorre de modo arbitrário, nem com uma intenção legislativa usurpadora. Dworkin insiste para que os juízes não criem novos direitos, mas descubram os direitos que sempre existiram, ainda que frequentemente de modo implícito. Esta argumentação de Dworkin é conseqüente, porque, no âmago, direitos são de natureza moral, portanto, inacessíveis à alteração positivadora. Eles não são derivados de um ato legiferante ou judicativo, mas do direito ao respeito e consideração iguais, enraizado nos fundamentais princípios legitimadores de uma comunidade. A competência de positivação normativa e a faculdade jurisdicional precisam, por sua vez, ser justificadas de novo à luz desse princípio, tal como as leis e os jurízos antecipados necessitam ser considerados ao decidir-se um caso isolado.”

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Vide DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução: Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 129: “Na verdade, porém, os juízes não deveriam ser e não são legisladores delegados, e é enganoso o conhecido pressuposto de que eles estão legislando quando vão além de decisões políticas já tomadas por outras pessoas. Este pressuposto não leva em consideração a importância de uma distinção fundamental na teoria política que agora introduzirei de modo sumário. Refiro-me à distinção entre argumentos de princípios, por um lado, e argumento de política (...) por outro.”

[44] Robert ALEXY. Teoria da Argumentação Jurídica: A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Tradução: Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2008. p. 186: “Como já se apontou na discussão da relação entre uma teoria do discurso empírica e normativa, o problema principal da maneira da fundamentação empírica está na consideração de uma norma que rege de fato ou que corresponde às convicções realmente existentes, como racional. Aqui se trata de um caso especial da derivação de um dever-ser a partir de um ser. Esta derivação só poderia ser possível aceitando a premissa de que a práxis existente é racional.”

[45] Ronald DWORKIN. Levando os Direitos a Sério. Tradução: Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 164-165: “Nos casos difíceis, a argumentação jurídica versa sobre os conceitos contestados, cuja função e natureza são muito semelhantes ao conceito das características de um jogo. Eles incluem muitos dos conceitos substantivos através dos quais o direito se manifesta, como os conceitos de contrato e de propriedade. Também se incluem aí dois conceitos de muito maior relevância para a presente argumentação. O primeiro é a idéia de ‘intenção’ ou ‘propósito’ de uma determinada lei ou de uma cláusula estabelecida por lei. Este conceito faz uma ponte entre a justificação política da idéia geral de que as leis criam os direitos e aqueles casos difíceis que interrogam sobre que direitos forem criados por uma lei específica. O segundo é o conceito de princípios que ‘subjazem’ às regras positivas do direito, ou que nelas estão ‘inscritos’. Este conceito faz uma ponto entre a justificação política da doutrina segundo a qual os casos semelhantes devem ser decididos da mesma maneira e aqueles casos difíceis nos quais não fica claro o que essa doutrina geral requer. Juntos, esses conceitos definem os direitos jurídicos como uma função ainda que muito especial, dos direitos políticos. Se um juiz aceita as práticas estabelecidas de seu sistema jurídico – isto é, se aceita a autonomia proporcionada pelas regras nítidas que constituem e regem este sistema – ele então deve, segundo a doutrina da responsabilidade política, aceitar um teoria política geral que justifique essas práticas. Os conceitos de intenção legislativa e os princípios do direito costumeiro são artifícios para a aplicação dessa teoria política geral às questões controversas sobre os direitos jurídicos.”

Robert ALEXY. Teoria da Argumentação Jurídica: A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Tradução: Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2008. p. 218: “Nos discursos jurídicos trata-se da justificação de um caso especial de proposições normativas, as decisões jurídicas. Podem distinguir-se dois aspectos da justificação: a justificação interna (internal justification) e a justificação externa (external justificatio).Na justificação interna verifica-se se a decisão se segue logicamente das premissas que se expõem como fundamentação, o objeto da justificação externa é a correção destas premissas.”

[46] Robert ALEXY. Teoria da Argumentação Jurídica: A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Tradução: Zilda Hutchinson Schild

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Silva. São Paulo: Landy, 2008. p. 224: “As regras e formas descobertas até agora se referem à estrutura formal da fundamentação jurídica. O ponto decisivo é o da segurança da universalidade. Podem-se designá-las por isso como ‘regras e formas da justiça formal’.”

[47] Ibidem. p. 258: “(...) A função de estabilização se cumpre na medida em que, com a ajuda de enunciados dogmáticos, se fixam e se fazem, portanto, reprodutíveis, determinadas solulções a questões práticas. Isso é possível porque a dogmática opera institucionalmente. Dessa forma, podem estabelecer-se, durante longo tempo, determinadas formas de decisão. Isso é de considerável importância, levando em conta o amplo campo das possibilidades discursivas. Se se tivesse de discutir de novo a cada vez surgiria a possibilidade de que a cada vez – sem que se violassem as regras do discurso jurídico e do discurso prático geral – se alcançarem resultados diferentes. Isso contradiz o princípio da universalidade e, por isso, um aspecto elementar do princípio da justiça. A dogmatização do Direito, ou algo semelhante do ponto de vista da função de estabilização, é uma exigência que deriva de princípios práticos gerais.”

[48] Ibidem. p. 277: “(...) As regras e formas da justificação interna submetem-se ao princípio da universalidade (...) o que corresponde à sua subordinação ao princípio de justiça formal de tratar igualmente o igual. As regras e formas de justificação interna são a estrutura básica da argumentação jurídica. Com isso, o mesmo princípio constitui o fundamento tanto do discurso prático geral como do discurso jurídico.”

[49] Importante observar que não se discute uma perspectiva positivista, apenas há registro de que a lei não tem efetividade apenas por existir, em contrapartida afirma-se também que um comportamento social determinado pode ser alterado pela existência de uma norma legislada. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução: Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 130: “(...) um programa que dependa basicamente de princípios, como um programa contra a discriminação, pode refletir a idéia de que os direitos não são absolutos, e não vigoram quando suas conseqüências para a política pública forem muito graves (...)”

[50] DWORKIN, Ronald. Uma questão de Princípio. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 170: “(..) Se um ato de desobediência civil pode alcançar seu objetivo sem punição, isso geralmente é melhor para todos os envolvidos.

(...) atos considerados como desobediência civil são efetivamente protegidos pela Constituição, ainda é viável quando os tribunais determinaram que esses atos não contam, a seu ver, com tal proteção.”

[51] John RAWLS. Uma Teoria de Justiça. Tradução: Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 406: “(..) a desobediência civil é a expressão de convicção profundas e conscientes; embora possa avisar e admoestar, ela não constitui por si só uma ameaça.

(...) A lei é violada, mas fidelidade à lei é expressa pela natureza pública e não violenta do ato, pela disposição de aceitar as conseqüências jurídicas da própria conduta. Essa fidelidade à lei ajuda a provar para a maioria que o ato é de fato politicamente consciente e sincero, e que intencionalmente se dirige ao senso de justiça do público.”

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[52] Jürgen HABERMAS. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. 2v. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 59: “A teoria do pluralismo já tornara como base um conceito empírista de poder. Para ela, uma compreensão instrumentalista da política, segundo a qual o poder político e administrativo constituem apenas formas diferentes de manifestação do poder social, forma o elo entre o modelo liberal de democracia, introduzido acima, e a realidade social.”

[53] Ibidem. p. 61: “(...) a teoria do sistema elimina os derradeiros laços do modelo normativo que servira de ponto de partida, limitando-se essencialmente aos problemas de regulação de um sistema política declarado autônomo e reassumindo os problemas da velha teoria do Estado (...) uma racionalidade auto-reflexiva da regulação, que corrói o conteúdo normativo da democracia, permitindo apenas uma distribuição alternada do poder entre governo e oposição.”

[54]Jürgen HABERMAS. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. 2v. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro, 2003. p. 97: “(..) captar e tematizar os problemas da sociedade como um todo, a esfera pública tem que se formar a partir dos contextos comunicacionais das pessoas virtualmente atingidas. (..) pelo aparelho do Estado, de cuja regulaçãop dependem os sistemas de funções sociais, que são complexos e insuficientemente coordenados.(..) uma linguagem existencial, na qual é possível equilibrar, em nível de uma história de vida, os problemas gerados pela sociedade.”

[55] Ibidem. p. 105: “(..) na esfera pública liberal, os atores não podem exercer poder político, apenas influência. E a influência de uma opinião pública, mais ou menos discursiva, produzida através de controvérsias públicas, constitui certamente uma grandeza empírica, capaz de mover algo. (..) essa influência pública e política tem que passar antes da opinião e da vontade, transformar-se em poder comunicativo e concretamente generalizada, possa se transformar numa convicção testada sob o ponto de vista de generalizações de interesses e capaz de legitimar decisões políticas. (..).”

[56] Ibidem. p. 146: “(..) só tem legitimidade o direito que surge da formação discursiva da opinião e da vontade de cidadãos que possuem os mesmos direitos.”

[57] Gustave LE BON. Psicologia das Massas. Tradução: Rosária Morais da Silva. Lisboa: Ésquilo, 2005. p. 146: “(..) Hoje em dia, os autores perderam toda a influência e os jornais limitam-se a reflectir a opinião. Quanto aos homens de Estado, longe de a dirigirem, procuram segui-la. O seu medo da opinião chega por vezes ao terror e elimina qualquer tipo de constância na sua condução.

A opinião das massas tende pois a tornar-se cada vez mais o supremo regulador da política. Actualmente, chega mesmo a impor alianças, como o vimos no caso da aliança russa, que saiu quase exclusivamente de um movimento popular.”

[58]Jürgen HABERMAS. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. 1v. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 2003. p. 21: “(...) o conceito de razão comunicativa que situo no âmbito de uma teoria reconstritiva da sociedade (...) a razão prática adquire um novo valor hermenêutico. Não funciona mais como orientação direta para uma teoria normativa do direito e da moral (...) ele se

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transforma num fio condutor para a reconstrução do emaranhado de discursos formadores de opinião e preparadores da decisão, na qual está embutido o poder democrático exercitado conforme o direito.”

[59] Ibidem. p. 24: “(...) a teoria do agir comunicativo concede um valor posicional central à categoria do direito e por que ela mesma forma, por seu turno, um contexto apropriado para uma teoria do direito apoiada no princípio do discurso (...) A teoria do agir comunicativo tenta assimilar a tensão que existe entre facticidade e validade.”

[60]Max WEBER. Economia e Sociedade. Tradução: Rigis Barbosa e Karem Elsabe Barbosa. 2v. São Paulo: UnB. 2004. p. 100: “(...) influência das formas de demonação políticas sobre as qualidades formais do direito. (...) Quanto mais o aparato de dominação dos príncipes e hierarcas era de caráter racional, administrado por 'funcionários', tanto mais tendia sua nifluência (...) a dar à justiça um caráter racional quanto ao conteúdo e à forma (...) os interesses de sua própria administração racional lhes indicavam este caminho (...) onde se encontravam numa aliança com poderosos grupos de interessados no direito (...)”

[61] BRASIL. LEI N. 9.503 (1997). Lei Federal Ordinária n. 9.503. Brasília: Senado. 1997: “Art. 65. É obrigatório o uso do cinto de segurança para condutor e passageiros em todas as vias do território nacional, salvo em situações regulamentadas pelo CONTRAN.

(...)

Art. 167. Deixar o condutor ou passageiro de usar o cinto de segurança, conforme previsto no art. 65:

Infração - grave;

Penalidade - multa;

Medida administrativa - retenção do veículo até colocação do cinto pelo infrator.”

[62] BRASIL LEI N. 11.705 (2008). Lei Federal Ordinária n. 11.705 (2008). Brasília: Senado. 2008: “Art. 1o Esta Lei altera dispositivos da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, com a finalidade de estabelecer alcoolemia 0 (zero) e de impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do álcool, e da Lei no 9.294, de 15 de julho de 1996, que dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4o do art. 220 da Constituição Federal, para obrigar os estabelecimentos comerciais em que se vendem ou oferecem bebidas alcoólicas a estampar, no recinto, aviso de que constitui crime dirigir sob a influência de álcool.

Art. 2o São vedados, na faixa de domínio de rodovia federal ou em terrenos contíguos à faixa de domínio com acesso direto à rodovia, a venda varejista ou o oferecimento de bebidas alcoólicas para consumo no local.

(...)

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Art. 5o A Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997, passa a vigorar com as seguintes modificações:

I - o art. 10 passa a vigorar acrescido do seguinte inciso XXIII:

‘Art. 10. .......................................................................

.............................................................................................

XXIII - 1 (um) representante do Ministério da Justiça.

...................................................................................’ (NR)

II - o caput do art. 165 passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Infração - gravíssima;

Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;

Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.

...................................................................................’ (NR)

III - o art. 276 passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 276. Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código.

Parágrafo único. Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos.’ (NR)

IV - o art. 277 passa a vigorar com as seguintes alterações:

‘Art. 277. .....................................................................

.............................................................................................

§ 2o A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.

§ 3o Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.’ (NR)

V - o art. 291 passa a vigorar com as seguintes alterações:

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‘Art. 291. .....................................................................

§ 1o Aplica-se aos crimes de trânsito de lesão corporal culposa o disposto nos arts. 74, 76 e 88 da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, exceto se o agente estiver:

I - sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência;

II - participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente;

III - transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 km/h (cinqüenta quilômetros por hora).

§ 2o Nas hipóteses previstas no § 1o deste artigo, deverá ser instaurado inquérito policial para a investigação da infração penal.’ (NR)

VI - o art. 296 passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 296. Se o réu for reincidente na prática de crime previsto neste Código, o juiz aplicará a penalidade de suspensão da permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor, sem prejuízo das demais sanções penais cabíveis.’ (NR)

(...)

VIII - o art. 306 passa a vigorar com a seguinte alteração:

‘Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

.............................................................................................

Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo. ’(NR)

Art. 6o Consideram-se bebidas alcoólicas, para efeitos desta Lei, as bebidas potáveis que contenham álcool em sua composição, com grau de concentração igual ou superior a meio grau Gay-Lussac.

Art. 7o A Lei no 9.294, de 15 de julho de 1996, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 4o-A:

‘Art. 4o-A. Na parte interna dos locais em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção.’”

[63] “HABEAS CORPUS: 0581/2008”.

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IMPETRANTE : BEL. CLAUDINEI DOS SANTOS PEREIRA

PACIENTE : CLAUDINEI DOS SANTOS PEREIRA

Vistos.

CLAUDINEI DOS SANTOS PEREIRA, brasileiro, divorciado, Advogado, qualificado no exórdio mandamental fl. 01, manejou ordem de habeas corpus preventivo, argumentando a existência de constrangimento ilegal imputando como autoridades coatoras os Srs. Secretário de Segurança Pública do Estado de Sergipe e Secretário Municipal de Transportes e Turismo.

Sustentou a impetração, em suma, que em virtude da vigência da Lei n.º 11.705/2008 que acrescentou diversos dispositivos no Código de Trânsito Brasileiro ‘...ferindo princípios basilares do Direito e da Justiça, atentando contra garantias e liberdades fundamentais.’ Nasceu para o paciente o constrangimento ilegal a ser remediado por esta via mandamental (fl. 02).

Alegou que ‘...as autoridades policiais de todo país estão obrigando cidadãos a soprarem um tal ‘bafômetro’, ao ensejo de verificarem se o mesmo bebeu em excesso, o que, no caso da lei poderá ser até licor de um bombomzinho comercial...’ (fl. 02).

O impetrante discorreu, em inúmeras laudas decalcadas da petição inicial da ADI 4103, sobre a inconstitucionalidade da Lei n.º 11.705/2008 frente ao art. 5º da Lex Legum, sobre a falta de razoabilidade, proporcionalidade e equidade, sobre o princípio da intervenção mínima do Estado, a valoração dos princípios da isonomia e a individualização das penas.

Discorreu ainda que seria ‘...absurda punição contra aquele que se nega a produzir prova contra si mesmo...”, pois, em seu pensar, “...não pode permanecer em nosso ordenamento jurídico uma norma inconstitucional, que viola a razoabilidade e a proporcionalidade, assim como o interesse público, pela afronta à cultura e aos costumes populares, absolutamente corriqueiros e lícitos.’ (fl. 13).

Ao fim, pugna pela concessão de liminar no escopo de não ser obrigado a se submeter ao teste do bafômetro, a comparecer à repartição policial ou Instituto Médico Legal para realização de exame de sangue e não seja lavrada a multa do art. 165 do Códex de Trânsito Brasileiro.

Tudo visto e examinado. Decido.

O habeas corpus deve atender certas condições para a adequação do manejo desse remédio heróico, tais como a legitimidade, a possibilidade jurídica do pedido e o interesse de agir.

Por medida de economia dissertativa, ater-me-ei apenas a um breve exame relativo à última das condições retromencionadas: o interesse de agir.

Se os pressupostos ao exercício desse instrumento de natureza garantística, de sede constitucional, concentram-se na infligência de uma concreta e possível ameaça ou

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violação à liberdade de locomoção e seus desdobramentos por ilegalidade ou abuso de poder, ausentes tais elementos configuradores da violação do direito do pretenso paciente, mingua-lhe o interesse de agir.

Intuo que estou a defrontar-me com essa hipótese de vacuidade de causa a substanciar a pretensão deduzida.

Se não, vejamos.

Prima facie, a exigência do aferimento via bafômetro a quem está conduzindo veículo automotor de via terrestre, promana do cumprimento da lei pelas autoridades e agentes administrativos encarregados da segurança do trânsito, a teor do quanto disposto na Lei. N.º 11.705/2008.

Ademais, se o condutor do veículo não aquiescer em submeter-se ao teste do bafômetro, não poderá ser fisicamente coagido a fazê-lo e, por isso mesmo, sua liberdade de locomoção não estará a sofrer nenhuma ameaça.

Se, por essa negativa poderá seu veículo ser apreendido, o será apenas enquanto não for apresentada outra pessoa, indicada pelo próprio pretenso paciente, com carteira de habilitação, que poderá conduzir o veículo apreendido e neste abrigar o próprio ex-condutor do mesmo.

A insurgência quanto à pena pecuniária por não se submeter ao teste do bafômetro refoge à proteção pela via do habeas corpus.

Lei existe e as autoridades encarregadas de fazê-la cumprir agem no exercício regular de direito e se desincumbindo do dever imposto pela sua condição de agente público com o munus de realizar, administrativamente, a aplicação da lei.

Não há, pois, falar-se em ilegalidade ou abuso de poder por parte de quem cumpre apenas a lei, nos limites por ela estabelecidos.

Também não vejo como erguer-se qualquer barreira de natureza constitucional contra a mencionada lei cognominada de “Lei Seca”.

O seu fim social é elevadíssimo, buscando proteger o bem jurídico de maior importância: a própria vida e, ao protegê-la, realiza o caríssimo princípio fundamental de preservação da dignidade humana (art. 1º, III, CF), de exercício civilizatório a compor o princípio da cidadania (art. 1º, II, CF), inscrevendo-se a mens legis na busca da realização do objetivo fundamental da República que diz com a construção de uma sociedade justa e solidária (art. 3º, I CF).

Não colima, pois, a lei hostilizada limitar a liberdade de locomoção dos condutores de veículos; antes os protege e a terceiros contra eventuais sinistros que possam ocorrer não pela mínima quantidade de álcool acaso detectada por ocasião do eventual teste do bafômetro, mas por ulterior adição a esse teor etílico de outras doses capazes de metabolizar no organismo o efeito da substância ingerida, o que não me parece de remota plausibilidade.

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É, portanto, de saudável prevenção que se cuida, em nome da preservação da vida.

Entre o desconforto de submeter-se a esse teste e o alcance social que o justifica, parece-me afastada a alegação de sacrifício desproporcional causado a condutor de veículo, nessas circunstâncias.

O bem a ser protegido nutre-se de tamanha carga axiológico-valorativa que, a meu ver, numa sociedade civilizada e num Estado Democrático de Direito, unge-se tal exigência, da benção consagrada à defesa do bem comum, notadamente quando esse bem defendido é a própria vida.

Na aplicação dessa lei, é inescondível, pois, a perspectiva do fim social ao qual ela se dirige incidindo, também, a inteligência do art. 5º da Lei de Introdução do Código Civil.

A vida em sociedade supõe alguns incômodos ou mesmo sacrifícios individuais no interesse da sinergia social, do bem comum, do interesse público, da almejada paz social.

Imperiosa, portanto, a conscientização dos valores em nome dos quais são exigidos esses incômodos e esses sacrifícios cometidos ao indivíduo, para perquirir-se da sua legitimação pela ordem jurídica.

É que a colisão de princípios resolve-se na dimensão de valores.

Tenho como presente neste caso, a colisão entre o princípio da liberdade de conduzir veículo e a exigência do teste do bafômetro voltado para a proteção da vida, da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da cidadania.

Nessa colisão, a supremacia da proteção desses outros valores enaltecidos pelos princípios constitucionais aqui reportados é inquestionável.

Vejo como oportuno o escólio de Hélio Tornaghi, lembrando o direito que:

‘...tem o Estado de exigir dos indivíduos certos sacrifícios para o bem comum, como foi mostrado no capítulo anterior. Podem eles recair sobre o patrimônio (impostos) podem consistir na prestação de serviços (jurados, testemunhas, soldados), podem até exigir o holocausto da própria vida (como no caso do militar que morre na defesa da Pátria). Ninguém diria que há injustiça em tudo isso, porque todos compreendem que esta abnegação é o preço da vida em sociedade e o homem somente na sociedade pode viver. Para o bem comum cada qual entra com uma parcela de si mesmo.’ (In, Instituições de Processo Penal, vol. 3, p. 177, Ed Saraiva, 2ª edição).

Com estas considerações, não vislumbrando qualquer ameaça na Lei n.º: 11.705/2008 ao direito de locomoção de qualquer condutor de veículo; igualmente, não descortinando ilegalidade ou abuso de poder por parte das autoridades apontadas como coatoras no eventual exercício de dar cumprimento à sobredita lei, observados seus limites, carece de interesse de agir.

Se, acaso houver abuso de autoridade no ato da diligência empreendida por tais agentes administrativos, sejam eles civis ou militares, somente quando concretamente plausível

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tal procedimento irregular, admitir-se-á o manejo do remédio heróico, sob pena de, genérica e abstratamente, expedir-se salvo-conduto em face de uma mera possibilidade (não de uma probabilidade) de excesso cometido por qualquer agente público no exercício de suas funções.

Neste toar, imprescindível citar o Mestre Julio Fabbrini Mirabete, que descreve com maestria o significado da iminência de restrição ao direito de locomoção, ad litteram:

‘o receio de violência deve resultar de ato concreto, de prova efetiva, de ameaça de prisão. Temor vago, incerto, presumido, sem prova, ou ameaça remota, que pode ser evitada pelos meios comuns, não dá lugar a concessão de habeas corpus preventivo.’ (in, Processo penal. São Paulo, Atlas, 2000. 10ª ed. p. 714).

Avistando os pedidos supracitados, é de clareza solar que não há perspectiva de violação iminente ao status libertatis do paciente, pois o objeto aqui exposto não se afigura entre os tutelados por esta via estreita que visa, repise-se, proteger o direito de locomoção.

À evidência do exposto e sem mais delongas, extingo o processo sem julgamento de mérito, ante a ausência de interesse legítimo à utilização do remédio heróico reclamado.

Aracaju, 25 de julho de 2008.

DESEMBARGADOR NETÔNIO BEZERRA MACHADO

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